Revista 03.2016

Transcrição

Revista 03.2016
REVISTA REDAÇÃO
PROFESSOR: Lucas Rocha
DISCIPLINA: Redação
03
DATA: 31/01/2015
—————————————————————————————————————————————
1
Cuba: Buenos dias, América! (GISELE VITÓRIA)
Como os cubanos vivem o processo de abertura
e o primeiro ano de reaproximação com os
Estados Unidos, que anunciaram novas medidas
para facilitar exportações e viagens para Ilha
dos irmãos Castro
ENTRE imagens de santos e a mobília antiga
do paladar San Cristóbal, garçons circulam com um
minúsculo broche, preso à camisa branca, no
restaurante que funciona na casa de Carlos Cristóbal
Valdés, em Havana. Perto do coração e da gravata
borboleta, o pin de lapela estampa uma imagem
improvável: bandeirinhas de Cuba e dos Estados
Unidos cruzadas, como países amigos e pacificados.
Há pouquíssimo tempo, isso seria impensável na
terra dos irmãos Fidel e Raul Castro. Os garçons e o
restaurante seguramente teriam sido acusados de
fazer apologia ao imperialismo. “Os funcionários da
embaixada americana nos presentearam”, conta um
deles, tranquilamente, após servir malengas,
tubérculo típico local. No clima de expectativa, os
cubanos se preparam para uma nova Cuba. Um ano
após a aproximação bilateral, os Estados Unidos
anunciaram, na terça-feira 26, novas medidas para
facilitar as exportações e as viagens de americanos
à Ilha.
BANDEIRINHAS AMIGAS - Gançons do
restaurante San Cristóbal usam o pin CubaUSA, presente dos funcionários da embaixada
americana em Havana
A ansiedade reluz no rosto sorridente de Alian
Alarcon,
funcionário
do
restaurante
russo
Nazdarovie, no terceiro andar de um velho prédio
com vista para o Malecon, a avenida murada de oito
quilômetros de extensão construída na orla de
Havana. Alian diz que o restaurante soviético, aberto
há um ano, teve triplicada a visita de turistas
americanos nos últimos meses. “Eles veem pelo
México. Os americanos se encantam e dizem:
‘Apenas 90 milhas nos separam, e, o que os
cubanos têm de tão ruim assim que os Estados
Unidos ainda dificultam tanto a nossa vinda?’” No
ambientes desses estabelecimentos conhecidos
como paladares – neologismo para definir
restaurante em casa, cunhado a partir da novela “Vale Tudo”, da Globo, na qual a personagem de Regina Duarte era dona
do restaurante “Paladar” -, é possivel medir o quanto a abertura e o fim do embargo econômico, conhecido pelos cubanos
como “el bloqueo” são aguardados em contagem regressiva. Desde que ganhou força em 2010, um dos mais visíveis efeitos
do programa de reformas do presidente Raul Castro, que sucedeu o irmão mais velho, em fevereiro de 2008, tem sido a
multiplicação dos paladares em Havana - uma concessão do Estado à moradores para explorar suas casas comercialmente e
reforçar o orçamento familiar. Os turistas já combinaram com os russos. Agora falta combinar com o Congresso americano.
Na semana passada, os EUA deram a largada ao processo de liberação de viagens para a pátria do socialismo nas Américas.
—————————————————————————————————————————————
2
24 HORAS DA CALIFÓRNIA ATÉ CUBA – A epopeia que
representa para um americano visitar Cuba foi sentida na pele pela
californiana Nancy Math, que se hospedou para uma temporada de
10 dias no icônico Hotel Nacional, em Havana. Residente em San
Diego, ela levou 24 horas para chegar até a capital cubana. Ainda é
dificílimo para cidadãos americanos obter de seu governo a liberação
para voar até a Ilha. Após conseguir a licença para saídas em
grupos, Nancy e seus amigos tiveram de voar até a Cidade do México
e de lá pegar um avião para Havana. “Apesar de ser tão próximo,
voamos a noite toda e mais um pouco. Isso aqui é encantador, mas
acredito que ainda vai demorar para as coisas ficarem mais fáceis”,
diz ela, que trabalha com turismo. “Decidi vir agora, antes que todos
os americanos venham.”
No mesmo hotel, quase todas as noites, dançarinos repetem o
refrão “Buenos dias, América...”, enquanto entoam o grand-finale de
um show de ritmos cubanos e caribenhos, no cabaret do Hotel
Nacional. O cinco estrelas cubano, com 456 apartamentos,
inaugurado em 1930, pertence ao Estado e hospedou líderes e
celebridades que passaram pela Ilha, com exceção do papa
Francisco, que lá esteve em 2015. Acostumado a hospedar levas de
canadenses e nórdicos, o hotel viu dobrar o número de americanos
que costumava receber. “Tive de aumentar o valor da diária de US$
120 para US$ 170 porque a procura estava muito grande”, diz o
gerente geral Antonio Martinez Rodriguez. Tony, como é conhecido,
trabalhou décadas no gabinete de segurança do governo do hoje
aposentado Fidel Castro. “Há muito por fazer ainda, das obras de
infraestrutura nos aeroportos à hotelaria.” Havia apenas 4 fingers no
aeroporto internacional de Havana.
REALIDADE - No alto, o taxista Rafael Leon, com seu
Baleia 1956, joia de família que garante seu sustento. A
americana Nancy Math com a recepcionista de
hotel Jacqueline: ''Decidi vir agora, antes que todos os
americanos venham''
Dar bom dia à América não é tão simples quanto no
espetáculo musical cubano. Para muitos cubanos, soaria como
mera rendição. O lema é ir devagar. “Os americanos não são
muito confiáveis”, diz um recalcitrante ex-dirigente cubano. “As
intenções não são tão nobres.”A real reaproximação dos Estados
Unidos com a Ilha ainda depende de rodadas de negociação e
de um Congresso com muitos republicanos radicalmente avessos
à idéia. Mesmo que o apoio do presidente americano Barack
Obama tenha mudado o curso da história, o fim do embargo
econômico, o fechamento da base militar de Guantânamo e, em
contrapartida, a instauração de eleições diretas e a democracia
em Cuba devem levar tempo.
Ir à Havana ainda hoje é atravessar um portal no tempo de
volta para os anos 1950. Não se sabe até quando. Os chevrolets
antigos, que dominam o tráfego intenso na avenida do Capitólio,
talvez estejam mais restaurados, com motores novos trocados e
importados dos Estados Unidos, via México. Mas a nova Cuba,
nesse ávido compasso de espera, ainda é a velha.
—————————————————————————————————————————————
3
Por mais que o período mais dramático da
economia tenha passado – nos anos 1990, com o
fim da União Soviética, quando o PIB do país
despencou 34% -, os problemas econômicos
ainda são enormes. Seja pelo embargo
americano, seja pela própria economia cubana,
regida pelas leis nacionais. Há 20 anos, Cuba vive
com dupla moeda. Lá convivem os CUCs, que são
os pesos convertidos equiparados em 1 para 1
com o euro, utilizados nas atividades de turismo,
e o CUP, a moeda local. Para obter um CUC, que
vale 0,87 dólar, os cubanos precisam de 24 CUPs.
O governo anunciou que vai unificar as moedas,
mas ainda não há prazo. Três décadas depois da
crise provocada pelo fim da ajuda soviética,o s
mercados estão menos desabastecidos, mas
ainda é raro encontrar carne bovina e peixe. A
exceção é o frango. “O grande problema de Cuba
é a economia”, diz um oposicionista. O cenário é
fruto exclusivo do embargo americano? Sim e
não, apontam alguns cubanos. As consequências
do embargo são duríssimas, mas medidas criadas
décadas atrás por Fidel Castro também criaram
deformações que refletem na economia. “Se um
homem mata uma vaca, ele pega 20 anos de
prisão. Se mata uma pessoa, pega 17 anos”,
lembra um crítico do governo. A produção de
carne de boi é exclusividade do Estado.
ABSORVENTE ÍNTIMO, RARIDADE – Nos
mercados, nota-se a presença italiana. Seja pela
massa Barilla ou pela água mineral San Pelegrino.
É proibido entrar com bolsas à tiracolo.
Seguranças barram quem insistir. Carrinhos de
compras abarrotados são incomuns. Absorvente
íntimo, por exemplo, é um ítem de luxo. As
mulheres ainda recorrem às antigas toalhinhas,
do tempo das avós. “É muito raro encontrar”,
agradeceu, gratíssima, a camareira Luiza, após
ganhar de uma hóspede do Hotel Nacional quatro
pacotes do absorvente Íntimus, trazidos do Brasil.
Absorventes são raros, mas smartphones, nem
tanto. A mesma camareira usa aplicativo de batepapo e e-mails em seu celular, embora o acesso
à internet seja um privilégio de poucos - menos
de 4% dos domicílios estão conectados à rede.
—————————————————————————————————————————————
4
A expectativa de mudança no país é alta para um dos maiores músicos cubanos, o jazzista Chucho Valdés. “Penso que
o bloqueio acabará antes de Obama deixar a presidência”, diz. Há também um sentimento de dúvida com a reaproximação
americana. Para Frei Betto, “será o choque do consumismo com a auteridade”. O escritor Senel Paz, autor de “Morangos e
Chocolate” vê um momento “interrogante”. “Haverá uma chegada americana impetuosa?”, questiona. “As pessoas querem
uma vida melhor, com estabilidade, mas sem perder os valores sociais e espirituais.” Senel crê no fim do embargo. “O
embargo não é mais útil. Não deu resultado”, diz. “Foi uma medida política para acabar com o regime socialista, mas que
não só não acabou, como uniu o povo de Cuba.”
CARRO, JOIA DE FAMÍLIA – A união faz a força na manutenção da velha frota automotiva. Exemplares mais novos
datam de 1959. Os veículos antigos, símbolo cubano, remontam a visão do que significa ter um carro. O motorista de taxi
Rafael Leon é dono de um baleia Chevrolet 1956, conversível, que foi adquirido zero quilômetro na concessionária por seu
avô, Massimo, e depois pertenceu ao pai, Adolfo. O carro é uma joia de família. É o que, na verdade, sustenta sua mulher e
os três filhos. Rafael trabalha das 8h às 21h diariamente e fatura o equivalente a 200 dólares por mês. É alta a manutenção
e a gasolina custa US$1,50 o litro. Sua mulher é programadora de voo e ganha US$ 40 por mês. “Graças a Deus, a abertura
começou. Estamos cansados”, suspira. “Cuba tem coisas boas, como a educação e a medicina, mas será um alívio o fim do
embargo.”
—————————————————————————————————————————————
5
INFRAESTRUTURA - Aeroporto José Martí,
com 4 fingers, e mercados pouco
abastecidos
MEU PRIMEIRO PASSAPORTE – Para
o engenheiro mecânico Fernando Valera, 47
anos, a consequência mais animadora da
abertura no governo de Raul Castro foi ter seu
primeiro passaporte. Hoje, é mais fácil viajar
para o exterior. “Tinha sede de conhecer
culturas, de ver como gente da minha área
trabalha”, diz. “De repente, não nos sentimos
mais presos numa ilha e isso é valioso”. Valera
fez a primeira viagem internacional para o
Brasil. É assistente do pintor René Francisco,
que vai expor em São Paulo, em abril. Para
ele, os cubanos se sentem mais leves. Em
Cuba, porém, ainda se fala de política com
parcimônia. Críticas ao Estado não são feitas
naturalmente. “Isso muda aos poucos”, diz
uma empresária que vive entre Cuba e os
EUA. “As pessoas já têm menos medo de
falar.”
A cineasta Rebeca Chavez, que dirigiu um
documentário sobre o livro “Fidel e a Religião”,
de Frei Betto, e registrou um encontro de
ambos, resume: “Estou muito curiosa com o
que irá acontecer”. Rebeca finalizou o
argumento de seu novo filme, que trata da
abertura. “Já tenho o título: ‘Aparências’”, diz.
“Contará a história de duas casas vizinhas e
idênticas, uma delas com a fachada reformada
pelo dono e a outra, não”. No San Cristóbal,
uma mesa de 10 lugares em torno de Frei
Betto festejava o título de Doutor Honoris
Causa concedido ao escritor e frade
dominicano brasileiro pela Universidade de
Havana. “Os reis da Espanha já jantaram
aqui”, comentava, entre os presentes, o
escritor Leonardo Padura, autor de Best-seller
como “O Homem que amava os Cachorros” e
“Hereges”.
Mick Jagger, líder da banda Rolling
Stones, já teria passado por lá também. As
bandeirinhas de Cuba e Estados Unidos no
broche dos garçons do restaurante, poéticas e
apaziguadoras, deixam uma impressão: os
cubanos gostam da ideia de ser (ou ter)
americanos, sem abdicar de ser cubanos. No
entanto, ao menos por ora, as bandeiras
amigas são só um enfeite gentil. Na vida real,
pode ser mais difícil.
—————————————————————————————————————————————
6
—————————————————————————————————————————————
7
“Sabemos que, depois de Obama, será mais difícil mudar” - Braço direito de Raul Castro, Homero Acosta,
secretário do Conselho de Estado, fala sobre a transição com os EUA
ISTOÉ – Como será a reaproximação com os EUA?
Homero Acosta - As relações diplomáticas caminham e miram o fim do embargo. Altos funcionários cubanos e americanos
se reúnem para negociar. Há grande interesse de setores econômicos dos EUA, que querem investir, mas não podem,
porque o bloqueio não permite. Por outro lado, ainda há muita complexidade em Cuba. Os salários são baixos, há uma
dualidade monetária e cambial. O processo de normalização das relações é maior que o restabelecimento delas. Para que
tenhamos uma relação normal, temos de acabar com o bloqueio, que é uma prerrogativa do Congresso dos EUA. Além
disso, é preciso que os americanos entreguem a Cuba a base naval de Guantánamo.
ISTOÉ – Obama deixa o governo em um ano. As negociações recuarão?
Acosta - Obama não vai resolver tudo. Se o Partido Democrata perder as eleições, será um outro processo. Temos
consciência de que poderá ficar mais difícil sem ele na presidência. Obama está disposto a interceder junto ao Congresso
contra o bloqueio. Ele diz que a política americana, que objetivava destruir a revolução cubana, fracassou.
