A cidade maldita: diálogos com a Escola de Chicago
Transcrição
A cidade maldita: diálogos com a Escola de Chicago
UNIVERSIDADE DE SOROCABA PROGRAMA DE PÓS GRADUÇÃO STRICTO SENSU EM COMUNICAÇÃO E CULTURA Cidade Maldita: diálogos com a Escola de Chicago Ana Maria Fidelis Solla Trabalho para conclusão da disciplina Teorias da Comunicação Ministrada pelo Prof. Dr. Paulo Braz C.Schettino Prof. Ms. Aldo Vannucci Reitor da Universidade de Sorocaba Profa. Dra. Marli Gerenutti Vice-Reitora da Universidade de Sorocaba Pró-Reitora de Pós-Graduação e Pesquisa Prof. Dr. Osvando J. de Morais Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Cultura Outubro/2007 2 A cidade maldita: diálogos com a Escola de Chicago Ana Maria Fidelis Solla1 “As the snow flies On a cold and gray Chicago mornin' A poor little baby child is born In the ghetto and his mama cries 'cause if there's one thing that she don't need it's another hungry mouth to feed” In the ghetto Mac Davis Resumo Os estudos sobre a desorganização social da cidade norte-americana de Chicago, nos anos 20 do séc. XX, realizados por estudantes e professores, marcam o início da chamada Escola Sociológica de Chicago. Era a década de vinte – os anos “loucos” - do século passado, quando e onde, questões sobre imigração, relações étnicas, desemprego, delinqüência e criminalidade preocupavam. Durante a vigência da Lei Seca, gangsters controlavam o crime organizado, gangues juvenis se dividiam pelos bairros étnicos da cidade. Esses desvios sociais e seus sujeitos desviantes foram tema de uma série de obras fílmicas e textos literários. E, ainda, inspirou uma canção. Assim, por meio de diferentes textos, em suas origens e formas, torna-se possível compreender o motivo pelo qual o gangster ocupa, no imaginário coletivo, um lugar de fascínio e admiração. 1 Mestranda em Comunicação e Cultura pela Universidade de Sorocaba (UNISO). 3 Introdução A cidade de Chicago tinha, em 1840, 4.470 pessoas. Em 1990, ou seja, em apenas 90 anos, teria cerca de 3 milhões e meio de habitantes2 . Figurando entre as três maiores cidades dos Estados Unidos (as outras eram Nova York e Filadélfia), tornou-se objeto de estudos e pesquisas de cientistas, sociólogos, principalmente, sobre grupos sociais e seu comportamento. Havia um grande número de imigrantes de várias origens, em busca de oportunidades de vida e de trabalho, além do êxodo rural de indivíduos do meio oeste norte-americano. Assim, de povoado, transformou-se em metrópole, essa explosão com grande diversidade cultural e cheia de conflitos. Conflitos resultantes da desorganização social, pobreza, escassez de emprego, desintegração familiar, infância e juventude, roubadas pela falta de perspectivas de vida, como malabaristas cambaleantes; de um lado, a indefinição de sua identidade, sua origem em conflito com a nova pátria e, de outro, a luta diária pela sobrevivência. Situando a Escola de Chicago, desponta (entre 1915 e 1940) como a primeira escola de estudos acadêmicos, desenhando uma sociologia urbana, com a realização de uma série de estudos sobre a cidade de Chicago, caracterizando-se pelos enfoques microssociológico e interacionismo simbólico. O primeiro se explica pelo estudo dos desarranjos sociais, as fraturas sociais, formando, no sentido sociológico da escola, os chamados guetos3 com seus pequenos grupos interagindo com outros; quanto ao segundo, a comunicação constitui, simbolicamente, a sociedade por meio da interação entre seus indivíduos que se relacionam através de símbolos. No plano acadêmico, a importância da Escola diz respeito à utilização de método empírico e da observação, objetivando respostas para as fraturas sociais enfrentada pela cidade e suas autoridades. No plano da ficção, em alguns textos escritos4, tem-se, então, 2 COULON, Alain. A Escola de Chicago. Trad. Tomás R. Bueno. Campinas, SP: Papirus, 1995. P.11. 