literatura e cinema e a metáfora do mal em a pele que

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literatura e cinema e a metáfora do mal em a pele que
LITERATURA E CINEMA E A METÁFORA DO MAL EM
A PELE QUE HABITO
Paulo Henrique Pressotto*
Praticar tortura contra uma pessoa é uma forma covarde de cometer violência física,
psíquica e moral, fazendo sofrer a vítima, degradando o próprio torturador e agredindo valores
que são de toda humanidade.
Dalmo de Abreu Dallari, Duzentos anos de condenação da tortura
RESUMEN: Buscando establecer un análisis comparativo entre la novela Tarântula, de Thierry
Jonquet, y la película A pele que habito, de Pedro Almodóvar, este trabajo trata de las categorías
de adaptación fílmica y diserta sobre la tortura, lo malo y la violencia que son temas presentes en
las obras.
PALABRAS CLAVE: Cine y literatura, tortura y violencia, Jonquet y Almodóvar.
RESUMO: Buscando estabelecer uma análise comparativa entre o romance Tarântula, de
Thierry Jonquet, e o filme A pele que habito, de Pedro Almodóvar, este trabalho discute as
categorias de adaptação fílmica e disserta sobre a tortura, o mal e a violência que são temas
presentes nas obras.
PALAVRAS-CHAVE: Cinema e literatura, tortura e violência, Jonquet e Almodóvar.
Este artigo consiste em uma análise comparativa entre o filme espanhol A pele que habito
(2011), de Pedro Almodóvar, e o romance Tarântula, do escritor francês Thierry Jonquet,
publicado no Brasil em 2011. Em Tarântula é narrada a história de um cirurgião plástico
(Richard Lafargue) que mantém presa em sua casa uma “mulher” de nome Ève. No caminhar da
história, percebe-se que Ève era, na verdade, Vincent, um provável estuprador da filha de
Lafargue. Com toda crueldade possível, Lafargue rapta Vincent e, após muitas torturas e
mutilações, o transforma em Ève. Este fato narrativo, entre outras passagens, foi abarcado por
Almodóvar em seu filme A pele que habito. Fora Lafargue, a história apresenta outros
personagens como Alex, Viviane, Line e Roger.
Entre convergências e divergências de um processo de adaptação fílmica, busca-se
compreender no filme, para além de uma discussão sobre mudança de sexo, o mal e a tortura do
corpo como metáforas da repressão. Da aparente história contada no filme (a tortura do corpo e a
obsessão e o (des)controle de um personagem) e do trabalho estético, em que o avanço da ciência
(configurado na narrativa) se entrecruza e se completa com uma estética fílmica diferenciada que
apresenta, talvez, um efeito plástico mais rígido em sua finalização (o qual se relaciona,
obviamente, com os avanços técnicos do cinema), o cineasta parece traduzir um tempo moderno,
o presente, com os olhos voltados para o passado. Isso talvez aconteça porque Dr. Robert
Ledgard (no livro, Richard Lafargue) seja a encarnação de uma metáfora de um sistema e/ou
período antidemocrático espanhol em que raptos, torturas, crimes e desrespeito às leis de proteção
ao indivíduo eram constantes. Nesse sentido, parece que no filme os aspectos de um momento
histórico da Espanha sejam pontualmente marcados pelo cineasta através da metáfora e dos
símbolos. Almodóvar então retrata uma história que tem seu espelho no romance de Jonquet,
porém ressurgida numa ação democrática (porque o diretor teve a liberdade de fazê-la) que
envolve a própria história contada e a estrutura narrativa. O trabalho busca destacar os diálogos
que há entre os textos por meio das categorias de adaptação, como a adição, o deslocamento, a
transformação, a redução e a ampliação. Pretende-se também revelar alguns traços do mal e da
tortura do corpo e da mente presentes nas histórias. Além dos pressupostos teóricos sobre
adaptação fílmica e linguagem cinematográfica, bem como estudos sobre o mal, o gênero e o
corpo, o estudo também mostra como as reflexões do campo diegético filmico, principalmente,
pode revelar uma grande metáfora em que o social e o psicológico apresentam um sentido
altamente crítico com relação ao “mal-estar da civilização” do mundo contemporâneo.
A abordagem dessas duas obras se justifica por contribuir com as análises, no campo dos
estudos comparados, entre literatura e cinema no Brasil, revelando uma possibilidade de leitura
entre as duas linguagens. Este artigo pretende levantar e discutir questões que abordem os
aspectos narrativos de ambos os textos e os temas que envolvem as características psicológicas
dos personagens centrais, bem como o aspecto social de um passado político repressor espanhol
e, obviamente, a estética dos objetos em foco. Nesse sentido, talvez uma leitura mais atenta e
aprofundada das obras, no que se refere às suas convergências e divergências formais e de
conteúdo, poderá contribuir para o melhor entendimento dos temas tratados no livro e no filme e
suas imbricações num âmbito de um contexto histórico-social.
