As balas - Violência

Transcrição

As balas - Violência
Violência:
que
futuro
para a
humanidade?
Índice
Enquanto........................................................................................................................... 1
As balas ............................................................................................................................ 3
O pássaro e a guerra.......................................................................................................... 1
Ynari: A menina das cinco tranças ................................................................................... 3
A estrela de Erika ........................................................................................................... 23
Os conquistadores........................................................................................................... 27
Violência «com sentido» e violência «gratuita»............................................................. 29
A guerra contra as crianças............................................................................................. 37
As armas engordam as economias.................................................................................. 51
A bomba está entre nós................................................................................................... 53
Um mundo perigoso ....................................................................................................... 73
O rito da guerra e a psique do guerreiro ......................................................................... 75
MyLai: uma análise da maldade em grupo..................................................................... 79
Quem luta perde sempre (conto indiano) ....................................................................... 91
Duas cabras numa ponte (conto russo) ........................................................................... 93
Tentando alcançar a lua (conto tibetano)........................................................................ 95
Um homem sem cabeça (conto argelino) ....................................................................... 97
Força (conto da África Ocidental) .................................................................................. 99
A guerra entre as galinholas e as baleias (conto das Ilhas Marshall) ........................... 103
O cão preto (conto indiano) .......................................................................................... 109
Diálogo e respeito mútuo.............................................................................................. 113
Sementes de violência .................................................................................................. 115
Para uma cultura da não-violência................................................................................ 121
Enquanto
ENQUANTO
Enquanto houver um homem caído de bruços no passeio
e um sargento que lhe volta o corpo com a ponta do pé
para ver como é;
enquanto o sangue gorgolejar das artérias abertas
e correr pelos interstícios das pedras,
pressuroso e vivo como vermelhas minhocas despertas;
enquanto as crianças de olhos lívidos e redondos como luas,
órfãs de pais e de mães,
andarem acossadas pelas ruas
como matilhas de cães;
enquanto as aves tiverem de interromper o seu canto
com o coraçãozinho débil a saltar-lhes do peito fremente,
num silêncio de espanto
rasgado pelo grito da sereia estridente;
enquanto o grande pássaro de fogo e alumínio
cobrir o mundo com a sombra escaldante das suas asas
amassando na mesma lama de extermínio
os ossos dos homens e as traves das suas casas;
enquanto tudo isto acontecer, e o mais que se não diz por ser verdade,
enquanto for preciso lutar até ao desespero da agonia,
o poeta escreverá com alcatrão nos muros da cidade:
ABAIXO O MISTÉRIO DA POESIA.
António Gedeão
Obra Poética
Lisboa, Ed. João Sá Couto, 2001
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ASAsBALAS
balas
Dá o Outono as uvas e o vinho
Dos olivais o azeite nos é dado
Dá a cama e a mesa o verde pinho
As balas dão o sangue derramado
Dá a chuva o Inverno criador
Às sementes dá sulcos o arado
No lar a lenha em chama dá calor
As balas dão o sangue derramado
Dá a Primavera o campo colorido
Glória e coroa do mundo renovado
Aos corações dá amor renascido
As balas dão o sangue derramado
Dá o sol as searas pelo Verão
O fermento ao trigo amassado
No esbraseado forno dá o pão
As balas dão o sangue derramado
Dá cada dia ao homem novo alento
De conquistar o bem que lhe é negado
Dá a conquista um puro sentimento
As balas dão o sangue derramado
Que as balas só dão sangue derramado
Só roubo e fome e sangue derramado
Só ruína e peste e sangue derramado
Só crime e morte e sangue derramado.
Manuel da Fonseca
José Fanha (org.)
DE PALAVRA EM PUNHO
Porto, Campo das Letras, 2004
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O pássaro e a guerra
Nesta fábula dos Legas (do Zaire), um pássaro explica-nos como são absurdas as guerras dos homens.
Ai se os homens lhe dessem ouvidos…
Kansisi é um pássaro branco com as asas negras e faz o ninho nos bananais em redor
das aldeias. Testemunha da vida quotidiana das pessoas, sabe muita coisa sobre o
comportamento dos homens.
Por isso, um dia, o seu amigo Monkonia, pássaro que frequenta pouco estes sítios, veio
colocar-lhe um problema que há muito o apoquentava:
— Porque é que os homens fazem a guerra?
Kansisi deu uma gargalhada. Mas o amigo voltou a insistir:
— Os homens dizem que são inteligentes e racionais; como é que não conseguem,
então, estar de acordo? Não há ninguém que cometa tantas asneiras como eles.
— Por diversos motivos — respondeu Kansisi. — A avidez, a inveja, a vingança levam-nos a pegar em armas uns contra os outros. Guerreiam-se até por coisas banais, sem pensar
nas consequências. Anda comigo, que eu mostro-te um exemplo concreto.
Voaram juntos até à aldeia vizinha. Monkonia poisou numa folha de bananeira, de onde
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podia observar tudo o que acontecia.
Era meio-dia, e o sol queimava. A aldeia estava deserta, parecia adormecida. Só uma
criança pequena brincava no meio do pó, junto de alguns potes de barro ainda frescos, a secar
ao sol antes de serem cozidos no forno.
Kansisi poisou num desses potes. A criança viu-o e correu para o espantar com um pau.
O pássaro voou para mais longe e a criança acabou por bater no pote, que rolou no chão, com
uma pequena mossa. Ao ouvir o barulho, a dona dos potes saiu cá para fora e deu duas
valentes chapadas na criança. Ouvindo a criança a chorar, a mãe agarrou num ramo de árvore e
deu com ele na mulher, que gritou por socorro. O marido dela saiu de casa com uma faca, e a
mãe da criança fugiu chamando pelo marido. Ouvindo esta barulheira toda, mais homens e
mulheres saíram de casa gritando e brandindo bastões, sachos e facas. Voavam insultos e
ameaças de todos os lados. Dez minutos mais tarde, a aldeia estava em pé de guerra: o clã da
dona dos potes contra o clã da outra mulher. Ninguém fazia ideia do motivo que causara esta
situação e nem queria saber nem pensar nas consequências do conflito. A briga durou o tempo
suficiente para provocar danos irreparáveis; houve mesmo mortos e feridos.
Entretanto, Kansisi, regressando para junto do amigo, contemplava com satisfação o
desenvolvimento da peleja.
— Aí tens! — disse ao amigo. — É assim que nascem as guerras entre os homens. A
conclusão podes tirá-la tu mesmo!
Ela está bem expressa em dois provérbios dos Lega:
O pássaro Kansisi provoca a guerra, mas fica em paz pousado na sua folha.
O estulto entra na rixa sem medir as causas nem os efeitos.
Além-Mar
Abril 2004
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Ynari
A menina das cinco tranças
Era uma vez uma menina que tinha cinco tranças lindas e se chamava Ynari. Ela gostava
muito de passear perto da sua aldeia, ver o campo, ouvir os passarinhos, e sentar-se junto à
margem do rio.
Certa tarde, já o Sol se punha, Ynari ouviu um barulho. Não eram os peixes a saltar na
água, não era o cágado que às vezes lhe fazia companhia, nem era um passarinho verde. Do
capim alto saiu um homem muito pequenino com um sorriso muito grande. E embora ele não
fosse do tamanho dos homens da aldeia de Ynari, ela não se assustou.
O homem muito pequenino andava devagarinho e devagarinho se aproximou.
— Olá! — cumprimentou.
— Olá — respondeu Ynari, receando que estivesse a falar alto demais para o tamanho
do ouvido do homem muito pequenino.
— Desculpa, mas não sei o teu nome...
— Eu também não sei o meu nome... — desculpou-se o homem muito pequenino.
— Mas chamam-me homem pequenino.
— Ah, está bem... — sorriu Ynari, enquanto se deitava na relva para ficar mais perto
dele. — Eu tenho um nome só, quer dizer, uma só palavra: chamo-me Ynari.
— Ynari é um nome muito bonito — o homem sentou-se, ficando, assim, ainda mais
pequeno.
— Posso fazer uma pergunta, homem muito pequenino?
— Podes fazer muitas perguntas.
— De onde vens?
— Venho da minha aldeia, que fica mais para cima, junto à nascente do rio.
— E lá, na tua aldeia, são todos pequeninos?
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— Sim, somos todos mais pequenos que vocês, quer dizer, depende daquilo que
entendemos por «pequeno». Não achas?
— Nunca tinha pensado nisso. Sempre pensei que uma coisa menor fosse uma coisa
pequena...
— Pode não ser assim... Conheces a palavra «coração»?
— Conheço! — sorriu Ynari. — E não é só uma palavra, é isto que bate dentro de nós
— e mostrou no seu peito onde o coração batia.
— Claro, e... O coração é pequeno para ti?
— É... e não é! Cabe tanta coisa lá dentro, o amor, os nossos amigos, a nossa família...
— Vês? — disse o homem mais pequeno que ela. — Às vezes uma coisa pequenina
pode ser tão grande...
Os dois ficaram por um tempo calados, olhando o Sol que, do outro lado do rio, quase
já tinha desaparecido. Assim, tão amarelada que estava a tarde, parecia que o Sol se ia afogar
no rio e que os peixes, saltando, se queimavam nos seus raios avermelhados. Estiveram algum
tempo assim, até que Ynari começou a brincar com as suas tranças: eram cinco tranças lindas,
negras, compridas. A menina tinha olhos enormes que brilhavam muito e lábios carnudos
muito bonitos.
— E tu, de onde vens? — perguntou o homem mais pequeno que Ynari.
— Eu venho daquela aldeia ali — apontou a menina na direcção das cubatas. — Vivo
ali com a minha mãe, o meu pai, a minha avó e o meu povo.
— E quem te faz as tranças?
— Ninguém me faz estas tranças, porque elas não se desfazem... A minha avó diz que
eu já nasci com as tranças e que um dia vou saber porquê. Eu gosto muito de brincar com as
minhas tranças.
Levantaram-se, os dois, e caminharam junto ao rio. Agora o homem mais pequenino
que Ynari já não lhe parecia tão pequenino, nem era estranho caminhar ao seu lado, embora
ele fosse muito mais baixo do que a menina. De vez em quando, Ynari afastava os capins mais
altos para que o homem mais pequeno pudesse caminhar livremente.
— Não tens medo dos bichos? — ela perguntou.
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— Não. Os bichos não fazem mal nenhum... E mesmo a palavra «medo» pode ser vivida
de várias maneiras.
— Mas quando estás perto de uma palanca negra gigante, tens medo, ou não?
— Sabes, Ynari, nunca estive muito perto de uma palanca negra gigante, embora já a
tenha visto muitas vezes. E tu?
— Eu só a vejo de longe.
— A palanca negra gigante correu até perto de ti, fez-te mal?
— Não, nunca.
— Vês... não precisas de usar a palavra «medo».
— Também acho... — disse Ynari, dando a mão ao homem simplesmente pequeno.
Já era mesmo de noite. O céu não tinha nuvens nenhumas e estava cheio de estrelas para
se contar. Os dois olharam o céu, que era escuro e brilhante ao mesmo tempo.
— Olha tantas estrelas...
— Estou a olhar — disse o homem simplesmente pequeno.
— Parece que dançam! — Ynari sorria de contente.
— É verdade... parece mesmo. Deve ser altura de usarmos a palavra «admiração», não
achas? — sorriu o homem simplesmente pequeno.
— Acho, sim... Mas, olha, tenho que ir.
— Se tens que ir, tens que ir.
— Amanhã posso ver-te? — perguntou Ynari.
— Podes. Amanhã estarei ali, no mesmo sítio onde hoje nos encontrámos, junto ao rio,
ao nascer do Sol.
— Amanhã podemos brincar com mais palavras?
— Claro. Podemos sempre brincar com as palavras...! — sorriu o homem que já não
parecia tão pequenino.
— Bons sonhos — despediu-se Ynari, a correr. — Até amanhã.
— Até amanhã. Bons sonhos para ti também.
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Ynari voltou a correr para a sua aldeia e decidiu não dizer a ninguém que tinha
encontrado um homem que era pequenino mas que não era tão pequenino assim. Os
caçadores tinham regressado, e o povo estava à volta da fogueira, contente com a caçada, de
modo que ninguém lhe ia ralhar por chegar tarde. Ynari não gostava de ver os olongos
mortos, embora a sua avó lhe tivesse explicado que os homens da sua aldeia só caçavam para
comer.
Já deitada, a menina das cinco tranças sentiu que a avó se aproximava. A avó, que se
mexia devagarinho porque era muito velhinha (e que também estava a ficar pequenininha
embora não tão pequenininha como o homem que já não lhe parecia tão pequenino), veio
deitar-se ao pé dela.
— Estás triste por causa dos olongos? — a avó perguntou.
— Não… Hoje o meu coração não ficou triste. Hoje… — e Ynari quase revelou o seu
segredo.
— Hoje o quê? — perguntou a avó.
— Nada, avó… Não te posso contar ainda. Mas hoje foi um dia muito especial para
mim — disse Ynari, deu um beijinho à avó e adormeceu.
No dia seguinte, muito cedo, mesmo antes de os galos cantarem, Ynari afastou-se da
aldeia em direcção ao rio. Sentou-se e ouviu ruídos nos capins altos.
O homem que agora não lhe parecia tão pequeno apareceu com o mesmo sorriso nos
lábios. Ela virou-se e cumprimentou:
— Bom dia, homem pequenino. Estou contente por te ver.
— Bom dia, menina das cinco tranças… Também o meu coração se alegrou quando te
vi.
— Sabes, esta noite tive um sonho...
— Queres contar-me? — o homem pequeno sentou-se.
— Sonhei que eu e tu estávamos aqui sentados, em frente ao rio. E depois íamos para
muito longe, acho que era a tua aldeia...
— E depois?
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— Depois falávamos com muitos homens... E havia muitas palavras, e crianças... Vi
muitas imagens, não me lembro de tudo.
— Se calhar devemos aqui usar a palavra «confusão»... É isso? — sorriu o homem
menos pequenino...
— É mesmo — desatou a rir Ynari, a menina das cinco tranças.
— É uma grande confusão, sim...
Estavam assim os dois conversando sobre as palavras, a importância que as palavras
tinham na vida de cada um, como as usavam, quando as usavam, com quem as usavam, e que
significados tinham para o coração de cada um deles.
Ynari tentou explicar-lhe que havia palavras que para ela tinham mais do que um
significado ou que lhe provocavam mais do que uma só alegria ou uma só tristeza. A menina
disse que era difícil explicar às crianças da sua idade como gostava de palavras, e o que as
palavras podiam fazer entre duas pessoas.
— Sempre gostei muito das palavras, mesmo daquelas que ainda não conheço, sabes?
Existem palavras que estão no nosso coração e que nunca estiveram na nossa boca... Nunca
sentiste isso? — perguntou finalmente Ynari, depois de tantas e tantas palavras ditas.
O homem mais ou menos pequeno escutou, atento a tudo. E ia começar a falar quando,
do outro lado do rio, lá em cima de uma montanha, um grupo de homens com armas na mão
começou a disparar contra outro grupo de homens com armas na mão.
Dali, daquele lado do rio, Ynari e o homem mais ou menos pequeno podiam ver tudo:
aqueles homens não gostavam uns dos outros, e usavam as armas e as balas e as vidas uns dos
outros para mostrar a sua raiva. Ynari estava assustada mas não se mexeu. O homem mais ou
menos pequeno fechou um bocadinho os olhos, como fazem as pessoas que querem ver
melhor coisas que estão a acontecer muito longe. Depois os tiros pararam e alguns homens
correram em direcção a esta margem do rio. Ynari e o homem mais ou menos pequeno
esconderam-se atrás dos capins altos e agacharam-se sem fazer barulho. Ynari tremia de medo
e os seus olhos mostravam que estava assustada. Apertou com muita força a mão daquele
homem pequeno, e ele disse-lhe baixinho:
— Não tenhas medo, Ynari...
Os homens com armas na mão vieram e puseram-se a dormir. O homem pequeno saiu
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dos capins altos, foi até muito perto deles. Mexia-se de um modo estranho e dizia, baixinho,
umas tantas palavras. De repente, as armas dos homens que estavam a dormir transformaram-se em armas de barro.
Ynari espreitava nos capins altos e ficou com a boca toda aberta de espanto: era um
homem pequeno e mágico!
O homem pequeno e mágico voltou devagarinho, pegou na mão de Ynari e caminharam
para norte, sempre junto ao rio. Parecia que não tinham caminhado muito, mas a vegetação
era toda diferente: as flores eram mais amareladas e as árvores mais altas.
Depois afastaram-se do rio e finalmente pararam junto de duas enormes árvores que, lá
bem em cima, se tocavam.
— Para isto... podemos usar as palavras «portão de árvore»? — disse Ynari, enquanto
olhava muito espantada, porque o «portão de árvore» era muito alto e bonito.
— Sim — respondeu o homem pequeno e mágico. — Podes usar essas palavras... Este
é o portão de árvore onde começa a minha aldeia!
— Ah! — exclamou Ynari, cheia de curiosidade.
Entraram na aldeia. O que pisavam era um capim muito curto, muito verde, muito bom
de se pisar porque era suave e estava sempre molhado. Quando olhou com mais cuidado,
Ynari viu muitas árvores pequenas e percebeu que eram as casas dos homens pequenos. Eram,
como ela mesma pensou, «as casas pequenas dos homens pequenos».
Muitos homens e mulheres (todos pequenos) espreitavam das suas árvores pequenas
para olhar a menina que passava de mãos dadas com o homem pequeno e mágico.
— És tu o soba da aldeia? — Ynari perguntou.
— Não — sorriu o homem pequeno e mágico. — Nesta aldeia não temos soba.
Pararam diante de uma árvore muito antiga. O homem pequeno e mágico roçou o
cotovelo no casco da árvore, e ouviram-se passinhos vindos de dentro. Ynari encolheu-se atrás
do homem pequeno e mágico.
— Não tenhas medo, Ynari, quero-te apresentar duas pessoas muito especiais.
Era um velho muito velho com umas barbas muito grandes que quase chegavam ao
chão. Caminhava com a ajuda de um pau torto, muito torto, que era como se fosse a sua
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bengala pequenina.
— Ynari: este é o velho muito velho que inventa as palavras — disse o homem pequeno
e mágico.
O velho olhou para cima, para o rosto belo de Ynari, e sorriu. Bateu três vezes com a
sua bengala pequenina no chão, que era a sua maneira de dizer que estava contente. Atrás dele
apareceu outra velha muito velhinha, só que não tinha barbas, tinha uma trança branca muito
comprida.
— Ynari: esta é a velha muito velha que destrói as palavras — disse o homem pequeno
e mágico.
Logo depois, Ynari foi sendo apresentada a outros homens pequenos e mulheres
pequenas. Enquanto se preparava uma festa pequenina por causa da chegada de Ynari, ela
afastou-se com o homem pequeno e mágico e sentaram-se numa pedra alta, de onde se via
toda a aldeia dos homens pequenos.
— Tu és um mágico, homem pequeno! — disse Ynari, espantada.
— Todos somos mágicos, Ynari. Aqui vais aprender que todos somos mágicos...
— Tu encantas as armas! As armas ficaram de barro — disse, espantada, Ynari. —
Imagino quando eles agora forem disparar! — desatou a rir a menina das cinco tranças.
— Aquelas armas já não disparam. Agora podemos utilizar a palavra «inútil».
— O que é «inútil»? — quis saber Ynari.
— É aquilo que já não é útil, ou seja, que já não serve para nada.
— Ah... Diz-me uma coisa — Ynari olhou para o homem pequeno e mágico. — Todos
somos mesmo mágicos?
— Sim, todos. Mas cada um tem que descobrir a sua magia.
— Eu queria descobrir a minha...
— Já não falta muito — disse o homem pequeno e mágico enquanto se levantava. — Já
não falta muito, Ynari.
Entretanto a festa estava pronta.
Alguns homens pequenos com batuques pequenininhos começaram a tocar, outros
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dançavam, e muitos riam alegremente. Comeram, e Ynari teve que comer muitas vezes porque
a comida era pequenina e ela estava com muita fome.
Depois a música parou.
Todos se sentaram e então Ynari, a menina das cinco tranças, viu que as pessoas
pequenas se afastavam para deixar passar o velho muito velho que inventa as palavras e a velha
muito velha que destrói as palavras.
Ynari sentou-se também e ficou a olhar.
No meio das pessoas havia uma enorme cabaça mas, mesmo assim, claro, era uma cabaça
pequena, onde o velho muito velho e a velha muito velha deitavam ervas e diziam algumas
palavras que ela nunca tinha ouvido nem conseguia sequer entendê-las para as repetir dentro
de si.
Alguns homens pequenos aproximaram-se da velha muito velha que destrói as palavras,
e cada um deles disse, no ouvido dela, uma palavra. A velha muito velha que destrói as
palavras ouviu todas as palavras que os homens pequenos tinham trazido de fora da aldeia e
decidiu que ia destruir algumas delas.
— São palavras que já não servem para nada, e têm que desaparecer... — disse a velha
muito velha que destrói as palavras.
— São palavras «inúteis», é isso? — perguntou baixinho Ynari.
— Sim — confirmou o homem pequeno e mágico.
Depois, outro grupo de homens pequenos aproximou-se da roda de pessoas. O velho
muito velho que inventa palavras pôs novas ervas na cabaça enorme mas pequena, disse
também algumas palavras que Ynari não conseguia lembrar, mesmo assim, estando ainda as
palavras tão frescas. Os homens pequenos punham a mão na cabaça enorme mas pequena,
bebiam um pouco do líquido e aproximavam-se do velho muito velho que inventa palavras.
Ele dizia uma palavra no ouvido de cada um e eles abandonavam a aldeia dos homens
pequeninos para voltarem só no próximo cacimbo.
O homem pequeno e mágico foi chamado ao centro, e apresentou Ynari, a menina das
cinco tranças.
Também Ynari foi chamada ao centro pela velha muito velha e pelo velho muito velho.
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Ela foi devagarinho, caminhando envergonhada por estar tanta gente pequenina a olhar
para ela.
— Agora és tu, Ynari — disse o homem pequeno e mágico
— Vou saber a minha magia? — perguntou Ynari.
O homem pequeno e mágico foi-se sentar, e Ynari, a menina das cinco tranças, ficou
perto da cabaça enorme mas pequena, ouvindo a velha e o velho.
A velha muito velha que destrói as palavras falou assim:
— Cada pessoa sua magia; cada árvore sua raiz. O peixe só sabe nadar na água. O
humbi-humbi preso, nas gaiolas, morre. Coisa de metal que sai metal e fumo, destruímos.
Coisa de metal que vira semente e mata, destruímos. De noite, olhar e respeitar as estrelas.
De dia, olhar e imitar os animais. Primeiro somos crianças, depois somos caçadores, depois
temos crianças, depois ficamos a olhar as crianças. O cágado, sempre lento, é quem chega
primeiro. Mais sabedoria tem a palanca negra gigante que só olha os homens de longe. Falei.
Ynari estava quietinha porque sabia que tinha de ouvir os mais-velhos sem nada dizer,
mas olhava para o homem pequeno e mágico, porque pouco entendia aquelas palavras. Então,
o velho muito velho que inventa as palavras falou assim:
— Cada rio suas águas; cada céu suas nuvens. Peixe dentro da água brinca, fora da água
sofre. O humbi-humbi não conhece gaiola, só respeita nuvem. Coisa de metal que sai fumo,
vira barro. Coisa de metal como semente, vira embondeiro. De noite, as estrelas olhar e uma
só escolher. De dia, os animais caçar, seja, o alimento. Primeiro somos crianças e coração
bate. Depois somos caçados por nosso coração. Depois descobrimos criança no coração.
Depois a criança nos ensina outros caminhos do coração. O cágado também sabe perder. A
palanca negra gigante também sabe fugir. Falei.
Então, juntos, os velhos deitaram ervas na cabaça enorme mas pequena. Olharam
durante algum tempo para Ynari, e finalmente sorriram. Parecia que os dois velhos muito
velhos falavam numa só voz:
— Não temos uma magia para te dar, tens que ser tu a descobrir a tua magia...Todas as
cacimbas nos reunimos aqui, para destruir palavras que já não servem, e inventar algumas que
vão servir para alguma coisa. Nós conhecemos a sombra da tua magia, mas só tu podes saber
onde está a própria magia. Hoje queremos oferecer-te uma palavra e dar-te uma fórmula.
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Ynari sorriu, estava contente, sentiu que todas aquelas palavras lhe eram muito «úteis».
— Leva contigo a palavra «permuta» — disseram-lhe.
— E a fórmula? — perguntou Ynari.
— A fórmula está dentro do teu coração.
Ynari estava muito contente ao sair da aldeia dos homens pequeninos, e não ficou triste
com a despedida. O homem pequeno e mágico acompanhava-a, e voltaram muito depressa
para junto do rio.
— Tenho que ir. Amanhã posso ver-te?
— Sim, claro que podes ver-me. Amanhã cá estarei.
— Bons sonhos para ti.
— Bons sonhos para ti também, menina das cinco tranças.
— Sabes uma coisa? — disse Ynari.
— O que é?
— Os sonhos ajudam-me a viver. Acho que eles também me vão ajudar a descobrir a
minha magia…
Ynari foi a correr em direcção à sua aldeia.
Era o segundo dia a seguir à caçada e ninguém se zangou por ela ter chegado um pouco
mais tarde.
Ynari foi-se deitar e teve um sonho com muitas palavras novas. Durante o sonho, um
velho
muito
velho
que
explica
o
significado
das
palavras
explicou-
-lhe o que queria dizer a palavra «permuta». Ela fez muitas perguntas a esse velho muito
velho, e finalmente pensou que uma permuta era uma troca justa, em que alguém dá alguma
coisa e também recebe algo, pode não ser do mesmo tamanho, ou da mesma cor, ou até do
mesmo sabor... Mas Ynari entendeu que numa permuta é bom que duas pessoas, ou dois
povos, fiquem contentes com o resultado dessa troca.
A menina das cinco tranças acordou muito cedo nesse dia.
Caminhou em direcção ao rio. As suas águas estavam calmas e Ynari pensou que se
calhar os peixes ainda estavam a dormir, e talvez estivessem mesmo a sonhar.
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Dos capins altos saiu, mais uma vez, o homem pequeno e mágico.
— Bom dia, homem pequeno e mágico — sorriu Ynari. — Estou contente por te ver!
— Bom dia, menina das cinco tranças. Eu também estou contente por te ver.
— Sabes, esta noite tive mais um sonho.
— E queres contar-me? — sentou-se o homem pequeno e mágico.
— Sonhei primeiro com um velho muito velho que explica o significado das palavras.
— Sim, sei quem é.
— E ele explicou-me o significado da palavra «permuta»... Mas eu também queria
perguntar coisas sobre a palavra «guerra». Eu até sei como usam essa palavra, mas... para que
serve a palavra «guerra»?
— Sabes, Ynari, embora eu não seja o velho muito velho que explica o significado das
palavras, também eu tenho guardado no meu coração o significado de algumas palavras. E eu
acho que a palavra «guerra» não serve para nada!
— E a palavra «explosão»?
— Eu acho que a palavra «explosão» só devia ser usada noutras situações, não em
situações de guerra.
— Em que situações? — perguntou Ynari, enquanto olhava para o rio, porque os
peixes já saltavam, já tinham acordado.
— Queres pensar comigo? — disse o homem pequeno e mágico.
— Começa tu — pediu Ynari.
— Então, eu acho que a palavra «explosão» podia ser mais utilizada entre as estrelas.
Quando elas chocam, nós aqui no planeta Terra vemos uma coisa linda acontecer no céu...
— Ah!, que bonito — exclamou Ynari. — E uma «explosão de alegria», pode ser?
— Claro! — riu bem alto o homem pequeno e mágico. — E uma «explosão de cores»?
— Também... Também pode ser.
Estiveram um bom tempo em silêncio observando os peixes que nadavam e os pássaros
que voavam. Realmente, quando se sabe ver as coisas simples da vida, descobre-se que o
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mundo é muito, muito bonito.
Ynari, a menina das cinco tranças, deu a mão ao homem pequeno e mágico, e foram
caminhando junto ao rio, sempre para sul.
— Eu acho que já descobri a minha magia — disse a menina. — Podes vir comigo a
cinco aldeias?
— Posso, se quiseres que eu vá contigo...
— Quero. Quero que vejas o que eu vou fazer e que depois vás à tua aldeia dar um
recado meu à velha muito velha que destrói as palavras.
— Está bem — concordou o homem pequeno e mágico.
Ynari tinha aprendido com o homem pequeno que um sítio fica muito perto se
quisermos que esse sítio esteja perto de nós.
Caminharam muito, mas não estavam cansados, e assim chegaram à primeira aldeia.
Ynari bateu as palmas e o soba da aldeia veio falar com eles.
— Bom dia, mais-velho — Ynari cumprimentou. Mas o mais-velho não escutou porque
era surdo. Então Ynari falou com ele por gestos e ele entendeu.
— Bom dia, menina — disse, por gestos, o mais-velho.
— Diz-me uma coisa: esta aldeia está em guerra?
— Sim, estamos em guerra com outra aldeia.
— E porquê?
— Porque nós não ouvimos os passarinhos, e eles ouvem! E nós também queremos
ouvir os passarinhos, as quedas-d'água, a voz das pessoas — gesticulou o mais-velho.
— Já entendi, mas diz-me uma coisa...
— O que é? — perguntou o mais-velho.
— Se eu vos ensinar a ouvir os passarinhos, vocês deixam de estar em guerra?
— Sim. Nós só queremos saber usar a palavra «ouvir».
— Muito bem. Então peço-te que juntes todo o teu povo hoje de noite, faças uma
fogueira, arranjes uma cabaça. E eu vou ensinar-vos a palavra «ouvir».
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Assim foi.
Preparou-se a festa, uma cabaça enorme foi posta ao lume, e toda a aldeia foi chamada
para estar presente. Afinal, estava na aldeia uma menina com cinco tranças que ia ensinar a
palavra «ouvir».
Ynari pediu que todos os habitantes da aldeia fizessem uma fila, trouxessem do rio um
bocadinho de água na mão, e pusessem essa água na cabaça. A fogueira já estava acesa, já todos
tinham posto o seu bocadinho de água na cabaça, quando Ynari disse algumas palavras, e
depois ouviu-se a palavra «permuta». Com a catana do mais-velho ela cortou uma trança e
deitou-a na enorme cabaça.
— Agora vão todos dormir... — pediu Ynari.
No dia seguinte, quando acordaram, ainda saía fumo da cabaça enorme, e em cima dela
estavam muitos passarinhos de muitas cores a cantar. O mais-velho da aldeia desatou a dançar
alegremente porque podia ouvir os passarinhos.
Ele quis saber onde estava a menina das cinco tranças, mas ela já não estava na aldeia, e
já não tinha cinco tranças...
A menina das quatro tranças caminhava com o homem pequeno em direcção à segunda
aldeia, que era a aldeia dos que não podiam dizer palavras. Também nesta aldeia se
comunicava com gestos, e assim Ynari percebeu que estas pessoas não conseguiam falar. Mas
Ynari tinha aprendido muitos gestos na aldeia anterior e não teve dificuldade em entender as
pessoas.
Assim, mais uma vez por gestos, começou a falar:
— Chamo-me Ynari e venho ensinar o significado da palavra «falar»...
— Pois... — lamentou-se, por gestos, o mais-velho daquela aldeia. — Nós não
conseguimos «falar», e por isso andamos em guerra com outra aldeia.
— Já entendi. Mas diz-me uma coisa...
— O que é? — perguntou o mais-velho.
— Se eu vos ensinar a «falar», vocês deixam de estar em guerra?