ISTOÉ – Qual foi o papel do Papa na reaproximação com os EUA
Acosta - A visita pastoral do Papa veio incrementar a fé no povo cubano. O Papa é também um homem político. Antes do
mundo inteirosaber, Francisco deu o ponto de partida, escreveu para Obama e Raul. Isso ajudou na reaproximação. Mandou
duas cartas, através do cardeal cubano Jaime Ortega Alamino.
ISTOÉ – Quais foram os maiores danos do bloqueio?
—————————————————————————————————————————————
8
Acosta - Muitos. Cuba não pode utilizar o dólar americano. Cuba não pode vender para os Estados Unidos. Milhões de
turistas norte-americanos não podem viajar diretamente a Cuba. Cuba não pode comprar nenhum produto dos EUA sem
permissão. Cuba não pode comprar nenhum produto em outro lugar que tenha 10% de componentes americanos. Um avião
da Embraer não pode ser vendido para Cuba pelo Brasil, por ter 10% de equipamento de fabricação dos Estados Unidos.
Cuba não pode comprar de uma subsidiária dos Estados Unidos que tenha em outro país, por exemplo. A General Motors
tem sociedade com o Brasil, não pode estar aqui. E se uma empresa faz negócio com Cuba, deixa de fazer negócios com
Estados Unidos. Não é autorizada a compra de alimentos pelos Estados Unidos. Sao condições muito difíceis. Tem que
comprar mercadorias na china. A preços mais altos pelos fretes. Quando aconteceu o bloqueio, todos os automóveis
dependiam de maquinário americano. Você imagina – a geladeira, o seu fogão - você ter que mudar, do sistema americano
para o russo? Para o francês?
ISTOÉ – Com a baixíssima estrutura salarial presente hoje em Cuba, como isso mudará com a abertura do
país? A China, décadas atrás, passou por esse processo, mas como a economia cubana suporta isso?
Acosta - Isso é um processo complexo para Cuba. Em primeiro lugar, a China se abriu ao capital estrangeiro e começou
seu desenvolvimento de forma intensiva sem o bloqueio dos Estados Unidos. Cuba teve que fazer seu processo, primeiro
com uma relação com a união soviética e outros países socialistas. Com o fim da união soviética, o PIB de Cuba despencou
35% de um ano para o outro. Isso não ocorreu em nenhum país do mundo. Não havia eletricidade. Na metade do dia, Cuba
ficava inteiramente apagada. Não havia transporte porque não havia combustível. As pessoas andavam de bicicleta. Não
havia alimentação. Era muito baixo o volume. Num mundo em que caíram todos os países socialistas, Cuba teria que cair
por efeito dominó. Porque não poderíamos resistir. E os Estados Unidos naquele momento, aumentaram o bloqueio com as
medidas punitivas, pensando em quebrar a conexão da revolução. Essa é a razão dos turistas americanos não podem vir
sozinhos, por exemplo. Foi preciso enfrentar isso com um povo unido. Houve muita gente que não aguentou. Mas a imensa
maioria do povo apoia a revolução. E mesmo nessas circunstâncias o País começou, pouco a pouco, a crescer. O turismo,
por exemplo, não existia praticamente. Mas mercado e capital estrangeiro, incipientemente, começaram com negócios e o
país começou, pouco a pouco, a crescer.
ISTOÉ – Mas e os salários? Um médico ganha hoje 80 dólares por mês...
Acosta - Os salários em Cuba são baixos. O próprio presidente Raul reconhece. Mas em Cuba há um fenômeno que é quase
desconhecido. Em Cuba, há dualidade monetária. E dualidade cambial. O dólar não podia circular, era penalizado. Agora
vamos unificar. Mas é uma medida mais complicada. É um corte social que Cuba não quer fazer. Desamparar milhões de
pessoas, como se faz em muitos países da América Latina? Estamos fazendo pouco a pouco. Temos que lembrar ainda que
tudo é subsidiado. Não se paga escola, alimentação básica,aluguel,não paga plano de saúde. 90% das casas são próprias.
Não se paga imposto por ter propriedade imobiliária.
ISTOÉ – Existe a possibilidade de eleições diretas em Cuba?
Acosta – Não sei.
GISELE VITÓRIA é Jornalista e escreve – como correspondente – para esta publicação. Fotos: Fernando Louza, Gisele Vitória,
Cuban Council of State Photo Archive. Revista ISTO É, Janeiro de 2016.
Férias solidárias (LUDMILLA AMARAL)
Quem são os jovens brasileiros que abrem mão de desfrutar os dias de folga e viajam à Europa para trabalhar como
voluntários na acolhida de refugiados
CONHECER um país diferente e ter a possibilidade de ajudar pessoas de outras culturas sem pedir nada em troca
promete ser uma experiência inesquecível. Por isso, o chamado turismo solidário já é praticado por uma pequena, mas
crescente, parcela de adolescentes e adultos do Brasil e do mundo. Nos últimos tempos surgiu uma segmentação dessa
modalidade de turismo motivada pelos tristes acontecimentos internacionais: são os voluntários que acolhem os refugiados.
A estudante brasileira Gabriela Shapazian, 16 anos, é um deles. Moradora do Alto de Pinheiros, bairro nobre na Zona Oeste
de São Paulo, a adolescente está passando as férias na Ilha de Lesbos, na Grécia, a dez quilômetros da Turquia, onde atua
como voluntária auxiliando as pessoas que, ao fugirem da guerra em busca de um lugar melhor para viver, arriscam a vida.
A experiência, apesar de curta – serão ao todo 45 dias na costa grega –, já produziu mudanças significativas na vida da
jovem, que irá cursar o terceiro ano do Ensino Médio em 2016. Se antes ela pretendia fazer Relações Internacionais,
resolveu mudar de carreira e prestar Psicologia. “Não da para descrever o sentimento que é estar aqui”, diz. “Com a
psicologia, eu vou conseguir ter um contato maior com as pessoas.”
—————————————————————————————————————————————
9
DOAÇÃO - Acima a estudante de São Paulo Gabriela Shapazian, 16 anos, recepciona um migrante na Grécia.
Abaixo, o professor João Vitor, 18, na Alemanha, com um pequeno refugiado
—————————————————————————————————————————————
10
Diferentemente dos imigrantes, que entram em um
país estrangeiro por escolha, os refugiados buscam
abrigo em outras regiões por medo de permanecerem
em seu local de origem, geralmente destroçado por
guerras com outras nações ou conflitos internos. É o
caso da Síria, do Afeganistão e da Somália, mergulhados
em extrema pobreza e violência. Para tentar chegar à
Europa, famílias inteiras atravessam o Mar Mediterrâneo
em barcos improvisados e, como se vê pelas trágicas
imagens que chegam, muitas não sobrevivem à viagem.
Mesmo assim, esses migrantes preferem pagar milhares
de dólares à rede de coiotes responsáveis pela rota de
entrada de imigrantes ilegais a continuar vivendo de
forma miserável. Segundo um relatório da Organização
das Nações Unidas (ONU), 50% dos refugiados entraram
na Europa por Lesbos, na Grécia. Foi esse o destino
escolhido por Gabriela para passar as férias de verão.
A questão da Síria sempre foi um assunto
recorrente nas conversas entre a estudante e a mãe, a
analista de comunicação Kety Shapazian, 48 anos.
“Minha mãe virou uma ativista desde o começo da
primavera árabe e fez muitos contatos e amigos sírios”,
diz Gabriela. “A gente viu a oportunidade e não pensou
duas vezes em vir para cá.” Kety está em Lesbos desde
o dia 9 de dezembro e recebeu a filha no dia 16, após a
estudante passar duas semanas com a avó na Itália. As
duas chegam ao Brasil no próximo dia 2. Mãe e filha só
tinham o dinheiro para a passagem de Kety, mas no
aniversário da adolescente, em 8 de novembro, ela foi
presenteada pela tia com a viagem. Sem o apoio de uma
agência de intercâmbio ou uma organização não
governamental, elas chegaram ao campo de refugiados,
anunciaram que queriam ajudar e por lá ficaram -primeiro se alojaram em um hotel cuja diária era 40
euros (R$181,20), depois se mudaram para a casa de
uma moradora de Lesbos, que aluga o quarto por 20
euros (R$ 90,60) a noite. Da janela do aposento,
conseguem enxergar a Turquia, ponto de parada antes
de chegar à Grécia.
Os trabalhos em Lesbos não param. Os voluntários tiram o colete salva-vidas e cobrem com um cobertor seco os
refugiados que chegam nos barcos, os levam para um abrigo, oferecem roupas limpas, conversam e brincam com as
crianças. E se a Grecia é a porta de entrada para a Europa, a Alemanha é o destino preferido pelos refugiados. Dos 244
milhões de migrantes internacionais, 12 milhões estão lá. Só em 2015, o país recebeu 1,1 milhão deles. No ano passado,
Sigmar Gabriel, vice-chanceler alemão, disse em entrevista à emissora pública ZDF que a economia alemã é forte e o país
poderia aceitar um número desproporcional de imigrantes. Sabendo disso, a ONG Jovens Com Uma Missão (Jocum), de
Recife (PE), levou em novembro do ano passado um grupo de 12 pessoas para a cidade de Bad Blankenburg, no leste da
Alemanha, para trabalhar com a integração dos refugiados. Eles passaram 25 dias desenvolvendo atividades como danças,
pintura, dobradura, jogos de futebol e xadrez, principalmente com as crianças. Eles também cozinhavam para as famílias
que estavam lá. “A experiência foi tremenda e impactante”, diz Mati Gali, diretor da ONG. “Famílias venderam tudo o que
tinham para salvar suas vidas.”
O professor de inglês João Victor, 18 anos, estava entre os 12 integrantes da Jocum que embarcaram na jornada rumo
à Alemanha e essa, segundo ele, foi uma das mais incríveis experiências que já viveu. “Quando aquelas pessoas perceberam
que nós estávamos lá para ajudar de coração, elas começaram a ser completamente receptivas com a gente”, afirma. O
pernambucano João Victor e a paulista Gabriela tiveram a mesma impressão da vivência com os refugiados. Eles não
falavam a mesma língua, mas conseguiam se comunicar perfeitamente por meio de sorrisos e carinhos. “A linguagem que a
gente se comunicava era a do amor”, diz João Victor. Lá, ele e os outros voluntários dormiam em um galpão, com colchões
que eles mesmos compraram, e passaram noites de muito frio. A Jocum ficou tão satisfeita com a experiência que pretende
mandar em maio um novo grupo para a Alemanha.
—————————————————————————————————————————————
11
—————————————————————————————————————————————
12
O turismo solidário tem sido bastante procurado pelos brasileiros nos últimos anos. Segundo Fernanda Zocchio
Semeoni, diretora de produções, produtos e operações da Experimento Intercâmbio Cultural, o intercâmbio voluntário
proporciona uma vivência num país estrangeiro e o contato mais próximo com a comunidade local, o que vira conhecimento
e traz o entendimento mais profundo de uma cultura diferente. “Um aspecto importante a ressaltar é a necessidade de
haver comprometimento do intercambista com a responsabilidade assumida, pois seu trabalho, apesar de voluntário, tem
impacto decisivo na vida de muitas pessoas.” Diversas agências especializadas em intercâmbio ou turismo oferecem essa
opção. O turismo específico para ajudar refugiados ainda não está na agenda dessas empresas, mas como os jovens dessa
reportagem mostraram, é possível realizar essa missão por conta própria. E as férias solidárias podem produzir lembranças
tão ou mais calorosas que os mais ensolarados verões juvenis.
LUDMILLA AMARAL é Jornalista e escreve – como correspondente – para esta publicação. Fotos: Fernando Louza, Gisele
Vitória, Cuban Council of State Photo Archive. Revista ISTO É, Janeiro de 2016.
Dilma e a armadilha para o FGTS (MALU FONTES)
DE NADA adiantou o país inteiro descobrir que o crédito fácil, embora tenha sido bom enquanto durou, deixou mais
sequelas que ganhos. Agora, com a crise, a fatura chegou e está levando todos para o precipício. Do comércio à população
assalariada, passando por todo o setor produtivo. A exceção são os bancos, que, com ou sem crise, continuam ostentando
lucros bilionários. Nesse contexto, em que poucas pessoas têm dinheiro no bolso e cada vez mais gente não tem certeza de
que continuará a ter um emprego nos próximos meses, o governo federal ameaça tirar da cartola um coelho que só não é
assustador para quem ainda não se deu conta da extensão dos riscos: autorizar o uso do FGTS como garantia para
contratar empréstimos consignados nos bancos. Quem não quitar as parcelas as terá descontadas do Fundo de Garantia.
ANÉIS
Como parte da população está falida e inadimplente e o mercado está com seus estoques atravancados e sem clientes
à vista, o governo da presidente Dilma teve uma ideia do tipo “como não pensamos nisso antes?”. A medida, se de fato for
aprovada, levará os trabalhadores a um poço de comprometimento financeiro ainda maior e os banqueiros aos céus. Quem
tem um dinheirinho no FGTS, já que não tem joias e anéis para penhorar, e dedos não valem nada no mercado de capitais,
pode oferecer na penhora o Fundo de Garantia, em troca da obtenção de empréstimos bancários. A que taxa de juros,
ninguém sabe, mesmo porque a medida ainda está em fase de estudos.
Numa primeira análise, a ideia parece ser quase ótima. O trabalhador consegue um empréstimo supostamente a juros
menores que o do cartão de crédito, talvez sane suas dívidas mais caras e quem sabe até possa comprar uma coisinha aqui
e outra ali, uma vez estando reabilitado para o consumo. Mas isso é a curto prazo. Diante de riscos reais de perda de
emprego, de falta de planejamento e afundamento em novas dívidas, um pesadelo se ergue: os bancos ficarão com o FGTS
para quitar o tal empréstimo e era uma vez o recurso reserva involuntário com o qual todo mundo conta até conseguir uma
nova fonte de renda.
ABISMO
Já soa duvidoso e estranho ver governos anunciando que as pessoas empregadas podem sacar o FGTS para reconstruir
suas casas e vidas nos casos de tragédias como enchentes e desabamentos, quando, comumente, esses fenômenos
escancaram irresponsabilidades e negligência dos poderes públicos. O que dizer, então, quando o próprio governo abre
caminhos para que os bancos possam se apropriar facilmente do Fundo de Garantia para que as pessoas paguem dívidas ou
para estimular o consumo que anda à míngua? A curtíssimo prazo, esse arranjo para fazer banqueiros e trabalhadores
felizes pode até funcionar. A médio e a longo prazo, no entanto, é a receita do abismo, para o lado mais fraco da corda,
claro.