Dentre as concepções teóricas, utilizadas para a construção deste trabalho, estão as
definições das categorias de adaptação fílmica, elencadas por BRITO (2006), tais como: a adição
(que pode ser entendida como os elementos que se encontram no filme e não no romance); o
deslocamento (que pode ser entendido como aqueles elementos que no filme não se apresentam
num tempo cronológico ou no mesmo espaço); a transformação (que corresponde aos elementos
que tanto na literatura como no filme apresentam significados que se equivalem, porém com
configurações diferentes); a redução (que talvez possa ser determinada por elementos que estão
no texto literário, mas não são encontrados no filme); a ampliação (que compreende o aumento
da dimensão, no filme, de um ou mais elementos da literatura). Para esta leitura, faz-se uso ainda
das ideias sobre o mal, a violência, o corpo e o olhar panóptico. Assim sendo, a análise se
sustenta por meio dos estudos de Rosenfield, Arendt, Butler, Foucault, Quinet, entre outros.
O trabalho apresenta ainda as seguintes etapas de análise: a primeira se refere à leitura
crítica das obras, tendo como norte os elementos da categoria de adaptação fílmica; a segunda
aborda os temas pertencentes às duas obras, tais como o mal e a violência; o corpo e o olhar
panóptico. Também, para evitar qualquer confusão entre os personagens, faz-se necessário
mostrar quais são os do livro que correspondem aos do filme. Assim, as aproximações seguem
em parelha: Dr. Richard Lafargue – Dr. Robert Ledgard; Vincent – Vicente; Ève – Vera; Alex –
Zeca; Line – Marilia; Viviane – Norma.
A adaptação cinematográfica de Tarântula
Pretende-se aqui tratar os aspectos de adaptação em A pele que habito. Numa leitura
comparativa entre Tarântula e o filme em questão, pode-se destacar as seguintes características
de adição: após racionalmente conquistar a confiança de Robert Ledgard (Antonio Banderas),
Vera (Elena Anaya) o mata. Marília (Marisa Paredes) também acaba sendo assassinada por ela.
Devido às tentativas de escapar do cárcere privado, os assassinatos, cometidos por Vera, parecem
ser o único caminho de liberdade encontrado pelo personagem. Talvez haja, por parte do diretor,
a intenção de mostrar que a mudança de sexo, sofrida por Vicente (Jan Cornet), não mudou seu
desejo pelo sexo oposto. De acordo com Butler, “Levada a seu limite lógico, a distinção
sexo/gênero sugere uma descontinuidade radical entre corpos sexuados e gêneros culturalmente
construídos.” (2003, p. 24) Vicente, no caso, teve seu sexo modificado, mas seu gênero
permanece o mesmo.
Robert é visto, por Eva, como um grande inimigo que merece ser punido pela violação
que causou em seu corpo, promovendo-lhe tortura física e, principalmente, mental. No livro, Ève
não mata ninguém. Somente Richard acaba matando Alex por vingança. Em uma das cenas do
filme, Marilia diz a Eva que sua loucura passou para os dois filhos, Robert e Zeca. Há a alusão
aqui de que a “loucura” de ambos possa ser hereditária.
Em outra cena, nota-se também que a loja da mãe de Vicente, assim como a vendedora,
não existe no livro. Uma possível explicação para este acréscimo no filme é, primeiramente, que
a venda de vestidos seja, na verdade, a venda de uma segunda pele. Uma pele regida talvez pelo
sistema de controle do mundo da moda e que, por isso, também se relaciona à cultura de uma
determinada sociedade, obrigando, de certa forma, a mulher a aderir a uma “armadura” por meio
do processo de construção de gênero.
Na cena final do filme, o espectador parece se sentir mais aliviado ao ver que Vera volta
para a casa, ou melhor, para a loja de sua mãe e, consequentemente, para uma possível relação
com a vendedora lésbica por quem ela se sentia atraída. Ou seja, um possível relacionamento
amoroso talvez amenize, um pouco, a sensação pesada da mutilação, fazendo com que o desfecho
desemboque numa pequena dose de happy ending.
Outro elemento que ocorre no filme é a redução. Não há momentos em que Vera se
prostitui como acontece com Ève. Esta é obrigada, por Richard, a ficar com alguns homens. Essas
passagens foram suprimidas por Almodóvar, pois Robert, ao contrário de Richard, mantinha em
segredo sua vítima que ele transformou quase fisicamente idêntica à sua mulher Gal. Aqui, ocorre
um jogo de espelho que oferece à personalidade de Robert um tom mais misterioso que resvala
num conflito interno com seu objeto de desejo, ou seja, sua vítima.
Ainda no campo da redução, nota-se que não há no filme uma participação constante do
motorista. No romance, ele aparece mais e tem um nome (Roger). A supressão deste personagem
no filme se dá por sua quase insignificância tanto na narrativa literária como na cinematográfica.
No filme, a única passagem onde ele aparece é quando Vera sai com Marilia para fazer compras.