— Sim. Nós só queremos conseguir «falar».
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— Muito bem. Então peço-te que juntes todo o teu povo hoje de noite, faças uma
fogueira, arranjes uma cabaça. E eu vou ensinar-vos a «falar».
— Entendi, mas diz-me uma coisa — gesticulou o mais-velho.
— O que é? — perguntou Ynari.
— Porque usas quatro tranças?
— Porque já só preciso de quatro tranças para usar a palavra «paz» — sorriu a menina
das quatro tranças.
— Ah sim? Então mostra-nos como é.
— Hoje à noite mostro... — disse Ynari, enquanto piscava o olho ao homem pequeno
que estava de mãos dadas com ela.
Assim foi.
Como já tinha acontecido na outra aldeia, todos trouxeram na mão um pouco de água
do rio, todos estiveram junto à fogueira vendo Ynari murmurar as palavras estranhas, a
palavra «permuta», e vendo também a sua quarta trança ser cortada. Depois Ynari pôs a trança
dentro da enorme cabaça e todos foram dormir.
Pela manhã, o mais-velho daquela aldeia desatou aos gritos, imitando os passarinhos e
os galos, muito contente porque já conseguia «falar».
Entretanto, a menina das três tranças e o homem pequeno já estavam a caminho de
outra aldeia: a aldeia daqueles que não viam o rio. Estes podiam «falar» e até «ouvir» mas
andavam na guerra porque queriam «ver». O mais-velho explicou a Ynari que era muito difícil
estar na guerra sem ver nada, que morria muita gente por causa disso, e Ynari explicou-lhe
que a guerra era isso mesmo, uma cegueira que só trazia mortes.
— Mas diz-me uma coisa...
— O que é? — perguntou o mais-velho.
— Se eu vos ensinar a «ver», vocês deixam de estar em guerra?
— Sim. Nós só queremos saber «ver».
— Muito bem. Então peço-te que juntes todo o teu povo hoje de noite, faças uma
fogueira, arranjes uma cabaça. E eu vou ensinar-vos a «ver».
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— Entendi, mas diz-me uma coisa — gesticulou o mais-velho.
— O que é? — perguntou Ynari.
— Por que usas três tranças?
— Porque já só preciso de três tranças para usar a palavra «paz» — sorriu a menina.
— Ah sim? Então mostra-nos como é.
E mais uma vez se reuniu o povo, se acendeu a fogueira com muito cuidado, e Ynari
murmurou as suas palavras estranhas, a palavra «permuta», e cortou a terceira trança. Depois
todos se foram deitar.
No dia seguinte, o mais-velho da aldeia desatou aos gritos logo muito cedo, pois tinha
sido acordado pelos primeiros raios de Sol. Todos alegres, foram olhar as coisas: o rio, os
animais, a cor das flores e do céu, e já não tinham nenhuma razão para usar a palavra «guerra».
Ainda mais para sul a menina e o homem pequeno chegaram à aldeia dos que não
sentiam o cheiro das flores. O mais-velho da aldeia explicou a Ynari que eles nunca tinham
sentido o cheiro das coisas, da fruta, do peixe-seco, da fuba. E que estavam em guerra com
outra aldeia para que pudessem saber o significado da palavra «cheirar».
— Mas diz-me uma coisa...
— O que é? — perguntou o mais-velho.
— Se eu vos ensinar a «cheirar», vocês deixam de estar em guerra?
— Sim. Nós só queremos saber «cheirar».
— Muito bem. Então peço-te que juntes todo o teu povo hoje de noite, faças uma
fogueira, arranjes uma cabaça. E eu vou ensinar-vos a «cheirar».
— Entendi, mas diz-me uma coisa — quis saber o mais-velho.
— O que é? — perguntou Ynari.
— Porque usas duas tranças?
— Porque já só preciso de duas tranças para usar a palavra «paz» — sorriu a menina.
— Ah sim? Então mostra-nos como é.
E foi o mesmo de sempre: cabaça enorme, fogueira, todos de água na mão, e Ynari
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murmurando as palavras estranhas, a palavra «permuta», e cortando mais uma trança.
No dia seguinte, todos naquela aldeia sentiram o cheiro das flores, muitos espirraram
por causa do pó das asas das borboletas, outros brincaram deitados no chão cheirando a relva
ou pequenas flores.
Ynari caminhava de mãos dadas com o homem pequeno e chegaram à quinta aldeia.
Nesta aldeia não sentiam o sabor dos alimentos. Comiam de tudo, mas não conheciam a
diferença entre o doce e o salgado, entre a manga e o maboque, entre a cana-de-açúcar e o
peixe-seco. E só por isso andavam em guerra.
— Bom dia, mais-velho... — Ynari cumprimentou.
— Bom dia, menina de uma trança só — disse o mais-velho.
— Diz-me uma coisa: esta aldeia está em guerra?
— Sim, estamos em guerra com outra aldeia.
— E porquê?
— Porque nós não sabemos o significado da palavra «sabor»! E nós também queremos
experimentar o «sabor» dos alimentos — explicou o mais-velho.
— Já entendi... Mas diz-me uma coisa...
— O que é? — perguntou o mais-velho.
— Se eu vos ensinar a sentir o «sabor», vocês deixam de estar em guerra?
— Sim. Nós só queremos saber usar a palavra «sabor».
— Muito bem. Então peço-te que juntes todo o teu povo hoje de noite, faças uma
fogueira, arranjes uma cabaça. E eu vou ensinar-vos a palavra «sabor».
— Mas diz-me uma coisa — quis saber o mais-velho.
— O que é? — perguntou Ynari.
— Porque usas uma trança só?
— Porque já só preciso de uma trança para usar a palavra «paz» — sorriu a menina.
— Ah sim? Então mostra-nos como é.
Era uma aldeia muito grande, e também foi grande a fila que fizeram desde o rio até à
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cabaça enorme que estava em cima do fogo.
Ynari, a menina que já só tinha uma trança, murmurou as palavras estranhas, disse a
palavra «permuta», e cortou a última trança que tinha. Depois falou para todos:
— Hoje usei a minha última trança. Amanhã de manhã, já podem comer as frutas e
todos os alimentos sabendo o significado da palavra «sabor». Queria pedir-vos uma coisa:
deixem de usar a palavra «guerra». Estive numa aldeia onde ninguém conhecia o significado da
palavra «ver», e andavam em guerra com outra aldeia pensando que isso lhes ia ensinar a «ver».
Mas não, a palavra «guerra» é parecida com a palavra «desaparecer», que é parecida com as
palavras «deixar de viver». A partir de amanhã não procurem mais a palavra «guerra» porque
ela vai deixar de existir... — piscou o olho ao homem pequeno.
Na manhã seguinte, muito cedo, as pessoas da aldeia foram comer, comeram muito, até
de mais, porque queriam conhecer os vários significados da palavra «sabor», que era diferente
se comessem peixe ou carne, banana ou mandioca.
Caminhavam de novo junto ao rio. Ynari, a menina sem tranças, e o homem pequeno
voltaram a sentar-se no mesmo sítio de sempre, onde pela primeira vez se tinham encontrado.
— Sabes, homem pequeno — começou a falar Ynari. — Estou muito contente por ter
descoberto a minha magia.
— Eu também estou contente por ti, Ynari.
— Agora quero pedir-te um favor.
— E qual é?
— Quando chegares à tua aldeia, vai falar com a velha muito velha que destrói as
palavras e diz-lhe que eu mandei por ti uma palavra para ela destruir...
— Queres que ela destrua a palavra «guerra»?
— Sim. Explica-lhe o que vimos e o que ouvimos. Acho que é uma palavra que ela vai
querer destruir.
— Está bem, vou dar o teu recado.
— Olha, tenho que ir. Na minha aldeia já devem estar preocupados. Desta vez
demorámos mesmo muito tempo — sorriu a menina sem tranças.
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— Está bem — concordou o homem pequeno.
— Acho que está na hora de usarmos a palavra «despedida»...
— Também acho.
— Sabes uma coisa, homem pequeno?
— O que é, Ynari?
— Para mim, a palavra «despedida» tem muito da palavra «encontro» e um bocadinho
também da palavra «saudade».
— Explica-me — disse o homem pequeno enquanto se levantava.
— Não sei explicar muito bem... Mas, desde a primeira vez que te vi, eu senti uma
coisa no meu coração...
— No teu coração?
— Sim, cá dentro, neste coração que é pequenino e que é tão grande... Eu vou contar-te um segredo.
— Conta.
— Mas não digas nada ao velho muito velho que inventa as palavras.
— Está bem — sorriu o homem pequeno.
— Eu acho que o meu coração também inventa palavras... No dia em que te vi, logo,
logo, o meu coração inventou para nós a palavra «amizade».
— Eu sei, Ynari, eu também senti o mesmo.
— A sério?
— Sim — disse o homem pequeno. — Agora já sabes...
— Já sei o quê? — perguntou Ynari, a menina sem tranças.
— Assim como há um velho muito velho que inventa as palavras, também o nosso
coração, quando precisa, sabe inventar palavras.
Ynari levantou-se. Já tinham usado a palavra «despedida», agora estavam a usar as
palavras «olhar para o outro». Estiveram assim algum tempo.
— Quando é que nos voltamos a ver? — perguntou Ynari.
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— Sempre que quisermos.
— Mas tu vives tão longe...
— Há muitas maneiras de se ir muito longe — disse o homem pequeno.
— Diz-me uma.
— Tu sabes...
— Achas que posso apanhar boleia do humbi-humbi?
— É uma ideia, ele é rápido.
— Mas eu sou tão pesada para ele...
— Mas não és pesada para o coração dele — sorriu o homem pequeno.
— Experimenta viajar no coração do humbi-humbi...
— Está bem, está bem — começou a correr Ynari. — Adeus, até qualquer dia!
— Adeus. Estamos juntos. Eu também sei viajar no coração do humbi-humbi.
— Eu sei — disse Ynari. — Agora já sei!
E, como dizem os mais-velhos, foi assim que aconteceu.
Ondjaki
Ynari. A menina das cinco tranças
Lisboa, Ed. Caminho, 2004
21
A estrela de Erika
Nota da autora
Em 1995, cinquenta anos depois do fim da Segunda Guerra Mundial, encontrei a
mulher de que fala esta história. O meu marido e eu estávamos sentados na borda
de um passeio em Rothenburg, na Alemanha. Observávamos uns trabalhadores a
limparem as ruínas do telhado da Câmara. Na noite anterior, um tornado tinha-se
abatido sobre esta bonita aldeia medieval. Havia entulho um pouco por todo o
lado. Um velho comerciante disse-nos que os estragos causados por este tornado
se assemelhavam aos da última ofensiva dos Aliados durante a guerra. O
comerciante entrou na sua loja e uma senhora, sentada perto de nós, apresentou-se como sendo Erika.
Perguntou-nos se tínhamos vindo fazer turismo naquela região. Quando lhe disse
que vínhamos de Jerusalém, onde passáramos duas semanas a fazer pesquisas,
confessou-nos, com um suspiro, que desejava muito lá ir mas que não tinha
dinheiro para a viagem. Ao ver uma estrela de David pendurada ao seu pescoço,
disse-lhe que, no regresso de Israel, tínhamos passado pelo campo de
concentração de Mauthausen, na Áustria. Erika confessou-nos que, um dia, tinha
tentado visitar o campo de Dachau, mas que não conseguira franquear a porta.
Depois, contou-nos a sua história…
23
Entre 1933 e 1945, seis milhões de homens e mulheres do meu povo foram mortos.
Muitos foram fuzilados. Muitos morreram de fome. Muitos foram incinerados nos fornos ou
asfixiados nas câmaras de gás. Eu escapei.
Nasci em 1944.
Não sei o dia.
Não sei como me chamava ao nascer.
Não sei em que cidade nem em que país nasci.
Não sei se tive irmãos ou irmãs.
O que sei é que, apenas com alguns meses, escapei ao Holocausto.
Imagino muitas vezes como seria a vida dos membros da minha família durante as
últimas semanas que passámos juntos. Imagino o meu pai e a minha mãe, despojados de todos
os seus bens, forçados a abandonar a sua casa, enviados para o gueto.
Talvez depois tenhamos sido expulsos do gueto. De certeza que os meus pais tinham
pressa de deixar o bairro rodeado de arame farpado para onde tinham sido relegados, de
escapar ao tifo, ao excesso de pessoas, à imundície e à fome. Mas teriam alguma ideia do local
para onde estavam a ser enviados? Ter-lhes-iam dito que iam para um local mais acolhedor,
onde teriam comida e trabalho? Terão chegado até eles os rumores sobre os campos da morte?
Pergunto-me o que terão sentido quando os conduziram à estação, juntamente com
centenas de outros judeus. Amontoados num vagão de transporte de animais. De pé, uns
contra os outros, por falta de espaço. Terão entrado em pânico quando ouviram correr os
ferrolhos?
De aldeia em aldeia, o comboio deve ter atravessado paisagens campestres
estranhamente poupadas ao terror. Durante quantos dias ficámos naquele comboio? Quantas
horas os meus pais passaram apertados um contra o outro?
Imagino que a minha mãe devia ter-me bem encostada a ela para me proteger dos maus
cheiros, dos gritos, do medo, que reinavam neste vagão lotado. Tinha de certeza
compreendido que não íamos para um lugar seguro.
Pergunto-me onde estaria exactamente. No meio do vagão? O meu pai estaria junto
dela? Ter-lhe-á dito que fosse corajosa? Terão falado do que iam fazer?
24
Quando teriam tomado aquela decisão? Será que a minha mãe disse “Desculpa.
Desculpa. Desculpa.”? Terá aberto a custo um caminho por entre aquela mole humana até à
janela do vagão? Terá murmurado o meu nome ao embrulhar-me num cobertor bem quente?
Terá coberto a minha cara de beijos e dito que me amava? Terá chorado? Rezado?
Logo que o comboio abrandou, ao atravessar uma aldeia, a minha mãe deve ter
espreitado pela fresta do vagão. Ajudada pelo meu pai, deve ter afastado o arame farpado que
ocultava a abertura. Deve ter esticado os braços para a luz pálida do dia. A única coisa que sei
com certeza foi o que aconteceu a seguir.
A minha mãe atirou-me pela janela do comboio.
Atirou-me para cima de um pequeno quadrado de relva, junto de uma passagem de
nível. Havia pessoas à espera de que o comboio passasse; viram-me cair do vagão de carga. No
caminho que conduzia à morte, a minha mãe lançou-me à vida.
Alguém pegou em mim e levou-me para casa de uma mulher que se ocupou de mim.
Que arriscou a vida por mim. Calculou a minha idade e atribuiu-me uma data de nascimento.
Decidiu que me chamaria Erika. Deu-me um lar. Alimentou-me, vestiu-me, mandou-me à
escola. Fez tudo por mim.
Casei aos vinte e um anos com um homem maravilhoso. Aliviou muita da tristeza que
me assaltava com frequência, percebeu o meu desejo de pertencer a uma família. Tivemos três
filhos, que hoje têm os seus filhos também. No rosto deles, reconheço o meu.
Dizia-se outrora que o meu povo seria um dia tão numeroso como as estrelas do céu.
Entre 1933 e 1945 caíram seis milhões de estrelas do céu. Cada uma delas corresponde a um
membro do meu povo, cuja vida foi rasgada, cuja árvore genealógica foi arrancada.
A minha árvore lançou raízes.
A minha estrela ainda brilha.
Ruth Vander Zee; Roberto Innocenti
L’étoile d’Erika
Toulouse, Milan Jeunesse, 2003
25
Os conquistadores
Era uma vez um vasto país governado por um General.
Os habitantes acreditavam que o seu modo de vida era o melhor.
Tinham um exército muito forte e dispunham de canhões.
De tempos a tempos, o General reunia o exército e atacava um país vizinho.
“É para o bem deles,”dizia. “Para que possam ser como nós.”
Os outros países resistiam, mas acabavam sempre por ser conquistados.
Com o tempo, o General acabou por dominar todos os países. Todos, excepto um…
Tratava-se de um país tão pequeno que o General nunca se tinha dado ao incómodo de
o invadir. Só que agora era o único que restava. Assim, o General e o seu exército puseram-se
a caminho.
O pequeno país surpreendeu o General.
Não tinha exército nem ofereceu resistência.
As pessoas saudaram os soldados invasores como se fossem convidados bem-vindos.
O General instalou-se na casa mais confortável do país e os soldados ficaram em casa
dos habitantes.
Todas as manhãs, o General levava os soldados para a parada e, depois, escrevia cartas à
mulher e ao filho.
Os soldados falavam com as pessoas, jogavam com elas, escutavam as suas histórias,
cantavam as suas canções e riam-se das suas piadas.
A comida era diferente da deles.
Viam-na a ser preparada e depois comiam-na. Era deliciosa.
Como não tinham mais nada que fazer, ajudavam as pessoas no seu trabalho.
27
Quando o General se apercebeu do que se estava a passar, ficou furioso.
Mandou os soldados para casa e substituiu-os por outros.
Mas os novos soldados comportaram-se como os outros o tinham feito.
O General percebeu que não precisava de um grande exército.
Decidiu regressar a casa e deixar apenas alguns soldados a ocupar o país.
Logo que o General partiu, os soldados penduraram os uniformes e juntaram-se à
população nas tarefas do quotidiano.
O General regressou triunfante a casa, com os soldados a cantarem, como era hábito:
Somos os conquistadores.
Somos os conquistadores.
O General estava contente por ter regressado, embora sentisse que algo mudara.
Os cozinhados cheiravam aos cozinhados do pequeno país.
As pessoas jogavam os jogos do pequeno país.
Até algumas roupas eram iguais às roupas do pequeno país.
Sorriu e pensou: “Ah! Os despojos da guerra.”
Nessa noite, quando foi deitar o filho, o menino pediu-lhe que cantasse para ele.
O General cantou-lhe as únicas canções de que se lembrava.
Eram as canções do pequeno país.
O pequeno país que ele conquistara.
David McKee
The Conquerors
London, Anderson Press, 2004
28
Wolfgang Salewski; Peter Lanz
A Nova Violência – e como enfrentá-la
Lisboa, Ed.Livros do Brasil, 1978
Excertos adaptados
Violência «com sentido» e violência «gratuita»
«O direito do mais forte é a mais forte injustiça»
Marie von Ebner-Eschenbach
Ainda não foi há muito tempo que lemos, na obra mestra da criminologia alemã (Ernst
Seeljg, Lehrbuch der Kriminologie, 2ª Ed. Nürenberg, Düsseldorf, 1951), o seguinte:
Nas cidades europeias, pelo contrário, quase não se dão assaltos à mão armada a
casas de comércio e bancos, enquanto que, na América, essa maneira de agir se
tornou no modo mais generalizado de acção dos bandos dos gangsters (o
Hold-up). Um outro método dos gangsters, disseminado na América, é o rapto de
pessoas com vista ao resgate (o Kidnapping), que veio a transformar-se quase
num novo desporto, principalmente depois do rapto e assassínio do bebé do
grande aviador Lindbergh, o primeiro a atravessar sozinho o Atlântico Norte
(1932).
Aquilo que então era quase inimaginável na Europa, é hoje em dia, na Alemanha, uma
actividade diária, como o demonstram os assaltos a bancos e a tomada de reféns. Os autores
desta nova violência são muitas vezes levados por motivos diferentes dos dos kidnappers; mas
servem-se dos mesmos métodos. A nova violência apanhou-nos de surpresa e temos dificuldade
de a compreender. Chegou aliada a uma brutalidade mais forte do que os delitos até agora
usuais. Basta-nos contemplar a crónica dos últimos anos para verificarmos como as inibições de
ferir outras pessoas ou até de matá-las decresceram constantemente. Observemos alguns
números provenientes da República Federal da Alemanha. Desde 1967 que o crime de roubo
cresceu mais de duzentos por cento, nos casos de assaltos a bancos e estações de correio e ainda
a lojas. A Polícia teve de registar, entre 1972 e 1976, um recrudescimento de mais de sessenta
por cento. Em 1976, na República Federal da Alemanha, foi cometido “um assalto de meia em
meia hora”, num total de 19 466 roubos. Proporcionalmente, a maré de criminosos aumentava
para o dobro do crescimento normal da população. Acções de terror fizeram cem mortos e
29
feridos. Em média, anualmente, eram destruídas vinte e uma mil cabinas telefónicas. Só no ano
de 1976 a Polícia registou, nos seus processos, dois mil casos em que pessoas foram feridas com
armas de fogo. Num período de doze meses, lamentaram-se setenta e duas vítimas da fúria de
disparos com armas de fogo.
Estupefactas, as pessoas reagem contra a violência crescente: seiscentos milhões de
marcos são todos os anos empregues na instalação de sistemas de alarme. O número daqueles
que possuem armas de fogo, sem licença para isso, só muito dificilmente pode ser avaliado:
situa-se no campo sombrio dos vinte e cinco a trinta milhões. Porém, o certo é que essas pessoas
que adquiriram esses milhões de pistolas, revólveres ou espingardas, as compraram nalgum
sítio. Há duas possibilidades de chegar a essas armas: pode comprar-se a arma no estrangeiro
(como, segundo alguns cálculos, o fazem, por ano, cinco mil turistas e viajantes em negócios),
ou adquirem-se no mercado negro. No caso da compra no mercado negro, fecha-se o círculo,
porque é grande a possibilidade de que nele se tenha comprado uma arma roubada. Seja como
for, o que se sabe é que em 1876 trocaram de donos 3145 armas de fogo roubadas.
Ao mesmo tempo entra em acção um novo círculo diabólico: a arma, concebida para
assustar, tem de ser experimentada. Vejamos um caso dos últimos tempos. Certa manhã, em
Wetzlar, cidade com cerca de 37 000 habitantes junto do rio Lahn, o dirigente da companhia de
electricidade local conduziu o seu carro para o parque de estacionamento, em frente do seu local
de trabalho. Infelizmente, porém, não levou o carro para o local que lhe estava destinado, mas
para um outro, reservado a um serralheiro da mesma companhia. O presumível atrevimento do
director da companhia enraiveceu de tal modo o serralheiro que, no decorrer da discussão, este
pegou na pistola que sempre trazia consigo, e feriu imediatamente o seu opositor, com quatro
tiros mortais.
A cerca de quinhentos quilómetros de Wetzlar, em Munique, deu-se um caso semelhante
no dia 5 de Fevereiro de 1977. Por volta das dezanove horas e quinze, um empregado do
comércio de 53 anos, Josef B., atravessou a estrada para Pelkoven (esquina da Rua Jakob), em
Hagenbuch, no bairro de Moosach. Atravessou, segundo as regras, pela passadeira, e foi quase
atingido pelo automóvel do mecânico de 29 anos, Rüdiger H.. Furioso, o peão desferiu um
golpe, com um saco de plástico que levava na mão, no guarda-lamas do carro, fazendo-lhe uma
pequena mossa. E continuou o seu caminho, sem se voltar para trás. O outro ouvira a pancada,
parou, desceu e deu a volta ao automóvel. Quando viu que Josef B. se afastava, correu atrás dele
e segurou-o pela manga do casaco, para o obrigar a explicar-se. Josef B. soltou-se-lhe das mãos,
deu alguns passos atrás, tirou uma pistola da algibeira e disparou alguns tiros sobre o condutor
do automóvel. Rüdiger H. ficou gravemente ferido e, alguns dias mais tarde, Josef B. foi preso
pela Polícia. De um momento para o outro, nos dois casos descritos, vê-se que a arma que se
destinava à defesa se transforma numa arma de ataque.
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Acontecimentos como estes provocam uma outra reacção altamente inquietante: mesmo
até entre os que não estão envolvidos nasce, involuntariamente, o desejo de possuírem uma
arma de fogo, quando chegam à conclusão de que outras pessoas transportam armas. Segue-se a
ideia de que «também tenho de possuir uma arma, para poder defender-me de eventuais
agressores». É por isso que se encontram constantemente passageiros de avião que procuram
levar armas consigo para sua própria defesa. Só no aeroporto de Düsseldorf a Polícia
surpreendeu, de Janeiro a Setembro de 1977, noventa e três homens e mulheres que
transportavam, nas suas bagagens, armas letais. Em Hamburgo, no mesmo espaço de tempo,
foram contados vinte e seis passageiros; em Colónia, dez; em Berlim, quatro e em Hannover,
três. Ao todo, os passageiros procuraram levar consigo, num ano, cerca de vinte mil armas e
objectos contundentes, como facas, machados, bengalas de ferro, e até explosivos; isto apenas
em aeroportos da Alemanha Federal, antes do início da viagem.
A necessidade de desmontar a violência, enquanto se encosta os outros à parede, provoca
uma reacção contrária e faz com que a violência entre numa escalada. O voluntário ou
involuntário desrespeito das leis demonstrado pelos assaltantes parece justificar a própria
indiferença que os restantes cidadãos manifestam. Desconfia-se da protecção do Estado, e todos
querem agir por conta própria. Isto é, para uma pessoa se defender do perigo, torna-se perigosa
e coloca-se, assim, ainda mais em perigo.
De como as crianças e os jovens se vêem a si próprios
Na República Federal da Alemanha a revista juvenil Bravo inquiriu os seus leitores
acerca do tema da violência. 120 000 jovens, rapazes e raparigas, responderam, no Outono de
1977, a um questionário cujas trinta perguntas foram examinadas por um computador. E aí se
demonstrou quão forte é o impulso da juventude para a violência. À pergunta «Podeis imaginar
ter de empregar a violência física contra outras pessoas?», só responderam com «não» 13,5 por
cento de raparigas e 8 por cento de rapazes. Todos os outros confessaram exercer a violência de
vez em quando, fosse por necessidade de defesa, fosse porque tivessem sido provocados por
outros, por terem bebido, por não aceitarem a opinião política de outrem ou, simplesmente
«porque sou agressivo» (foi assim que se confessaram 4 por cento de raparigas e quase 5 por
cento de rapazes). Os jovens, assim o demonstra o inquérito, não dirigem a sua violência apenas
contra os outros, mas até contra si próprios. Uma em cada duas raparigas já pensara uma ou
mais vezes no suicídio: 4,3 por cento das raparigas já tinha tentado matar-se; 0,9 por cento das
raparigas e 0,9 por cento dos rapazes já tinham cometido várias tentativas de suicídio. E de novo
nos aparece o grupo etário, entre os 18 e os 20 anos, como especialmente ameaçado. 17,7 por
cento das raparigas nessa idade confessaram já terem atentado contra a vida.
31
Nesse questionário também se demonstra que os rapazes são mais predispostos a
resolverem os seus problemas por intermédio da agressividade (55,3 por cento dos rapazes
responderam nunca na vida terem pensado em suicídio; e é por isso que mais de metade dos
rapazes reage com violência contra os outros que os provocam), enquanto as raparigas preferem
fugir de casa. Isto também pode ser confirmado pelas estatísticas dos departamentos juvenis da
República Federal. Todos os anos desaparecem, na Alemanha, vinte mil raparigas e dez mil
rapazes. A maior parte deles são de novo apanhados, mas tentam também novamente fugir de
casa. A maior parte das raparigas que foge de casa tem uma idade compreendida entre os 12 e
os 18 anos.
Os erros da nossa sociedade
Evidentemente que é uma reacção completamente falsa responder a essa tendência
unilateral com um cego fatalismo ou com medidas draconianas. Não só porque não se domina o
seu desenvolvimento, mas também porque ultrapassa as origens do crescimento da
criminalidade juvenil e os fenómenos da nova violência.
Já não falamos uns com os outros
Tem de se enfrentar a nova violência com novos métodos e novas soluções. O que
significa que devemos desistir dos princípios de vingança e de ameaça sobre os que atentam
contra a lei, pensando, sim, em novos métodos para solucionar o problema. Para encontrá-los,
teremos de descobrir qual a evolução errada que se processa na nossa sociedade e como esta
está na base da nova violência.
A Münchner Abendzeitung informou, em Dezembro de 1977, num artigo de duas colunas,
com o título «O silêncio das vítimas enfurece os malfeitores», o seguinte:
Um caso horrendo de brutalidade e perversidade teve lugar no domingo à noite no centro
de Munique. Quatro jovens arruaceiros assaltaram três rapazitos de quinze e dezasseis anos,
atiraram-nos ao chão e esfaquearam-nos. As vítimas eram surdos-mudos. Os três rapazes
voltavam de um passeio de domingo e dirigiam-se para o seu Lar nas proximidades da Praça
Goethe. Pouco depois das vinte e duas horas, atravessaram o velho Jardim Botânico na Rua
Elisa, quando, de súbito, surgiram “dos arbustos, quatro jovens vestidos à maneira dos rockers,
que lhes cortaram o caminho e lhes dirigiram insultos.” Dado que os surdos-mudos não podiam
obviamente compreendê-los, tentaram a fuga, mas foram depressa agarrados pelos díscolos.
Presumivelmente os malfeitores interpretaram como cobardia o silêncio dos atacados, dado que
os seus insultos começaram a ser cada vez mais contundentes, descambando finalmente em
pancada. Quando os assaltados tentaram defender-se, brilharam as facas. E de facas em riste, os
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malfeitores atiraram-se às suas vítimas, ferindo um na mão, enquanto ao outro lhe cortaram a
pele das costas, de alto a baixo. Foi devido a ter-se aproximado gente que os assaltantes
interromperam a sua agressão. Desapareceram na escuridão.
Embora a Polícia tenha iniciado imediatamente buscas, os malfeitores conseguiram fugir
sem deixar rasto. O autor que escreveu este artigo enganou-se num ponto decisivo. Os
malandros que atacaram os surdos-mudos não consideraram o seu mutismo como cobardia mas
como agressividade. A essa presumível agressividade reagiram como lhes tinha sido inculcado:
com violência! O caso dos surdos-mudos mostra-nos, com toda a clareza, quais as formas que a
agressividade pode tomar. Porque quem não comunica também procede, aos olhos dos outros,
em certas circunstâncias, com agressividade. Uma discussão que não podia ser resolvida pelos
surdos-mudos de outra maneira que não fosse através do mutismo e de fuga, é muitas vezes
resolvida pelos pais, todos os dias, perante os filhos, da mesmíssima maneira. Aqueles calam-se
e afastam-se. As crianças sentem isso como um acto de agressividade, o que é compreensível
porque também nós nos sentimos provocados quando, numa discussão factual, deparamos, de
súbito, com o mutismo do nosso interlocutor. Quem tiver a intenção de discutir com alguém,
espera compreensão e resposta. Se estas são negadas, cresce a agressividade.
Os pais têm aparentemente bons motivos para provocar os filhos através da desatenção e
da falta de diálogo. Têm de ir para o trabalho, têm de ganhar dinheiro, estão cansados. À
pergunta: “Por que motivo têm de ir trabalhar”, aparece prontamente uma resposta muito lógica
e natural: “O nosso filho deverá ter um dia uma vida muito melhor do que nós.” Mas,
analisando com maior acuidade, isto é uma grande asneira: na medida em que os pais não
dedicam aos filhos tempo para lhes prestar atenção, negam-lhes o caminho para um futuro feliz.
E não importa que queiram suprir essa falta com meios materiais. O fenómeno de já não
falarmos uns com os outros não se limita a pais e filhos. É um mal do nosso tempo e um pesado
erro da nossa sociedade.
