2 Vol XV 2006 - Revista Nascer e Crescer
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2 Vol XV 2006 - Revista Nascer e Crescer
NASCER E CRESCER Vol. 15, nº 2, Junho 2006 15 2 Revista do Hospital de Crianças Maria Pia Ano | 2006 Volume | XV Número | 02 Directora | Sílvia Álvares; Directora Adjunta | Inês Moreira; Directora do Hospital de Crianças Maria Pia | Manuela Machado Corpo Redactorial | Amélia José; Ana Cristina Cunha; Artur Alegria; Carlos Enes; Carmen Carvalho; Conceição Mota; Esmeralda Martins; Inês Lopes; Laura Marques; Margarida Guedes; Maria do Carmo Santos; Miguel Coutinho Editores especializados | Ciclo de Pediatria InterHospitalar do Norte - Rogério Mendes; Helena Jardim; Virgílio Senra; Fernanda Manuela Costa; Jorge Sales Marques; Armando Pinto; Cidrais Rodrigues; Joaquim Cunha. Caso Endoscópico - Fernando Pereira. Imagens Filipe Macedo. Caso Estomatológico - José Amorim. Genes, Crianças e Pediatras - Margarida Reis Lima. Perspectivas Actuais em Bioética - Natália Teles. Artigo Recomendado - Tojal Monteiro Conselho Técnico | Cristina Soares; Gama de Sousa; Lígia Carvalho; Rui Nogueira Secretariado Administrativo | Carla Correia Publicação trimestral resumida e indexada por | EMBASE / Excerpta Médica; Catálogo LATINDEX Publicação parcialmente subsidiada pelo | Apoio do Programa Operacional Ciência, Tecnologia, Inovação do Quadro Comunitário de Apoio III Design gráfico | bmais comunicação Execução gráfica e paginação I Papelmunde, SMG, Lda Vila Nova de Famalicão ISSN | 0872-0754 Depósito legal | n° 4346/91, anotada no Ministério da Justiça em 92.04.24 Tiragem | 2.500 exemplares Autorização CTT | DE 0005/2005 DCN Propriedade, Edição e Administração | Hospital de Crianças Maria Pia Rua da Boavista, 827 – 4050-111 Porto; tel: 226 089 900; fax: 226 000 841; www.hmariapia.min-saude.pt Os trabalhos, a publicidade e a assinatura, devem ser dirigidos a I Coordenação da revista Nascer e Crescer Hospital de Crianças Maria Pia Rua da Boavista, 827 – 4050-111 Porto; tel: 226 089 988; email: [email protected] Condições de assinatura | Anual 2006 (4 números) - 35 euros; Número avulso - 10 euros; Estrangeiro - 70 euros Conselho Científico Nacional Conselho Científico Internacional - Adelaide Justiça; - Agustina Bessa Luís; - Alfredina Guerra e Paz; - Álvaro Aguiar; - Carlos Duarte; - Carmen Santos; - Celeste Malpique; - Clara Barbot; - Cidade Rodrigues; - Damião Cunha; - Eloi Pereira; - Faria Gaivão; - Fernanda Teixeira; - Fernando Cardoso Rodrigues; - Filomena Caldas; - João Carlos Figueiredo de Sousa; - José Carlos Areias; - José Oliveira Simões; - José Maria Ferronha; - Lourenço Gomes; - Lucília Norton; - Lurdes Lima; - Luís Januário; - Luís Lemos; - Luzia Alves; - Manuel Dias; - Manuel Rodrigues Gomes; - Manuela Machado; - Manuel Strech Monteiro; - Marcelo Fonseca; - Maria Augusta Areias; - Maria Salomé Gonçalves; - Morais Barbot; - Miguel Taveira; - Nuno Grande; - Octávio Cunha; - Paulo Mendo; - Pinto Machado; - Raquel Alves; - Rui Carrapato; - Maximina Pinto; - Sílvia Álvares; - Sodré Borges; -Tojal Monteiro. - Allan de Broca (Amiens); - Anabelle Azancot (Paris); - D. L. Callís (Barcelona); - F. Ruza Tarrio (Madrid); - Francisco Alvarado Ortega (Madrid); - George R. Sutherland (Edinburgh); - Harold R. Gamsu (Londres); - J. Bois Oxoa (Barcelona); - Jean François Chateil (Bordeaux); - José Quero (Madrid); - Juan Tovar Larrucea (Madrid); - Juan Utrilla (Madrid); - Peter M. Dunn (Bristol) Correspondentes - António Lima (H.0. Azeméis); - Areio Manso (H.Vila Real); - Arlindo Soares Oliveira (H.Ovar); - Dílio Alves (H.P.Hispano); - Ferreira da Silva (H.Régua); - Gama Brandão (Guimarães); - Gualdino Silva (H.Barcelos); - Guimarães Dinis (H.S.Tirso); - Henedina Antunes (H.Braga); - Joana Moura (H.Viana do Castelo); - Jorge Moreira (C.H.Póvoa Varzim/ Vila do Conde); - José Carlos Sarmento (C.H.Vale Sousa); - José Castanheira (H.Viseu); - Lopes dos Santos (H.P.Hispano); - Manuel Tavares (H.Amarante); - M. Judite Marques (H.Bragança); - Pedro Freitas (H. Guimarães); - Reis Morais (H.Chaves); - Ricardo Costa (H.Covilhã); - Ventura Martins (H.Lamego FUNDADA EM 1882 Rua da Boavista, 713 – 4050-110 PORTO Tel. 222 081 050 Somos a Entidade Promotora do Voluntariado e Suporte da Humanização do Hospital NASCER E CRESCER revista do hospital de crianças maria pia índice ano 2006, vol XV, n.º 2 número2.vol.XV 63 Editorial Sílvia Álvares 65 Artigos Originais Perfil Lipídico, Prevalência de Obesidade e Hábitos Alimentares de uma População de Adolescentes Claudia Ferraz, Georgeta Oliveira, Sérgia Soares, Elizabeth Marques, Miguel Costa, Teresa Neto 71 Técnicas dialíticas na insuficiência renal aguda Sandra Rocha, Antonio Aguilar, Conceição Mota, M. Sameiro Faria, Teresa Costa, Carmen Carvalho, Fernanda Marcelino, Céu Mota, Paula Rocha, Elói Pereira, Carlos Duarte 77 Artigo Recomendado Tojal Monteiro 80 Perspectivas Actuais em Bioética Liberdade e Responsabilidade na Procriação Medicamente Assistida Helena Maria Vieira de Sá Figueiredo de Pediatria Inter Hospitalar 85 Ciclo do Norte Hiperplasia da Supra-renal complicada de Puberdade Precoce Central – caso clínico Anabela Bandeira, Helena Cardoso, Teresa Borges 88 Osteomielite Aguda Neonatal - localização rara Cecília Martins, Raquel Guedes, Nise Miranda, Rui Pinto, Conceição Quintas 91 Pseudo-Obstrução Intestinal – caso clínico Carla Teixeira, Rosa Lima, Helena Ferreira, Mónica Recaman, Esmeralda Martins,Ana Ramos, Luisa Oliveira, Herculano Rocha NASCER E CRESCER revista do hospital de crianças maria pia ano 2006, vol XV, n.º 2 97 Qual o seu Diagnóstico? Caso Endoscópico Fernando Pereira 99 Caso Estomatológico José M. S. Amorim 101 Imagens Filipe Macedo 103 Genes, Crianças e Pediatras C. Dias, M. Mota-Freitas, Alberto Costa, M. Reis-Lima 105 Pequenas Histórias Um Bolo Amaldiçoado Margarida Guedes 106 A Criança, A Família e a Comunidade Memórias… de há vinte anos Elizabete Borges 110 XVIII Reunião do Hospital de Crianças Maria Pia - Programa IX Jornadas de Cardiologia Pediátrica - Programa Notícias NASCER E CRESCER revista do hospital de crianças maria pia summary ano 2006, vol XV, n.º 2 number2.vol.XV 63 Editorial Sílvia Álvares 65 Original Articles Lipide Profile, Prevalence of obesity and Dietary Habits – Population of Adolescents Claudia Ferraz, Georgeta Oliveira, Sérgia Soares, Elizabeth Marques, Miguel Costa, Teresa Neto 71 Dialysis Therapy in Acute Renal Failure Sandra Rocha, Antonio Aguilar, Conceição Mota, M. Sameiro Faria, Teresa Costa, Carmen Carvalho, Fernanda Marcelino, Céu Mota, Paula Rocha, Elói Pereira, Carlos Duarte 77 Recommended Article Tojal Monteiro 80 Current Perspectives in Bioethics Liberty and responsibility in Medically Assisted Procreation Helena Maria Vieira de Sá Figueiredo 85 Congenital Adrenal Hyperplasia Complicated by Central Precocious Puberty – clinical case Anabela Bandeira, Helena Cardoso, Teresa Borges 88 Newborn Osteomyelitis – a rare localisation Cecília Martins, Raquel Guedes, Nise Miranda, Rui Pinto, Conceição Quintas 91 Chronic Intestinal Pseudo-Obstruction – case report Carla Teixeira, Rosa Lima, Helena Ferreira, Mónica Recaman, Esmeralda Martins,Ana Ramos, Luisa Oliveira, Herculano Rocha Paediatric Inter-Hospital Meeting NASCER E CRESCER revista do hospital de crianças maria pia ano 2006, vol XV, n.º 2 97 What is your diagnosis? Endoscopic case Fernando Pereira 99 Images Filipe Macedo 101 Oral Pathology case José M. S. Amorim 103 Genes, Children and Paediatricians C. Dias, M. Mota-Freitas, Alberto Costa, M. Reis-Lima 105 Short Stories A Cursed Cake Margarida Guedes Child, the Family and the 106 The Community From… of twenty years ago Elizabete Borges 110 News XVIII Meeting of Children’s Hospital Maria Pia - Program IX Meeting of Paediatric Cardiology - Program NASCER E CRESCER revista do hospital de crianças maria pia ano 2006, vol XV, n.º 2 editorial No dia 20 de Junho de 2006 foi apresentado o 6º Relatório da Primavera do Observatório Português dos Sistemas de Saúde (OPSS). O OPSS é uma parceria entre a Escola Nacional de Saúde Pública, a Faculdade de Economia de Coimbra – Centro de Estudos e Investigação da Saúde da Universidade de Coimbra e o Instituto Superior de Serviço Social do Porto. Integra uma rede de investigadores dedicados ao estudo dos sistemas de saúde, englobando competências de variadas áreas, numa abordagem pluridisciplinar. Tem como objectivos principais a análise da evolução do sistema de saúde português e a divulgação da mesma, numa perspectiva objectiva e independente. Actualmente coordenado pelo Professor Doutor Pedro Lopes Ferreira, a sua fundação está ligada ao Professor Doutor Constantino Sakellarides, que desde sempre se empenhou em estabelecer um dispositivo observacional adequado, uma fonte de conhecimento sobre a gestão da saúde, em ligação com outras instituições e projectos Europeus semelhantes, nomeadamente o Observatório Europeu de Sistemas de Saúde. Este Relatório está dividido em 4 partes: Governação e Contexto, Uma análise da Governação em saúde, Análise da Imprensa e Considerações Finais. Um dos temas abordados na segunda parte do relatório é relativo à saúde materna e neonatal: Nascer com qualidade. Não há dúvida de que a saúde materna e infantil evoluiu extraordinariamente nas últimas décadas, tendo-se reduzido a taxa de mortalidade infantil para valores inferiores aos da média da OCDE (figura 1). Figura 1- Evolução da mortalidade infantil editorial 63 NASCER E CRESCER revista do hospital de crianças maria pia ano 2006, vol XV, n.º 2 A Comissão Nacional de Saúde da Mulher e da Criança (CNSMI), criada em 1989, teve um papel preponderante nesta melhoria dos cuidados de saúde da criança. Elaborou um programa nacional a ser cumprido em 9 anos, com 3 fases de 3 anos, e início em 1990, do qual salientamos alguns aspectos fundamentais: o encerramento de maternidades com um número de partos inferior a 1500/ano; a hierarquização dos hospitais em Hospitais de Apoio Perinatal (HAP) e Hospitais de Apoio Perinatal Diferenciado (HAPD), definindo as suas competências, funções, e necessidades em termos de equipamentos e recursos humanos; a criação de Unidades Coordenadoras Funcionais (UCFs) que tinham como objectivo principal a integração dos serviços e a articulação entre os cuidados primários de saúde e os cuidados hospitalares; o reconhecimento e divulgação de que o melhor meio de transporte para o “recém-nascido” é o útero materno, privilegiando o transporte in útero; a criação de um transporte especificamente destinado ao RN, integrado no Instituto Nacional de Emergência Médica (INEM) mas autónomo, dependente dos pediatras e com sistema de centralização de informação. A CNSMI coordenou, entre 1989 e 1994, um plano de investimentos importantes, que englobou a melhoria das instalações e dos recursos técnicos e humanos dos serviços de obstetrícia e neonatologia, bem como do equipamento dos centros de saúde referente às acções de vigilância da gravidez e do puerpério, planeamento familiar e saúde infantil. Foram encerradas 150 maternidades com condições deficientes de funcionamento, tendo-se conseguido uma redução drástica da mortalidade neonatal. A necessidade de reavaliar a Rede de Referenciação Materno Infantil já se vinha a impor desde há alguns anos. O decréscimo da taxa de natalidade (11,4 em 1999 e 10,8 em 2005), sobretudo nas regiões do interior que, mercê de circunstâncias várias, têm vindo a sofrer uma desertificação, a criação de novas unidades hospitalares, sem que tal obedeça, aparentemente, a um planeamento da rede de cuidados em função das necessidades das populações, o desenvolvimento de uma rede viária que facilita a acessibilidade aos serviços, a falta de recursos humanos nas unidades de saúde que permitam uma assistência a grávida e recém-nascido obedecendo a critérios actuais de garantia de qualidade e segurança assistencial, o número crescente de hospitais com menos de 1500 partos ano (23 instituições, das quais 17 com menos de 1000 partos ano), são factos objectivos que obrigavam a uma tomada de decisão. O encerramento dos blocos de parto posto em prática pelo Ministério, segundo as recomendações da Comissão Nacional de Saúde da Mulher e da Criança, não pode ser encarado como uma medida economicista, mas numa perspectiva de que a centralização de serviços permite uma maior segurança, eficácia e eficiência dos mesmos. É evidente que o encerramento de serviços é normalmente visto como algo de desprestigiante para os hospitais e muito mal aceite pelas populações, sendo sempre uma decisão política difícil. Muito provavelmente, como refere o Relatório, o processo poderia ter sido conduzido de uma forma diferente, com maior envolvimento dos profissionais e da comunidade e uma informação mais clara às populações sobre as alternativas criadas para o nascimento dos seus filhos com segurança e qualidade. A necessidade de uma maior racionalidade na distribuição dos recursos médicos (obstetras e pediatras) e de contenção dos gastos em saúde, implica uma estratégia de integração e reorganização dos serviços no sentido de uma maior eficácia, funcionalidade e rentabilidade dos recursos existentes. Também não menos importante é o facto de um número reduzido de partos não garantir a qualidade dos serviços prestados. A rede de referenciação materno-infantil terá de ser configurada sobretudo em função das necessidades em saúde, evolução demográfica, acessibilidade dos serviços e recursos existentes ou previsíveis. Sílvia Álvares 64 editorial NASCER E CRESCER revista do hospital de crianças maria pia ano 2006, vol XV, n.º 2 Perfil Lipídico, Prevalência de Obesidade e Hábitos Alimentares de uma População de Adolescentes Cláudia Ferraz1, Georgeta Oliveira2, Sérgia Soares2, Elizabeth Marques3, Miguel Costa4, Teresa Neto5 RESUMO Introdução: A aterosclerose tem início na infância e progride durante a adolescência. Nas últimas décadas verifica-se uma tendência para o aumento da adiposidade corporal e distúrbios metabólicos associados. A sua prevenção, detecção e correcção precoces podem reduzir a incidência de doença cardiovascular na idade adulta. As recomendações actuais para o rastreio de dislipidémia apontam para um rastreio selectivo baseado na identificação de vários factores de risco. Objectivo: Conhecer o perfil lipídico, a prevalência de sobrepeso e obesidade, a história familiar de doença cardiovascular e os hábitos alimentares entre 88 adolescentes, observados durante exame global de saúde dos 11-13 anos, no Centro de Saúde da Sr.ª da Hora - Matosinhos. Material e Métodos: O IMC foi avaliado e classificado segundo as curvas de crescimento do CDC- Centres of disease control- National Centrer for Health Statistics dos Estados Unidos. A classificação do perfil lipídico baseou-se nos critérios do National Cholesterol Education Program (NCEP) para o Colesterol Total e Colesterol LDL e do Lipid Research Clinics Prevalence Study (LRC) para os triglicerideos e colesterol HDL. Os hábitos __________ 1 Interna Complementar de Pediatria, Departamento de Pediatria do Hospital Pedro Hispano, Matosinhos, Portugal 2 Departamento de Pediatria do Hospital Pedro Hispano, Matosinhos 3 Consulta de Nutrição Pediátrica do Hospital de São Miguel-Oliveira de Azeméis 4 Serviço de Pediatria do Hospital São Miguel e Consulta de Nutrição Pediátrica do Hospital de São Miguel - Oliveira de Azeméis 5 Centro de Saúde da Srª da Hora – Unidade Local de Saúde de Matosinhos SA alimentares foram avaliados através da aplicação de um inquérito de frequência alimentar. A análise estatística dos dados foi efectuada através do teste do Fisher, tendo sido considerados significativos valores de p<0,05. Resultados: A prevalência global de obesidade e sobrepeso foi de 11% e 23%, respectivamente, tendo sido encontrada uma prevalência maior no sexo feminino. Verificaram-se alterações do perfil lipidico em 26% dos adolescentes e valores border-line em 16%. Não foram encontradas diferenças, com significado estatístico, entre a existência de obesidade ou de hiperLDLcolesterolémia e as frequências alimentares. A prevalência de história parental positiva para dislipidemia nos adolescentes, com alterações do perfil lipidico (26%), foi igual à prevalência global. Comentário: A elevada prevalência de obesidade e dislipidemia encontrada nesta população, constitui um dado particularmente preocupante, uma vez que a prevalência de obesidade na adolescência é fortemente preditiva de obesidade e factores de risco cardiovasculares associados na idade adulta, realçando-se a necessidade de instituição precoce de medidas preventivas e de hábitos de vida saudáveis. Em relação aos hábitos alimentares destacam-se uma baixa ingestão de legumes e peixe e um elevado consumo diário de produtos de pastelaria/confeitaria e refrigerantes e sumos, constando-se globalmente, uma dieta que se afasta da dieta mediterrânica, que nos caracterizava no passado. Em relação à história familiar dos adolescentes com dislipidemia, os dados obtidos estão de acordo com resultados de estudos anteriores que concluem que os critérios de rastreio de dislipidémia, baseados na história parental não ofe- recem vantagem em relação ao rastreio aleatório na identificação de jovens com hipercolesterolémia, o que parece pôr em causa a estratégia baseada no risco recomendada pelo NCEP e AAP. Assim, o rastreio de dislipidémia deve ser fortemente considerado em todos os adolescentes. Palavras-Chave: Adolescentes, perfil lipidico, obesidade, doença cardiovascular Nascer e Crescer 2006; 15(2): 65-70 INTRODUÇÃO A aterosclerose tem início na infância e progride durante a adolescência(1). À medida que se assiste à ocidentalização do padrão alimentar, verifica-se uma tendência para o aumento da adiposidade corporal e uma maior prevalência de dislipidémia e outros distúrbios metabólicos, que podem ter início na infância e são, frequentemente, assintomáticos(2,3). Nos Estados Unidos (EUA), estatísticas recentes demonstram que 65% dos adultos e 30% das crianças e adolescentes, entre 6 e 19 anos, têm excesso de peso ou obesidade, tendo a prevalência de obesidade nesta faixa etária duplicado nas últimas duas décadas(4,5,6). Em Portugal dados de 2003/2004 apontam para uma prevalência de excesso de peso de 20,3% e de obesidade entre 6,7% a 11,3%, em crianças e adolescentes(7,8). A obesidade e morbilidades associadas, como dislipidémia, HTA e resistência à insulina, constituem factores de risco cardiovascular cumulativos. O Bogalusa Heart Study, estudo realizado nos EUA, que relaciona o excesso de peso em crianças e adolescentes e estes factores de risco, constitui uma das mais firmes evidências desta relação(9). artigos originais 65 NASCER E CRESCER revista do hospital de crianças maria pia ano 2006, vol XV, n.º 2 Há uma correlação directa entre os níveis de colesterol, particularmente lipoproteinas de baixa densidade (c-LDL) e aterosclerose. Em relação ao colesterol de lipoproteinas de alta densidade (c-HDL), parece existir uma relação inversa, ou seja, níveis baixos aumentam o risco de aterosclerose(3). É importante prevenir, detectar e corrigir precocemente a presença destes factores de risco na infância e adolescência, pelo possível impacto no desenvolvimento de aterosclerose e redução da incidência de doença cardiovascular em adultos(10). As recomendações actuais para o rastreio de dislipidémia da Academia Americana de Pediatria e American Heart Association (AAP/AHA) apontam para um rastreio selectivo, envolvendo a identificação de vários factores de risco cardiovascular(2,10). Os Quadros I e II sintetizam as recomendações para o rastreio e estratificação do risco, segundo o National Choles- terol Education Program Expert Panel on Blood Cholesterol Levels in Children and adolescents dos EUA (NCEP-EP), a Academia Americana de Pediatria (AAP) e a American Heart Association (AHA)(2,3,10). Uma vez que os níveis de colesterol obtidos na adolescência são preditivos dos niveis de colesterol na idade adulta, o rastreio deve ser considerado em todos os adolescentes(2). OBJECTIVO O objectivo do estudo foi conhecer o perfil lipídico, a prevalência de sobrepeso e obesidade, a história familiar e os hábitos alimentares de uma população de adolescentes. MATERIAL E MÉTODOS O estudo foi realizado em adolescentes, dos observados durante exame global de saúde dos 11-13 anos, na Unidade do Farol do Centro de Saúde da Sr.ª da Hora – Matosinhos. Foram convocados Quadro I - Recomendações para Rastreio Selectivo de dislipidemia (2,3,10) ♦ Crianças e adolescentes cujos pais, avós ou tios directos com idade ≤ 55 anos, tenham aterosclerose ou suas sequelas, ou seja, doença cardiovascular prematura: aterosclerose coronária, enfarte agudo do miocárdio, angina Pectoris, HTA, doença vascular periférica, doença cerebrovascular, morte súbita; ♦ Pais com Colesterol total superior a 240 mg/dL; ♦ História familiar desconhecida; ♦ Crianças e Adolescentes com outros factores de risco: Estilo de vida sedentário, falta de exercício físico regular; História dietética rica em gorduras particularmente saturadas; Obesidade; Tensão arterial elevada; Tabagismo; Ingestão de álcool; Medicações e patologias associadas a hiperlipidemia (por exemplo: diabetes mellitus, síndrome nefrótico, anticonvulsivantes, ácido retinoico, contraceptivos orais, corticosteroides). Quadro II - Estratificação do Risco (2,10) 66 Aceitável “Border-line” Risco Elevado CT (mg/dl) <170 170-199 ≥ 200 C- LDL (mg/dl) <110 110-129 ≥130 artigos originais 208 adolescentes, inscritos em médico de família, que completavam 13 anos no ano do estudo . Compareceram ao exame global de saúde 140 adolescentes. Dos adolescentes avaliados, 88 foram incluídos neste estudo, sendo 50% do sexo masculino. Os critérios de exclusão foram: insuficiência de dados relativos ao inquérito alimentar e história familiar, adolescentes portadores de patologia crónica passível de influenciar os hábitos alimentares ou antropometria ou que condicione medicação crónica susceptível de alterar os resultados do perfil lipídico. Foram analisados os seguintes parâmetros: História familiar Foi inquirida a existência de Obesidade, Dislipidémia, Diabetes, Hipertensão arterial, Enfarte agudo do miocárdio, Angina pectoris e Acidente vascular cerebral nos familiares directos (pais avós, tios e irmãos) dos adolescentes avaliados. Hábitos alimentares Foi aplicado um inquérito de frequência alimentar, usado na Consulta de Nutrição Pediátrica do Hospital de S. Miguel – Oliveira de Azeméis, avaliando a frequência de consumo de vários alimentos e tipos de confecção culinária: Leite, Iogurtes, Queijo, Carne de Vaca, Porco, Aves e coelho, Peixes gordos e magros, Marisco, moluscos e crustáceos, Ovos, Produtos de pastelaria, confeitaria e doçarias, Refrigerantes e sumos, Bebidas alcoolicas, Grelhados, Cozidos, Estufados, Assados e Fritos. Foram ainda avaliadas a ingestão e constituição do pequeno-almoço, merendas, almoço e jantar, e a inclusão de fruta, sopa e vegetais nestas refeições. O questionário requeria a identificação, tendo sido preenchido pelos adolescentes, no domicilio, quando possível com a ajuda dos pais. Antropometria O Indice de Massa Corporal (IMC) ou Índice de Quetelet (peso em kilogramas dividido pelo quadrado da altura em metros) foi usado como medida de adiposidade. NASCER E CRESCER revista do hospital de crianças maria pia ano 2006, vol XV, n.