Outra passagem que foi suprimida no filme é aquela em que Ève provoca Richard. Ela,
por vezes, o faz recordar de uma canção que tocava no baile em que Viviane foi estuprada. Tal
canção traz lembranças desagradáveis a Richard: “Na penumbra, [Richard] foi até a vitrola e
desligou o som, interrompendo as primeiras notas da melodia que, no disco, acompanhava „The
Man I Love‟.” (2) (2011, p. 8-9) Esse é o momento em que a presa, sem saber o motivo, castiga
seu predador. Por sua vez, no filme não há certa provocação, por parte de Vera, mas há, nas cenas
iniciais do filme, um fundo musical ao som de piano. Com relação à importância da música no
filme, Betton afirma que
A música tem uma considerável função psicológica no cinema, já reconhecida nos
tempos do cinema mudo: a de dar ao espectador a sensação de uma duração
efetivamente vivida e „de libertá-lo do terrível peso do silêncio.‟ Tem também uma
função estética e psicológica de altíssimo grau, criando um estado onírico, uma
atmosfera, choques afetivos que exaltam a emotividade. (1987, p. 47)
No filme, a transformação pode ser percebida também nas seguintes passagens: Zeca
(Roberto Álamo) aparece como filho de Marilia, nascido no Brasil, e também como irmão de
Robert. No livro, o personagem que se aproxima ao personagem Zeca do filme é Alex, amigo de
Vincent. Zeca e Alex são foragidos da justiça e, no final, acabam mortos. Zeca pensa que Eva é
sua ex amante (a esposa de seu irmão Robert). Ele se convence de que ela tinha voltado, após
escapar de um acidente de carro. Com essa certeza, ele a estupra vestido de tigre. Essa “fantasia”,
que ele usa, nos lança à ideia de que o personagem apresenta atitudes e ações animalescas. Para
Martin, “[...] o vestuário faz parte do arsenal dos meios de expressão fílmicos. Sua utilização pelo
cinema não é fundamentalmente diferente da que é feita pelo teatro [...]” (p. 60). Dessa forma, a
fantasia de tigre não é gratuita, pois revela, de algum modo, a personalidade do personagem.
Fig. 1 - Zeca no momento em que tenta estuprar Vera
Por sua vez, em Tarântula, Ève chega a ser sequestrada por Alex, pois este precisa que
Richard lhe faça uma plástica facial, com o único objetivo de não ser reconhecido pela polícia
que o persegue. O sequestro de Ève não existe no filme. A convergência entre os personagens,
Alex e Zeca, ocorre mais especificamente no campo da violência sexual: Zeca estupra Vera, e
Alex Viviane, a filha de Richard.
A ampliação aparece, no filme, no instante em que ocorre a interferência do mundo
exterior na vida de Robert, pois este sofre a crítica de um dos colegas de profissão que lhe faz
alguns questionamentos sobre as suas pesquisas e um possível descumprimento das regras no
campo da ética. Robert também se irrita com a desconfiança de outro colega que desconfia que
Vicente é, na verdade, Vera. Para esse colega, Ledgard internou Vicente e forçou-lhe a mutilação.
A falta de informação, sobre o desaparecimento de Vicente, ganha maiores proporções
quando é focalizada a foto dele no jornal, juntamente com outras pessoas que estão sendo
procuradas naquele momento. Tal fato talvez aluda ao passado, ao período de ditadura em que
vários jovens eram presos, torturados e mortos pelo regime autoritário.
Um exemplo de deslocamento é a morte de Zeca não ocorrer no final do filme. Tal fato
contribui para o clímax que se acerca ao desfecho trágico e libertador de A pele que habito.
Enfim, a análise das categorias de adaptação, presentes nessa obra de Almodóvar,
contribui para o seu melhor entendimento e, consequentemente, do livro de Jonquet. Hamburger,
ao tratar da discussão entre literatura e cinema, afirma que “Os gêneros dramático e épico
fundem-se no filme na forma particular do drama epicizado e do épico dramatizado – uma fusão
em que ambos os fatores são ampliados e limitados de forma singular, porém justificado do ponto
de vista estrutural e epistemológico.” (1986, p. 164). Nesse sentido, o processo de adaptação,
alcançado por Almodóvar, se justifica por apresentar um trabalho de junção de forma e conteúdo
que convergirá no valor estético do filme, que também será tratado a seguir.
Traços do mal e da violência
Após o assassinato de Zeca, sobre a cama de Vera, Marilia troca a colcha suja do sangue
de seu filho. Esta mesma colcha vermelha, que contrastava com o corpo de Eva (fig.4), agora
acumula o vermelho do sangue, desfazendo o tom erótico. Nessa cena, não há dramaticidade na
emoção de Marilia, há somente a razão que impera no instante dela limpar a cama (trocar a
colcha) e lamentar pela tragédia ocorrida. No livro, Line corresponde a Marilia, no entanto ela é
somente a empregada da mansão e não a mãe de Richard. Ao redor do fogo, que queima as
roupas de seu filho, Marilia conta a Vera a história da vida de Robert e, de certa maneira, por ser
a mãe deste, também participa da história.
No mesmo dia do estupro de Vera, Robert, com o objetivo de fazer sexo, pede que ela
suba com ele para o quarto. Tal ação mostra o nível de perversidade do personagem que, após o
estupro realizado pelo irmão, também quer manter relação sexual com a vítima. Segundo Quinet,
Em Mal-estar na civilização, Freud coloca o Eros na origem mítica do grupo humano: o
Eros é o cimento pulsional que empurra para a união, fazendo com que a humanidade
guarde junto a si seus objetos sexuais, ou seja, a mulher como objeto para o homem e a
criança como objeto para a mulher. Esses dois objetos libidinais carregam a marca da
falta-a-ter, seja pela ameaça da perda, seja pelo afastamento. Mulher e criança são,
portanto, objetos algamáticos, bens dos quais não queremos ser desapossados. (2004, p.