Já não nos ouvimos uns aos outros
De Mark Twain, conta-se a seguinte história verídica: o escritor e satírico americano
chegou, certa vez, demasiado tarde a um jantar para o qual tinha sido convidado. Quando a dona
da casa, distraída pela organização do banquete e pelo grupo de ilustres convidados, lhe deu as
boas-vindas, Twain pediu desculpa pelo seu atraso com as seguintes palavras: “Tem de
desculpar-me por ter chegado só agora, minha querida senhora, mas tive necessidade de matar a
minha velha tia antes de vir.” E a dona da casa respondeu-lhe: “Claro que lhe perdoo, caro
mestre, isso por vezes acontece.” Assim, superficialmente, a história pode provocar o riso. Mas,
se pensarmos um pouco, podemos ser invadidos pelo medo. O que há cem anos Mark Twain
quis tratar como uma graça tornou-se hoje numa triste verdade. Trocam-se argumentos sem, de
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facto, se entrar em contacto uns com os outros. Falamos, sem dúvida, mais do que outrora. Os
meios técnicos de comunicação tornam possível as pessoas falarem umas com as outras, em
quase todos os pontos do mundo. Com o auxílio de cabos submarinos e satélites transpõem-se
os oceanos. No entanto, compreendemo-nos cada vez menos.
Falar traz a cura do homem
Os nossos próximos conseguem ser muito mais do que um mero espelho de nós mesmos,
da nossa alma. Permitem também a cura espiritual. Para explicar melhor, basta-nos apontar um
exemplo muito simples. Um terapeuta que procure tratar um comportamento humano errado,
não o faz que não seja através da fala. Fala em privado com o seu paciente e procura desenterrar
as raízes dos seus problemas. Ou, então, vários pacientes tentam, entre si, auxiliar-se nas
terapias de grupo, sob a orientação de um terapeuta. Possivelmente, embora cada homem saiba,
enquanto adulto, o significado de uma conversa, a verdade é que não se deixa convencer por ela.
Porque não falamos “directamente” do coração.
Pelo contrário, há cada vez mais pessoas que sentem o desejo de se isolar, de viverem
numa ilha deserta, para se sentirem felizes, sem os seus entes mais próximos. Estes sonhos de
muitos milhares, se não milhões de pessoas, uma vez realizados, transformam-se numa pura
desilusão. O isolamento, a solidão egoísta, não são uma finalidade digna de ser procurada pelo
homem, mas sim um castigo. Os tribunais aplicam ainda hoje uma forma especial de castigo: o
isolamento prisional. Ao delinquente, não só é negado o acesso ao trabalho, mas também o de
conviver com outras pessoas. Aquilo que, por lei, é reconhecido em diversos países como um
castigo draconiano, é o que, hoje em dia, já costumamos fazer em liberdade. Retiramo-nos para
dentro de nós próprios, e privamo-nos, assim, da possibilidade de, em conversa com outras
pessoas, nos libertarmos de um enorme peso sentimental. À pessoa madura é possível, mas só
até um certo grau, substituir a falta de comunicação com as outras pessoas. Pode fazê-lo por
meios especiais, dentro de uma profissão, ou através de um extraordinário envolvimento social.
Nas crianças e nos jovens, tudo é diferente. Sentem a contradição entre o sentimento e a
possibilidade de lhe dar expressão, e sentem-no com muito mais força. Evidentemente que,
devido à sua experiência e ao convívio com outras pessoas, se conseguem adaptar uns aos
outros. No entanto, o mal-estar perdura. As consequências estão à vista: desvios de
comportamento, quer sejam o roer das unhas e “descuidos” na cama, gaguez, emagrecimento
inexplicável, más digestões e enfermidades do estômago. Uma criança, entre cinco, na
República Federal, pode ser incluída neste caso. Este panorama foi reconhecido por diversos
psicólogos e atesta já graves desvios de comportamento. Uma criança, entre dez que frequentam
a escola, tem dificuldade de contactos, é surpreendida em mentiras, ou em pequenos roubos.
Completamente isentos de defeitos psíquicos, assim o calcularam os especialistas, só se
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encontram cinquenta por cento dos alunos da República Federal. Da impossibilidade de
comunicar sentimentos podem, porém, nascer: a fúria súbita, a raiva, a agressividade – marcas
infantis que apontam veementemente para um futuro desvio para a violência.
Os pais não ajudam as crianças a encontrar a sua identidade
No melhor dos casos, a busca da identidade não se opera sem sofrimento. Por exemplo,
um rapaz de 15 anos quer “medir-se” com o pai. Mas, nessa idade, o rapaz é ainda muito fraco
para entrar em disputas com o pai. O que, na verdade, sente, compele-o a um processo de
construção de uma imagem inimiga, cujas piores características exagera. Para o rapaz, o pai já
não é a autoridade, aquele sobre o qual não teve dúvidas durante os primeiros anos; agora é o
inimigo. O super-homem do passado manifesta falhas que são alvo de crítica. Na realidade,
pode suster-se essa evolução, na medida em que se fale abertamente, sobretudo com a criança
em crescimento. Porém, como os pais não dedicam tempo suficiente à família, os erros
inevitáveis crescem desmesuradamente, aumentando as possibilidades de a criança só ver erros
no seu educador. Erros que já não conseguem ser corrigidos na imagem padrão. A isto junta-se
ainda o facto de, para os crescidos, muito do que é reconhecido negativamente pelas crianças
não ser considerado acção incorrecta. Quando os pais não têm tempo para a família, há
motivações que são consideradas pertinentes pela sociedade que pode, inclusivamente, louvá-los.
Analisemos dois casos extremos. Num deles, o pai de uma menina tem o tempo
continuamente ocupado. Trabalha como guarda-livros de uma grande firma. Faz horas
extraordinárias, só volta para casa quando a filha já dorme e, nos fins-de-semana, assiste a aulas
de reciclagem, ou toma parte em conferências de negócios. Quando a criança vê o pai, o que
acontece raramente e por acaso, fica logo de mau humor e ensonada. Mas o pai ganha muito
dinheiro e, todos os anos, a família pode adquirir um automóvel novo. No outro caso, o pai de
uma outra menina, também se demora no emprego. É pastor da Igreja Evangélica e encontra-se
dia e noite ao dispor dos seus paroquianos. Nos fins-de-semana, lecciona cursos de Bíblia.
Quando a criança consegue ver o pai fica de mau humor e ensonada. Mas o pastor sacrifica-se
pelos outros. A nossa sociedade dá diferentes valores aos dois «sacrifícios». No primeiro dos
casos, houve um certo desprezo pela família unicamente devido ao dinheiro. No outro caso,
porém, o auto-sacrifício tem alto valor moral. É um sacrifício por outras pessoas à custa da
própria família. Esse sacrifício é totalmente reconhecido pela sociedade. É um bom sacrifício.
As crianças, porém, não vêem as coisas sob esse prisma. Nem sequer compreendem o
que se passa na sua verdadeira dimensão; não percebem que, graças ao trabalho do pai, todos os
anos podem viajar num automóvel novo, nem sequer apreciam o sacrifício do pastor, que deve
ser-lhes dedicado a elas, crianças. As crianças vivem ambos os casos de «ausência» com
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infelicidade, independentemente da noção de que essa «ausência» tenha sido dedicada aos
crentes, doentes, pobres, ou ao êxito na profissão. Assim se esclarece também a contradição
entre a família “intacta” para o exterior (cujo chefe se encontra ao serviço dos outros e age
perante o reconhecimento da sociedade) e a força destruidora que se cria nessa mesma família.
Em resumo: com o desenvolvimento do consciente, a criança inicia a busca de um papel
na vida. Essa procura da identificação é apoiada com conversas por parte da família; então os
pais dedicam certa compreensão à criança, conseguindo, assim, ultrapassar os anos difíceis, sem
muitas perturbações. Mas se as conversas forem substituídas por ameaças, dogmas e
refreamentos de contacto, dificulta-se à criança a sua identificação tornando-a impossível.
Entramos assim no caminho de uma melhor compreensão da nova violência, dando um passo
decisivo: um dos factores deflagradores da nova violência é a comprovação de que o portador
dessa violência não conseguiu encontrar a sua identidade.
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Claire Brisset
Um mundo que devora as suas crianças
Porto, CAMPO DAS LETRAS, 2005
Excertos adaptados
A guerra contra as crianças
É difícil estabelecer o quadro de honra da violência contra as crianças, visto esta poder
assumir um sem-número de formas. Difícil, mas não impossível. À cabeça desta lista encontra-se, sem qualquer margem para dúvidas, a guerra – a guerra contra as crianças.
Em 1989, o mundo inteiro foi tomado por um devaneio, uma ilusão generalizada. Um
sistema desabava no Leste da Europa e consigo toda uma ideologia centenária. Na altura
pensava-se que a competição político-belicista que acompanhou passo a passo esse
desmoronamento se iria desvanecer quase instantaneamente. Todas as guerras e conflitos
exportados para todo o mundo por esse confronto em que se digladiavam valores contraditórios
iriam finalmente apaziguar-se. Especialmente para aqueles que tinham vivido o período
imediatamente anterior à Segunda Guerra Mundial, esta ilusão evocava a célebre frase de
Chamberlain quando, ao regressar da Alemanha, bradava, à saída do avião, agitando uma folha
de papel com o texto dos acordos de Munique: “Trago-vos a paz para o nosso tempo.” As
consequências dessa miragem não se fizeram esperar.
Fim da ilusão. O desmantelamento do Império Soviético não só não deu início a nenhum
período de paz, como os conflitos não pararam de se intensificar desde então, tanto a sul como a
norte do planeta: Conflitos internacionais e sobretudo conflitos civis, sendo estes tão mortíferos
como os primeiros. O envolvimento de civis nestas guerras, e entre eles, de crianças, não pára
de crescer.
Os números falam por si. Desde 1945, cento e cinquenta conflitos mancharam de sangue
o planeta e, há actualmente oitenta países à mercê da violência e da guerra. Quer sejam guerras
de pequena dimensão, quer conflitos de enorme amplitude, pouca é a diferença para a população
civil, no seio da qual as vítimas se contam aos milhões. De facto, nos últimos dez anos, as
guerras mataram mais de dois milhões de crianças. Feriram ou incapacitaram, muitas vezes
definitivamente, mais de cinco milhões e traumatizaram psicologicamente perto de doze
milhões. O número de órfãos, de crianças separadas da família, arrancadas ao seu lar e à sua
terra, é ainda maior. Por último, e derradeira consequência desta violência, as forças armadas
recrutam hoje em dia crianças-soldados na ordem das centenas de milhar, as mais jovens das
quais terão apenas seis anos de idade.
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Mas, dir-se-á, o envolvimento de crianças em conflitos armados não é nenhuma novidade.
Nas guerras de outros tempos, perde-se a conta do número de cidades incendiadas ou de civis
exilados. Basta recordar que a Cruzada das Crianças, em 1212, lançou para as ruas de toda a
Europa cerca de 30 000 crianças mobilizadas para a libertação da Terra Santa. E que Condé ou
Turenne, com pouco mais de quinze anos, já comandavam regimentos inteiros de crianças.
Frederico o Grande e, posteriormente, Napoleão, tampouco hesitavam em recrutar soldados
muito jovens. Por fim, Hitler, a meio da Segunda Guerra Mundial, mandou recrutar para o
exército alemão batalhões inteiros de adolescentes.
Tudo isto é certo, está provado e constitui um facto histórico. Por outro lado, a palavra
“infantaria”, já nos diz tudo. In-fans, aquele que não fala, é a criança de tenra idade. A expressão
acabou por designar a tropa, a tropa terrestre, “a rainha das batalhas”, como dizia Napoleão.
Mas esses exércitos dos tempos passados também inventaram a farda militar, cuja única função
consistia em distinguir os civis dos militares. E ao longo dos séculos, fomos começando a
acreditar num progresso da consciência moral: pouco a pouco, as sociedades estavam a começar
a aprender a proteger os civis nos conflitos, em particular as crianças. Em pleno campo de
batalha da guerra da Crimeia, Henry Dunant concebeu o que viria a ser a Cruz Vermelha
Internacional, um conjunto de fundamentos segundo os quais os civis devem ser poupados e os
feridos tratados, independentemente da facção a que pertencem, algo que viria a contribuir para
“humanizar” as guerras. Henri Dunant chegou mesmo a receber o Prémio Nobel da Paz por este
feito.
“Humanizar” a guerra, poupar os civis... O que se verificou foi exactamente o contrário.
Os conflitos do século XX, qual deles o pior, foram um espelho disso. A Primeira Guerra
Mundial, a Guerra Civil de Espanha e sobretudo a Segunda Guerra Mundial fizeram com que as
crianças entrassem em massa nos conflitos como actores, mas principalmente como vítimas,
vítimas da violência cega dos campos de concentração1 e dos bombardeamentos que se abatem
indiscriminadamente sobre as populações civis. E quem paga hoje em dia o preço desta
evolução são as crianças, um preço cujo impacto é difícil de calcular.
Depois da Guerra Civil de Espanha e sobretudo depois da Segunda Guerra Mundial,
foram-se aperfeiçoando as técnicas para atingir não só as forças de combate, mas também as
suas bases na retaguarda, a sua economia e as suas infra-estruturas, mas também os seus
suportes psicológicos e afectivos, ou seja, acima de tudo, as mulheres e crianças. Quando o
exército alemão bombardeou Guernica e, mais tarde, Coventry, quando os Aliados arrasaram
Dresden e os americanos largaram a primeira bomba atómica sobre Hiroshima, a ideia era
1
Foi publicado recentemente um livro incontornável sobre esta temática, um testemunho de um sobrevivente do campo
de concentração de Maidanek. O autor tinha quatro anos quando foi levado para o campo. Frangments, Une enfance
1939-1948, Binjamin Wilkomirski, Calmann-Lévy, Paris, 1997.
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obviamente aplicar um golpe fatal não tanto às forças de combate, mas à população em geral.
Tanto pior, ou mesmo tanto melhor, se entre os alvos atingidos figurasse a mesma quantidade de
objectivos civis do que a de pontos estratégicos militares. Graças às armas modernas e aos
bombardeamentos aéreos, a guerra entrou numa nova era. Que se cruzou, na mesma altura, com
a concepção industrial da limpeza étnica – foi devido a técnicas avançadíssimas que se pôde
aspirar à extinção total de grupos humanos considerados indesejáveis, como os judeus ou os
ciganos, não fazendo qualquer distinção entre homens, mulheres e crianças. Todos nós
assistimos, pelo desenrolar dos acontecimentos, ao sucesso florescente desta concepção da
guerra.
A “criança-alvo”
Que significa esta evolução? Que as crianças não são protegidas em parte alguma como o
deveriam ser, enquanto membros mais frágeis de uma sociedade. A expressão “Mulheres e
crianças primeiro!”, utilizada na ocorrência de naufrágios, já não é levada a sério. No entanto,
ela fazia todo o sentido, um sentido muito preciso – em caso de fatalidade, não se trata apenas
de proteger os mais fracos, trata-se também de garantir o futuro.
Actualmente, muito pelo contrário, os conflitos fazem das mulheres e mais ainda das
crianças, os seus alvos privilegiados. Assassinar crianças, feri-las ou violentá-las é aplicar um
duro golpe no grupo humano que se pretende exterminar ou subjugar. Foi assim que se pôde
ouvir a Radio Mille Collines inundar o Ruanda com este slogan em 1994 – “Para eliminar os ratos
maiores, temos de matar os mais pequenos.” Ou seja, as crianças tutsis. E foi assim que
mulheres grávidas foram esventradas para eliminar futuros tutsis e adolescentes violadas aos
milhares para que ficassem marcadas com um ferro impossível de apagar. Uma atitude idêntica
esteve sempre bem presente durante todo o conflito jugoslavo. Quando os atiradores furtivos
visavam sem erro as crianças, nos passeios das ruas de Sarajevo, estavam a seguir obviamente a
mesma lógica. Quando as granadas, cuidadosamente dirigidas, se abatiam sobre uma padaria ou
sobre o mercado central da capital bósnia, também aqui, e mais uma vez, se seguia a mesma
linha desta nova “estratégia”.
As crianças são cada vez mais assassinadas, feridas e massacradas nestas guerras
“modernas” que se multiplicaram desde 1945 e cuja amplitude não pára de crescer perante os
nossos olhos. Da América Central ao Camboja, do Líbano à República Democrática do Congo,
surgem conflitos em todos os pontos do planeta que se abatem sobre as crianças, incluindo as
mais jovens, como se todo o cuidado em protegê-las não só fosse aniquilado, apesar de todos os
esforços dos partidários do Direito Humanitário Internacional, mas mesmo literalmente
subvertido.
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A evolução do armamento enquadra-se perfeitamente nesta óptica. Os aperfeiçoamentos
técnicos não tornaram só os bombardeamentos (nucleares, químicos ou convencionais) muito
mais eficazes. Tornaram igualmente a indústria das minas perfeitamente adaptada a esta nova
concepção da guerra. É indispensável transformar o território do inimigo num campo de minas.
Desta forma, será aplicado um rude golpe na moral dos civis e na sua capacidade de sobreviver
ao conflito, de uma forma extremamente eficaz.
E é assim que hoje em dia, um certo número de países, que aliás se encontram entre os
mais pobres do mundo, foram transformados efectivamente em imensos campos de minas – o
Afeganistão, o Camboja e Angola são os países mais minados do mundo; segundo os peritos, o
Afeganistão, por si só, tem enterradas no seu solo entre dez e quinze milhões de minas. O
Camboja conta com oito milhões, ou seja, uma mina por habitante, e é o país que actualmente
possui o maior número de mutilados do mundo. Mas o continente africano não lhe fica nada
atrás, com um sem-número de campos de batalha, de Angola a Moçambique e do Ruanda à
Somália. No total, em todo o mundo, encontram-se cerca de cento e dez milhões de minas
espalhadas no solo de sessenta e quatro países. Não só “no solo”, aliás, porque graças aos
progressos científicos, existem também minas aquáticas, adaptadas aos arrozais, por exemplo, e
minas para as árvores. Há também a mina “saltitante”, concebida para explodir a um metro do
solo, para melhor incapacitar ou assassinar, a mina “borboleta”, com o aspecto de um brinquedo
colorido, a mina camuflada dentro de bonecas... a imaginação dos fabricantes não tem limites.
Ora estas minas, que destroem literalmente a vida civil de comunidades inteiras, são
particularmente perigosas para as crianças. As crianças constituem, por si só, metade das
seiscentas mil vítimas de minas (assassinadas ou mutiladas) nos últimos vinte anos. Os riscos
que elas correm são ainda mais graves do que os que ameaçam um adulto. O corpo de uma
criança, mais pequeno, não protege tão bem os órgãos vitais como o de um adulto e a sua
resistência face à perda de sangue é menor. O ponto de impacto da explosão acontecerá a uma
distância menor dos órgãos vitais, da face, dos olhos, e em consequência, muitas ficarão cegas.
As crianças também são um alvo fácil porque têm tendência para explorar os: espaços
desconhecidos para procurar (levadas pela curiosidade natural infantil) novas brincadeiras e
construir brinquedos com os explosivos que encontram. As minas borboleta, tão tentadoras para
os petizes, já assassinaram milhares de crianças no Afeganistão.
Por fim, quem é que vai buscar a lenha, a água, guardar o rebanho, atravessar os campos
para chegar à escola, senão as próprias crianças? Depois da deflagração da mina e da descoberta
da criança inanimada (quando é descoberta) é necessário amputá-la ou, no melhor dos casos,
colocar-lhe uma prótese. Mas uma prótese – quando existe – é muito cara no Camboja, no
Afeganistão ou em Angola. Dá-se então prioridade aos adultos porque estes são mais rentáveis
para a sociedade. Por outro lado, uma criança está a crescer e irá precisar de duas, três, ou
40
quatro próteses. É demasiado caro. Demasiado complicado. Muitas vezes, o que se seguirá será
a rejeição da criança amputada e inválida pelo grupo social, sobretudo se a mutilação for vista
como uma condenação divina, uma maldição sobrenatural, como acontece no Camboja.
Abatidas, refugiadas no silêncio
Mas a história não acaba aqui. A guerra não afecta só o bem-estar das crianças por
intermédio de bombas, granadas e minas. Ela mata muito mais eficazmente quando interrompe
todos os circuitos da produção agrícola, quando bloqueia todas as redes de comunicação e
quando impede o fornecimento de géneros alimentares ou de medicamentos. A guerra destrói os
sistemas de alimentares ou inunda-os de feridos, impede a medicina preventiva, as campanhas
de vacinação e favorece o aparecimento de surtos de epidemias, da fome e da pilhagem da ajuda
externa.
Na Somália, estima-se que a guerra tenha feito desaparecer entre metade e três quartos
das crianças com menos de cinco anos. Mas só um pequeno número terá sido vítima dos efeitos
directos dos combates, dos tiros da artilharia e dos bombardeamentos. Quase todas morreram de
fome e da completa e total desorganização da vida económica e social em que o país se
encontra.
O mesmo esquema repete-se um pouco por todo o lado. Na Etiópia, durante a grande
fome dos anos 1984-1985, a esmagadora maioria das vítimas sucumbiu mais rapidamente à
malnutrição e às epidemias do que à guerra propriamente dita. No Camboja, durante o regime
dos Khmers Vermelhos, não foram as execuções sumárias, a tortura ou os massacres que
provocaram o maior número de mortos (se bem que ainda não se saiba a que escala foram
praticados), mas a deportação maciça, os trabalhos forçados e a malnutrição.
A desorganização da vida económica nem sempre é um subproduto espontâneo da guerra.
De facto, raramente o é. Muito frequentemente, resulta de uma deliberada política de terra
queimada, levada a cabo pelas facções em conflito que destroem pontes, estradas e vias
ferroviárias e regam a napalm ou a produtos tóxicos o território inimigo. Ou então, como foi o
caso do Camboja, assiste-se a uma tentativa demente de “reorganização” do país, com base em
teorias perfeitamente disparatadas.
A guerra destrói, então, tudo o que as crianças necessitam para viver e para se
desenvolverem. Ela priva-as, em primeiro lugar, dos próprios pais, umas vezes fisicamente em
consequência dos combates e massacres, e outras por causa do caos geral que instaura. Foi
assim que no fim do Verão de 1994, mais de cento e dez mil crianças ruandesas foram
recolhidas pelas organizações humanitárias, não só porque um grande número de adultos tinha
desaparecido devido aos assassinatos ou à cólera, mas também porque, no pânico da fuga para a
41
fronteira Este com a República Democrática do Congo, muitas crianças se perderam, afastandose inexoravelmente das familias.
O que acontecerá a estas crianças que, depois de terem assistido a massacres, se vêem
sós, paradoxalmente sós no meio de milhares de outras, nessas enormes instituições, nesses
orfanatos onde, apesar de uma imensa boa-vontade se torna praticamente impossível realizar
qualquer tratamento individual ou recriar laços reais, esses laços sem os quais uma criança é
incapaz de se projectar no futuro? As sequelas psicológicas das guerras “modernas” são muitas
vezes tão graves quanto as sequelas físicas com as quais as crianças têm de viver. Algumas
saltam imediatamente à vista – crianças abatidas, refugiadas no silêncio, por vezes até incapazes
de chorar, ou de contar o que sofreram; crianças violentas, agressivas, ou, pelo contrário,
apáticas, passivas. Crianças desapossadas de si próprias, desprovidas dos seus objectos de
afeição, de identificação. Crianças que se mutilam, que se culpam por estarem vivas quando
tantas outras estão mortas. Outras vezes, as feridas psicológicas não são aparentes e a criança
parece relativamente insensível face ao que lhe aconteceu. Mas essas feridas irão irromper mais
tarde, na adolescência ou na idade adulta, quando a “cicatrização” já se tiver tornado
irremediavelmente impossível.
Uma das melhores curas e uma das únicas formas de se conseguir ajudar estas crianças a
regressar à vida passa pela reactivação das escolas. Mas as escolas também sofreram as
consequências da guerra, e quase nunca por acaso. É desta forma que em Moçambique, quando
a guerra chegou ao fim em 1993, dois terços das crianças já não tinham qualquer acesso ao
ensino primário. No Camboja, os Khmers Vermelhos eliminaram, arrasaram, toda e qualquer
forma de sistema escolar, símbolo de uma cultura maldita. Na Etiópia e na Somália, com as
escolas destruídas e os professores enviados para a frente de batalha, já nada resta do antigo
sistema de educação, já de si deficitário, nas províncias do norte e do este. Quanto às crianças
ruandesas refugiadas na República Democrática do Congo, não tiveram qualquer
acompanhamento escolar durante três anos.
No entanto, sabemos que uma das primeiras medidas a ser levada a cabo no fim dos
conflitos não passa apenas por retirar as crianças das imensas instituições onde foram colocadas
de urgência para as devolver aos familiares, mesmo afastados, ou a famílias de acolhimento;
tampouco se limita a oferecer-lhes alimentação e cuidados adequados. Consiste também em
recriar condições para uma escolarização, mesmo que rudimentar, para que elas possam reaver
ao menos um vislumbre de uma vida de criança; para que lhes sejam restituídos os objectos de
investimento que a guerra lhes roubou por completo. Tem-se tentado pôr em prática diversas
estratégias, embora ainda não seja possível avaliar o seu impacto: psicoterapias de grupo,
terapias através do jogo e do teatro, cerimónias de luto colectivas, rituais tradicionais. Todas
estas estratégias, por mais necessárias que sejam, podem parecer insignificantes face aos dramas
42
insondáveis que estas crianças viveram. Sem a reconstituição de autênticos laços interpessoais,
sem a libertação da palavra que exteriorize os dramas inscritos na memória, corre-se o enorme
risco de o trauma se instalar, talvez para sempre. E por vezes também, o risco do aparecimento
da violência como único meio possível de expressão. Violência que é dirigida aos outros, mas
também a si própria.
O efeito perverso dos embargos
Porém, podem surgir outros obstáculos no caminho deste penoso regresso à normalidade,
desta vez sob a forma de obstáculos políticos. Quando um país, já de si vítima de uma guerra ou
de conflitos civis violentos tem, como se não bastasse, “atitudes politicamente incorrectas”,
pode abater-se sobre ele, mais precisamente sobre a população civil e sobretudo sobre as
crianças, uma nova forma de calamidade – as sanções económicas. Assim, para “punir” Saddam
Hussein por ter tentado anexar o Kuwait, o Conselho de Segurança das Nações Unidas decidiu
proibi-lo de exportar o seu petróleo para o mercado mundial, ou, por outras palavras, decidiu
asfixiá-lo financeiramente. Para estrangular o sistema, foi proibido ao Iraque não só exportar a
sua única produção, mas também importar aquilo de que necessitava para alimentar, tratar e
educar a sua população. A interdição afectava produtos como a farinha, o azeite, os
medicamentos e as vacinas, assim como cadernos, borrachas e lápis.
Os resultados não foram imediatamente visíveis, porque o Iraque não era um país pobre e
dispunha de algumas reservas. O seu sistema de saúde, de distribuição de alimentos e de
educação figurava mesmo entre os mais desenvolvidos do Médio Oriente. Mas os efeitos do
embargo acabaram por aparecer com toda a clareza. Embora os benefícios políticos obtidos pela
comunidade internacional ainda não estejam completamente demonstrados, o impacto das
sanções sobre a população civil não podia ser mais claro. A taxa de mortalidade de crianças com
menos de cinco anos duplicou no país desde o fim da guerra do Golfo e é actualmente superior à
de países como o Brasil, o Peru ou o Egipto. Calcula-se que tenham já morrido quinhentas mil
crianças em consequência do embargo. A malnutrição generalizou-se e os sistemas de
abastecimento de medicamentos e de água potável desmoronaram-se. O sistema escolar teve
idêntica sorte - as crianças que continuam a ir à escola sentam-se no chão e trabalham com
materiais obsoletos que não podem ser substituídos. A taxa de abandono escolar subiu em
flecha, sobretudo no que se refere às meninas entre os dez e os doze anos, que são obrigadas a
procurar trabalho para completar os rendimentos da família no fim do mês. O abrandamento do
embargo, acordado desde o início de 1997, irá permitir ao Iraque regressar à sua situação
anterior? Dificilmente o fará, já que os efeitos de uma tal derrocada irão certamente persistir
durante muito tempo.
43
Os efeitos do embargo foram semelhantes no Haiti, podendo, no entanto, ser mais graves
tendo em conta o nível de pobreza inicial do país. Aí, as sanções económicas foram aplicadas
durante três anos, depois do golpe de estado militar de 1991. Entre essa data e o final de 1993, a
taxa de malnutrição que se verificou entre crianças com menos de cinco anos examinadas nas
instituições de apoio da ilha subiu de 27% para mais de 50%. O impacto das sanções foi
desastroso para o conjunto dos já escassos sistemas de saúde e educação em todo o país.
O último exemplo é o do Burundi, um país à mercê de intensas tensões políticas, de um
genocídio encapotado e cujos vizinhos decidiram que precisava de ser “punido”. Punido
porquê? Pelo facto de possuir um chefe de Estado auto proclamado, como se toda a região
circundante não padecesse também de um défice democrático generalizado. As consequências
não se fizeram esperar – as tensões internas ficaram ao rubro, começaram a suceder-se
massacres atrás de massacres e as organizações humanitárias estão a deparar-se com imensos
obstáculos na sua tarefa de ajudar a população.
Todas estas sanções, cujo impacto na vida dos civis pudemos observar também na Sérvia,
parecem repetir-se falhando sistematicamente o alvo – impotentes para atingir o corpo político
visado, geralmente um chefe de Estado muito pouco preocupado com o bem-estar da população
civil, elas castigam, na realidade, sobretudo aqueles cujo poder político é praticamente
inexistente – as crianças. Sistema absurdo este, cujo impacto no futuro dos países “sancionados”
está ainda longe de se conseguir determinar, e em que o tirano, virtuosamente denunciado,
acaba por não ser atingido. Se por sancionar, se subentende na realidade eliminar o chefe de
Estado incriminado, então a solução não passará certamente por aí e deveriam ser levantadas
algumas restrições, deixando passar, por exemplo, bens de primeira necessidade indispensáveis
para as crianças. Nunca ninguém tentou iniciar uma acção capaz de penalizar realmente os
políticos responsáveis pelos infortúnios daqueles que são governados. O que podemos observar,
pelo contrário, são os antigos ditadores a gozar as suas reformas tranquilas e principescas,
graças ao dinheiro que conseguiram roubar ao seu povo, uns na Côte d'Azur, como Baby Doc do
Haiti, e outros em residências rurais no Zimbabué, como o sanguinário coronel Mengistu. Os
exemplos vão-se acumulando. Quanto àqueles que ainda estão no poder, é do conhecimento
geral que não estão propriamente nas ruas da amargura, seja em Bagdade, em Belgrado ou em
qualquer outra parte do mundo2.
Refugiados e “deslocados”
Outra consequência inevitável da guerra é a imensidão das deslocações de população e
dos agrupamentos de refugiados, nos quais as crianças acabam por ser as primeiras vítimas da
2
N.T. -O conteúdo global desta obra, e nomeadamente este excerto, deve ser lido atendendo ao facto de a sua edição
original datar do ano de 1997.
44
escassez de provisões e dos êxodos precipitados impostos pelas peripécias político-militares,
como pudemos observar a partir de 1994 na região Oriental da República Democrática do
Congo.
Hoje em dia existem por todo o mundo vinte e oito milhões de “refugiados” – aqueles que
atravessaram uma fronteira – e de “deslocados”, que são aqueles que permaneceram no seu país.
Distinção teórica que pouca diferença faz na vida dos interessados. Do ponto de vista do
Direito, só os refugiados podem reivindicar uma protecção jurídica especial, porque se viram
forçados a abandonar o seu país, enquanto que os “deslocados” são, na realidade, refugiados no
seu próprio país. Na prática, esta distinção não faz muito sentido – os “deslocados” do Sudão,
que fugiram de uma guerra devastadora no sul do país, estão numa situação a todos os títulos
comparável à dos seus compatriotas refugiados nos países vizinhos. Quanto à protecção jurídica
de que os refugiados deveriam beneficiar, esta de nada valeu aos ruandeses massacrados desde o
início de 1997 na região noroeste da República Democrática do Congo. Massacrados pelas
armas e pela fome.