º 2 O IMC foi classificado segundo as curvas de crescimento do CDC – Centers of disease control – National Center for Health Statistics dos EUA. Considerou-se: Sobrepeso: IMC ≥ percentil 85 <percentil 95 para sexo e idade. Obesidade: IMC ≥ percentil 95 para sexo e idade. Perfil Lipidico O perfil lipídico inclui o doseamento de colesterol total (CT), colesterol HDL (c-HDL) e triglicerídeos (TG). Foi efectuado após 12 horas de jejum tendo sido realizado em laboratórios no ambulatório. O valor do colesterol LDL (c-LDL) foi calculado usando a fórmula de Friedewald: c-LDL=CT- [c-HDL+(TG/5] A classificação do perfil lipídico baseou-se nos critérios do National Cholesterol Education Program (NCEP), para o CT e c-LDL e do Lipid Research Clinics Prevalence Study (LRC), para os TG e c-HDL. O Risco foi estratificado segundo o quadro II considerando-se: • Hipercolesterolémia: CT ≥ 200 mg/dl • CT “border-line”/elevado: CT ≥ 170 mg/dl • HiperLDL-colesterolémia: c-LDL ≥ 130 mg/dl • c-LDL • border-line: c-LDL ≥ 110 mg/dl • Hipertrigliceridémia: TG superior ao percentil 95 para idade e sexo. • HipoHDL-colesterolémia: c-HDL inferior ao percentil 5 para idade e sexo. Os adolescentes com colesterol total border-line e c-HDL acima deste valor foram considerados de baixo risco. A análise estatística dos dados foi efectuada através do teste do fisher, tendo sido considerados significativos valores de p<0,05. RESULTADOS Nesta população de adolescentes (n=88), a prevalência global de obesidade e sobrepeso foi de 11% e 23%, respectivamente. Um adolescente apresentava magreza, ou seja, IMC inferior ao percentil 3. (Figura 1) Constatou-se uma diferença entre sexos: a prevalência de sobrepeso e obesidade foi de 20,5% e 6,8%, respectivamente, no sexo masculino e, 25% e 15,9%, no sexo feminino. Estas diferenças, contudo, não se revelaram estatisticamente significativas (Figura 2). Verificaram-se alterações do perfil lipidico em 26% dos adolescentes e valores de CT e /ou C-LDL “border-line” em 16%. Entre os adolescentes com dislipidemia 3,4% apresentaram hiperLDL-colesterolémia (Hiper c-LDL); 11,4% hipoHDL-colesterolémia (Hipo c-HDL) e 14,8%, hipertrigliceridémia. (Figura 3) Segundo a classificação utilizada (Quadro II) apenas 58% dos adolescentes apresentavam valores aceitáveis ou de baixo risco de CT e C-LDL. A prevalência de dislipidemia entre os adolescentes com sobrepeso e obesidade foi de 48% e 50%, respectivamente. A prevalência de uma história familiar positiva para diabetes, obesidade, dislipidemia, HTA e doença cardiovascular está apresentada na figura 4. De realçar que quase metade (49%) dos adolescentes apresenta história familiar de dislipidemia e 26% uma história parental positiva. Quando comparamos as prevalências de história familiar positiva para as Figura 1 - Percentil de IMC Figura 2 - Distribuição dos percentis de IMC por sexos Figura 3 - Perfil Lipídico artigos originais 67 NASCER E CRESCER revista do hospital de crianças maria pia ano 2006, vol XV, n.º 2 patologias referidas, nos adolescentes com obesidade, dislipidemia e um subgrupo com Hipo c-HDL em relação ao total, constatamos que: A prevalência de história familar positiva para doença cardiovascular, HTA e diabetes foi maior nos adolescentes com obesidade e Hipo c-HDL comparativamente à população não obesa e sem hipo c-HDL. Os adolescentes com obesidade apresentavam maior prevalência de familiares obesos. Estas diferenças, contudo, não se revelaram estatisticamente significativas. Os adolescentes com dislipidemia não apresentavam diferenças com significado estatístico na prevalência de história familar positiva para as patologias inquiridas, nomeadamente dislipidemia. A prevalência de história parental de dis- lipidemia positiva foi igual à prevalência global (26%) (figura 5). Em relação ao inquérito de frequência de consumo alimentar os resultados são apresentados nos quadros III e IV. Diariamente 90% dos adolescentes bebiam leite, na sua maioria (91%) leite meio-gordo. Em relação aos derivados, 74% e 45% ingeriam iogurtes e queijo mais de 3 vezes por semana. Destes, 59% e 52% optavam por iogurtes e queijos magros ou pouco gordos. Os alimentos, como carne de vaca, porco, aves e ovos, eram ingeridos com regularidade, entre uma e 3 vezes por semana, na maioria dos casos. Referiram ingerir carne de vaca ou porco, diariamente, 13% dos adolescentes. Apenas 9% consomem peixe diariamente, encontrando-se, uma parcela significativa de Quadro III - Frequência (%) de ingestão de diferentes grupos de alimentos Nunca Raro 1x/sem 2x/sem 3x/sem Diario Leite 1 3 0 0 5 90 Iogurtes 0 13 3 10 30 44 Queijo 9 24 11 11 22 23 Vaca 1 9 23 31 27 9 Porco 1 8 28 33 24 6 Aves e coelho 2 14 18 36 27 3 Peixes gordos 3 35 24 20 10 8 Peixes magros 2 17 23 30 20 8 Marisco, moluscos e crustáceos 15 73 11 1 0 0 Ovos 1 10 31 34 18 6 Pastelaria, confeitaria e doçarias 0 15 20 20 19 26 Refrigerantes e sumos 3 13 16 8 11 49 Bebidas alcoólicas 97 3 0 0 0 0 Quadro IV - Frequência (%) de confecção culinária 68 Nunca Raro 1x/sem 2x/sem 3x/sem Diário Cozidos 0 14 19 35 22 10 Grelhados 0 11 15 30 28 16 Estufados 0 11 27 40 16 6 Assados 0 9 50 30 6 5 Fritos 1 24 22 24 23 6 artigos originais adolescentes que nunca, ou raramente, o ingeriam: 38% no caso dos peixes gordos, e 19%, no caso dos peixes magros. A ingestão de moluscos, mariscos e crustáceos foi reduzida. Em relação aos produtos de pastelaria, confeitaria e doçarias, um quarto dos adolescentes referia consumir estes produtos diariamente, e 40% de duas a três vezes por semana. Os refrigerantes e sumos também são ingeridos com muita frequência: 49% dos adolescentes consomem-nos diariamente. Todos os adolescentes avaliados negaram o consumo regular de bebidas alcoólicas. Em relação à confecção culinária (quadro IV), constatámos uma maior opção por grelhados, estufados e cozidos. Apenas 6 e 5% dos adolescentes referiam ingerir diariamente fritos e assados. No que diz respeito aos constituintes importantes das principais refeições, como sopa, vegetais/ legumes no prato e fruta, constatámos que: 45% dos adolescentes ingeriam, diariamente sopa, dos quais 30%, ao almoço e jantar, mas 11% referiam nunca o fazer. Estas percentagens são menores em relação aos vegetais e legumes: apenas 26% ingerem diariamente este acompanhamento, e 14% nunca o faz. Ingeriam diariamente fruta 59% dos casos: 53% como sobremesa, dos quais 43% ao almoço e ao jantar e 16%, às merendas. (Figura 6) O grupo de adolescentes com sobrepeso ou obesidade apresentava uma menor percentagem de individuos que comiam diariamente sopa e fruta: 29 % e 32%, respectivamente. Também o grupo de adolescentes com dislipidemia apresentava um menor consumo diário destes alimentos: 22 e 43%. Estas diferenças não se revelaram no entanto com significado estatístico. Em relação à constituição do pequeno-almoço verificámos que o leite e derivados, em conjunto com cereais e derivados, entravam na constituição de 84% dos pequenos almoços. Em 15%, este era constituído apenas por leite e derivados e em 1% por cereais. Apenas dois casos incluiam a fruta ou sumo natural. Dos cereais, os preferidos eram os cereais de pequeno almoço (47%), segui- NASCER E CRESCER revista do hospital de crianças maria pia ano 2006, vol XV, n.º 2 dos do tradicional pão (39%) com manteiga, fiambre ou compota. (Figura 7) Não foram encontradas diferenças, estatisticamente significativas, nas frequências alimentares e de confecção alimentar no grupo de adolescentes com sobrepeso e obesidade. Também os adolescentes com dislipidemia não apresentavam diferenças com significado estatístico no consumo de ovos, moluscos e mariscos, carnes, peixe, leite gordo, fritos e assados e no caso das hipertriglicerídemias, de produtos de pastelaria e confeitaria, refrigerantes ou outras bebidas açucaradas. DISCUSSÃO Nesta população de adolescentes, a prevalência de sobrepeso e obesidade foi de 20,5% e 6,8%, no sexo masculino e 25% e 15,9%, no sexo feminino. A prevalência global de obesidade e sobrepeso foi de 11% e 23%, respectivamente. Esta prevalência é concordante com estudos recentes nacionais na população pediátrica(7,8) e inferior aos valores encontrados na população americana (NHANES IV: 1999-2000)(6). A prevalência de obesidade e sobrepeso foi maior no sexo feminino: 40,9% das raparigas e 27,3% rapazes apresentavam sobrepeso ou obesidade. Embora esta diferença não atinga significado estatístico nesta amostra, está de acordo com outros estudos publicados em Portugal. Dados de Inglaterra e Espanha, apontam igualmente para uma maior prevalência entre raparigas, mas, em outros paises, como a Itália, a prevalência é maior nos rapazes(8,12). A prevalência de dislipidemia (CT, LDL, Hipo-HDL) foi mais baixa que a encontrada no Bogalusa Heart Study, no grupo de 11-17 anos, faixa etária que mais se aproxima da estudada(9). Curiosamente, a prevalência de hipertrigliceridemia foi ligeiramente superior (14,8% versus 8%), facto que pode estar relacionado com o excesso de hidratos de carbono simples, ingerido por esta população (refrigerantes, produtos de pastelaria, cereais de pequeno-almoço, nu- tricionalmente desiquilibrados e com alto teor de açúcares de absorção rápida), baixa ingestão de peixe e acidos gordos ómega3. O significado de um valor elevado de triglicerídeos na infância e o risco cardiovascular em adulto não é claro mas estas alterações têm uma boa resposta à diminuição de peso e às modificações dietéticas(10). A prevalência de história familiar positiva para dislipidemia, nos adolescentes com dislipidemia, foi de 26%, igual à prevalência total. Este dado está de acordo com um estudo semelhante públicado na Pediatrics, em 2004(13), que conclui que os critérios baseados no rastreio da história parental não oferecem vantagem em relação ao rastreio aleatório na identificação de jovens com hipercolesterolémia, o que parece pôr em causa a estratégia baseada no risco recomendada pelo NCEP e AAP. Os dados encontrados apoiam a recomendação do rastreio universal das alterações do perfil lipídico na população adolescente. Figura 4 - História Familiar Figura 5 - História Familiar Figura 6 - Consumo de Sopa, Vegetais e Fruta Figura 7 - Constituição do pequeno almoço: consumo de cereais e derivados artigos originais 69 NASCER E CRESCER revista do hospital de crianças maria pia ano 2006, vol XV, n.º 2 LIPID PROFILE, PREVALENCE OF OBESITY AND DIETARY HABITS IN A POPULATION OF ADOLESCENTS ABSTRACT Introduction: A t h e r o s c l e r o s i s begins in childhood and progresses through adolescence and adulthood. In the last decades there has been a trend for increase of adiposity and prevalence of cardiovascular disease with associated metabolic disturbances. Prevention, early detection with treatment of these risk factors can prevent the latter development of cardiovascular disease. There are specific recommendations for selective screening involving the identification of various cardiovascular risk factors. Objective: This study was conducted to evaluate lipid profile, prevalence of overweight and obesity, family history of cardiovascular risk factors and dietary habits among 88 adolescents observed during a global health visit, in Srª da Hora Health Centre-Matosinhos. Methods and Procedures: Body Mass Index (BMI) classification was based on CDC Growth Charts- Centres of disease control- National Centre for Health Statistics dos EUA. Total cholesterol and Low-density lipoproteins cholesterol (LDL-C) classification was based on National Cholesterol Education Program (NCEP) criteria. Triglycerides and Hight-density lipoproteins cholesterol (HDL-C) classification was based on Lipid Research Clinics Prevalence Study. The dietary habits were evaluated by a frequency questionnaire. Statistical analisys included Fisher test. The value of significance was considered for p<0,05. Results: Global prevalence of obesity and overweight was 11% and 23% respectively, with greater prevalence of female gender. Lipid profile was abnormal in 26% adolescents and 16% presented borderline values. There were no differences on the frequency of ingestion of the foods inquired. The prevalence of a positive family history of abnormal lipid profile was the same among patients with hyperlipidemia and total population. 70 artigos originais Discussion: The high prevalence of overweight, obesity and abnormal lipid profile in this population is particular worrisome since adolescent obesity strongly predicts obesity in adulthood and associated cardiovascular risk factors, enhancing the needs for prevention. In the dietary habits we found a low ingestion of vegetables and fish and high ingestion of bakery and sweet foods and beverages, a diet that is globally different from the Mediterranean diet that used to characterize us. The results obtained are concordant with previous studies concluding that criteria for screening based on parental history seem to offer no advantage over random screening in the identification of young people with abnormal lipid profile therefore not supporting the risk based strategy recommended by NCEP and American Academy of Pediatrics. Lipid profile screening should be considered among all adolescents. Keywords: Adolescents, lipid profile, obesity, cardiovascular disease Nascer e Crescer 2006; 15(2): 65-70 BIBLIOGRAFIA 1. Strong JP, Malcom GT, Newman WPD, Oalman MC. Early lesions of atherosclerosis in childhood and youth: natural history and risk factors. J Am Coll Nutr 1992; 11 (suppl): 51s4s 2. Kohn MR, Jacobson M. Cholesterol. Ped. Nut. ISPEN 2000; 1: 4-7 3. Williams CL, Hayman LL., Daniels, SR., Robinson, TN, Steinberger, J, Paridon S, Bazzarre T. Cardiovascular Health in Childhood -A Statement for Health Professionals From the Committee on Atherosclerosis, Hypertension, and Obesity in the Young (AHOY) of the Council on Cardiovascular Disease in the Young, American Heart Association. Circulation 2002;106:143-160 4. Styne DM. Childood and adolescent obesity. Pediatr Clin North Am 2001; 48: 823-854 5. Flegal KM, Carroll MD, Ogden CL, Johnson CL. Prevalence and trends in overweight among US adults, 1999– 2000. 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Sameiro Faria1, Teresa Costa1, Carmen Carvalho2, Fernanda Marcelino2, Céu Mota2, Paula Rocha2, Elói Pereira1, Carlos Duarte2 RESUMO A insuficiência renal aguda (IRA) é uma situação rara em idade pediátrica, podendo surgir aliada a variadas condições clínicas. Quando as medidas de suporte não são suficientes para o controlo da IRA, torna-se necessário o início de terapêutica de substituição da função renal. Objectivo: Analisar as indicações e complicações dos diferentes métodos de diálise aguda nos doentes internados na Unidade de Cuidados Intensivos e/ou no Serviço de Nefrologia Pediátrica do Hospital Maria Pia. Doentes e métodos: Foi efectuado um estudo retrospectivo dos doentes com IRA que necessitaram de tratamento substitutivo da função renal entre Janeiro de 1990 e Dezembro de 2004. Analisaram-se aspectos clínicos e laboratoriais, indicações e complicações do procedimento dialítico e evolução dos doentes. Foi analisado também, o número anual de doentes tratados com diálise aguda no Hospital. Resultados. O estudo incluiu 29 crianças com idades comprendidas entre 1 e 15 anos, dos quais onze (37,9%) tinham menos de 12 meses de idade (6 recém nascidos). A sépsis foi a condição subjacente à IRA em 11 (37,9%) doentes, sendo predominante no grupo de recém nascidos. O síndrome hemolítico urémico foi a etiologia de IRA em 10 (34,5%) lactentes e crianças. __________ 1 Serviço de Nefrologia Pediátrica – Hospital de Crianças Maria Pia, Porto 2 Unidade de Cuidados Intensivos Neonatais e Pediátricos – Hospital de Crianças Maria Pia, Porto A diálise peritoneal foi a modalidade dialítica mais frequentemente utilizada (65,5%), seguida da hemodiálise intermitente (31%) e hemodiafiltração venovenosa contínua (3,4%). As técnicas dialíticas mostraram-se seguras e eficazes, embora com algumas complicações inerentes ao método dialítico, as quais foram resolvidas com sucesso. A mortalidade dos doentes foi de 17,2%, o que é um resultado bastante satisfatório quando comparada a outras séries. A evolução através dos anos do número de doentes submetidos a diálise aguda caracterizou-se por um aumento do número de casos. Nos últimos 5 anos foram tratados 16 dos 29 doentes, observando-se um investimento recente destas técnicas em recém-nascidos, incluindo prematuros de baixo peso. Conclusões: Verifica-se um aumento crescente de técnicas diáliticas nos doentes com IRA, as quais se têm mostrado eficazes e seguras. Destaca-se o seu uso em recém nascidos e prematuros de baixo peso com bons resultados. A diálise peritoneal permanece a técnica mais utilizada entre nós, contudo reconhecemos as vantagens das técnicas dialíticas extracorporais contínuas o que tem motivado um investimento recente neste tipo de tratamento dialítico. Palavras-chave: Insuficiência renal aguda, diálise, criança Nascer e Crescer 2006; 15(2): 71-76 INTRODUÇÃO A incidência da IRA na infância é difícil de determinar. No período neonatal pode ser uma situação clínica subvalorizada, em virtude de uma retenção azotada significativa poder coe- xistir com uma diurese adequada. Nos restantes grupos etários é uma situação pouco frequente(1,2). A IRA pode ocorrer como condição isolada ou associada a falência multiorgânica(1). É caracterizada pelo rápido declínio da taxa de filtração glomerular (TFG) num período de horas ou dias, com retenção plasmática de ureia e creatinina e alteração do equilíbrio hidro-electrolítico e ácido-base. Dependendo da gravidade da redução da TFG e do grau de reabsorção tubular, a IRA pode ser oligúrica ou não oligúrica. De acordo com o seu mecanismo de formação, a IRA é tradicionalmente categorizada nas formas pré-renal, renal intrínseca, ou pós-renal (obstrutiva), existindo diferenças, em termos de etiologia, entre recém-nascidos e crianças mais velhas(2-4). A IRA na infância é habitualmente reversível, com recuperação da função renal(5). Quando as medidas conservadoras não são suficientes para o controlo da IRA, é inevitável o início de uma terapêutica substitutiva da função renal por métodos dialíticos. Os mais utilizados são a diálise peritoneal aguda (DP), a hemodiálise intermitente (HD) e as técnicas dialíticas extra-corporais contínuas, nomeadamente a hemofiltração venovenosa contínua (HVVC) e a hemodiafiltração venovenosa contínua (HDFVVC)(1,6-8). A escolha da modalidade dialítica a utilizar depende principalmente do tipo e gravidade da patologia, da experiência no manuseamento das diferentes técnicas dialíticas, assim como das suas vantagens ou desvantagens, face a situações clínicas particulares. A DP é habitualmente considerada uma técnica simples, que não necessita de equipamento sofisticado nem de uma equipa especializada para a sua execução. A sua maior vantagem é não ne- artigos originais 71 NASCER E CRESCER revista do hospital de crianças maria pia ano 2006, vol XV, n.