Uma medida, a criação do FGTS, implantada lá atrás para proteger trabalhadores desempregados, será transformada
numa armadilha, disfarçada de facilidades, criada pelo governo para uma falsa salvação dos mais pobres de suas dívidas, o
público alvo mais vulnerável a recorrer a esse tipo de oferta. Quanto mais pobre e endividado for ou estiver um trabalhador,
mais propício estará a vender esse seu pedacinho de futuro. Sim, todo mundo tem o direito de fazer o que quiser com o seu
dinheiro e o mesmo poderia ser aplicado ao uso do Fundo de Garantia. Mas é preciso combinar que não foi pensando na
liberdade financeira de cada um que o governo teve essa ideia. A ideia norteadora da coisa está entre o populismo
enganador e a estratégia de, mais uma vez, maquiar a economia empurrando para o consumo quem já não tem onde cair
morto
MALU FONTES é Doutora em Cultura pela UFBA, jornalista, colunista de sites e rádios e professora de Jornalismo da mesma
Universidade. Jornal CORREIO, Janeiro de 2016.
—————————————————————————————————————————————
13
Potência de pensamento: por uma filosofia política da leitura
(MÁRCIA TIBURI)
O DESAPARECIMENTO dos livros na vida cotidiana e a diminuição da leitura é preocupante quando sabemos que os
livros são dispositivos fundamentais na formação subjetiva das pessoas. Nos perguntamos sobre o que os meios de
comunicação fazem conosco: da televisão ao computador, dos brinquedos ao telefone celular, somos formados por objetos
e aparelhos. Uma filosofia política da leitura nos ajudaria a pensar em quem somos desde que somos leitores de livros.
Formas da ignorância e poder dos livros
Se em nossa época a leitura diminui vertiginosamente, ao mesmo tempo, cresce o elogio da ignorância, nossa velha
conhecida. Há, nesse contexto, dois tipo de ignorância em relação à qual os livros são potentes ou impotentes. Uma é a
ignorância filosófica, aquela que em Sócrates se expunha na ironia do “sei-que-nada-sei”. Aquele que não sabe e quer saber
pode procurar os livros, esses objetos que guardam tantas informações, tantos conteúdos, que podemos esperar deles
muita coisa: perguntas e, até mesmo, respostas. A outra é a ignorância prepotente, à qual alguns filósofos deram o nome
de “burrice”. Pela burrice, essa forma cognitiva impotente e, contudo, muito prepotente, alguém transforma o não saber em
suposto saber, a resposta pronta é transformada em verdade. Nesse caso, os livros são esquecidos. Eles são desnecessários
como “meios para o saber”. Cancelada a curiosidade, como sinal de um desejo de conhecimento, os livros se tornam inúteis.
Assim, a ignorância que nos permite saber se opõe à que nos deforma por estagnação. A primeira gosta dos livros, a
segunda os detesta.
No limite, a ignorância mal cuidada torna-se discurso e prática de vida. A educação é o cuidado da ignorância para que
ela se transforme em conhecimento. Os livros são os meios mais acessíveis para o conhecimento e que, em sua forma mais
evidente, providenciam a forma de subjetivação crítica que nos torna cidadãos. Perguntar pelas condições da nossa
cidadania, tendo em vista uma cultura que abandonou os livros, a leitura e a formação que por ela se providenciava, tornase urgente em nosso momento histórico.
O poder na sua forma violenta, se alimenta da ignorância e o ignorante se regozija quando não encontra nada que o
negue. E porque não cuidamos da ignorância, ela domina a sociedade. Ela é transmitida, ela é “propagandeada”. Os livros
são a antipropaganda, porque eles pedem mais que publicidade, eles pedem pensamento.
—————————————————————————————————————————————
14
Leitura e democracia
Há um nexo entre a ignorância como questão cognitiva e a ignorância como questão política? A ignorância filosófica
nos faz perguntar. A ignorância usada como bomba atômica contra populações inteiras na política de extermínio do
conhecimento e da ação política que dele derivaria, não nos deixa responder. A ignorância é a costura com fio de aço nos
olhos que impede de despertar para esse fato.
A construção das sociedades democráticas tem tudo a ver com a escrita e a leitura. A prática mais antiga da
democracia tem a ver com a transmissão do conhecimento. Que a democracia não sobrevive sem a transmissão da
informação pela qual os livros sempre forma os responsáveis é algo sobre o qual devemos meditar. Ora, sem os livros muita
coisa teria sido perdida. Muita coisa teria deixado de ser partilhada. A própria reprodutibilidade dos livros tem a ver com a
democracia moderna que, em seu melhor sentido, relaciona-se com a partilha do próprio conhecimento que em tudo deve à
vida dos livros.
A falta de pensamento reflexivo nos assusta e é a responsável pelo clima de embrutecimento que vivemos hoje. Essa
violência toda que se vê na televisão, essa violência que se vê nas redes sociais, no dia a dia entre as pessoas, é o sinal
mais evidente do embrutecimento que herdamos de tempos ditatoriais, em que o autoritarismo foi a regra de pensamento
que impedia as pessoas de pensar. Livros e disciplinas críticas ou simplesmente elucidativas eram proibidos. É bom saber
que todo embrutecimento é produzido pelos sistemas que usam a burrice a seu favor.
A violência que vem sendo praticada em todas as escalas. Ela não é natural. A falta de pensamento que alguns
chamam há tempos de “preguiça de pensar”, infelizmente, tem muito a ver com a brutalidade produzida também pelos
meios de comunicação que funcionam como próteses de conhecimento, que nos orientam como se nos dessem as verdades,
as explicações dos acontecimentos sociais, como se o mundo estivesse ali e fosse reduzido ao que se mostra neles. A
brutalização de nossas vidas se relaciona, por sua vez, com a falta de conversa entre as pessoas. Hoje em dia é bem difícil
entrar em diálogo. Ninguém consegue mais conversar de fato. Poucos buscam entendimento e discernimento quando
conversam. Precisaríamos criar uma cultura da compreensão, mas isso só será possível se mudarmos os rumos de nossa
subjetivação.
Ler para pensar
Para aprender a perguntar, precisamos aprender a ler. Não porque o pensamento dependa da gramática ou da língua
formal, mas porque ler é um tipo de experiência que nos ensina a desenvolver raciocínios, nos ensina a entender, a ouvir e
a falar para compreender. Nos ensina a interpretar. Nos ajuda, portanto, a elaborar questões, a fazer perguntas. Perguntas
que nos ajudam a dialogar, ou seja, a entrar em contato com o outro. Nem que este outro seja, em um primeiro momento,
apenas cada um de nós mesmos.
Pensar, esse ato que está faltando entre nós, começa aí, muitas vezes, em silêncio quando nos dedicamos a esse gesto
simples e ao mesmo tempo complexo que é ler um livro. Um livro que é sempre uma viagem vertical na qual a gente
descobre e inventa se inventa ao mesmo tempo. É uma pena que as pessoas não possam fazer isso hoje em dia porque
sucumbiram ao clima programado da cultura em que ler é proibido. Os meios tecnológicos de comunicação são insidiosos
nesse momento, pois prometem uma completude que o ato de ler um livro nunca prometeu. É que o ato da leitura nunca
nos engana. Por isso, também, muitos se afastam dele. Muitos que foram educados para não pensar, passam a não gostar
do que não conhecem. Mas há quem tenha descoberto esse prazer que é o prazer de pensar a partir da experiência da
linguagem – compreensão e diálogo – que sempre está ofertada em um livro. Certamente para essas pessoas, o mundo
todo – e ela mesma – é algo bem diferente.
Livro como meio de comunicação e forma de subjetivação
Se o livro é o mais incrível suporte dos saberes acumulados, ele também é um meio de comunicação entre pessoas,
mas também uma comunicação no tempo. Viajando na história, o livro foi o suporte dos saberes e o transmissor de
informações e tradições que conectou pessoas e épocas. Devemos a formação de quem somos como sociedade também –
e, talvez, sobretudo – aos livros que, em vasta medida, nos protegeram das inevitáveis perdas que constituem toda cultura.
A cultura foi transmitida e protegida pelos livros. Meios mnemônicos, os livros nos ligam a conteúdos passados, mas
também aos seres humanos que viveram no passado e que, assim como nós, amaram os livros, e, nesse espírito, leram,
escreveram e guardaram os livros em casas especialmente feitas para abrigá-los, as bibliotecas.
Por isso, devemos entender os livros no sentido da “medialidade”, como meios de comunicação e transmissão. Isso
coloca os livros no mesmo universo dos outros meios de comunicação, como o cinema, a televisão, o rádio, o telefone, o
computador e os mundos objetivos e subjetivos que eles criam. O livro criou um mundo próprio, o mundo dos livros, um
mundo povoado de escritores e leitores. Esse mundo é um mundo de textos, um mundo de letras e palavras. A escrita se
tornou tão essencial para a construção das sociedades democráticas que a luta por direitos se faz muitas vezes como a luta
pela educação e a luta pela educação se faz também como luta pela alfabetização. Sem alfabetização, o que se conquista
nesse mundo em que os livros vêm a ser documentos e monumentos, não há democracia no sentido inicial e essencial de
acesso aos meios. Hoje falamos de acesso a meios de comunicação e transmissão da informação como a internet, mas o
meio de acesso mais fundamental ao saber que conhecemos até hoje sempre foi o livro.
—————————————————————————————————————————————
15
Isso nos leva a pensar na questão das formas de subjetivação. Por “forma de subjetivação” refiro-me ao modo como
nos tornamos quem somos a partir da introjeção ou internalização dos conteúdos que podemos perceber. Em um mundo
cuja percepção é controlada, os meios de comunicação são instrumentos de subjetivação. São eles que atingem nossa
percepção e que podem, por sua forma de ação em nosso corpo-espírito (nosso espaço-tempo “fisioteológico”), encurtar ou
expandir nossa subjetividade. Podemos dizer que os livros são janelas ou portais, no sentido de que, por meio deles,
viajamos a outros mundos, conhecemos, nos informamos, aprendemos a articular teorias, narrativas e linguagens em geral.
O mundo dos livros forjou nossa subjetividade em todos os sentidos. O livro como “meio” implica um modo específico de
percepção que também nos constrói no sentido da forma como nos afeta.
Não se trata, portanto, apenas dos conteúdos aos quais temos acesso, mas do tipo de pessoa que nos tornamos em
função da experiência com os livros. Essa experiência diz respeito à vivência com a forma livro. Não é difícil encontrar um
escritor a dizer que, no ato de escrever, construiu a si mesmo. O que fazemos nos constrói intimamente, nossa experiência
é o efeito do que fazemos e, certamente, do que é feito de nós. Do mesmo modo, ler é um fazer e introjetamos de tal modo
esse fazer que já não somos nada sem ele.
Potência do pensamento
Não ler, nos aliena de algum modo relativamente a muitas coisas. Ler nos permite um tipo de experiência
completamente diferente do que os meios atuais altamente tecnológicos oportunizam. Por sorte, ainda que nada substitua o
códice, o livro se adapta aos novos tempos e resiste na forma de e-book. É que um livro, ainda que seja uma materialidade
bem concreta, é também um conceito que pode se realizar de várias formas. O conceito do livro não implica apenas um
tamanho. Podemos editar micro-livros, macro-livros, livros com textos, livro com imagens, mas o certo é que o livro é um
objeto que pede contemplação. Podemos escrever um livro no muro, na cidade, na pele, em muitos suportes.
Um livro é sempre um objeto de contemplação. A contemplação é o primeiro gesto reflexivo. Quando contemplo, eu
posso pensar, isso quer dizer que me torno potente para pensar. Não foi escrito até hoje um livro que não tenha provocado
ou não venha a provocar – por mais autoritário que ele possa ser ou parecer – a chance de pensar. Por isso, quando surge
um livro que promove a estupidez ou o autoritarismo, ele sempre suscita a precariedade do seu próprio conteúdo, porque o
ato de ler implica a atenção e a concentração – em uma palavra, a contemplação – que levam ao pensar no sentido da
análise e da crítica. O livro é, independentemente de seu suporte, potência de pensamento. Por isso, é como se um livro
“autoritário”, fosse uma contradição em si. Mesmo o mais autoritário dos livros é “obra aberta”. Por isso, a melhor definição
que podemos dar de um livro talvez seja essa: objeto de pensamento organizado que nos permite pensar. No entanto, qual
a especificidade do objeto livro? Ele é um objeto organizado no tempo da linguagem linear.
A experiência do livro nos coloca diante do sentido da linguagem linear. Se muitas vezes achamos que o “linear” não
nos ajuda, que a experiência da linguagem linear nos embota, é porque tendemos a esquecer que não há apenas um linear
no sentido de “achatado”, mas o linear é a experiência com a linha que se desenrola, como um novelo que de desmancha
nos permitindo tecer outro “tecido”, outro texto. No caso do leitor, esse texto sempre é primeiramente interno: o leitor
escreve um livro não escrito – que pode vir a ser escrito e publicado – ao pensar no que lê. Todos nós que somos leitores
escrevemos em nosso espírito esse livro não publicado feito com a matéria dos pensamentos suscitados pelos livros lidos e
publicados que nos chegam, com os quais desenvolvemos uma relação que é sempre “intersubjetiva”, ou seja, jamais é uma
relação de “copy-paste”, de copia-e-cola, mas é uma relação de pensamento que necessariamente expande nosso mundo
interno. Pensemos na pessoa que seríamos caso entrássemos em uma nave espacial que nos levasse muito longe por meio
de nós mesmos. Ora, o livro é a oportunidade de uma experiência desse tipo, capaz de transformar o sentido do que somos
por meio de uma presença impressionante de um objeto comum.
A experiência do livro se define também em relação ao tempo introjetado. O livro nos faz relacionarmo-nos com um
tempo que nos escapa nos demais meios. Hoje quando vemos a função de prótese que os aparelhos celulares, que a
televisão, que os computadores, tem em nossas vidas, quando percebemos que somos roubados de nós mesmos por meio
do saque de nosso tempo, o livro se torna a chance bem prática e rápida de nos devolvermos a nós mesmos.
