hermenêutica - Conheça os Nossos Autores

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hermenêutica - Conheça os Nossos Autores
Coleção CONPEDI/UNICURITIBA
Vol. 28
Organizadores
Prof. Dr. Orides Mezzaroba
Prof. Dr. Raymundo Juliano Rego Feitosa
Prof. Dr. Vladmir Oliveira da Silveira
Profª. Drª. Viviane Coêlho de Séllos-Knoerr
Coordenadores
Prof. Dr. Alexandre Walmott Borges
Prof. Dr. João Maurício Leitão Adeodato
Profª. Drª. Iara Rodrigues de Toledo
HERMENÊUTICA
2014
2014
Curitiba
Curitiba
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE
H553
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Hermenêutica
Coleção Conpedi/Unicuritiba.
Organizadores : Orides Mezzaroba / Raymundo Juliano
Rego Feitosa /
Vladmir Oliveira da Silveira / Viviane Coêlho Séllos-Knoerr.
Coordenadores : Alexandre Walmott Borges/Maurício
Leitão Adeodato /
Iara Rodrigues de Toledo
Título independente - Curitiba - PR . : vol.28 - 1ª ed.
Clássica Editora, 2014.
523p. :
ISBN 978-85-8433-016-4
1. Hermenêutica.
I. Título.
CDD 340.326
EDITORA CLÁSSICA
Conselho Editorial
Allessandra Neves Ferreira
Alexandre Walmott Borges
Daniel Ferreira
Elizabeth Accioly
Everton Gonçalves
Fernando Knoerr
Francisco Cardozo de Oliveira
Francisval Mendes
Ilton Garcia da Costa
Ivan Motta
Ivo Dantas
Jonathan Barros Vita
José Edmilson Lima
Juliana Cristina Busnardo de Araujo
Lafayete Pozzoli
Leonardo Rabelo
Lívia Gaigher Bósio Campello
Lucimeiry Galvão
Equipe Editorial
Editora Responsável: Verônica Gottgtroy
Capa: Editora Clássica
Luiz Eduardo Gunther
Luisa Moura
Mara Darcanchy
Massako Shirai
Mateus Eduardo Nunes Bertoncini
Nilson Araújo de Souza
Norma Padilha
Paulo Ricardo Opuszka
Roberto Genofre
Salim Reis
Valesca Raizer Borges Moschen
Vanessa Caporlingua
Viviane Coelho de Séllos-Knoerr
Vladmir Silveira
Wagner Ginotti
Wagner Menezes
Willians Franklin Lira dos Santos
XXII ENCONTRO NACIONAL DO CONPEDI/ UNICURITIBA
Centro Universitário Curitiba / Curitiba – PR
MEMBROS DA DIRETORIA
Vladmir Oliveira da Silveira
Presidente
Cesar Augusto de Castro Fiuza
Vice-Presidente
Aires José Rover
Secretário Executivo
Gina Vidal Marcílio Pompeu
Secretário-Adjunto
Conselho Fiscal
Valesca Borges Raizer Moschen
Maria Luiza Pereira de Alencar Mayer Feitosa
João Marcelo Assafim
Antonio Carlos Diniz Murta (suplente)
Felipe Chiarello de Souza Pinto (suplente)
Representante Discente
Ilton Norberto Robl Filho (titular)
Pablo Malheiros da Cunha Frota (suplente)
Colaboradores
Elisangela Pruencio
Graduanda em Administração - Faculdade Decisão
Maria Eduarda Basilio de Araujo Oliveira
Graduada em Administração - UFSC
Rafaela Goulart de Andrade
Graduanda em Ciências da Computação – UFSC
Diagramador
Marcus Souza Rodrigues
Sumário
APRESENTAÇÃO ........................................................................................................................................
14
A ABORDAGEM PRAGMÁTICA DE RICHARD POSNER SOB A ANÁLISE CRÍTICA DA TEORIA DA
INTEGRIDADE (Raphaela Borges David) ...................................................................................................
16
INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................
17
A CONCEPÇÃO DE INTERPRETEÇÃO JURÍDICA DA ANÁLISE ECONÔMICA DO DIREITO .....................
18
A CRÍTICA DE RONALD DWORKIN À RICHARD POSNER ........................................................................
23
CONCLUSÃO ..............................................................................................................................................
30
BIBLIOGRAFIA ...........................................................................................................................................
33
A CONCRETIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO DIANTE DO DIREITO CONSTITUCIONAL IMPLÍCITO DA
FELICIDADE E DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA NA UNIÃO HOMOAFETIVA (Alexandre Gazetta
Simões e Celso Jefferson Messias Paganelli) ..............................................................................................
35
INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................
36
A APLICAÇÃO DO TEXTO CONSTITUCIONAL ESTÁ INTRINSECAMENTE LIGADA À REALIDADE DO
COTIDIANO ................................................................................................................................................
37
DIREITOS FUNDAMENTAIS E PESSOA HUMANA ...................................................................................
41
SOPESAMENTO DE DIREITOS CONSTITUCIONAIS .................................................................................
44
DIREITO À BUSCA DA FELICIDADE NAS RELAÇÕES HOMOAFETIVAS POSTULADO CONSTITUCIONAL
IMPLÍCITO DERIVADO DA DIGNIDADE DAPESSOA HUMANA ...............................................................
47
PENSÃO POR MORTE AOS CASAIS HOMOSSEXUAIS: GARANTIA CONSTITUCIONAL LIGADA À
DIGNIDADE E FELICIDADE ........................................................................................................................
49
CONCLUSÃO ..............................................................................................................................................
52
REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................
54
A EFICIÊNCIA SEGUNDO A ANÁLISE ECONÔMICA DO DIREITO COMO ELEMENTO HERMENÊUTICO
PARA ATINGIR A MÁXIMA EFETIVIDADE DA NORMA CONSTITUCIONAL (Guilherme Helfenberger
Galino Cassi) ...............................................................................................................................................
56
INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................
59
HERMENÊUTICA .......................................................................................................................................
61
A HERMENÊUTICA DA CONSTITUIÇÃO ...................................................................................................
65
A ANÁLISE ECONÔMICA DO DIREITO .....................................................................................................
71
O INCREMENTO DA EFETIVIDADE CONSTITUCIONAL COM A ANÁLISE ECONÔMICA DO DIREITO ....
72
CONCLUSÃO ..............................................................................................................................................
79
BIBLIOGRAFIA ...........................................................................................................................................
81
A HERMENÊUTICA FILOSÓFICA COMO CONDIÇÃO DE POSSIBILIDADE PARA O RESGATE DO
“DNA” DO DIREITO NAS DECISÕES JUDICIAIS (Marcelo Cacinotti Costa) ............................................
83
INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................