º 2 cessitar nem de anticoagulação, nem de acesso vascular, podendo ser utilizada em doentes hemodinamicamente instáveis(3,9). É uma técnica efectiva em todas as idades, incluindo nos recém-nascidos(10-13). A HD é uma técnica caracterizada pela rápida remoção de toxinas urémicas e ultrafiltração eficaz. É, no entanto, de difícil aplicação em doentes hemodinamicamente muito instáveis e é tecnicamente complexa em recém nascidos e crianças pequenas(3,4,14). A HVVC e a HDFVVC são técnicas contínuas que permitem um melhor controlo metabólico e de volume. São modalidades ideais para doentes com instabilidade vascular e hipotensão tendo a sua popularidade aumentado nas unidades de cuidados intensivos pediátricos(3,4,6). Nos doentes com sépsis ou falência multiorgânica este tipo de tratamento apresenta como vantagem adicional a remoção de citoquinas. Além disso, com a ultrafiltração contínua de líquidos, a restrição hídrica pode ser evitada, permitindo maior aporte de fluidos para suporte nutricional entérico ou parentérico. Como contrapartida, tal como na HD, são fundamentais os cateteres vasculares com lúmen adequado para a obtenção de um débito sanguíneo eficaz e a anticoagulação do circuito sanguíneo extracorporal. Para o sucesso deste tipo de técnicas, é imprescindível uma equipa médica e de enfermagem preparada e experiente(6,14). Neste estudo foi efectuada a análise das crianças com IRA, internadas na Unidade de Cuidados Intensivos Neonatais e Pediátricos e/ou Serviço de Nefrologia Pediátrica do Hospital de Crianças Maria Pia submetidos a diálise aguda. Foram avaliados parâmetros clínicos e laboratoriais que motivaram o início da diálise, complicações do tratamento dialtico e evolução dos doentes. MATERIAL E MÉTODOS O estudo constou da avaliação retrospectiva de doentes com IRA que necessitaram de tratamento substitutivo da função renal, no período compreendido entre 1 de Janeiro de 1990 e 31 de Dezembro de 2004. Os dados foram obtidos pela consulta dos processos clínicos e obedecendo ao preenchimento 72 artigos originais de um protocolo detalhado, onde foram registadas as seguintes variáveis: aspectos demográficos e antropométricos como identificação do doente, sexo, idade, raça, proveniência, peso; aspectos clínicos como débito urinário (oligúria definida como débito urináro <1 ml/Kg/hora), tensão arterial avaliada em função dos percentis para sexo, idade e estatura (hipotensão arterial P<P5, hipertensão arterial P≥P95), condições clínicas subjacentes à IRA e evolução clínica; parâmetros laboratoriais tais como creatinina, ureia, sódio, potássio, cálcio, bicarbonato e pH sanguíneos; necessidade de suporte ventilatório e de drogas vasopressoras; indicação para diálise aguda (azotemia, oligúria, acidose metabólica intratável, hipercaliemia e sobrecarga de volume); modalidade dialítica utilizada; tipo de cateter peritoneal ou cateter venoso central (CVC) utilizado; duração do tratamento substitutivo e complicações relacionadas com a técnica dialítica (infecciosas, trombóticas ou hemorrágicas e complicações mecânicas decorrentes de obstrução ou disfunção do cateter). Foi avaliada, também, a evolução através dos anos do número de doentes tratados com diálise aguda no Hospital, tendo sido os doentes subdivididos em 2 grupos: os que apresentaram idade inferior ou igual a 12 meses e os que tinham idade superior a 12 meses na data do episódio de IRA. RESULTADOS Das 29 crianças estudadas, 6 (20,7%) eram recém-nascidos, 5 dos quais prematuros (destes, 2 apresentavam extremo baixo peso). No Quadro I descrevem-se algumas características dos doentes submetidos a terapêutica dialítica, incluindo proveniência, sexo, idade e peso. A maioria das crianças que efectuaram diálise aguda foi procedente de outros hospitais, alguns dos quais tinham sido transferidos para o Hospital Maria Pia por IRA com necessidade eventual de tratamento substitutivo. A mediana da idade foi de 35 meses (intervalo: 1 dia a 15 anos) e a mediana do peso foi de 18 kg (intervalo: 530 g a 58,2 kg). Das crianças observadas 27 (93,1%) eram de raça caucasiana e 2 (6.9%) de raça negra. A condição subjacente à IRA mais frequente foi a sépsis em 37,9%, seguida do síndrome hemolítico urémico em 34,5% dos casos. A sepsis foi mais frequentemente associada à IRA em recém nascidos (83,3% dos recém nascidos), enquanto o síndrome hemolítico urémico foi uma etiologia frequente de IRA nas crianças e lactentes. O diagnóstico subjacente à IRA, algumas características clínicas associadas (débito urinário, tensão arterial, necessidade de agentes vasoactivos, ventilação mecânica), número de indicações de diálise e sua relação com a sobrevida dos doentes estão representados no Quadro II. Quadro I – Características dos pacientes submetidos a tratamento dialítico. Características n (%) Proveniência Hospitais distritais Hospitais centrais Hospital Maria Pia Hospital de Bissau 14 9 5 1 48,3 31,0 17,2 3,4 Sexo Masculino Feminino 16 13 55,2 44,8 Idade <1 m ≥1<12 m ≥12<60 m ≥60 m 6 5 8 10 20,7 17,2 27,6 34,5 Peso <10 Kg ≥10<20 Kg ≥20 Kg 9 6 14 31,0 20,7 48,3 NASCER E CRESCER revista do hospital de crianças maria pia ano 2006, vol XV, n.º 2 Quadro II - Diagnósticos e condições associadas e a sua relação com a sobrevida dos pacientes submetidos a tratamento dialítico. n (%) Sobrevida n (%) Diagnóstico Sépsis Síndrome hemolítico urémico Doenças glomerulares Cardiopatia congénita Intoxicação medicamentosa Mordedura de víbora Miosite/rabdomiólise 11 10 3 2 1 1 1 37,9 34,5 10,3 6,9 3,4 3,4 3,4 8 9 3 1 1 1 1 72,7 91,0 100,0 50,0 100,0 100,0 100,0 Débito urinário Oligúria Normal 24 5 82,8 17,2 19 5 79,2 100,0 Tensão arterial Hipotensão Normal Hipertensão 12 7 10 41,4 24,1 34,5 7 7 10 58,3 100,0 100,0 Suporte ventilatório Sim Não 12 17 41,4 58,6 9 15 75,0 88,2 Agentes vasoactivos Sim Não 15 14 51,7 48,3 11 13 73,3 92,9 Nº de Indicações para diálise 1 2 ≥3 1 10 18 3,4 34,5 62,1 1 9 14 100,0 90,0 77,7 Caracteristicas A média da creatinina e ureia plasmática previamente à instituição do primeiro tratamento dialítico foi de 382,5±105,6 μmol/l e 31,4 ±19,8 mmol/l respectivamente. A hipercaliemia estava presente em 10 crianças (34,5%) e a hiponatremia em 14 (48,3%). A acidose metabólica de difícil tratamento foi constatada em 20 (69%) dos casos e a maioria dos doentes apresentava valores normais de cálcio sérico (93,1%). Em relação às técnicas dialiticas usadas, a DP foi o tipo de diálise aguda inicialmente utilizado em 19 crianças (65,5%). A HD foi a técnica eleita em nove (31%) dos casos. Uma das crianças efectuou como primeira terapêutica substitutiva HDFVVC (3,4%). Houve necessidade de alterar a técnica dialítica em 6 doentes (20,7%). Três doentes submetidos a HD iniciaram posteriormente DP, e outros 3 doentes, cuja técnica inicial tinha sido DP, alteraram 1 para HD e 2 para HVVC. Em todos os doentes que efectuaram DP foi utilizado o cateter de Tenckhoff, excepto em 2 recém nascidos de muito baixo peso em que foi utilizado num deles um cateter de estilete e em outro um dreno de Jolly adaptado. O acesso venoso central para realização das técnicas dialíticas extracorporais foi, em todos os doentes, o CVC, sendo o local mais frequentemente utilizado a veia subclávia (n = 8), seguido da veia femural (n = 4) e da jugular interna (n = 3). Três cateteres tiveram de ser substituídos por obstrução, e um outro por infecção no local de implantação. A duração do tratamento dialítico foi inferior a dez dias em 16 crianças (55,2%). A distribuição das complicações associadas à técnica dialítica está representada no Figura 1, sendo as complicações mecânicas relacionadas com o cateter peritoneal e o CVC as mais frequentemente encontradas. Apesar de um número relativamente alto de complicações, todas elas foram resolvidas com sucesso, não havendo mortalidade associada à técnica dialítica. Seis doentes evoluíram para insuficiência renal crónica (IRC), quatro dos quais ficaram em estádio V de IRC (taxa de filtração glomerular inferior a 15 ml/ min/1,73 m2). Em 17 doentes (58,6%) verificou-se recuperação completa da função renal. Morreram 5 doentes. Três eram recém-nascidos, com pesos ao nascimento respectivamente de 530 gramas, 780 gramas e 1170 gramas, tendo ocorrido falência multiorgânica em todos eles. Os outros dois falecimentos ocorreram respectivamente em contexto de sépsis associada a síndrome nefrótico e síndrome hemolítico urémico complicado por hemorragia pulmonar maciça. Todos estes doentes fizeram DP como tratamento substitutivo, à excepção da criança com síndrome nefrótico em anasarca, que fez inicialmente HD e posteriormente HVVC. Figura 1 - Complicações da técnica dialítica nas várias modalidades. DP – Diálise peritoneal; HD – Hemodiálise; HF – Hemofiltração venovenosa contínua. artigos originais 73 NASCER E CRESCER revista do hospital de crianças maria pia ano 2006, vol XV, n.º 2 Para observarmos a evolução do tratamento dialitico agudo em doentes com IRA no Hospital Maria Pia, foi dividido o período total estudado em 3 intervalos: anos de 1990-94 ; 1995-99 ; 2000-2004. A distribuição do número de doentes e a divisão por idades ≤12 meses e > 12 meses está representado na figura 2. DISCUSSÃO A IRA é uma situação pouco frequente na criança. Com o aumento do número de crianças com falência multiorgânica a serem tratadas em unidades de cuidados intensivos a sua incidência pode estar a aumentar, sendo variadas as modalidades de tratamento disponíveis(1,3). Vários estudos fazem referência à maior incidência de IRA no primeiro ano de vida(7,15). Na nossa série, das 29 crianças estudadas, 37,9% estavam nesta faixa etária. Na IRA distinguem-se as causas relacionadas com a inadequada perfusão renal, as associadas à presença de doença renal e as de natureza obstrutiva(2,4,16). Tal como descrito noutros estudos(9,10,14,17) a sépsis foi a etiologia mais frequentemente associada a IRA no período neonatal e o síndrome hemolítico urémico nas crianças. A IRA oligúrica predominou na nossa casuística. A forma não oligúrica ocorreu em cinco doentes cujas etiologias foram a nefrotoxicidade associada a hemoglobinúria (mordedura de víbora), doenças glomerulares crescênticas e síndrome hemolítico urémico (SHU). Embora não seja consensual a afirmação de que a IRA não oligúrica representa uma forma de insuficiência renal de menor gravidade, com melhor prognóstico(1,7,18,19), no nosso estudo esteve associado a menor mortalidade. Tal como noutros estudos já publicados(14,17),na nossa casuística crianças com perfil tensional hipotensivo e necessidade de suporte vasoactivo apresentaram menor sobrevida. Não existem evidências quanto ao valor da função renal ideal para o início da terapêutica substitutiva(3). Alguns autores sugerem que a introdução precoce da diálise pode melhorar o prognóstico dos doentes com IRA(3,14,20,22). Na nossa opinião, as crianças com rápida deterioração da função renal, requerendo tratamento dialítico deverão ser orientadas precocemente para um centro de referência para que sejam instituídas medidas adequadas. No presente trabalho a terapêutica dialítica foi iniciada com valores de função renal bastante divergentes. Estes valores não devem ser interpretados isoladamente, mas contextualizados com a situação clínica do doente(2). As indicações Figura 2 - Distribuição do número de doentes com IRA submetidos a diálise aguda, através dos anos em estudo. 74 artigos originais para o início da diálise não são absolutas, são antes dependentes da progressão e da gravidade da doença, sendo habitualmente multifactoriais(4,7). Indicações uniformemente aceites incluem hipercaliémia, acidose metabólica refractária ao tratamento clínico, sobrecarga de volume e azotemia. A indicação para início de dialise na maioria dos doentes da nossa casuística foi multifactorial, tendo predominado os doentes com três ou mais indicações, verificando-se, neste grupo, uma maior mortalidade. Alguns erros inatos do metabolismo e certas intoxicações (litium, salicilatos) são também consideradas indicações para diálise aguda(4,20). No Hospital Maria Pia temos tido bons resultados com a realização de DP e HVVC em doentes com erros inatos de metabolismo, nomeadamente na leucinose e doenças do ciclo da ureia. Também não existe consenso quanto à modalidade dialítica de eleição(1,4). Na nossa casuística a DP foi a técnica inicial mais utilizada. As crianças submetidas a HD apresentaram resultados ligeiramente melhores em termos de sobrevivência (HD=88,9% v.s. DP=78,9%), o que está de acordo com outras séries(3,4,14). Uma das explicações poderá residir no facto dos doentes seleccionados para esta técnica estarem clinicamente mais estáveis, que os submetidos a técnicas dialíticas contínuas. Quando comparamos a sobrevivência entre as diversas técnicas, há que ter em atenção que esta está calculada para o tratamento inicialmente imposto, o que pode falsear os dados, em virtude de alguns doentes terem alterado a técnica. Na bibliografia o uso do cateter rígido com estilete foi largamente substituído pelo cateter de Tenckoff, ao qual é atribuído um menor número de complicações(3). Contudo outros cateteres de pequenas dimensões, para o acesso abdominal, podem ser usados quando é necessário instituir DP urgente, especialmente em recém-nascidos(3,17). Utilizamos maioritariamente o cateter de Tenckoff e registamos, mesmo assim, algumas complicações mecânicas de natureza obstrutiva, que levaram à sua substituição, ou mudança de técnica dialítica. NASCER E CRESCER revista do hospital de crianças maria pia ano 2006, vol XV, n.º 2 Seis dos doentes tratados evoluíram para IRC, quatro dos quais com necessidade de tratamento dialítico regular. A etiologia da IRA com maior probabilidade de conduzir a doença renal crónica, é a glomerulonefrite rapidamente progressiva, a trombose vascular renal e a necrose cortical(20). Os diagnósticos apresentados pelos 4 doentes da nossa casuística, foram em 2 crianças síndrome hemolítico urémico e as outras 2 tinham doenças glomerulares crescênticas (síndrome de Goodpasture e nefropatia de IgA). A mortalidade esteve na dependência da doença subjacente e não directamente relacionadas com a terapêutica dialítica, tal como está relatado em outros trabalhos publicados(21). A mortalidade nestes doentes varia, segundo alguns autores, entre 41,5 e 52%(7). Valores muito discrepantes da mortalidade apresentados nalgumas séries(1,3,14,23) são justificados pela situação clínica do doente. Assim, a mortalidade nos doentes com IRA submetidos a correcção cirúrgica de malformações cardíaca congénitas é de 51% enquanto nos doentes com síndrome hemolítico urémico (incluindo crianças com e sem necessidade de diálise aguda) é de apenas 3 a 6%. Na nossa casuística a mortalidade global foi de 17,2%, o que se pode considerar um resultado muito satisfatório. Embora tivéssemos na nossa casuística um grupo grande de doentes com síndrome hemolítico urémico, tivemos também doentes críticos em que a IRA esteve associada a falência multiorgânica, situação esta, em que mortalidade é extraordinariamente elevada. Verificou-se nos últimos 5 anos um aumento da incidência de doentes com IRA submetidos a diálise aguda no Hospital Maria Pia, observando-se um investimento recente destas técnicas em recém-nascidos, incluindo prematuros de baixo peso. Estamos cientes, que dadas as vantagens das técnicas contínuas extracorporais em doentes críticos e da sua crescente utilização nas Unidades de Cuidados Intensivos Pediátricos, é justificável um maior investimento técnico nestas modalidades no futuro. Estes resultados contudo, revelam a evolução e segurança das terapêuticas dialíticas nos doentes com IRA no Hospital Maria Pia, estimulando a continuidade do trabalho desenvolvido pela equipa clínica e técnica na prestação de cuidados a estes doentes. DIALYSIS THERAPY IN ACUTE RENAL FAILURE ABSTRACT Acute Renal Failure (ARF) is an uncommon disease in paediatric age, and may occur associated to several clinical conditions. When the support measures are not enough to control ARF, substitution therapeutics become necessary. Objective: To analyse the indications and complications of the different dialysis modalities at the Intensive Care Unit and/ or Paediatrics Nephrology Department in Maria Pia Hospital. Patients and methods: The authors present a retrospective study of ARF patients who needed substitutive treatment of renal function between January 1990 and December 2004. We analysed the following: clinical and laboratorial data, indications and complications of dialysis and patients’ evolution. We was also analysed the evolution of the dialytic treatment in our hospital. Results: The study included 29 children with ARF treated with dialytic therapies, aged 1 day to 15 years. Eleven (37,9%) were 12 months or younger (6 newborns). Sepsis was the subjacent condition to ARF in 11 (37,9%) patients, the majority newborns. The uraemic haemolytic syndrome was the aetiology of ARF in 10 (34,5%) infants and children. The peritoneal dialysis was the most used dialytic modality (65.5%), followed by the intermittent haemodialysis (31%) and continuous venovenous haemodiafiltration (3,4%). The dialytic therapy proved to be safe and efficient, although carrying some inherent complications to the dialytic method, that were resolved with success. Mortality was 17,2%, which is a rather satisfactory result when compared with other series. The number of patients submitted to dialysis in our hospital has been increasing, through the years (16 patients out of 29 were treated after 1999), specially newborns and low birth weight newborns. Conclusion: We verified an increasing use of dialytic techniques in patients with ARF, which are safe and efficient. We emphasize the good results in newborn including the low birth weight. Peritoneal dialysis remains the most used technique in our hospital, however nowadays, we are investing in the continuous extracorporeal dialysis as we recognize the advantages of this method in critical patients. Key-words: Acute Renal Failure, dialysis, children Nascer e Crescer 2006; 15(2): 71-76 BIBLIOGRAFIA 1. 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CORRESPONDÊNCIA Sandra Rocha Tel.: 919 890 319 E-mail: [email protected] NASCER E CRESCER revista do hospital de crianças maria pia ano 2006, vol XV, n.º 2 Efficacy and safety of acetaminophen vs ibuprofen for treating children’s pain or fever A Meta – analysis David A. Perrot; Tiina Piira ; Belinda Goodenough; David Champion Arch Pediatr Adolesc Med. 2004;158: 421 – 526 Objective: To summarize studies testing the efficacy and safety of single - dose acetaminophen and ibuprofen for treating children’s pain or fever. Data Sources: reports were gathered by searching computerized databases (for their inception through May 2002) and registries, relevant journals and bibliographies of Key articles. Study selection: Seventeen blinded, randomized controlled trials with children « 18 years) receiving either drug to treat fever or moderate to severe pain. Data Extraction: Under a fixed – effects model, outcome measures for a initial single dose of ibuprofen vs acetaminophen were the risk ratio for achieving more than 50% of maximum pain relief, effect size for febrile temperature temperature reduction, and risk ratio for minor and major harm. Data Synthesis: Ibuprofen (4 – 10 mg/Kg) and acetaminophen (7 – 15 mg/ kg) showed comparable efficacy (3 pain relief trials; 186 children). The risk ratio point – estimates was 1.14 (95% confidence interval [CI], 0.82 – 1.58) at 2 hours after receiving the dose, and 1.11 (95% CI, 0.89 – 1.38) at 4 hours. Ibuprofen (5 – 10 mg/Kg) reduced temperature more than acetaminophen (10 – 15 mg/Kg) at 2, 4, and 6 hours after treatment (respective weighted – effect sizes: 0.19 [95% CI, 0.05 – 0.33], 0.31 [ 95% CI, 0.19 – 0.44], and 0.33 [95% CI, 0.19 – 0.47] (9 fever trials; 1078 children). For Ibuprofen 10 mg/Kg (acetaminophen, 10 – 15 mg/Kg), corresponding effect sizes were 0.34 (95% CI, 0.12 – 0.56), 0.81 (95% CI, 0.56 – 1.03), and 0.66(95% CI, 0.44 – 0.87). There was no evidence the drugs differed from each other (or placebo) in incidence of minor or major harm (17 safety trials; 1820 children). Conclusions: In children, single dose of ibuprofen (4 – 10 mg/kg) and acetaminophen (7 – 15 mg/Kg) have similar effects for relieving moderate to severe pain, and similar safety as analgesics or antipyretics. Ibuprofen (5 – 10 mg/Kg) was a more effective antipyretic than acetaminophen (10 – 15 mg/Kg) at 2, 4, and 6 hours post – treatment. COMENTÁRIO A febre constitui uma adaptação à patologia que a provoca, infecciosa ou não. Resulta do reacerto do termóstato hipotalâmico como resposta a pirogénios endógenos, produzidos por linfócitos e macrófagos, entre outras células. São citoquinas, tais como as interleucinas 1 e 6, o factor de necrose tumoral alfa e os interferões beta e gama, e mediadores lipídicos como a prostaglandina E2. Os micro organismos, suas toxinas, particularmente a endotoxina, e outros produtos constituem os pirogénios exógenos que vão levar à síntese dos pirogénios endógenos e assim originar a subida térmica. A febre pode ter outra etiologia que não a infecção, como as vacinas, lesões tecidulares (injecções intra musculares), neoplasias, doenças inflamatórias, imunológicas (artrite reumatóide, febre reumática), endócrinas e metabólicas (1). A febre é um dos sinais vitais e como tal avalia-la é um dado importante, particularmente em determinadas situações. Febre numa criança neutropénica em consequência de tratamento neoplásico, pode por si só determinar o internamento e administração de poderosos esquemas antibióticos. O mesmo pode acontecer quando estamos perante um lactente de idade inferior a 2 a 3 meses. Uma convulsão só poderá ser rotulada de febril se, obviamente, existir febre, caso contrário, terá outro significado. O valor da febre também pode dar achegas importantes ao diagnóstico pois um valor à volta de 40ºC sugere infecção bacteriana potencialmente letal. Um valor superior a 41 é raramente atingido: cerca de 0.05% dos episódios febris (2). O gráfico da febre pode dar informações importantes, assim como a dissociação com o pulso (febre tifóide, e atingimento cardíaco, por exemplo). Uma temperatura superior a 42 ºC sugere hipertermia e não febre o que é importante distinguir, pois não cede ao tratamento farmacológico, uma vez que sendo de causa externa, não houve um reajustamento do termóstato talâmico, como na febre. Por outro lado, a constatação de hipotermia («35ºC) é importante: obriga ao internamento de um recém-nascido por suspeita de sépsis ou hipotermia de causa externa, igualmente grave, pode sugerir uma sépsis gravíssima, ser consequência do uso exagerado de antipiréticos e num afogamento agrava o prognóstico, por exemplo (1,3). Podemos avaliar a temperatura na pele, na axila, na boca, no ouvido ou no recto. A temperatura cutânea só é fiável no recém – nascido quando há estabilidade térmica ambiental. A avaliação axilar pode dar falsos negativos tanto na subida (vasoconstrição), como na estabilização ou descida térmica (sudação). A oral só pode ser obtida depois dos 5 anos (colaboração) e a rectal pode causar incómodo. Parece então que o local ideal para se avaliar a febre seja o tímpano (radiação infra-vermelha), considerandose febre acima de 37.6ºC (3). artigo recomendado 77 NASCER E CRESCER revista do hospital de crianças maria pia ano 2006, vol XV, n.