MÁRCIA TIBURI é graduada em filosofia e artes e mestre e doutora em filosofia. É professora do programa de pós-graduação
em Educação, Arte e História da Cultura da Universidade Mackenzie, da graduação em Filosofia da Unicamp e colunista da Revista
CULT. Publicou diversos livros de filosofia, entre eles “Filosofia Pop” (2011), “Sociedade Fissurada” (2013) e “Como Conversar com
um Facista” (2015). Publicou também romances: “O Manto” (2009), “Era meu esse Rosto” (2012). Revista CULT, Janeiro de
2016.
—————————————————————————————————————————————
16
Tarifa não é dinheiro, é tempo (ELIANE BRUM)
É por recusar a brutalização da vida que manifestantes se tornam uma ameaça perigosa e são violentamente
reprimidos
TEMPO não é dinheiro. E tarifa é tempo, não dinheiro. São sobre tempo, portanto, e não sobre dinheiro, os protestos
contra o aumento das passagens do transporte público em 2016, como foram os de 2013. Se não for resgatada a potência
do que está em jogo nas ruas de São Paulo e de outras cidades do Brasil, tudo se repetirá como farsa. E a Polícia Militar
brutalizará os corpos já brutalizados pela tarifa e, principalmente, pela vida monetarizada. A vida reduzida à lógica do
capital.
Há duas linhas principais na narrativa dos protestos por parte da imprensa. Uma destaca o fato de que o aumento da
tarifa de ônibus, trens e metrô de São Paulo, de 3,50 reais para 3,80 reais, foi menor do que a inflação. A outra aponta o
“confronto” da Polícia Militar com os manifestantes para impedir a depredação e o “vandalismo” do patrimônio. Essas duas
abordagens, intimamente ligadas, aparecem como naturais, como se houvesse uma ordem “natural” que dissesse respeito à
“natureza” das “coisas como as coisas são” que precedesse a vida e a política – e também a tarifa do transporte público e a
ação das forças de segurança do Estado. São os dogmas não religiosos que mesmo uma parte da imprensa laica reproduz.
Na primeira linha narrativa está implícita a afirmação de que, se a tarifa subiu menos que a inflação, não há razão para
os manifestantes protestarem. Seria óbvio que, na ponta do lápis, é preciso que a inflação seja reposta para que o sistema
possa seguir operando. Assim, subir menos que a inflação seria uma benesse pela qual a população deveria ficar
agradecida. A afirmação embutida é de que a lógica da vida é monetária. E, principalmente, a de que tarifa de transporte
não é uma questão de política, mas de saber fazer contas.
A segunda linha narrativa transforma a Polícia Militar na principal protagonista, na medida em que as forças de
segurança do Estado decidem qual será o desfecho da manifestação – ou se vão jogar bombas de gás, disparar balas de
borracha e descer o cassetete no começo, no meio ou no fim dos protestos. Esta é a pergunta suspensa sobre cada ato
contra o aumento da tarifa. E é com “naturalidade” que isso é descrito, como se a PM fosse um corpo autônomo e como se
sua ação não dissesse respeito a uma visão de mundo nem fosse resultado de uma ordem do governador. É também como
se governador e PM não tivessem que prestar contas à população. A atuação da PM diria respeito à ordem “natural” das
coisas – e não à política. “Manter a ordem” seria uma ordem acima da ordem, sem necessidade de passar pela pergunta
obrigatória sobre que ordem é essa que se pretende manter.
Esses dogmas laicos – e os laicos podem ser piores do que os religiosos, porque escondem o que são – servem para
encobrir o que está em jogo nos protestos contra o aumento da tarifa do transporte. E, principalmente, que esse protesto
seja nas ruas e que seja sobre transporte – e não sobre outra dimensão da vida. Esses dogmas laicos servem para encobrir
que se trata de tempo – e não de dinheiro. Trata-se de patrimônio imaterial, intransferível, de cada pessoa – e não de
patrimônio material, comercializável, rentável, de corporações ou estados. Esses dogmas laicos servem para encobrir que os
protestos são políticos, sim, mas políticos no sentido profundo da política, que diz respeito a como as pessoas querem estar
com as outras no espaço público. E de como querem viver o que de mais importante têm ou tudo o que de fato têm numa
vida: tempo.
—————————————————————————————————————————————
17
Vale lembrar da frase de lembrança sempre urgente do professor Antonio Candido, um dos intelectuais brasileiros mais
importantes do século 20: “O capitalismo é o senhor do tempo. Mas tempo não é dinheiro. Dizer que tempo é dinheiro é
uma brutalidade. Tempo é o tecido de nossas vidas”. Quando se vai às ruas protestar contra 20 centavos, como em 2013,
ou contra 30 centavos, como agora, em 2016, não é “só” sobre 20 ou 30 centavos. Ainda que seja também, o protesto é
principalmente sobre algo que, ainda que o capitalismo bote preço, escapa do capitalismo. Não existe uma “natureza”
inerente ao tempo que diga que ele tem preço. Existe política e cultura, existe criação humana.
É de política que se trata quando se protesta contra a apropriação do tempo. A lógica dos protestos é a de que tudo
pode se mover, porque cultura e porque criação humana. É também a lógica do possível, não do já cimentado. Assim, a
lógica dos protestos não se sujeita a dogmas. Ela se sujeita ao sujeito. E o sujeito, quando sujeitado, objeto se torna. É essa
a conversão feita pela lógica da monetarização e pela lógica da brutalização dos corpos pela PM: reduzir o sujeito a objeto
para que nada se mova. Para impedir que isso se repita como farsa, é necessário reafirmar a gestão do tempo como uma
experiência da política.
Pesquisas que relacionam quantidade de tempo de trabalho e valor monetário da tarifa, como a realizada pelos
economistas Samy Dana e Leonardo Lima, da Fundação Getúlio Vargas, são importantes. Em São Paulo, uma pessoa
precisava trabalhar, em 2015, cerca de 13,30 minutos para pagar a passagem. Já em capitais que costumam ser admiradas
e elogiadas como o melhor do capitalismo, onde os serviços de transporte público apresentam qualidade reconhecidamente
melhor, as tarifas são mais baixas e até muito mais baixas: Londres (11,30 minutos), Madri (6,20 minutos), Nova York (5,80
minutos) e Paris (4,50 minutos).
A exposição da discrepância dos valores monetários, provando que é possível ter uma tarifa bem menor mesmo em
países capitalistas, é fundamental para começar a desconstruir as contas e revelar o material que nelas está embutido, para
muito além da reposição da inflação. É essencial para fazer as perguntas mais complicadas, aquelas necessárias para a
compreensão de por que no Brasil há uma tarifa tão cara para um serviço tão péssimo. Mas talvez o mais importante desse
tipo de pesquisa seja chamar a atenção para o elemento principal, o tempo. Vale a pena destacar o fato de que uma parcela
das pessoas trabalha mais de 13 minutos em São Paulo para pagar uma única passagem de ônibus ou trem para alcançar o
local de trabalho. Para a ida e a volta é quase meia-hora de vida. E muitos pegam mais do que um ônibus e um trem para a
ida e para a volta, engolindo mais vida. E isso sem contar o tempo médio que cada um leva neste percurso, às vezes horas.
De vida. Também vale a pena lembrar que, para o lazer, falta.
Me refiro a pessoas – e não a “trabalhadores” – para não reduzir a larga dimensão de uma existência a trabalho ou à
monetarização dos corpos. Assim, esse tipo de pesquisa serve para lembrar não que tempo é dinheiro, mas justamente a
negação dessa monstruosidade: tempo não é dinheiro. É isso que os manifestantes contra a tarifa lembram a todos ao
ocupar as ruas. Mas sua voz é encoberta pelos dogmas laicos. Que, como todo dogma, recusam qualquer dúvida.
Quando a voz é encoberta, a política e a possibilidade de mudança são caladas. Pela força, como se vê. O papel
reservado à PM é justamente o de manter uma ordem ordenada por aqueles que detêm o poder de dizer qual é a ordem
que vale. De sujeitos da sua ação política, do seu verbo, os manifestantes são reduzidos nas ruas a objetos da ação de um
outro, que conjuga o verbo silenciar usando o estrondo das bombas. E assim impede o debate sobre o transporte como um
direito social, recentemente incluído na Constituição, mas ainda não expresso na prática cotidiana.
Aqueles que defendem a tarifa zero, como o Movimento Passe Livre (MPL), principal articulador dos protestos de 2013
e de 2016, acreditam que não é o usuário que deve pagar individualmente pelo serviço, mas o conjunto da sociedade, para
que todos tenham acesso ao direito de ir e vir. Como acontece, costuma lembrar o engenheiro Lúcio Gregori, secretário de
Transportes na gestão de Luiza Erundina, na coleta de lixo, na educação e na saúde, entre outros exemplos, com melhores
ou piores resultados. Acontece porque a sociedade entende que é importante garantir o acesso a todos. Há várias propostas
circulando de como isso poderia ser implementado, mas esse debate é obscurecido e seus interlocutores reprimidos.
A tarifa zero é controversa? É. Como tudo o que pertence à esfera da política. Talvez menos controversa do que a ideia
de um serviço essencial estar submetido à rentabilidade dos empresários do ramo. Mas, qual é a ameaça tão grande à
ordem e aos dogmas, que não é possível sequer levantar um cartaz pela tarifa zero sem levar bomba de gás ou um
cassetete na cabeça ou no lombo? Essa é a pergunta óbvia que qualquer um deveria fazer antes de sair defendendo a
repressão aos manifestantes ou dizendo que a tarifa zero é irreal. Numa democracia não há nada que não possa – ou
mesmo deva – ser debatido pela sociedade. Numa democracia o único imperativo acima de qualquer discussão é este: a
obrigação legal e ética de dialogar sobre tudo. Neste caso, dialogar antes de impor um aumento de 30 centavos.
Dialogar não é uma escolha para governantes eleitos, como o governador de São Paulo, Geraldo Alckmin (PSDB), e o
prefeito de São Paulo, Fernando Haddad (PT). Ambos perdem sua legitimidade se não dialogam com os múltiplos atores da
sociedade dentro do sistema que os elegeu. É a obviedade seguidamente esquecida de que o poder não lhes pertence, foi
apenas a eles delegado pelo voto. Que Alckmin e Haddad, que representam PSDB e PT, estejam juntos nessa empreitada do
aumento da tarifa sem o necessário diálogo com a sociedade sobre como se mover em São Paulo é mais uma prova da
corrosão da política partidária, com a crescente perda de sua capacidade de representação. O fato de que Haddad, um
prefeito que tem ousado na mobilidade urbana, enfrentando a rejeição de setores das classes média e alta paulistanas,
esteja ao lado de Alckmin, um governador conservador que costuma reclamar que os movimentos são políticos, como se
pudessem ser qualquer outra coisa, estejam alinhados no aumento da tarifa, embora não na violência da PM, revela o
quanto esse tema é espinhoso. Mais um motivo para ser debatido – e não o contrário.
—————————————————————————————————————————————
18
É necessário prestar atenção às palavras usadas para narrar os protestos. “Confronto”, por exemplo, pressupõe forças
semelhantes, e pressupõe que essas forças semelhantes ocupam um mesmo lugar simbólico. Quando usado em discursos,
títulos e textos da imprensa para descrever os protestos e a ação da PM, esse termo pode estar a serviço do apagamento de
uma dimensão fundamental dessa relação: os manifestantes são cidadãos exercendo seu direito de protesto e as forças de
segurança do Estado deveriam estar protegendo esse direito. Apaga-se assim o fato de que é de normalidade democrática
que deveria se tratar – e não de um lado e de outro lado, como se fosse uma guerra e se tratasse de inimigos.
Nas vezes em que isso é questionado, ouve-se frases como a do governador Geraldo Alckmin (PSDB), esquecendo-se
subitamente de que elogiou a PM que espancou adolescentes nas manifestações contra a “reorganização escolar”:
“Manifestação legítima e pacífica é positivo, é nosso dever acompanhar e dar segurança. Outra coisa é vandalismo seletivo”.
Para justificar que a polícia que comanda violou a lei ao jogar bombas e disparar balas de borracha contra manifestantes, é
usual sacar da manga do terno uma outra expressão: a “manifestação pacífica”.
Essa expressão contém pelo menos dois pontos sobre os quais vale a pena refletir. O primeiro é que, mesmo que uma
pequena parte dos manifestantes deprede o patrimônio, isso não autoriza a PM a abusar da força. É para fazer melhor que
isso que ela deveria ser treinada, já que não se trata de uma gangue de rua, mas das forças de segurança do Estado. Que
parte da sociedade tolere e seguidamente aplauda que a PM atue como uma gangue de rua, truculenta e despreparada, é
preocupante.
O outro ponto, e este é mais insidioso, é o de insinuar que conflito é algo negativo. O espaço público, como tão bem
disse o arquiteto Guilherme Wisnik, é um lugar de conflitos: “O grande atributo da esfera pública é mediar o conflito, porque
a sociedade, em si, é conflituosa. A ideia de um espaço sem conflitos é ideológica, uma pacificação irreal. Quando um
espaço público não tem conflito é porque ele não está cumprindo sua função”.
Quando os manifestantes vão às ruas levantando a bandeira da tarifa zero estão em conflito com a visão de setores
dos governos e da sociedade que defendem ideias opostas. Tentar apagar os conflitos, sem enfrentá-los com debate e com
escuta, como historicamente o Brasil fez em temas como o racismo, leva a uma “pacificação” que todos sabemos falsa. É o
“confronto” – e não o conflito – que pressupõe inimigos a serem esmagados, espancados com golpes de cassetete e
intoxicados com gás.
É preciso prestar mesmo muita atenção às palavras antes de reproduzi-las ou de assumir um discurso que pode ser o
mesmo do opressor. Quando os manifestantes “param” ruas de São Paulo, eles não estão parando. Ao contrário. Eles estão
andando nas ruas de São Paulo. Movendo-se. Quando “interrompem” o tráfego, eles não estão interrompendo. Os carros
param para que as pessoas andem. Movam-se. É exatamente para que não se movam que a PM “encurrala” e “cerca”,
“reprime” com bombas de gás, balas de borracha e cassetete. É exatamente para que não andem que a PM “detém” ou
“prende” ou “imobiliza” manifestantes que depois são soltos porque não há nem nunca houve justificativa legal para detê-los
ou prendê-los ou imobilizá-los. A grande subversão, afinal, é andar. Mover-se. É preciso impedir que andem para que nada
se mova “na ordem natural das coisas”.