Quer se trate de “refugiados” quer de “deslocados”, mais de três quartos e, por vezes,
mesmo nove décimos de entre eles, são compostos por mulheres e crianças. Imensas
concentrações desumanas onde a vida gravita em torno da distribuição de víveres, e onde as
crianças deambulam sem objectivo, de um acampamento para outro; campos enormes onde
reinam a insegurança, a promiscuidade e a violência; onde circulam armas, onde os mais jovens
se deixam levar pelos agentes recrutadores, onde os adolescentes são agredidos. Centenas de
milhares de crianças nascem e sobrevivem nesses campos sem escolarização – em todo o
mundo, apenas têm acesso à escola menos de 15% das crianças destes campos. Por outro lado,
muitas destas crianças são privadas da sua nacionalidade, logo, de um sentimento de identidade
nacional que provavelmente permanecerá ausente durante toda a vida. A idade permanecerá em
muitos casos uma incógnita nas suas vidas e, para aqueles que se perderam dos pais, o próprio
nome também. Podemos citar como exemplo o caso dos trezentos e cinquenta mil refugiados
cambojanos imobilizados na fronteira khmero-tailandesa, com a Tailândia e o Camboja a
“atirarem a batata quente” de um lado para o outro, a primeira negando-lhes a nacionalidade
tailandesa e o segundo recusando-lhes a nacionalidade khmer, porque eles tinham fugido do país
na altura sob a mão de ferro dos Khmers Vermelhos. Como sobreviver no mundo actual sem
identidade, sem nacionalidade e sem saber a idade nem o próprio nome?
Para além disso, as condições de vida nos campos são cada vez mais precárias. Nos
últimos quinze anos, o número de refugiados e deslocados tem vindo a dilatar-se
desmesuradamente em consequência dos conflitos mais recentes – as guerras na América
Central, no Afeganistão, em Moçambique, no Ruanda, etc., mas os recursos que a comunidade
internacional põe à sua disposição não sofreram praticamente qualquer alteração. Muito pelo
45
contrário, as rações alimentares foram diminuindo ao longo dos anos e a malnutrição existente
nos campos tem aumentado. Aumenta ainda mais quando estes campos servem de base a
soldados perdidos que não mostram qualquer escrúpulo em se servirem primeiro dos produtos
alimentares, para eventualmente os revenderem e comprarem armas. Verifica-se, assim, que a
malnutrição nunca foi tão grave nem tão frequente nesses campos como o é agora. Segundo a
Unicef, a incidência da emaciação, ou emagrecimento muito acentuado, atinge nas crianças a
tremenda percentagem de 40% em Angola, na Libéria e no Sudão.
Ninguém duvida que viver nesses campos deve ser semelhante a viver um autêntico
pesadelo, mas este é um pesadelo que pode vir a durar quinze ou mais anos, como vimos no
caso dos três milhões de refugiados afegãos fixados no Irão e no Paquistão, dos eritreus
instalados no Sudão, dos moçambicanos no Malávi, dos cambojanos na Tailândia, etc. Em casos
como estes, em que se tornarão as crianças? Adolescentes para quem o regresso ao país natal
aparece como uma ideia abstracta, um país que eles nem sequer conhecem, ao mesmo tempo
que vêem impedida a sua integração no país de “acolhimento”. Presas fáceis dos agentes de
recrutamento e dos proxenetas que infestam os campos de refugiados.
A criança treinada para matar
O auge deste circo de horrores é precisamente atingido pelo recrutamento de crianças-soldado. Quantos “soldados” de seis, oito e doze anos existirão por esse mundo fora? A última
estimativa credível remonta ao ano de 1988. Nessa altura, atingia já o número pungente de
duzentos milhares de crianças. Mas isto foi antes dos conflitos do Ruanda, do Burundi, da
Libéria, da Serra Leoa, antes da explosão do conflito na Jugoslávia, antes ou mesmo durante a
guerra entre o Irão e o Iraque, mas em todo o caso, antes de serem tornadas públicas as
atrocidades que tiveram lugar neste último conflito.
Esta estimativa encontra-se assim claramente desactualizada, e neste momento é
impossível proceder a um novo estudo. Mas todos os que se deslocaram recentemente aos
campos de batalha, principalmente em África, são testemunhas da notória juventude de alguns
“combatentes”. Tivemos oportunidade de ver com os nossos próprios olhos grupos de
“soldados”, no Ruanda, em que os mais velhos nem sequer doze anos tinham. No Camboja, as
facções que ainda hoje continuam a assassinar-se pelo poder mantiveram certos hábitos do
tempo de Pol Pot e continuam a recrutar soldados pré-adolescentes.
A história recente põe à nossa disposição um leque enorme de exemplos desta tendência,
sendo que o mais abjecto de todos será o de obrigar crianças com apenas dez anos a matar e a
torturar, às vezes os próprios pais, fazendo-lhes literalmente uma lavagem ao cérebro. Foi o que
aconteceu ou ainda acontece em Moçambique, no Uganda, na Libéria e na Serra Leoa. No
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Afeganistão, na Nicarágua e em El Salvador, foram raptadas dezenas de milhares de crianças
para irem engrossar as fileiras dos guerrilheiros e para as obrigar a cometer atrocidades a que os
próprios soldados adultos às vezes se recusavam.
Por vezes, para chegar a este ponto, a violência ou a coacção não são suficientes. É
necessário um doutrinamento, uma fanatização cuidadosamente organizados. Esta foi a política
adoptada pelo Irão durante a guerra com o Iraque. Por deliberação dos dirigentes, não se podiam
perder muitos homens válidos nos campos de minas. Para desminar, as crianças serviam muito
bem. Então, explicava-se-lhes no meio de reuniões “religiosas” que elas iriam servir o seu país,
e mais tarde, alcançar directamente o paraíso. Para tal, foram instruídos actores encarregados de
lhes mostrarem o caminho e que, a dado momento, davam o sinal de partida. E foi assim que
vimos milhares de crianças precipitando-se sobre campos de minas, levando ao pescoço chaves
de plástico, as chaves do paraíso, e gritando antes da mina explodir a seus pés: “Allah Akbar!”
Pensa-se que cerca de cinquenta mil crianças iranianas terão morrido assim em nome de Deus.
Menos sorte tiveram as sobreviventes, enclausuradas durante anos nas prisões iraquianas,
mortificadas por terem sobrevivido, aterrorizadas com a ideia de voltar ao seu país,
envergonhadas por ainda estarem vivas.
Mas em certas ocasiões, o recurso à religião não basta. É nesse caso que intervém uma
técnica que consiste em fazer com que a criança cometa repetidamente atrocidades, de
preferência sobre a sua própria família. Este método foi abundantemente utilizado em
Moçambique pela Renamo, guerrilha nessa altura financiada pela África do Sul, e mais
recentemente pelas facções em conflito na Libéria e na Serra Leoa. Os “meninos-lobos”, como
eram apelidados em Moçambique, eram obrigados a matar, a matar os parentes, de maneira a
destruírem quaisquer laços afectivos que os ligassem à sua família, ficando assim
completamente dependentes da guerrilha que os tinha raptado. Obrigadas a assassinar os pais, os
camponeses e as pessoas mais próximas, as crianças tornar-se-iam dóceis; qualquer tentativa de
voltar atrás seria impedida. A dado momento, a Renamo dispunha de pelo menos dez mil dessas
crianças-soldado, as mais jovens das quais mal tinham completado os seis anos de idade. Em
Angola, de acordo com um inquérito levado a cabo em 19953, 36% do total de crianças do país
tinham “acompanhado” ou ajudado os soldados.
Mas há situações que requerem algo mais, além da religião, do doutrinamento e da
coacção. E é aqui que surge a droga. “Davam-nos marijuana e comprimidos” – conta-nos uma
criança liberiana “desmobilizada” – “Quando se toma essas coisas, não se sente mais nada, não
se pensa em mais nada que não seja matar.”
3
A Situação Mundial da Infância, Unicef, Brasília, I997.
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Porque razão alguns exércitos e algumas guerrilhas se interessam tanto pelas crianças-soldado que, a priori, se poderiam considerar inexperientes e pouco eficazes? Antes de mais há
que ter em conta a escassez de soldados adultos – há alturas em que os exércitos precisam de
mais mãos para trabalhar e, por isso vão-se buscar crianças para integrarem contingentes
suplementares, como no caso da decisão tomada pelo exército nazi em 1944, de incorporar
soldados de dezasseis anos.
Mas isto não é tudo. Segundo o raciocínio dos recrutadores, uma criança é infinitamente
mais maleável, mais facilmente manipulável e condicionável do que um adulto; é menos
propensa à revolta e mais sensível aos métodos de terror infligidos.
Não exige soldo nem qualquer gratificação especial, a não ser a sensação de pertencer a
um grupo de recrutas, a um grupo onde seja reconhecida. Neste raciocínio entra também a ideia
de que uma criança pode não se aperceber do que lhe estão realmente a pedir; de que a fronteira
entre o bem e o mal ainda é indistinta para ela. Tendo em conta tudo isto, porque não aproveitar
um recurso tão valioso, que abunda em excesso nos campos de refugiados, nos orfanatos, nas
cidades e nas escolas?
Raptam-se então os rapazes, tal como pudemos assistir muito recentemente em vários
cenários de conflitos armados, mas também se raptam meninas, situação que está a decorrer
neste preciso momento a Norte do Uganda. O destino dessas meninas é o “casamento” com um
soldado, a sujeição a relações sexuais, e a fazer tudo o que é necessário a um exército em
movimento: cozinhar, limpar, etc. Várias centenas destas meninas ugandesas, raptadas pelo
“Exército de Resistência do Senhor”, foram libertadas recentemente e estão actualmente em fase
de tratamento. Mas existirá alguma forma de as resgatar verdadeiramente da guerra? Qual será a
ajuda que lhes poderemos oferecer quando aquilo por que elas passaram está muito além da
nossa imaginação? Também elas foram obrigadas a cometer atrocidades, a beber sangue
humano, a sujeitarem-se a todos os delírios dos soldados. Quando isto acontece a uma criança
de oito, nove anos de idade, o que fazer para que ela se reconcilie de novo com a vida?
Para algumas destas crianças, o condicionamento e a solidão são de tal maneira extremos
que o exército se torna, paradoxalmente, no seu único refúgio, no único lugar com que se
conseguem identificar, uma espécie de substituto da família que perderam. Em Maio de 1993, o
governo da Serra Leoa ordenou a desmobilização de todos os soldados com menos de quinze
anos. A “desmobilização” foi, no entanto, mais problemática do que se previa inicialmente. É
absolutamente indispensável um trabalho de equipa que as consiga dissociar da nova “família”
que pensavam ter encontrado, sem que se sintam órfãs uma segunda vez.
O progresso tecnológico do armamento militar também faz com que o recrutamento de
crianças-soldado se vá tornando cada vez mais fácil, dada a proliferação de armas leves ou de
48
pequeno calibre. Antigamente, as armas eram demasiadamente grandes ou pesadas para elas.
Hoje em dia a história é outra. Uma espingarda de assalto de origem soviética AK 47 ou uma M
16 norte-americana são ao mesmo tempo leves, fáceis de montar e desmontar e bastante
acessíveis. O “preço corrente” de uma AK 47, por exemplo, é neste momento inferior a dez
dólares em África e existem M 16 disponíveis em todo o lado.
Com efeito, os responsáveis por este alistamento maciço de crianças na guerra andam de
mãos dadas com aqueles que compram as armas e as colocam à disposição de todos, e aqueles
que as vendem. Todos lucram com isso. Lucros militares por um lado, lucros comerciais por
outro. O negócio das minas continua de vento em popa, não obstante os esforços meritórios de
todos aqueles que lutam para que elas sejam completamente banidas. No entanto, o mercado dos
armamentos tradicionais vai proliferando a uma escala bem maior. De resto, os números falam
por si, ao revelar que os orçamentos militares de todo o mundo, em francos ou em dólares
constantes, se multiplicaram por quinze a partir de 1945, tendo atingido em 1993 os valores
alucinantes de 790 biliões de dólares (destes, 121 biliões foram gastos pelo Terceiro Mundo). É
verdade que esta quantia revela uma ligeira diminuição em relação ao pico histórico atingido em
1987, o que significa que pelo menos neste aspecto, o desmoronamento do Império Soviético
teve a sua utilidade. Mas os números continuam a ser impressionantes, sobretudo se os
compararmos com os orçamentos destinados em todo o mundo às áreas da educação e da saúde
e os que se referem à totalidade dos serviços destinados às crianças, em que as quantias
envolvidas são cerca de cem vezes inferiores.
No entanto, não apontemos o dedo acusador aos progressos tecnológicos nem aos
interesses económicos. O culpado é ainda, e sempre, o mais profundo desprezo em relação à
criança. Recrutar crianças, manipulá-las, obrigá-las a matar ou a torturar, são ideias que à
partida não decorrem de estratégias financeiras, embora os traficantes de armas acabem por
beneficiar largamente desta situação. Elas são uma opção deliberada de estrategas em ponto
pequeno que arrancam as crianças das escolas e forçam a guerra a entrar nas suas vidas e para
sempre. Essa escolha é uma escolha racional, deliberada, calculada. O mundo saturado de
imagens e de horrores em que vivemos ainda não conseguiu avaliar bem a amplitude dessa
abjecção. De que é que estará à espera?
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Além-Mar
Dezembro 2001
Excertos
As armas engordam as economias
D. Manuel Martins
Estava há muito pouco tempo em Setúbal, quando fui convidado para visitar uma fábrica
e aí celebrar a Eucaristia.
Imagine quem for capaz a alegria que senti, até pelas circunstâncias especialíssimas de
tempo e lugar.
Só que, chegado à fábrica, logo me sinto arrepiado. Sabem porquê? Porque se tratava de
uma fábrica de material de guerra, isto é, de armas que não tinham outro destino que não fosse o
de matar. E fiquei inclusivamente a saber que aquelas que se fabricavam com o meu testemunho
se deveriam enviar, logo que possível, para um desgraçado país do Oriente que ainda hoje não
conhece a paz.
Isto quer dizer que Portugal também enfileira na lista dos países que entram na corrida da
morte. Somos, é verdade, peregrinos da paz, mas, às vezes, fico-me a pensar que, bem cá no
fundo, queremos a guerra. E que a guerra, como a droga, dá dinheiro, engorda economias, faz
riqueza. E acontece – penso que acontece – que muitos desses «altos senhores» que correm o
mundo a promover e a participar em cimeiras de paz já levam consigo, nas suas pastas,
contratos para serem assinados, para fornecimento de material de guerra.
Sei, com alegria, que se desenvolve no País, com grande sucesso, um abaixo-assinado,
com o sentido de se acabar urgentemente com tal actividade – fabrico/fornecimento de armas –,
actividade que, para além de todas as suas vergonhas, nos retira toda a legitimidade de falarmos
em paz, fazermos manifestações pela paz, promovermos encontros ecuménicos pela paz. E que
«a paz é obra da justiça» e a primeira componente da justiça é verdade. A mentira abre portas à
guerra, a mentira alimenta a guerra.
Sabemos ainda – quem o havia de imaginar? – que muitas dessas armas que matam,
mutilam, afogam sonhos e esperança, vão parar às mãos de crianças, que, assim, nunca chegarão
a ser gente.
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Hubert Reeves
A hora do deslumbramento. Terá o universo um sentido?
Lisboa, Ed. Gradiva, 1991
Excertos adaptados
A bomba está entre nós
Da minha janela vejo o pôr-do-sol sobre a cidade. As vidraças reflectem-lhe a luz dourada
sobre as ruas já ensombradas. Entre as bancadas do mercado, onde se alinham frutos e legumes,
as pessoas discutem, compram e abalam com os cestos bem cheios.
Ao observar esta vida calma e pacífica, como pensar na ameaça que pesa sobre ela?
Armazenadas nos silos nucleares, 30 000 bombas atómicas estão prontas a saltar em poucos
minutos. Uma única bastaria para aniquilar uma cidade inteira, deixando de ponta a ponta uma
imensa cratera vítrea como as que se vêem na Lua.
Mil milhões de mortos, mil milhões de feridos graves, tal é o cálculo das vítimas
imediatas de um conflito nuclear generalizado, mas os efeitos a longo prazo seriam ainda mais
aterradores, porque os sobreviventes lamentariam não terem sucumbido prontamente. Segundo
as melhores estimativas, milhões de toneladas de poeiras e fuligem, dispersas na atmosfera,
mergulhariam grande parte da superfície terrestre numa noite de vários meses e o calor solar
deixaria de atingir o solo. A temperatura desceria por toda a parte e manter-se-ia algumas
dezenas de graus abaixo de zero, provocando, assim, o inverno nuclear...
Depois disto, tempestades de grande violência disseminariam nos dois hemisférios
substâncias tóxicas cujo teor radioactivo neutralizaria as defesas imunológicas de pessoas e
animais. A agricultura, os cuidados médicos, os transportes públicos, seriam reduzidos a nada.
A fome, o frio, as epidemias, poderiam, segundo alguns, provocar a extinção do género
humano. (Estes cálculos e previsões têm sido contestados. O grau de incerteza é grande, mas
não exclui o extermínio da nossa espécie).
Como chegámos a isto? Por que aceitámos este cavalo de Tróia dentro das nossas
muralhas? Por que espécie de perversidade fomos levados a construir, nós próprios, os
instrumentos da nossa destruição? Porquê, em vez de nos livrarmos delas, damos em cada ano, a
essas armas, uma potência maior, uma precisão mais mortífera?
Este primeiro capítulo é uma reflexão sobre um tema entristecedor: a Humanidade faz
tudo o que pode (e ainda mais) para chegar o mais depressa possível à sua autodestruição.
53
E a bomba nasceu...
O advento da bomba é melhor contado no estilo das grandes epopeias mitológicas do que
no tom frio e impessoal da história contemporânea; a linguagem épica revela de modo mais
eficaz a verdadeira dimensão dos trunfos em jogo.
Longe de não ser mais do que uma crendice, cuja falsidade se demonstrou, o mito,
tradicionalmente, é uma maneira de transmitir sabedoria e arte de viver. Não se trata de saber se
é verdadeiro ou falso, mas sim de medir a sua eficácia como técnica de ensino.
O mito de um ser do além que incarna e irrompe no nosso mundo surge com frequência
nos escritos tradicionais. Precursores, profetas, grandes sacerdotes e sacerdotisas anunciam e
preparam a sua vinda.
De todas as divindades, a bomba é, sem dúvida, a mais despótica, a mais cruelmente
exigente. Como vestais romanas, os seus discípulos consagram-se inteiramente ao seu serviço.
Sentido do dever, competência, eficácia, honestidade científica, todas as qualidades que se
exigem aos melhores são indispensáveis para levar a bom termo os trabalhos que o seu
nascimento implica.
A bomba não tolerará nenhuma lentidão, nenhuma fraqueza, nenhuma infidelidade, e os
que quiserem deixá-la arrepender-se-ão. Sem demora serão substituídos por outros adoradores
mais zelosos ainda, os quais, em grande número, esperam com impaciência a ocasião de a
servir.
Em menos de dez anos a bomba atómica passa do estado de especulação pura ao de
realidade aterradora, gerada por uma das mais prodigiosas concentrações de matéria cinzenta da
história humana. Em 1942, em Los Alamos, vila perdida no deserto do Novo México, reúnem-se os melhores cientistas do planeta: físicos, matemáticos, químicos.
O exército americano instala lá um super-laboratório, onde todos os meios são postos à
disposição dos investigadores. O ambiente é de alta tensão, trabalha-se noite e dia, sem
quaisquer férias. O parto é longo e difícil. A bomba manifesta-se pela primeira vez em Julho de
1945, em Alamogordo, também no Novo México. Pouco depois revela a sua verdadeira face,
com o aniquilamento de duas cidades japonesas: Hiroxima e Nagasáqui. Em alguns segundos
dezenas de milhares de pessoas passam, literalmente, ao estado gasoso. No total, mais de 150
000 vítimas.
A bomba ganha em potência. No atol de Bikini, nas neves siberianas de Nova Zembla,
atingirá o equivalente a dezenas de milhões de toneladas de dinamite. E ela prolifera: mais de
30 000, segundo as últimas notícias, encontram-se disseminadas nos arsenais do planeta.
54
Instaladas sobre engenhos balísticas de assustadora precisão, várias de entre elas são-nos
destinadas e têm o doce nome de Paris, outras chamam-se Nova Iorque, Moscovo, Pequim. Para
os técnicos que todos os dias as mantêm e acariciam, Paris é, antes do mais, o nome de um dos
seus belos engenhos.
«Um conto de dormir em pé»
Mas voltemos à génese do armamento nuclear. Os primeiros rumores sobre a
possibilidade de fabricar uma super-bomba, dita atómica, começam a circular no mundo
científico alguns anos antes da Segunda Guerra Mundial.
É o despontar da era nuclear. Pressentem-se então as propriedades explosivas do urânio,
cujo átomo, radioactivo, se quebra facilmente, com emissão de energia. Um bloco de mineral de
urânio liberta continuamente calor. Para o sentir basta tocar-lhe com a mão. Em cada instante,
no interior do bloco, dá-se a fissão de milhões de núcleos.
Pode-se acelerar artificialmente esta fissão submetendo os átomos a um fluxo de neutrões.
Ao absorver um neutrão, o átomo de urânio torna-se muito mais vulnerável à fissão e cinde-se
rapidamente, emitindo numerosos neutrões. Daí a possibilidade de uma reacção em cadeia.
Um núcleo de urânio absorve um neutrão, cinde-se, emite neutrões, imediatamente
absorvidos pelos átomos vizinhos, que se cindem por sua vez, etc.
As energias libertadas por cada uma destas fissões somam-se e podem atingir proporções
gigantescas. Donde a ideia de uma bomba. Um quilo de urânio liberta, assim, mais calor do que
mil toneladas de dinamite. Quanto basta para devastar uma pequena cidade. Uma tonelada de
urânio fará desaparecer do mapa a maior das cidades do planeta.
Mas naquela época ninguém sabe se o projecto é realizável. As dificuldades técnicas
parecem inultrapassáveis; a maior parte dos cientistas mantém-se céptica. Um projecto utópico,
a remeter para as prateleiras do esquecimento, juntamente com o «movimento perpétuo» e a
«máquina de viajar no tempo».
«Um conto de dormir em pé», dizia Ernest Rutherford, um dos maiores físicos do nosso
século.
Numa banheira de um quarto de hotel
No seu livro Os Grandes Momentos da Humanidade, Stefan Zweig descreve certos
acontecimentos históricos (os gansos do Capitólio, a escrita do Messias de Händel, etc.) que,
55
mau-grado a sua curta duração e, por vezes, a sua aparência anódina, influenciaram
profundamente os destinos da Humanidade.
Gostaria de acrescentar um acontecimento à colecção de Zweig. Estamos em Londres em
1935. Um cientista judeu húngaro, recém-chegado de Budapeste, aluga um quarto num hotel e
transforma imediatamente a casa de banho em laboratório. Na água da banheira mergulha
pequenas fontes radioactivas, subtraídas à universidade onde ensinava e transportadas em
segredo na bagagem. Chama-se Leo Szilard e encontra-se submetido a uma viva agitação.
Acredita firmemente na possibilidade de libertar a energia dos átomos e espera executar
rapidamente as manipulações requeridas para o conseguir.
Não o impulsiona somente o entusiasmo por um projecto fantástico; sobre as implicações
do eventual êxito da sua tarefa há um olhar lúcido. Szilard sabe da ameaça que pesaria sobre o
destino da Humanidade caso conseguisse fabricar uma bomba atómica. «A Humanidade corre
para a sua perda», repetiria ele mais tarde, à medida que as dificuldades se aplanavam.
Mas ao mesmo tempo sente-se aterrorizado pela amplitude que o movimento nazi vem
assumindo desde há alguns anos. Por causa da subida do anti-semitismo abandonara a sua
cadeira na Universidade de Budapeste e fugira do continente. São-lhe evidentes as intenções
guerreiras de Hitler, a barbárie que ameaça a Europa.
Ei-lo, refugiado político sem laboratório, inclinado sobre a sua banheira de hotel,
obcecado pela ideia de que é preciso, por qualquer preço, desenvolver a bomba e ganhar a
corrida contra os físicos alemães ao serviço do nazismo.
Em 1935 Leo Szilard suporta sozinho a carga de angústia que emana da bomba ainda nos
limbos. A maior parte dos seus colegas não acredita nela.
Mas a bomba não tardará a impor-se. A pouco e pouco, acabará por fascinar toda uma
geração de físicos e engenheiros, a quem, como a Szilard, inspirará alguns sentimentos
contraditórios: a excitação ante as forças a libertar, a consciência do risco mortal que ela
importa, mas também a necessidade imperiosa, em face da conjuntura política, de acelerar, por
todos os meios, o seu nascimento.
Discípulos exemplares...
Em 1935, um rumor; em 1986, uma realidade terrível. Os historiadores que, após um
eventual cataclismo nuclear, desejarem narrar as suas etapas preliminares, citarão Los Alamos
como um dos lugares altos dessa preparação. Na logística do grande golpe contra a
Humanidade, este laboratório terá assumido um papel-chave.
56
Na película The Day after Trinity são entrevistados vários participantes, tanto sobre o seu
papel como sobre os seus estados de alma ao longo de todos estes anos. Ao mesmo tempo
emocionante e instrutivo, o filme propõe abundante matéria à nossa reflexão.
O Dr. Strangelove, de Stanley Kubrick, divulgou a imagem do cientista atómico,
paranóico genial, obcecado por engenhos cada vez mais destruidores. Se esta representação não
é sempre destituída de fundamento (alguns quiseram ver nela o retrato de Edward Teller, outro
refugiado húngaro, grandemente responsável pela bomba H), decerto não se aplica à maioria
dos artesãos do «projecto Manhattan» (nome secreto da operação atómica de Los Alamos).
Estudante na Universidade de Cornell, nos Estados Unidos, no fim dos anos cinquenta,
conheci, pessoalmente, vários dos responsáveis deste projecto. Todos eram ardentes pacifistas,
activos oponentes ao maccartismo, esse anticomunismo primário que, na época, se comprazia
em exercer sevícias a torto e a direito.
Hans Bethe dirigiu a secção teórica do projecto Manhattan de 1943 a 1946. De origem
judia alemã, fugira da Europa alguns anos antes. «É uma das mais belas ofertas da Alemanha
nazi aos Estados Unidos», dizia-se dele. Já antes da guerra o classificavam entre os melhores
físicos nucleares.
Muito jovem, tinha resolvido um problema secular: o da fonte de energia do Sol. Em
1938, com alguns colaboradores, demonstrou que o coração das estrelas era palco de reacções
nucleares, cuja energia era mais do que suficiente para explicar a luminosidade das estrelas. Este
trabalho valeu-lhe o prémio Nobel em 1967.
Estou ainda a vê-lo, alto, digno e sereno, percorrendo a largas passadas os corredores do
Rockfeller Hall, edifício do departamento de física da universidade, rodeado por um cenáculo
de jovens investigadores.
Nas conferências semanais daquele departamento sentava-se no fundo da sala e
prosseguia os seus trabalhos, aparentando não dar nenhuma atenção às discussões que se
desencadeavam entre os assistentes. Todavia, quando a situação se obscurecia, ouvíamo-lo
tossir gravemente. Seguia-se um longo silêncio; depois, em algumas frases, dissipavam-se as
brumas, tudo se tornava luminoso. Creio que tínhamos por ele uma verdadeira veneração.
A cada um dos estudantes do laboratório dava uma atenção amigável e exigente. Com
regularidade, vinha até nós e, fingindo querer saber apenas as novidades, acabava por nos
submeter a um interrogatório cerrado sobre o andamento dos nossos trabalhos. A sua passagem
criava muita apreensão: «Fulano está com o mestre, vi-os pela janela. Cheira-me que as coisas
não vão lá muito bem». Mas apreciávamos muito os seus conselhos, o seu olhar sobre os nossos
trabalhos. Deixávamo-nos levar pelo seu vigor e rigor e aceitávamos, de boa mente, as suas
normas de excelência.
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Consciente da responsabilidade do cientista, consagrou, depois de Los Alamos, uma parte
importante da sua actividade a opor-se à escalada nuclear, argumentando que só o diálogo entre
as partes adversas, só a união ao nível político e humano, podiam afastar a ameaça de guerra.
Membro do conselho científico do presidente dos Estados Unidos, a ele ficámos a dever a
interdição dos ensaios nucleares na atmosfera, decidida em 1963.
Nunca cheguei a saber exactamente qual o papel que Robert Wilson desempenhou em
Los Alamos, mas sem dúvida que se ocupou das experiências. Durante os meus estudos em
Cornell, partilhava ele com Hans Bethe a direcção do Newman Nuclear Laboratory. Tanto
quanto Bethe se nos impunha pela gravidade da sua atitude, assim Wilson era directo e jovial.
Durante as suas aulas não perdia ocasião de implicar com os físicos teóricos, afogados em
equações. Com ele tudo era simples, claro e eficaz.
Wilson é o homem dos aceleradores de partículas. Depois de ter construído o betatrão de
Cornell, dirigiu no Fermi Laboratory, de Chicago, um dos maiores aceleradores actuais,
comparável ao CERN, de Genebra.
Apaixonado pela arquitectura, tinha particular afeição pelas construções do período
gótico, de que falava muitas vezes, com competência e calor. Para ele os aceleradores gigantes
são, de certo modo, as catedrais dos nossos dias. Wilson tem pelo seu trabalho o fervor de um
artesão medieval.
Quero apresentar-vos agora Philip Morrison, sem dúvida o meu preferido. Impossível
perder um curso, uma conferência pública de Morrison. Era o grande espectáculo. Ouço ainda o
seu passo claudicante para o estrado, revejo os seus gestos um pouco patéticos para se instalar e
o seu belo sorriso inteligente, um nadinha malicioso.
A exposição arrancava a todo o vapor, as ideias encadeavam-se numa torrente inspirada,
pontuada de truculência e de entusiasmo irresistíveis. A mistura, sabiamente doseada, de rigor
lógico, de arrebatamentos líricos e de piadas insolentes contra as «instituições», mergulhava-nos
num estado de êxtase, de que se emergia a custo. Queríamos sempre mais... Um dos seus
números favoritos começava por uma iniciação às maravilhas das técnicas de telecomunicações,
para terminar por uma sátira contundente à inépcia das mensagens veiculadas pelas ondas.
Posto na lista negra das autoridades americanas por causa das suas simpatias de esquerda,
foi-lhe cortado, durante os anos cinquenta, todo o acesso aos documentos secretos da defesa
nacional. Nessa época, o seu telefone estava ligado a um posto de escuta e o seu correio era
sistematicamente aberto.
Facecioso, criou um método de detecção das explosões nucleares (pelo seu reflexo sobre
a face escura da Lua), de que enviou uma memória a Washington. Aterrorizados, os
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funcionários lembram-lhe as interdições de que é objecto. «Se não o querem, a quem me
sugerem que o envie?».
Havia ainda Richard Feynman, preocupado com a filosofia e os problemas religiosos.
Almoçava muitas vezes com os estudantes. Sentíamo-nos fascinados por esta personagem
genial, que fazia física, como jogava bongo.
O caminho da bomba está pavimentado de boas intenções
Não conheci Robert Oppenheimer. Segundo a opinião geral, era um ser de excepção.