º 2 Os efeitos “laterais” da febre são geralmente discretos: taquicardia, taquipneia, e aumento do consumo de oxigénio e das perdas hídricas. Por outro lado, sendo a febre uma adaptação fisiológica do organismo e constituindo mesmo um dos mecanismos inespecíficos de defesa à infecção, por si só, e de um modo geral, não deve ser combatida. Temperaturas até 39 ºC são bem toleradas. Crianças com patologia pulmonar, cardíaca, hematológica ou metabólica requererão uma atenção especial (1). A consequência mais aparatosa, mas benigna, são as convulsões febris, simples ou complicadas. Recordemos: serão simples, as convulsões tónicas – clónicas generalizadas, não recorrentes nas 24 horas subsequentes e de resolução espontânea em menos de 10 minutos; complicadas (10 a 35%) são as que têm uma ou mais das seguintes características, focais, prolongadas, recorrentes nas 24 horas seguintes ou durante o mesmo episódio febril. A sua incidência é de cerca de 2 a 5%, ocorrem habitualmente entre os 6 e os 36 meses atingindo – se o pico máximo pelos 18. Cerca de 6 a 15 % ocorrem depois dos 4 anos e são raríssimas a partir dos 6. Há alguns factores de risco identificados: história familiar, história de prematuridade ou outros problemas neo – natais e atraso do desenvolvimento. Em cerca de 50% não há factores de risco. Recorrem num terço dos casos, sendo factores de recorrência as idades mais jovens, história familiar, serem despertadas com valores mais baixos da febre e as complicadas. Parece que o tratamento com midazolan bucal é mais eficaz que o diazepan rectal(4). Há que distinguir convulsões febris de arrepio, síncope, espasmos do choro e convulsões reflexas anóxicas. A realização sistemática de punção lombar nas crianças de idade superior a 2 anos não é recomendada e antes desta idade sê-lo-á num das seguintes circunstâncias: irritabilidade ou letargia, convulsão complicada, presença de algum sinal meníngeo, perda prolongada da consciência ou sinais neurológicos focais pós ictais e prévia antibioticoterapia. A indicação de EEG é rara e a neuro – imagem (Ressonância) quando houver micro ou macrocefalia, sindomes neuro – cutâneos, défices neurológicos 78 artigo recomendado pós – ictais durante horas e convulsões complexas recorrentes. Quanto à profilaxia, parece haver bons resultados com diazepan administrado durante episódios febris nas crianças com facilidade em convulsivar, mas os efeitos laterais como a sonolência e a ataxia podem impedir a apreciação adequada da evolução do quadro febril e por isso não se recomenda. O uso contínuo da medicação antipirética não previne as convulsões. Ou seja, a febre associa – se mas não está na origem das convulsões. O prognóstico é bom. 2 a 4% das crianças vêm a ter epilepsia, sendo factores de risco a história familiar, convulsões complicadas e a existência de anomalias precoces do desenvolvimento psico – motor. A associação de convulsões febris a epilepsia temporal é polémica (5). Do acabado de expor, podemos concluir que não há que temer a existência de convulsões febris e que não vale a pena correr risco de sobre dosagens de antipiréticos em busca da sua prevenção. Paracetamol e ibuprofeno são os fármacos mais utilizados em crianças com febre ou dor. O seu mecanismo de actuação reside na inibição da síntese da prostaglandina E 2, por bloqueio da ciclooxigenase talâmica. A sua eficácia e segurança têm sido muito discutida e não há uma clara sugestão de qual deles seja o de eleição, embora o paracetamol pareça merecer preferência, tendo em conta, nomeadamente a boa tolerância. Com efeito, o paracetamol na dose de 10 – 15 mg/kg, via oral, cada 4 h, não se associa a significativos efeitos adversos, embora o seu uso prolongado possa causar nefrite (1). A ingestão de doses elevadas, 120 – 150 mg/Kg pode originar falência hepática, potencialmente letal. A intoxicação evolui, recorde–se, em 4 fases. A primeira, muita inespecífica, acompanha–se de anorexia, vómitos, mal-estar e sudação, o que pode confundir – se com manifestações da doença de base e levar a mais administração de paracetamol. Na segunda fase, estas manifestações resolvem – se e surge hepatalgia, hepatomegalia e alterações da função hepática. Na terceira fase, pelos 3 a 5 dias, voltam as manifestações da primeira, acompanhadas de sintomatologia de falência hepática (icterícia, hipoglicemia, coagulo e encefalopatia) e eventualmente falência renal e cardiomiopatia. A quarta fase traz a recuperação ou a morte por falência hepática. O risco de toxicidade aumenta em determinadas situações: diabetes, obesidade, desnutrição, jejum prolongado e concomitantes infecções víricas. O tratamento da intoxicação consiste essencialmente na administração precoce de N – acetilcisteína (6). O ibuprofeno na dose de 5 – 10 mg/Kg, oral, cada 6 – 8 h pode causar dispepsia, hemorragia intestinal, redução da perfusão renal e raramente meningite asséptica, toxicidade hepática, anemia aplástica ou lesões graves por sobredosagem (1) . Parece então razoável deduzir - se a preferência pelo paracetamol. A presente meta – análise não revelou contudo diferença na segurança, nem no efeito analgésico; já no efeito antipirético, o ibuprofeno é superior. A ser assim, poderemos concluir que como analgésico se use o paracetamol e como antipirético o ibuprofeno? Mas um outro trabalho mostrou que o paracetamol é mais eficaz como antipirético se utilizarmos uma dose de carga de 30 mg/Kg de peso, não havendo aumento de efeitos laterais (7). Outra atitude perante a febre é o uso alternado de paracetamol e ibupropeno, esquema apoiado por uns(8) e rejeitado por outros (9). Ainda que estes fármacos sejam seguros, o importante é que se usem criteriosamente, pelo que é necessário desdramatizar perante as famílias o significado da febre. Há uma fobia da febre, referida por Schmitt em 1982 (10), confirmada 20 anos depois (11), verificada também entre nós (12) e sentida na prática clínica diária. Ora o uso alternado de ibuprofen e paracetamol revela uma tentativa desesperada de manter a criança permanentemente em apirexia, como se isto fosse uma absoluta necessidade. O trabalho comentado, ao provar que tanto o paracetamol como o ibuprofeno são bem tolerados, deixa - nos à vontade na escolha como analgésicos. Já como antipiréticos, o ibuprofen leva vantagens. Mas o que é importante é que utilizemos um ou outro e não os dois em simultâneo. NASCER E CRESCER revista do hospital de crianças maria pia ano 2006, vol XV, n.º 2 Nascer e Crescer 2006; 15(2): 77-79 BIBLIOGRAFIA 1. Powell K R. Fever. In :Behrman RE, Kliegmann RM, Jenson HB. Nelson Texbook of Pediatrics. 17 th ed. Philadelphia, PA: WB Saunders;2004: 839 – 841. 2. McCarthy PL. Fever. Pediatrics In Review 1998;19: 401 – 407. 3. El – Radhi AS, Barry W. Thermometry in paediatric practice. Arch Dis Child 2006;91: 351 – 356. 4. McIntyre J, Robertson S, Noris E. Safety and efficacy of buccal midazolan versus rectal diazepam for 5. 6. 7. 8. emergency treatment of seizures in children:a randomized controlled trial: Lancet 2005;16:205 – 210. Waruiru C, Appleton. Febril seizures: un update. 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Tojal Monteiro1 __________ 1 Professor de Pediatria, ICBAS/HGSA artigo recomendado 79 NASCER E CRESCER revista do hospital de crianças maria pia ano 2006, vol XV, n.º 2 Liberdade e Responsabilidade na Procriação Medicamente Assistida Helena Maria Vieira de Sá Figueiredo1 RESUMO Este artigo propõe uma reflexão sobre o tema da liberdade e responsabilidade, como princípios capazes de sustentar o comprometimento do respeito pela vida, tanto das presentes, como das futuras gerações, sendo necessário, doravante, pensá-lo na dimensão de uma profunda temporalidade. É isso que se nos apresenta como um desafio à bioética, enquanto uma ética da vida, na medida em que o poder de interferência e manipulação de seres humanos se tem tornado, com os avanços técnico-científicos, cada vez mais intenso e real. Palavras-chave: responsabilidade, temporalidade, vida, respeito, bioética. Nascer e Crescer 2006; 15(2): 80-84 INTRODUÇÃO Vários são os ramos do conhecimento que convergem na tentativa de compreender aquilo que ao longo da História da Humanidade foi tido como uma verdadeira inquietação. Perceber o ser humano no mistério da sua própria génese e existência. Em 1865 Mendel propôs as leis da hereditariedade designando os elementos celulares responsáveis pela transmissão da informação entre as gerações como “factores” e definiu a natureza dominante e recessiva dos caracteres. Em 1903 Stutton e Boveri estabeleceram que os “factores” de Mendel, envolvidos na transmissão das características hereditárias, se localizam nos cromossomas. Alguns anos mais tarde, em 1909, Mor- __________ 1 Assessora, ramo de Laboratório; Mestre em Bioética e Ética Médica 80 gan adoptou a palavra gene para definir a unidade básica da hereditariedade. Muito rapidamente se foi desenvolvendo a ciência genética, mas depois da Segunda Guerra Mundial surge a genética molecular, com Watson e Crick descrevendo em 1953 a estrutura em dupla hélice do ADN. As particularidades do ADN de cada indivíduo são responsáveis pelas características que ele recebe na fecundação e que fazem dele um ser único. Paralelamente a todas estas investigações, os médicos interrogavam-se sobre as causas orgânicas da infertilidade e acerca dos meios para as resolver, o que fez com que surgissem as técnicas de Procriação Medicamente Assistida (PMA). Estas técnicas têm vindo a ser utilizadas nos últimos vinte e cinco anos como um novo domínio de intervenção médica capaz de resolver o drama que constitui para muitos casais a impossibilidade de procriar. As técnicas de PMA não devem ser em princípio consideradas um método alternativo, mas sim subsidiário à reprodução natural, só devendo ser utilizadas quando esgotadas todas as formas e meios de se conseguir uma reprodução natural. Em algumas excepções, continuam a ser a terapia de último recurso em muitas circunstâncias. As excepções, contudo, são importantes. O nascimento de Louise Brown aconteceu em 1978, em Inglaterra, após largos anos de experimentação em animais, e foi o primeiro ser humano nascido após uma intervenção médica do biologista Robert Edwards e do ginecologista Patrick Steptoe, o que veio facilitar ou promover a criação de seres humanos em laboratório(1). Mas o grande ponto de viragem na PMA surgiu em 1992 quando, acidental- perspectivas actuais em bioética mente, Palermo e colaboradores(2) obtiveram a primeira gravidez e nascimento com a injecção intracitoplasmática de espermatozóide no ovócito (ICSI), que se tornou desde então indicação para casais com infertilidade masculina ou casos de ausência de fecundação em ciclos anteriores. Até agora numerosas crianças têm nascido com estas técnicas. A escolha deste tema propõe uma reflexão sobre o tema da liberdade e responsabilidade, como princípios capazes de sustentar o comprometimento do respeito pela vida, tanto dos presentes como das gerações futuras, e numa perspectiva ético-filosófica pela área profissional em que os biólogos estão envolvidos no seu quotidiano. O papel dos biólogos na PMA pode ser encarado em múltiplas vertentes, mas a reflexão sobre a sua liberdade e responsabilidade, como detentor de uma ciência em que o peso de maior relevo assenta em componentes de natureza técnica foi preponderante. Noção de Fertilidade /Infertilidade A reprodução animal é um fenómeno fundamentalmente biológico que, regido por impulsos instintivos, conduz à transmissão da vida e à perpetuidade de cada espécie(3). No caso do ser humano, porém, este fenómeno biológico adquire outras dimensões que caracterizam a nossa espécie. Assim é com o amor, fenómeno singular e exclusivo do ser humano, que transmite à reprodução um enquadramento único. Por isso, a dimensão humana da reprodução não é redutível aos seus aspectos biológicos. Trata-se de um mistério, sempre único e irrepetível, pelo qual uma história de amor interpessoal pode dar origem a uma nova vida. NASCER E CRESCER revista do hospital de crianças maria pia ano 2006, vol XV, n.º 2 Sabemos que a Filosofia não se debruça especificamente sobre a fertilidade, mas sobre a vida, a sua origem e a procura da sua finalidade. Diremos, então, que a Filosofia procura o conhecimento profundo da realidade que envolve o homem e o sentido da sua vida. Filosofia significa desejo de saber, algo característico e próprio do ser humano, como ser aberto, dotado de sensibilidade especial que coage com a vida e formula porquês. A Filosofia é radical, isto é, a interrogação filosófica chega à radicalidade porque procura uma resposta para os porquês últimos, interessa-se pelas primeiras causas e princípios, pela natureza íntima das coisas e do ser humano. A Filosofia é necessária para a correcta realização do ser humano. A unidade do ser humano, isto é, o íntimo do seu “eu”, que permanece invariável na pluralidade das suas actividades, é incompatível com uma compartimentação do seu ser. Para a Biologia, o valor da Filosofia é importante enquanto instrumento de reflexão, utilizando-a para avaliação dos fundamentos da ciência, do valor e limites da técnica, enquanto meios de produção de beneficência dirigida ao outro na busca da sua realização. Da grande maioria dos casamentos, emerge o desejo de procriação assente na necessidade de realização da própria natureza humana. O casamento e a procriação fazem parte dessa realização, como acto humano, onde a intenção, deliberação e consentimento, são vividos como vectores de equilíbrio entre a vontade e a razão. Numa visão existencialista cada ser humano tem um modo próprio de estar e de se realizar. O casal escolhe a sua própria vivência, que lhe determina singularidade e autonomia, conferindo-lhe liberdade de escolha do que lhe parece melhor para a sua felicidade e para alcançar equilíbrio social e pessoal. Esta realidade, impregnada de consciência moral, individual e universal, em que o casal realiza o desejo de família alicerçado em valores onde se realiza o “eu quero”, confere-lhe uma nova dimensão para se sentir realizado consigo, com os outros e com o mundo. A fertilidade é então vista pela humanidade como valor máximo, sendo que a falência do processo reprodutivo (infertilidade/esterilidade) põe em causa o projecto existencial e de auto-realização do casal (maternidade/paternidade), com a consequente frustração pessoal e social. Percebe-se, assim, que o ser humano, neste caso o casal, num plano filosófico, conceba o “fazer-se”, a “realizar-se”. É o casal, com o seu projecto reprodutivo, que dá sentido à vida e à existência, o que significa que a não procriação põe em causa a sua natureza humana abrindo espaço ao eventual conflito. Desde a antiguidade que é dada enorme importância à reprodução humana. As dimensões éticas resumem-se a valores fundamentais: fecundidade, vida, conjugalidade e sexualidade(4). A fecundidade introduz no nosso processo individual de crescimento o apelo à relação, à criatividade, à continuidade, à implicação no mundo(5). Ter filhos será não a única, mas uma maneira de cultivar e expressar a fecundidade. A primeira desmistificação sobre esta matéria surge, já na contemporaneidade, com a compreensão universal (particularmente do Ocidente) de que a infertilidade/esterilidade não é só feminina, mas também masculina, e de que a falência da reprodução não é “pecado” nem “vergonha”, mas tem de ser encarada como deficiência biológica enquadrável no âmbito dos problemas de saúde. Foi no início dos anos quarenta que se começaram a definir os critérios de fertilidade, baseados no espermograma e na biópsia do testículo que permitiram, com rigor científico, o estudo fecundante do homem. Facilmente se confunde fecundidade com fertilidade. “A fecundidade é o valor, a infertilidade é só a (uma, mas não a única) sua expressão”4. Por exemplo, um casal com um número significativo de filhos, porque o marido chegava a casa ébrio não é um casal fecundo, mas um casal que se reproduziu muitas vezes. Reciprocamente, um casal que queira muito ter um filho e que por razões diversas não o consiga pode ser fecundo. Assim, ao existirem filhos, pode ter havido reprodução, mas não fecundidade. No caso das técnicas de PMA, por exemplo, um casal pode ser fecundo, mas existirem razões várias que não permitem a existência de filhos. Por técnicas de PMA “se entendem as técnicas médicas e biológicas que permitem a procriação, excluindo os processos naturais”(6), ou seja, um casal pode ser fecundo, mas existirem razões várias que não permitem a existência de filhos. A fecundidade era vista como um dom da mulher, pelo qual tanto era idolatrada, inclusive com manifestações artísticas que evidenciavam os órgãos relacionados com a reprodução, como severamente castigada quando infértil por violação de um princípio sagrado. Importa então definir com clareza o que é a infertilidade. Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), a “infertilidade é a ausência de concepção após doze meses de relações sexuais não protegidas”(7). Esta definição foi e é importante para conferir um padrão universal com rigor científico e para permitir a reflexão filosófica à luz do existencialismo, não esquecendo o Homem nas suas dimensões de temporalidade e historicidade. A modernidade é fortemente marcada por uma nova concepção de razão como faculdade universal do conhecimento e realidade. Com o surgir da racionalidade reflexa e da capacidade inventiva, surgem novas modalidades de interferência na actividade reprodutora e na sua regulação. Com a existência de valores, a racionalidade humana faz uma crítica valorativa sobre as alternativas possíveis. Hoje, no Século XXI, a sociedade em geral e o casal em particular, sabem que podem e devem procurar ajuda para resolução da infertilidade, em liberdade(8), autonomia(9) e responsabilidade(10). Consciente destes valores, o casal passa a dispor de duas opções: uma médica e outra social, a adopção. Se por um lado a adopção, como meio legal de solucionar a infertilidade, vem sendo uma prática frequente, não é menos verdade que é, legislativa e burocraticamente, um meio moroso e complicado. Por outro lado, não soluciona a questão psicológica fundamental, o desejo de o casal ter o seu próprio filho que, nos sentidos bioló- perspectivas actuais em bioética 81 NASCER E CRESCER revista do hospital de crianças maria pia ano 2006, vol XV, n.º 2 gico e filosófico, transporta em si toda a vontade de repetição e perpetuação do património genético(11). É neste contexto de importância, que a sociedade em geral e os casais em particular vêem a problemática da fertilidade/infertilidade e das técnicas de PMA. O biólogo e a PMA Toda a ontogenia do ser humano, desde os estádios precoces da vida embrionária, se dirige para a formação de um animal cultural, que faz a sua história, decide a sua vida, constrói o seu mundo. O ser humano desenvolve-se para o mundo existente e para novos mundos que concebe e cria(12). Quando o casal procura ajuda externa para a sua dificuldade de procriação, o médico é o eleito de primeira instância. Partindo do pressuposto inicial de que o casal procura na reprodução a representação máxima do seu amor – natureza humana – não a dissociando à partida do acto sexual, pode pôr-se em causa se este acto de amor se verá representado nas técnicas de PMA, pois estas, não separando a procriação da sexualidade, afastam-se momentaneamente do coito. A maioria das correntes éticas (laicas e religiosas) julga que na PMA essa relação de amor se mantém e porventura se reforça, já que poucos filhos são tão desejados como os alcançados com estas técnicas, pois são exigidos, entre outros, elevados sacrifícios físicos e psíquicos. Assim, adopta-se uma perspectiva personalista e não biologicista da ética, segundo a qual a pessoa humana subsiste na natureza biológica mas não recebe dela qualquer norma intocável de moralidade. Nesta perspectiva, o fundamental é a união entre o amor inter-pessoal do casal e a procriação, e não necessariamente entre esta e o coito. No entanto, a PMA constituirá sempre um mal necessário, devendo ser considerada como um método complementar da reprodução natural e como solução de último recurso, a utilizar apenas quando todos os outros métodos se revelaram infrutíferos. Assim sendo, é imprescindível uma avaliação prévia das condições sociais, 82 culturais, afectivas e económicas do casal, efectuada pelo médico, neste caso por uma equipa constituída por ginecologista/obstetra e psicólogo/psiquiatra entre outros. Neste contexto, o biólogo tem um papel à posteriori, que é importante descrever, ainda que sumariamente, no sentido de contextualizar a sua acção. O biólogo é um profissional que está preparado para estudar os seres vivos, pretendendo chegar ao conhecimento das leis que regem a vida em todas as suas manifestações. O biólogo, no contexto da PMA, é sobretudo um analista de factos e circunstâncias biológicas e um preparador dos componentes essenciais à fecundação, em casais que, por deficiência e/ou disfunção, a não conseguem espontaneamente. Na maioria das situações o biólogo é único in labor, enclausurado numa tríade hermética constituída por ele, o microscópio e a célula, conferindo-lhe a singularidade de praticamente sem partilha do acto per se, caber-lhe comunicar ao médico e ao casal o que visualizou, analisou e conseguiu. No laboratório de PMA, o biólogo analisa e estuda diversas características de avaliação morfo-funcional dos ovócitos e espermatozóides, conferindo-lhes valor prognóstico; colabora com o clínico na decisão sobre a escolha da técnica a utilizar em cada situação; prepara o material biológico através de meios e condições que permitam alcançar a fertilização; quando necessário, promove directamente a fecundação interagindo ao nível micro cirúrgico com os gâmetas; para além de acompanhar e monitorizar a evolução embrionária, assiste e promove o desenvolvimento dos embriões, assegurando as condições necessárias à sua viabilidade. Fica então claro que, num laboratório de PMA, o biólogo intervém e colabora directamente no processo de procriação, por intermédio de procedimentos eminentemente técnicos que têm como principal missão criar vida. Neste tipo de prática, investida de tão grande poder de deliberação e decisão, ao nível dos mais importantes e perspectivas actuais em bioética mais bem escondidos segredos da vida biológica, tem de existir uma profunda noção de responsabilidade que module a liberdade e autonomia éticas. Importa assim ao biólogo, a par de um amplo conhecimento científico e técnico sobre PMA, não esquecer que a problemática central girará sempre à volta da pessoa, envolvendo por isso a sua dignidade e liberdade. Liberdade e Responsabilidade do biólogo O tema da liberdade e responsabilidade deve estar na base da eticidade contemporânea, pelo expressivo poder adquirido pelo homem para intervir e modificar a vida, inclusive em escala planetária10. Liberdade ética não significa escolha arbitrária, permissividade ou relativismo moral. Significa sim, a possibilidade de realização de todas as potencialidades da pessoa humana(13). Exige libertação de pressões interiores como as que surgem de interesses científicos, económicos ou políticos, bem como as que são baseadas em preconceitos culturais ou religiosos. A prestação geral de cuidados de saúde pelo biólogo e o sistema que a sustenta, não podem escapar à realidade existente que é o direito de cada cidadão à sua autodeterminação. De acordo com os princípios referidos e formulados por Beauchamp e Childress9, estes conferem uma prevalência da autodeterminação individual sobre os outros valores humanos fundamentais, como a responsabilidade social ou a solidariedade humana, podendo a autonomia profissional ser prevista através da objecção de consciência(14). A responsabilidade foi o tema que um dos pensadores como Hans Jonas se dedicou a discutir na era de uma civilização tecnológica. Para ele, o pensamento ético recente pouco se preocupou com a questão de uma responsabilidade compatível com esses novos tempos. Tanto assim que não deixou de assinalar o seguinte: “Não comprometas as condições de uma continuação indefinida da humanidade sobre a terra” e prossegue referindo que “É óbvio que a violação deste NASCER E CRESCER revista do hospital de crianças maria pia ano 2006, vol XV, n.