276)
Nesse caso, Vera passa a ser o objeto algamático, o objeto desejado de Robert que, ao ver
Zeca relacionando-se com ela, sente-se ameaçado, pois já havia perdido, anteriormente, sua
mulher para o irmão. Tal fato fez com que ele talvez se decidisse a matá-lo, pois, fazendo isso,
não sofreria com a perda de Vera.
Seis anos antes desse acontecimento, numa festa, Robert sai à procura de sua filha Norma
(Blanca Suárez) no jardim do recinto, onde se realizava o evento. Ele constata que ela parece ter
sido violentada por Vicente. Com esta certeza em mente, ele sai em perseguição deste jovem.
Após encontrá-lo, tortura-o e, também, o mutila, transformando-o em Eva. Robert caça Vicente
como se este fosse um animal. Aqui há a alusão ao predador e sua presa. Como a aranha faz com
o inseto capturado, Robert prende Vicente e começa a torturá-lo física e mentalmente. Vicente,
como se estivesse preso às teias da aranha, se esforça para dela escapar. Por sua vez, em
Tarântula encontra-se a seguinte passagem que ilustra a definição do personagem Richard:
Mas Tarântula porque ele era como a aranha, lenta e secreta, cruel e feroz, ávida e
imponderável em seus desígnios, escondido em algum lugar naquele covil onde a
mantinha sequestrado há meses, uma teia de luxo, uma armadilha dourada, de que você
era carcereiro e detento. (JONQUET, 2011, p. 66, grifo do autor)
Vicente, na verdade, não chega a estuprar Norma, ele simplesmente tenta se relacionar
com ela. Quando Robert chega ao lugar sombrio, onde Vicente está trancafiado, parece uma
aranha que vai aos poucos dominando as ações de sua presa. Vicente tenta, a todo o momento,
desvencilhar-se de Robert, que vai dosando seu veneno contra Vicente até dominá-lo por
completo. A transformação de Vicente vai ocorrendo aos poucos, ou seja, ao longo de seis anos.
Num determinado momento, pela não aceitação de seu novo corpo e de sua situação, Vicente, já
com o corpo de Vera, se revolta e rasga os vestidos que recebia de Robert. Também não aceita o
livro de maquiagem e as pinturas. Após um tempo, diante do espelho, Vicente/Vera tenta se
reconhecer, mas isso ainda é difícil. Na intenção de se livrar das garras de seu algoz, a vítima
tenta, de maneira mais racional, uma aproximação com ele.
O que Robert fez com Vicente, incluindo a vaginoplastia, foi de extrema maldade. Sobre
o mal, Rosenfield escreve que:
O mal, enquanto forma da ação, é, nesse sentido, uma „coisa feita‟, algo que é „feito‟ seja
em relação ao mundo (exploração incontrolada da natureza, que altera a sua „ natureza‟
própria), seja em relação a outros homens individualmente considerados (ação má contra
um indivíduo, procurando atingi-lo em sua integridade pessoal e física), seja em relação
a um grupo de indivíduos (por consideração racial, ideológica ou outra, visando à sua
exterminação física). (2003, p. 81)
O mal, nas obras em foco, é notado nos níveis de tortura e violência que abate sobre as
vítimas. Não se pode deixar de tocar num ponto importante na adaptação que Almodóvar faz do
romance de Jonquet, que é a questão histórica que envolve a Espanha. Em Tarântula, parece não
haver nada de significativo que caracterize a cultura francesa no que se refere à problemática
histórica de um determinado tempo. O contrário acontece em A pele que habito, onde se
consegue ler uma crítica, mesmo nas entrelinhas, de um período histórico de uma Espanha
antidemocrática. Aproveitando o eixo temático e a estrutura narrativa de Tarântula, Almodóvar
consegue aludir, em algumas passagens, à problemática de um sistema opressor. Tais passagens
estão caracterizadas, ou melhor, representadas nas atitudes do personagem Robert, quando este
aprisiona, tortura e mutila Vicente. Como afirma Arendt:
A diferença decisiva entre a dominação totalitária, baseada no terror, e as tiranias e as
ditaduras, estabelecidas pela violência, é que a primeira investe não apenas contra seus
inimigos, mas também contra seus amigos e apoiadores, temendo todo poder, mesmo o
poder de seus amigos e apoiadores. O ápice do terror é alcançado quando o Estado
policial inicia a devoração de suas próprias crias, quando o executante de ontem se torna
a vítima de hoje. É esse também o momento em que o poder desaparece completamente.