Para que serve a PM com seu aparato de guerra? Para controlar os corpos com golpes de cassetete, balas de borracha
e bombas de gás e manter o mover-se como valor meramente monetário. Para impedir que as pessoas perguntem por que
não podem andar. A PM está lá para proteger o “patrimônio”. Mas não o patrimônio humano, este é barato na lógica da
monetarização: mais de 13 minutos de vida para pagar uma passagem de ônibus. Os corpos dos que querem andar podem
ser espancados, intoxicados, violados porque a vida humana, pelo menos a da maioria, tem valor baixo. O que não pode é
“depredar” o patrimônio de fato caro, o material.
A PM vandaliza pessoas para proteger patrimônio. Mas o discurso é perversamente invertido para que os “vândalos”
sejam os que quebram cimento, vidro e ferro e não os que perfuram carne humana. Se seguidas vezes a PM vandaliza
manifestantes antes de qualquer depredação do patrimônio, é possível pensar que isso acontece tanto porque a PM está a
serviço de produzir “vândalos” e “confronto”, para encobrir a reinvindicação das ruas no noticiário, quanto pelo fato de que
o patrimônio que ela de fato está protegendo 24 horas por dia é o do status quo, e este está ameaçado desde que o
primeiro manifestante bota o pé na rua.
Vandalizar pessoas em nome da defesa do patrimônio é a ordem para manter a ordem de que gente vale pouco. A
tarifa é cara justamente porque a carne humana é barata.
A insubordinação dos que andam, a que a PM é instada a reprimir, é a de dizer que seu tempo tem valor – e este valor
não é meramente monetário. É essa a rebelião que precisa ser esmagada antes que avance pelas ruas. O movimento a ser
interrompido pela força, antes que interrompa o trânsito dos privilégios, é aquele que lembra que tempo não é dinheiro,
mas o tecido da vida. É aquele que reivindica o tempo “para os afetos, para amar a mulher que escolhi, para ser amado por
ela, para conviver com meus amigos, para ler Machado de Assis”. Passaremos.
ELIANE BRUM é jornalista, escritora e documentarista. Ganhou mais de 40 prêmios nacionais e internacionais de reportagem. É
autora de um romance – “Uma Duas” – e de três livros de reportagem: “Coluna Prestes – O Avesso da Lenda”, “A Vida Que
Ninguém Vê” (Prêmio Jabuti 2007). Site: desacontecimentos.com. Site do Jornal EL PAÍS (http://brasil.elpais.com), Janeiro
de 2016.
—————————————————————————————————————————————
19
Eu não creio no amor
(LUIZ FELIPE PONDÉ)
CALMA! Eu sei que essa afirmação é um horror. Ainda mais no começo de um ano em que buscamos pensar (com
razão) coisas boas e construtivas. Vou dar o contexto em que esta afirmação ("eu não creio no amor") se insere, ok? E ai
você pode tocar sua semana mais ou menos em paz.
Mas, antes, um reparo. Alguém poderia indagar, e com razão, afinal de contas qual o motivo de eu achar que uma
simples afirmação como esta ("eu não creio no amor") num jornal, poderia causar mal-estar num leitor. Fácil responder:
porque hoje, miseráveis do afeto como somos, fingidos e corretos como somos, qualquer frase um pouco mais forte pode
causar "indignação".
Ai vai o contexto prometido: é comum se afirmar, na esteira de John Lennon (e sua música "Imagine") e de um Jesus
"baratinho" que, se crermos no amor, tudo dará certo. No campo do diálogo entre as religiões, principalmente em época de
Natal, afirmar que "todas as religiões creem no amor" é um excelente marketing. Mas, infelizmente, não é verdade.
Nenhuma religião "crê" no amor, se essa "crença" significar o motor do seu comportamento histórico, social e político.
Mesmo a tal "economia solidária" funciona até a página três ou apenas quando está em jogo troca de apartamentos e
de bikes nas férias. Costumo dizer que basta um inventário de um apartamento na Praia Grande pra acabar com ideias
como essa. O amor familiar, normalmente, não resiste a um inventário com sangue nos olhos.
Pois bem. Imagine se uma dessas grandes religiões traria "o amor" para negociação de alguma de suas propriedades.
Se tiver tempo, se informe sobre os "acordos" entre as diferentes denominações cristãs ao redor dos lugares sagrados mais
importantes da terra de Israel. Você duvidaria rapidamente de mensagens sobre "crer no amor". Ou experimente entrar
numa disputa com alguma instituição religiosa ao redor de algum terreno ou similar. A última coisa que você verá é o tal do
"cremos no amor" na mesa de negociações. E o que achar de "judeus e árabes têm o mesmo Deus"?
Mas, todavia, vale dizer que "crer no amor" tem sim algum valor. Sapiens são animais que sim precisam "crer no amor"
em algum nível, assim como precisam respirar. O trágico é, justamente, que nossa necessidade de "crer no amor" é
verdadeira. Agora, que essa necessidade tenha validade de fato na vida real permeada por carne e sangue, é outra coisa. O
pensamento sim pode ser uma atividade triste muitas vezes. Mas, isso não sou eu só que penso. Vejamos.
Estava eu vagando pela rua Garrett em Lisboa quando topei na livraria Bertrand com um pequeno livro excepcional do
crítico literário George Steiner (um daqueles críticos que enfrentavam os autores sem a parafernália cretina de teorias
literárias contemporâneas que nada significam de fato). O livro se chama "Dez Razões (Possíveis) para a Tristeza do
Pensamento", editora Relógio D' Água, Lisboa. Devorei o livro num café, tomando Porto e fumando cubanos. Sim, em Lisboa
ainda existem lugares civilizados em que você pode ler e fumar em paz sem que um fascista da saúde corte sua cabeça
como se você fosse um herege contra o Estado Islâmico.
Steiner discute no livro a afirmação do filósofo alemão F.W.J. Schelling (1775-1854) segundo a qual, toda
personalidade, todo pensamento humano, se ergue a partir de um fundamento sombrio, uma melancolia profunda que deve
ser enfrentada a cada dia (palavras de Schelling em sua obra "Da Essência da Liberdade Humana" de 1809).
Qualquer alegria verdadeira, qualquer personalidade de fato, só se sustenta a partir dessa consciência sombria das
incertezas, das contingências e das contradições que o pensamento maduro exige de qualquer um de nós. Viver é enfrentar
isso. É assim que Steiner interpreta a "raiz sombria da personalidade" da qual fala o romântico Schelling. Nada mais distante
da "crença no amor" que sustenta a miséria do afeto barato de nossos dias.
Como dizia o Conde De La Rochefoucauld no século 17, amor verdadeiro é como espírito, todo mundo diz que existe,
ninguém nunca viu.
LUIZ FELIPE PONDÉ é filósofo, escritor e ensaísta, doutor pela USP, pós-doutorado em epistemologia pela Universidade de Tel
Aviv, professor da PUC-SP e da Faap, discute temas como comportamento contemporâneo, religião, niilismo, ciência. Autor de
vários títulos, entre eles, 'Contra um mundo melhor' (Ed. LeYa). Jornal FOLHA DE SÃO PAULO, Janeiro de 2016.
A vida pede coragem (ROSELY SAYÃO)
O FILHO de uma leitora, com nove anos, já retornou para a escola. Depois dos primeiros dias, passou a chorar antes
de ir. O motivo? Ele diz que os colegas não gostam mais dele. Ele continua a frequentar a mesma escola e sua classe é
quase igual à do ano passado, apenas com alguns colegas diferentes, transferidos de outras escolas e cidades. Essa mãe
está agoniada porque diz que ele sempre foi querido pelos colegas, e pergunta se deve procurar outra escola. Que
sofrimento de mãe e filho!
Vamos tentar entender essa questão, já que inúmeras mães, e pais também, têm se angustiado com questões muito
semelhantes à essa, ou seja, com o que eles consideram a rejeição, a exclusão ou o isolamento sofrido pelo filho por parte
de colegas, tanto de escola quanto da vizinhança. Temos supervalorizado o que chamamos de socialização dos filhos, em
detrimento de outros aspectos da vida deles aos quais poderíamos -e deveríamos- dar mais atenção por serem bem mais
importantes do que o primeiro.
—————————————————————————————————————————————
20
Desenvolver recursos para saber se defender dos obstáculos que a vida apresenta, ter uma autoimagem firme o
suficiente para suportar situações de rejeição e o desenvolvimento do processo da autonomia são alguns desses aspectos.
Caro leitor, precisamos aceitar: não há um único dia na vida de cada um de nós em que não sejamos recusados por
alguém, rejeitados ou excluídos, por pessoas ou de situações. E nem sempre sabemos disso, não é? Se assim é, qual a
melhor fase da vida para aprender a aceitar, reconhecer e suportar esses tipos de situação, mantendo-se inteiro, do que a
infância e a adolescência? Quando não aceitamos essas situações da vida, nos tornamos frágeis, presas fáceis de pessoas
que gostam de manipular, seja por prazer de exercer o poder ou por interesses pessoais, e desistimos com facilidade de
projetos importantes da vida. Tudo isso é o oposto da resiliência, tão pouco falada por educadores e menos ainda
estimulada nos mais novos. E já sabemos da importância de colaborar para o desenvolvimento da resiliência na formação de
crianças e jovens.
Quando uma criança percebe pela primeira vez que é rejeitada ou excluída de uma situação pelos colegas, ela sofre.
Normal, tanto para ela quanto para um adulto que passa por isso. Mas, quando ela sente que os pais sofrem por causa
desse sofrimento dela, fica mais difícil para ela superar as emoções que a rejeição suscita. Tudo do que ela precisa nesses
momentos é do apoio e do encorajamento dos pais para enfrentar melhor esse tipo de situação. E o que ela recebe junto
com essa atitude dos pais é uma grande lição, que vai apreendendo aos poucos: a de que a vida nem sempre é amigável
para nós, nem sempre é tão justa quanto somos, tampouco costuma retornar na mesma medida nossas atitudes.
Educar não é proteger a criança daquilo que ela pode e consegue fazer. Cuidar, elemento precioso da educação, é
diferente de proteger: é formar para a vida, apoiar o filho nas situações difíceis e duras com as quais ele se defronta,
encorajar para que siga em frente, mesmo e inclusive em situações de sofrimento. Não é isso que a vida exige? Vale aqui
lembrar uma frase de Guimarães Rosa: "O que ela (a vida) quer da gente é coragem".
ROSELY SAYÃO é psicóloga, consultora em educação e articulista do programa “Seus Filhos” da Rádio BandNews FM, fala sobre
as principais dificuldades vividas pela família e pela escola no ato de educar e dialoga sobre o dia-a-dia dessa relação. Jornal
FOLHA DE SÃO PAULO, Janeiro de 2016.
Culpas e regras
(CONTARDO CALLIGARIS)
ASSISTI a "Carol", de Todd Haynes. Cate Blanchett, no papel de Carol, foi indicada ao Oscar de melhor atriz, e
Rooney Mara, no papel de Therese, ao de melhor atriz coadjuvante. O filme, aliás, recebeu seis indicações ao Oscar 2016 –
entre elas, melhor roteiro adaptado, do romance "The Price of Salt" ("Carol", no Brasil), de Patricia Highsmith, de 1952. Ao
menos Rooney Mara deveria ganhar a estatueta, mas talvez minha capacidade crítica seja comprometida pelo charme de
Therese. Enfim, vou evitar spoilers e ficar com as reflexões que alegraram meu domingo, na saída do cinema.
1) "Carol" conta uma história de amor entre duas mulheres. Não é a história de um amor "homossexual": o
encantamento recíproco de Carol e Therese não supõe que fossem ou sejam homossexuais. Talvez elas venham a ser
depois desse amor. A história é escandalosa justamente por isso. Não há como assistir tirando o corpo (ou a alma) fora,
declarando que, sei lá, "isso não vai acontecer comigo porque eu não sou homossexual". O amor e o desejo são terrenos
movediços: quase sempre, a gente se encanta por outros do mesmo sexo dos que costumamos namorar, mas, em "quase
sempre", o acento é sobre o "quase".
2) Para discriminar, basta supor que a peculiaridade do outro tenha algum tipo de "causa" –psíquica ou física–,
enquanto a conduta da gente não precisaria de causa alguma (justamente, por não ser uma "peculiaridade"). A etiologia é o
último bastião do preconceito: como tem mais héteros que homos, então a homossexualidade deve ter uma "causa". A
heterossexualidade não precisa. É uma discussão furada: "a" homossexualidade e "a" heterossexualidade não existem; só
há singularidades sexuais, que todas têm causas variadas, nenhuma sendo mais "natural" do que a outra.
3) Na época de Carol e Therese (anos 1950), em Nova York, um amor homossexual poderia ser considerado imoral por
um tribunal. Hoje, em tese, nossa Justiça fugiria desse tipo de apreciação, embora ainda haja boa chance de um juiz ou
uma juíza medir a sexualidade dos outros com uma bitola –e que essa "medição" pese na hora de ele ou ela julgar Mas, de
certa forma, tanto faz. Regra sem muita exceção: a repressão externa é quase impotente se ela não for sustentada pela
culpa interna.
Se eu não me culpo pelos desejos ou pelos amores que sinto e que parecem "dissonantes", a lei ou os costumes
podem muito pouco na inibição do meu comportamento (amoroso e sexual, no caso). No movimento gay entre os anos
1960 e os 1980, a estratégia de "coming out" (de se revelar ou se desmascarar) não era tanto uma provocação contra uma
sociedade repressora quanto uma declaração pública para acabar com a culpa interna. Sem a culpa interna e a vergonha
que ela produz, o poder de uma lei repressora é mínimo –ele acaba valendo apenas como um exercício de força, sem
autoridade simbólica. A culpa, em suma, não é o efeito de nossas transgressões da regra social. Ao contrário, a regra social
aproveita a culpa para poder se impor. Ou seja, a culpa interna é uma condição, não um efeito, da repressão.