º 2 tipo de imperativo não implica qualquer contradição racional. Eu posso desejar o bem presente com o sacrifício do bem futuro”10. Hans Jonas resgatou aquele princípio da responsabilidade. Enfatizou a sua importância no mundo tecnológico contemporâneo. Na sua prática quotidiana, o biólogo tem uma acção técnica, mas esta só faz sentido se for exercida e desenvolvida à luz de valores e princípios filosóficos e éticos. Em todo o mundo as técnicas de PMA têm levantado uma multiplicidade de interrogações. A grande preocupação reside na preservação da natureza e dignidade humana, no presente e no futuro, e sobre eventuais limites a impor aos novos poderes adquiridos pela ciência. A verdade é que o biólogo tem espaço, tempo e meios, para eventualmente utilizar o seu poder técnico de forma negativa, para subverter a análise ou visualização in loco, para manipular e ou experimentar sobre o material biológico de que dispõe, para transformar um acto de criação de vida num acto de instrumentalização da pessoa. Se inicialmente a técnica começou por ser excluída do horizonte reflexivo da Filosofia, a preocupação actual de vários autores é a de ponderação da possibilidade do ser humano subverter os objectivos das técnicas por ele criadas e resvalar para uma progressiva alienação de si próprio e instrumentalização do outro. Então, do humanismo e técnica, a Filosofia passa para a ética da técnica. Hans Jonas é pois um dos autores que maior contributo prestou à reflexão filosófica sobre a técnica. O ser humano, sujeito da técnica, é agora também o seu objecto, transformando a essência do agir humano. Este autor interroga-se sobre o que deve ser uma ética preocupada com o respeito pelo ser humano do nosso tempo. Não se trata de preocupações formais, mas de um “pressuposto real”: a humanidade está em perigo. “Vivemos uma situação apocalíptica, isto é, na iminência de uma catástrofe universal, se deixarmos as coisas actuais prosseguirem o seu curso”(15). A ética tradicional é aqui ultrapassada. Esta apenas diz respeito ao agora, mas é com o futuro que temos de nos preocupar. Ela apenas nos quer virtuosos quando o que temos de aprender é a ser responsáveis. Segundo Jonas, “O próprio respeito já não é suficiente”, pois pode ser “totalmente inoperante”: “só o sentimento de responsabilidade que se lhe acrescenta” (ao procedimento técnico) pode constituir a eficácia ética do futuro – já não só a responsabilidade passiva por aquilo que foi feito, mas a que se assume de forma activa na “determinação do que há a fazer”. Um novo imperativo, que se poderia enunciar: “Age de tal modo que os efeitos da tua acção sejam compatíveis com a permanência de uma vida verdadeiramente humana sobre a terra”15. A responsabilidade explicita-se como consequência da liberdade da pessoa. Para Jonas, é o poder da técnica que implica o dever. Este autor sublinhará que aquele que detém mais poder tecnológico é o que mais deve, e também o que detém maior responsabilidade. São estes valores que, no quotidiano, dão sentido ao trabalho técnico do biólogo. Quando tem de descrever e registar o que viu no microscópio, não se pode restringir apenas à descrição dos factos produzidos pela técnica mas deve, em verdade, não só esgotar todas as perspectivas do conhecimento adquirido, como produzir um instrumento de confiança para o clínico que com ele trabalha. Neste tipo de actividade, a confiança tem uma importância fundamental na determinação, num plano do dever ou plano ético, do futuro da escolha da melhor finalidade em liberdade, responsabilidade e autonomia. Se é importante para o biólogo confiar em toda a informação fornecida pelo clínico, sobre as características e condições do casal, é igualmente importante para este confiar em absoluto na informação ou parecer do biólogo, como forma de obrigação de um agir ético de que nenhum se exclui. Tem-se assistido a uma impressionante multiplicação das perspectivas de análise ética. A intencionalidade do biólogo na PMA assenta na autonomia da consciência que tem sobre a essência do seu próprio acto – criar vida – e pelo respeito pela pessoa alheia, sem o qual a pessoa do outro é reduzida ao nível de um puro objecto material ou animado sem finalidade intrínseca. A sensibilidade para estas questões é o maior desafio ético do biólogo. Reflexões finais A questão da fertilidade/infertilidade é encarada como muito importante pela humanidade em geral e pelo casal em particular. A PMA tornou-se tão importante, que a sua procura reflecte uma significativa evolução, por exemplo na aceitação de que é natural o recurso a outras formas de assegurar a procriação, desde que permitam ultrapassar o importante problema da infertilidade. É por essa importância que, por um lado, é valorizada e, por outro, questionado o papel dos técnicos desta área. Foram as reflexões filosóficas que permitiram elevar o seu nível técnico a um nível preferencialmente ético, capaz de lhe conferir os comportamentos que visam promover e respeitar a realização do ser humano, assentando no que de mais importante tem a sua natureza e existência. A liberdade ética atribuída ao biólogo, bem como ao casal, não significa escolha arbitrária, permissividade ou relativismo moral. Significa, sim, a possibilidade de realização de todas as potencialidades da pessoa humana, no quadro de instituições justas e na relação constitutiva para e com os outros. Só consciencializando o valor que tem a dignidade e a natureza humana, bem como o poder de beneficência que deve estar sempre presente em qualquer técnica que trabalhe com o ser humano, se pode afinar a consciência moral e ética dando significado a uma liberdade responsável. Depois desta abordagem, estaremos mais sensibilizados e despertos para lidar com os vários “dilemas” das técnicas de PMA, tendo em conta que: seremos tanto mais livres quanto mais conhecermos; quanto mais conhecermos em liberdade, maior será a autonomia; quanto maior for o conhecimento, a liberdade e a autonomia maior será o poder e quanto maiores forem estas circunstâncias maior perspectivas actuais em bioética 83 NASCER E CRESCER revista do hospital de crianças maria pia ano 2006, vol XV, n.º 2 será a nossa responsabilidade no exercício da profissão e para com a sociedade que dela beneficiar. LIBERTY AND RESPONSIBILITY IN MEDICALLY ASSISTED PROCREATION ABSTRACT This article offers some reflections on the themes of freedom and responsibility. These principles must be able to support commitment to respect for life, both in the present and in future generations. It will be necessary from now on to think of these in terms of temporal evolution. This presents increasingly real and intense challenges in the ethics of life, since scientific and technical advancements have given the power and perhaps the will to interfere and manipulate the human being. Key-words: responsibility, temporal evolution, life, respect, bioethics. Nascer e Crescer 2006; 15(2): 80-84 BIBLIOGRAFIA 1. Fishel S, Edwards RG, Purdy JM, Steptoe PC, Webster J, Walter E, et al. Implantation, abortion and birth after in vitro fertilization using the natural menstrual cycle or follicular stimulation with clomiphene citrate and human menopausal gonadotropin. Journal of In Vitro Fertility and Embryo Transfer 1985; 2: 123-131. 84 2. Palermo G, Joris H, Devroey P, Van Steirteghem A. Pregnancies after intracytoplasmic injection of single spermatozoon into an oocyte. Lancet 1992; 340: 17-18. 3. Archer L. Para uma ética da reprodução humana. Brotéria 1997; 145: 218-225. 4. Leone S. 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Ética Medicina e Técnica (trad. da edição inglesa por António Fernando Cascais), Lisboa: Vega 1994. perspectivas actuais em bioética 11. Patrão-Neves. A infertilidade e o desejo de procriar: perspectiva filosófica. in A Ética e o Direito no Início da Vida Humana, (coord. Rui Nunes e Helena Melo), Coimbra: Serviço de Bioética e Ética Médica da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto e Gráfica de Coimbra 2001; 75-97. 12. Dias A. Procriação Assistida e Responsabilidade Médica, Coimbra: Coimbra Editora 1996. 13. Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida. Relatório-Parecer sobre a Reprodução Medicamente Assistida”, in Documentação, Vol. I, (1991-1993), Lisboa: Presidência do Conselho de Ministros 1993: 75-105. 14. Figueiredo HMVS. A Procriação Medicamente Assistida e as Gerações Futuras, Coimbra: Gráfica de Coimbra 2005. 15. Jonas H. Le Principe Responsabilité, Une Éthique pour la Civilisation Technologique, (trad. do original alemão por Jean Greisch), Paris: Flammarion 2000. CORRESPONDÊNCIA Centro Hospitalar de Vila Nova de Gaia Unidade de Medicina da Reprodução Praçeta Dr. Francisco Sá Carneiro 4400-129 Vila Nova de Gaia PORTUGAL Telf: 226162518 Email: hmfi[email protected] NASCER E CRESCER revista do hospital de crianças maria pia ano 2006, vol XV, n.º 2 Hiperplasia da Supra-renal Complicada de Puberdade Precoce Central – Caso Clínico Anabela Bandeira1, Helena Cardoso2, Teresa Borges3 RESUMO Algumas crianças com hiperplasia da supra-renal com instituição tardia da terapêutica e/ou má aderência ao tratamento desenvolvem puberdade precoce central por maturação precoce do eixo hipotálamo-hipófise. Os autores apresentam um caso clínico de uma criança, do sexo masculino, com 5 anos e 9 meses de idade, que é referenciada à consulta por pubarca precoce. O estudo efectuado revelou tratarse de uma hiperplasia da supra-renal, forma não clássica, pelo que iniciou tratamento com hidrocortisona e mineralocorticóide. Cerca de um ano após início da terapêutica, desencadeou puberdade precoce central, com aumento do volume testicular e aumento nos níveis de FSH e LH, pelo que foi associada à terapêutica o análogo da hormona libertadora das gonadotrofinas (GnRH). Os autores pretendem com este caso clínico alertar para a necessidade do diagnóstico atempado e orientação da puberdade precoce, uma vez que a instituição rápida de terapêutica permite uma evolução mais favorável, menor comprometimento da estatura final e menor incidência de morbilidade associada. Palavras-chave: hiperplasia da supra-renal, puberdade precoce central, análogo da hormona libertadora das gonadotrofinas. Nascer e Crescer 2006; 15(2): 85-87 __________ 1 Interna Complementar de Pediatria do HGSA EPE 2 Assistente Hospitalar Graduada de Endocrinologia do HGSA EPE 3 Assistente Hospitalar de Pediatria do HGSA EPE INTRODUÇÃO A puberdade precoce é definida pelo aparecimento de caracteres sexuais secundários antes dos 9 anos no rapaz, antes dos 7 anos na rapariga de raça caucasiana e antes dos 6 anos na rapariga de raça negra. A puberdade precoce pode ter uma causa central, dependente da secreção das gonadotrofinas, ou periférica, sem activação do eixo hipotalamo-hipofise-gonadal. A hiperplasia da supra-renal é uma das causas mais frequentes de puberdade precoce periférica, descrevendo um grupo de doenças, autossómicas recessivas, por deficiência enzimática na síntese do cortisol. Esta deficiência enzimática provoca um aumento na secreção de ACTH (hormona adrenocorticotrófica) com consequente hiperplasia da glândula supra-renal e aumento da síntese dos esteróides adrenais a montante do bloqueio enzimático. O bloqueio enzimático mais frequente ocorre a nível da 21-hidroxilase, sendo responsável por 95% dos casos, com uma incidência de 1/15.000 nados vivos, na forma clássica(1). A frequência da heterozigotia é de cerca de uma em cada 60 pessoas. A apresentação clínica é muito variável. A forma clássica caracteriza-se por virilização do recém-nascido do sexo feminino, ambiguidade sexual, hiperpigmentação dos genitais, crise perdedora de sal na 2º semana de vida ou virilização pura sem perda de sal. Nas formas não clássicas, não existe clínica ao nascimento, o hiperandrogenismo tardio causa acne severo, hirsutismo, amenorreia, excesso de peso e hiperinsulinismo. O diagnóstico é clínico e analítico. O estudo endócrino revela aumento dos androgénios da supra-renal e da progesterona. O diagnóstico da forma clássica pode ser feito através de valores de 17- hidroxiprogesterona acima dos 5.000 a 50.000 ng/dl. Nas formas não clássicas é necessária a realização da prova de ACTH, com doseamento basal e após estimulação com ACTH dos níveis de 17hidroxiprogesterona e comparação com o normograma. O aumento da renina plasmática é indicador de deficiência mineralocorticoide. O tratamento consiste no bloqueio da actividade da glândula supra-renal através do uso de hidrocortisona. A dose adequada é ajustada pelos dados objectivos do crescimento e maturação óssea e pela frenação da esteroidogenese da supra-renal (doseamento dos esteroides da supra-renal). Na presença de deficiência mineralocorticoide, o tratamento de substituição consiste na 9α fludrocortisona. Nos casos de ambiguidade sexual pode ser necessário o recurso a cirurgia correctiva. CASO CLÍNICO Trata-se de uma criança, do sexo masculino, actualmente com 7 anos e meio de idade, que foi referenciada à consulta externa de Endocrinologia Pediátrica, aos 5 anos e 9 meses, por pubarca precoce. Não apresentava antecedentes familiares relevantes; a estatura do pai era de 160 cm e da mãe era de 156 cm, com uma altura alvo 164,5 cm (percentil 5). Fruto de uma primeira gravidez mal vigiada, com serologias do terceiro trimestre normais. Parto hospitalar, distócico às 38 semanas de gestação, com Apgar 9/10. Somatometria ao nascimento com peso 2060 g, comprimento 46 cm e perímetro cefálico 32 cm compatível com atraso de crescimento intra-uterino simétrico. Apresentava uma má evolução estaturo-ponderal com peso, comprimento ciclo de pediatria inter hospitalar do norte 85 NASCER E CRESCER revista do hospital de crianças maria pia ano 2006, vol XV, n.º 2 e perímetro cefálico abaixo do percentil 5 até aos 19 meses; sem registos posteriores no Boletim de Saúde Infantil e Juvenil. Na sequência da investigação da má evolução ponderal efectuou hemograma, bioquímica alargada, estudo imunológico, rastreio da doença celíaca, exame sumário de urina, urocultura, estudo do grau de digestibilidade das fezes e teste de suor que foram normais. Foi referenciado à consulta externa, aos 5 anos e 9 meses, por aparecimento de pêlo púbico com um ano de evolução, sem noção de aparecimento de outros caracteres sexuais secundários. Ao exame físico: tensão arterial 100/54 mmHg (percentil 50); peso 21,1 kg (percentil 50-75); estatura 122 cm (percentil 95, SDS 1,44). Apresentava um estádio pubertário P 3 A 1 com testículos pré-puberes (volume testicular inferior a 4 ml) e pénis aumentado em comprimento (7,5 cm) e diâmetro. Perante um quadro clínico de puberdade precoce periférica isossexual, procedeu-se ao estudo das possíveis etiologias (Quadro I). Quadro I – Possíveis etiologias de puberdade precoce periférica isossexual masculino Hiperplasia da supra-renal congénita forma não clássica Tumor virilizante da supra-renal ou testicular Tumor secretor da hormona gonadotrófica Hipotiroidismo Testotoxicose A radiografia da mão e punho não dominantes revelou uma idade óssea de 11 anos e 6 meses, portanto uma aceleração de 6 anos. A TAC abdominal com visualização das supra-renais e a ecografia testicular foram normais. O doseamento da alfa-fetoprotéina, β HCG, cortisol, prolactina e função tiroidea foram normais. O estudo endócrino basal da suprarenal revelou aumento da 17-OH-progesterona, dihidroepiandrostenediona sulfato, ∆ 4 androstenediona, testosterona e da renina. A FSH e LH apresentavam niveis pré-puberes (Quadro II). Perante estes resultados conclui tratar-se de uma hiperplasia da supra-renal por bloqueio da 21hidroxilase. Iniciou então terapêutica com 86 hidrocortisona (18 mg/m2 superfície corporal) e 9 α-fludrocortisona (50 μg/dia). Aos 6 anos e 3 meses de idade, no seguimento clínico, apresentava tensão arterial 99/57 mmHg (percentil 50), peso 25 kg (percentil 75-90), altura 123,7 cm (percentil 92). A velocidade de crescimento era de 5,2 cm por ano (percentil 10-25). O estádio pubertário era sobreponível ao da primeira consulta. O estudo hormonal mantinha o aumento dos androgénios da supra-renal e da testosterona, ou seja, sem frenação da esteroidogenese da supra-renal. Após confirmação do cumprimento da terapêutica, foi ajustada a dose da hidrocortisona (18,7 mg/m2 superfície corporal). Posteriormente foi aumentada a dose de 9 α-fludrocortisona mantendose a situação sobreponível. Aos 6 anos e meio, a velocidade de crescimento mantinha-se (5,3 cm por ano, percentil 25), mas os testículos au- mentaram de volume (4 ml). Repetiu o estudo hormonal (Quadro III) que revelou aumento dos níveis de LH e FSH, pelo que iniciou tratamento com análogo da GnRH (3,75 mg, intramuscular, cada 28 dias) por ter desencadeado puberdade precoce central. Aos 7 anos de idade apresentava estádio pubertário P3-4 A 1, com testículos púberes (4-5 ml) e pénis aumentado de tamanho e diâmetro. O estudo hormonal nesta data revelou frenação da esteroidogenese da supra-renal (Quadro IV). Mantém seguimento na consulta externa, com vigilância clínica e analítica regular. Vai manter a terapêutica instituída, hidrocortisona e 9 α-fludrocortisona para o resto da vida; o análogo da GnRH irá manter até idade óssea de 14 anos. O estudo molecular do gene cyp 21 está em curso, para posterior aconselhamento genético. Quadro II – Resultados analíticos do estudo hormonal 5 anos e 9 meses 22,0 ⇑⇑ 153 ⇑⇑ 3,2 ⇑⇑ 3,17 0,6 142 ⇑⇑ 165 ⇑ 17-OH-progesterona (ng/ml) DEHAS (μg/dl) Δ 4 androstenediona (ng/ml) FSH (mUI/ml) LH (mUI/ml) Testosterona (ng/dl) Renina (pg/ml) Normais 0,1-0,8 14,8-22.2 0.06-0.2 0.6-2,7 0.8-2,9 2.9-15.5 Quadro III – Resultados analíticos do estudo hormonal no seguimento na consulta 11 desoxicortisol (ng/ml) 17-OH-progesterona (ng/ml) DEHAS (μg/dl) Δ 4 androstenediona (ng/ml) FSH (mUI/ml) LH (mUI/ml) Testosterona (ng/dl) 6 anos e 3 meses 3,3 45,4 ⇑⇑ 36 ⇑ 3,4 ⇑ 5,68 2,6 212 6 anos e meio 1,7 23,0 ⇑⇑ 52 ⇑ 2,8 ⇑ 5,44 ⇑ 3,4 ⇑ 113 Normais < 8.0 0,1-0,8 14,8-22.2 0.06-0.2 0.6-2,7 0.8-2,9 2.9-15.5 Quadro IV – Resultados analíticos após instituição do análogo GnRH ciclo de pediatria inter hospitalar do norte 17-OH-progest. ng/ml DEHAS (μg/dl) Δ 4 androstenediona (ng/ml) FSH ( mUI/ml) LH (mUI/ml) Testosterona (ng/dl) 7 anos 2,8 < 15 0 0,26 0,6 <8 Normais 0,1-0,8 14,8-22.2 0.06-0.2 0.6-2,7 0.8-2,9 2.9-15.5 NASCER E CRESCER revista do hospital de crianças maria pia ano 2006, vol XV, n.º 2 DISCUSSÃO Algumas crianças com condições virilizantes presentes por muitos anos sem instituição de terapêutica apropriada ou quando existe um má adesão à terapêutica desenvolvem uma puberdade precoce central por maturação precoce do eixo hipotálamo-hipófise. Estas situações conduzem a um hiperandrogenismo crónico ou intermitente que está associado a aceleração da maturidade óssea e comprometimento da altura final. O mecanismo exacto através do qual se desenvolve a puberdade precoce central é desconhecido. Alguns autores sugerem que níveis cronicamente elevados de esteroides exercem uma acção directa sobre a maturação do eixo hipotálamo-hipófise; ou que a idade óssea avançada indicia um grau de maturação somática que desencadeia uma puberdade fisiológica ou que a descida rápida dos esteroides devido ao tratamento com corticoides pode suprimir a inibição exercida pelas gonadotrofinas sobre o eixo hipotálamo-hipófise(2). O tratamento da puberdade precoce central com análogo da GnRH é eficaz e seguro. Este análogo, estimulando de forma permanente a produção de gonadrotrofinas induz a dessensibilização da hipófise às hormonas hipotalâmicas. Estudos demonstram que a utilização do análogo da GnRH conduz a um atraso nas manifestações de puberdade, uma desaceleração da velocidade de crescimento e uma aproximação da altura-alvo(3). O enorme atraso no diagnóstico de puberdade precoce nesta criança pode ter sido devido ao não reconhecimento da aceleração do crescimento, pela falta de registos a partir dos 19 meses de idade. O aumento do tamanho do pénis não foi valorizado e só o aparecimento de pêlos púbicos conduziu à referência para uma consulta de especialidade. A grande discrepância entre a idade cronológica e a idade óssea anteciparam logo de início um mau prognóstico em termos de comprometimento da estatura final. Posteriormente, a dificuldade na frenação da esteroidogenese da supra-renal, após exclusão do não cumprimento da terapêutica e ajuste sucessivo das doses de hidrocortisona, com manutenção da aceleração do crescimento e aumento do volume testicular, levou à suspeita de complicação da hiperplasia da supra-renal com puberdade precoce central. Os autores pretendem alertar para a necessidade de diagnóstico precoce das situações de puberdade precoce por hiperplasia da supra-renal de início tardio porque, a instituição precoce da terapêutica e a boa aderência ao tratamento, permitem uma evolução mais favorável, tanto a nível psicológico como na altura final prevista e menor incidência de morbilidade associada. 