84
ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE O “HIATO” ENTRE A HERMENÊUTICA FILOSÓFICA E A DECISÃO
JUDICIAL A PARTIR DE UMA ANÁLISE FEITA POR ALEXANDRE MORAIS DA ROSA .............................
85
ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE A IMPORTÂNCIA DE SE DESENVOLVER O ESTUDO DE UMA
HERMENÊUTICA DISTINTA DA QUE ESTAMOS ACOSTUMADOS A VER NO AMBIENTE ACADÊMICO
91
E A PRÁXIS DO DIREITO? O QUE TEM MOSTRADO? A APPLICATIO COMO “GARANTIA HERMENÊUTICA” A EVITAR O SOLIPSISMO DO INTÉRPRETE ....................................................................................
95
O DIREITO TEM SIDO VISTO COMO “TRANSCENDENTAL”? ONDE ESTÁ, AFINAL, O DNA DO DIREITO?
E POR FALAR EM PRINCÍPIOS? UMA SINTÉTICA CONCLUSÃO ..............................................................
104
REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................
108
A LÓGICA INTERPRETATIVA DE PETER HABERLE COMO EXTENSÃO DO PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL
DA SOLIDARIEDADE(Raphael Juan Giorgi Garrido) .................................................................................
109
INTRODUÇÃO ...........................................................................................................................................
110
DISTINÇÃO ENTRE PRINCÍPIOS E REGRAS .............................................................................................
111
O PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA SOLIDARIEDADE ...........................................................................
113
INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL ABERTA COM EXTENSÃO DOPRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA
SOLIDARIEDADE ........................................................................................................................................
116
CONCLUSÃO ..............................................................................................................................................
123
REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................
125
A ÚNICA DECISÃO EM RONALD DWORKIN REVISÃO E CRÍTICA (Marcus Mauricius Holanda) .............
128
INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................
129
A INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL E O PROBLEMA DA DECISÃO ÚNICA NA PRÁXIS JURÍDICA ....
130
A HERMENÊUTICA DO PLURALISMO JURÍDICO ......................................................................................
138
O PROCESSO DE ARGUMENTAÇÃO DA TEORIA: A INTERPRETAÇÃO EM DWORKIN ...........................
141
O PRAGMATISMO JURÍDICO NA CONCEPÇÃO DE DWORKIN ................................................................
142
CONCLUSÃO ..............................................................................................................................................
144
REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................
145
AS LIBERDADES DE PENSAMENTO, DE EXPRESSÃO E DE INFORMAÇÃO VERSUS COMUNICAÇÃO
SOCIAL: DIREITOS DA PERSONALIDADE? (Iara Rodrigues de Toledo e Sarah Caroline de Deus Pereira)
147
INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................
148
UM OLHAR SOBRE OS DIREITOS DA PERSONALIDADE EM FACE DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS E
DO DIREITO GERAL DE PERSONALIDADE ...............................................................................................
150
AS LIBERDADES DE PENSAMENTO, DE EXPRESSÃO E DE INFORMAÇÃO NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL
153
COMUNICAÇÃO SOCIAL ...........................................................................................................................
158
CONCLUSÃO ..............................................................................................................................................
164
REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................
165
ATIVISMO JUDICIAL EXERCIDO PELO TRIBUNAL SUPERIOR ELEITORAL A PARTIR DA RESOLUÇÃO
N° 22.610/2007 E A VIOLAÇÃO DE PRECEITOS CONSTITUCIONAIS (Martônio Mont’Alverne Barreto
Lima e Bruno César Braga Araripe) ............................................................................................................
167
INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................
167
ATIVISMO JUDICIAL ..................................................................................................................................
169
TRIBUNAL SUPERIOR ELEITORAL – COMPOSIÇÃO E FUNÇÕES ............................................................
172
RESOLUÇÃO N° 22.610/2007 – ABORDAGEM HISTÓRICA E CRÍTICAS ..................................................
174
CONCLUSÃO ..............................................................................................................................................
179
REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................
181
ATIVISMO JUDICIAL: A CONSTITUCIONALIDADE DAS SÚMULAS E RESOLUÇÕES DO TRIBUNAL
SUPERIOR ELEITORAL (Antonio Carlos Segatto e Ian Matozo Especiato) ................................................
185
CONSIDERAÇÕES INICIAIS ........................................................................................................................
186
ANTECEDENTES HISTÓRICOS DA JUSTIÇA ELEITORAL BRASILEIRA E TRIBUNAL SUPERIOR ELEITORAL (TSE) ...................................................................................................................................................
187
ORIGEM E DESENVOLVIMENTO DAS SÚMULAS ELEITORAIS ................................................................
190
RESOLUÇÕES DO TRIBUNAL SUPERIOR ELEITORAL E SUAS CARACTERÍSTICAS ...................................
192
A QUESTÃO HERMENÊUTICA E O ATIVISMO JUDICIAL ..........................................................................
194
CONSIDERAÇÕES FINAIS ..........................................................................................................................
197
REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................
198
DO PODER CONSTITUINTE ORIGINÁRIO COMO FORMA DE MANIFESTAÇÃO DO DIREITO
NATURAL, A FIM DE FUNDAMENTAR A PROTEÇÃO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA,
EVIDENCIANDO UMA NOVA REGRA HERMENÊUTICA PARA O ORDENAMENTO JURÍDICO (Cleide
Aparecida Gomes Rodrigues Fermentão e Luis Gustavo Liberato Tizzo) .....................................................
201
INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................
202
DO PODER CONSTITUINTE .......................................................................................................................
203
DO DIREITO NATURAL: CONCEITO, CARACTERÍSTICAS E SUA COMUNICAÇÃO COM A TEORIA DO
PODER CONSTITUINTE .............................................................................................................................
206
DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA ....................................................................................................
210
CONCLUSÃO ..............................................................................................................................................
217
REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................
218
ESTUDO DA DISCIPLINA DA INTERPRETAÇÃO: RUPTURA PARADIGMÁTICA E CONCRETIZAÇÃO DOS
DIREITOS FUNDAMENTAIS (Jussara Suzi Assis Borges Nasser Ferreira e Kelly Cardoso Mendes de Moraes) .....
221
INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................
222
HERMENÊUTICA JUSFILOSÓFICA ............................................................................................................
223
A TEORIA DO CONHECIMENTO PARA UMA INTERPRETAÇÃO HERMÊUTICA JURÍDICA ....................
227
HERMENÊUTICA JURÍDICA CONTEMPORÂNEA .....................................................................................
233
A HERMENÊUTICA CONSTITUCIONAL NO DIREITO CIVIL BRASILEIRO – ABORDAGEM À RESPOSTA
CORRETA ...................................................................................................................................................
243
CONSIDERAÇÕES FINAIS ..........................................................................................................................
248
REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................