Em outras palavras ainda, minha culpa e minha vergonha servem para instituir e sustentar a regra que parece (mas só
parece) motivá-las. Como em "O Processo", de Kafka: primeiro sinta-se culpado, logo lhe diremos de quê. Há os casos em
que a culpa interna e a repressão que ela permite são necessárias para o convívio social –por exemplo, para que a gente
não se mate em cada esquina. Mas, em geral, o que acontece é que nossa neurose média nos leva a oferecer nossa culpa
—————————————————————————————————————————————
21
como um sacrifício aos deuses da cidade, como se nós estivéssemos sempre pedindo: "Me reprimam, por favor". É isso,
aliás, que confere um extraordinário poder aos psicopatas entre nós –sejam eles assassinos ou meros ladrões de galinhas.
Nós nos sentimos culpados por fazer o que sequer é proibido. E os psicopatas não sentem culpa sequer para fazer o que é
proibido.
Continua valendo uma famosa frase de Albert Camus em um encontro internacional de escritores, em 1948: "Vivemos
numa época em que os homens, empurrados por ideologias ferozes e medíocres, acostumam-se a ter vergonha de tudo.
Vergonha deles mesmos, vergonha de serem felizes, de amar e de criar ("¦). Em suma, é preciso se sentir culpado. Somos
levados à força ao confessional laico, o pior de todos".
CONTARDO CALLIGARIS é psicanalista, doutor em psicologia clínica e escritor. Ensinou Estudos Culturais na New School de NY
e foi professor de antropologia médica na Universidade da Califórnia em Berkeley. Reflete sobre cultura, modernidade e as
aventuras do espírito contemporâneo (patológicas e ordinárias). Jornal FOLHA DE SÃO PAULO, Janeiro de 2016.
Perseguidos e refugiados, o que isso nos lembra?
(JACK TERPINS)
"VOCÊS não afligirão nem oprimirão o estrangeiro, porque o foram na terra do Egito"- Êxodo 22:20. Esse trecho
afirma que ninguém deve ser considerado forasteiro ou estranho onde viverá. Nós, judeus, peregrinamos até chegar à Terra
Prometida. Como e inúmeras vezes nos foi negado o direito de viver em um pedaço de chão? "Escravos fomos do faraó no
Egito, agora somos homens livres", repetimos ano após ano, em nossa Páscoa.
No Holocausto, seis milhões de judeus pereceram e também, homossexuais, membros de outras fés, comunistas, quem
não ia ao encontro dos interesses da máquina de morte nazista. Setenta anos transcorreram desde então, e ainda,
perplexos, assistimos esse tipo de episódio. Lembrem-se a chocante cena do sírio Aylan, de 3 anos, que ao tentar alcançar à
União Europeia, morreu na costa turca junto com os sonhos de sua família. E, vítimas, também, de perseguição,
jocosamente, a publicação Charlie Hebdo desdenha o episódio.
De volta ao tema, os imigrantes de onde a perseguição religiosa, fome, e violência tornaram-se insuportáveis buscam
ajuda internacional, e acabam esbarrando, muitas vezes em condições subumanas. Tivemos vistos negados, bens (materiais
e emocionais) usurpados, vidas confiscadas pelo fato de sermos judeus ou descendentes deles. O mundo, ou boa parte
dele, silenciou! Há registros desse período pela coragem dos que ousaram documentar e até mesmo porque na cabeça dos
nazistas, era preciso gravar com precisão seus "feitos".
Com o advento das redes sociais e outras mídias as informações trafegam em tempo real, logo é inconcebível se omitir
ou ser um mero espectador dessa nova barbárie. Essa é a pior crise de refugiados desde a 2ª Guerra, cerca de 60 milhões
de pessoas em todo mundo se encontram deslocadas devido a conflitos armados e perseguição de diferentes tipos,
sobretudo motivadas pela questão religiosa, o que fere o artigo 18 da Declaração Universal dos Direitos Humanos ("todo
homem é livre para pensar, ter consciência e religião, com liberdade para mudar de religião ou manifestá-la de forma
coletiva ou isoladamente"). Mas, não é preciso uma lupa para enxergar o que gerou esse colapso em distintos países.
Na ponta do iceberg, a Síria, com a fragmentação de forças do governo e núcleos insurgentes, abriu espaço para que
radicais agissem. O Afeganistão teve quatro grandes ondas migratórias (invasão soviética, guerra civil, regime do talibã, e a
intervenção militar após o 11/9), reforçando a presença do talibã. A Eritreia, após conquistar sua independência em 1993, se
tornou reconhecida por sua forte repressão e recrutamento militar sem previsão para o término do serviço. Na Somália, a
fome é permanente e as milícias radicais se instalaram, e por aí vai.
Mazelas são recorrentes e dão vazão ao apoderamento de extremistas. O êxodo acaba sendo a única saída para que
essas populações continuem existindo. Na contramão desse fluxo migratório, há os mal-intencionados que provocam o
terror em nome de uma santidade autoproclamada salvadora. O resultado de tudo isso é que muitos governos não estão
preparados para receber tamanha massa humana; outros tendem a proibir a entrada visando "se protegerem" e, ainda,
ressurge a xenofobia. Repete-se a história.
O Brasil tem recebido imigrantes. A União Europeia tenta acolher esse montante. Mas, no geral, vemos barracas,
trapos, fome e falta de condições para abrigar a todos. Alguns países fecham suas fronteiras para barrar "os indesejáveis".
O que tudo isso nos lembra? O Dia Internacional em Memória às Vítimas do Holocausto é uma boa oportunidade para
refletirmos sobre isso!
JACK TERPINS é presidente do Congresso Judaico Latino-Americano. Jornal FOLHA DE SÃO PAULO, Janeiro de 2016.
Mundo ogro
(MARCELO COELHO)
PELA experiência que tenho em casa, nem mesmo os videogames (esqueça a televisão e o cinema) ocupam a maior
parte do lazer entre os pré-adolescentes. Eles se divertem mesmo é com o YouTube. Ignoro, na qualidade de pai, os vídeos
de conteúdo sexual. O que me é permitido acessar, fora as filmagens esportivas, tem a comida como tema. E nunca pensei
que pudesse ficar chocado com programas a esse respeito.
—————————————————————————————————————————————
22
Começo pelos casos menos graves. O canal "Ana Maria Brogui", por exemplo, ensina os mais jovens a produzir na
própria cozinha réplica de tudo o que as mães abominam em termos de alimentação. Sonhos de Valsa caseiros, Kit Kats
gigantes feitos com wafer comprado pronto e chocolate derretido e até uma Fanta Uva artesanal têm seus segredos
revelados pelo simpático Caio Novaes, um careca barbado não tão gordo quanto poderia ser.
Um milhão e meio de seguidores aprendem a fazer esfirras folhadas de chocolate com M&Ms, ou o "melhor sanduíche
de linguiça do mundo", que Novaes apresenta num didatismo sem escândalo. Com esse canal, estamos ainda no mundo da
realidade prática, se bem que no limite daquilo que se possa recomendar como inofensivo.
As coisas pioram muito com a turma do "Epic Meal Time", outro campeão de audiência do YouTube (quase 7 milhões
de seguidores). Três ogros barbados, com cara de pouquíssimos amigos, oferecem verdadeiras aberrações culinárias. A
pizza de cheesebúrguer, por exemplo. É um edifício de vários andares, tendo por base um disco de pizza de um palmo de
altura, recheado de carne moída, em cima do qual se monta uma camada de carne, bacon e queijo do tamanho de dois
dicionários Aurélio.
Por cima, cheesebúrgueres inteiros, com fatias de salaminho e muito queijo para decorar. Cobre-se tudo com outra
camada de massa. Num canto da tela, um contador de calorias vai girando em velocidade de foguete. O mestre-cuca, um
ostrogodo de olhos tristes, não parece precisar dos outros dois ajudantes, postados a seu lado como guarda-costas ou
acólitos de algum culto radical. Quando a maçaroca está terminada, entende-se a razão de estarem ali: vieram para comer,
não para conversar. O espectador se inquieta a cada mordida furiosa. Será que tudo não se despedaça ao primeiro ataque?
Não. Provavelmente o alimento é tão compacto, tão grudento sob a força do próprio peso, que nem mesmo a pressão
daquelas mandíbulas de animal poderia desintegrá-lo. Em "Homens, Mulheres e Filhos", filme de Jason Reitman, há cenas
assustadoras a respeito do que os adolescentes podem encontrar na internet. Pode-se acompanhar, por exemplo, a
anorexia de uma jovem, fechada no quarto enquanto troca mensagens com suas companheiras de doença. O pai aparece
com o jantar no prato. O computador ensina: cheire a comida, enquanto mastiga um salsão. Depois, jogue a refeição na
privada.
De alguma forma, um canal como "Epic Meal Time" serve como complemento para o fenômeno da anorexia entre as
adolescentes. É a pornografia da comida, que se baseia, como a outra, no tabu e na repressão. Talvez tenha algo a ver com
masculinidade também. Antigamente, as mães insistiam para que os filhos comessem bastante. Hoje, preocupam-se com o
inverso. O rebelde careca e tatuado desprezará qualquer preocupação estética ou metabólica. Sua macheza, como sempre,
está em emancipar-se da mãe sem nunca perdê-la de vista; introjeta-a, a golpes de leite condensado e chocolate derretido.
Chegamos a "How to Basic". O canal do YouTube, teoricamente, também se propõe a ensinar uma receita. No começo,
tudo é feito com método e minúcia. Mas logo o protagonista do filminho perde a paciência. Joga os ovos com casca e tudo
na tigela; derruba quilos de farinha dentro da embalagem; usa um martelo para mexer a massa; termina quebrando a
bancada e o fogão.
A revolta, aqui, é contra a ideia de que algo possa ser aprendido. Quebra-se o computador, ignora-se a receita e a
fome. O ogro, antes positivo na sua capacidade de absorver o mundo, não pode mais com nada. Faz uma sujeira
indescritível na cozinha: talvez queira desintoxicar-se de tantos desejos, de tanta oferta, de tanta informação na internet. A
anorexia surge como um protesto silencioso e suicida diante do mesmo problema; outros preferem o desperdício, o
vandalismo, a hecatombe entre quatro paredes.
MARCELO COELHO é articulista da Folha de São Paulo desde 1984. Fez mestrado em Sociologia pela USP e publicou, entre
outros livros, 'Gosto se Discute' (Ática, 1994), 'Jantando com Melvin' ([ficção] Imago, 1998) e 'Montaigne' (série Folha Explica,
Publifolha, 2002). Jornal FOLHA DE SÃO PAULO, Janeiro de 2016.
Literatura portuguesa naufraga no Brasil
(FLORA BENDER GARCIA e JOSÉ RUY
LOZANO)
A PROPOSTA beira o absurdo. O Ministério da Educação, por meio do documento intitulado Base Nacional Comum
Curricular, elimina a obrigatoriedade do estudo da literatura portuguesa, como se, até hoje, ela tivesse sido desnecessária à
educação dos jovens que conseguiram terminar o ensino médio.
Desde a primeira proposta da reforma ortográfica agora vigente, o governo brasileiro argumentava a favor da
padronização linguística, dadas as afinidades culturais e a unidade em torno da língua dos países de fala e escrita
portuguesa. A lusofonia, afinal. Falamos o mesmo idioma? Então somos irmãos. Linguistas, literatos, gramáticos,
historiadores, intelectuais em geral não foram convidados ao debate. E hoje ocorre o mesmo com a discussão da base
curricular. Quem elaborou as atuais propostas? Ninguém sabe, ninguém viu.
O projeto do MEC para o ensino da literatura nesse segmento apresenta inovações, já adotadas por alguns colégios
menos formalistas, como a inversão temporal da sequência da história literária: os alunos do primeiro ano leriam autores
contemporâneos e, nas séries seguintes, mais maduros e preparados, teriam contato com obras de períodos anteriores.
Também louvável é a ênfase ao estudo da contribuição dos países africanos de língua portuguesa e à cultura dos povos
indígenas.
—————————————————————————————————————————————
23
Como, porém, apagar Europa e Portugal de
nossas origens? Tirando do mapa? Surgiram
artigos, nem todos contundentes, sobre a base
curricular, mais focados, porém, na área de
história –e um tantinho na linguagem, na norma
dita padrão e na gramática. O resto é silêncio.
É difícil imaginar uma justificativa para a
discriminação da cultura europeia e da literatura
portuguesa. Será que, mais uma vez, a seleção
de conteúdos foi contaminada por um viés
político e ideológico anacrônico?
Já que Portugal teria sido uma metrópole
colonialista europeia que explorou as riquezas de
suas colônias e escravizou populações negras e
indígenas na América e na África, agora seria o
momento de dar voz à cultura dos oprimidos, em
detrimento da Europa elitista e opressora.
Escritores lúcidos e críticos ao processo
político
colonizador
lusitano,
como
os
portugueses José Saramago e António Lobo
Antunes, não poderiam ser estudados por não
serem africanos, tal qual o moçambicano Mia
Couto.
A Base Nacional Comum Curricular cobre
apenas um rol mínimo de informações e
conceitos obrigatórios, a serem complementados
com outros tantos conteúdos de cunho eletivo ou
facultativo. Mas deveria o estudo da literatura
portuguesa ser opcional? Camões e Fernando
Pessoa, sem falar do Padre Antônio Vieira e de
Eça de Queiroz, dependem agora do gosto e/ou
da escolha de colégios ou professores?
Como compreender a cultura popular
nordestina, suas canções, seus repentes, seus
cantos de aboiar, sua literatura de cordel, sem
reconhecer a presença da literatura medieval da
Península Ibérica, em particular as cantigas
trovadorescas e as novelas de cavalaria?
E "Morte e Vida Severina", de João Cabral
de Melo Neto, e "Auto da Compadecida", de
Ariano Suassuna, nada devem ao teatro
humanista português de um Gil Vicente? Fugir ao
diálogo Brasil/Portugal é negar origens e
contextos produtivos. A quem interessa mudar
tanto o programa de literatura? Em que buraco
negro estão as milhares de sugestões feitas por
quem tem conhecimento da base curricular?
O que fazer com as toneladas de livros
didáticos já oferecidas anteriormente pelo próprio MEC às escolas públicas e/ou compradas pelas famílias de alunos de
escolas particulares? Como atualizar os professores que aprenderam literatura portuguesa, por vezes a duras custas?