3 De acordo com Revista de Sociologia e Política (ISSN 0104-4478), no. 23 Curitiba Nov. 2004: “O conceito recebeu autoridade científica com o paradigma ecológico da Escola de Sociologia de Chicago. Em seu livro clássico, The Ghetto, Louis Wirth (1928, p. 6) junta ao gueto judeu ,da Europa medieval, outros guetos: Pequenas Sicílias, Pequenas Polônias4, Chinatowns e cinturões negros das cidades grandes, assim como "áreas do vício", pululando com tipos marginais tais como vagabundos, boêmios e prostitutas – todas elas consideradas áreas criadas "naturalmente" a partir de um desejo universal de diferentes grupos de "preservar seus hábitos culturais peculiares", e cada uma cumprindo sua "função" específica no grande organismo urbano.” 4 No livro Cidade Maldita, o autor apresenta uma nota esclarecedora em que diz tratar-se de ficção, todavia, a obra baseia-se em sua vida, foi criado em Chicago, e serviu no Corpo de Fuzileiros Navais na Guerra da Coréia, como o protagonista. Seus pais, também, são reais. 4 uma leitura dessa realidade, um registro histórico, vez que retrata uma época específica, e social, pois analisa essa sociedade nos textos imagéticos. Trata-se de expressão da realidade ou representação? Documentário ou drama? Ambos. Ler a Escola de Chicago, na literatura e no cinema, poderá ser explicado dessa forma: a explosão dos meios de comunicação de massa, em especial o cinema e o rádio, na sociedade do século passado. Houve uma substancial mudança, nas Artes, que passaram a ser reproduzidas e destinadas às massas5. Fala-se para elas, fala-se delas. Lendo a Escola de Chicago: a cidade maldita Todavia, o trabalho empírico-científico, da Escola de Chicago, caminha muito mais do que o estudo em si, caminha para estruturação dessa sociedade desorganizada, bem como a preocupação com seus sujeitos atuantes: as gangues, o delinqüente juvenil, o viciado, a prostituta etc; enfim, os desviantes urbanos. Assim, não é mera coincidência a explosão de romances e contos policiais, muitos deles adaptados para o cinema (filmes noir, de gangsters), representação do real, da sociedade doente e corroída por seus males internos. No entanto, em Cidade Maldita6 , o garoto Richie enfrenta toda a sorte de provações para não ser tragado pela Chicago cruel, inóspita e fria (em sentido denotativo e conotativo). Garoto que assiste ao esfacelamento de seu núcleo familiar, com vida nômade e precária, exposto a toda sorte de situações que o empurram para baixo, como mostrar a impossibilidade de lutar contra o seu destino: tornar-se mais um marginal entre tantos da cidade grande. A odisséia do pequeno herói é uma narrativa não-linear, com fragmentos do tempo indo e vindo: a Grande Depressão, a Segunda Guerra Mundial, a Depressão PósGuerra, a Guerra da Coréia, tudo permeado por um clima de desesperança e pessimismo, experimentado pela sociedade norte-americana. Na hostil e fria Chicago, Richie, 12 anos, vive com a mãe viciada, emocionalmente frágil e sem emprego estável, conseqüentemente, mudam-se com freqüência para fugir das cobranças do aluguel, morando em lugares precários e 5 KORNIS, Mônica A. História e Cinema: um debate metodológico. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 5, n. 10, 1992, p. 237-250. 6 CLARK, Howard. Cidade Maldita (Hard City) .São Paulo: Editora Best Seller, 1990. 