249
FILOSOFIA ANALÍTICA DA LINGUAGEM E INTERPRETAÇÃO DO DIREITO (Rosana Pizzatto) .............
251
INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................
251
TÉCNICAS DE ANÁLISE .............................................................................................................................
253
ANÁLISE DO TERMO VERDADE: O SIGNIFICADO COMO FRUTO DE CONVENÇÕES ESTABELECIDAS
ENTRE LINGUAGEM E REALIDADE ...........................................................................................................
256
CONSIDERAÇÕES FINAIS ..........................................................................................................................
274
REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................
276
HERMENÊUTICA ALGORÍTMICA: UMA APROXIMAÇÃO ENTRE A TEORIA DOS ALGORITMOS E A
INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL (Aluizio Jácome de Moura Júnior) ...............................................
278
INTRODUÇÃO ...........................................................................................................................................
279
O CONCEITO DE ALGORITMO .................................................................................................................
280
A APLICAÇÃO DO CONCEITO DE ALGORITMO A OUTRAS CIÊNCIAS ...................................................
283
A APROXIMAÇÃO ENTRE A HERMENÊUTICA CONSTITUCIONAL E A TEORIA DOS ALGORITMOS
UMA INTERESSANTE IMAGEM CITADA POR CARNELUTTI ....................................................................
285
HERMENÊUTICA ALGORITMICA EM DOIS CASOS ANALISADOS PELO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL
288
DIREITOS IMPLÍCITOS E HERMENÊUTICA ALGORÍTMICA .....................................................................
294
CONSIDERAÇÕES FINAIS ..........................................................................................................................
298
REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................
299
HERMENÊUTICA JURÍDICA CRÍTICA E CRÍTICA LATINO AMERICANA REPENSANDO UM NOVO
MARCO TEÓRICO (Ivone Fernandes Morcilo Lixa) ...................................................................................
301
HERMENÊUTICA JURÍDICA NO MARCO DA TRADIÇÃO: LIMITES E IMPOSSIBILIDADES ....................
302
CRÍTICA, TEORIA CRÍTICA DO DIREITO E HERMENÊUTICA: INEVITÁVEL APROXIMAÇÃO ..................
306
PÓS-COLONIAL: CONTEXTO E PRETEXTO ................................................................................................
309
O GIRO HERMENÊUTICO DESCOLONIZADOR .........................................................................................
315
REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................
319
HIERARQUIA ENTRE NORMAS CONSTITUCIONAIS: INTERPRETAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL
BRASILEIRA DE 1988 CONFORME A CONSTITUIÇÃO (Feliciano de Carvalho) ......................................
321
INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................
322
O ORDENAMENTO JURÍDICO CONSTITUCIONAL E AS SUAS NORMAS ................................................
322
MÉTODOS E PRINCÍPIOS DE INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL .......................................................
326
HIERARQUIA ENTRE NORMAS CONSTITUCIONAIS ORIGINÁRIAS ........................................................
329
CONCLUSÃO ..............................................................................................................................................
334
REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................
336
MECANISMO DE INTERPRETAÇÃO E REALIZAÇÃO CONSTITUCIONAL NO NOVO PARADIGMA DE
ESTADO: DUAS FACES DA MESMA MOEDA (Marília Ferreira da Silva e Erick Wilson Pereira) ...............
337
INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................
338
OS NOVOS PARADIGMAS SOCIAIS ..........................................................................................................
339
A HERMENÊUTICA CONSTITUCIONAL DE PETER HÄBERLE ...................................................................
341
OS NOVOS MÉTODOS DE INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL ............................................................
343
A RELEVÂNCIA DA HERMENÊUTICA CONSTITUCIONAL NA REALIZAÇÃO DO ESTADO (CONSTITUCIONAL) DEMOCRÁTICO DE DIREITO ......................................................................................................
347
CONSIDERAÇÕES FINAIS ..........................................................................................................................
351
REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................
352
NEOCONSTITUCIONALISMO, A “VIRADA HARTIANA” E O ATIVISMO JUDICIAL: LEITURA A PARTIR
DO ATUAL PARADIGMA JURÍDICO (Tiago Clemente Souza e Marielen Paura Orlando) ........................
355
INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................
355
BREVES APONTAMENTOS SOBRE A CIÊNCIA JURÍDICA DE HANS KELSEN: PELA SUPERAÇÃO DE UM
JUSMORALISMO IRRACIONAL .................................................................................................................
356
HERMENÊUTICA: BREVES APONTAMENTOS SOBRE O ATUAL PARADIGMA JURÍDICO ......................
365
A SUPERAÇÃO DO DIREITO DO OBSERVADOR: O ATIVISMO JUDICIAL COMO UMA CONCEPÇÃOPRÉ
“VIRADA HARTIANA” ................................................................................................................................
371
CONSIDERAÇÕES FINAIS ..........................................................................................................................
382
REFERÊNCIA ..............................................................................................................................................
383
O ATIVISMO JUDICIAL. INSTRUMENTO DE CONCRETIZAÇÃO DE DIREITOS OU INGERÊNCIA NO
PRINCÍPIO DA SEPARAÇÃO DOS PODERES? (Daniel Leão Hitzschky Madeira e Rosendo Freitas de Amorim)
385
INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................
385
A ORIGEM E A DELIMITAÇÃO DO TERMO “ATIVISMO JUDICIAL” ...........................................................
386
O ATIVISMO JUDICIAL E A INGERÊNCIA NOS DEMAIS PODERES .........................................................
389
DA LEGITIMIDADE DEMOCRÁTICA DO PODER JUDICIÁRIO PARA IMPOR SUAS DECISÕES AOS
DEMAIS PODERES ....................................................................................................................................
392
O PODER JUDICIÁRIO CRIA UMA NOVA CONSTITUIÇÃO DECORRENTE DE SUAS INTERPRETAÇÕES?
393
O ATIVISMO JUDICIAL COMO “REMÉDIO” OU “REMEDIADOR” ...........................................................
396
CONSIDERAÇÕES FINAIS ..........................................................................................................................
399
REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................
400
O CUMPRIMENTO SIMBÓLICO DO ARTIGO 93, IX, COMO ÁLIBI PARA O NÃO ACONTECER (VELAMENTO) DA CONSTITUIÇÃO (Luis Henrique Braga Madalena) ...............................................................
403
NOTAS INTRODUTÓRIAS ..........................................................................................................................
404
DELIMITAÇÃO DO CONCEITO DE CUMPRIMENTO SIMBÓLICO ............................................................
405
O SENSO/SENTIDO COMUM TEÓRICO E O CUMPRIMENTO SIMBÓLICO DO ARTIGO 93, IX, DA
CONSTITUIÇÃO .........................................................................................................................................
416
BALANÇO FINAL ........................................................................................................................................
425
REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................