Passaremos a ter melhores classificações nas avaliações internacionais sem a cultura europeia e a literatura portuguesa?
Seremos mais finlandeses, talvez.
FLORA BENDER GARCIA é doutora em teoria literária e literatura comparada pela USP. JOSÉ RUY LOZANO é autor de livros
didáticos e professor de produção textual do Instituto Sidarta. Jornal FOLHA DE SÃO PAULO, Janeiro de 2016.
—————————————————————————————————————————————
24
Cultura e grau zero da ideologia (FÁBIO SALEM DALE)
O esvaziamento do político garante a perpetuidade das injustiças do Estado de Direito atual. Até que ponto as
críticas dirigidas ao sistema foram internalizadas? O que a cultura poderia dizer sobre uma “onda conservadora” e
suas estratégias?
"Testemunha privilegiada das tragédias de seu tempo, Forrest não diz absolutamente nada sobre o caráter dessas
tragédias. É como se elas lhe escapassem. Subjetivamente, Forrest seria Forrest tendo crescido na América, na
França, em Israel"
—————————————————————————————————————————————
25
EM OUTUBRO de 1789, no início da Revolução Francesa, deputados do antigo Clube Bretão se instalaram numa sede
própria, localizada em Paris. No local ocorriam quase todas as noites acaloradas discussões, cujo objetivo era ampliar os
temas tratados, horas antes, na reunião dos Estados Gerais, recém-convocados para tentar solucionar a crise política e
financeira do governo de Luís XVI. Muitos dos deputados ali presentes – inclusive um jovem advogado provinciano cujo
nome os jornais grafaram errado por meses, Maximilien Robespierre – viam na convocação uma chance de ascender
politicamente. A nova sede do Clube Bretão ficava no antigo convento dos jacobinos. No entanto, a denominação especial
que les jacobins se outorgaram à época não foi essa. Naqueles dias tumultuados, os aprendizes da política moderna
preferiram denominar-se “Sociedade dos Amigos da Constituição”. O nome nos soa curioso, visto que se tratava de uma
época de importantes transformações. Sua justificativa, porém, é simples: naquele momento, a Constituição era a própria
revolução, porque vinha substituir os códigos feudais que sustentavam o ancien régime. Ser amigo da Constituição
significava ser amigo da revolução.
Visto que o período da Assembléia Nacional Constituinte (1789-1791) fora dominado pela posição girondina –
moderada no que tangia à Igualdade e radical no que dizia respeito à proteção da Propriedade –, os jacobinos se viram
desde o início conduzidos a um dilema: no contexto frágil da Primeira República, tendo a conquista da Constituição como
expressão máxima do acordo entre as forças nacionais, como aprofundar seu caráter democrático sem colocar em risco a
própria revolução? As contradições se agravam e o rei Luís XVI é executado no início de 1793. O descontentamento
crescente da população mais pobre leva os jacobinos à supremacia da Convenção, que deve apontar um rumo ao país. A
França já se encontrava então em guerra com potências monárquicas e a unidade nacional se transformara em ponto
crítico. Foi nessa fase de grandes tensões que os jacobinos, com a Constituição como pedra-de-toque da unidade,
assumiram posições tais como: “Os infelizes são a força da terra; eles têm o direito de falar como donos aos governos que
os negligenciam” ; ou ainda: “Quando o governo viola os direitos do povo, a insurreição é, para o povo, e para cada porção
do povo, o mais sagrado dos direitos e o mais indispensável dos deveres” .
Pese a complexidade do processo revolucionário, chama a atenção o fato de que, no mesmo período em que instituíam
um código positivo de leis, aqueles deputados buscassem resguardar a resistência e a sublevação como direitos
fundamentais, caso a Constituição viesse a ser desrespeitada pelas autoridades. O processo traumático, que colocara em
xeque o direito divino do rei e limitara suas ações, tinha requerido de seus partidários o esforço de elaboração de uma nova
legitimidade (poder-se-ia dizer: de uma nova narrativa do mundo), apta a sustentar no âmbito do Direito a lenta
reestruturação social encabeçada pela burguesia. Se essa narrativa se via em disputa, naquele momento, entre as frações
mais oligárquicas e mais populares da burguesia, os jacobinos (ligados a esta última) buscavam garantir uma interpretação
da democracia como um “ponto de excesso” em relação ao Estado de Direito e o reconhecimento da legalidade da “violação
política” .
Desnecessário mencionar o que isto significava, por exemplo, às colônias francesas, onde o trabalho escravo se
mantinha no mesmo momento em que, na metrópole, declarava-se que “os homens nascem livres e permanecem livres e
iguais em direitos” . Embora considerada legal, a escravidão dificilmente poderia ser mantida como instituição legítima à luz
dos novos acontecimentos. De fato, chegou a ser abolida, em fevereiro de 1794, pressionada pelo desenrolar da revolução
dominicana liderada por Toussaint L’Ouverture (1743-1803). No romance histórico El Siglo de Las Luces (1962), o cubano
Alejo Carpentier narra a trajetória de Víctor Hugues, designado pela Convenção para levar às colônias caribenhas a nova
ordem fundada com a Primeira República. Ao se debruçar sobre os descaminhos do processo revolucionário francês,
Carpentier se debruça sobre a própria Revolução Cubana. Seu clássico traça certa distinção essencial entre a legitimidade
das causas do processo social e a (quase previsível) ilegitimidade das razões de seus múltiplos atores individuais. Vale
lembrar que as duas coisas – a democracia como “ponto de excesso” em relação ao Estado de Direito e a distinção entre
processo social e seus protagonistas – são largamente ignoradas em nossos dias. Este “ponto de excesso” e aqueles que ali
se posicionam são alvo de crescente deslegitimação e criminalização .
A revolução antiimperialista também foi tema do psiquiatra martiniquês Frantz Fanon (1925-1961), autor de Les
Damnés de la Terre (1961). Após participar dos conflitos na Argélia, Fanon defendeu que a mera descolonização dos
territórios ocupados pelos europeus não constituía retratação suficiente. Seria preciso, segundo ele, que a Europa assumisse
responsabilidade moral e econômica pela destruição das bases produtivas das populações subjugadas e, consequentemente,
pela desagregação das formas de vida social. Porém, Argel não era Paris. Qual a garantia de Fanon para exigências não
previstas em contrato? Bastaria que olhássemos, hoje, à tragédia de milhões de imigrantes que tentam adentrar a União
Europeia. A resposta é: a história.
Narre, Forrest, narre!
O acesso à história é uma das condições para a mobilização de uma narrativa que aborda (e às vezes funda) o que é
legítimo, e não apenas o que é legal do ponto de vista do Estado de Direito. Esvaziar o âmbito político da vida pelo bloqueio
de racionalizações históricas é uma das estratégias permanentes do conservadorismo. Certa corrente da literatura escrita ao
final do século 19 e início do 20 possui uma lição sobre este tema. Na leitura do filósofo György Lukács, ela vincula-se aos
acontecimentos da Primavera dos Povos, que em 1848 se espalharam pela Europa como “fogo na palha”. Quando aquela
burguesia revolucionária, que da França havia abalado, em 1789, todo o sistema monárquico, assume poucas décadas
depois o papel de reprimir as classes pobres em revolta, tal significaria que seu papel progressista como classe na longa
—————————————————————————————————————————————
26
trajetória de emancipação da humanidade chegara ao fim . Em Paris, onde muitos escritores foram testemunhas de batalhas
violentas livradas pelas ruas, era como se o caminho aberto pela Revolução Francesa ao protagonismo do cidadão comum
houvesse se fechado.
Diante de tais fatos, a literatura moderna, até então em sua fase “heróica” (à qual pertenceria Balzac), entra em crise.
A expressão mais alta dessa crise, segundo Lukács, seria uma bifurcação. De um lado, a corrente do realismo crítico, que vê
na resistência à progressiva brutalização do indivíduo pelo capitalismo uma expressão justa do tempo histórico: o realismo
salvaguardaria, por assim dizer, as conquistas realizadas até ali pelas sociedades ocidentais modernas (um exemplo seria a
obra de Flaubert). De outro lado está a corrente não-realista, que encara tal brutalização como processo inelutável, em que
o indivíduo se vê condenado paulatinamente a espectador (e não mais protagonista) de um mundo que se fecha à própria
compreensão (aqui, Lukács insiste no naturalismo de Zola).
Para Lukács, existe uma ligação íntima entre o naturalismo do século 19 e o modernismo vanguardista do século 20.
No romance naturalista, o alheamento das personagens dos principais acontecimentos favorece o nivelamento das
experiências: niveladas, não mais hierarquizadas, tais experiências falham em fornecer sentido à vida. No século 20, este
nivelamento assume uma forma singular. Em algumas das principais obras, surge na forma de périplos que se esgotam em
si mesmos. É uma ação vazia, porque seu resultado não significa modificação alguma, seja no mundo ou no foro íntimo da
personagem. Ulysses (1922), de James Joyce, é possivelmente a maior expressão dessa corrente. O teatro de Samuel
Beckett seria sua expressão paroxística, porque fundada numa inação exasperante. Sob essa perspectiva – de uma ação
rebaixada, que nada transforma – chegamos a um tempo também rebaixado, que nada traz (nem pode trazer) de novo. É
um tempo de perpetuidades, contrário em tudo ao tempo de transformações. Ação vazia e tempo vazio são, portanto,
complementares.
Um caso mais recente dessa modalidade de ação é aquele do filme Forrest Gump (1994), lançado no auge da era
neoliberal. Ali, a recapitulação de parte do século 20 norte-americano assume a forma de uma série cronológica de eventos,
todos precariamente articulados, alguns sequer no nível de uma causalidade rudimentar. Da ascensão do rock and roll aos
impactos sobre a moral conservadora dos golden years, em 1950; passando pela Guerra do Vietnã, no contexto da Guerra
Fria, e pelos movimentos por Direitos Civis contra a discriminação racial e sexual, em 1960; até o escândalo Watergate e a
escalada do poder corporativo na política no início do decênio seguinte... Percorremos em sequência impactos, conflitos,
lutas, corrupção.
Quarenta anos separam o pequeno Forrest daquele, adulto, que narra sua história aos transeuntes num ponto de
ônibus. História notável, diga-se de passagem, porque unida por melindrosos fios aos acontecimentos centrais de seu país.
E, não obstante, a partir do filme pouco ou nada podemos dizer em que os Estados Unidos da infância do narrador
mudaram em relação aos Estados Unidos de sua madurez. Sequer poderíamos apostar qual desses fatos (decisivos na vida
do Estado-nação) foi mais decisivo em sua própria vida. A reflexão de Simone de Beauvoir de que foi a Segunda Guerra
Mundial que a despertou para o vínculo indissociável de sua existência com a trajetória do mundo e da França é aqui (em
Forrest Gump) completamente estranha.
Testemunha privilegiada das tragédias de seu tempo, Forrest não diz absolutamente nada sobre o caráter dessas
tragédias. É como se elas lhe escapassem. Subjetivamente, Forrest seria Forrest tendo crescido na América, na França, em
Israel. Não há nada em seu modo de ver que prove que ele é um yankee (isso explica em grande medida, segundo creio, o
sucesso mundial de um filme que trata, supostamente, do percurso íntimo dos EUA). Para existir, bastaria que seu relato
seguisse permeado de périplos incríveis, real interesse da trama. Os conflitos não marcam rupturas (pessoais ou coletivas),
mas servem como pano de fundo à narração de alguém que é quase aquilo mesmo que narra.
Suspeitamos assim, contra todas as evidências, que o tempo não passa em Forrest Gump. À sua maneira, o filme
partilha da perspectiva (da qual tratamos anteriormente) de uma ação esvaziada, à qual corresponde um tempo
homogêneo. Se olharmos em Beckett (tomemos o exemplo mais paradigmático), veremos que a ausência de ação e o
tempo homogêneo estão vinculados necessariamente a outro fator: a falência do sujeito. Na obra do irlandês, a ruína da
subjetividade e da razão se deve a um dado colossal: a sociedade, que conforma o indivíduo, entrou em colapso. Em Forrest
(personagem), também há um sujeito falido. Nesse caso, entretanto, justificado por fatores mais adequados a uma
sociedade que nega a própria desagregação: Forrest tem um problema biológico.
Por carecer de integridade mental, o relato de Forrest equipara-se ao relato de uma criança. Tudo é imediato, nada é
mediato. Sua qualidade principal é o tom naïf. E, no que concerne à ingenuidade, nada é mais estranho a ela do que isto: a
vida política. Como uma criança, Forrest não possui uma perspectiva política da realidade. É este, afinal, o núcleo ausente
de toda a narrativa, e que poderia fornecer substância aos acontecimentos, dar-lhes sentido (à história dos Estados Unidos e
à sua própria). Enfim, podemos dizer: o tempo não passa em Forrest Gump porque, no que concerne às representações que
o homem faz de si mesmo, não existe tempo verdadeiro no exterior de uma perspectiva política sobre a existência.
Negamos acima que Forrest Gump narraria o percurso íntimo dos Estados Unidos. Agora, constatamos que é na chave
da falsa historicidade que o filme fala algo concreto e atual sobre a realidade norte-americana (e, quem sabe, de nossa
própria). Homérico, Forrest encarna a figura do narrador por excelência, de cuja narrativa, anti-homericamente, nenhuma
lição se depreende. Esvaziada de sentido histórico profundo, este tipo de narrativa obstrui a enunciação de qualquer
julgamento sobre a legitimidade dos processos sociais e sobre o valor de nossas ações até o presente, além de impedir que
o sujeito encare a si mesmo como tal, responsável pelas mudanças do mundo.
—————————————————————————————————————————————
27
Esta estratégia – de esvaziamento contumaz e velado do âmbito político – é justamente um dos traços que se
fortalecem em nossos dias. Ela se estende do discurso sobre a corrupção (como dado “policialesco” e avulso na
modernização do Estado brasileiro) às manobras redutoras variadas que consideram “democráticas” as manifestações
populares em defesa de condições básicas de existência, ameaçadas por interesses antidemocráticos; ou que, em período
de eleição, desejam fazer crer que a luta de classes é um discurso de ódio, oportunista e retrógrado, que profana o “altar
natural” da fraterna unidade nacional. Em última instância, este esvaziamento do político visa garantir que se perpetuem os
vetustos privilégios sociais que assombram a trajetória do país desde a colônia. Neste exato momento de crise profunda da
Nova República, o combate a este tipo de narrativa (nas ruas, inclusive) ganha centralidade.