5 alimentando-se como podem. O garoto decide entregar sua mãe à Assistência Social e foge para viver, agora, realmente sozinho, por sua conta. Richie tem como objetivo máximo encontrar seu pai, Richmond, preso por contrabando de bebidas, na época da Lei Seca, e perdeu o contato com a família. Essa busca, para o garoto, representava a possibilidade de reorganização da família, com a recuperação de sua mãe, uma casa quente e aconchegante para morar, a proteção e segurança do pai, enfim, um lar, no sentido comum do termo. Passa a viver escondido, trabalha em pequenos serviços, pratica pequenos furtos, mente para sair de determinadas situações. Inicia-se no prazer da leitura e, com ela, a real possibilidade de mudanças; fascina-se com e sonha com seus heróis; encontra, no amor, os momentos de doçura de sua amarga existência. Experimenta todas as faces que um ser humano pode ter: amizade, lealdade, confiança e companheirismo; mas, também, violência, exploração, maldade, fraqueza de caráter. A vida pelas ruas, os lares adotivos, o reformatório, a guerra, enfrenta muitas perdas, conhece sua história, todavia, não se entrega, luta para reverter sua condição, mas nunca se aquieta. Vendo a Escola de Chicago: as doenças sociais na tela A análise dessa época chegou às telas por meio de obras que refletem sobre a realidade do país: gangues, delinqüência, miséria e desemprego são temas que expressam as verdadeiras preocupações do povo americano. Surgem, assim, os chamados filmes de gangster, biografias realistas e violentas dos membros e chefes do crime organizado. O cinema recria o clima vigente: cenas urbanas, bairros marginais, noites de chuva, disparos de revólver, mulheres e ambientes de luxo e bares clandestinos da época da Lei Seca. E os desvios, também, estão lá: racismo, preconceito, criminalidade, prostituição, vícios e pobreza. Em “Anjos de Cara Suja” (Angels with dirty faces, Michael Curtz, 1938), dois meninos que vivem, pelas ruas de Chicago, seguem caminhos opostos, um vai para o reformatório e outro se torna padre. Todavia, mais do que a história de amigos, é um filme sobre a delinqüência incontrolada que progride para a criminalidade; há ainda, 6 como subtemas, a corrupção, a ineficiência das instituições (escola e sistema reeducacional) e a corrupção. Trata-se de um clássico do gangsterismo. Cotton Club ( The Cotton Club, Francis F. Coppola, 1984) tem, como cenário principal, o lendário clube noturno do Harlem, em Nova Iorque, mostra o crime organizado dos anos 30, o preconceito e a prostituição, todavia, fala da época do apogeu do jazz, expressão cultural negra, assim, é também sobre racismo e cultura. Um investigador de Chicago resolve combater Al Capone e o submundo do crime, durante o período da Lei Seca e, para isso, reúne uma equipe de policiais incorruptíveis. Em poucas linhas, esse é o enredo de “Os Intocáveis” (The Untouchables, Brian De Palma, 1987). Em “Estrada para Perdição” (Road to Perdition, Sam Mendes, 2002), Michael Sullivan é fiel ao Chefão John Rooney, um velho gângster de Chicago. Um dia, Connor Rooney, filho do chefão, assassina a mulher e filho caçula de Sullivan. O filho mais velho, Michael Sullivan Jr., sobrevive. A vingança passa a ser o objetivo deste. Tem como plano secundário a desestruturação da família e a referência à figura de pai idealizada: o filho de Sullivan o tem como herói, e a relação paterna entre o velho Rooney e Sullivan. A temática gangsteriana está presente, também, na comédia. Em “Quanto mais quente melhor” (Some Like It Hot, Billy Wilder, 1959), na Chicago de 1929, Joe e Jerry são amigos e músicos desempregados. Porém, acidentalmente, testemunham o Massacre do Dia de São Valentim, numa disputa pelo poder entre gangues. Fogem da cidade para não serem mortos pelos assassinos. Surge, então, um trabalho numa banda só para mulheres; assim, disfarçam-se de... mulheres! Conseguem o emprego. A fuga da dupla e suas aventuras amorosas proporcionam momentos de sutileza e fino humor, que só o cinema é capaz de produzir. O que parece improvável é possível: falar de massacre entre criminosos, desemprego, na época crítica de Chicago e, o crime organizado, num clima de comédia. Regido, magistralmente, por Wilder, tornou-se um dos inesquecíveis momentos da grande tela. Entretanto, a leitura mais fértil sobre a Escola de Chicago está em “Era Uma Vez na América” (Once Upon a Time in America, Sergio Leone, 1984). Muitos planos se prestam à análise dos conceitos e marcas deixadas pelos estudos da Escola. Contudo, o cenário gangsteriano deixa Chicago, agora, é Nova Iorque, outro centro problemático sob o viés até aqui estudado. Percebe-se, assim, que o lugar é secundário, o relevante são suas máculas sociais. 