Além do seu perfeito domínio da física, possuía uma vasta cultura literária e filosófica. Sentia-se
tão à vontade no domínio das mitologias hindus como no da literatura francesa medieval. Antes
da guerra não dava muita importância aos acontecimentos da política internacional.
Mas ninguém, sobretudo um judeu, pode desinteressar-se da política no início dos anos
quarenta. Em todas as frentes Hitler triunfa. A sua ambição é sem limites, os exércitos alemães
invadem a Europa, subjugando populações inteiras. Os campos de extermínio multiplicam-se. A
nova ordem que se vai impondo ameaça a própria civilização, é o retorno à barbárie e, para os
judeus, a morte a curto prazo.
Por acréscimo, certos rumores deixam entender que os nazis se interessam pela bomba
atómica... Sabemos agora que os Alemães tentaram, efectivamente, desenvolver o armamento
nuclear. Mas não foram muito longe. Para Hitler, o cientista era mais útil na frente de batalha do
que no laboratório. Felizmente! Uma bomba atómica alemã teria mudado o curso da história.
Nessa época opera-se uma aliança simultaneamente espantosa e significativa. O exército
americano confia o projecto nuclear ao general Groves, um militar de carreira, cabeçudo, da
extrema-direita, alérgico aos intelectuais e liberais.
Para seu colaborador científico principal chama Oppenheimer. Estas duas personagens,
na aparência, o mais incompatíveis possível, vão trabalhar em estreita colaboração durante anos.
As vitórias alemãs, os campos de extermínio de judeus, estimulam e dinamizam a equipa
de Los Alamos. No plano moral, a situação é límpida: não é hora para hesitações e escrúpulos. É
preciso fabricar a bomba. E depressa. Creio que, se então tivesse a idade necessária e me
tivessem convidado, ter-me-ia lançado com entusiasmo nesta aventura, com o sentimento
exaltante de participar na salvação da civilização.
Em 8 de Maio de 1945 os exércitos alemães capitulam. É a vitória das forças aliadas na
Europa. No Pacífico, os Japoneses resistem ainda, mas, com toda a evidência, a guerra está
perdida também para eles. A bomba atómica não está ainda pronta.
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Outras intenções menos boas...
Como se reage em Los Alamos? Mais tarde Bob Wilson dirá: «Nesse dia devia ter
devolvido o meu distintivo, fechado o laboratório para nunca mais lá pôr os pés. Por que não o
fiz? Nunca consegui compreendê-lo. É, em toda a minha vida, o que mais lastimo».
A hipótese de uma interrupção dos trabalhos é timidamente evocada por numerosos
cientistas, mas sobretudo por descargo de consciência. Ninguém, em verdade, acredita nisso. O
clima psicológico não é propício.
Sem dúvida, os argumentos a favor da bomba existem ainda, mas de uma forma
singularmente enfraquecida. Já não se trata de salvar a civilização, mas apenas de poupar as
despesas da invasão do território japonês, poupando, assim, alguns milhões de soldados e civis.
Mais vale sacrificar uma centena de milhar de japoneses...
É bom em termos contabilísticos, mas de uma contabilidade a curto prazo, porque, a
longo prazo, seria necessário ter em conta as centenas de milhões de mortes que uma futura
guerra nuclear poderia ocasionar. «Cá estou, cá fico», diz a bomba.
Isto conduz-nos ao ponto crucial da nossa discussão: será a bomba inevitável?
Suponhamos que, se se tivesse nesse momento decidido fechar a loja, queimar os documentos,
destruir as instalações, porque os Russos já se interessavam pela bomba, cedo ou tarde os
Americanos seriam forçados a retomar os trabalhos.
Como um paquete navegando a toda a velocidade, o projecto, dirá mais tarde
Oppenheimer, era irresistivelmente empurrado pelo seu próprio impulso. «Quando se nos
depara a possibilidade de cometer a proeza técnica, baixamos a cabeça, e atiramo-nos para a
frente, sem perguntar o que nos convirá fazer, uma vez concluída a tarefa. Assim aconteceu com
a bomba atómica». Senhora de todos os argumentos, a bomba atómica não sofreu nunca
qualquer atraso.
Os trabalhos prosseguiram sem interrupção e a bomba de ensaio explodiu no Novo
México no Verão de 1945.
Desde esse momento pôs-se a questão do futuro da bomba. Será preciso usá-la? Em que
condições? Uns propõem que se convidem os generais inimigos para um novo ensaio no mesmo
local, com o fito de os impressionar. Outros pensam que é necessário fazer explodir a bomba
sobre território japonês, mas numa região desabitada.
«Ora bolas para os escrúpulos», dizem os falcões de então, «devastemos com firmeza
cidades não bombardeadas até aqui, para melhor podermos avaliar a extensão das destruições».
É este ponto de vista que triunfa. Depois de Hiroxima e Nagasáqui, os Japoneses pedem a paz.
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Como terá Hans Bethe vivido estes acontecimentos? «À partida estávamos muito
inquietos. O engenho funcionaria? Quando recebemos as notícias do êxito, ficámos, primeiro,
descansados, para depois mergulharmos no horror. Que foi que fizemos? Que foi que fizemos?»
Desde esse instante data a sua decisão, nunca posta em dúvida, de se opor ao prosseguimento
dos ensaios nucleares.
«Em Los Alamos não reflectíamos», dirá ele mais tarde, «o trabalho absorvia-nos
inteiramente. Era preciso terminá-lo. Penso que, uma vez iniciado, o movimento continuou à
custa do seu próprio embalo».
Philip Morrison procedeu à última inspecção da bomba na ilha de Tinian, justamente
antes da partida para Hiroxima. Na universidade falava livremente, retomando o argumento
oficial dos milhões de vítimas que teria custado o desembarque no Japão. Mas sentíamo-lo
preocupado, muito mais do que desejava mostrar.
Quanto a Bob Wilson, a sua mulher conta que no dia de Hiroxima regressou a casa aos
vómitos. «E ainda vomito todas as vezes que penso nisso», acrescenta ele.
E ilusões: as duas faces de Prometeu
Sobre o estado de alma dos cientistas de Los Alamos, Oppenheimer dirá mais tarde, com
grande lucidez – e aborrecimento de muitos –, que os físicos conheceram o pecado.
Libertar a energia das estrelas é, como fez Prometeu, arrancar o fogo do céu. É a Natureza
controlada, domesticada, dominada, como nunca antes na história dos homens. O físico torna-se
demiurgo.
É fácil imaginar a exaltação no momento da primeira explosão. Oppenheimer conta
como, nesse mesmo instante, lhe vêm à memória as palavras de Krishna no Mahabharata (um
dos livros sagrados da tradição hindu). São versos de ressonância profética:
Os raios de um milhão de sóis
Resplandecendo num só golpe no céu,
Assim será o esplendor do Todo-Poderoso.
Tornei-me a morte,
O destruidor do universo.
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No seu livro Disturbing the Universe, o físico Freeman Dyson fala, com justeza, do
«pacto faustiano». Tal como Fausto aceita o pacto de Mefistófeles, os físicos aliam-se ao
exército para ascenderem a um nível superior da ciência e do poderio. Mas, enquanto Fausto
suporta sozinho as consequências do seu gesto, o peso das experiências de Los Alamos cai
sobre a Humanidade inteira.
O mito de Prometeu tem duas faces. A primeira remete-nos para Fausto: a embriaguez do
saber e do poder. A segunda é messiânica: Prometeu, benfeitor da Humanidade.
O mito da «força benevolente» é uma imagem intemporal, um desses arquétipos
profundamente gravados na psique humana e que vem regularmente ao de cima na literatura
mundial. É Gilgamesh entre os Assírios, Sansão para os Judeus, Hércules na Grécia antiga e,
mais próximo de nós, o Super-Homem, Tarzan ou Zorro. O poder que vem em socorro das boas
causas, da viúva e do órfão.
No mesmo espírito, Oppenheimer evocará outra passagem do Mahabharata, um
acontecimento da vida de Xiva, o criador dos mundos, mas também o destruidor universal,
quando os tempos chegam ao fim. Xiva tenta trazer à razão um reizinho despótico e quezilento.
Como os seus conselhos de nada servem para lhe instilar um receio salutar, Xiva
metamorfoseia-se e enverga os terríveis trajes de destruidor dos mundos. «Cada um de nós em
Los Alamos foi influenciado, nesse momento ou noutro qualquer, por uma imagem análoga»,
acrescenta Oppenheimer.
«Esperamos que o poder quase ilimitado que vai nascer nos nossos laboratórios sirva para
paralisar as más intenções e para impor aos humanos uma conduta razoável. Oferecemos à
Humanidade uma arma que, nas mãos das Nações Unidas, se tornará uma garantia de paz».
Estas palavras, segundo Oppenheimer, sustentavam os investigadores nas horas de dúvidas e
escrúpulos. «Quem ama castiga», diz o provérbio, mas é preciso um chicote.
Ainda na mesma via, o financeiro americano Bernard Baruch apresentará, alguns anos
mais tarde, um projecto de acordo soviético-americano no qual se pede que as Nações Unidas
criem um arsenal atómico para castigar toda a nação que, tendo reconhecido a nova agência,
ousasse infringir as suas regras. O projecto foi rejeitado por unanimidade...
A bomba provincializa-se
Quem quer que duvide do poder dos mitos, tem de considerar o espectáculo
extraordinário ao qual assistimos aqui: uma imagética mítica que durante anos alimentou o
fervor e apaziguou a consciência desta elite da inteligência mundial.
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Ilusão... A sucessão de ocorrências ilustrou abundantemente a vaidade desta esperança. A
«força» nunca foi «benevolente». A bomba é uma arma como as outras, se bem que
infinitamente mais poderosa.
Mais tarde, a linguagem mítica retorna, mas o mito provincializa-se. Truman espera que a
América guarde, para sempre, o exclusivismo deste «depósito sagrado» que lhe foi confiado
quase por direito divino. Em 1948 pergunta a Oppenheimer: «Quando serão os Russos capazes
de fabricar uma bomba atómica?». «Não faço a menor ideia». «Pois eu sei!» «Quando?».
«Nunca!», responde Truman, seguro dos seus apoios celestes. Três anos mais tarde um engenho
nuclear explodia na União Soviética...
Por igual religiosamente inspirado, o senador Brian McMahon afirma, depois da
capitulação, que o bombardeamento do Japão é o maior acontecimento da história do mundo
desde o nascimento de Jesus Cristo. E acrescenta: «Os Estados Unidos devem manter-se à
cabeça na corrida aos armamentos, porque, se por infelicidade a URSS os apanha, este poderio
ilimitado nas mãos das forças do mal só poderá conduzir à destruição total».
Depois da guerra santa contra o nazismo, a guerra santa contra o comunismo. A bomba,
decididamente, tem muita sorte, todos os trunfos no seu jogo. Num ritmo infernal, desenvolve-se, aperfeiçoa-se, arranja descendência. Os arsenais enchem-se. E quem faz ouvir a voz da
razão?
Os murmúrios inaudíveis da razão
A actividade de Niels Bohr, o pai da física quântica, para travar o processo infernal é, sem
dúvida, uma das passagens mais emocionantes desta história sombria. «É da máxima urgência»,
dizia ele antes mesmo de a bomba estar pronta, «pôr Estaline ao corrente. Na ausência deste
gesto de confiança e boa vontade, será impossível mais tarde estabelecer um controle
internacional da energia nuclear. E teremos direito», predizia ele correctamente, «à escalada do
terror».
Durante vários meses Bohr tentou, em vão, avistar-se com os dirigentes da época.
Finalmente, Churchill concedeu-lhe uma rápida entrevista... na presença de outro convidado.
Escutou distraidamente a petição de Bohr, depois voltou-se para o outro visitante para falar de
um assunto completamente diferente. «Posso escrever-lhe?», perguntou Bohr, desesperado.
«Sim, na condição de não me falar mais de política». Mais tarde Churchill dirá: «Nunca gostei
desse sujeito cabeludo, que queria revelar os nossos segredos aos Russos. Era melhor tê-lo
debaixo de olho».
63
Com Roosevelt, apesar de mais afável, o resultado será o mesmo. A bomba atómica para
os Aliados é uma arma de poder, e não uma força benevolente. E isto desde 1943, muito tempo
antes da sua concretização.
A pedido de Leo Szilard, Albert Einstein contactou duas vezes com o governo americano.
Quando em 1939 quis interessar Roosevelt pelo projecto atómico, foi recebido favoravelmente.
Quando, a seguir à vitória sobre a Alemanha, os dois físicos quiseram opor-se ao
prosseguimento do projecto Manhattan, a Casa Branca fez ouvidos moucos.
Um outro físico inglês, o Dr. Blackett, vencedor do prémio Nobel, apresentou ao
primeiro-ministro Attlee, sucessor de Churchill, uma memória contra a continuação do
armamento nuclear da Inglaterra. Foi acolhido com rudeza e brutalidade. «O autor, um cientista
distinto, fala de problemas políticos e militares de que nada sabe». Para assinalar o facto,
Blackett foi excluído da comissão de defesa nacional.
Contrariamente ao mundo científico, o mundo político parece ter ficado impermeável ao
mito da «força benevolente».
Os filtros
Inclinado sobre a banheira do hotel em Londres, em 1935, Leo Szilard é, de certa
maneira, o anunciador da deusa bomba. O general Graves e Robert Oppenheimer, enfeitiçados
por filtros bem diferentes, mas igualmente eficazes, são os seus grandes sacerdotes.
Quando Groves escuta «o apelo da bomba», todo ele se desunha a construir depósitos de
artilharia. Como verdadeiro soldado, só sonha com a glória militar. «O ministro da guerra
designou-vos para uma missão da mais alta importância. Se a desempenhardes correctamente, a
guerra está ganha».
Nomeado general-de-brigada, Groves passa imediatamente à acção. Organiza o transporte
das suas «tropas» – os melhores cientistas da época, entre os quais alguns prémios Nobel – para
um canto perdido do Novo México. Quer que eles vistam o uniforme do exército americano,
façam a saudação militar e fiquem sujeitos ao segredo mais completo. Para sua grande
decepção, as três exigências são-lhe recusadas.
Groves espumará de raiva ao saber que alguns cientistas manifestaram oposição ao
lançamento da bomba sobre cidades japonesas. Numa memória intitulada «Tratamento
reservado aos investigadores científicos indesejáveis», escreveu que «o projecto Manhattan foi
prejudicado logo à partida pela presença de certos homens de ciência de uma discrição
aproximativa e de uma lealdade duvidosa».
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Ao aproximar-se a vitória na Europa, fará circular uma nota de acordo com a sua devoção
à causa: «Aconselha-se a que se encarem desde já programas educativos para o pessoal, os quais
sublinharão a importância de manter os trabalhos e a necessidade de acelerar o seu ritmo a
seguir ao dia da vitória, tomando o Japão como objectivo final. O pessoal receberá instruções no
sentido de evitar perdas de tempo a celebrar a vitória sobre a Alemanha com festejos
inconsiderados».
Mas a bomba não tem pátria, está acima das nações, só deve fidelidade a si mesma. O
erro de Groves foi pensar e propagar a ideia de que os Russos seriam incapazes de fabricar
bombas atómicas. Embriagado pelo triunfo, convencido da superioridade absoluta da América,
Groves redigirá um relatório técnico sobre o projecto Manhattan, uma espécie de «fanfarronada
US», distribuído em numerosos exemplares e que os engenheiros soviéticos muito apreciaram e
exploraram em seu proveito.
Não se lhe perdoou a proeza. O seu zelo intempestivo tornou-o indesejável e foi
substituído por homens mais modestos, discretos e competentes. A sua carreira terminou, a
bomba vai continuar sem ele.
Oppenheimer é uma personagem de tragédia, o seu fim será muito mais dramático.
Consagrando a maior parte da sua carreira ao desenvolvimento do armamento nuclear, será
«queimado» logo que manifesta algumas reservas. A propósito, rememoro as palavras de uma
canção de Edith Piaf: «A vida dá-vos todas as hipóteses, para as anular em seguida».
Desde a infância que Robert Oppenheimer é um «pequeno génio». Aos 12 anos apresenta
uma comunicação à Academia de Ciências de Nova Iorque sobre os seus trabalhos em geologia.
«Nunca encontrei ninguém tão rápido a captar um raciocínio», dirá mais tarde Hans
Bethe, que conhecia muito bem a matéria. «Em alguns segundos ele refaz interiormente o
trajecto que nós levámos horas a percorrer».
Este espírito subtil, familiarizado com as altas esferas da abstracção, logrou levar a bom
termo o projecto eminentemente concreto de dirigir um laboratório com várias centenas de
pessoas e de fabricar, num tempo recorde, um engenho atómico. Isto ilustra bem os dons
extraordinários com que a Natureza o dotara. Acrescentemos, para maior exactidão, a sua
grande cultura literária e artística, bem como os talentos culinários, fortemente apreciados pelos
colegas.
Oppenheimer é a pessoa designada para enfrentar o desafio faustiano da conjuntura
política: dar à luz a bomba atómica. Ganhará a parada e será elevado ao vértice da glória.
Depois da guerra residirá em Washington, onde as potências mundiais dão às suas palavras a
maior consideração. Enquanto milita a favor da bomba, a sua vida roça pelo sonho e as honras
chovem sobre ele.
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O seu destino inflecte-se quando começa a manifestar reticências, objecções de
consciência, dúvidas morais. Militares e cientistas não lhe perdoarão o ter penetrado nas suas
motivações profundas. Se, para os soldados, a bomba utiliza o filtro da glória militar, é o filtro
do poder que é servido aos cientistas, juntamente com o das boas intenções.
Quando Oppenheimer insiste em obter isótopos para aplicação médica, é considerado
suspeito de pretender leiloar segredos atómicos. Mas sobretudo será censurada a sua oposição à
prioridade concedida à estratégia dos bombardeamentos nucleares maciços. Contra ele será
montado um processo odioso; o seu passado será vasculhado. A queda será brutal, com a
exclusão da comissão de defesa e a proibição de acesso a todo o material científico
correspondente. Nunca mais recuperará. As últimas imagens do filme The Day after Trinity
mostram-no abatido, precocemente envelhecido, uma sombra de si mesmo.
Apesar da sua oposição ao prosseguimento da escalada nuclear, Hans Bethe não sofrerá
uma sorte tão cruel. Contudo, passa a ser objecto das críticas acerbas por parte dos jovens lobos
da corrida aos armamentos. «O senhor estava cheio de entusiasmo no momento em que se
fabricava a bomba atómica, apesar da oposição dos seus antecessores, que a julgavam
irrealizável. Portanto, agora acabe com esses sermões e deixe-nos aproveitar as nossas
possibilidades». Este discurso dá-nos a medida exacta do nível de reflexão ética e de
responsabilidade moral dos novos trabalhadores do armamento nuclear. Quem falará mais
eloquentemente da potência dos filtros da bomba?
A bomba prolifera
A bomba americana nasceu num transporte eufórico de zelo e entusiasmo. A bomba
soviética apareceu no terror, sob a vigilância das metralhadoras.
Não foi sem razão que Truman duvidou da possibilidade deste engenho nuclear russo. Os
Alemães tinham devastado o país, que se transformara num imenso campo de ruínas. Para
levarem até ao fim o seu projecto, os Estados Unidos tiveram de usar a fundo a sua formidável
infra-estrutura industrial e técnica. Comparando a situação económica dos dois países nessa
época, é caso para efectivamente perguntar como conseguiu Estaline que o seu projecto
triunfasse.
Sabemo-lo hoje. Apesar do estado exangue do território, a bomba, fiel a si própria, ganha
aos pontos à reestruturação social. Utiliza-se a mão-de-obra gratuita dos goulags. Em condições
por vezes medonhas, centenas de milhares de operários trabalham dia e noite sob a ameaça das
espingardas.
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As instalações são montadas a toda a pressa, sem respeito pelas condições de segurança.
Um engenheiro alemão falará mais tarde de «condições criminosas». Aos riscos de incêndio e
de inundações junta-se a certeza das irradiações.
Em 1947, a explosão de um depósito de dinamite provoca 70 mortos e 170 feridos. Nada
afrouxa a cadência de trabalho. Mesmo os físicos são submetidos ao terror. «Que teria
acontecido se não tivéssemos conseguido?», escreverá um deles à família. «Teríamos sido
simplesmente fuzilados». O destino do físico soviético Sakharov tem analogias com o de
Oppenheimer. Pioneiro da bomba de hidrogénio, menino bonito das autoridades militares
durante vários anos, as perseguições de que é hoje objecto relacionam-se com a sua oposição às
explosões nucleares atmosféricas. Kruchtchev nunca lhe perdoou.
E em França? Aproveitando as fraquezas da IV República e as mudanças frequentes de
governo, a bomba francesa será obra de um pequeno número de tecnocratas, sem licença oficial
do parlamento e, sobretudo, na ausência completa de discussões democráticas. Quando explode,
em 1960, contentar-se-ão em a... homologar. Sem vergonha, o seu «desenvolvimento» pesa
sobre a nação, deixando recordações pungentes. A última, em data, chama-se... Greenpeace.
Em Inglaterra, Churchill, conhecido pelo seu temperamento autoritário, chega ao poder
em 1951 e nunca conseguirá compreender como, sob o governo socialista precedente, puderam
os engenheiros ingleses gastar um milhão de libras para a bomba, sem que alguma vez o
parlamento tivesse ouvido falar dela.
A maldição é que a bomba tem todos os trunfos no seu jogo: Bob Wilson mencionava «o
impulso irresistível do poderio tecnológico associado à máquina burocrática» quando procurava
compreender por que é que a capitulação da Alemanha nazi não provocara a interrupção dos
trabalhos.
Acrescentemos o pavor paranóico e a histeria causados pela bomba russa, que, na opinião
dos especialistas, «nunca devia ter causado um tal pânico». Os falcões passam por cima de tudo
e aproveitam todas as circunstâncias sem se preocuparem com as responsabilidades políticas.
«Ao longo da história atómica as decisões são sempre apresentadas ao público como
inelutáveis. Contudo, nunca as iniciativas pessoais, os temores histéricos e os entusiasmos
passageiros terão, neste ponto, ditado o curso da história mundial.», escreveram Pringle e
Spiegelman... em Les barons de l’atome, um livro cuja leitura nunca me cansarei de
recomendar.
Num autor chamado Peter Sloterdisk encontrei este belo texto, completamente em
harmonia com as páginas precedentes: «Perfeita, soberana, indiferente, a bomba atómica é o
verdadeiro buda do Ocidente. Imóvel, repousa no seu silo: actualidade pura e pura
potencialidade. É a encarnação das energias cósmicas e a participação dos homens nessas
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energias; é a obra-prima da espécie humana e a exterminadora desta espécie; é o triunfo da
racionalidade técnica e a dissolução na paranóia...
Não é mais viciosa do que a realidade, nem mais destruidora do que nós. Ela é, muito
justamente, o reflexo do que nós somos e a expressão materializada dos nossos modos de agir.
Mais do que considerações estratégicas, é um profundo exame que temos de fazer em
relação à bomba. Ela não requer nem luta nem resignação, mas a experiência de nós próprios.
Nós somos ela».
A proliferação em 1986
Depois dos Estados Unidos, a União Soviética, a França e a Inglaterra, a China e a Índia
fabricaram e fizeram explodir engenhos termonucleares. Cinco outros países encontram-se em
excelente posição nesta corrida: a Argentina, o Brasil, Israel, o Paquistão e a União Sul-Africana. Embora não possuam ainda um arsenal atómico completo, estas nações deram já
grandes passos nesse sentido.
Há alguns anos foi assinado por vários governos um tratado de não proliferação, o qual,
por razões diversas, tem sido largamente contestado. Duas nações do clube nuclear, a França e a
China, recusaram-se a assiná-lo, no que foram compreensivelmente imitadas pela maior parte
dos países desejosos de obter a bomba.
Os antepassados da bomba
Corremos o risco de esquecer, ao mitificar a bomba, ao ver nela a encarnação de um ser
diabólico, que ela tem antepassados notórios. É a última de uma série de armas mortíferas
criadas pela imaginação fértil dos homens durante toda a sua história.
Desde a mais alta antiguidade, todas as invenções, todas as energias novas, são
sistematicamente usadas para fins guerreiros. Dardos, flechas, fogos, cavalos, juntam-se ao
arsenal dos exércitos em conflito. Lucrécio, o nosso «correspondente romano», dá-nos disso um
testemunho eloquente: «Aprendeu-se a domar os cavalos, a dirigi-los com um freio e a montá-los. Em seguida, tentou-se combater num carro puxado por dois cavalos, mais tarde, por quatro.
Depois vieram os carros armados de foices cortantes, em seguida os Cartagineses domesticaram
elefantes e treinaram-nos para a guerra.
Assim, a cruel discórdia inventou armas cada vez mais mortíferas e aumentou em cada
dia os horrores da guerra».
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Escrito há mais de dois mil anos, este texto é para nós rico de ensinamentos. A última
frase podia ter sido escrita ontem mesmo. Apesar do acréscimo prodigioso de conhecimentos,
apesar dos progressos tecnológicos, a alma humana mantém-se resolutamente fiel às suas
tradições. E esse é que é o problema.
Os elefantes de Aníbal ameaçavam somente as legiões romanas. A pólvora de canhão, a
dinamite, aumentam consideravelmente os destroços. Com a energia nuclear, a «cruel
discórdia» pode pensar a sério na eliminação da espécie humana.
Um erro da natureza?
Mal adaptado, porque com excessivas garantias, nefasto ao equilíbrio do planeta, será o
ser humano, em definitivo, um erro da Natureza?
Avaliam-se em mais de um milhão as espécies vegetais e animais que vivem actualmente
na Terra. O total de espécies aparecidas no decurso da evolução biológica atingirá os dez
milhões. No entanto, nove em cada dez desapareceram.
Nenhuma espécie é sagrada. Cada uma surge do jogo da Natureza, do acaso das
mutações biológicas. Para durar precisa de arranjar um nicho, estabelecer um comportamento de
trocas, receber e dar, inserir-se num ecossistema. Caso contrário, a eliminação é inexorável.
Há sessenta e cinco milhões de anos, os dinossauros, os fetos gigantes, os amonites,
desaparecem bruscamente da superfície terrestre. Sobre a causa desta catástrofe não dispomos
de certezas. Pode ter sido a chegada súbita e importante de materiais extraterrestres (meteorito
gigante ou nuvem interestelar). Segundo toda a probabilidade, estes seres não foram
responsáveis pelo seu desaparecimento. A Natureza não lhes pediu a opinião. Mas o ser
humano, se chegar a sua vez de desaparecer, não poderá senão culpar-se a si próprio. Nada nos
ameaça além do que nós provocamos.
A destruição nuclear da Humanidade poderia arrastar a eliminação de uma fracção
importante – mesmo a totalidade – das espécies animais e vegetais. Se o arsenal não é ainda
suficiente para causar esta hecatombe, não demorará muito a sê-lo. De novo temos de saudar a
eficácia da inteligência humana. Importa aqui reconhecer o papel pouco invejável
desempenhado pela nossa cultura ocidental. Se o grau de civilização de um grupo humano se
mede pela harmonia das suas relações com o meio ambiente, a nossa quota é a mais baixa.
Tomo por testemunho estas palavras desgostosas de um velho índio do meu país: «Os brancos
riem-se da terra, do gamo ou do urso. Quando nós, índios, os caçamos, comemos toda a carne;
quando procuramos raízes, fazemos pequenos buracos; quando queimamos a erva, por causa dos
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gafanhotos, não arruinamos tudo. Sacudimos as glandes e as pinhas das árvores. Só utilizamos a
madeira morta.
Mas o homem branco revira o solo, abate as árvores, destrói tudo. A árvore diz: «Pára,
estou ferida, não me faças mal». Mas ele abate-a e corta-a em pranchas. O espírito da terra
odeia-o. Ele arranca as árvores e abala-as até às raízes... Ele estoira os rochedos e deixa-os em
detritos sobre o solo. A rocha diz: «Pára; tu fazes-me mal». Mas o homem branco não lhe dá
atenção. Como poderia o espírito da terra amar o homem branco? Por toda a parte onde toca
deixa uma chaga».
No nosso planeta habita um grande número de culturas diferentes, cada uma das quais
desenvolveu as suas próprias estratégias de subsistência, o seu modo de vida adaptado ao
enquadramento natural. A pesca dos Esquimós difere da de Benin. A agricultura maciça das
pradarias canadianas não se assemelha à jardinagem familiar dos camponeses da Índia. Tal
como as técnicas de vida, as relações do homem com a Natureza variam largamente de um lugar
para outro. Como os índios da América, como muitos hindus, numerosas sociedades tradicionais
têm pela Natureza um respeito profundo, com vislumbres de animismo.
A ciência e a tecnologia do poder nasceram no nosso mundo ocidental, precisamente
onde a relação mística com a Natureza foi desde há mais tempo posta em causa. E, sem dúvida,
isso não aconteceu por acaso. Reencontramos aqui a imagem de Prometeu arrancando o fogo do
céu: o «pecado» que, segundo Oppenheimer, os físicos conheceram em Los Alamos.
Se há uma relação entre a rejeição da piedade ancestral e a eclosão da ciência, em que
sentido se desenvolve ela? Da impiedade à ciência ou da ciência à impiedade? Com toda a
verosimilhança, alternada ou simultaneamente, nos dois sentidos.
O importante para nós é o facto histórico do surgimento da cultura tecnológica ocidental,
cuja influência hegemónica se propaga e impõe a todo o planeta.
Os imperativos industriais e comerciais, os meios de comunicação e transporte, interditam
o isolamento do passado. No século XIX os Japoneses foram forçados a abrir as portas ao
Ocidente. As últimas tribos da Amazónia extinguem-se em Tristes Trópicos, de Lévi-Strauss.
Será inevitável a inteligência e a curiosidade conduzirem à eclosão de uma sociedade
tecnológica, apoiada no domínio das energias? Esta interrogação, muitas vezes formulada,
parece-me inadequada.
Imaginemos um planeta «lambda» onde, como na nossa Terra, uma multidão de culturas
diferentes desenvolve em separado as suas relações com a Natureza. Mesmo que a quase
totalidade destes grupos mostre apenas um interesse moderado pela ciência e pela tecnologia,
70
basta que esta paixão apareça algures para se impor a todos. A tecnologia é invasora, arrasta a
sua própria expansão territorial.
A natureza do escorpião
Na margem arenosa de um grande rio africano um leão dorme. É de tarde, faz calor. Não
corre a menor aragem.
Um escorpião aproxima-se: «Levanta-te. Tenho necessidade da tua ajuda», diz ele, dando
uma cotovelada ao leão, «preciso de passar para o outro lado do rio. Aqui não há mais ninguém.
Põe-me sobre as tuas costas e leva-me a nado».
Surpresa do leão: «Eu, nadar com um escorpião no dorso? Tu vais-me picar e eu
morro...». O escorpião defende habilmente a sua causa: «Não sejas estúpido. Se eu te pico,
afogamo-nos os dois. Nada te acontecerá». Obstinado, o leão procura argumentos. Mas a
agilidade intelectual do escorpião, aliada à lógica insuperável da sua deprecada, acaba por
vencer. «Sobe», diz o leão.
A passo lento, o leão, desconfiado, avança na água tépida. Começa a nadar. A meio do
rio, uma dor viva paralisa-o. O duo é levado pela corrente.
«Olha bem o que fizeste», diz o leão, «vamos perecer os dois». «Eu sei», responde o
escorpião, «lamento muito, mas ninguém escapa à sua natureza».
Os acontecimentos dos últimos decénios dão a esta fábula toda a pertinência. Estará na
natureza do homem fabricar, o mais depressa e o mais eficazmente possível, as armas da sua
autodestruição? Se tal é o caso, poderemos nós escapar à nossa natureza?