(ARENDT, 2011, p. 73)
No filme, essa tirania está simbolizada em Robert Ledgard. De acordo com Martin, “[...] o
processo normal do símbolo é sempre fazer surgir uma significação secundária e latente sob o
conteúdo imediato e evidente da imagem.” (2003, p. 105) Nesse sentido, com pontos semelhantes
às torturas cometidas pelos militares contra os presos políticos, a violência/tortura, em A pele que
habito, envolve o corpo e a mente de Vicente/Eva. Enquanto tudo isso ocorre, durante um
período de anos, a mãe de Vicente (Susi Sánchez) vai até a delegacia e pede ao delegado que
encontre seu filho. Tal fato alude também à época da ditadura na Espanha, bem como em alguns
países latino-americanos, onde jovens, contrários à ideologia do governo autoritário,
desapareciam. Tanto em Tarântula como em A pele que habito, as mães de Vincent e de Vicente,
respectivamente, nunca desistem de procurá-los. No livro, a mãe de Vincent vai à delegacia,
como se pode comprovar nesta passagem: “Ela não deixava de fazer sua visita ritual e semanal à
delegacia de Meaux, para indagar em que pé estavam as buscas pelo filho.” (2011, p. 54). Há
também o jornal com as fotos dos desaparecidos, este símbolo talvez possa ser relacionado ao
momento de repressão espanhola em que jovens sumiam sem deixar rastros.
No que se refere à beleza dos personagens, transformados fisicamente, Ève, ao contrário
de Vera, contempla sua beleza e sabe de seu poder de sedução junto aos homens. Vera, em uma
das passagens, tenta cortar seus seios, revelando sua insatisfação, pois não se aceita. Como não
tem nenhuma vida social ativa, pois está enclausurada em todos os sentidos, ela busca, depois de
alguns pedidos de soltura (sem sucesso) e de tentativa de fuga, seduzir Robert para escapar de sua
clausura.
Em suas cenas iniciais, o filme enfoca a simetria, a beleza física do corpo de Vera,
revestido por um tecido que protege ou dá forma à sua pele. A simetria, que encontramos na
beleza do personagem, e por todo o filme, desemboca na assimetria das relações e atitudes dos
personagens em geral, revelando a imperfeição de seus sentimentos e emoções. Essa assimetria é
que move a narrativa com seus percalços e conflitos. Só para completar a ideia e ampliar o tal
conceito, segue a citação do livro Criação imperfeita, de Gleiser, que trata do incômodo
provocado pela assimetria:
A assimetria incomoda. Ela expõe medos profundos, alguns esquecidos há muito, suas
raízes estendendo-se às origens da fé monoteísta. Um mundo assimétrico não pode ser
obra de um Deus perfeito. O que Platão e Kleper diriam de um mundo que não reflete
em sua estrutura as simetrias perfeitas da geometria? Que Deus geômetra seria esse? Se
o mundo é assimétrico, Deus não pode estar presente. E se Deus não existe, estamos sós,
sem uma força superior para nos ajudar a enfrentar nossos problemas, a lidar com nossos
predadores e inimigos, como nossas escolhas e nossa dor. Um mundo assimétrico é
atemorizante pois nos força a ser responsáveis pelos nossos atos. (2010, p. 153)
Com isso, pode-se relacionar Richard/Robert à ideia do “médico-monstro” em que,
livrando-se de um contexto particular, cotidiano e universal assimétrico, procuram, na criação de
um corpo belo, perfeito e simétrico, um estado mais cômodo e tranquilo que se revela o/no objeto
de desejo, nem que para isso cometam atrocidades contra o próximo. Tratando da relação entre
sujeito e objeto na narrativa, Bal disserta que
El objeto no es siempre una persona. El sujeto puede aspirar también a alcanzar cierto
estado. En Rojo y negro de Stendhal, por ejemplo, se puede detectar el esquema
siguiente: Julien – quiere amasar – poder; o Julien – aspira a – llegar a ser un hombre
poderoso. Otros objetos de intención que se encuentran en las fábulas son: riquezas,
posesiones, sabiduría, amor, felicidad, un lugar en el cielo, un lecho donde morir, un
aumento de sueldo, una sociedad justa, etc. (1) (2009, p. 35)
Buscando ocupar seu tempo, Vera vê, pela televisão, o programa National Geographic,
onde um leão mata sua presa, depois de torturá-la; ela também se interessa pela ioga e ganha,
com essa prática, um autocontrole, um equilíbrio que será usado para se livrar do cativeiro. Vera
ainda escreve, na parede, frases repetidas que a colocam num âmbito de controle, concentração e
foco.
Outra metáfora da tortura pode ser percebida no momento em que Robert controla o
crescimento de uma árvore. Ele consegue impedir o desenvolvimento normal da planta,
deixando-a miniaturizada através da técnica de poda do bonsai. Essa cena do filme pode ser
entendida como uma analogia à situação de Vera.
No livro, Ève coloca na vitrola uma canção que traz acordes de piano; no filme não há
essa passagem, porém, em algumas cenas, há notas de piano que vão ganhando proporção e
contribuindo com o clima de suspense. Elas estão como pano de fundo nas cenas iniciais, por
exemplo. No livro, as frases curtas contribuem para a aceleração da narrativa, dando ritmo ao
texto. Martin afirma que “[...] o movimento é certamente o caráter mais específico e mais
importante da imagem fílmica.” (2003, p. 22) Por outro viés, mas, de certa forma, completando a
ideia de movimento, D‟Onofrio disserta que “[...] a narrativa pode ser considerada como uma
seqüência de situações ou de relações de estado, sendo a passagem de uma para outra
determinada por uma transformação realizada pelo fazer das personagens.” (2007, p. 66) Nesse
sentido, na literatura e no cinema há um movimento que é análogo e provocado pelas sequências
dos fatos relatados e das fotografias, respectivamente, ocasionando o ritmo em ambas as
linguagens. Em A pele que habito, o movimento das fotografias recebe ajuda do som ritmado da
música de fundo. Segundo Hamburger, “Não é pela imagem fotográfica como tal que o filme é
comparável à literatura, mas é a imagem fotográfica móvel que possibilitou isso.” (1986, p. 157).