7 Escola de Chicago em Nova Iorque Como já mencionado, no início, Chicago, ao tempo dos primeiros estudos dos sociólogos, figurava entre as três maiores cidades dos EUA, ao lado de Nova Iorque e Filadélfia. Destaca-se, agora, visto que Nova Iorque e os seus problemas sociais também se assemelham aos investigados em Chicago. Nova Iorque era outro grande destino do fenômeno migratório, no período do final do século XIX, até o início do século passado. Quiçá, até hoje, sua característica mais marcante seja a imagem de cidade com grande diversidade étnica e, conseqüentemente, multicultural. Na grande tela, muito já se mostrou dos conflitos sociais enfrentado por Nova Iorque. As origens das gangues, na cidade, são contadas em “Gangues de Nova Iorque” (Gangs of New York, Martin Scorsese, 2002). A obra mostra um dos períodos mais críticos da cidade, enfrentado em meados do século XIX: a rivalidade entre grupos de imigrantes (destaque para os irlandeses), a desorganização social, a violência, a prostituição, conflitos raciais, a desestabilidade familiar (Amsterdam tem seu pai assassinado numa das guerras de gangues, marcando sua vida: a vingança), um cenário de caos tão intenso que quase impede o vislumbramento do que viria ser, no século seguinte, um dos grandes centros urbanos do mundo, seja cultural seja financeiro. Entretanto, neste texto, ressalta-se a importância para o tema em questão, a obra de Sérgio Leone, o grande diretor italiano, “Era uma vez na América” (Once Upon a Time in America, Sergio Leone, 1984), a história do grupo de amigos delinqüentes que entra para crime organizado, na década de 30. Em breves linhas: na década de 20, David Aaronson (Noodles) é um garoto que vive pelas ruas de um bairro pobre, de Nova Iorque, juntamente com os seus amigos Patsy, Cockeye e Dominic, fazendo pequenos serviços para Bugsy, marginal, chefe de uma gangue adulta. Numa das investidas de furto, conhecem Max, um pouco mais velho que o grupo, ocorre uma grande empatia entre Noodles e Max, que se tornam grandes amigos e companheiros de golpes. O grupo decide pela autonomia, afastando-se da exploração de Bugsy. O grupo começa a ganhar dinheiro e se desenha uma “irmandade”, levando Bugsy a buscar vingança, o que ocasiona o assassinato de Dominic; Noodles, ao ver o 8 garotinho morto, num momento de fúria incontrolável, mata Bugsy e um policial que tenta agarrá-lo. Após nove anos, sai da prisão, quando a Lei Seca (proibição legal de venda ou consumo de bebidas alcoólicas) aproxima-se do seu fim. Noodles estranha a mudança do grupo, a forma como estão entrosados com o crime organizado, a ambição desmedida de Max, que planeja assaltar a Reserva Federal Americana, que o leva a denunciar o grupo às autoridades, sem nunca pensar em abandonar seus amigos. Max espanca Noodles, por isso, não está com o restante do grupo, quando são mortos. Foge durante 35 anos, regressando apenas devido a um misterioso convite. Todo o passado emerge, trazendo o tempo que é presente para Noodles. O filme tornou-se um clássico do gangster, com toda a violência, traição, antiheróis, criminosos e clima característicos do gênero. Reconstrói a época da Grande Depressão de forma bastante realista a realidade (com perdão da redundância) vez que a premissa da violência do filme de gângster é a oposição ao escapismo presente no musical – gênero cinematográfico que enfoca o mesmo período histórico. O filme de gangster recria