A aposta cósmica
Neste primeiro capítulo esbocei o balanço de uma situação particularmente alarmante: a
do futuro do género humano. A acumulação delirante de engenhos termonucleares, a
proliferação do armamento atómico, fazem-nos prever o pior.
As armas – a História no-lo ensina – acabam sempre por funcionar. Os pretextos de
legítima defesa tornam-se alibis de agressão. Se o passado é a garantia do futuro, quem
apostaria no futuro da paz mundial? E, se o tiroteio começa, quem apostará na sobrevivência da
espécie humana?
Mas qual o efeito produzido no espaço interestelar por um fogo-de-artifício de bombas
atómicas no nosso planeta? Praticamente nenhum... Os habitantes dos sistemas planetários,
71
mesmo os mais vizinhos, serão incapazes de o detectar! Uma peripécia perfeitamente
desprezível à escala galáctica e do cosmos. Para que diabo tantas histórias?
E, contudo... Se a vida existe em outros sistemas planetários, à volta de outras estrelas, se
neles apareceram civilizações tecnológicas, não correrão elas também o risco, impulsionadas
pela «cruel discórdia», de serem confrontadas com o mesmo problema? Quantas populações
planetárias chegaram antes de nós à encruzilhada crucial em que nos encontramos neste
momento sobre a Terra? Quantas mergulharam no nada por não terem sabido executar a
manobra correcta? E quantas souberam passar no exame da coexistência pacífica com o seu
próprio poderio?
Um silêncio assustador
Pascal assustava-se com o silêncio dos espaços infinitos. Mas o céu, sabemo-lo hoje, não
é para nós um estranho. Lá se elaboram, no centro das estrelas, como nas nebulosas, os núcleos,
os átomos e as moléculas, que formarão mais tarde a infra-estrutura da consciência.
Existirá vida fora da Terra, noutros planetas, ao redor de outras estrelas, entre os milhares
de milhões de galáxias do nosso universo? Temos excelentes razões para pensar que os escalões
da complexidade são vencidos quando as condições físicas o permitem. E que estas condições
férteis existem em milhões e milhões de exemplares no cosmos.
Porquê então nunca recebemos mensagens, radiofónicas ou de outro género, provenientes
do céu? Há várias respostas. Examinemos, sucessivamente, quatro delas:
1 – Contrariamente à opinião apresentada acima, estamos sós. A vida não se
desenvolveu em qualquer outro lugar. É possível, mas, considerando os
conhecimentos actuais, esta explicação é difícil de aceitar;
2 – As civilizações extraterrestres comunicam por métodos de transmissão que
escapam ainda à nossa tecnologia. Não se pode refutar esta hipótese;
3 – Os nossos mais próximos vizinhos estão demasiado longe para os nossos
receptores actuais, por exemplo, se habitam na galáxia de Andrómeda. As
próximas gerações de radiotelescópios poderão então reservar-nos algumas
surpresas;
4 – Incapazes de gerir a sua agressividade, as civilizações tecnológicas exterminam-se
logo que disso se tornam capazes.
Se a boa resposta é a última, o «silêncio dos espaços infinitos» tem um significado
assustador muito diferente do que tinha para Pascal.
72
Além-Mar
Novembro 2005
Excertos
Um mundo perigoso
Durante décadas, a política nuclear tanto da ex-União Soviética como dos Estados Unidos
baseava-se no conceito de dissuasão de destruição mútua assegurada (MAD). Apesar do fim da
Guerra Fria, o espectro do terror ainda assombra a humanidade. Os arsenais nucleares foram
reduzidos drasticamente, mas ainda existem milhares de ogivas nucleares. Em 1994, Norte-Americanos e Russos concordaram em redireccionar os seus mísseis. Já em 2001, George W.
Bush afirmou ser necessário voltar a testar armas nucleares. A pesquisa e o desenvolvimento de
armas nucleares continuam, a par das mudanças no quadro político mundial. Tradicionalmente,
cinco países integravam o clube atómico: Estados Unidos, Rússia, China, França e Grã-Bretanha. Contudo, parece consensual que outros países também possuem armas nucleares. A
Índia e o Paquistão já realizaram testes nucleares, que acenderam temores de uma escalada
armamentista no Sudeste Asiático. Entre outras nações suspeitas de terem programas nucleares
contam-se Israel, a Argélia e o Irão. Para além da Coreia do Norte, onde impera um regime
desumano e desacreditado que, apesar de sucessivos acordos e ameaças de sanções, recorre
sempre ao nuclear para pressionar a comunidade internacional. Mais de 180 países assinaram o
Tratado de Não-Proliferação Nuclear, em vigor desde 1970. Até hoje, porém, várias nações sob
forte suspeita de ocultarem as suas ambições nucleares ainda não o fizeram.
Presentemente, com a globalização do terrorismo, uma das maiores ameaças que pesam
sobre o mundo é que algum grupo radical se apodere do material atómico que, no caso da
ex-URSS, foi deixado praticamente ao abandono, espalhado por vastas regiões do ex-império
soviético. Há provas de que há contrabando de material nuclear e conhece-se até os nomes de
alguns grandes traficantes. Mas a revista Scientific American lembrou recentemente que
«qualquer tráfico detectado é apenas a ponta do iceberg» e que, naturalmente, «o mercado negro
de material nuclear não é excepção». O artigo alerta: «É ingénuo acreditar que as autoridades
interceptem mais de 80 por cento do que é traficado. Mas, neste caso, mesmo uma pequena taxa
de não apreensões pode ter resultados funestos.» Mikhail Kulik, um especialista em armamento
russo, afirma que, «hoje em dia, até mesmo os “stocks” de batatas são provavelmente mais bem
guardados do que os materiais radioactivos». Outro perigo: após o desmembramento da URSS,
uma boa parte do pessoal que trabalhava no programa militar soviético ou ficou desempregado
ou perdeu subitamente o prestígio e o poder de compra. Daí ser grande a tentação de desviar e
73
vender parte dos «stocks» ou de ser aliciado por países ou grupos que paguem melhor pelo seu
saber.
74
Sam Keen
O homem na sua plenitude
S. Paulo, Cultrix, 1998
Excertos adaptados
O rito da guerra e a psique do guerreiro
«O direito do mais forte é a mais forte injustiça»
Eu tinha catorze anos quando lutei de verdade pela última vez, com punhos e pés e o que
quer que tivesse à mão. Já não me lembro do motivo da briga, talvez fosse uma rapariga, talvez
um insulto casual no autocarro da escola, talvez porque “o inimigo” morasse do outro lado da
linha imaginária, na rua Bellefonte, e frequentasse outra escola. Do meu ponto de vista, Charley
era meio efeminado. Peito cavado, ombros caídos, caminhava com um passo longo de macaco.
De qualquer maneira, a guerra fora declarada, e nós concordámos em encontrar-nos no terreno
baldio ao lado da casa de Nancy Ritter. Na hora aprazada, aparecemos no campo de batalha,
cada qual acompanhado por membros escolhidos das respectivas tribos. Durante algum tempo,
limitámo-nos a circular um em volta do outro, esperando que o outro desfechasse o primeiro
murro. “Queres alguma coisa?” “Se me puseres a mão em cima, dou cabo de ti.” Aproximámo-nos um pouco mais. Começámos a empurrar-nos, voaram punhos para todos os lados, e o
primeiro atingiu-me no nariz. “Raios!”, gritei. Eu era melhor na luta do que no boxe, por isso
pensei numa estratégia. Atirei-me ao chão, agarrei-lhe as pernas e derrubei-o. Depois de muito
rolar, com o braço encolhido, esperneando, acabei debaixo dele, incapaz de me mover.
“Desiste”, ordenou ele, “ou parto-te o braço.” Torceu-me o braço e esfregou-me a cara no
cascalho. “Rendes-te?” Doía-me o rosto, porém menos do que o orgulho. Ambos sabíamos que
eu estava derrotado, mesmo que não quisesse render-me. Por isso, ele soltou-me o braço e,
depois de algumas descomposturas e humilhações obrigatórias, fomos para casa.
Naquela noite, seguindo à risca o enredo das histórias de quadradinhos, jurei que nunca
mais seria esmurrado por um maldito “maricas”. Mandei vir um curso de Charles Atlas e
comecei a transformar um fracote de quarenta e seis quilos numa máquina magra e pequena de
combate. No segredo do meu quarto, praticava “tensão dinâmica”, levantava pesos, fazia
exercícios abdominais e de levantamento de pernas. Mais tarde, fiz um curso de luta livre.
Durante anos, mesmo depois de entrar na casa dos trinta, exercitei-me na Associação Cristã de
Rapazes. Aperfeiçoei as minhas técnicas de agarrar e derrubar o adversário e, uma vez por
75
outra, entrei em competições na classe dos pesos médios. Nunca fui campeão, mas aprendi a
gostar de lutar. E nunca mais ninguém me esfregou o rosto no chão.
Entretanto, estudava filosofia e afiava as armas da dialéctica, do debate e da
argumentação. Já com um doutoramento, tinha a mente ainda mais qualificada do que o corpo
na arte da defesa pessoal. Como professor, participava de combates diários com colegas e
alunos. Era bom no jogo académico, gostava dele e jogava para vencer. Mal notei que, com o
passar dos anos, fui adoptando aos poucos uma atitude combativa em relação aos demais – a
mente e a postura do guerreiro. Eu era muito melhor a lutar do que a reflectir ou a amar.
Agentes da violência
Por que é que o género que nos deu a Capela Sistina nos levou à beira do cosmocídio?
Por que é que os melhores e os mais brilhantes exercitaram a inteligência, a imaginação e a
energia, e só conseguiram criar um mundo em que a fome e a guerra são mais comuns do que
nos tempos neolíticos? Por que é que a história do que nos atrevemos a chamar “progresso” foi
marcada pelo aumento do sofrimento humano?
Não será porque os homens estão decididos a ser vorazes, agressivos e brutais? Estará
algum gene egoísta, algum imperativo territorial, a impelir-nos cegamente para a acção hostil?
Estará a história de Caim e Abel gravada no nosso ADN? Estará o excesso de testosterona a
condenar-nos à violência e a enfartes prematuros?
Como os homens têm sido, historicamente, os principais agentes da violência, é tentador
atribuir a culpa à nossa biologia e concluir que o problema reside mais no projecto equivocado
da natureza do que na nossa obstinação. Mas todas as explicações deterministas passam por
cima do óbvio: os homens são sistematicamente condicionados para suportar a dor, para matar e
a morrer ao serviço da tribo, da nação ou do Estado. A psique masculina, antes de mais nada, é a
psique do guerreiro. Nada nos plasma, molda e modela tanto como a exigência da sociedade de
que nos tornemos especialistas no uso do poder e da violência, ou, como dizemos
eufemisticamente, na “defesa”. Historicamente, a principal diferença entre homens e mulheres é
que sempre se esperou que os homens fossem capazes de recorrer à violência quando
necessário. A capacidade e a disposição para a violência têm sido centrais na nossa
autodefinição. A psique masculina não foi construída sobre o racional: “Penso, logo existo”,
mas sobre o irracional: “Conquisto, logo existo”.
Quanto ao que veio a tornar-se o estado de emergência banal da vida moderna,
concedemos ao Estado o poder de interromper a vida dos rapazes, de os convocar para servir o
exército e iniciar no ritual da violência. Clichés que passam por sabedoria dizem-nos: “O
exército fará de si um homem”, e “Todos os homens precisam de ter a sua guerra”.
76
O ingresso no exército ou – se se é um dos “poucos felizardos” – na marinha, envolve o
mesmo processo de destruição sistemática da individualidade que acompanhava a iniciação nas
tribos primitivas. A cabeça rapada, o uniforme, os abusivos instrutores de exercícios, as provas
de iniciação física e emocional da instrução dos recrutas da marinha, visam destruir a vontade
do indivíduo e ensinar ao recruta que a virtude fundamental do homem é não a de pensar por si
mesmo, mas antes a de obedecer aos superiores, não seguir o que lhe ordena a consciência, mas
cumprir ordens. Como os ritos de todas as sociedades guerreiras, isto ensina os homens a dar
valor ao que é duro e a desprezar o que é “feminino” e terno. Em parte alguma, como nas forças
armadas, aprendemos com tanta clareza a máxima primitiva de que o indivíduo precisa de se
sacrificar à vontade do grupo, vontade essa representada pelas autoridades.
Na iniciação mítica, o neófito identifica-se com os heróis tribais, cuja história
proporciona o modelo que será sobreposto à sua biografia. Que esse modo mítico-místico de
iniciação ainda se encontra vigente na chamada “mente moderna” pode ver-se nas contínuas
referências ao grande herói americano John Wayne, e na literatura que está a emergir sobre a
experiência vietnamita. “A guerra era vista como uma prova de virilidade em que John Wayne
matava todos os inimigos... Ocorriam-me imagens de filmes de John Wayne em que eu era o
herói... As pessoas vêem os maus e os bons na televisão e no cinema... Eu queria matar o mau.”
Os primeiros cristãos aprendiam que a vida autêntica era uma “imitação de Cristo”; os iniciados
nos cultos de mistério transformavam-se no deus Dionísio; os bons rapazes americanos que iam
para a batalha transformavam-se em John Wayne, o homem mítico divinizado e imortalizado
pelos media.
Nos últimos quatro mil anos, o baptismo de fogo tem sido um grande rito masculino de
iniciação. A meta do homem era conquistar a medalha de bravura. Numa reportagem sobre o
Vietname, Phillip Caputo expõe a tradição de uma forma clássica: “Antes do combate, aqueles
fuzileiros navais ajustam-se a ambas as definições da palavra infantaria que, ou significa “corpo
de soldados equipados para o serviço a pé”, ou “infantes, meninos, jovens, em colectividade”. A
diferença era que a segunda definição já não podia ser-lhes aplicada. Tendo recebido o
sacramento fundamental da guerra, o baptismo de fogo, a sua meninice tinha ficado para trás.
Na ocasião, nem eles nem eu pensávamos nisso nesses termos. Não nos dizíamos a nós mesmos:
“Estivemos debaixo de fogo, derramámos sangue, agora somos homens.” Simplesmente
tínhamos consciência, de um modo que não podíamos expressar, de que alguma coisa
significativa nos acontecera.
Embora apenas uns poucos homens sirvam realmente nas forças militares e menos ainda
tenham sido iniciados na fraternidade dos que mataram, todos os homens estão marcados pelo
sistema da guerra e pelas virtudes militares. Todos se perguntam: “Sou um homem? Poderia eu
77
matar? Posto à prova, revelar-me-ia um bravo? Tem alguma importância o facto de eu ter
realmente matado ou de me ter arriscado a ser morto?
Dar-me-iam mais ou menos valor se eu tivesse sido submetido ao baptismo de fogo? Eu
dar-me-ia mais ou menos valor? Que mistério especial envolve o iniciado, o veterano? Que
certificado de virilidade se equipara ao Purple Heart ou à Medalha de Honra do Congresso?”
Os homens foram todos programados culturalmente para conquistar, matar ou morrer. Já
no começo da vida, o rapaz aprende que precisa de estar preparado para lutar ou será apelidado
de “maricas”, de “mulher”. Muitos homens criativos que conheço eram sensíveis, compassivos
demais para lutar. E quase todos cresceram sentindo-se, de certo modo, inferiores e com a
certeza de que não tinham passado a prova da masculinidade. Desconfio que muitos escritores
ainda estão a mostrar aos valentões do bairro que a pena é mais forte do que a espada. A prova
modelou-nos, quer tenhamos lançado bombas ou sido apanhados por elas.
Somos todos feridos de guerra.
78
M.Scott Peck
Gente da Mentira
Cascais, Sinais de Fogo, 2001
Excertos adaptados
MyLai: uma análise da maldade em grupo
Prefácio à maldade em grupo
Os gatilhos são premidos por indivíduos. As ordens são dadas e cumpridas por
indivíduos. Em última análise, cada acto humano é resultado de uma escolha individual.
Nenhum dos indivíduos que participou nas atrocidades de MyLai ou no seu encobrimento está
isento de culpa. Até o piloto de helicóptero – o único suficientemente bom e corajoso para tentar
impedir o massacre – pode ser culpado por não reportar o que vira para além do primeiro
escalão de autoridade acima de si.
Há muitos anos que a tendência de comportamento dos grupos humanos me parece
semelhante à dos indivíduos – excepto a um nível mais primitivo e imaturo do que se possa
pensar. Porque é que isto é assim – porque é o comportamento dos grupos surpreendentemente
imaturo – por que motivo, de uma perspectiva psicológica, são estes menos do que a soma das
suas partes – já não sei responder.1 Mas de uma coisa tenho a certeza, no entanto: existe mais do
que uma resposta certa. O fenómeno da imaturidade de grupo é – usando o termo psiquiátrico –
“multi-determinado”. Quer isto dizer que é o resultado de múltiplas causas. Uma dessas causas é
a especialização excessiva.
A especialização é uma das grandes vantagens dos grupos. Existem processos para um
grupo funcionar muito mais eficientemente do que os indivíduos. Em virtude de os seus
funcionários se terem especializado em directores executivos, gráficos, moldadores, e técnicos
da linha de montagem (que, por sua vez, são também especializados), a General Motors
consegue produzir um número gigantesco de veículos. O nosso padrão de vida
extraordinariamente elevado baseia-se inteiramente na especialização da nossa sociedade. O
facto de eu possuir os conhecimentos e o tempo para escrever este livro é consequência directa
do facto de ser um especialista dentro da nossa comunidade, totalmente dependente de
agricultores, mecânicos, editores e vendedores de livros para o meu bem-estar. Dificilmente
posso considerar a especialização como uma coisa má. Por outro lado, estou totalmente
1
É uma questão verdadeiramente importante e merecedora de grande pesquisa e aprofundamento. É um tema não só
específico da maldade em grupo em geral – como se não fosse suficiente – mas também crucial para a compreensão
de todos os fenómenos de grupos humanos, desde as relações internacionais à natureza da família.
79
convencido de que muito do mal dos nossos tempos se relaciona com a especialização, e de que
precisamos desesperadamente de desenvolver uma atitude de precaução desconfiada. Penso que
deveríamos tratar a especialização com o mesmo grau de desconfiança e medidas de segurança
com que tratamos os reactores nucleares.
A especialização contribui para a imaturidade dos grupos e para o seu potencial para a
maldade através de vários mecanismos diferentes. Por agora, limitar-me-ei a tecer considerações
sobre apenas um desses mecanismos: a fragmentação da consciência. Se, na época de MyLai, ao
percorrer os corredores do Pentágono, parasse para falar com homens responsáveis pela
direcção de produção e transporte de bombas de napalm para o Vietname, e os questionasse
sobre a moralidade da guerra e consequentemente sobre a moralidade do que estavam a fazer,
esta era a resposta que invariavelmente recebia:
— Oh, agradecemos a sua preocupação, agradecemos mesmo, mas acho que veio ter com
as pessoas erradas. Não somos nós o departamento que deseja. Isto é apenas o departamento do
arsenal. Só fornecemos as armas – não somos nós que determinamos onde e como são usadas.
Isso é política. Devia era falar com o pessoal da política, ao fundo do corredor.
E se seguisse esta recomendação e exprimisse as mesmas apreensões no departamento de
política, a resposta seria:
— Oh, compreendemos que estão envolvidos assuntos mais complexos, mas acho que
estão fora do nosso âmbito. Apenas determinamos como deve ser conduzida a guerra – e não se
deve ser conduzida. Compreende, as Forças Armadas são apenas uma secção da divisão
executiva. Só fazem o que lhes mandam fazer. Esses assuntos mais complexos são decididos ao
nível da Casa Branca, e não aqui. É aí que deve expor as suas apreensões.
E assim por diante.
Sempre que os papéis desempenhados por indivíduos num grupo se tornam
especializados, torna-se possível e fácil para o indivíduo descartar a responsabilidade moral para
qualquer outra parte do grupo. Desta forma, não só o indivíduo põe de lado a sua consciência,
como a consciência do grupo como um todo se torna tão fragmentada e diluída que deixa de
existir. Veremos esta fragmentação vez após vez, de uma forma ou de outra, na discussão que se
segue. O facto é que é inevitável que qualquer grupo permaneça potencialmente sem
consciência e mau até que cada um dos indivíduos se sinta pessoal e directamente responsável
pelo comportamento do grupo inteiro – do organismo – do qual faz parte. Ainda estamos longe
de chegar a esse ponto.
Tendo presente a imaturidade psicológica dos grupos, vamos examinar alguns aspectos de
ambos os crimes de MyLai: as atrocidades em si e o seu encobrimento. Os dois crimes estão
deveras interligados. Embora o encobrimento pareça menos atroz do que o massacre, são ambos
80
farinha do mesmo saco. Como foi possível que tantos indivíduos tenham participado numa
maldade tão monstruosa sem que nenhum deles tenha sido compelido pela sua consciência a
confessar?
O encobrimento foi uma mentira de grupo gigantesca.
Como com qualquer mentira, o motivo principal do encobrimento foi o medo. Os
indivíduos que cometeram os crimes – que puxaram o gatilho ou que deram as ordens – tinham
razões óbvias para recear relatar o que tinham feito. Seriam julgados em tribunal marcial. Mas,
então, o que dizer sobre o número muito maior de indivíduos que apenas presenciaram as
atrocidades, mas que nada disseram sobre “aquela coisa tão negra e sangrenta”2? O que tinham
eles a recear?
Qualquer pessoa que dedique algum tempo a pensar sobre a natureza da pressão num
grupo percebe que, para um elemento da Força de Intervenção Barker, denunciar um crime fora
desse grupo exige uma grande coragem. Quem quer que o fizesse seria chamado “delator” ou
“bufo”. Não existe pior nome que se possa chamar a alguém do que esse. Os bufos são muitas
vezes assassinados. No mínimo, são condenados ao ostracismo. Para um vulgar civil americano,
o ostracismo pode não parecer um destino assim tão terrível. “Então, se se for corrido de um
grupo, pode-se sempre entrar noutro”, pode ser uma reacção. Mas lembremo-nos de que um
membro das Forças Armadas não é livre para simplesmente aderir a outro grupo. Não pode
sequer deixar as Forças Armadas até terminar o seu recrutamento. A própria deserção é um
crime enorme. E por isso ele está preso às Forças Armadas, e até mesmo ao seu grupo militar
em particular, excepto mediante intervenção das autoridades. Para além disto, as Forças
Armadas fazem deliberadamente muitas outras coisas para intensificar o poder da pressão de
grupo nas suas fileiras. Do ponto de vista da dinâmica de grupo, e em especial da dinâmica de
grupos militares, não será estranho que os elementos da Força de Intervenção Barker não
tenham denunciado os crimes do grupo. Nem sequer é surpreendente que o homem que
finalmente delatou os crimes não pertencesse nem ao grupo da Força de Intervenção nem às
Forças Armadas, na altura em que os denunciou.
Suspeito que existe uma outra razão extremamente importante para que os crimes de
MyLai tenham ficado por denunciar durante tanto tempo. Não tendo falado com os indivíduos
envolvidos, apresento uma mera conjectura. Mas, de facto, falei com muitos, muitos outros
soldados que estiveram no Vietname nesses anos, e conheço profundamente as atitudes
predominantes nas Forças Armadas naquela época. A minha sincera suspeita, portanto, é que os
membros da Força de Intervenção Barker não confessaram os seus crimes por não estarem
conscientes de os terem cometido. Claro que sabiam o que tinham feito, mas se tinham ou não a
2
Frase da carta de Ron Ridenhour.
81
noção do significado e da natureza dos seus actos é outra coisa completamente diferente.
Desconfio que muitos deles nem consideram que tenham cometido um crime. Não confessaram
porque acharam que não tinham nada para confessar. Indubitavelmente, alguns esconderam a
sua culpa. Mas outros, creio eu, não tinham culpas para esconder.
Como pode isto ser assim? Como pode um homem equilibrado assassinar e não saber que
o fez?
A progressão da responsabilidade colectiva
O Indivíduo sob Pressão
Quando tinha dezasseis anos tirei os quatro dentes do siso nas férias da Primavera.
Durante os cinco dias seguintes o maxilar não só me doía, como inchou e fechou. Não
conseguia mastigar sólidos – só líquidos ou comida de bebé insípida. O sabor fétido a sangue
estava constantemente na minha boca. No final daqueles cinco dias, o nível do meu
funcionamento psíquico tinha sido reduzido ao dos três anos de idade. Tornara-me
completamente egocêntrico. Era rabugento e piegas com os outros. Esperava que tivessem
constante atenção para comigo. Quando qualquer pequenina coisa não corria precisamente como
e quando eu queria, vinham-me as lágrimas aos olhos e o meu desagrado era enorme.
Acredito que quem já sofreu uma dor ou mal-estar crónicos significativos – por exemplo,
durante uma semana – reconhece a experiência que acabo de descrever. Numa situação de mal-estar prolongado, nós, humanos, tendemos natural e quase inevitavelmente a regredir. O nosso
crescimento psicológico inverte-se; a nossa maturidade é posta de lado.
Muito rapidamente nos tornamos mais infantis, mais primitivos. O mal-estar é pressão. O
que estou a descrever é uma tendência do organismo humano para regredir em resposta à
pressão crónica.
A vida de um soldado em zona de combate é repleta de pressão crónica. Embora o
Exército tivesse feito o que podia para minimizar a pressão nas tropas no Vietname (facultando
sempre que possível entretenimento, períodos recreativos e de descanso e outras formas de
relaxamento), o facto é que as tropas da Força de Intervenção Barker estavam sujeitas a uma
situação crónica de pressão. Estavam no lado do mundo oposto a casa. A comida era má, o calor
enervante, o alojamento desconfortável. Depois havia o perigo, geralmente menos grave no
Vietname do que noutras guerras, mas talvez exercendo mais pressão por ser tão imprevisível.
Chegava durante a noite, sob a forma de rajadas de morteiros quando os soldados achavam que
estavam em segurança, armadilhas que os soldados faziam disparar quando iam a caminho das
latrinas, minas que explodiam as pernas de um homem quando percorria uma bonita ladeira. O
82
facto de a Força de Intervenção Barker não se ter deparado com o inimigo que esperava naquele
dia memorável era típico da natureza do combate no Vietname. O inimigo aparecia quando
menos se esperava.
Além da regressão, há outro mecanismo com o qual os seres humanos respondem à
pressão. Trata-se de um mecanismo de defesa. Robert J. Lifton, que estudou os sobreviventes de
Hiroshima e de outros desastres, chamou-lhe “dormência psíquica”. Numa situação em que os
nossos sentimentos emocionais são esmagadoramente dolorosos ou desagradáveis, temos a
capacidade de nos anestesiarmos. É uma coisa relativamente simples. A visão de um só corpo
desmantelado e sangrento horroriza-nos. Mas se virmos corpos desses à nossa volta todos os
dias, dia após dia, o horrível torna-se normal e perdemos a sensação de horror. Pura e
simplesmente, desligamos. A nossa capacidade para o horror atrofia. Não conseguimos mais ver
o sangue, ou cheirar o fedor ou sentir a agonia.
Inconscientemente ficamos anestesiados. Esta capacidade de auto-anestesia emocional
tem obviamente as suas vantagens. Sem dúvida, a evolução foi-nos munindo desta característica
que aumenta a nossa capacidade de sobrevivência. Permite-nos continuar a funcionar em
situações tão drásticas que sucumbiríamos se preservássemos a nossa sensibilidade normal. O
problema, no entanto, é que este mecanismo de auto-anestesia não parece ser muito específico.
Se por vivermos no meio do lixo a nossa sensibilidade ao que é feio diminui, é provável que nós
próprios comecemos a espalhar detritos e lixo à nossa volta. Insensíveis ao nosso próprio
sofrimento, tornamo-nos insensíveis ao sofrimento dos outros. Tratados indignadamente,
perdemos não só o sentido da nossa própria dignidade como também o sentido da dignidade dos
outros. Quando já não nos incomoda ver corpos mutilados, deixa de nos incomodar mutilá-los
nós. É de facto difícil fechar selectivamente os olhos a um certo tipo de brutalidade sem os
fechar a toda a brutalidade. Como podemos tornar-nos insensíveis à brutalidade senão tornando-nos nós brutos?
Creio que então podemos assumir que, depois de um mês no campo com a Força de
Intervenção Barker – um mês de má comida, de pouco sono, de ver camaradas mortos ou
aleijados – o soldado comum estaria psicologicamente mais imaturo, primitivo e bruto do que
poderia estar numa época e lugar de menos pressão.
E se normalmente regredimos em face da pressão, não poderemos dizer que os seres
humanos têm mais tendência a ser maus em tempos de pressão do que em tempos de bem-estar?
Eu creio que sim. Perguntamos como é que um grupo de cinquenta ou quinhentos indivíduos –
dos quais poderíamos supor que apenas uma pequena minoria fosse má – pode ter cometido
uma tamanha maldade como MyLai. Uma das respostas é que, devido à contínua pressão a que
estavam sujeitos, os indivíduos da Força de Intervenção Barker eram mais imaturos e portanto
83
piores do que seria de esperar numa situação normal. Em consequência da pressão, a
distribuição normal do Bem e do Mal pendeu na direcção do Mal. No entanto, como veremos,
este é apenas um dos factores que contribuiu para a maldade em MyLai.
Tendo considerado a relação entre a maldade e a pressão, será adequado referir a relação
entre a bondade e a pressão. Aquele que se comporta com dignidade em tempos fáceis – por
assim dizer, um amigo nos tempos bons – pode não ser assim tão digno quando as coisas correm
mal. A pressão é um teste à bondade. Os verdadeiramente bons são aqueles que em tempos de
pressão não abandonam a sua integridade, nem a sua maturidade e sensibilidade. A dignidade
pode ser definida como a capacidade de não regredir em face da degradação, de não se tornar
cego perante a dor, de tolerar a agonia e permanecer intacto. Tal como disse atrás, “uma medida
– e talvez a melhor medida – da grandeza de uma pessoa, é a sua capacidade para o
sofrimento”.3
Dinâmica de grupo: dependência e narcisismo
Os indivíduos não regridem apenas em alturas de pressão, também o fazem em situações
de grupo. Um dos aspectos desta regressão é o fenómeno de dependência do líder. É, de facto,
admirável. Reúna qualquer pequeno grupo de estranhos – cerca de uma dúzia –, e quase sempre
a primeira coisa que acontece é que um ou dois deles rapidamente assumem o papel de líder do
grupo. Não acontece devido a um processo racional de eleição consciente. Acontece
naturalmente – espontânea e inconscientemente. Porque é que acontece tão fácil e rapidamente?
Uma razão, claro, é que existem indivíduos mais capazes de liderar os outros ou que desejam
liderar mais do que os outros. Mas a razão mais básica é outra: é que a maioria das pessoas
preferem ser seguidores. Mais do que qualquer outra coisa, é provavelmente uma questão de
preguiça. É simplesmente mais fácil seguir e ser um seguidor em vez de um líder. Não se torna
necessário agonizar sobre decisões complexas, planear em relação ao futuro, tomar iniciativas,
arriscar a impopularidade ou ter muita coragem.
O problema é que o papel de um seguidor é um papel de criança. O indivíduo adulto é
mestre do seu próprio navio, director do seu destino. Mas quando assume o papel de seguidor,
delega no líder este poder: a sua autoridade sobre si mesmo e a sua maturidade como tomador
de decisões. Torna-se psicologicamente dependente do líder, tal como uma criança é dependente
dos pais. Desta forma, há uma forte tendência para o indivíduo comum regredir emocionalmente
assim que se torna membro de um grupo.