2. 3. 4. CONGENITAL ADRENAL HYPERPLASIA COMPLICATED BY CENTRAL PRECOCIOUS PUBERTY – CLINICAL CASE ABSTRACT Some children with congenital adrenal hyperplasia, with late initiation of corticosteroid treatment and/or poor compliance, develop central precocious puberty because of early maturation of the hypothalamic-pituitary-gonadal axis. The authors report a case of a boy aged 5 years and 9 months, referred to Endocrinologist Consultation because of precocious puberty. The initial study established a non-classic form of adrenal hyperplasia, and started treatment with hydrocortisone and mineralo-corticoid. After one year of follow-up he developed true precocious puberty, with rise in testicular size and FSH and LH levels. He started treatment with gonadotropin-releasing hormone agonist (GnRHa). The authors focus the importance of early diagnosis of precocious puberty and the need of rapid institution of treatment if necessary, to improve final height and prevent morbidity. Key-words: congenital adrenal hyperplasia, central precocious puberty, gonadotropin-releasing hormone analog. 5. 6. 7. 8. in children with congenital adrenal hyperplasia. Growth Hormone & IGF Research 2005; 15: S 26-S 30 Congenital adrenal hyperplasia complicated by central precocious puberty: linear growth during infancy and treatment with gonadotropin-releasing hormone analog. Metabolism 1997; 46 (5): 513-517 Muirhead S, Sellers E A, Guyda H. Indicators of adult height outcome in classical 21-hydroxilase deficiency congenital adrenal hyperplasia. J Pe diatr 2002; 141: 247-52 Lin-Su K, Vogiatzi M, Marshall I et al. Treatment with growth hormone and luteinizing hormone releasing hormone analog improves final adult height in children with congenital adrenal hyperplasia. J Clin Endocrinol Metab 2005; 90 (6): 3318-25, Manoli I, Kanaka-Gantenbein M, Ch, Voutetakis A, Maniati-Christidi M, Dacou-Voutetakis C. 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A review of the effects of therapy on growth and bone mineralization Anabela Bandeira Serviço de Pediatria – Hospital Geral de Santo António, EPE Largo do Prof. Abel Salazar, 4099-001 Porto Telefone: 222 077 500 ciclo de pediatria inter hospitalar do norte 87 NASCER E CRESCER revista do hospital de crianças maria pia ano 2006, vol XV, n.º 2 Osteomielite Aguda Neonatal - Localização Rara Cecília Martins1, Raquel Guedes1, Nise Miranda2, Rui Pinto2, Conceição Quintas2 RESUMO A osteomielite aguda é uma situação rara no período neonatal. Esta infecção óssea é mais comum nos ossos longos, como o fémur e o úmero. Quanto à etiologia, o Staphylococcus aureus é o agente mais habitualmente implicado. Clinicamente manifesta-se sob a forma aguda de sépsis ou sob a forma insidiosa. O tratamento é normalmente conservador. Os autores apresentam o caso clínico de um recém-nascido (RN), fruto de gestação tripla, cujo parto ocorreu às trinta e uma semanas gestacionais e a quem é diagnosticado osteomielite aguda do ilíaco direito a Staphylococcus aureus. O elevado índice de suspeição para o diagnóstico é essencial, porque o início precoce de antibioterapia reduz a possibilidade de complicações e de lesões sequelares graves. Palavras-chave: recém-nascido, osteomielite aguda, ilíaco, Staphylococcus aureus Nascer e Crescer 2006; 15(2): 88-90 forma insidiosa, com manifestações mais frustres, como irritabilidade, diminuição da mobilidade do membro afectado, sabendo que em cerca de 50% dos casos não há história de febre(3). Os agentes mais frequentemente envolvidos neste grupo etário são o Staphylococcus aureus, o Streptococcus beta-hemolítico do grupo B e a E. coli(3,4,5). As metáfises dos ossos longos são habitualmente os mais afectados. O atingimento do ilíaco mais raro (1). Um elevado índice de suspeição para o seu diagnóstico atempado é essencial, pois o início imediato de antibioterapia reduz a possibilidade de lesão permanente. O prognóstico é variável, dependendo essencialmente destes dois pressupostos. CASO CLÍNICO Os autores apresentam o caso clínico de um recém-nascido (RN), sexo masculino, raça caucasiana, fruto de uma gestação tripla, vigiada, complicada de Ameaça de Trabalho de Parto Pré-termo (ATPPT) às 31 semanas e dois dias que culminou numa cesariana após ciclo completo de betametasona com serologias do terceiro trimestre negativas e as ecografias fetais sem alterações. O RN nasceu bem e foi internado na Unidade de Cuidados Intensivos Neonatais (UCIN) por prematuridade. Na admissão, apresentava antropometria adequada à idade gestacional, sem dismorfias aparentes, encontrando-se em ventilação espontânea e hemodinamicamente estável. O restante exame objectivo era irrelevante. O rastreio séptico nos dois primeiros dias (hemograma e PCR) foi normal e iniciou alimentação entérica ao segundo dia . Esteve clinicamente bem até ao quinto dia , altura em que iniciou apneias, com necessidade de oxigenoterapia suplementar e agravamento do estado geral, hiporreactividade, má perfusão periférica e distensão abdominal. Os exames subsidiários demostraram: trombocitopenia, hiperglicemia e Proteína C Reactiva (PCR) de 8,53 mg/ dl. A radiografia abdominal simples revelou distensão abdominal moderada (Fig. 1). Dado o quadro de sépsis tardia iniciou antibioterapia empírica com vancomicina INTRODUÇÃO A osteomielite aguda é a infecção do tecido ósseo. Na criança resulta, na maioria dos casos da disseminação hematogénea de uma infecção localizada noutra área(1,2). É frequente a história de traumatismo(1). É uma situação rara no período neonatal e, pode manifestar-se sob a forma inespecífica de sépsis , ou de __________ 1 Internas complementares do Serviço de Pediatria do CHVNG 2 Assistentes Hospitalares do Serviço de Neonatologia do CHVNG 88 ciclo de pediatria inter hospitalar do norte Fig. 1 - Telerradiografia do abdómen e bacia em D5 NASCER E CRESCER revista do hospital de crianças maria pia ano 2006, vol XV, n.º 2 e amicacina. Necessitou de transfusão de plaquetas ao 6º e 8º dia , por agravamento da trombocitopenia. Na hemocultura foi isolado Staphyloccocus aureus meticilino-sensível e o exame microbiológico do Líquido Cefalo-raquidiano (LCR) foi estéril. Ao décimo dia de vida , apesar da melhoria franca do estado geral, iniciou edemas mais localizados ao nível dos membros inferiores e região pélvica (Fig. 2). Foi efectuada transfusão de albumina por hipoalbuminémia. A radiografia da bacia e membros inferiores mostrou aumento da densidade das partes moles em especial ao nível das coxas e a avaliação dos ossos ilíacos foi muito prejudicada pela presença constante de aerocolia. Entre o 10º e 20º dia , surgiu agravamento dos edemas ao nível da região pélvica com posterior generalização e desconforto à manipulação dos membros inferiores. O rastreio séptico nesta altura foi negativo, apesar de uma Velocidade de Sedimentação (VS) de 22mm. Por se tratar de uma sépsis a S. aureus, e na tentativa de investigar focos de infecção osteoarticular, realizou cintilograma ósseo ao vigéssimo dia do internamento que mostrou foco de hiperfixação ao nível do ilíaco direito compatível com osteomielite (Fig. 3). Por manter edemas pélvicos marcados, apesar da terapêutica antibiótica e no sentido de excluir complicações da infecção local, foi pedida Ressonância Magnética Nuclear (RMN) Fig. 2 - Edemas dos membros inferiores pélvica que confirmou osteomielite do ilíaco direito com atingimento sacro-ilíaco, sem outras complicações (Fig. 4). Após completar 14 dias de antibioterapia de largo espectro, iniciou terapêutica com flucloxacilina que manteve por 21 dias. Evolução para a resolução dos edemas e do desconforto à manipulação dos membros inferiores. Analiticamente, a PCR negativou a partir do 22º dia e ao 45 º dia , data da alta, apresentava VS de 5mm. Foi orientado para as consultas de Neonatologia e Ortopedia Pediátrica. Actualmente aos quatro meses, o lactente encontra-se assintomático, sem qualquer limitação dos movimentos da anca. Radiologicamente, apresenta hiperdensidade discreta ao nível do ilíaco direito, bem como irregularidade do bordo do acetábulo homolateral. DISCUSSÃO A osteomielite aguda é rara no período neonatal, variando a sua incidência entre 1/5000 a 1/20000 (3,5). Atinge, mais frequentemente, as metáfises dos ossos longos (tíbia, fémur e úmero), sendo o atingimento pélvico raro, representando até 6,8 % dos casos de osteomielite na idade pediátrica(1). Em 40% dos casos é multifocal (5). A osteomielite é mais frequente no RN pré-termo, pelas suas características de imaturidade imunológica e pelas técnicas invasivas a que está mais vezes sujeito (5). Relativamente à forma de apresentação, divide-se a classificação em forma benigna, quando as manifestações sistémicas estão ausentes, sendo as manifestações locais mais exuberantes e a forma maligna, em que a sépsis precede o aparecimento dos sinais locais (7). A infecção pode propagar-se por disseminação hematogénea, por inoculação directa, por infecção transplacentar ou após traumatismo local. O Staphylococcus aureus, o Streptococcus do grupo B e as bactérias gram negativas são os microorganismos mais frequentemente envolvidos no período neonatal (3,4,5), sendo o primeiro, o mais frequentemente envolvido no caso de infecção nosocomial. O diagnóstico é essencialmente clínico, apoiando-se no estudo analítico e na imagiologia (6,8). Os parâmetros analíticos mais importantes, de diagnóstico e de monitorização terapêutica são a PCR e a VS. A hemocultura permite identificar o microorganismo em cerca de 50 a 60% dos casos (3,9) e o exame bacteriológico de pus aumenta a sensibilidade. Sob o ponto de vista imagiológico, a radiografia é pouco útil nos primeiros dias, uma vez que as alterações radiológicas surgem por volta do 7º-14º dia (3,6). O cintilograma ósseo no período neonatal tem uma sensibilidade de 87% (10) e comparativamente à radiografia, revela mais precocemente alterações. Os exames auxiliares mais sensíveis no período neonatal são a TAC e a RMN, sendo esta mais útil no Fig. 3 - Cintilograma ósseo: osteomielite do ilíaco direito Fig. 4 - RMN pélvica: osteomielite do ilíaco direito com atingimento sacro-ilíaco ciclo de pediatria inter hospitalar do norte 89 NASCER E CRESCER revista do hospital de crianças maria pia ano 2006, vol XV, n.º 2 diagnóstico de complicações locais (6). A ecografia tem um papel mais limitado, excepto no caso de haver artrite séptica concomitante, permitindo detecção de derrame articular. Os diagnósticos diferenciais fazemse com a artrite séptica, celulite, tromboflebite, não esquecendo também a neoplasia. A terapêutica inicial deve ser empírica e de largo espectro, posteriormente após conhecimento do agente envolvido, deve ser o mais dirigido possível. A duração do tratamento depende da evolução clínica e analítica, mas deverá ser prolongada por três a seis semanas(1,3). A drenagem cirúrgica está indicada nos casos em que há falência da terapêutica médica ou em caso de complicação, nomeadamente formação de abcesso ou artrite séptica da anca. O prognóstico é favorável quando a antibioterapia é iniciada precocemente. O seguimento a longo prazo é importante para detectar e tratar precocemente sequelas que possam surgir (7). No nosso caso, a prematuridade foi um factor predisponente importante e que prejudicou a rapidez do diagnóstico. A presença de edemas, a diminuição da mobilidade do membro inferior direito e principalmente o desconforto à manipulação fizeram prever o possível envolvimento osteoarticular, associado ao conhecimento do agente envolvido. As radiografias foram sempre de difícil visualização no que diz respeito aos ossos ilíacos pela sobreposição de gás intestinal, pelo que não foram úteis. O cintilograma foi essencial para o diagnóstico, bem como a RMN que mostraram envolvimento do ilíaco. O tratamento antibiótico da sépsis nosocomial foi iniciado de acordo com o protocolo do Serviço. O isolamento do agente responsável permitiu a continuação dirigida com flucloxacilina. Apesar de tudo, o atingimento único do ilíaco direito e a terapêutica atempada fazem prever um bom prognóstico. 90 CONCLUSÃO Em presença de sépsis a S. aureus no período neonatal, é mandatória a investigação de focos de infecção osteoarticular. O início precoce, bem como a duração adequada do tratamento são fundamentais para prevenir sequelas. A evolução clínica favorável não dispensa o seguimento da criança a longo prazo, de modo a identificar eventuais sequelas tardias, evidentes apenas com a maturação esquelética. NEWBORN OSTEOMYELITIS – A RARE LOCALISATION ABSTRACT Acute osteomyelitis is a rare situation in the neonatal period. This kind of infection is common in long bones, like femur and humerus; Staphylococcus aureus is the most frequent agent. Clinical manifestations vary from acute onset with sepsis to indolent course. Treatment is conservative. The authors present the case of a preterm newborn of 31 weeks of gestation (triple pregnancy), who developed acute osteomyelitis of the right iliac due to Staphylococcus aureus. A great index of suspicion is needed to establish the diagnosis in order to begin precociously the treatment, the only way to prevent lifelong complications. Key-words: newborn, acute osteomyelitis, iliac, Staphylococcus aureus 2. Green NE, Edwards K. Bone and joint infection in children. Orthop Clin North Am, 1987; 18:555-75. 3. Montijano A M, Navarro Gómez M L, Hernández-Sampelayo Matos T. Osteomielitis. Protocolos de Anales de Pediatria. 25: 169-75. 4. Richard M. Lampe. Osteomielitis y artritis supurativa. Nelson Textbook of Pediatrics, 17ª Edicion, 2004; 674: 2297-2302. 5. Isaacs D, Moxon R. Handbook of Neonatal Infections: a practical guideline, Osteomyelitis and septic arthritis, 1999: 177-97. 6. 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Cecília de Sousa Pinto Martins Travessa da Rasa, 161 Apartado 83 4400-275 Vila Nova de Gaia Tlm: 918 532 812 [email protected] ciclo de pediatria inter hospitalar do norte NASCER E CRESCER revista do hospital de crianças maria pia ano 2006, vol XV, n.º 2 Pseudo-obstrução Intestinal – Caso Clínico Carla Teixeira1, Rosa Lima1, Helena Ferreira1, Monica Recamen2, Esmeralda Martins1,Ana Ramos1, Luísa Oliveira2, Herculano Rocha1 RESUMO A Pseudo-obstrução intestinal é uma doença rara, causadora de grande morbilidade, definida pela presença de sinais e sintomas de oclusão intestinal, na ausência de obstrução mecânica. O prognóstico é muito variável, estando em parte relacionado com a doença subjacente. Os autores apresentam um caso de um lactente com pseudo-obstrução intestinal crónica de etiologia não esclarecida, com melhoria lenta mas progressiva da sintomatologia após realização de ileostomia e instituição de medicação procinética intestinal, tendo necessitado de nutrição parentérica total. Salienta-se deste caso a raridade da patologia, a dificuldade do seu diagnóstico, e a não existência de terapêuticas definidas como curativas, usando-se muitas vezes apenas tratamento conservador, com o intuito de diminuir a sintomatologia e promover o trânsito intestinal. Nascer e Crescer 2006; 15(2): 91-96 INTRODUÇÃO A Pseudo-obstrução Intestinal Crónica (POIC) é uma doença rara e debilitante, caracterizada por episódios repetidos ou sinais e sintomas contínuos de obstrução intestinal, na ausência de uma lesão anatómica causadora de obstrução mecânica(1,2,3). O intestino delgado está sempre envolvido, podendo também estar afectados o esófago, estômago e cólon(1,2). __________ 1 2 Serviço de Pediatria Médica do HCMP Serviço de Cirurgia Pediátrica do HCMP Os sintomas dependem do local de envolvimento do tracto gastrointestinal e incluem náuseas, anorexia, disfagia, vómitos, distensão, dor abdominal, e obstipação. Podem surgir outros sintomas relacionados com complicações secundárias tais como diarreia e/ou sepsis por crescimento bacteriano, ou por envolvimento de outros sistemas do organismo, como por exemplo o tracto urinário(1,2,3). A POIC representa um amplo espectro de condições patológicas, que são consideradas como primárias e secundárias. Dentro das primárias há a realçar as miopatias viscerais e neuropatias viscerais (incluindo a doença de Hirschsprung). As causas secundárias são inúmeras e incluem, entre outras, atingimento do sistema nervoso após infecções víricas, nomeadamente por Citomegalovírus (CMV), vírus de Epstein-Barr (EBV), Herpes Zoster ou Rotavírus; doenças endócrinas, como o hipotiroidismo, hipoparatiroidismo ou feocromocitoma; doenças metabólicas (uremia, citopatia mitocondrial ou alterações hidroelectrolíticas graves – K+, Ca2+, Mg2+) ou outras doenças como a doença de Kawasaki, gastroenterite eosinofílica, peritonite tuberculosa, doença de Crohn, e vários fármacos incluindo antidepressivos, ansiolíticos ou opiáceos. Quando a doença não está incluída num síndrome genético conhecido, se foram excluídas as causas secundárias e o exame anatomo-patológico do intestino é normal, considera-se que a POIC é idiopática(1,4). É considerada crónica quando é congénita e persiste durante os dois primeiros meses de vida, ou é adquirida e persiste por um período superior a seis meses(1,3). O diagnóstico é baseado na presença de sintomas compatíveis com oclusão intestinal na ausência de obstrução mecânica(1,2,3,4,5). Radiografias (Rx) abdominais simples demonstram a presença de distensão de ansas muito marcada e níveis hidroaéreos no delgado. Estudos contrastados demonstram passagem lenta do produto. Outros estudos (nomeadamente hemograma, electrólitos, pesquisa de drogas, entre outros) são efectuados para excluir causas secundárias. Deve ser sempre efectuado o tratamento das doenças associadas, caso existam. O tratamento passa em primeiro lugar pela optimização da nutrição, podendo eventualmente ser necessária nutrição parentérica. Neste caso devem ser administradas pelo menos pequenas quantidades de alimentação entérica para acção trófica intestinal e para prevenção de colestase hepática. A proliferação bacteriana é uma complicação frequente, pelo que está indicado o tratamento intermitente com antibióticos para evitar complicações hepatobiliares e sépticas. Pode ser efectuado um teste com terapêutica farmacológica com procinéticos intestinais (cisapride, eritromicina, metoclopramida e domperidona) e octeotrídeo. Para alívio sintomático deverá ser efectuada sondagem nasogástrica e aspiração. Quando a distensão é crónica ou as exacerbações muito frequentes pode ser ponderada uma enterostomia. A enterectomia subtotal está indicada para os casos em que ocorrem episódios sépticos. Por último, o transplante intestinal pode ser ponderado em caso de doença grave com dilatação intestinal proeminente e episódios sépticos recorrentes, ou em caso de complicações da nutrição parentérica como a falência hepática ou impossibilidade de obter acesso venoso central(1,2,6-11). O prognóstico é variável e depende da etiologia da POIC. Nos casos em ciclo de pediatria inter hospitalar do norte 91 NASCER E CRESCER revista do hospital de crianças maria pia ano 2006, vol XV, n.º 2 que a doença é congénita, verifica-se que existe melhoria ao longo do tempo. Quando a doença se apresenta na infância tardia ou na idade adulta, o curso é mais difícil de estabelecer, podendo existir tanto a melhoria como o agravamento dos sintomas(1,4,9). CASO CLÍNICO Os autores descrevem um caso de um lactente do sexo masculino, com POI congénita idiopática. Trata-se de um lactente do sexo masculino transferido aos 16 dias de vida do Hospital da área de residência para o Hospital Maria Pia por quadro de suboclusão intestinal. Os pais não consanguíneos e os antecedentes familiares eram irrelevantes. Primeira gestação de termo, vigiada, sem alterações serológicas e sem intercorrências. O parto foi distócico (ocorreu por cesariana por incompatibilidade feto-placentária), com Índice de Apgar 9/10 (1º e 5º minutos, respectivamente), somatometria ao nascimento adequada à idade gestacional. Eliminou mecónio nas primeiras 24h de vida. Iniciou alimentação com aleitamento materno exclusivo, com recuperação do peso neonatal nas primeiras duas semanas. Aos 15 dias de vida foi avaliado por Pediatra Assistente tendo sido constatada a presença de distensão abdominal marcada já observada pela mãe nos dias precedentes. Não existiam alterações dos hábitos alimentares. O trânsito intestinal era normal com uma dejecção após cada refeição. A mãe referia ter havido um vómito alimentar por dia nos três dias precedentes. Face ao quadro apresentado foi enviado para o Hospital da área de residência onde foi colocado em pausa alimentar com sonda nasogástrica (SNG) em drenagem livre durante cerca de 24 horas. No entanto, mantinha distensão abdominal marcada, pelo que foi transferido para o Serviço de Cirurgia Pediátrica do nosso hospital. À entrada apresentava bom estado geral e vitalidade normal. Estava apirético e sem sinais de dificuldade respiratória. O abdómen era marcadamente distendido e timpanizado. O restante exame era irrelevante. 