o imaginário urbano, a busca: o homem de origem pobre em busca do sonho americano e, para realizá-lo recorre ao crime e à violência. Como retrata uma época de grande pobreza e desemprego, o protagonista desviante -- ou de comportamento aberrante, como preferem alguns -- e, muitas vezes, a sua gangue, desses filmes, ganha a empatia da grande massa, os espectadores das classes desfavorecidas, freqüentadores assíduos do cinema nesse período. O título do filme já desperta curiosidade. “Era uma vez...” é uma introdução usada nas fábulas, gênero literário comum em muitas culturas. A idéia presente é que a narrativa desenvolve algum ensinamento moral, muitas vezes, implícito. Entendo-se, assim, que sua narrativa deve levar a alguma lição, com memorização de valores morais (Quem não se lembra de “A cigarra e a formiga” ?), um objetivo pedagógico. Compreende-se, então que o texto é uma fábula sobre a América, sobre um período carente de valores, com príncipes bandidos num bosque de sangue e violência. O texto fílmico fala do ópio (nas cenas do salão de ópio, no início e final do filme), conhecido narcótico entre a comunidade chinesa, capaz de provocar alucinações. De ligações suspeitas (com o sindicato, por exemplo), a prostituição (na personagem Peggy), e com o jogo (ao comprarem uma casa clandestina). 9 Além das marcas sociais, convém ressaltar a importância da personagem Deborah na vida de Noodles. Deborah é um misto de amor e veneração para Noodles, desde a infância, porém, a garota tem como objetivo de vida ser uma artista, sobressairse na vida e isso implica em não envolver-se com “gente” como ele: pobre, inculto, sujo, enfim, um ninguém, tudo o que não quer para si. Numa postura narcisística, ensaia e se despe, sabendo-se observada pelo garoto, provoca-o, humilha-o em todo momento. É seu alimento e seu repúdio. Deborah representa a fraqueza de Noodles, seu desequilíbrio. Misto de musa inspiradora, ou uma Beatriz às avessas. Com Max, Noodles mantém uma relação que causa estranheza, a amizade profunda é marcada por alguns olhares e ações incômodas de Max para o amigo, principalmente quando Noodles está com Deborah, o que pode sugerir inveja do amor profundo e sincero, ou ciúmes da garota, hipótese devida ao relacionamento futuro que Max e Deborah terão. Max, o traidor do grupo, simula a própria morte, para depois manter-se escondido sob nova identidade. Rouba dinheiro de Noodles, boa parte de sua vida e seu grande amor. A narrativa é não-linear, inicia-se na década de 30, volta à infância, década de 20 e década de 60; somente a fase da infância é linear, todavia, a percepção é de que Noodles quer viver no passado, rejeita a mudança de tudo: quando se assusta com a mudança física dos garotos, quando percebe que a gangue cresceu e aspira ligação com criminosos maiores; já envelhecido, espia, pelo mesmo buraco, no bar de Fat Moe, o espaço onde Deborah ensaiava seu balé, agora vazio a abandonado, mas, principalmente, na década de 60, quando retorna depois da fuga de 35 anos, encontra todos os personagens estão envelhecidos, exceto Deborah, e a dúvida, ela realmente não envelheceu ou é ele que a vê ainda jovem? Aliás, essa cena é inquietante. Enquanto conversam, Deborah, agora uma atriz respeitável, vai tirando a maquiagem, como que a tirar uma máscara: máscara que esconde quem ela é na verdade? Atrás de sua personagem esconde-se da vida? Prefere a representação do que sua vida real e cotidiana? Deborah é emblemática, seu rosto angelical é gélido, não parece feliz nem infeliz, pouco de expõe, não aflora seus sentimentos, desde menina, e isso confunde e perturba o devotado e apaixonado Noodles. 