O objectivo do Primeiro Pelotão da Companhia Charlie da Força de Intervenção Barker
não era o de criar líderes, mas o de matar vietcongues. Na realidade, para atingirem os seus
3
The Road Less Traveled (Simon & Schuster, 1978), pág.76 [O Caminho Menos Percorrido (Sinais de Fogo, 1999),
pág. 80].
84
objectivos, as Forças Armadas desenvolveram e fomentaram um estilo de liderança de grupo
que é essencialmente oposto ao de uma terapia de grupo. É uma velha máxima que os soldados
não são feitos para pensar. Os líderes não são eleitos a partir de dentro do grupo mas nomeados
a partir de cima e transformados em símbolos de autoridade. A disciplina militar por excelência
é a obediência. A dependência do soldado em relação ao seu líder não é só encorajada, é
obrigatória.4 Dada a natureza da sua missão, as Forças Armadas fomentam de forma intencional
e provavelmente realista a dependência regressiva que ocorre naturalmente nos indivíduos
dentro dos seus grupos.
Em situações como a de MyLai, o soldado individual é uma situação praticamente
impossível. Por um lado, lembra-se vagamente de ter ouvido numa aula que não precisa de
renunciar à sua consciência e deve ter uma independência de julgamento adulta – até um dever –
de recusar obedecer a uma ordem ilegal. Por outro lado, a organização militar e a sua dinâmica
de grupo fazem todos os possíveis para tornar tão doloroso, difícil e anti-natural quanto possível
que o soldado exerça independência de julgamento ou desobedeça. Não é claro que as ordens da
Companhia Charlie tenham sido “matar tudo o que se mexa”, ou “dizimar a aldeia”. Mas se
foram, será de admirar que as tropas tenham seguido essas ordens dos seus líderes?
Esperaríamos, pelo contrário, que se tivessem amotinado em massa?
Se o motim em massa parece um tanto forçado, não poderíamos pelo menos prever um
número reduzido de indivíduos que tivesse suficiente coragem para se revoltar contra o seu
líder? Não necessariamente. Já fiz referência ao facto de que os padrões de comportamento de
grupo são notoriamente semelhantes aos do indivíduo. Isto porque o grupo é um organismo.
Tende a funcionar como uma entidade única. Um grupo de indivíduos comporta-se como uma
unidade devido ao que é conhecido como coesão de grupo. Existem forças poderosas em jogo
dentro de um grupo por forma a manter os seus membros individuais juntos e em linha. Quando
estas forças de coesão falham, o grupo começa a desintegrar-se e deixa de ser um grupo.
Provavelmente, a mais poderosa destas forças de coesão é o narcisismo. Na sua forma
mais simples e benigna, manifesta-se em orgulho do grupo. Quanto mais orgulhosos os
membros do grupo se sentem do grupo, mais este se sente orgulhoso de si mesmo. Mais uma
vez, as Forças Armadas fazem deliberadamente mais do que a maioria das outras organizações
para fomentar o orgulho dentro dos seus grupos. Fazem-no através de uma série de meios
diferentes, tais como desenvolver insígnias de grupo – bandeiras por unidades, divisas nos
4
Até os civis cometem actos maus com uma facilidade espantosa, quando sujeitos à obediência. Como David Myers
descreveu no seu excelente artigo “A Psychology of Evil” (The Other Side [Abril 1982], pág. 29): “O melhor
exemplo são as experiências de obediência de Stanley Milgram. Confrontados com um comandante imponente e
próximo, 75 por cento dos seus sujeitos adultos obedeceram cegamente às instruções. Sob ordens, davam choques
eléctricos aparentemente traumatizantes a uma vítima inocente que gritava na sala ao lado. Tratavam-se de pessoas
normais – uma mistura de colarinhos brancos, colarinhos azuis e profissionais. Desprezavam esta tarefa. Mas a
obediência sobrepunha-se ao próprio sentido moral.”
85
ombros e até destaques especiais de uniformes, como é o caso dos Boinas Verdes5 – e incentivar
a competição entre grupos, desde os desportos de intramuros à comparação de pontos por
unidades.
Uma forma de narcisismo de grupo menos benigna mas praticamente universal é o que se
pode chamar “criação do inimigo”, ou ódio pelos “fora-do-grupo”. Podemos observar isto
naturalmente nas crianças, à medida que aprendem a formar grupos.6 Os grupos tornam-se
exclusivos. Aqueles que não pertencem ao grupo (ao clube ou ao grupo exclusivo) são
desprezados como sendo inferiores, ou maus, ou ambos. Se um grupo não possuir já um
inimigo, muito provavelmente há-de criar um muito rapidamente. A Força de Intervenção
Barker, é evidente, tinha um inimigo predeterminado: os vietcongues. Mas estes eram na sua
maioria naturais do país do povo sul-vietnamita, do qual eram frequentemente impossíveis de
distinguir. Inevitavelmente, o inimigo específico generalizou-se a toda a população vietnamita,
pelo que o soldado americano comum não odiava apenas os vietcongues, mas sim os Gooks7 em
geral.
É praticamente do conhecimento geral que a melhor forma de cimentar a coesão de grupo
é fomentar o ódio do grupo em relação a um inimigo exterior. As deficiências dentro do grupo
podem ser facilmente ignoradas em virtude de se centrar a atenção nas deficiências ou ofensas
dos fora-do-grupo. Assim, os alemães de Hitler puderam ignorar os problemas domésticos
tomando os judeus como bodes expiatórios. E quando as tropas americanas não conseguiam
combater eficazmente na Nova Guiné durante a Segunda Guerra Mundial, o Comando
incentivava o seu espírito de classe ao mostrar filmes de japoneses a cometerem atrocidades.
Mas esta utilização do narcisismo – quer seja deliberada, quer inconsciente – é potencialmente
má. Examinámos extensivamente os modos em que os indivíduos maus fogem à auto-análise e à
culpa, responsabilizando e tentando destruir o que quer ou quem quer que aponte as suas
próprias deficiências. Agora vemos que o mesmo comportamento narcisista maligno ocorre
naturalmente nos grupos.
Por tudo isto deve ser óbvio que o grupo que fracassa é o que provavelmente terá um
comportamento mais maldoso. O fracasso fere o nosso orgulho e é o animal ferido que se torna
perverso. Num organismo saudável, o fracasso é um estímulo para a auto-análise e a crítica.
Mas como o indivíduo mau não tolera a autocrítica, é em momentos de fracasso que ele ou ela
invariavelmente atacam de uma maneira ou de outra. E o mesmo se passa com os grupos. O
fracasso do grupo e o estímulo à sua autocrítica ferem o orgulho e a coesão do grupo. Por isso,
5
“The Green Berets“, Força Especial do Exército dos Estados Unidos. (N. da E.)
Os psicólogos verificam que, quando grupos semelhantes de rapazes de doze anos, em acampamentos e sem
liderança adulta, são encorajados a competir uns com os outros, a competição benigna transforma-se rapidamente
numa violenta “guerra à escala dos doze anos” (Myers, “A Psychology of Evil”, pág. 29).
7
Termo na gíria americana que designa os vietnamitas em geral. (N. da T.)
6
86
em todas as épocas e lugares, os líderes reforçam habitualmente a coesão dos grupos nas alturas
de fracasso atiçando o ódio do grupo pelos estrangeiros ou pelo “inimigo”.
Voltando ao assunto específico da nossa análise, recordemos que na época de MyLai a
operação da Força de Intervenção Barker tinha sido um fracasso. Depois de mais de um mês no
terreno, o inimigo ainda não tinha sido confrontado. Ainda assim, os americanos tinham sofrido
baixas de uma forma lenta e regular. A contagem de corpos do inimigo, no entanto, era zero. Ao
fracassar a sua missão – que antes do mais consistia em matar – a liderança do grupo estava
ainda mais sedenta por sangue. Dadas as circunstâncias, a sede tornara-se indiscriminada e as
tropas satisfá-la-iam sem pensar.
O grupo especializado: a força de intervenção Barker
Já mencionei o potencial para a maldade que vem da especialização. Falei de como o
indivíduo especializado está numa posição de passar a responsabilidade moral a outra roda
dentada especializada da máquina, ou à própria máquina. Mesmo quando falei da regressão que
ocorre nos indivíduos quando se tornam seguidores num grupo, estava a falar de especialização.
O seguidor não é uma pessoa completa. Quem aceita o papel de não pensar nem liderar falseia a
sua capacidade de liderar e de pensar. E como pensar e liderar já não é a sua especialidade ou
dever, normalmente perde em consciência durante a troca.
Passando da especialização do indivíduo à especialização de grupo, observamos o mesmo
tipo de forças perigosas em acção. A Força de Intervenção Barker era um grupo especializado.
Não tinha outros objectivos – como jogar futebol ou construir barragens ou mesmo alimentar-se
a si próprio. Existia apenas com um objectivo altamente especializado: procurar e destruir os
vietcongues na província de Quang Ngai em 1968.
Quang Ngai. No entanto, o que o leitor pode não perceber é a grande componente de
selecção e auto-selecção envolvidas na criação desse grupo. Embora nessa altura os cidadãos
fossem recrutados para o serviço militar, a Força de Intervenção Barker não era propriamente
uma amostra aleatória da população americana. Os membros mais pacifistas da sociedade
excluíram-se a si próprios indo para o Canadá ou declarando-se objectores de consciência. Os
membros menos pacifistas que desejavam evitar o combate preferiam normalmente alistar-se
nas Forças Armadas em vez de serem recrutados. Ao alistarem-se, podiam optar pela Força
Aérea ou pela Marinha, ou por outras especialidades não-combatentes do Exército, que
provavelmente não os enviariam para o Vietname. A Força de Intervenção Barker era
constituída quer por pessoal militar de carreira que optara deliberadamente pelas armas de
combate, quer por “rufias” que haviam feito o mesmo (ou que, por qualquer outra razão, não
conseguiram escapar ao facilmente evitável posto de soldado de infantaria).
87
Até ao final de 1968, bastante depois de MyLai, a guerra do Vietname foi travada, do
lado americano, quase inteiramente por voluntários. Para muitos soldados de carreira, uma
comissão de serviço no Vietname era muito desejada e procurada. Significava medalhas,
excitação, mais dinheiro e promoção garantida. Existia um sistema único de voluntariado para
jovens alistados. Quem se apresentasse como voluntário para o Vietname podia ter a certeza de
três coisas: uma mudança de lugar, uma licença imediata e um bónus. Estes incentivos eram
suficientes para garantir um fornecimento adequado de “carne para canhão” voluntária até ao
posterior aumento do envolvimento das tropas militares americanas na guerra a seguir a MyLai.
O caso de um indivíduo prototípico pode ilustrar alguns aspectos do relacionamento entre
a sociedade americana em 1968, as suas Forças Armadas e o subgrupo militar que combatia no
Vietname. Chamemos a este indivíduo prototípico “Larry” e fixemos o seu local de origem em
Iowa. Sendo o mais velho de seis irmãos, filhos de um pai agricultor por conta de outrem,
alcoólico, e da sua extenuada mulher, Larry era sem dúvida um tormento desde que atingira a
puberdade. Desistindo do liceu aos dezasseis anos, em 1965, sustentou-se parcamente com
empregos esporádicos que não chegavam para pagar o seguro do seu automóvel, a gasolina e
um estilo de vida que incluía muita bebida. Em Novembro de 1966, foi apanhado a tentar roubar
uma estação de gasolina local. A comunidade adorou ver-se livre de Larry, mas ao mesmo
tempo não queria aumentar a população prisional nem os impostos. Afinal de contas, o dinheiro
tinha sido recuperado e não tinha ocorrido nenhum mal maior. E assim o juiz do condado disse
a Larry que tinha duas opções: ou se alistava no Exército ou ia para a prisão.
A partir daí foi tudo muito simples. O pequeno gabinete do serviço de recrutamento do
Exército funcionava no mesmo prédio que o do juiz. Escusado será dizer que existiam vagas na
infantaria. Larry alistou-se para prestar serviço na Alemanha, pois ouvira dizer que as raparigas
eram fáceis, e no espaço de uma semana estava a caminho de Fort Leonard Wood, no Missouri,
para o treino básico. O treino de infantaria básica e mais tarde avançada (AIT) mantiveram-no
tão ocupado que nem teve tempo para arranjar sarilhos. Mas tudo mudou quando chegou à
Alemanha. As raparigas eram tão boas como deviam ser e a cerveja era mesmo óptima. Mas os
preços eram altos. Pediu dinheiro emprestado e teve dificuldades em pagá-lo. Vendeu algum
haxixe para um dealer mais importante, o que ajudou, mas depois o seu fornecedor resolveu
mudar-se. As dívidas aumentaram. Larry, agora quase com dezanove anos, podia ver como iam
acabar as coisas. Ou os seus credores lhe davam uma sova ou denunciavam-no no negócio do
haxixe. Mas tinha uma saída. Alistou-se secretamente no Vietname e em três dias estava num
avião de regresso aos Estados Unidos, deixando para trás os seus problemas. Sentiu-se bem.
Tinha recebido o seu bónus para estoirar numa licença de dez dias de regresso ao Iowa, revendo
os velhos amigos e impressionando as raparigas. Quanto ao futuro depois disso, não estava
minimamente preocupado. Ouvira dizer que as mulheres no Nam eram ainda melhores do que
88
as da Alemanha e, além do mais, seria excitante ver a verdadeira acção, para variar. Dar uns
tiros nalguns Gooks até podia ser divertido.
Infelizmente, apesar da óbvia contribuição que seria para a nossa compreensão, nunca foi
feita uma análise sociológica à Força de Intervenção Barker. Consequentemente, não posso
dizer nada de científico. Não quero sugerir que o grupo inteiro fosse constituído de pequenos
criminosos como “Larry”. Mas estou convencido de que a Companhia Charlie e a Força de
Intervenção Barker não eram representativas do perfil transversal médio do povo americano.
Todos os seus elementos chegaram a MyLai em Março de 1968, por razões de história pessoal e
auto-selecção, através de um sistema de selecção também estabelecido pelas Forças Armadas
americanas e pela sociedade americana como um todo. Não era um grupo de homens formado
ao acaso. Era altamente especializado, não só na sua missão mas também na sua composição
única.
A composição humana especializada da Força de Intervenção Barker (e de inúmeros
outros grupos humanos) levanta três tópicos significativos. Primeiro, há a questão da
flexibilidade que se pode esperar de seres humanos especializados. A Companhia Charlie era
um grupo especializado de assassinos. Os indivíduos que a compunham tinham, por uma razão
ou por outra, assumido o papel de assassinos, e tinham também sido deliberadamente seduzidos
pelo sistema para esse papel. Além disso, treinámo-los para esse papel e entregámos-lhes armas
para o desempenharem. Será assim tão surpreendente que, dada uma série de outras
circunstâncias favoráveis, tenham assassinado indiscriminadamente? Ou que aparentemente não
tenham sentido uma enorme culpa em relação àquilo que os levámos a fazer? Será realista
encorajar e manipular seres humanos para formarem grupos especializados e simultaneamente
esperar que eles, sem qualquer treino significativo, mantenham uma amplitude de visão muito
para além da sua especialidade?
Um segundo tópico é o recurso subtil mas peremptório ao bode expiatório. O prototípico
Larry era um ladrão e aldrabão insignificante, um tipo desagradável pelo qual não é fácil sentir
simpatia. Mas também era um bode expiatório. E quando os membros da sua comunidade o
empurraram para o Exército, não estavam a tentar lidar com o problema social e humano que ele
personificava, mas simplesmente a livrar-se do problema. Purificaram a sua própria
comunidade, despejando o lixo nas Forças Armadas e sacrificando Larry ao Deus da Guerra. E
também se serviram das Forças Armadas como bode expiatório. Porque uma das funções
subliminares das Forças Armadas é, sem dúvida, servir como depósito de alguns dos mais
indesejáveis jovens americanos – uma espécie de reformatório nacional. Mas o facto de este
sistema funcionar sem percalços, e nem sempre com maus resultados, não nos devia cegar para
a natureza expiatória do seu processo.
89
O Exército fez de Larry um bode expiatório ainda maior, ao seduzi-lo para o Vietname.
Por um lado, isto tem toda a lógica, do ponto de vista social. Porque é que não hão-de ser os
indivíduos como Larry, desordeiros e desajustados, os candidatos mais apropriados para servir
de carne para canhão? Se alguém tem de ser morto, porque não aqueles de valor social
aparentemente baixo? Mas a decisão de matar não foi de Larry. Nem do Tenente Calley. Nem
do seu oficial superior, o Capitão Medina. Nem do Tenente-Coronel Barker. Foi uma decisão
dos Estados Unidos da América. Por alguma razão, os Estados Unidos decidiram que haveria
matança e, ao matarem, estes homens estavam a obedecer à vontade dos Estados Unidos. Podem
ter parecido mais sujos e menos dignos do que o americano comum, mas o facto é que nós,
americanos, enquanto sociedade, os escolhemos e empregámos deliberadamente para levarem a
cabo a nossa matança – o nosso trabalho sujo – por nós. Nesse sentido, foram todos nossos
bodes expiatórios.
90
Quem luta perde sempre
(conto indiano)
Um chacal recém-casado vivia perto da margem de um rio. Um dia, a esposa pediu-lhe
uma refeição de peixe. O chacal prometeu trazer-lha, embora não soubesse nadar. Aproximou-se do rio com todas as cautelas e viu duas lontras a lutarem com um peixe enorme que
tinham apanhado. Depois de matarem o peixe, começaram a lutar para dividir o peixe entre
ambas.
— Eu vi-o primeiro, por isso a parte maior pertence-me! — disse uma delas.
— Mas ias-te afogando a pescá-lo e eu salvei-te — contrapôs a outra.
Continuaram a lutar até que o chacal se aproximou delas e se ofereceu para ajudar a
regular a disputa. As lontras concordaram em acatar a decisão que ele tomasse. O animal
cortou o peixe em três pedaços. A uma das lontras deu a cabeça e à outra deu a cauda.
— A parte do meio é para o juiz — declarou.
Afastou-se dali todo contente e disse para consigo:
— Quem luta perde sempre.
Margaret Read MacDonald
Peace Tales
Arkansas, August House Publishers, Inc., 2005
91
Duas cabras numa ponte
(conto russo)
Uma ponte estreita ligava duas montanhas. Em cada uma das montanhas vivia uma
cabra. Dias havia em que a cabra da montanha ocidental atravessava a ponte para ir pastar na
montanha oriental. Dias havia em que a cabra da montanha oriental atravessava a ponte para ir
pastar na montanha ocidental. Mas, um dia, as cabras começaram a atravessar a ponte ao
mesmo tempo.
Encontraram-se no meio da ponte. Nenhuma queria ceder passagem à outra.
— Sai da frente! — gritou a Cabra Ocidental. — Estou a atravessar a ponte.
— Sai tu da frente! — berrou a Cabra Oriental. — Quem está a atravessar sou eu!
Como nenhuma delas queria recuar e nenhuma delas podia avançar, ali ficaram,
enfurecidas, durante algum tempo. Finalmente, entrelaçaram os chifres e começaram a
empurrar. Eram tão semelhantes em força que apenas conseguiram empurrar-se uma à outra da
ponte abaixo. Molhadas e furiosas, saíram do rio e subiram a encosta, a caminho de casa, cada
uma murmurando para si: “Vejam só o que a teimosia dela provocou.”
Margaret Read MacDonald
Peace Tales
Arkansas, August House Publishers, Inc., 2005
93
Tentando alcançar a lua
(conto tibetano)
Uma noite, o Rei dos Macacos reparou numa gloriosa lua dourada que repousava no
fundo de uma lagoa. Não se apercebendo de que se tratava apenas de um reflexo, o Rei
chamou os seus súbditos para que lhe fossem buscar aquele tesouro não reclamado.
— O nosso macaco mais forte agarra-se a esta árvore — ordenou o Rei. — E o nosso
segundo macaco mais forte agarra-se à mão dele, tenta alcançar a água e pega na lua dourada.
Assim fizeram. Mas o segundo macaco não conseguia alcançar a lua.
— Quem é o nosso terceiro macaco mais forte? Agarra-te à mão do teu irmão e vai
buscar a lua.
Mas a lua continuava fora do alcance deles.
— Tragam o quarto macaco mais forte. Que desça até junto da lagoa e tente a sua
sorte.
Os macacos formavam agora uma cadeia, cada um pendurado no braço do outro. O
quarto macaco usou os braços deles como escada e ficou pendurado na mão do terceiro
macaco… mas a lua continuava fora do seu alcance. E assim continuaram… cinco… seis…
sete… oito… macaco após macaco, até que o último conseguia tocar já na superfície da água.
— Estamos quase a conseguir! — gritaram os macacos.
— Deixem-me ser o primeiro a agarrá-la! — gritou o Rei, que se lançou cadeia abaixo.
Mas o peso de toda esta loucura tinha-se tornado demasiado para as forças do macaco
mais forte, que continuava agarrado ao topo da árvore. Quando o Rei ia a tocar a água para
pegar na lua, o macaco mais forte largou o tronco. Um a um, caíram todos na lagoa e
afogaram-se, juntamente com o Rei.
Aquele que segue um líder insensato é ele próprio um tolo.
Margaret Read MacDonald
Peace Tales
Arkansas, August House Publishers, Inc., 2005
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Um homem sem cabeça
(conto argelino)
Esta é a aventura do famoso Jouha. Na Argélia chamam-lhe Jha, ou então, Ben Sakrane.
Mais a leste, conhecem-no como Nasredin Hodja. Na realidade, trata-se de Tyl Eulenspiegel
ou de Jean le Sot; o louco que vende a sua sabedoria, aquele que zurra como um burro para
ser ouvido, e que às vezes é dono de uma esperteza imbatível.
Um dia, Jha encontrou alguns amigos prontos para combater. Tinham escudos, lanças,
arcos e aljavas cheias de setas.
— Onde vão nesses preparos? — perguntou-lhes.
— Não sabes que somos soldados profissionais? Vamos tomar parte numa batalha, que
promete ser dura!
— Óptimo, eis uma oportunidade para ver o que acontece nessas coisas de que ouvi
falar mas que nunca vi com os meus próprios olhos. Deixem-me ir convosco, só desta vez!
— Está bem! És bem-vindo!
E lá foi ele com o pelotão que se ia juntar ao exército no campo de batalha.
A primeira seta acertou-lhe em cheio na testa!
Depressa! Um cirurgião! O médico chegou, examinou o ferido, meneou a cabeça e
declarou:
— A ferida é profunda. Vai ser fácil remover a seta. Mas, se tiver a mais ínfima parte
de cérebro agarrada, está perdido!
O ferido agarrou na mão do médico e beijou-a, exprimindo a sua “profunda gratidão
para com o Mestre”, e declarou:
— Doutor, pode remover a seta sem medo; não vai encontrar a mais ínfima parte de
cérebro nela.
— Esteja calado! — disse o médico. — Deixe os especialistas tratarem de si! Como
sabe que a seta não atingiu o seu cérebro?
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— Sei-o bem demais — disse Jha. — Se eu tivesse a mais pequena partícula de cérebro,
nunca teria vindo com os meus amigos.
Margaret Read MacDonald
Peace Tales
Arkansas, August House Publishers, Inc., 2005
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Força
(conto da África Ocidental)
Os animais decidiram fazer um concurso para ver qual deles era o mais forte. A ideia do
concurso foi do Elefante.
— Encontramo-nos todos na quarta-feira. Veremos quem tem FORÇA.
O primeiro a chegar foi o Chimpanzé, que chegou aos saltos.
— Força! Eu tenho força. Vejam só estes BRAÇOS! Esperem só até verem a minha
força!
O Chimpanzé sentou-se. Chegou o Veado.
— Força! Olhem para estas PERNAS! Tenho tanta força!
O Veado sentou-se. A seguir veio o Leopardo. Mostrava as garras e rugia.
— Força! Olhem para estas GARRAS! Eu tenho força!
O Leopardo sentou-se. Depois veio o Bode, que baixou os seus chifres fortes.
— Força! Vejam estes CHIFRES! Isto é força.
O Bode sentou-se. Chegou o Elefante. Caminhava muito devagar.
— El…e…fante…significa força.
O Elefante sentou-se. Esperaram e voltaram a esperar. Faltava mais um animal.
Finalmente o Homem chegou, a correr.
— Força! Força!
O Homem exibia os seus músculos.
— Eis-me aqui! Podemos começar!
O Homem tinha trazido a sua espingarda para a floresta e tinha-a escondido nos
arbustos. Era por isso que estava atrasado. O Elefante encarregou-se de dar início ao
concurso.
99
— Agora que o Homem chegou, podemos começar. Chimpanzé, mostra-nos a tua força!
O Chimpanzé deu um pulo. Correu para uma pequena árvore e trepou-a. Dobrou-a e
deu-lhe um nó. Desceu da árvore e disse:
— Então? Isto não é força?
Os animais exultaram.
— Força! Força! Força! Força! Isso é que é força!
Depois acalmaram.
— Bem…Chimpanzé. Senta-te. O próximo!
O Veado pôs-se de pé com um salto. Correu três quilómetros em direcção à floresta.
Correu outros três quilómetros de volta. Nem sequer estava ofegante. Vangloriou-se:
— Vejam só! Se isto não é força…
Os animais concordaram.
— Força! Força! Força! Força! Isso é que é força!
— Bem…Veado. Senta-te. O próximo!
O Leopardo pôs-se de pé e esticou as garras enormes. Começou a esgravatar a terra.
Scrung…scrung…scrung…scrung… Como o pó voava! Os animais saltaram para trás. Estavam
assustados. O Leopardo perguntou:
— Aaaah! Isto é força ou não é?
— Força! Força! Força! Força! Isso é que é força!
— Bem… Leopardo. Senta-te. O próximo!
O Bode era o seguinte. Baixou os chifres enormes. Havia por ali um campo de canas e o
Bode começou a escavar o campo. Shuuu…shuuu…shuuu…shuuu… Os chifres fizeram uma
estrada através do campo. O Bode voltou-se. E escavou outra estrada até ao lugar onde
estavam os animais. Depois perguntou:
— Não é força, isto?
Os animais ficaram impressionados.
— Força! Força! Força! Força! Isso é que é força!
100
— Bem… Bode. Senta-te. A seguir?
A seguir vinha o Elefante. Havia muitas árvores em redor que cresciam bem juntas. O
Elefante encostou o seu ombro enorme de encontro às árvores. Eeennhh…eeennhh…
eeennhh…kangplong! As árvores caíram todas. O Elefante exclamou:
— Que tal? Isto não é força?
Os animais ficaram impressionados.
— Força! Força! Força! Força! Isso é que é força!
— Bem… Elefante. Senta-te. O próximo!
Era a vez do Homem. O Homem correu para o meio do círculo. Começou a rodopiar.
Deu saltos mortais. Fez a roda. Fez o pino. Volteou em redor deles sem cessar. Depois parou
e perguntou:
— Força! Força! Isto não é força?
Os animais entreolharam-se.
— Bem…foi excitante.
— Mas era força, aquilo?
— Nem por isso…
— Só sabes fazer isso?
O Homem sentiu-se insultado.
— Muito bem, então vejam isto!
O Homem subiu a uma palmeira. Tão depressa! Tão depressa! Atirou cocos da palmeira.
Desceu da árvore. Perguntou de novo:
— Força! Força! Isto não é força?
Os animais olharam para ele.
— Chamarias àquilo força?
— Só subiu a uma árvore.
— Isso não é bem força.
— Há mais alguma coisa…?
101
O Homem estava zangado.
— Força? Eu mostro-vos o que é FORÇA!
O Homem correu para o arbusto. Agarrou na arma. Correu de novo para junto deles. O
Homem apontou a arma ao Elefante. Ting… Puxou o gatilho. Kangalang! O Elefante tombou.
Estava morto. Morto. O Homem dava pulos e gabava-se:
— Força! Força! Isto não é FORÇA?
O Homem olhou em redor. Os animais tinham ido embora. Tinham fugido para a
floresta.
— Força!...
Não havia ninguém para o ouvir gabar-se. O Homem estava sozinho. Na floresta, os
animais juntaram-se a um canto para trocar impressões.
— Viste aquilo?
— Era força aquilo?
— Chamarias àquilo força?
— Não. Aquilo era MORTE.
— Aquilo era MORTE.
A partir desse dia, os animais não voltaram a caminhar com o Homem. Quando o
Homem entra na floresta, tem de caminhar sozinho. Os animais ainda falam do Homem…
Da criatura Homem… O Homem é aquele que não conhece a diferença entre força e morte.
Margaret Read MacDonald
Peace Tales
Arkansas, August House Publishers, Inc., 2005
102
A guerra entre as galinholas e as baleias
(conto das Ilhas Marshall)
Todas as manhãs, a pequena galinhola ia à praia tomar o pequeno-almoço. Corria para a
água com as suas perninhas altas e slup… slup… engolia um pequeno vairão. Depois corria de
novo para a praia e esperava. Voltava de novo à água e slup… slup… engolia um outro pitéu.
A baleia, que vivia nas águas profundas da baía, viu a galinhola a correr para dentro e
para fora de água. Ergueu bem a cabeça enorme e chamou-a:
— Ei, passarinho! Não te quero na minha água! O mar pertence às baleias!
A galinhola decidiu ignorá-la.
— O mar também pertence às galinholas. E há muito mais galinholas do que baleias.
Vê lá se me deixas em paz!
A baleia encolerizou-se e começou a esguichar. A galinhola tinha-a enfurecido.
— Mais galinholas? Há muito mais baleias no oceano do que galinholas em terra!
— Não há, não! — replicou a pequena galinhola. Há mais galinholas!
A baleia estava furiosa.
— Vou chamar as minhas irmãs. Vais ver!
A baleia veio à superfície e esguichou buuturu… buuturu. Depois voltou a mergulhar
bem fundo na baía. Virou-se para leste e chamou:
— Baleias do leste. Baleias do leste. Venham…venham para esta ilha!
Veio de novo à superfície.
Esguichou buuturu… buuturu… e mergulhou em direcção ao oeste.
— Baleias do oeste. Baleias do oeste. Venham…venham para esta ilha!
De novo veio à superfície.
Esguichou buuturu… buuturu… e mergulhou em direcção ao norte.
103
— Baleias do norte. Baleias do norte. Venham…venham para esta ilha!
Voltou de novo a emergir.
Esguichou buuturu… buuturu… e mergulhou em direcção ao sul.
— Baleias do sul. Baleias do sul. Venham…venham para esta ilha!
A leste, a oeste, a norte e a sul, as suas irmãs baleias ouviram-na. Começaram a nadar
em direcção à ilha. Quando já tinham chegado todas, a baía ficou tão cheia de baleias que
podíamos caminhar nos seus dorsos! Estavam todas apinhadas naquela baía.
A galinhola ficou alarmada.
— Tens mesmo muitas irmãs! Mas espera, que eu vou chamar as minhas irmãs
galinholas!
A pequena galinhola começou a saltar para cima e para baixo e a emitir o seu grito de
galinhola:
— Kirriri… kirriri… kirriri… kirriri… Galinholas! Galinholas! Leste! Leste! Leste!
Leste! Venham depressa! Venham depressa! Para esta ilha!
— Galinholas! Galinholas! Oeste! Oeste! Oeste! Oeste! Venham depressa! Venham
depressa! Para esta ilha!
— Galinholas! Galinholas! Norte! Norte! Norte! Norte! Venham depressa! Venham
depressa! Para esta ilha!
— Galinholas! Galinholas! Sul! Sul! Sul! Sul! Venham depressa! Venham depressa!
Para esta ilha!
E as galinholas vieram a voar! Do leste, do oeste, do norte, do sul. Quando pousaram,
cobriram a praia inteira! Cobriram as árvores! Havia tantos pássaros! Havia mais pássaros ou
mais baleias? Havia mais baleias ou mais pássaros? Era impossível dizer.