Além de ouvir a canção “The man I love” na vitrola, Ève pinta Richard travestido de
mulher:
Maquiou-se, depois tirou do cavalete de pintura do estojo, espalhou as tintas, os pincéis
e voltou a trabalhar na tela já esboçada. Tratava-se de um retrato de Richard, pesadão e
grosseiro. Havia-o representado sentado num banquinho alto de bar, as coxas afastadas,
travestido de mulher, piteira nos lábios, num vestido cor-de-rosa, as pernas ataviadas
com ligas e meias pretas; sapatos de salto alto apertavam-lhe os pés... (2011, p. 60)
Já Vera constrói bonecos com os retalhos de tecido que usa pegado à sua nova pele. A
expressão geral dos bonecos parece de sofrimento, de angústia. Tal ação talvez aluda ao que
Robert lhe faz, isto é, constrói uma nova pele para ela. Tais bonecos correspondem ao espelho de
sua situação atual. Vale salientar que Vicente, na loja de sua mãe, vestia o manequim para a
exposição na vitrine. Percebe-se que ele sentia prazer quando apalpava carinhosamente os seios
desse boneco, no instante de ajeitar o vestido. Outra passagem interessante é quando um homem,
abandonado pela esposa, pergunta à mãe de Vicente se ele pode deixar, na loja, a roupa de sua
mulher para serem vendidas. Na verdade, parece que ele quer desfazer da segunda pele dessa
mulher e, com isso, das lembranças. As roupas sejam talvez a extensão dessa pessoa.
Voltando à análise para outro viés da tortura e do controle, tanto no livro como no filme
há a presença do olhar panóptico. Baseada na figura arquitetural de uma torre projetada por
Bentham, a ideia de panóptico, descrita por Foucault,
[...] funciona como uma espécie de laboratório de poder. Graças a seus mecanismos de
observação, ganha em eficácia e em capacidade de penetração no comportamento dos
homens: um aumento de saber vem se implantar em todas as frentes do poder,
descobrindo objetos que devem ser conhecidos em todas as superfícies onde este se
exerça. (2010, p. 194)
Vera é vigiada por câmeras (olhar panóptico/olhar de controle) e não pode ver os outros
do lado de fora do quarto onde habita, pois está presa e é, na verdade, dominada e transformada
naquilo que Robert deseja. O interfone é o meio de comunicação entre ela e Marilia.
No entanto, Eva percebe, pelas atitudes de Robert, que está sendo desejada por ele.
Começa então a fazer, racionalmente, seu próprio jogo, tentando seduzi-lo, pois percebe que ele
pode se render aos seus encantos. No livro, Ève, ao invés de se rebelar contra o seu torturador,
fica com ele no final da história. Pode-se constatar isso nas últimas frases do livro: “Ela sentou-se
perto dele e pegou sua mão. Deixou a cabeça repousar sobre seu ombro. Baixinho sussurrou: Venha... Não podemos largar o cadáver aqui.” (2011, p. 158) No filme, ao contrário de Ève, Vera
carrega consigo Vicente, seu gênero.
A violência contra o corpo pode ser verificada também nos experimentos científicos que
Robert realiza. Praticando violência contra o corpo de Eva e de animais, ele consegue alcançar,
com sucesso, os resultados almejados. No afã de aprimorar sua técnica, Robert faz experimentos
com sangue extraído de animal ainda vivo. (Aqui é outra crueldade/tortura que ocorre no filme.
Além da mutilação do corpo de Eva, há também a tortura de outros corpos, como os dos
animais).
Meticulosamente, Robert vai implantando nova pele em Vera. Ele constrói uma pele
resistente ao fogo e às picadas de insetos através da transgênese. A técnica que ele usa
(transferência de uma célula de animal para o ser humano) é proibida. Robert não obedece às
normas éticas, mas consegue propagar suas ideias de transplante de rosto e de pele para uma
seleta plateia de médicos cientistas.
Neste filme, as cores são mais sóbrias, não tão explosivas, “emocionais”, como em outros
filmes de Almodóvar. Pode-se relacionar este fato ao raciocínio meticuloso de Ledgard, um
raciocínio científico e também perverso, calculista e frio. No livro, nota-se toda a estratégia de
um jogo entre os dois personagens (Ève e Richard), um jogo onde há o caçador e a caça, o
ganhador e o perdedor: “Tarântula volta e meia jogava xadrez com você. Refletia longamente
antes de arriscar uma jogada que você nunca esperava. Às vezes, improvisava ataques sem se
preocupar em proteger seu jogo, impulsivo, mas infalível.” (p. 82, grifo do autor) Este narrador
parece ser Alex/Ève, relatando sua vida a ela mesma ou a um possível leitor. Há outras passagens
em que esta mesma voz revela os acontecimentos, parecendo dialogar com o Outro.