10 A gangue Frederic Thrasher, um dos pesquisadores de Chicago, em 1923, publicou obra sobre as guangues de Chicago, e este estudo resultou em definições sobre o grupo de extrema importância para entender seu comportamento desviante. Seguem alguns: “As gangues nascem dos encontros de rua entre adolescentes desocupados que passam a maior arte do tempo perambulando, jogam e bebem juntos, são solidários, ajudam-se mutuamente e estimulam-se”.7 “As gangues ocupam o cinturão da pobreza, onde o habitat está deteriorado, a população muda sem cessar, tudo está desorganizado, abandonado”.8 “...esta é a manifestação de conflitos culturais entre comportamentos de imigrantes entre si, por um lado e, pelo outro, entre as diferentes comunidades e os valores de uma sociedade americana pouco atenta aos seus problemas – sobretudo sua pobreza – e que continua estrangeira a elas”.9 David Aaronson (Noodles) , Max Kowansky, Patsy, Cockey e Dominic, constituem uma gangue formada por filhos de imigrantes judeus, da Polônia, cujo habitat é um bairro judeu, de Nova Iorque, percebe-se a solidariedade e, espírito de cooperação, principalmente nas cenas em que transgridem: são jack-rollers 10 e planejam uma investida na qual cada membro tem uma papel a executar, de forma absolutamente sincronizada e, mesmo diante do imprevisto, são rápidos e criativos. O relacionamento entre eles é marcado pela lealdade, confiança e, até mesmo, afeto. Isso é perceptível na cena da morte de Dominic. Noodles entra em estado de completa fúria e descontrole, numa mistura de vingança e dor; em outra cena, a do primeiro grande “serviço” da gangue, Noodles se desespera por pensar que Max afogouse; vivem na rua, que é notado pela desenvoltura e familiaridade que demonstram; são 7 Coulon, Alain. Idem, p.63. Idem, p.63. 9 Idem, p.66 10 E o nome dado aos ladrões que roubam bêbados, só com a força e sem armas. 8 11 filhos de lares desestruturados, como mostrado pela cena em que Noodles vai ao banheiro coletivo de seu prédio para ler e admirar a figura de um casal sorrindo, a fim de não ter que ir para casa. A leitura que se pode fazer é a de um garoto carente, desejando que a imagem fosse de seus pais, a representação de um lar feliz, sólido e amoroso. Conclui Thrasher que “uma vida familiar inadequada, a pobreza, um ambiente deteriorado, uma religião ineficaz, uma educação falha e lazeres inexistentes formam, em seu conjunto, a matriz do desenvolvimento da gangue”11; enfim, cada um dos elementos que compõem a conclusão do sociólogo fazem parte do texto fílmico. O crime organizado Durante sete anos, John Landesco12 estudou as gangues de Chicago com o objetivo de demonstrar que havia uma ligação entre o crime e a organização social da cidade, com o seguinte fundamento: “...do mesmo modo que o bom cidadão, gângster é um produto de seu ambiente. O bom cidadão foi criado em uma atmosfera de respeito e obediência à lei. O gângster freqüentou um bairro em 13 que a lei, ao contrário, é infringida constantemente” Os estudos desenvolvidos pelos investigadores de Chicago, desta forma, vêem, nas relações sociais, em determinado meio geográfico – coordenada espacial - o possível motivo desencadeante da criminalidade, trata-se de uma abordagem espaço-temporal. Tal motivo deve-se à análise do modo de vida de determinados grupos sociais, em certo bairro, suas relações, a censura ou ataque de que eram alvo por outros grupos, da mesma área, ou vindos de outro bairro. Em “Era uma vez na América”, tal estudo é mostrado na rivalidade entre a gangue de Noodles e Bugsy (que eram de bairros distintos), e essa rivalidade desencadeia uma série de perseguições que culminam com as mortes do garotinho Dominic e seu assassino, Bugsy. A não observância de lei deve-se a uma lei mais forte, a da sobrevivência, que abrange a busca por melhoria de vida, por meio do crime e a autodefesa em relação as outras gangues. 11 Idem, p.66. Idem, p.66. 13 Idem, p.67. 