427
O DESAFIO DO PODER JUDICIÁRIO NA HERMENÊUTICA DO EFEITO DIRETO E IMEDIATO E NA CAUSA
DETERMINANTE DO DANO: UMA ANÁLISE DA PRÁTICA JUDICÍARIA (Sérgio Henrique Tedeschi) .......
430
INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................
432
OBRIGAÇÃO DE REPARAR ........................................................................................................................
433
CAUSAS E CONDIÇÕES DO DANO: EVOLUÇÃO DOUTRINÁRIA ..............................................................
434
AS EXCLUDENTES DO NEXO CAUSAL ......................................................................................................
437
EXCEÇÃO ÀS EXCLUDENTES DE NEXO CAUSAL ......................................................................................
439
ANÁLISE DOUTRINÁRIA E JURISPRUDENCIAL DO EFEITO DIREITO E IMEDIATO/CAUSA DETERMINANTE DO DANO ......................................................................................................................................
440
CONCLUSÃO ..............................................................................................................................................
445
REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................
446
O MÉTODO DE INTEPRETAÇÃO HISTÓRICO E A JURISPRUDÊNCIA ATUAL DO SUPREMO TRIBUNAL
FEDERAL BRASILEIRO (Andressa Fracaro Cavalheiro) ..............................................................................
448
INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................
449
ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE INTERPRETAÇÃO JURÍDICA .........................................................
449
A INTERPRETAÇÃO HISTÓRICA ......................................................................................................................
457
O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL E A INTERPRETAÇÃO HISTÓRICA NO ACÓRDÃO DO RE 279.469/RS
464
CONCLUSÃO ..............................................................................................................................................
467
BIBLIOGRAFIA ..........................................................................................................................................
468
OS “LUGARES” (E OS PROBLEMAS) DA INTERPRETAÇÃO NO DIREITO: DA HERMENÊUTICA
ROMÂNTICA DE SCHLEIERMACHER AOS PRIMÓRDIOS DO NEOCONSTITUCIONALISMO (Tássia
Aparecida Gervasoni) .................................................................................................................................
470
INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................
471
A HERMENÊUTICA ROMÂNTICA DE SCHLEIERMACHER E A QUESTÃO DO PSICOLOGISMO DA INTERPRETAÇÃO ..........................................................................................................................................
472
O FORMALISMO JURÍDICO NA ALEMANHA DO SÉCULO XIX E A JURISPRUDÊNCIA DOS CONCEITOS
480
DA RAZÃO À VONTADE NOS MOVIMENTOS LIBERTÁRIOS DO DIREITO: A JURISPRUDÊNCIA DOS
INTERESSES E O MOVIMENTO DO DIREITO LIVRE – DO SÉCULO XIX PARA O SÉCULO XX ..................
483
REALISMO JURÍDICO – APROXIMAÇÕES COM OS MOVIMENTOS LIBERTÁRIOS .................................
486
O RETORNO DO FORMALISMO (AINDA) NO SÉCULO XX (?) - O POSITIVISMO NORMATIVISTA DE
HANS KELSEN ............................................................................................................................................
487
O MUNDO NÃO PODERIA SER O MESMO DEPOIS DA SEGUNDA GUERRA: JURISPRUDÊNCIA DOS
VALORES E O(S) PROBLEMA(S) DA INTERPRETAÇÃO QUE PARTE(M) DAÍ E CHEGA(M) AO SÉCULO XXI
489
CONCLUSÃO ..............................................................................................................................................
492
REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................
493
RESTAURAÇÃO DO MÉTODO DO DIREITO JUSTO (Alessandro Severino Valler Zenni) .........................
495
INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................
495
A ARTE DO BOM E ÉQUO COMO ESFORÇO METODOLÓGICO ..............................................................
497
INTERPRETANDO O FUNDAMENTO DO DIREITO – A NATUREZA JUSTA DA HUMANIDADE ...............
501
O MÉTODO JURISPRUDENCIAL PLENO ....................................................................................................
504
FORMULAÇÕES METODOLÓGICAS VERTIDAS AO DIREITO JUSTO .......................................................
511
CONSIDERAÇÕES FINAIS ..........................................................................................................................
519
REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................
520
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
Caríssimo(a) Associado(a),
Apresento o livro do Grupo de Trabalho Hermenêutica, do XXII Encontro Nacional do
Conselho Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em Direito (CONPEDI), realizado no Centro
Universitário Curitiba (UNICURUTIBA/PR), entre os dias 29 de maio e 1º de junho de 2013.
O evento propôs uma análise da atual Constituição brasileira e ocorreu num ambiente
de balanço dos programas, dada a iminência da trienal CAPES-MEC. Passados quase 25 anos
da promulgação da Carta Magna de 1988, a chamada Constituição Cidadã necessita uma
reavaliação. Desde seus objetivos e desafios até novos mecanismos e concepções do direito,
nossa Constituição demanda reflexões. Se o acesso à Justiça foi conquistado por parcela
tradicionalmente excluída da cidadania, esses e outros brasileiros exigem hoje o ponto final do
processo. Para tanto, basta observar as recorrentes emendas e consequentes novos
parcelamentos das dívidas dos entes federativos, bem como o julgamento da chamada ADIN
do calote dos precatórios. Cito apenas um dentre inúmeros casos que expõem os limites da
Constituição de 1988. Sem dúvida, muitos debates e mesas realizados no XXII Encontro
Nacional já antecipavam demandas que semanas mais tarde levariam milhões às ruas.
Com relação ao CONPEDI, consolidamos a marca de mais de 1.500 artigos submetidos,
tanto nos encontros como em nossos congressos. Nesse sentido é evidente o aumento da
produção na área, comprovável inclusive por outros indicadores. Vale salientar que apenas no
âmbito desse encontro serão publicados 36 livros, num total de 784 artigos. Definimos a
mudança dos Anais do CONPEDI para os atuais livros dos GTs – o que tem contribuído não
apenas para o propósito de aumentar a pontuação dos programas, mas de reforçar as
especificidades de nossa área, conforme amplamente debatido nos eventos.
Por outro lado, com o crescimento do número de artigos, surgem novos desafios a
enfrentar, como o de (1) estudar novos modelos de apresentação dos trabalhos e o de (2)
aumentar o número de avaliadores, comprometidos e pontuais. Nesse passo, quero agradecer a
todos os 186 avaliadores que participaram deste processo e que, com competência, permitiramnos entregar no prazo a avaliação aos associados. Também gostaria de parabenizar os autores
11
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
selecionados para apresentar seus trabalhos nos 36 GTs, pois a cada evento a escolha tem sido
mais difícil.