As baleias falavam entre elas.
— Temos de chamar os nossos primos. Nessa altura, haverá mais baleias do que
pássaros.
Então, as baleias vieram todas à tona da água e chamaram:
— Buuturu… buuturu…
104
Mergulharam fundo, bem fundo.
Chamaram a leste.
— Primos do leste! Primos do leste! Venham…venham para esta ilha!
Voltaram à superfície e esguicharam.
— Buuturu… buuturu…
Mergulharam.
— Primos do oeste! Primos do oeste! Venham…venham para esta ilha!
Voltaram à superfície e esguicharam.
— Buuturu… buuturu…
Mergulharam.
— Primos do norte! Primos do norte! Venham…venham para esta ilha!
Voltaram à superfície e esguicharam. Mergulharam uma vez mais.
— Primos do sul! Primos do sul! Venham…venham para esta ilha!
Do leste e do oeste, do norte e do sul, os primos das baleias começaram a nadar em
direcção à ilha. Os golfinhos ouviram o chamamento e vieram. As orcas ouviram o
chamamento e vieram. Os lobos-marinhos ouviram o chamamento e vieram também. Até os
tubarões vieram.
Quando já tinham chegado todas os primos da baleia, os peixes eram tantos que
rodeavam completamente a ilha. Até onde a vista alcançava, havia criaturas marinhas a
esguichar e a mergulhar.
As galinholas ficaram assustadas.
— Há tantas criaturas do mar. Depressa! Temos de chamar todos os nossos primos!
As galinholas começaram aos pulos e a emitir o seu chamamento:
— Kirriri… kirriri… kirriri… kirriri…
— Primos das galinholas! Leste! Leste! Leste! Venham depressa! Venham depressa
para esta ilha!
— Primos das galinholas! Oeste! Oeste! Oeste! Venham depressa! Venham depressa
105
para esta ilha!
— Primos das galinholas! Norte! Norte! Norte! Venham depressa! Venham depressa
para esta ilha!
— Primos das galinholas! Sul! Sul! Sul! Venham depressa! Venham depressa para esta
ilha!
Do leste e do oeste, do norte e do sul, os primos das galinholas começaram a chegar. As
gaivotas ouviram o chamamento e vieram. As gaivinas ouviram o chamamento e vieram. Os
corvos-marinhos ouviram o chamamento e vieram também. Até as garças-reais vieram.
Depois de todas estas aves marinhas terem chegado, cobriram as praias e estenderam-se
até às montanhas. Não havia um pedaço de terra naquela ilha que não estivesse coberto por
pássaros!
Havia mais pássaros ou mais animais marinhos? Mais primos das baleias ou mais
primos das galinholas? Ninguém saberia dizer.
Então as baleias tiveram uma ideia.
— Se as baleias comessem a terra toda… os pássaros afogar-se-iam. Haveria então mais
baleias do que galinholas. Vamos a isso!
As baleias começaram a mastigar a terra. Scrunch… scrunch… scrunch… A praia
desaparecia gradualmente por entre as suas mandíbulas enormes. Então a galinhola teve uma
ideia.
— Se os pássaros bebessem toda a água do mar… as baleias morreriam! Então haveria
mais galinholas do que baleias. Vamos a isso!
Os pássaros voaram em direcção ao oceano. Cada um deles enfiou o bico na água e
começou a beber. Beberam… beberam… até ficarem com a boca cheia de água… Beberam…
beberam… até ficarem com as barrigas cheias de água. Como era mais fácil beber do que
mastigar, os pássaros acabaram a sua tarefa primeiro!
Olharam em volta. As baleias estavam a morrer por falta de água. Os peixes também
estavam a morrer por falta de água. Os caranguejos minúsculos… as estrelas-do-mar… todas
as criaturas marinhas estavam a morrer sob o sol escaldante.
De repente, os pássaros pensaram numa coisa.
106
— Os caranguejos minúsculos… todas estas criaturas do mar… tudo isto é o nosso
alimento. É o que nós comemos. Se elas morrerem, nós morremos também. Isto é uma má
ideia! Rápido! Cuspam a água! Cuspam fora o oceano!
Ptooooie… ptoooie… ptoooie… Os pássaros cuspiram fora o oceano todo.
As baleias começaram de novo a mover-se. Os peixes recomeçaram a nadar. Os
pequenos caranguejos e as estrelas-do-mar esticaram as suas perninhas e começaram a viver de
novo.
— Isto foi uma péssima ideia! — disseram as baleias. — O oceano é a nossa casa. A
praia faz parte do oceano. Estamos todos a destruir o nosso próprio lar. Depressa! Cuspam
fora a areia toda.
Glurk… glurk… glurk… As baleias cuspiram fora a areia toda.
— Esta guerra foi uma péssima ideia — disse a baleia. — Há mar que chegue para
todos partilharmos.
— Tens razão — concordou a galinhola. — Foi uma má ideia. Quase destruímos o
nosso lar!
Então, as baleias e os seus primos nadaram em direcção ao mar alto. Em direcção ao
leste, ao oeste, ao norte e ao sul. E as galinholas e os seus primos também voaram para longe.
Em direcção ao leste, ao oeste, ao norte e ao sul. E até hoje nunca ninguém descobriu se há
mais baleias ou mais galinholas. Se há mais galinholas ou mais baleias. Não que isso interesse,
realmente. No fundo, é uma razão demasiado insignificante para começar uma guerra…
Margaret Read MacDonald
Peace Tales
Arkansas, August House Publishers, Inc., 2005
107
O cão preto
(conto indiano)
Shakra, rei dos deuses, ergueu-se do seu trono dourado e observou a Terra com
atenção. Havia oceanos reluzentes e nuvens como pérolas, montanhas com cumes de neve e
continentes de muitas cores. Embora tudo fosse belo, Shakra sentiu uma certa apreensão.
Os seus sentidos luminosos expandiram-se pelos céus. Sentiu o calor da guerra. Ouviu
o balir dos vitelos, o ladrar dos cães, o grasnar dos corvos. Ouviu crianças a chorarem e vozes
a gritarem de raiva. Ouviu o choro dos esfomeados, dos sós, dos pobres. As lágrimas rolaram-lhe pela cara abaixo e caíram sobre a terra como aguaceiros de meteoros.
— É preciso fazer alguma coisa! — disse Shakra.
Metamorfoseou-se num guarda-florestal e levou consigo um grande arco em osso. A
seu lado caminhava um grande cão preto. O pelo do cão era emaranhado, os olhos brilhavam
como fogo incandescente, os dentes mais pareciam presas, e a boca e língua pendente eram da
cor do sangue.
Shakra e o cão deram um salto e mergulharam em direcção à Terra por entre as estrelas
brilhantes. Por fim, aterraram mesmo ao lado de uma cidade esplêndida.
— Quem és tu, forasteiro? — perguntou, admirado, um soldado, do alto das muralhas
da cidade.
— Sou estrangeiro nestas paragens e este — disse, apontando o animal com um gesto
— é o meu cão.
O cão preto abriu as mandíbulas. O soldado que estava de guarda às muralhas ficou
aterrado. Foi como se estivesse a olhar para um enorme caldeirão de fogo e de sangue. A
garganta do cão emanava fumo. As mandíbulas do cão abriram-se ainda mais e mais…
— Fechem os portões! — ordenou o soldado. — Fechem-nos imediatamente!
Mas Shakra e o cão conseguiram saltar os portões cerrados. Os habitantes da cidade
fugiram em todas as direcções, como se fossem marés a subir ao longo de uma praia. O cão
109
foi no seu encalço, juntando as pessoas como se fossem um rebanho de ovelhas. Homens,
mulheres e crianças gritavam, aterrorizados.
— Parem! — gritou Shakra. — Não se mexam!
As pessoas imobilizaram-se.
— O meu cão tem fome. O meu cão tem de ser alimentado.
O rei da cidade, a tremer de medo, ordenou:
— Rápido! Tragam comida para o cão! Imediatamente!
Em breve, carroças chegavam ao mercado carregadas de carne, pão, milho, frutos e
cereais. O cão engoliu tudo de uma só vez.
— O meu cão precisa de mais comida! — exclamou Shakra.
As carroças voltaram de novo, carregadas. E o cão voltou a devorar tudo de uma
assentada. Depois soltou um grito de angústia, um grito que parecia emanar das profundezas
do Inferno.
As pessoas caíram por terra e taparam os ouvidos, aterradas. Shakra, o forasteiro, fez
soar a corda do seu arco, que fez um ruído semelhante ao ribombar do trovão numa noite de
tempestade.
— O meu cão ainda tem fome! — Dêem-lhe de comer!
O rei contorceu as mãos e pôs-se a chorar.
— Já lhe demos tudo o que tínhamos. Não temos mais!
— Sendo assim, o meu cão alimentar-se-á de pastos e montanhas, de pássaros e animais
ferozes. Devorará as rochas e mastigará o sol e a lua. O meu cão alimentar-se-á de vós!
— Não! — gritaram as pessoas. — Tem misericórdia de nós! Rogamos-te que nos
poupes! Poupa o nosso mundo!
— Então acabem com a guerra — disse Shakra. Alimentem os pobres. Cuidem dos
doentes, dos sem-abrigo, dos órfãos, dos velhos. Ensinem a bondade e a coragem às vossas
crianças. Respeitem a terra e todas as suas criaturas. Só assim açaimarei o meu cão.
Shakra transformou-se num gigante, resplandecente de luz. Ele e o cão deram um salto
e, numa espiral de fumo, subiram cada vez mais alto.
110
Lá em baixo, nas ruas da cidade, homens e mulheres olhavam o céu consternados.
Estenderam as mãos uns para os outros e prometeram mudar as suas vidas, fazer o que o
forasteiro lhes tinha ordenado que fizessem.
Bem lá de cima, Shakra sorriu no seu trono dourado, ao olhar para a terra. Limpou a
testa com um braço resplandecente. As inúmeras estrelas cintilavam, fulgentes, e a escuridão
dormitava entre elas, tal como um cão junto de uma fogueira.
Margaret Read MacDonald
Peace Tales
Arkansas, August House Publishers, Inc., 2005
111
Além-Mar
Maio 2004
Diálogo e respeito mútuo
José Dias da Silva
Primeiro foi o 11 de Setembro em Nova Iorque. Depois, após umas incursões por países
longínquos, cujas ondas de choque pouco nos impressionaram, foi o 11 de Março, em Madrid.
E, de repente, depois de tantos anos de auto-suficiência e de requintados serviços de
vigilância, percebemos que afinal ninguém está seguro em lado nenhum. O pânico e o medo
aumentaram um sentimento difuso de ansiedade e angústia, já agudizado por novos riscos,
novas doenças, novas catástrofes ambientais, novos perigos de alimentos contaminados.
O pânico não é o mais propício para uma avaliação objectiva da realidade. E o medo
nunca foi bom conselheiro. De qualquer modo, em vez das reacções imediatistas, impostas pela
agressividade e defesa irracional da nossa territorialidade geográfica, mas sobretudo cultural,
esta é uma oportunidade para olhar à nossa volta e não só perceber que não somos os únicos
habitantes do planeta nem as únicas sociedades com valores mas também procurar apreender as
causas profundas de tais brutalidades e das possíveis culpas nossas no seu aparecimento.
Talvez estes massacres nos ajudem a tomar consciência dos muitos que fomos cometendo
ou deixámos que acontecessem ao longo da história: o comércio de escravos africanos pelos
portugueses e outros, o genocídio de incas e astecas pelos espanhóis, o massacre dos aborígenes
da Tasmânia pelos ingleses, a eliminação dos índios pelos americanos, a destruição do povo
herero, da Namíbia, pelos alemães, os milhões de mortos nos Gulags estalinistas e nos campos
de morte nazis, os dois milhões de mortos pelos kmers vermelhos, o milhão do genocídio
ruandês ou os 300 mil timorenses. Isto para não falar das tentativas «caseiras» de limpeza étnica
ou política: dos arménios, dos curdos, dos chechenos, na ex-Jugoslávia, ou dos milhares que por
esse mundo fora todos os dias deixamos morrer à fome. Afinal não somos muito mais
civilizados do que esses terroristas que matam, a sangue-frio, milhares de inocentes. Quantos
não matámos nós por razões económicas, por interesses políticos ou por simples indiferença?
Talvez os recentes crimes nos façam perceber que a vítima americana não é mais pessoa
que o ruandês que deixámos massacrar, que sempre que morre uma pessoa, em qualquer canto
do mundo e independente da sua cor ou religião, é sempre uma perda irreparável para a
113
humanidade. Talvez consigamos perceber que todas as pessoas contam igualmente. E que,
havendo atrás de cada pessoa uma cultura, a humanidade será mais rica se partilhar todos esses
bens culturais, respeitando-os e promovendo-os na diversidade das diferenças, até porque todas
as culturas são incompletas e têm debilidades próprias. E sem o reconhecimento dessas
limitações nunca será possível o diálogo intercultural honesto e fecundo.
Então o caminho não pode ser o da imposição dos nossos valores para substituir os dos
outros, o que só pode conduzir a uma «canibalização cultural». Tem de ser o do diálogo entre
todas as culturas. Só assim, no respeito mútuo, será possível eliminar ou pelo menos limitar as
condições geradoras de terroristas dispostos a dar a vida para espalhar a morte e, talvez assim,
contestar um Ocidente que nunca os levou a sério, que passou a história a impor soluções que
não incluíam os legítimos ideais desses povos, ignorando-os ou até humilhando-os.
Bastará olhar para a partilha de África feita a régua e esquadro numa longínqua cidade da
Europa central, ou a (não) solução para o Médio Oriente, ou a divisão entre a Índia e o
Paquistão. Para não citar exemplos bem recentes onde a mentira teve um papel determinante. É,
pois, tempo de os políticos darem lugar aos sábios. E tempo de os militaristas darem lugar aos
amantes da paz e da dignidade das pessoas e dos povos. É tempo de o diálogo substituir o ruído
ensurdecedor das armas. É tempo de afirmar e respeitar a igual dignidade de todos, pessoas e
povos, o seu direito ao desenvolvimento próprio, à sua cultura, à sua existência reconhecida
internacionalmente, à sua parte dos bens deste mundo, criados para uso de todos.
Talvez também possamos perceber que a nossa cultura de absolutização do dinheiro é
(pode ser) um grande aliado dos terroristas ao permitir-lhes dispor de financiamento com
esquemas de branqueamento de dinheiros, com os paraísos fiscais, onde todos os dias passam
milhões de dólares que ninguém quer controlar. Só nas ilhas Caimão, o maior centro de
off-shore do mundo, circulam 15 milhões de milhões de dólares por ano.
Com as injustiças históricas que cometemos e as facilidades organizativas que a nossa
idolatria pelo dinheiro proporciona, não estarão criadas condições objectivas para o terrorismo?
114
Infobib - Boletim da Biblioteca da Escola Secundária/3 de Baltar
2005
Sementes de violência
A sombra do quadrante
Murmúrio de água na clepsidra gotejante,
Lentas gotas de som no relógio da torre,
Fio de areia na ampulheta vigilante,
Leve sombra azulando a pedra do quadrante,
Assim se escoa a hora, assim se vive e morre.
Homem, que fazes tu? Para quê tanta lida
Tão doidas ambições, tanto ódio, tanta ameaça?
Procuremos somente a Beleza, que a vida
É um Punhado infantil de areia ressequida,
Um som de água ou de bronze e uma sombra que passa.
Eugénio de Castro
Eugénio de Castro, no seu poema A sombra do quadrante, lança a seguinte interrogação:
“Homem, que fazes tu? Para quê tanta lida / Tão doidas ambições, tanto ódio, tanta ameaça?”
A Biblioteca decidiu abordar o tema da violência, não só porque é uma questão actual,
mas também porque é um problema sem soluções definitivas e incontestáveis. E sobretudo
porque a todos diz respeito, quer como seus autores, quer como suas vítimas.
115
É, não obstante, um dado incontroverso que a violência impregnou as artes e a cultura e
muito particularmente o cinema, a música, a televisão e os videogames.
Como refere Carlo Climati (in Os jovens e o esoterismo, Lisboa, Paulinas, 2001):
... Depois do rock, da banda desenhada e do cinema, também os jogos de vídeo
foram «contaminados» por esta tendência.
Certos jogos de vídeo parecem contribuir para um processo de habituação ao mal
por parte dos jovens. As novas gerações cada vez se acostumam mais à violência,
até ao ponto de esta as deixar indiferentes. Ou antes, em certos casos, as
encenações de “terror” e as imagens monstruosas chegam mesmo a tornar-se
instrumentos “fascinantes”, utilizados para vender mais jogos de vídeo e para
chamar a atenção dos jovens.
Por outro lado, uma nota predominante dos conteúdos destes jogos de vídeo é a luta pela
sobrevivência. O referido autor (ob. cit.) acrescenta que, nestes jogos,
... o jogador tem de se confrontar com contínuos desafios de morte para conseguir
manter-se vivo, aumentando, ao mesmo tempo, o seu poder. O problema é que esta
luta se transforma, por vezes, numa verdadeira educação para a violência e para o
espezinhamento dos outros.
A mensagem transmitida aos jovens é clara: para sobreviver e conquistar o poder
é lícito fazer seja o que for: destruir, espancar, ultrapassar, matar ou esmagar os
próprios adversários. Não importa aquilo que se faz. O que conta é alcançar os
próprios objectivos. Bem-vinda seja a “morte” dos outros, se ela representa a
nossa vida. Tudo isto é certamente horrível, mesmo quando se trata de um jogo...
Não se julgue, porém que os referidos jogos são meros entertainments, pois inculcam nos
seus jovens utilizadores determinados padrões de conduta e regras de comportamento nocivas e
anti-sociais. Como descortina Carlo Climati (ob. cit.), dos jogos
... ressaltam dois conceitos verdadeiramente negativos: a “corrida sem regras” e a
ideia que “só os mais fortes e experientes conseguem chegar à meta”. Os jovens
aprendem assim a acreditar que, para ter êxito, tudo é permitido, até as formas de
comportamento incorrecto. No fim, os mais fortes triunfam sobre os mais débeis.
Eis um tema recorrente na filosofia subjacente a muitos jogos de vídeo. Quem bate
com mais força é quem vence...
116
Se o alvo da nossa análise for o cinema chegaremos a análoga conclusão. Com efeito,
sucedem-se novas versões da mesma série ou a sua continuação, mas a última é
incomparavelmente mais grotesca do que a anterior e a violência é avassaladoramente maior. O
público é atraído pela espiral de violência e de grosseria. O autor supra referido (ob. cit.)
esclarece que:
... O público quase parece afeiçoar-se, de forma mórbida, a estes implacáveis
assassinos cinematográficos, que voltam sempre a ressuscitar e a atacar outras
pessoas. Os jovens não se contentam em vê-los num único filme. Desejam que eles
voltem a matar, de forma original e diferente, e os produtores, interessados em
ganhar dinheiro, satisfazem o seu desejo, fazendo centenas de películas de teor
macabro e violento.
É certo que as histórias tradicionais também são caracterizadas por uma certa
agressividade e até por alguma violência. Em todo o caso, apenas com o fito de demonstrar que
a realidade também contempla essa faceta. Contudo, o bem acaba sempre por vencer. A
mensagem que prevalece é a do bem, a da punição do mal e a do regresso à ordem.
Já as novas criações, como bem realça João César das Neves (in Acordar do Sonho,
Lisboa, Ed. Verbo, 2003)
… têm como herói o mau, que se alegra com os gemidos das vítimas e os gritos de
horror dos inocentes. Nelas, o propósito do jogo é comer mais escravos, atropelar
peões, espancar adversários ou arrasar cidades. O realismo do sangue a espirrar
e dos estertores da morte só se compara com o maquiavelismo dos planos de
zombies, bruxas e dráculas. O diabo, que os pais consideram que não existe, está
presente em nome, pessoa e efeitos nas histórias preferidas dos seus filhos.
Seria ingenuidade pensar que o único ou o principal motivo que justifica a proliferação
dos filmes e vídeos em apreço é o lucro dos produtores. É indubitável que o factor financeiro
não é de menosprezar. Como conclui o já aludido Carlo Climati (ob. cit.), ainda a propósito
desta inesgotável produção,
... mais uma vez, quem decide é o “deus dinheiro”...
Outras serão as razões pelas quais a violência se enraizou na produção cinematográfica e
afins. Não se pretende, neste artigo, esgotar a análise das mesmas. Será oportuno ponderar duas
perspectivas de análise.
117
A primeira aponta para razões de ordem convencional, ou seja, o homem afirma-se pela
força física. Sam Keen (in O homem na sua plenitude, S. Paulo, Cultrix, 1998) alerta que
... A psique masculina, antes de mais nada, é a psique do guerreiro. Nada nos
plasma, molda e modela tanto como a exigência da sociedade de que nos tornemos
especialistas no uso do poder e da violência, ou, como dizemos eufemisticamente,
na “defesa”. Historicamente, a principal diferença entre homens e mulheres é que
sempre se esperou que os homens fossem capazes de recorrer à violência quando
necessário. A capacidade e a disposição para a violência têm sido centrais na
nossa autodefinição. A psique masculina não foi construída sobre o racional:
“Penso, logo existo”, mas sobre o irracional: “Conquisto, logo existo”.
Quanto ao que veio a tornar-se o estado de emergência banal da vida moderna,
concedemos ao Estado o poder de interromper a vida dos rapazes, de os convocar
para servir o exército e iniciar no ritual da violência. Clichés que passam por
sabedoria dizem-nos: “O exército fará de si um homem”, e “Todos os homens
precisam de ter a sua guerra”.
O autor denuncia mesmo que este preconceito atinge o extremo de poder prejudicar ou
aniquilar determinadas vocações ou percursos.
... Muitos homens criativos que conheço eram sensíveis, compassivos demais para
lutar. E quase todos cresceram sentindo-se, de certo modo, inferiores e com a
certeza de que não tinham passado a prova da masculinidade. Desconfio que
muitos escritores ainda estão a mostrar aos valentões do bairro que a pena é mais
forte do que a espada. A prova modelou-nos, quer tenhamos lançado bombas ou
sido apanhados por elas...
No que se refere à segunda perspectiva, é seguro que, na sociedade actual, o homem não
dialoga sobre a sua natureza íntima, não partilha sentimentos, não encontra um interlocutor
atento e disponível. Esta lacuna − nas relações pai/filho, professor/aluno, marido/mulher –
provoca frustração, revolta e raiva. Eis as sementes da violência. O ser humano revolta-se
porque não encontra condições para realizar a sua principal vocação.
Wolfgang Salewski e Peter Lanz (in A Nova Violência – e como enfrentá-la, Lisboa, Ed.
Livros do Brasil, 1978) relatam a seguinte história verídica de Mark Twain, escritor e satírico
americano:
... certa vez, chegou demasiado tarde a um jantar para o qual tinha sido
convidado. Quando a dona da casa, distraída pela organização do banquete e pelo
118
grupo de ilustres convidados, lhe deu as boas-vindas, Twain pediu desculpa pelo
seu atraso com as seguintes palavras: “Tem de desculpar-me por ter chegado só
agora, minha querida senhora, mas tive necessidade de matar a minha velha tia
antes de vir.” E a dona da casa respondeu-lhe: “Claro que lhe perdoo, caro
mestre, isso por vezes acontece.”
Atente-se, todavia, ao comentário que os autores acrescentam à história:
Assim, superficialmente, a história pode provocar o riso. Mas, se pensarmos um
pouco, podemos ser invadidos pelo medo. O que há cem anos Mark Twain quis
tratar como uma graça tornou-se hoje numa triste verdade. Trocam-se argumentos
sem, de facto, se entrar em contacto uns com os outros. Falamos, sem dúvida, mais
do que outrora. Os meios técnicos de comunicação tornam possível as pessoas
falarem umas com as outras, em quase todos os pontos do mundo. Com o auxílio
de cabos submarinos e satélites transpõem-se os oceanos. No entanto,
compreendemo-nos cada vez menos.
A violência é, na verdade, um drama actual, mas não podemos soçobrar, pois se são
inolvidáveis os seus efeitos, são também irreversíveis as consequências da boa formação do
carácter por via da educação. Como ensina João César das Neves (ob. cit.),
Os filmes e jogos devem ser usados também para contrastar com a vida real. O
normal é que os jovens que contemplam de forma tão viva horrores tão profundos
ganhem uma insensibilidade emocional. Mas também é possível que, por reacção,
sejam levados a compreender melhor a beleza, a bondade, a alegria e a felicidade.
Cabe aos educadores conduzir e potenciar essa reacção. Estes horrores podem
permitir adquirir critérios de julgamento e edificar o carácter, o essencial da
educação.
119
Alfredo Fonseca; J. Wemans; J.M.Azevedo; P. Melo
“Para uma cultura da não-violência”
Público, 1 de Março de 2003
Excertos adaptados
Para uma cultura da não-violência
No início do terceiro milénio, a violência continua a ser uma constante na história da
humanidade. O fim do bipolarismo e a apregoada nova ordem internacional, ao contrário do que
alguns previam, não contribuíram para a resolução pacífica dos conflitos que continuam a
provocar milhões de mortos e de mutilados um pouco por todo o mundo e a impedir que muitas
pessoas vivam em condições mínimas de dignidade. Ruanda, Sudão, Kosovo, Tchetchénia,
Argélia, Colômbia, Angola, Médio Oriente, Afeganistão ou Iraque são algumas regiões do
mundo onde o absurdo da guerra se manifestou recentemente e, em alguns casos, continua a
manifestar.
Mesmo em situações aparentemente pacíficas, a violência é, sob muitas formas, uma
realidade quotidiana que destrói vidas e condena à sobrevivência em condições iníquas uma
multidão de seres humanos. Não serão o desemprego, o analfabetismo, a insegurança, as
desigualdades crescentes, a exploração e os futuros roubados manifestações de violência com as
quais constantemente nos confrontamos?
Reconhecemos que as diferentes confissões cristãs têm, ao longo da história, invocado
Deus para legitimar a guerra, enquanto detentoras de uma verdade revelada que deve ser
concretizada. Noutras situações, têm contemporizado com a violência que aniquila o outro,
desenvolvendo as teorias da guerra justa. Não adianta, pois, ignorar ou tentar justificar o uso, a
contemporização ou legitimação da violência por parte das várias igrejas espalhadas pelo
mundo.
Tem o cristianismo, enquanto religião messiânica, inscrito em si uma lógica de violência
e dominação? Mesmo quando a história parece dizer que sim, a contemplação do Crucificado,
daquele que, numa doação amorosa de si, aceitou perder, foi ressuscitado e está vivo, a
contemplação desse “homem de dores”, que se humilhou voluntariamente e não abriu a boca,
diz-nos que só por grave cegueira pode decorrer do cristianismo uma lógica messiânica
legitimadora da dominação. Portanto, à luz da radicalidade evangélica, não faz sentido teorizar
sobre a guerra justa.
Foi também no âmbito das religiões, inclusive do cristianismo e da inspiração evangélica,
que a dominação e a guerra foram mais seriamente questionadas e que a não-violência se
constituiu como um quadro consequente de vida e intervenção social. A verdade deixa, então,
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de ser entendida como algo que se tem e deve ser anunciado e, no limite, imposto aos outros
para o “seu bem”, para passar a ser resultado de uma busca que passa necessariamente por
“procurar conhecer-se em profundidade a si próprio, aos outros e às envolventes circunstâncias
históricas, sociais, políticas, económicas e religiosas”.
Daqui resultará a atitude de profunda humildade daquele que sabe e aceita que a verdade
não é pertença absoluta e exclusiva de ninguém em particular. A verdade não se tem. Buscar a
verdade, por isso, é recusar diabolizar o inimigo e, ao invés, desejar integrá-lo também neste
processo de procura de verdade – da verdade que liberta –, porque até no inimigo mais
empedernido há sempre algo de aproveitável, há sempre uma bondade potencial, ainda que
embotada.
Esta atitude, em vez de gerar um ódio de morte ao outro, leva a encará-lo como alguém
capaz de mudar. Tanto quanto eu. Não confundamos não-violência com passividade, cobardia
ou desistência de lutar pela justiça. Afirmação de si, agressividade e conflito são inerentes à
condição humana. Não têm, forçosamente, que assumir a forma de violência, de desejo
concretizado de destruição do outro, do diferente, do que nos mete medo. E não é pelo facto de
a guerra ter sido uma constante na história da humanidade que assim tem de continuar a ser.
A humanidade dispõe hoje de recursos materiais e espirituais que lhe permitem prescindir
da violência como forma de garantir a sobrevivência e é possível, a partir de um processo lento
e difícil, porque cultural, inaugurar uma nova era civilizacional de humanização, de
enriquecimento pessoal e comunitário, através do confronto e da compreensão do outro, do
diferente. Hoje, é possível pensar a evolução da humanidade fora dos quadros da violência.
Não é, no entanto, o senso comum, o caminho mais evidente. “Se queres a paz prepara a
guerra”: eis um provérbio que resume o adversarialismo que ainda hoje domina a acção política
e as práticas sociais. O caminho não é fácil, tanto do ponto de vista colectivo como pessoal.
Requer persistência, paciência e vigilância.
Por isso: “Se alguém pensar que já alcançou um estádio de recusa absoluta da violência,
esse ignora-se a si mesmo. O adepto da não-violência trava todos os dias consigo próprio um
combate. Já não será então somente a recusa da força bruta como meio de solução dos
problemas, mas de todas as formas de violência, sobretudo as mais requintadas e subtis. É este o
princípio da autêntica convivência, do viver conjuntamente, do estar-com” (José Manuel Pureza,
Pedaços de uma fé crítica).
“Assim como é preciso aprender a matar para praticar a violência, assim se deve estar
preparado para morrer para praticar a não-violência”, dizia Gandhi. Ora, ter este princípio como
horizonte de vida pressupõe um profundo e persistente trabalho interior porque “a não-violência
não recusa o conflito mas procura transformá-lo em fonte de crescimento e de amadurecimento
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da consciência e da solidariedade humanas, consciente dos limites e precariedade desse mesmo
processo”.
Este é um desafio que cada um há-de colocar, em primeiro lugar, a si mesmo, ainda que a
partilha e a reflexão societária constituam um incentivo e encorajamento que previnem a
desistência de tão exigente processo de construção espiritual. Convictos de que, na fidelidade à
Vida, vale a pena dar passos no sentido de uma cultura de não-violência, devemos
comprometer-nos a:
― Desenvolver um pensamento e uma acção que recusem o adversarialismo simplista
que tende a dominar o senso comum e permitam uma consciência dos problemas na sua
complexidade, evitando o desalento e permitindo valorizar o presente como futuro em
construção.
― Dar a conhecer iniciativas individuais e colectivas que se pautem por critérios de não-violência, de defesa dos direitos humanos, de promoção da cooperação e do desenvolvimento,
de reinserção social, centrados na valorização das pessoas e das comunidades.
― Potenciar a independência da consciência, para que, através dos comportamentos e das
atitudes individuais e sociais, se realize a mobilização para as mudanças capazes de reduzir a
violência e instaurar novas formas de relacionamento.
― Reforçar os laços com todos aqueles que se ocupam da solidariedade e
desenvolvimento a nível internacional, de modo a desenvolver uma compreensão da
interdependência dos problemas e das suas soluções.
― Estudar, desmontar, denunciar as lógicas económicas que alimentam as guerras ligadas
aos interesses da indústria de armamento e reflectir activamente sobre essas questões, no plano
nacional e internacional.
― Promover espaços de formação para jovens e adultos em que se pense a resolução não-violenta de conflitos, porque uma cultura das mediações e da não-violência pressupõe uma
pedagogia das mediações e da não-violência.
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