12 12 Ouvindo a Escola de Chicago Ao ouvir a canção In the ghetto14, canção de Elvis Presley , nota-se a forte crítica social, pois conta (e canta) a difícil condição dos moradores de um gueto de Chicago (EUA). A luta pela sobrevivência e pouca perspectiva de futuro são convertidas, poeticamente, em versos melancólicos. Alguns diriam que a canção pertence ao álbum mais político de Elvis. Com uma letra dramática, sob a ótica do gênero, mostra as condições precárias do gueto, onde o clima inóspito prenuncia o que espera o novo ser: a infância roubada, o aprendizado das ruas e a vida de crimes. Assim, a primeira parte, logo ao nascer, aquele ser humano é entregue a um destino que se desenha sombrio: “As the snow flies On a cold and gray Chicago mornin' A poor little baby child is born In the ghetto And his mama cries 'cause if there's one thing that she don't need it's another hungry mouth to feed In the ghetto “15 Continuando, a convivência, com a delinqüência, torna-se a escola que freqüenta: “And his hunger burns so he starts to roam the streets at night and he learns how to steal and he learns how to fight In the ghetto”16 Portanto, o resultado dessa escola-mundo só pode ser um: mais um jovem corrompido pelo meio: 14 In the Ghetto , Elvis Presley (Álbum From Elvis in Memphis, ( 1969), EUA. Compositor, Mac Davis.Gravadora, RCA. 15 Algo como: Como a neve voa , numa fria e cinza manhã de Chicago, um pobre bebezinho nasce no gueto. E sua mãe chora porque essa era uma coisa que ela não precisava, e outra boca faminta para alimentar , no gueto . 16 E sua fome queima . Então ele começa a vagar pelas ruas à noite e ele aprende como roubar e ele aprende como lutar , no gueto. 13 “Then one night in desperation a young man breaks away He buys a gun, steals a car, tries to run, but he don't get far And his mama cries As a crowd gathers 'round an angry young man face down on the street with a gun in his hand In the ghetto As her young man dies, on a cold and gray Chicago mornin', another little baby child is born In the ghetto”17 O autor, para completar, após a exposição da história, eleva sua voz com a crítica mais que explícita: “ People, don't you understand the child needs a helping hand or he'll grow to be an angry young man some day Take a look at you and me, are we too blind to see, do we simply turn our heads and look the other way 18 Toda a seqüência narrativa da canção permite a aplicação das investigações dos estudiosos de Chicago. A melancolia melodiosa da vida sujeita aos entraves sociais, o destino incerto, o caminho provável, mais que uma canção: é uma denúncia. 17 Então, uma noite em desespero, um jovem foge. Ele compra uma arma, rouba um carro, tenta correr, mas ele não consegue.E sua mãe chora .Assim como uma multidão reunida ao redor do jovem furioso, caído na rua com uma arma em sua mão, no gueto. Como o dela morreu, numa fria e cinza manhã de Chicago, outro bebezinho nasce, no gueto. 18 Pessoal, vocês não entendem, a criança precisa de uma mão que o ajude ou ele irá crescer para ser um homem raivoso algum dia. Olhe para eu e você , nós estamos tão cegos para ver, simplesmente viramos nossas cabeças e olhamos para o outro lado. 14 Conclusão Este ensaio não esgota a leitura sobre os conceitos e conclusões da Escola de Chicago, distante disso. O que propõe, em verdade, é a intertextualidade possível e, a posteriori , a contextualização do estudo. Ao utilizar métodos de pesquisa com o objetivo de conhecer a realidade de uma cidade ou de um bairro, com todos os problemas, suas particularidades e seus fatores determinantes de criminalidade, a busca de uma política criminal adequada para retomar a ordem, são as maiores contribuições da Escola de Chicago, fundadora da ciência da sociologia nos Estados Unidos, ainda que haja críticas e falhas. O estudo das doenças sociais para compreender os comportamentos desviantes e, com isso, contribuir com políticas de