92 Manteve pausa alimentar, tendo reiniciado alimentação com leite materno no segundo dia (D2) de internamento, com boa tolerância. Continuava com distensão abdominal embora mantivesse trânsito intestinal diário. Em D6 foi observado um rash cutâneo que apareceu um dia após uma primeira refeição isolada com leite adaptado, tendo sido colocada a hipótese de existir uma intolerância às proteínas do leite de vaca. Dado manter a distensão abdominal marcada foram efectuados exames na tentativa de esclarecer a etiologia. O hemograma, ionograma, K+, Ca2+, Mg2+, ureia, creatinina, sedimento urinário e urina tipo 2 eram normais, e a PCR negativa. O Rx abdominal simples de pé (Fig.1) mostrou distensão marcada das ansas do delgado e cólon, sem edema da parede, sem áreas de pneumatose, com ar homogeneamente distribuído até ao recto, sem níveis hidroaéreos. Foi efectuado um clister opaco, que apresentava um cólon rodado normalmente, salientandose apenas a distensão aérea do delgado. O trânsito do delgado (Fig.2) evidenciou ciclo de pediatria inter hospitalar do norte a presença de dilatação de todas as ansas intestinais e atraso na progressão do contraste, pelo que foi colocada a hipótese de se tratar de uma forma rara de malrotação intestinal. Na sequência desse achado foi efectuada uma laparotomia exploradora em D7, que não revelou malformações anatómicas ou zonas de estreitamento, mas dilatação global de todo o tubo digestivo. Reiniciou alimentação entérica em D3 pós-operatório, apresentando vómitos frequentes e diminuição do trânsito intestinal, mantendo a distensão abdominal marcada, pelo que foi repetido no dia seguinte o trânsito do delgado (Fig.3). Observou-se novamente distensão do duodeno e outras ansas intestinais e atraso na progressão do contraste, mas sem imagens compatíveis com obstáculo. Entretanto fez quadro clínico de sepsis com rastreio analítico sugestivo e alterações electrolíticas (hipocalcemia e hipocaliemia) que foram corrigidas, tendo iniciado antibioterapia com flucloxacilina e gentamicina, com melhoria posterior. Foi isolado S. aureus em hemocultura. Figura 1 – Rx abdominal simples de pé NASCER E CRESCER revista do hospital de crianças maria pia ano 2006, vol XV, n.º 2 Por manter o quadro de vómitos, diminuição do trânsito e distensão abdominal foi repetido Rx abdominal simples de pé (efectuado 5 dias após o trânsito do delgado), que evidenciava a distensão marcada de várias ansas intestinais, com níveis hidroaéreos, apresentando retenção de contraste (Fig.4). Face ao quadro aparente de oclusão intestinal, foi submetido a nova laparotomia 11 dias após a primeira, com realização de ileostomia, tendo sido observada distensão marca- 0h da de todo o intestino delgado e cólon. As biopsias de íleon, cólon ascendente, transverso e sigmóide, colhidas durante a cirurgia para microscopia convencional e electrónica bem como doseamentos enzimáticos, permitiram excluir a doença neuronal intestinal. Iniciou nutrição parentérica desde D2 pós-operatório, que manteve durante 2 meses, e alimentação entérica semi-elementar desde D3, inicialmente contínua, tendo sido aumentada progressivamente de acordo com a tolerância. Em D5 iniciou eritromicina como pró-cinético intestinal. Embora mantendo a distensão abdominal não apresentava vómitos e manteve trânsito intestinal regular até D12, altura em que fez novo quadro séptico (febre, gemido, vómitos e rastreio positivo) por Enterobacter aerogenes, tendo melhorado após início da antibioterapia instituída (amicacina, metronidazol, imipenem). Em D15 iniciou octreotídeo. Em D28 fez novo episódio séptico tendo iniciado ceftazidima 1:45h 4:45h Figura 2 – Trânsito do delgado 0:03h 0:30h Figura 3 – Trânsito do delgado ciclo de pediatria inter hospitalar do norte 93 NASCER E CRESCER revista do hospital de crianças maria pia ano 2006, vol XV, n.º 2 e amicacina. Foi isolada K. pneumoniae. Observou-se aumento progressivo da tolerância alimentar posteriormente. Todos os exames entretanto efectuados na tentativa de esclarecer a etiologia, nomeadamente doseamento da tripsina imuorreactiva (TIR), função tiroideia, estudo metabólico, ecografia abdominal e renopélvica e imunoglobulinas, foram normais. A serologia para CMV e o RAST para proteínas do leite de vaca foram negativos. Face ao quadro prolongado apresentado pelo lactente foi colocado o diagnóstico de Pseudo-obstrução intestinal crónica. Teve alta hospitalar aos 3 meses e meio, a alimentar-se exclusivamente por via oral com boa tolerância, mantendo trânsito intestinal regular através da ileostomia. O abdómen mantinha distensão ligeira. Apresentava evolução ponderal favorável. Foi medicado para ambulatório com eritromicina suspensão oral (3 mg/ kg/dose 6/6h) e octreotídeo subcutâneo (6 mcg/kg/dose 12/12h). Suspendeu octreotídeo aos 4 meses e eritromicina aos 5 meses e meio, não apresentando alterações gastrointestinais. Aos 6 meses foram efectuadas biópsias em cunha da ileostomia (topo distal) e biópsia rectal. O exame histológico com estudo histoquímico enzimático e microscopia electrónica foram normais. Face à cronologia e ausência de etiologia conhecida da pseudo-obstrução, esta foi considerada como crónica idiopática. Manteve boa evolução estaturo-ponderal. Foi programado novo internamento aos 7 meses para encerramento da ileostomia. O pós-operatório imediato decorreu sem intercorrências, tendo reiniciado alimentação entérica em D5 pós-operatório. Em D10 desenvolveu episódio de sepsis sendo acompanhado por paragem de emissão de fezes e distensão abdominal progressiva, que melhorou após início de antibioterapia de largo espectro (vancomicina, metronidazol e ceftazidima). Reiniciou eritromicina por via oral em D15 Figura 4 – Rx abdominal simples de pé 94 ciclo de pediatria inter hospitalar do norte e octreotídeo em D17 como coadjuvantes da motilidade intestinal. O internamento foi complicado por novo episódio de sepsis (D38 de internamento), não tendo tido outras intercorrências. Teve alta clinicamente bem, a alimentar-se por via oral na totalidade e medicado com eritromicina (3 mg/kg/dose). DISCUSSÃO A Pseudo-obstrução intestinal crónica é uma doença rara e causadora de grande morbilidade, na qual a motilidade intestinal está afectada. É muito importante ter um elevado índice de suspeição para estabelecer o diagnóstico, de modo a evitar laparotomias repetidas, embora inevitáveis, à procura de uma possível causa anatómica da obstrução intestinal(6,9,10,11). O tratamento da pseudo-obstrução intestinal crónica é normalmente paliativo. O objectivo é controlar os sintomas, promovendo o suporte nutricional para um adequado crescimento e desenvolvimento, aumentar a motilidade intestinal e prevenir as complicações. Em relação ao tratamento farmacológico existem várias opções terapêuticas possíveis, todas tendo em vista a promoção da motilidade intestinal. Demonstrou-se que o uso sequencial de eritromicina e octreotídeo para promoção da motilidade intestinal foi eficaz em adultos com POIC secundária a esclerodermia na diminuição das náuseas e dor abdominal. Um estudo posterior em crianças demonstrou a sua eficácia neste grupo etário(8). A eritromicina é um agonista da motilina que induz a fase 3 do complexo motor migratório com origem no antro(4,6,8). O octreotídeo, um análogo da somatostatina de semi-vida prolongada, inibe a motilidade do antro e induz fase 3 no duodeno. Este efeito inibitório sobre o antro desaparece quando é administrado após a eritromicina(4,7,8). Assim, a terapêutica combinada com eritromicina e octreotídeo, estimula a contracção em locais diferentes do tracto gastrointestinal, respectivamente do antro e do duodeno, sendo esta a base para o seu uso no tratamento agudo e crónico de doenças da motilidade intestinal(1,8). NASCER E CRESCER revista do hospital de crianças maria pia ano 2006, vol XV, n.º 2 Os quadros sépticos que o lactente descrito apresentou durante o internamento, estiveram relacionados com um agravamento em termos de normal funcionamento do tracto gastrointestinal, acompanhando-se de reaparecimento/ agravamento dos sinais apresentados, como a distensão abdominal, trânsito intestinal diminuído e diminuição da tolerância alimentar. Com o início de antibioterapia observou-se o desaparecimento do quadro séptico e simultaneamente melhoria progressiva das anomalias gastrointestinais descritas acima. Há autores que defendem a instituição de antibioterapia intermitente para prevenir a translocação bacteriana e as complicações sépticas que daí possam advir(1,3). O prognóstico em relação ao caso de Pseudo-obstrução intestinal congénita idiopática apresentado está longe de estar definido. A doença apesar de ter um curso imprevisível é relatada por vários autores como sendo mais grave no período mais precoce da vida, diminuindo de gravidade desde essa altura ou atingindo um planalto nos primeiros meses de vida. De qualquer modo é necessário um acompanhamento estreito por um período de tempo que se prevê prolongado(1,4,9). Em conclusão, a Pseudo-obstrução intestinal é um diagnóstico colocado por exclusão. Deve ser considerado na presença de uma criança com um quadro clínico de obstrução intestinal em que os meios radiológicos, incluindo exames com contraste, não identificaram obstrução mecânica. Promove-se assim uma melhor qualidade de vida, quer pela evicção de manobras invasivas inúteis e causadoras de sofrimento, quer pela instituição de um tratamento mais precoce, evitando assim futuras complicações. CHRONIC INTESTINAL PSEUDO-OBSTRUCTION – REPORT OF ONE CASE ABSTRACT Chronic Intestinal Pseudo-Obstruction is a rare, disabling disorder characterized by signs and symptoms resembling a physical obstruction to luminal flow, without a true mechanical obstruction. Prognosis is variable, in part related to the underlying disease, if identified. The authors present a case of an infant with chronic intestinal pseudoobstruction of unknown aetiology, who needed total parenteral nutrition, and showed slow but consistent improvement of symptoms after enterostomy and prokinetic medical treatment. We emphasize the rarity of the disease, the difficulty of the diagnosis, and the absence of well defined and effective therapies. It is often used conservative treatment, to improve symptoms and promote intestinal motility. Nascer e Crescer 2006; 15(2): 91-96 BIBLIOGRAFIA 1. Colin DR, Hyman PE, Altschuler SM, Christensen J, Colletti RB, Cucchiara S, et al. Diagnosis and Treatment of Chronic Intestinal Pseudo-Obstruction in Children: Report of Consensus Workshop. J Pediatr Gastroenterol Nutr 1997; 24:102-112 2. Wyllie R. Chronic intestinal pseudoobstruction. In: Behrman RE, Kliegman RM, Jenson HB, eds. Nelson Textbook of Pediatrics. 17th Edition, Philadelphia: WB Saunders Company 2003; 1138-1139 3. Almeida PS, Penna FJ. Chronic Intestinal Pseudo-obstruction in Childhood. International Pediatrics 2000; 15(2):83-90 4. Connor FL, DiLorenzo C. Chronic intestinal Pseudo-obstruction: Assessment and Management. Gastroenterology 2006; 130:S29-S36 5. Dalgiç B, Sart S, Dogan I, Ünal S. Chronic intestinal Pseudoobstruction: Report of four pediatric patients. Turk J Gastroenterol 2005; 16(2):93-97 6. Emmanuel AV, Shand, Kamm, MA. Erythromycin for the Treatment of Chronic Intestinal Pseudo-Obstruction: Description of Six Cases With a Positive Response. Aliment Pharmacol & Ther 2004; 19(6):687-694 7. DiLorenzo C, Lucanto C, Flores AF, Idries S, Hyman PE. Effect of Octreotide on Gastrointestinal Motility in Children with Funcional Gastrointestinal Symptoms. J Pediatr Gastroenterol Nutr 1998; 27(5):508-512 8. DiLorenzo C, Lucanto C, Flores AF, Idries S, Hyman PE. Effect of Sequencial Erythromycin and Octreotide on Antroduodenal Manometry. J Pediatr Gastroenterol Nutr 1999; 29(3):293296 9. Kim HY, Kim JH, Jung SE, Lee SC, Park KW, Kim WK. Surgical treatment and prognosis of chronic intestinal pseudo-obstruction in children. J Pediatr Surg 2005; 40:1753-1759 10. DiLorenzo C. Surgery in Intestinal Pseudo-Obstruction: Pro. J Pediatr Gastroenterol Nutr 2005; 41:S64-S65 11. Goulet O, Sauvat F, Jan D. Surgery for Pediatric Patients With Chronic Intestinal Pseudo-Obstruction Syndrome. J Pediatr Gastroenterol Nutr 2005; 41:S66-S68 ciclo de pediatria inter hospitalar do norte 95 NASCER E CRESCER revista do hospital de crianças maria pia ano 2006, vol XV, n.º 2 Caso Endoscópico Fernando Pereira1 A situação que hoje apresentamos refere-se a uma criança de 12 anos, sexo feminino com quadro de paralisia cerebral, observada há já alguns anos na consulta de Gastroenterologia por quadro dificuldade alimentar, refluxo gastro-esofágico e obstipação crónica. Há cerca de 2 anos a doente foi submetida a cirurgia anti-refluxo e correcção de hérnia do hiato esofágico associada a colocação de gastrostomia para alimentação e tera- pêutica. Desde então tem passado bem do seu refluxo, alimenta-se adequadamente, mas foi mantendo anemia ligeira, hipocrómica e microcítica com ferro baixo, obstipação com resposta deficiente aos laxantes (lactilol, lactulose e leite de magnésia) e perdas hemáticas frequentes mas de pequeno volume aquando das dejecções. Decidimos efectuar rectosigmoidoscopia para esclarecimento do quadro e observamos ao nível da parede posterior do recto a imagem que agora reproduzimos sendo normal a restante mucosa do recto e sigmoide observadas. No contexto da doente qual lhe parece o diagnóstico mais provável. 1 - Colite por laxantes 2 - Infecção por clostridium difficile 3 - Tumor do recto 4 - Lesão traumática da mucosa rectal Figura 1 __________ 1 Serviço de Gastroenterologia do Hospital de Crianças Maria Pia, Porto qual o seu diagnóstico 97 NASCER E CRESCER revista do hospital de crianças maria pia ano 2006, vol XV, n.º 2 COMENTÁRIOS A imagem que mostramos representa uma ulceração da parede posterior do recto com bordos ligeiramente elevados e friáveis (setas amarelas). As biópsias efectuadas revelaram tratar-se de úlcera benigna e o exame microbiológico da mucosa rectal da região atingida foi negativo para estirpes patogénicas. Inquirida a família, conseguimos apurar que para tentar ultrapassar a obstipação era feita diariamente manipulação digital da ampola rectal para extracção 98 qual o seu diagnóstico das fezes aí existentes, frequentemente muito duras nos últimos meses. A doente efectuou tratamento inicialmente com enemas de 5-ASA de 12 em 12 horas e depois com supositórios do mesmo medicamento e verificou-se cicatrização da úlcera. O aspecto observado não é compatível com colite por laxantes já que este é um quadro inflamatório difuso e muito raro com os laxantes que a doente utilizava. A colite pseudomembranosa que é provocada pelo Clostridium Difficile é também um quadro inflamatório difuso associado à presença de membranas recobrindo a mucosa rectal e está associada ao uso de antibióticos e não corresponde à situação da nossa doente. A hipótese de tumor do recto, embora possível é não muito provável considerando a idade da doente e o aspecto da lesão e foi afastado pelo resultado das biópsias. Concluímos estar perante um caso de úlcera traumática do recto secundária a manipulação crónica. NASCER E CRESCER revista do hospital de crianças maria pia ano 2006, vol XV, n.º 2 Caso Estomatológico José M. S. Amorim1 Criança de 10 anos de idade que nos foi enviada devido a persistência dos dentes decíduos incisivos centrais inferiores. Não apresentava queixas dolorosas e referia desagrado pelo aspecto dos seus dentes. Exame oral: Sem cárie dentárias. Sem gengi- Boa higiene oral (Fig. 1). vite. Lesão de atrição de 1.1 e de 4.2. Marcada destruição coronal dos incisivos centrais inferiores. Não há sinais de abcessos. Qual o seu diagnóstico? Qual a sua atitude? Figura 1 __________ 1 Assistente Hospitalar Estomatologia no Hospital de Crianças Maria Pia qual o seu diagnóstico 99 NASCER E CRESCER revista do hospital de crianças maria pia ano 2006, vol XV, n.º 2 O diagnóstico é fácil de realizar, tendo em conta que os dentes similares na arcada dentária superior já erupcionaram. Trata-se de um caso de agenesia vs inclusão dentária dos dentes referidos. A realização de uma ortopantomografia revelou tratar-se de uma agenesia dos dentes incisivos centrais mandibulares. A etiologia das agenesias já se encontra bastante estudada e foram implicados vários factores: 1 – Alterações embriológicas: - obstrução física ou interrupção da lamina dentária - anomalias funcionais do epitélio dentário - falta de espaço - falta de indução do mesênquima subjacente 2 – Alterações hereditárias: - existe transmissão genética de situações de agenesias dentárias, embora se discuta ainda em que modalidade tal processo se desenvolve., sendo geralmente autossómica dominante. 100 qual o seu diagnóstico 3 – Evolução da espécie: - ainda sem dados bem definidos pensa-se que o tipo de dieta que é realizado actualmente pela espécie humana levará ao desaparecimento de vários dentes. 4 – Doenças: - sabe-se que doenças, durante as primeiras 6 semanas de gravidez, como o raquitismo, a sífilis congénita, a rubéola e deficits nutricionais podem ser responsáveis por agenesias dentárias. 5 – Síndromes: - existe uma grande variedade de síndromes que têm as agenesias dentárias como factor constante. A frequência de agenesias na dentição permanente varia entre 1,6 e 9,6%, com uma média de 6%, sendo a frequência mais baixa (0,5%) na dentição decídua. Quando existe agenesia de dentes decíduos a probabilidade de que essa ausência se verifique na dentição permanente é de 75%. As agenesias dentárias mais frequentes ocorrem com os 3º molares, seguindo-se por ordem de frequência os incisivos laterais superiores, os segundos pré-molares inferiores, os segundos pré-molares superiores e finalmente os incisivos centrais inferiores. No entanto esta sequência pode variar com a região, clima ou etnia. A atitude a tomar depende do tempo que os dentes decíduos persistirem na boca: Tentar preservar os dentes decíduos, melhorando a sua estética, até a criança ter idade para realizar uma reabilitação oral com recurso a implantes. Se as peças decíduas se perderem tentar manter o espaço dos dentes com recurso a uma prótese removível até ter idade para colocar implantes. Nascer e Crescer 2006; 15(2): 99-100 BIBLIOGRAFIA E. Barbería Leache, Odontopediatria, 2ª edición, Masson SA, 2001; 60-63 NASCER E CRESCER revista do hospital de crianças maria pia ano 2006, vol XV, n.º 2 Imagens Filipe Macedo1 Criança de 2 anos de idade, com insuficiência respiratória severa, tendo antecedentes de prematu- ridade (25 semanas) e ventilação mecânica no período neonatal. Figura 1 Figura 2 Figura 3 Figura 4 TC torácico de alta resolução __________ 1 Especialista em Radiodiagnóstico – SMIC Porto qual o seu diagnóstico 101 NASCER E CRESCER revista do hospital de crianças maria pia ano 2006, vol XV, n.º 2 DIAGNÓSTICO As imagens de TC mostram as alterações marcadas e generalizadas da densidade e arquitectura pulmonar, manifestadas por áreas de maior e menor transparência do parênquima, pequenas áreas císticas e opacidades reticulares e em banda de origem intersticial. O quadro é compatível com sequelas de displasia broncopulmonar. DISCUSSÃO A Displasia Broncopulmonar (DBP) é a causa de doença pulmonar crónica mais frequente do recém-nascido. É uma complicação frequente do RN ventilado, relacionando-se provavelmente com toxicidade intersticial do oxigénio com libertação de radicais livres, barotrauma e efeito da resposta reparadora do pulmão. As características clínicas, radiológicas e patológicas da DBP foram inicialmente descritas por Northway e Rosen em 1967 e 1968(1,2). Nessa altura descreveram-se 4 estadios da doença: I - quadro clínico e radiológico sobreponível ao SDR, manifestando-se por edema e necrose da mucosa pulmonar. Traduz-se radiologicamente por um padrão intersticial fino (opacidades lineares e indefinição das margens broncovasculares). II - ocorre entre os 4 e os 10 dias de vida e manifesta-se por necrose exsudativa dos alvéolos traduzida radiograficamente por opacidades pulmonares. 102 qual o seu diagnóstico III - ocorre entre os 10 e os 20 dias de vida e traduz-se radiograficamente por alterações da transparência pulmonar e padrão bolhoso, em favo de mel relacionável com alvéolos e ácinos sobredistendidos e fibrose intersticial. IV - radiologicamente idêntico ao III mas ocorrendo após o mês de idade. Com a evolução terapêutica, o aspecto radiológico mudou e é raro encontrar actualmente a progressão clássica nos 4 estadios. No entanto, com as novas técnicas de ventilação, a maior sobrevida dos grandes prematuros levou ao aumento da frequência de BDP(3). A radiografia simples é o exame de base para diagnóstico e seguimento dos casos de DBP. As formas ligeiras de DBP podem cursar com alterações radiográficas discretas. A TC com algoritmo de alta resolução, demonstra no entanto de forma mais completa as sequelas(4). Observam-se áreas de hiperinsuflação e aspecto multicístico causados por espaços aéreos sobredistendidos rodeados por septos alveolares espessados e hipercelulares (opacidades reticulares e em banda), traduzindo alterações da ventilação – perfusão. Pode haver também redução da relação diâmetro brônquio – diâmetro artéria. O derrame pleural é raro. A criança com BDP é mais susceptível às infecções respiratórias que podem agravar o risco de doença pulmonar crónica. Os recém nascidos podem desen- volver hipertensão pulmonar e hiperreactividade brônquica. O prognóstico tem no entanto melhorado progressivamente. Mais de 30% dos doentes estão clinicamente bem pelos 3 anos de idade, com melhoria sucessiva dos achados radiológicos. Há contudo cada vez mais evidência sobre a persistência de problemas respiratórios até à adolescência.(5) Nascer e Crescer 2006; 15(2): 101-102 BIBLIOGRAFIA 1. Northway WHJr, Rosan RC, Porter DY. Pulmonary disease following respiratory therapy of hyaline-membrane disease. N Engl J Med 1967; 276:357-368 2. Northway WHJr, Rosan RC. Radiographic features of pulmonary oxygen toxicity in the newborn: bronchopulmonary displasia. Radiology 1968; 91:49-58 3. Parker RA, Lindstrom DP, Cotton RB. Improved survival accounts for most but not all the increase in bronchopulmonary dysplasia. Pediatrics 1992; 90:663-668 4. Oppenheim C, Mamou-Mani T, Saiegh N et al. Bronchopulmonary dysplasia: value of CT in identifying pulmonary sequelae. Am J Roentegol 1994; 163:169-72 5. Northway WHJr, Moss RB, Carlisle KB, et al. Late pulmonary sequelae of bronchopulmonary dysplasia. N Engl J Med 1990; 323:1793-1799 NASCER E CRESCER revista do hospital de crianças maria pia ano 2006, vol XV, n.