Após a concretização de sua experiência científica e a construção de Vera, Ledgard é
vencido pela razão de Vera que lhe sugere manter um convívio social como todas as outras
pessoas. Dessa forma, usando as artimanhas de sedução, ela consegue convencê-lo disso, fazendo
com que ele se apaixone cada vez mais por ela. Por sua vez, Ève também parece estabelecer um
jogo com Richard, provocando-o eroticamente: “Estava resplandecente, num vestido decotado de
lamê preto; um colar de pérolas enfeitava seu pescoço. Debruçou-se para ele e ele reconheceu em
sua pele lívida o cheiro do perfume que ele acabava de lhe dar.” (JONQUET, 2011, p. 44). Os
desenhos que Vera faz, na parede de seu quarto, parecem não provocar em Robert dúvidas com
relação ao sentimento de paixão que ela diz sentir por ele. Nesse jogo, Marilia é a única a
perceber que Vera pode acabar com a vida de seu filho, mas seus conselhos, direcionados a
Robert, não fazem com que ele deixe de se render aos encantos de sua presa. Chega então o
momento da criatura se rebelar contra o seu criador. Robert tenta colocar Vera no lugar de sua
mulher que morreu. A partir do instante em que a razão é deixada de lado a favor da emoção,
Ledgard é derrotado, vencido pelo raciocínio de Eva que, munida de uma arma, o liquida. No
filme, o presente parece ser uma consequência do passado: Robert mutilou Vicente,
transformando-o em Vera, e isso gerou uma consequência que foi a sua paixão e morte. O mesmo
acontece com Marilia que abandona o filho: este se torna um foragido da justiça e acaba sendo
assassinado por Robert, seu irmão (aqui há uma referência bíblica que é a história de Caim e
Abel). Segundo Arendt:
A violência, sendo instrumental por natureza, é racional à medida que é eficaz em
alcançar o fim que deve justificá-la. E posto que, quando agimos, nunca sabemos com
certeza quais serão as consequências finais do que estamos fazendo, a violência só pode
permanecer racional se almeja objetivos a curto prazo. (2011, p. 99)
Nesse sentido, a violência contra Robert e sua mãe, praticada por Vera, é racional, pois,
de certa maneira, foi pensada, calculada para que ela chegasse ao objetivo (a liberdade).
No jogo de emoção versus razão, Almodóvar abandona o carro vermelho, sempre presente
em seus filmes anteriores (Kika, La flor de mi secreto, Volver, entre outros), pelo branco. Além
disso, há a presença de tons cinza pelos cenários. O vermelho, o verde e o alaranjado parecem
dissolvidos nas cenas. Tal fato resvala também na pouca emoção dos personagens que, devido às
circunstâncias em que se encontram, estão mais atentos e calculistas.
Fig. 2 - Laboratório de Ledgard
Tais características estéticas revelam talvez a racionalidade imperante de todo o filme que
condiz com as atitudes dos personagens. Nesse sentido, a estética se volta para um estilo mais
clean, para um cenário onde há vidros e metais. Para Martin,
[...] a cor pode ter um eminente valor psicológico e dramático. [...] sua utilização bem
compreendida pode ser não apenas uma fotocópia do real exterior, mas preencher
igualmente uma função expressiva e metafórica, da mesma forma que o preto-e-branco é
capaz de traduzir e dramatizar a luz. (2003, p. 71)
Em um dos cômodos da casa, nota-se que uma das telas, de Tiziano Vecellio (1488/90 –
1576), traz Vênus (3), a deusa da beleza. Nessa tela, obviamente, há um trabalho estético e
racional do pintor. Trabalho esse que Dr. Robert, como cirurgião plástico, realiza em Vera. É
clara a aproximação que ocorre entre a figura de Vênus com a imagem de Vera. Portando um
tecido da cor da pele, que sugere sua nudez, Vera posiciona-se na cama, acercando-se à posição
da figura de Vênus no quadro.
Fig. 3 – imagem que se aproxima à tela de Vecellio
No entanto, a nudez legítima de Vera está escondida debaixo de uma pele que ela habita.
Tal fato talvez se remeta à aparência, à condição de Eva não ser Eva, mas, sim, Vicente. O seu
gênero não corresponde, obviamente, ao corpo físico, modificado, arbitrariamente, por Robert.
Ele passa pela figura de Vênus, exposta na parede, e não a contempla, pois seus olhos se dirigem
para o vídeo, para o corpo e os olhos de Eva. Ele parece ter esquecido, devido à beleza de sua
criatura, que ela é Vicente.
Tal cena é mostrada ao som dos acordes de violino que parecem delinear cada canto,
desenho e forma do cenário. No quarto de Robert, a tela da televisão traz Vera em tamanho
grande. Ela é focada, por vezes, nua e ao vivo, diretamente do outro quarto. Para ele, tal imagem
talvez seja uma obra de arte, ou seja, a sua arte.
Fig. 4 - Ledgard contemplando, em close-up,
o rosto de Eva
Para terminar, este item do artigo, faz-se necessário colocar aqui que a tortura praticada
por Richard, em sua vítima (Ève), envolve os cinco sentidos humanos, como a audição, o tato, o
olfato, o paladar e a visão. Para efeito de ilustração, seguem elencados alguns momentos em que
esse fato ocorre. Com relação à visão, tem-se a seguinte passagem: “___Eu lhe suplico, não
demore mais, sua vagabunda! Ève teve um sobressalto violento quando as duas caixas de som
300 watts embutidas nas divisórias da alcova repercutiram poderosamente o berro de Richard.”