Nosso PUBLICA DIREITO é uma ferramenta importante que vem sendo aperfeiçoada
em pleno funcionamento, haja vista os raros momentos de que dispomos, ao longo do ano, para
seu desenvolvimento. Não obstante, já está em fase de testes uma nova versão, melhorada, e
que possibilitará sua utilização por nossos associados institucionais, tanto para revistas quanto
para eventos.
O INDEXA é outra solução que será muito útil no futuro, na medida em que nosso
comitê de área na CAPES/MEC já sinaliza a relevância do impacto nos critérios da trienal de
2016, assim como do Qualis 2013/2015. Sendo assim, seus benefícios para os programas serão
sentidos já nesta avaliação, uma vez que implicará maior pontuação aos programas que
inserirem seus dados.
Futuramente,
o
INDEXA permitirá estudos próprios e comparativos entre os
programas, garantindo maior transparência e previsibilidade – em resumo, uma melhor
fotografia da área do Direito. Destarte, tenho certeza de que será compensador o amplo esforço
no preenchimento dos dados dos últimos três anos – principalmente dos grandes programas –,
mesmo porque as falhas já foram catalogadas e sua correção será fundamental na elaboração da
segunda versão, disponível em 2014.
Com relação ao segundo balanço, após inúmeras viagens e visitas a dezenas de
programas neste triênio, estou convicto de que o expressivo resultado alcançado trará
importantes conquistas. Dentre elas pode-se citar o aumento de programas com nota 04 e 05,
além da grande possibilidade dos primeiros programas com nota 07. Em que pese as
dificuldades, não é possível imaginar outro cenário que não o da valorização dos programas do
Direito. Nesse sentido, importa registrar a grande liderança do professor Martônio, que soube
conduzir a área com grande competência, diálogo, presença e honestidade. Com tal conjunto de
elementos, já podemos comparar nossos números e critérios aos das demais áreas, o que será
fundamental para a avaliação dos programas 06 e 07.
12
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
Com relação ao IPEA, cumpre ainda ressaltar que participamos, em Brasília, da III
Conferência do Desenvolvimento (CODE), na qual o CONPEDI promoveu uma Mesa sobre o
estado da arte do Direito e Desenvolvimento, além da apresentação de artigos de pesquisadores
do Direito, criteriosamente selecionados. Sendo assim, em São Paulo lançaremos um novo
livro com o resultado deste projeto, além de prosseguir o diálogo com o IPEA para futuras
parcerias e editais para a área do Direito.
Não poderia concluir sem destacar o grande esforço da professora Viviane Coêlho de
Séllos Knoerr e da equipe de organização do programa de Mestrado em Direito do
UNICURITIBA, que por mais de um ano planejaram e executaram um grandioso encontro.
Não foram poucos os desafios enfrentados e vencidos para a realização de um evento que
agregou tantas pessoas em um cenário de tão elevado padrão de qualidade e sofisticada
logística – e isso tudo sempre com enorme simpatia e procurando avançar ainda mais.
Curitiba, inverno de 2013.
Vladmir Oliveira da Silveira
Presidente do CONPEDI
13
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
Apresentação
Os trabalhos apresentados no Grupo de Trabalho Hermenêutica, do XXII Encontro
Nacional do CONPEDI, em junho do corrente ano, na UNICURITIBA, trafegam entre vários
pontos e assuntos das abordagens Hermenêuticas contemporâneas. Ao mencionarmos essa
amplitude de abordagens, queremos dizer que os trabalhos apresentam desde críticas ao papel
da interpretação até a apresentação de novos referenciais para a hermenêutica hodierna.
A pluralidade de abordagem já reflete a inquietação do próprio status da hermenêutica,
qual seja, um saber de orientação, de programas gerais de decisões e concretização de decisões,
ou antes uma grande construção teórica capaz de abordar não só as dimensões textuais, mas,
além disso, as experiências culturais e históricas.
De maneira prudente podemos dizer que o grupo de trabalho não se propôs a encerrar
uma hermenêutica jurídica - embora a compreenda - e sim abre espaços para que os flertes
variados apareçam na produção dos colaboradores. Os anéis do grupo de trabalho se abrem às
abordagens da hermenêutica como o problema de compreensão do mundo, da história, ou
como o corpo de discussão dos métodos, da história e da cultura.
Nos trabalhos é possível observar uma preocupação com os aspectos da hermenêutica
como a disciplina de análise de consequências das decisões judiciais ou administrativas. É
enriquecedor verificar a aproximação da Hermenêutica às análises econômicas do direito,
investigando os impactos da prática decisional na política econômica do Estado.
De outra sorte, veem-se trabalhos de descrição e investigação de nomes ou autores que
apresentam contribuições substantivas à hermenêutica. Nesses artigos há a investigação de
como
essas
contribuições alimentam a metodologia e os próprios fundamentos da
Hermenêutica.
O ativismo judicial aparece como assunto recorrente e os trabalhos do grupo se
reportam ao fenômeno discutindo as propriedades de assim denominá-lo (há um ativismo?),
aos fundamentos hermenêuticos do ativismo. Não há a adesão inconteste ao ativismo e sim a
14
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
discussão sobre os limites, sobre os desvirtuamentos que certas ações do judiciário, ainda que
encobertas sob o manto de uma suposta hermenêutica avançada, possam apresentar (como,
nalguns casos, estereótipos). Essas ações são discutidas e decantadas, nos seus resultados e na
própria ideia de avanço.
Algumas das contribuições na obra são de forte abordagem empírica, em muitos casos
constituindo valiosa abordagem de pesquisa aplicada ao Direito. É bastante perceptível a
preocupação com o funcionamento organizacional do Estado, mormente de como o judiciário,
e as práticas do judiciário, têm se havido na solução conflitual. Nessas veredas, há o forte
questionamento
crítico
no
Tribunal Superior,
com importantes
abordagens
sobre
a
jurisprudência e os julgados do STF.
Não há no grupo de trabalhos o domínio de preocupações da Hermenêutica com os
quadrantes do direito público. Há trabalhos que se valem de boas perspectivas críticas do
direito privado, a partir da Hermenêutica.
Mas não vá ao erro de ver o livro apresentado como um apanhado sincrético de
trabalhos com a Hermenêutica como pano justificador. Não se trata de um uso caricato do
sincretismo, já flertando com as contribuições da Hermenêutica, e sim de um amálgama de
sistemas, abordagens e leituras. É enriquecedor pela pluralidade.