º 2 Genes, Crianças e Pediatras C. Dias1, M. Mota-Freitas2, Alberto Costa3, M. Reis-Lima1 Criança do sexo masculino, referenciada à Consulta de Genética aos 15 meses de idade por atraso do desenvolvimento psicomotor. Tratava-se do primeiro e único filho de um casal jovem, saudável e não consanguíneo. Os antecedentes familiares eram irrelevantes. A gestação decorreu sem intercorrências, tendo nascido às 36 semanas com RCIU simétrico, Apgar 5/7/6 ao 1º, 5º e 10º minuto, respectivamente. A placenta era de grau III, com calcificações. À data da 1ª observação em consulta, era um menino com atraso do crescimento estaturo-ponderal (peso, comprimento e PC < Pct3) e do desenvolvimen- Figura 1 to psicomotor, dificuldades da deglutição, epilepsia (crises tónico-clónicas generalizadas com boa resposta a terapêutica anti-epilética) e fácies dismórfica. Apresentava trignocefalia, com metópica saliente e bossas frontais, pavilhões auriculares baixos e “simples”, hipertelorismo, esboço de epicanto bilateral, fendas palpebrais grandes e inclinadas para baixo e estrabismo divergente; nariz pequeno, com ponte larga, filtro curto, comissuras labiais inclinadas para baixo, microretrognatia, hipospádias e hérnia inguinal esquerda. As mãos eram pequenas, com prega palmar única à esquerda. Ao exame neurológico, era hipotónico, não se sentava, tinha fraco sorriso social e não segurava objectos. O cariótipo convencional com BAR foi normal (46,XY). O hemograma, bioquímica, gasimetria capilar, urina tipo II, estudo metabólico, TAC cerebral e ecocardiograma não revelaram alterações. A ecografia renopélvica efectuada nos primeiros meses de vida mostrou dilatação dos bacinetes; aos 6 anos a ecografia foi normal. Efectuou PEAs que demonstraram perda auditiva moderada (20 a 30 dB) neurosensorial. Qual o seu diagnóstico? Figura 2 __________ 1 Unidade de Consulta, Instituto de Genética Médica 2 Unidade de Citogenética, Instituto de Genética Médica 3 Serviço de Pediatria, Hospital de Guimarães qual o seu diagnóstico 103 NASCER E CRESCER revista do hospital de crianças maria pia ano 2006, vol XV, n.º 2 No decurso da investigação, foi colocada a hipótese diagnóstica de Síndrome de Wolf-Hirschhorn (SWH). Foi pedido estudo de citogenética molecular (FISH – hibridização de fluorescência in situ) para a região 4p16.3 que revelou uma delecção [ish del(4)(p16.3p16.3)] (Figura 3). O SWH é causado pela haploinsuficiência da região 4p terminal, causada por delecção da banda 4p16.3, e caracteriza-se por atraso do crescimento pré e pós-natal, hipotonia, atraso mental, microcefalia, dismorfia craniofacial característica (fronte em “capacete grego” - base do nariz larga, contínua com a fronte com glabela proeminente, hipertelorismo, epicanto, filtro curto, comissuras labiais inclinadas para baixo, micrognatia e epilepsia ou alterações do EEG. Menos frequentemente os doentes têm défices imunitários, alterações dentárias, anomalias cardíacas e genitourinárias e alterações estruturais do sistema nervoso central. Estima-se a sua prevalência em 1: 50.000 nados-vivos. Cerca de 60 a 70% dos casos são detectáveis por técnicas de citogenética clássica. Noutros doentes, como o caso apresentado, a microdelecção só é detectada por estudos moleculares, como a FISH. A região crítica para o SWH com- preende um intervalo de 165 kb que inclui dois genes de função desconhecida, WHSC1 e WHSCR2. Pensa-se que vários outros genes localizados nas regiões que flanqueiam a região crítica, como o FGFR3 e LETM1, desempenham um papel no fenótipo do SWH. Este grupo de doentes habitualmente não apresenta malformações graves, embora a observação de grandes grupos de doentes sugira que o tamanho da delecção não se correlaciona directamente com a gravidade do fenótipo. Embora a maioria dos doentes tenha uma delecção intersticial de novo, 13% resultam de translocações herdadas de forma desequilibrada. Os doentes e os pais devem ser referenciados a consulta de Genética para aconselhamento adequado. Os diagnósticos diferenciais colocados neste caso são o Síndrome de Opitz G e o Síndrome de Smith-LemliOpitz (SLO). O Síndrome de Opitz G, ou Síndrome BBB, é uma doença genética de hereditariedade ligada ou X dominante, caracterizada por hipertelorismo, hipospádias e dificuldades de deglutição. Nestes casos, o atraso mental (AM) habitualmente não é muito grave (cerca de metade não tem AM). Outras características incluem fenda laríngea, do lábio e/ou palato e ânus inperfurado ou ectópico. O SLO é uma doença genética autossómica recessiva provocada por mutações no gene DHCR7 que codifica para a enzima 7-dehidrocolesterol reductase. Caracteriza-se por atraso do crescimento, atraso mental, microcefalia, anomalias genitourinárias, particularmente hipospádias, e sindactilia do 2º/3º dedos dos pés. O diagnóstico bioquímico desta patologia pode ser efectuado através do doseamento de 7-dehidrocolesterol. Discussão O SWH é um diagnóstico clínico, com confirmação laboratorial. Perante um estudo citogenético normal, mas mantendo-se suspeita clínica forte, deve ser pedido FISH para a região crítica em 4p. O estudo citogenético deve ser efectuado no doente e nos progenitores. O risco de recorrência é baixo nos casos de delecção de novo, sendo possível efectuar o diagnóstico pré-natal específico em futuras gestações do casal A referenciação a Consulta de Genética é importante não só pelo diagnóstico diferencial com outras doenças genéticas, como pela necessidade de estudo familiar e aconselhamento genético adequado. Nascer e Crescer 2006; 15(2): 103-104 BIBLIOGRAFIA Figura 3 104 qual o seu diagnóstico 1. Battaglia A. et al. (Updated 6 April 2004). Wolf-Hirschhorn Syndrome. In: GeneReviews at Genetests: Medical Genetics Information Resource (database online). Copyright, Uni. Washington, Seattle. 1997-2006. Available at http://www.genetests.org. Acessed 2006. 2. Bergemann A et al. The etiology of Wolf-Hirschhorn syndrome. Trends Genet 2005; 21(3):188-195. 3. Battaglia A et al. Wolf-Hirschhorn syndrome (WHS): a history in pictures. Clin Dysmorphol. 2000; 9:25-30. 4. Zollino M et al. Genotype-phenotype correlations and clinical diagnostic criteria in wolf-hirschhorn syndrome 2000. NASCER E CRESCER revista do hospital de crianças maria pia ano 2006, vol XV, n.º 2 Um Bolo Amaldiçoado Margarida Guedes Uma tarde pacata de domingo na aldeia. A avó toma conta do neto de 7 anos, enquanto os pais resolvem uns assuntos. Ele entretém-se com uma bola no pátio. Ela faz um bolo de canela para o lanche, o preferido do neto. De repente, uns gritos, um chiar de travões seguido de um silêncio opressivo. Por uma fracção de segundo recusa a acreditar, mas quando ouve vozes no pátio, não tem dúvidas. – Depressa. Chame a ambulância. Ele está mal! Passaram 4 semanas. Sabe que o neto continua ligado à máquina, mas não o pode ver. A nora não deixa, mas não era preciso, porque o bolo abandonado na mesa não a deixa esquecer… Só que o que ela não sabe é que quando a bola arrastou o neto para fora do pátio, um condutor atravessava a sua rua como se esta fosse uma via rápida… Até quando vamos permitir que a falta de civismo dos condutores destrua vidas e famílias? pequenas histórias 105 NASCER E CRESCER revista do hospital de crianças maria pia ano 2006, vol XV, n.º 2 Memórias... de há vinte anos Elizabete Borges 106 Ano de 1985. Meados de Dezembro. Concluíamos o Curso de Enfermagem. A passagem pelo Hospital Central Especializado de Crianças Maria Pia enquanto aluna, sensibilizou-nos pelo ambiente familiar que se vivenciava, assim como, pelos cuidados de enfermagem que se prestavam. Vinte Anos. A memória leva-nos a inúmeros momentos que hoje, compõem o álbum do nosso percurso profissional, durante cerca de onze anos. Rostos que ficaram, momentos únicos, lembranças que fazem parte de uma parcela das nossas vidas. Mas, memórias... Momentos que perduram. Bons e menos bons. Todavia, momentos em que, fundamentalmente, era a relação de ajuda que nos permitia superar os obstáculos. Recém – formada... Tantos sonhos, expectativas, vontade de trabalhar. E, as vinte e poucas crianças numa noite... com uma enfermeira. Perguntam-nos como era possível prestar cuidados? Um criança em diálise peritonial contínua, e as outras? Porém, o espírito de equipa, a relação de ajuda, um apelo, sem apelo, porque vivíamos uma época em que tal estava implícito no nosso desempenho. Não era preciso pedir... bastava constatarmos essa necessidade. Não, que não existissem casos pontuais. Seguramente que sim. Mas, casos pontuais... Nessa primeira noite de uma carreira de há vinte anos fica na memória, a colega Agostinha, que de um outro serviço mesmo ao lado, soube estar presente. Momentos de verdadeira partilha que identificam este período como único e inesquecível E, o banco em frente ao aquário? Local de passagem para o vestiário e imprescindível para os madrugadores poderem conversar, reflectir. Momentos que ajudavam a construir verdadeiras amizades, como a da Lucilia que perdura há: vinte anos. E, as visitas?... Ainda vivemos um aperto de um sentimento de há vinte anos. Essa emoção de quantos percorriam quilómetros, horas de viagem, de camioneta, comboio, táxi. Com sol, chuva... Mas, o tempo de visita é para se cumprir! Memórias... Um abraço, uma lágrima no olhar, um apelo... Contrariar normas em favor da humanização... Fiquem no corredor, depois voltem. Atitudes que nos penalizavam. Mas, um sorriso num olhar, por vezes em situações tão condicionadas pela temporalidade, superava todo o desgaste emocional de uma repreensão já esperada, do superior hierárquico, que também regressava para ver se tudo tinha sido cumprido. Vinte anos.... Período, em que os internamentos eram prolongados. A alta da criança, por vezes envolta de lágrimas. Lágrimas de profissionais, crianças e pais. O reconhecimento de um trabalho realizado. Relembro, ainda a ansiedade e angústia após alguns turnos, as voltas na cama sem conseguir adormecer. Hoje codificado de stresse emocional, físico e espiritual... As crianças mereceram-nos o esforço, as lutas, e o reconhecimento dos seus direitos... Vinte anos. Modelos... Anne Casey-Parceria de Cuidados. Humanização. Vinte anos, humanização, mas, fundamentalmente, muita dedicação. Vestidos, trancinhas, calções, totós, bibes... brincar. Vivências que nos completaram enquanto profissionais. Brincar. Também se fazia e, havia tempo! E, a fêvera? E, o ovo? Memórias de uma ceia que não conseguimos apagar. Comer? Preferíamos o bacalhau... as delicias... que alguns tão bem confeccionavam. Relembro a colega Glória. a criança, a família e a comunidade NASCER E CRESCER revista do hospital de crianças maria pia ano 2006, vol XV, n.º 2 Os cheiros, os fumos, a taquicardia de um... A estufa, ali ao lado... Vinte anos. Regressar ao desempenho profissional após a perda de uma filha foi, seguramente, um dos momentos mais difíceis na história deste percurso. Como cuidar de outros quando acabamos de perder igualmente, um pequeno ser? Relembro... num canto da enfermaria centrar o nosso olhar numa criança, sem qualquer visita e, gerir as emoções... Duro, sem dúvida que sim. Cuidar de outras crianças, já que da nossa era impossível, foi uma meta que nos permitiu confrontar as emoções e recomeçar. Ainda, que Alguém, considerasse que um mês era suficiente para recuperar a perda de um filho. Mas nem um mês, nem mês e meio, nem uma vida! Como se tal fosse possível!... Nomes, rostos de crianças, familiares e profissionais que alicerçaram o que somos hoje. Uma Instituição muito particular. Pequena... Uma pequena família. Memórias que hoje relembramos com alguma alegria, nostalgia, saudade,... Crianças que ultrapassaram... crianças que nos deixaram... sim, para um Outro Lugar... O tempo, esse não pára. A evolução técnica e científica faz-se acompanhar. O curso das patologias altera-se. Umas diminuem, mas outras emergem com uma nova dimensão em Pediatria. A estrutura física adequa-se mais às necessidades. A presença dos pais é permitida. Vinte anos. O desempenho dos enfermeiros começa a ter maior visibilidade. A ser reconhecido. A enfermagem afirma-se. Novos profissionais são admitidos e aos poucos aquela forte relação vai-se esvanecendo. Mantêm-se pequenos grupos aqui e ali. A evolução acarreta alterações. Nos percursos profissionais, a competitividade, começa a despontar. Uns entram, outros saem. Algo se vai perdendo, algo se vai ganhando. Também eu um dia, em 1996, saí. Na memória, restam lembranças, que perduram há vinte anos. a criança, a família e a comunidade 107 NASCER E CRESCER revista do hospital de crianças maria pia ano 2006, vol XV, n.º 2 XVIII REUNIÃO DO HOSPITAL DE CRIANÇAS MARIA PIA DESAFIOS E CONTROVÉRSIAS EM PEDIATRIA 6 / 7 / 8 de Novembro de 2006 HOTEL IPANEMA PARK – PORTO SECRETARIADO Hospital de Crianças Maria Pia Rua da Boavista, 827 – 4050-111 Porto Tel: 226 089 988 – Fax: 226 089 910 E-mail: [email protected] ENVIO DE RESUMOS DAS COMUNICAÇÕES LIVRES ATÉ 22/09/06 PROGRAMA 6 de Novembro 08.00h - Abertura do Secretariado 09.00h - Mesa Redonda: Dificuldade Respiratória Moderadores: Augusta Areias (MJDinis) Carlos Duarte (HCMPia) 09.00h - No Recém Nascido Elisa Proença (MJDinis) 09.20h - No Lactente e Criança Paula Rocha (HCMPia) 09.40h - Avaliação da Função Respiratória no Lactente Nuno Neuparth (HDEstefânia) – Luís Miguel Borrego (HDEstefânia) 10.00h - Discussão 10.30h - Café 11.00h - Mesa Redonda: Criança em Risco Moderadores: Lourenço Gomes (HCMPia) Álvaro Aguiar (HSJoão) 11.00h - Como Detectar Jeni Canha (HPCoimbra) 11.20h - A Perspectiva do Jurista Norberto Martins (CEJ) 11.40h - Metodologias de Trabalho em Famílias de Risco Maria José Gambôa (PAFAC) Posters (Sala Coimbra) Moderadores: Filomena Araújo (HCMPia) Oscar Vaz (CHNordeste) 15.00h - Conferência: Vacina do Rotavírus Presidente: Almeida Santos (HSJoão) Convidado: Luís Varandas (HDEstefânia) 15.45h - Café 16.00h - Mesa Redonda: Estudos Interinstitucionais Moderadores: Joana Moura (CHAMinho) Gonçalves Oliveira (HSJoão de Deus) 16.00h - Criança em Risco Maria José Vale, Conceição Casanova, Clara Paz Dias, Camila Gesta, Ana Margarida Alexandrino, Teresa Borges 16.20h - Enurese Paula Matos, Teresa Costa, Laura Soares, Paulo Teixeira, João Luís Barreira 16.40h - Gastroenterites Rosa Lima, Isabel Valente, Ariana Afonso, Ana de Lurdes Aguiar, Sofia Aroso, Miguel Costa, Elisabete Coelho, Henedina Antunes Henedina Antunes (HSMarcos), Virgínia Monteiro (HSMiguel), 17.00h - Painel de Discussão António Vilarinho (CHVNGaia), Jorge Moreira (CHPVarzim/VConde), Zulmira Correia (HCMPia) Zulmira Correia (HCMPia) 17.30h - Sessão de Abertura 12.00h - Painel de Discussão 12.30h - Almoço 110 14.00h - Comunicações Orais (Sala Ipanema) Moderadores: Laura Marques (HCMPia) Ana Maria Ribeiro (HSMiguel) notícias 18.00h - Porto de Honra NASCER E CRESCER revista do hospital de crianças maria pia ano 2006, vol XV, n.º 2 7 de Novembro 14.00h - Comunicações Orais (Sala Ipanema) 08.30h - Comunicações Orais (Sala Ipanema) Moderadores: Ermelinda Silva (HCMPia) Cláudia Tavares (HSOliveira) Moderadores: Ana Paula Aguiar (HPHispano) Nilza Ferreira (HVReal/PRégua) Posters (Sala Coimbra) Moderadores: Alzira Sarmento (HCMPia) Arlindo Oliveira (HFrancisco Zagalo) Posters (Sala Coimbra) Moderadores: Guimarães Dinis (HCSBento) 10.00h - Conferência: Rastreio Auditivo Neonatal - GRISI Presidente: Paula Soares (MJDinis) Convidado: Miguel Coutinho (HCMPia) Reis Morais (HChaves) 15.30h - Café 10.30h - Café 15.45h - SESSÃO INTERACTIVA 10.45h - Conferência: Segurança do Doente e Análise de Risco: Experiência Dinamarquesa Presidente: Silvia Álvares (HCMPia) Convidado: Beth Lije Petersen (DSFP) Moderadores: Ana Ramos (HCMPia) Luís Vale (HGSA) 15.45h - Doença Reumática 11.30h - Mesa Redonda: Segurança do Doente e Análise de Risco Moderadores: Margarida França (IQS) Fernando Pereira (HCMPia) Margarida Guedes (HGSA) – Manuel Salgado (HPCoimbra) 16.15h - Hemoptises 11.30h - Acidentes no Domínio da Saúde José Fragata (HSMarta) Virgílio Senra (HCMPia) – Lurdes Morais (HCMPia) 16.45h - Alergia Alimentar 11.50h - Sistemas de Saúde e a Segurança do doente Paulo Sousa (ESTSL) Helena Falcão (HCMPia) – Herculano Rocha(HCMPia) 12.10h - Risco Clínico e Segurança do Doente Isabel Pedroto (HGSA) 17.15h - Síndrome Nefrótico Conceição Mota (HCMPia) 12.30h - Discussão 17.45h - Discussão 13.00h - Almoço 8 de Novembro 08.30h - Comunicações Orais (Sala Ipanema) Moderadores: Esmeralda Martins (HCMPia) Almerinda Pereira (HSMarcos) CURSO SATÉLITE Perturbações do Sono Posters (Sala Coimbra) Moderadores: Inês Carrilho (HCMPia) José Gualdino (HSMaria Maior) Organização: Departamento de Pedopsiquiatria HCMPia Moderadores: Graça Fernandes (HCMPia) Tojal Monteiro (HGSA) 10.15h - Conferência: Disfunção Miccional: Da Enurese à Incontinência Urinária Presidente: Armando Reis (HCMPia) Convidado: Miguelez Lago Carlos (HCHaya) 10.45h - Café 11.00h - Mesa Redonda: Disfunção Miccional Moderadores: Eloi Pereira (HCMPia) Armando Reis (HCMPia) 11.00h - Enurese Nocturna - Fisiopatologia e Tratamento Teresa Costa (HCMPia) 11.20h - Disfunções Vesico-Esficterianas: Estudo Urodinâmico e Farmacologia da Disfunção Vesico-Ureteral Ribeiro de Castro (HCMPia) 11.40h - Reeducação Vesico-Esfincteriana Rosa Amorim (HCMPia) 12.00h - Discussão 14.30h - Problemas de Sono no Lactente e Criança Pequena Pedro Caldeira (HDEstefânia) 15.00h - Problemas de Sono na Criança mais velha Graça Fernandes (HCMPia) 15.30h - Discussão 16.00h - Café 16.30h - Problemas do foro ORL Miguel Coutinho (HCMPia) 17.00h - Perspectiva da Pediatria Tojal Monteiro (HGSA) 12.30h - Sessão de Encerramento Entrega de Prémios 17.30h - Discussão 13.00h - Almoço 18.00h - Encerramento notícias 111 IX JORNADAS DE CARDIOLOGIA PEDIÁTRICA 24 e 25 de Novembro de 2006 BIBLIOTECA ALMEIDA GARRETT - PORTO PROGRAMA 24 de Novembro 25 de Novembro 09.00h - Abertura do Secretariado 09.30h - Mesa Redonda: O RN com Cardiopatia Congénita Moderadores: Marília Loureiro (HCMPia) – Hercília Guimarães (HSJoão) 09.30h - Abordagem clínica e diagnóstica Maria João Baptista (HSJoão) 09.00h - Mesa Redonda: Terapêutica da Hipertensão Pulmonar Moderadores: António Marinho (HUCoimbra) – Graça Castro (HUCoimbra) 09.00h - Introdução Graça Castro (HUCoimbra) 09.10h - Na UCI neonatal Farela Neves (HPCoimbra) 09.45h - Ventilação do RN com cardiopatia Graça Nogueira (HSMarta) 10.00h - Persistência do Canal Arterial no Prematuro: Estratégias de actuação José Diogo Martins (HSMarta) 10.15h - Persistência do Canal Arterial no Prematuro: Epidemiologia em Portugal José Peixoto (HPCoimbra) 10.30h - Discussão 11.00h - Café 11.15h - Mesa Redonda: Problemas de Cardiologia Pediátrica no Ambulatório Moderadores: Conceição Trigo (HSMarta) – António Sá Melo (HUCoimbra) 11.15h - Dor precordial Graça Ramalheiro (HPCoimbra) 09.30h - No ambulatório Concepcion Quero (H Ramon y Cajal) 10.00h - Discussão 10.30h - Café 10.45h - Conferência: A Intervenção em Cardiologia Pediátrica Convidado: Maymone Martins (HSCruz) Presidente: Sashicanta Kaku (HSMarta) 11.30h - Mesa Redonda: Coarctação da Aorta Moderadores: Fátima Pinto (HSMarta)– Miguel Abecassis (HSCruz) 11.30h - Tratamento por intervenção Maarten Witsenburg (Sophia Children’s Hospital) 11.50h - Tratamento cirúrgico Rodrigues de Sousa (HSJoão) 11.30h - Sincope: abordagem diagnóstica Diogo Cavaco (HSCruz) 12.10h - Evolução da coarctação tratada Lídia de Sousa (HSMarta) 11.45h - O adolescente e o desporto José Alberto Duarte (FADEUPorto) 12.30h - Discussão 13.00h - Almoço 12.00h - A experiência nacional com Palivizumab Cláudia Moura (HSJoão) 14.00h - Posters Moderadores: Teresa Vaz (HSJoão) – Anabela Paixão (HSMarta) 12.15h - Discussão 14.45h - Mesa Redonda: A Perspectiva do Médico Geneticista: Moderadores: Margarida Reis Lima (IGM) – António Vieira (HSJoão) 12.45h - Sessão de Abertura 13.00h - Almoço 14.45h - Diagnóstico em Genética Clínica Gabriela Soares (IGM) 14.00h - Conferência: O Estado da Arte em Cardiologia Pré-natal Convidado: Paulo Zielinsky (Univ. Rio Grande do Sul) Presidente: José Carlos Areias (HSJoão) 15.00h - Diagnóstico em Genética Laboratorial Jorge Pinto Bastos (IGM) 15.15h - Mesa Redonda: Diagnóstico pré-natal de Cardiopatias: Estudo multicêntrico Moderadores: Beatriz Calado (DGSaúde) – António Macedo (HSMarta) Painel: Isabel Menezes (HSCruz), José Monterroso (HSJoão), Manuel Ferreira (HCVP), Maria do Céu Rodrigues (MJDinis) 16.00h - Controvérsias: Interrupção da gravidez no coração univentricular Moderadores: Eduardo Castela (HPCoimbra) – Cristina Cruz (HSJoão) A favor: Agostinho Borges (HSMaria) Contra: José Fragata (HSMarta) 16.45h - Café 17.00h - Comunicações livres Moderadores: Lúcia Ribeiro (HPCoimbra) – Rufino Nascimento (CHFunchal) 15.15h - Aconselhamento Genético e Diagnóstico Pré-natal Margarida Reis Lima (IGM) 16.00h - Discussão 16.15h - Conferência: O Coração nas Doenças de Sobrecarga Convidado: François Sassolas (CHU Lyon) Presidente: Silvia Álvares (HCMPia) 16.45h - Café 17.00h - Casos difíceis Moderadores: Manuel Pedro Magalhães (HCVP) – Rui Anjos (HSCruz) Painel: Eduardo Dias da Silva (HSJoão), Jorge Moreira (HSJoão) Maria Ana Sampaio (HCVP), Rui Ferreira (HSCruz) 19.00h - Encerramento ENVIO DE RESUMOS DAS COMUNICAÇÕES LIVRES ATÉ 20/10/06 ORGANIZAÇÃO: Secção de Cardiologia Pediátrica da Sociedade Portuguesa de Pediatria Grupo de Estudos de Cardiopatias Congénitas no Adolescente e Adulto da Sociedade Portuguesa de Cardiologia Hospital de Crianças Maria Pia Rua da Boavista, 827 – 4050-111 Porto Tel: 226 089 988 Fax: 226 089 910 E-mail: [email protected] SECRETARIADO: Sociedade Portuguesa de Cardiologia Campo Grande, 28 - 13º – 1700 – Lisboa Tel: 217 817 634/30 Fax: 217 931 095 E-mail: [email protected]
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