(JONQUET, 2011, p. 9) Richard, quando queria sair com Ève, ou quando se sentia provocado por
ela, gritava através da caixa de som, instalada no quarto da vítima. A tortura que envolve o tato
pode ser percebida neste trecho: “_Havia um gosto de terra molhada na sua boca, toda aquela
lama pegajosa embaixo de você, aquele contato tépido e suave contra seu torso – sua camisa
estava rasgada -, cheiros de musgo, de lenha apodrecida.” (idem, p. 32, grifo do autor) Esta
passagem se refere ao tempo em que Vincent ficou preso num esconderijo fora da casa de
Ledgard. Por sua vez, o olfato também está presente no momento em que Richard coloca um
“pano fedorento” no rosto de Vincent: “O joelho dele pesava cada vez mais nas suas costas. Você
gritou, mas ele enfiou um pano fedorento na sua cara.” (idem, p. 33, grifo do autor) Uma das
passagens que indica a tortura pelo paladar é esta: “Depois da sede, veio a fome. À secura da sua
garganta, àquelas pedras de arestas salientes que lhe rasgavam a boca, vieram juntar-se dores
profundas, difusas, em sua barriga; mãos revolvendo seu estômago, enchendo-o de fel e
cãibra...” (idem, p. 48, grifo do autor) Richard, no início da prisão de Vincent, deixou este passar
sede e fome, domesticando-o como se fosse um animal. Já a tortura pela visão pode ser
constatada neste outro trecho: “Ele largou a lanterna e, agarrando-o pelos cabelos, virou seu rosto
para o facho de luz amarela. Você não enxergava nada.” (idem, p. 33) Passando parte do tempo
num lugar sombrio, com pouca luz, Vicente é torturado quando Richard, de repente, lhe lança no
rosto um facho de luz que agride, de alguma forma, sua visão.
Neste artigo, foram analisadas as categorias de adaptação fílmica, assim como algumas
passagens, presentes tanto no romance como no filme, que tratam de temas como o mal, a
violência e as torturas do corpo e da mente sofridas pelos protagonistas. Dessa forma, o estudo
comparativo, entre essas obras, aponta alguns possíveis resultados, tais como: a) no romance não
há a construção de uma pele resistente. No entanto, no filme Robert constrói uma pele para
Vicente que resiste aos cortes e ao fogo. Talvez a pele represente toda a repressão e controle de
uma sociedade sobre o sujeito. Parece que não só Vicente é “emoldurado”, preso, por uma pele,
mas os indivíduos que habitam sob uma determinada cultura e sofrem com isso. Em suma, cada
pessoa, guardada as devidas proporções, vive sob o olhar panóptico de uma sociedade de controle
que tudo vigia. b) Robert pode representar, por um ângulo, também, o regime antidemocrático
franquista, por exemplo. Almodóvar, ao inspirar-se no romance de Jonquet, teve que adaptá-lo
para a cultura espanhola. Parece haver, nas entrelinhas dessa obra, uma volta ao passado, um
volta ao momento histórico antidemocrático espanhol. Robert talvez seja a metáfora de um
sistema antidemocrático, pois em sua personalidade está o desejo pela tortura e pelo controle de
amigos e inimigos. c) Robert parece ter dupla personalidade quando, diante do público, se
apresenta como um médico empenhado em fazer sua pesquisa para o bem da humanidade e, no
interior de sua casa, aparece o ser desumano, controlador, um indivíduo que tortura e escraviza
um homem, transformando-o em outro, em um homem transexual. Tanto Robert, como Richard,
cometem a pior das violências que é a mudança forçada, arbitrária de sexo do corpo de um ser
humano, violando a individualidade do sujeito e satisfazendo-se com isso.
Por fim, a leitura comparativa entre Tarântula e A pele que habito talvez possa esclarecer
algumas passagens das obras, assim como contribuir com os estudos comparados entre literatura
e cinema.
Notas
* Professor na Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul (UEMS- Dourados) e doutorando em Letras na Universidade do Rio
Grande do Sul (UFRGS).
(1)“O objeto não é sempre uma pessoa. O sujeito pode aspirar também a alcançar certo estado. Em Vermelho e negro, de
Stendhal, por exemplo, se pode detectar o seguinte esquema: Julien – quer maquinar – poder; ou Julien – aspira a – chegar a ser
um homem poderoso. Outros objetos de intenção que se encontram nas fábulas são: riquezas, posses, sabedoria, amor, felicidade,
um lugar no céu, uma cama onde morrer, um aumento de salário, uma sociedade justa, etc.” (tradução minha)
(2) Interpretada por vários cantores, entre eles Billie Holiday, Ella Fitzgerald e Caetano Veloso, a canção “The Man I Love”
(1927) foi escrita por Ira Gershwin e musicada por George Gershwin.
(3) A tela que aparece no filme é “Vénus avec Cupidon et un organiste” (1550-1552), de Tiziano Vecellio.
BIBLIOGRAFIA
A pele que habito. Direção: Pedro Almodóvar. Produtores: Agustín Almodóvar e Esther García.
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