Coordenadores do Grupo de Trabalho
Professor Doutor Alexandre Walmott Borges – UFU
Professor Doutor João Maurício Leitão Adeodato – UFPE
Professora Doutora Iara Rodrigues de Toledo – UNIVEM
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
A ABORDAGEM PRAGMÁTICA DE RICHARD POSNER SOB A ANÁLISE
CRÍTICA DA TEORIA DA INTEGRIDADE
THE PRAGMATIC APPROACH OF RICHARD POSNER UNDER THE CRITICAL
ANALYSIS OF THE LAW AS INTEGRITY
Raphaela Borges David
RESUMO
O presente estudo visa a trabalhar duas vertentes da teoria da interpretação judicial norteamericana que permeia a discussão hermenêutica estadunidense. A ideia é fazer uma descrição
da postura interpretativa trazida pelo Law and Economic de Richard Posner, para, num
segundo momento, fazer uma análise crítica da mesma através dos argumentos de Ronald
Dworkin e de sua Teoria da Integridade. Após a descrição da abordagem pragmática
posneriana, bem como da exposição de sua crítica dworkiana, passaremos, em sede
conclusiva, para uma abordagem crítica e reflexiva do caso paradigmático Bush vs. Gore,
para demonstrar o golpe final da Teoria da Integridade aos argumentos utilitarista de Posner. A
posição aqui tomada, então, passa a ser da busca pela legitimidade das decisões judicias a
partir de uma hermenêutica constitucionalmente adequada ao Estado Democrático de Direito.
PALAVRAS-CHAVES: Law and Economic; Teoria da Integridade; Hermenêutica
Constitucional; Caso Bush vs. Gore.
ABSTRACT
The current study aims to work two aspects of the north american judicial interpretation that
permeates the U.S. hermeneutics discussion. The idea is to make a description of the
interpretative posture brought by Richard Posner's Law and Economic, for, in a second look,
make a critical analysis of the same, through the Ronal Dworkin's arguments and of his Law
as Integrity. After the posnerian description of the pragmatic approach, as so of its critical
dworkian exposure, will forward, conclusively, to a critical and reflexive approach of the
paradigmatic Bush vs. Gore case, to demonstrate the final blast of the Integrity Theory under
the Posner's utilitarian arguments. The position here taken, so, becomes the search for the
legitimacy of the judicial decisions from an hermeneutics constitucionally proper to a
16
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
democratic state.
KEYWORDS: Law and Economic; Law as Integrity; Hermeneutics Constitutional; Case
Bush vs. Gore.
INTRODUÇÃO
Richard Allen Posner nasceu em Nova York em 1939. Formou-se em letras por Yale
em 1959 e em direito por Harvard em 1962. Depois de formado, trabalhou na Suprema Corte
dos EUA assistindo o Justice William Brennan, Jr. entre 1962 e 1963. De 1963 a 1965, foi
assistente do Comissário Philip Elman na Comissão Federal de Comércio (órgão regulador da
concorrência). Nos dois anos seguintes ele foi assistente do procurador geral dos Estados
Unidos, Thurgood Marshall. Atuou como conselheiro geral da Força Tarefa do Presidente
sobre Política de Comunicação, antes de ingressar em Stanford. Posner começou a lecionar
em 1968, em Stanford, ingressando na Universidade de Chicago em 1969, onde leciona até o
momento. Em 1981 tornou-se juiz do tribunal de apelação para a 7ª região (U.S. Court of
Appeals for the Seventh Circuit), tribunal do qual foi presidente (chief Justice) entre 1993 e
20001.
É um dos principais expoentes da Law and economics, uma corrente de pensamento
jurídico segundo a qual os processos legais, mais do que assegurar direitos, devem produzir a
mais eficiente alocação de recursos. A maximização da riqueza (wealth maximization) deve
orientar a atuação do magistrado e a decisão desse deve ter como base a relação custobenefício. O livro fundamental de Posner é Economic Analysis of Law (1972), no qual lança
as bases do programa de pesquisas de Law & Economics. Sua teoria da democracia inspira-se
no trabalho do economista austríaco Joseph Schmpeter. Richard Posner acredita que o modo
de pensar pragmático tem muito a contribuir para a compreensão do sistema jurídico dos
Estados Unidos. O pragmatimismo de Posner é o chamado everyday pragmatism, cuja
característica é a prática do dia a dia, sem universalizações, teorizações, generalizações e
ponderações filosóficas. No prefácio da obra Problemas de Filosofia do direito, Posner
registra que começou a escrever sobre filosofia do direito em 1970, ao abordar “o ataque
lançado por Bentham a Blackstone, sobre as bases normativas da análise econômica do
1
Para
mais
ver:
http://www.law.uchicago.edu/faculty/posnerrhttp://www.law.uchicago.edu/faculty/posner-r, acesso em fev 2013.
17
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
direito, sobre as raízes do direito na vingança e sobre a justiça corretiva”. Quando se tornou
juiz (1981), fascinou-se “pela questão da objetividade nas decisões judiciais, que ocupa uma
posição central neste livro (pág. XIV)”. Posner declara que “Tento examinar os problemas de
filosofia do direito com o distanciamento recomendado por Yeats e, portanto, sem a beatice e
o artificialismo tendencioso que são de rigueur em tantas discussões sobre o direito. Defendo
uma filosofia do direito que seja crítica do formalismo (menos pejorativamente, do legalismo
tradicional) e tenha afinidades com o realismo jurídico, desde que despojado da política de
centro-esquerda que é característica desse movimento e de sua descendência. Refiro-me a
uma filosofia do direito que, como o realismo jurídico, faz uso da filosofia do pragmatismo
(ainda que não apenas desta filosofia) mas que, ao contrário de algumas versões do realismo
jurídico, procura desmitologizar o direito sem denegri-lo ou satanizá-lo”. “Filosofia do
direito” significa, para Posner, “o plano de análise mais fundamental, geral e teórico do
fenômeno social chamado direito”.
No presente artigo, vamos descrever os posicionamentos de Posner relativos à
interpretação judicial, bem como expor as críticas feitas por Ronald Dworkin na obra “Justiça
de Toga”.
A CONCEPÇÃO DE INTERPRETEÇÃO JURÍDICA DA ANÁLISE ECONÔMICA DO
DIREITO
A ideia aqui é trazer o posicionamento de Posner sobre a interpretação jurídica,
posicionamento esse que embasa a sua Análise Econômica do Direito. O autor utiliza os
capítulos 10 e 11 de sua obra “Problemas de Filosofia do Direito” para argumentar acerca da
interpretação das leis e dos posicionamentos tomados pelos magistrados e legisladores diante
das decisões que lhe são colocadas. Ele inicia afirmando que “a interpretação de um texto
não é dedução, mas talvez seja uma coisa quase tão direta – uma questão de ler
cuidadosamente e deixar o significado evidente das palavras ditar a interpretação do texto”
(POSNER, 2007, p. 352).