É pau, é pedra
Alguns dos intelectuais mais sensíveis ao problema da ideologia perceberam que certa corrente da arte
contemporânea, bem como certa estratégia de discurso mobilizada no estágio atual do capitalismo realizam um movimento
de reflexão sobre si mesmas, implicando no discurso a própria condição, quando não fazendo desta o centro de seu
enunciado. Para ir direto ao ponto, mencione-se a campanha, lançada aqui em 2012 e intitulada “Gestão de Patrimônio”, do
banco britânico HSBC . O filme da terceira fase foi veiculado ao longo de 2015 e se apresenta em duas partes: na primeira,
crianças divagam sobre o que desejam ser no futuro; na segunda, homens e mulheres da chamada “terceira idade” realizam
um balanço de suas vidas, mencionando quais sonhos foram abandonados em prol da construção de um patrimônio . Após
uma sequencia de devaneios infantis intercalados com arrependimentos pungentes dos mais velhos, vai à tela esta questão:
“Em que momento o dinheiro passa a ser o mais importante?”. Em seguida, surge o anúncio da Gestão de Patrimônio do
HSBC e uma voz, em off: “O importante não é ter mais dinheiro. É saber o que ele pode fazer por você”. Alguém poderia
perguntar: quem precisa de uma crítica à sociedade de consumo e à cultura do acúmulo com bancos assim? Mais
prevenidamente, consideraria que se trata de uma postura cínica, visto que o banco instrumentaliza sua crítica ao acúmulo
em prol do... Acúmulo. Vejamos, portanto, um caso para além do cinismo.
A peça publicitária possui 30 segundos, mas contém um dado revelador. A empresa é a marca de tênis Olympikus e a
estrutura do comercial também possui duas partes intercaladas : na primeira, cenas da opressão da vida cotidiana na
metrópole; na segunda, pessoas correndo em grandes espaços abertos, próximos à natureza . Não há dúvida de que o
efeito sedutor do filme se dá pela sucessão frenética das imagens, permeadas o tempo todo por um narrador em off. Pese a
multiplicidade dos elementos envolvidos, o que chama a atenção é isto: contraposta às cenas de corrida, a assunção
deliberada da violência causada pela rotina do trabalho, pela repetição sem finalidade e sem fim de tarefas conduzidas pelo
autômato, pela negação de qualquer vida mental, pelos códigos de conduta impostos. Interessante é a imagem do
escritório: contra o clichê do ambiente espaçoso, iluminado e clean, é posta em cena uma ambientação monocromática,
apagada e sufocante. Tem-se a impressão de que, longe de ser a consolidação de uma ética do trabalho – que admite o
cumprimento das obrigações, por exemplo –, dá-se uma aceitação das "leis laborais” sem mais justificativas, restando
somente o imperativo do hard work. Aliás, a propaganda não desautoriza de forma alguma esta interpretação: o esforço
físico intenso realizado fora das horas de trabalho é uma espécie de catarse, onde se dá a compensação das longas horas
também intensas e mortificantes.
É a passagem do Work hard, fly right – bordão dos anos 1990 da empresa aérea Continental Airlines – ao Work hard,
play hard, como reformulado pelo rapper norte-americano Wiz Khalifa, em 2012. Este "play hard" – com o qual dialoga sem
dúvida o “espírito de desporto” do comercial da Olympikus – expressa muito das faltas e estragos causados por aquele
"work hard" de uma década atrás. Khalifa explica: [I got] so much paper right in front of me it's hard to think / Bought so
many bottles, it's gonna be hard to drink (...) Go hard, make sure you do it whatever is that you gotta do / That's your job /
And niggas gonna hate, but that's no prob .
Arranjemos lado a lado ambos os discursos – de HSBC e Olympikus – e o que se insinua é que o establishment realizou
certa internalização da crítica que, até há pouco tempo, o marxismo fazia ao trabalho alienado como “desefetivação” da
vida, não apenas durante o expediente, mas durante o “tempo ocioso”. Franz Kafka já a sentiu no início do século 20,
quando constatou que a escrita e o trabalho burocrático do escritório “não podem se tolerar mutuamente e não admitem
uma felicidade comum a ambos” . Esta mesma incompatibilidade é problematizada por Ricardo Antunes em Os Sentidos do
Trabalho (1999), acrescida do tema da intensificação do tempo de trabalho na era neoliberal. De ideologia de segundo grau
– como Roberto Schwarz definiu as ideias liberais no Brasil escravista do século 19 –, tais exemplos da propaganda sugerem
uma conjuntura na qual, frente à manutenção estrutural da ordem neoliberal (inclusive ou sobretudo por governos ligados à
esquerda) e a neutralização recorrente de contra-narrativas que legitimem oposições ao status quo, mesmo a ideologia
liberal de primeiro grau teria se tornado supérflua. As representações sobre o trabalho, assim, já não simulariam realizar
destino pessoal algum, acolhendo aquele como uma dimensão morta da vida do sujeito. Tudo é o que é. Poder-se-ia dizer,
parafraseando Drummond do período entre guerras, "chegou um tempo em que a vida é uma ordem. A vida apenas, sem
mistificação". Teríamos chegado ao grau zero da ideologia liberal? Seria este um passo anterior ao seu esvaziamento
completo porque esta ideologia ainda precisa sustentar, por negativo, não tanto a noção de aprimoramento quanto a de
impossível superação?
O sentido conformista que imediatamente emerge daí pode ser corroborado no espaço da cultura. Nas artes plásticas,
parte desse sentido está latente no chamado hiperrealismo, que lotou a Pinacoteca de São Paulo no ano passado com a
—————————————————————————————————————————————
28
exposição das obras do australiano Ron Mueck , artista cuja ligação seminal com o mercado da publicidade e do cinema
certamente não é por acaso. Na contramão da arte conceitual, o hiperrealismo de Mueck trabalha no estreitamento radical
das possibilidades de construção intelectual do observador. Isto porque, se é verdade que não esgota as elaborações
pessoais (mas alguma arte esgota?), por outro lado direciona a todo instante essas elaborações para a mundanidade da
existência já sobejamente conhecida. Confirmando a vida burguesa com imagens que são o paroxismo dessa mesma vida
(inclusive na sua solidão), o hiperrealismo de Mueck cria um jogo inesperado de expectativas e resultados. O real, dirimido
em suas partes infinitesimais, assume o aspecto de coisa estranha, e estranhamente flerta com o irreal, porque nenhuma
realidade tem a qualidade de expor-se nos mesmos termos: tão francos, transparentes e duros. É assim que o hiperrealismo
retira de si todo espaço de sombra para relançá-lo sobre o mundo lá fora, de carne e osso. Em outras palavras, seu excesso
de luz torna opaca e incerta a vida ao redor, resultado que o conserva do discurso publicitário, embora ambos operem sobre
o mesmo núcleo de problemas.
Na indústria do cinema, talvez fosse possível vincular ao grau zero da ideologia um mote cada vez mais comum, visível
em produções que vão de Tropa de Elite a 007 Contra Spectre (última continuação da franquia James Bond) – e que poderia
ser resumido na seguinte frase: o inferno não são os outros, o inimigo não mora ao lado. Atormentados pelos
desdobramentos tentaculares do próprio ofício (lembre-se que Bond, em Skyfall, de 2012, pensa inclusive em renunciar aos
afagos das bondgirls e se aposentar), tais heróis descobrem continuamente e sem assombro que a maior ameaça de fato
não está “do outro lado”, mas reside no interior do “mundo livre”, e sugerem que as instituições democráticas do Estado de
Direito possuem algo de mera fachada “para francês ver”. A isso refere o esloveno Slavoj Žižek quando, à propósito de The
Truman Show (1998), recorda que “a última fantasia paranóica americana é a do indivíduo vivendo numa idílica cidadezinha
californiana, um paraíso consumista, e que subitamente começa a suspeitar de que o mundo onde vive é falso, um
espetáculo encenado para convencê-lo de que vive no mundo real, enquanto ao redor só existem atores e extras num
gigantesco show” . A experiência deste espetáculo hiperrealista ao redor é, segundo Žižek, “irreal à sua maneira”, “sem
substância”, no que conversa com as imagens de Mueck. À diferença de The Truman Show, entretanto, os filmes recentes
colocam suas personagens como viventes numa “encenação da vida real”, constrangidos a seguir adiante sob o véu rasgado
das velhas ilusões.
Ao que estarão ligados todos esses reconhecimentos sobre a substância cinzenta da vida contemporânea? À queda de
todas as expectativas suscitadas pelo socialismo – do legado estalinista no século 20 aos esforços recentes do partido grego
Syriza, podados brutalmente pela Troika (Eurogrupo, Banco Europeu e FMI), passando pelo esgotamento dos governos de
centro-esquerda na América Latina – segue-se a derrocada das promessas feitas também pelo liberalismo e pela direita.
Assunções vergonhosas, impensáveis na década de 1990 (como a do Banco Mundial que admite ter agravado ainda mais as
vidas dos miseráveis a quem deveria proteger ; ou do FMI acerca dos equívocos do receituário neoliberal aplicado à
reestruturação grega logo após 2008 ), tais assunções surtiram um efeito inesperado no que diz respeito às expectativas de
construção de uma nova sociedade: vieram realizar o mea culpa sobre as “distorções do sistema” e de suas frustradas
promessas de redenção pelo free market sem, no entanto, arremessá-las ao mármore do inferno das ideologias (como
ocorreu com o socialismo). Exemplo disso são as pressões exercidas hoje sobre a Grécia pelos mesmos que, há três anos,
foram responsabilizados pelo agravamento de sua crise.
Alguém dirá que ainda é muito cedo para afirmar que o receituário neoliberal se safou satisfatoriamente das encrencas
que ele mesmo criou. Ou é isso, ou a moral da história é outra, mais engenhosa, e se vincula à emergência de um novo
paradigma nos processos de legitimação e deslegitimação das políticas postas em prática por governos e instituições estatais
e privadas. Como parte constituinte deste novo paradigma (se a hipótese é verdadeira) poderíamos citar a capacidade
patente das grandes corporações de se posicionarem, não como obstáculos às transformações planetárias urgentes mas, ao
contrário, justamente como a via principal através da qual essas transformações podem e devem se dar. Alguns dos
ecologistas mais céticos (para não dizer "realistas") apostam, por exemplo, que a única saída à crise climática mundial seria
a criação de mecanismos legais que regulamentassem a exploração e a depredação da natureza, inserindo fauna e flora na
lógica do mercado. Em escala reduzida, este raciocínio se encontra em declarações de biólogos e funcionários
governamentais que, à sombra da morte do leão Cecil por um pacato dentista de Minnesota (EUA), Walter Palmer, no ano
passado, insistem que a única proteção possível aos grandes felinos não seria a proibição completa da caça, mas a cobrança
de 1 milhão de dólares pela “licença para matar”. O próprio Banco Mundial já teria investido 700 mil dólares em
Moçambique, em 2014, “a fim de promover a caça esportiva como parte de um fundo de conservação de 40 milhões de
dólares” .
Se é certo que o capitalismo contemporâneo internalizou parcela importante das críticas a ele dirigidas e que novas
formas de neutralização das oposições estão em jogo, resta insistir na lição jacobina da prerrogativa do político sobre a
ordem jurídica. Vale lembrar que, na América Latina, a rica tradição dos “fora da lei” – com Zapata, Sandino ou mesmo
Zumbi – não versa sobre outra coisa: o resgate constante de sua memória ainda significa garantia, para muita gente, de que
a história não cessou e uma ideia popular de democracia será cumprida.
—————————————————————————————————————————————
29
[1] Relatório de Saint-Just sobre a mendicância – 26 de fevereiro a 03 de março de 1794.
[2] Artigo 35 da Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão – junho de 1793.
[3] Safatle, Vladimir. A esquerda que não teme dizer seu nome. São Paulo: Editora Três Estrelas, 2012. Jacques Rancière
também trata do “excesso da política” em O Ódio à Democracia(Boitempo, 2014).
[4] Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, artigo 1º – agosto de 1789.
[5] “Por uma lei antiterrorismo de Estado. Ou não sobrará ninguém”. Le Monde Diplomatique, 12.2015
[6] Lukács, György. O Romance Histórico. São Paulo: Editora Boitempo, 2011.
[7] HSBC lança nova campanha de Gestão de Patrimônio com criação da Grey Brasil – Aberje, 1º.11.2013
[8] Gestão de Patrimônio HSBC: www.youtube.com/watch?v=l2cZYrd-ZyM
[9] Olympikus lança novo posicionamento. Meio&Mensagem, 03.04.2014.
[10] Olympikus – Escute seu corpo: www.youtube.com/watch?v=vyeJztPJW-c
[11] New Continental campaign: 'Work hard. Fly right' – Advertising Age, 26.03.1998.
[12] “Tenho tanto papel na minha frente que é difícil pensar / Comprei tantas garrafas que será difícil beber / Vá firme,
garanta que você fará seja lá o que você tiver que fazer / É o seu trabalho / Os pretos vão odiar, mas isso não é
problema.”
[13] Konder, Leandro. Kafka – Vida e Obra. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 1974, p. 58.
[14] Exposição de Ron Mueck bate recorde da Pinacoteca de SP – Folha de São Paulo, 23.02.2015
[15] Slavoj Žižek: Reflections on WTC - third version, 10.07.01.
[16] World Bank Admits It Ignored Its Own Rules Designed To Protect The Poor. The Huffington Post – 03.05.2015
[17] Grèce : le FMI reconnaît des erreurs – Le Monde, 08.06.2013
[18] The Economic Argument For Killing Cecil The Lion Doesn't Hold Up. The Huffington Post – 31.07.2015
FÁBIO SALEM DALE é jornalista e pesquisador no programa de pós-graduação da Universidade de São Paulo e um dos autores
de "Thomas Piketty e o Segredo dos Ricos", ed Venetta. Jornal LE MONDE DIPLOMATIQUE BRASIL, Janeiro de 2016.
—————————————————————————————————————————————
30

Documentos relacionados