ações preventivas, presta-se ao objetivo que deve mover qualquer ciência. A literatura, a música e o cinema, muito além de apenas manifestação da Arte, permitem a leitura eficaz de uma época e suas marcas. Isso se observa em “Era uma vez na América”, obra de profunda beleza estética, trilha sonora que combina emoção e delicadeza, e, ainda, como uma obra com raro conteúdo, seja sob o prisma narrativo, seja sob o prisma da análise histórico-sociológica. A música é atemporal, o livro é atemporal e a imagem permanece. Chicago, Nova Iorque, Rio de Janeiro, São Paulo: isso é localização, os desvios sociais são realidade. E, através do diálogo entre os diversos textos de diferentes origens e formas, e os estudos da Escola de Chicago, é possível entender a empatia que o público de massa desenvolve em relação ao delinqüente, ao gangster na sua busca pela realização do sonho americano. 15 In the ghetto (Elvis Presley) De Mac Davis As the snow flies On a cold and gray Chicago mornin' A poor little baby child is born In the ghetto And his mama cries 'cause if there's one thing that she don't need it's another hungry mouth to feed In the ghetto People, don't you understand the child needs a helping hand or he'll grow to be an angry young man some day Take a look at you and me, are we too blind to see, do we simply turn our heads and look the other way Well the world turns and a hungry little boy with a runny nose plays in the street as the cold wind blows In the ghetto And his hunger burns so he starts to roam the streets at night and he learns how to steal and he learns how to fight In the ghetto Then one night in desperation a young man breaks away He buys a gun, steals a car, tries to run, but he don't get far And his mama cries As a crowd gathers 'round an angry young man face down on the street with a gun in his hand In the ghetto As her young man dies, on a cold and gray Chicago mornin', another little baby child is born In the ghetto 16 No Gueto Como a neve voa Numa fria e cinza manhã de Chicago Um pobre bebezinho nasce No gueto E sua mãe chora Porque essa era uma coisa que ela não precisava É outra boca faminta para alimentar No gueto Pessoal, vocês não entendem A criança precisa de uma mão que o ajude Ou ele irá crescer para ser um homem raivoso algum dia Olhe para mim e você Nós estamos tão cegos para ver, Simplesmente viramos nossas cabeças E olhamos para o outro lado Bem, o mundo gira E um garotinho faminto com um nariz escorrendo Brinca na rua enquanto um vento frio sopra No gueto E sua fome queima Então ele começa a vagar pelas ruas à noite E ele aprende como roubar E ele aprende como lutar No gueto Então uma noite em desespero Um jovem foge Ele compra uma arma, rouba um carro, Tenta correr, mas ele não consegue E sua mãe chora Assim como uma multidão reunida ao redor do jovem furioso Caído na rua com uma arma em sua mão No gueto Como o homenzinho dela morreu, Numa fria e cinza manhã de Chicago, Outro bebezinho nasce No gueto. 17 Referências: Textos escritos: COULON, Alain. A Escola de Chicago. Trad. Tomás R. Bueno. Campinas, SP: Papirus, 1995. CLARK, Howard. Cidade Maldita ( Hard City) .São Paulo: Editora Best Seller, 1990. KORNIS, Mônica A. História e Cinema: um debate metodológico. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 5, n. 10, 1992. DAVIS Mac. In the Ghetto, Elvis Presley (Álbum From Elvis in Memphis, ( 1969), EUA.Gravadora, RCA. Textos fílmicos: Anjos de Cara Suja / Angels With Dirty Face, de Michael Curtiz (1938). Os Intocáveis / The Untouchables, de Brian de Palma (1987) Cotton Club / The Cotton Club, de Francis Ford Coppola (1984). Era Uma Vez na América / Once Upon a Time in America , de Sergio Leone ( 1984). Gangues de Nova Iorque / Gangs of New York,de Martin Scorsese ( 2002). Quanto mais quente melhor / Some Like It Hot, Billy Wilder (1959).