O autor se dedica nas primeiras partes do capítulo à analisar a proposta do juiz Holmes
sobre o significado evidente, teoria esta que leciona que a comunidade linguística dos autores
deve determinar o significado da lei, procurando o que aquelas palavras significariam na boca
de um falante normal da língua inglesa que as empregasse nas circunstâncias em que foram
empregadas. Posner rebate o critério do “falante normal do inglês”, alegando que o
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
pressuposto de Holmes de comunidade linguística não considera as várias comunidades
linguísticas possíveis e os diferentes significados que os termos podem ter com o passar do
tempo. Ele distingue ambiguidade interna (“[...] está presente quando uma pessoa que lê uma
frase e conhece a língua em que ela está escrita, mas nada sabe sobre as circunstâncias em
que ela foi escrita, considera-a pouco clara.”) de ambiguidade externa (“[…] está presente, e
com a mesma consequência, quando a frase, apesar de clara para um falante normal do
inglês que ignora as circunstâncias que a informam, é obscura e confusa, ou significa, para
alguém que conhece seus antecedentes, alguma coisa diferente daquilo que pensa o falante
normal do inglês.”) para concluir que a abordagem do significado evidente de Holmes exclui
os argumentos do último tipo, mutilando o processo interpretativo (POSNER, 2007, p. 354355).
Posner argumenta que a ideia de comunicação é apenas um ponto de partida,
justamente porque muitas são as possibilidades interpretativas utilizadas na prática jurídica.
Por essa razão, ele diz que é preciso definir uma concepção sobre que tipo de texto a lei é,
sugerindo que a lei é melhor compreendida não como obra literária, e sim como um comando,
ou seja, como um ato de comunicação entre um organismo superior – o legislativo – a um
organismo subordinado – o judiciário2. Demonstra que existe uma ambiguidade na teoria de
Holmes, uma vez que o falante normal do inglês “não interpreta uma mensagem consultando
meramente as definições dicionarizadas de cada palavra e os princípios gramaticais e
sintáticos relevantes” (POSNER, 2007, p. 361). Conclui que o “significado depende tanto do
contexto quanto das propriedades semânticas de outras propriedades formais dos enunciados
linguísticos” (POSNER, 2007, p. 361).
As palavras, para Posner, são apenas um indício da vontade do redator, uma vez que o
método interpretativo tem caráter prospectivo, pouco importando para a abordagem
pragmática se a lei é obscura ou incompleta. Aqui, a lei é vista como um recurso para se lidar
com os problemas do presente, o que equivale dizer com o futuro da lei. Dessa forma, juízes
não devem se tornar “arqueólogos” ou “antiquários” fracassados, devendo ter sempre em
mente que eles fazem parte de uma atividade viva, qual seja, governar os Estados Unidos,
devendo decidir mesmo quando o texto não claro e completo (POSNER, 2007, p. 363).
“Quanto mais refletimos sobre a interpretação em geral, mais
distantes nos vemos da questão importante a propósito da
2
Posner discute uma série de casos para demonstrar as inúmeras possibilidades interpretativas,
bem como para demonstrar ambiguidade, obscuridade ou erros lógicos inexplicáveis no texto da
lei, comuns no cotidiano. V. Problemas de Filosofia do Direito, p. 357-361.
19
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
interpretação das leis, que é política e não epistêmica: até que ponto
os juízes deveriam sentir-se livres dos grilhões do texto e da intenção
legislativa ao aplicarem as leis e a Constituição? A partir do fato de
que a interpretação é um conceito vago, abrangente, inclusive
ilimitado, não segue que os juízes devam considerar-se portadores de
carta
branca
para
interpretarem
os
dispositivos
legais
e
constitucionais. Os limites da interpretação são por demais flexíveis.
[…] Talvez fosse melhor abolir totalmente a palavra “interpretação”
e, em seu lugar, falar, à maneira pragmática, das consequências das
abordagens antagônicas para a função judicial nos casos legais e
constitucionais – a abordagem que enfatiza a liberdade do juiz versus
a abordagem que enfatiza a responsabilidade do juiz como autoridade
subordinada ao sistema de governo. […] Os juízes devem empenharse de boa-fé em fazer cumprir a legislação a despeito de seu acordo
ou desacordo com seus meios e fins. [...]um juiz que interpreta um
texto legislativo pouco claro não deve tentar ajustar uma política
pública a sua concepção pessoal do que é certo ou errado – desde
que a política pública contida na lei seja discernível. Mas é possível
que não seja ou, mesmo quando for, que não nos oriente no sentido de
encontrar uma resposta para a questão interpretativa específica que
se colocou. No direito como na guerra, a doutrina tem seus limites”.
(POSNER, 2007, p. 365-366)
O autor afirma que quando métodos interpretativos, tais como a interpretação
finalística ou a reconstrução imaginativa falham, a interpretação das leis transforma-se numa
questão de criação de políticas públicas judiciais, o que acaba por criar problemas de
objetividade judicial. Muitos juízes utilizam-se dos chamados cânones interpretativos, que
Posner define como a sabedoria popular coletiva da interpretação das leis, que não oferecem
resposta às questões complexas de interpretação de forma maior do que as máximas da vida
cotidiana oferece para os problemas do dia a dia. Muitos desses cânones não são
interpretativos e sim estabelecem políticas públicas. Todo esse cenário demonstra a limitação
desse modelo, bem com a sua impossibilidade de resolver todas as questões de direito
legislado. Posner chega a propor a abolição da palavra “interpretação” em detrimento à
“consequências das abordagens antagônicas para as função judicial nos casos legais e
20
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
constitucionais”. (POSNER, 2007, p. 374-377). Aqui entra uma crítica à Dworkin:
“A abordagem de Dworkin tenta fazer no varejo aquilo que os
cânones substantivos de interpretação mencionados no capítulo
anterior3 tentam fazer no atacado: transferir o plano de análise do
modo de extrair o significado que, pode-se dizer, os legisladores
introduziram na lei, para o modo de conferir o melhor significado
ético ou político.” (POSNER, 2007, p. 385)
Falando da hermenêutica, Posner afirma que as condições políticas, econômicas,
culturais e sociais desde a edição da Constituição ou de uma lei se alteraram, levando à um
poder legislativo e judiciário extremamente diversificado, o que acaba por trazer influências
as interpretações ali dadas. “O significado não reside simplesmente nas palavras de um texto,
pois as palavras estão sempre apontando alguma coisa que lhes é extrínseca. O significado é
aquilo que emerge quando os critérios e as experiências linguísticas e culturais são
aplicados no texto” (POSNER, 2007, p. 397). Daí uma indeterminabilidade inevitável na
interpretação. O autor cita o filósofo alemão Hans-Georg Gadamer, mas conclui que a
hermenêutica produz bons conselhos, mas que estes não contribuem para a criação de uma
metodologia específica nem demonstram a impossibilidade de uma interpretação objetiva.
“O problema é que não há técnicas para produzir interpretações
objetivas de textos difíceis. A hermenêutica coloca o problema, mas
não oferece solução. Não é nem a salvação da interpretação jurídica
nem o anunciador de sua ruína. A hermenêutica não vai ensiná-lo a
interpretar a Oitava Emenda ou a lei de monopólio e concorrência
desleal (Sherman Act). Não vai nem mesmo lhe dizer se você deve
interpretar os textos jurídicos em sentido lato ou limitar-se ao
significado de superfície. Este é um julgamento político; e, tendo em
vista o pouco que sabemos sobre as consequências da escolha, é bem
possível que, por muito tempo ainda, a escolha entre interpretação
rígida e flexível, restritiva e ampla, vai depender não de
considerações analíticas, mas do temperamento dos juízes”
(POSNER, 2007, p. 399).
3
No caso, exposto, de forma sintética, no parágrafo anterior. Para mais, v. Problemas de Filosofia
do Direito, p. 362-383.
21
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
Então Posner chega no centro da sua argumentação: a ideia de que as questões
interpretativas podem ser traduzidas em forma de questões sobre consequências. “Talvez o
melhor a fazer quando se invoca uma lei seja examinar as consequências de dar a quem a
invoca aquilo que deseja, e então avaliar se tais consequências serão boas em termos gerais”
(POSNER, 2007, p. 403). Afirma, ainda, que as nossas certezas jurídicas tem base pragmática
e não analítica.
Abordando o papel da filosofia no direito, Posner afirma que
“ […] vejo com ceticismo a possibilidade de que a filosofia moral
tenha muito a oferecer ao direito em termos de respostas a questões
jurídicas específicas, ou mesmo de suporte em geral. O valor
fundamental da filosofia moral para o direito é crítico. Ajuda-nos a
identificar as fraquezas de teorias sociais ambiciosas que poderiam
ser usadas para gerar, validar ou revogar obrigações jurídicas, e
desse modo reforça a lição de ceticismo que constitui um fio condutor
deste livro. Porém, ficamos a ver navios quando o que está em jogo
são casos específicos. A razão disso é que a filosofia moral é em
grande parte um metadiscurso.” (POSNER, 2007, p. 466-467)
Atribui à duas razões do fracasso da filosofia moral no caso prático: a) o conhecimento
é testado por nossas intuições morais que tendem a ser ao mesmo tempo refratárias a
mudanças e mais divergentes do que as intuições sobre o mundo físico; b) a solução dos
dilemas morais requer a imersão nos aspectos particulares de cada dilema e os filósofos não
têm o tempo e a formação para especializar-se nos detalhes de cada questão.
“Os métodos da filosofia moral e política não são poderosos o
bastante
para
solucionar
os
debates
morais
que
afetam
profundamente as pessoas, nem para oferecer bases sólidas para os
julgamentos legais depois de tê-los resolvido. Na verdade, por mais
frágeis que sejam os métodos de raciocínio jurídico, não são mais
frágeis do que os métodos de raciocínio moral.” (POSNER, 2007, p.
468)
22
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
Passando para Análise Econômica do Direito propriamente dita, situada mais
especificamente no capítulo 12 da obra aqui comentada, Posner afirma que
“O pressuposto básico da economia que orienta a versão da análise
econômica do direito que apresentarei aqui é o de que as pessoas são
maximizadores racionais de suas satisfações – todas as pessoas (com
a exceção de crianças bem novas e das que sofrem de graves
distúrbios mentais), em todas as suas atividades (exceto quando sob
influência de transtornos psicóticos ou perturbações semelhantes que
decorrem do abuso de álcool e drogas) que implicam uma escolha.
[…] Deve ficar subentendido que tanto as satisfações não-monetárias
quanto as monetárias entram no cálculo individual de maximização
(de fato, para a maioria das pessoas o dinheiro é um meio, e não um
fim), e que as decisões, para serem racionais, não precisam ser bem
pensadas no nível consciente – na verdade, não precisam ser de modo
algum conscientes. Não nos esqueçamos de que ‘racional’ denota
adequação de meios a fins, e não meditação sobre as coisas, e que
boa parte de nosso conhecimento é tácita. […] Uma vez que meu
interesse se volta para as doutrinas e instituições jurídicas, melhor
será começar pelo nível legislativo (inclusive o constitucional).
Presumo que os legisladores sejam maximizadores racionais de suas
satisfações tanto quanto as outras pessoas. Portanto, nada do que
fazem é motivado pelo interesse público enquanto tal. Todavia, eles
querem ser eleitos e reeleitos, e precisam de dinheiro para fazer uma
campanha eficaz”. (POSNER, 2007, p. 473-474)
A tese central da análise econômica do direito, portanto, é localizada numa perspectiva
de cunho utilitarista (embora não tradicional), na qual a decisão de um juiz deve se pautar por
uma relação custo-benefício. Com isso, o direito só é perspectivo quando promove a
maximização das relações econômicas, sendo que a maximização da riqueza (wealth
maximization) deve orientar a atuação do magistrado (POSNER, 2003).
A CRÍTICA DE RONALD DWORKIN À RICHARD POSNER
23
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
Dworkin abre o capítulo 2 da obra a Justiça de Toga intitulado em “O elogio da teoria”
dizendo que pretende abordar o papel da teoria no raciocínio jurídico e na prática jurídica,
uma vez que juízes, juristas, advogados e pessoas comuns reagem às controvérsias sobre o
que é o direito de maneiras profundamente diferentes. Abre-se, então, a questão principal:
“[...] o que torna verdadeira ou falsa uma afirmação sobre o que é o direito no que diz respeito
a determinada questão?” ou, de outra forma, “ Qual a maneira adequada de raciocinar ou
apresentar sobre a veracidade de alegações de direito?” (DWORKIN, 2011, p.72).
Para tais questões, haveriam duas respostas gerais. A primeira, chamada de
“abordagem teórica”, donde raciocinar (em termos jurídicos) seria aplicar uma ampla rede de
princípios de natureza jurídica ou de moralidade política, entendendo que é impossível refletir
sobre a resposta correta sem que se tenha refletido (ou se esteja disposto a fazê-lo) sobre um
vasto sistema teórico de princípios. A segunda, chamada de “abordagem prática” (por
oposição à teórica), implicaria na ideia de que uma decisão é um acontecimento político, e
que juízes, advogados e todos os que refletem sobre o direito devem voltar sua atenção para o
problema prático de como podemos tornar as coisas melhores, conhecendo bem as
consequências de decisões diferentes e partindo de alguma noção de economia. Alerta
Dworkin, que a segunda resposta parece equilibrada, sensata e tão norte-americana, mas que
ele tentará apresentar uma defesa da primeira abordagem – não apenas atraente, mas
inevitável.
Quando Dworkin diz defender a “abordagem teórica”, adotando largamente a
expressão “princípios inseridos na prática”, está, na verdade, utilizando-se de uma metáfora,
que pretende sugerir que justificamos as alegações jurídicas ao demonstrar que os princípios
também oferecem a melhor justificação de uma pratica jurídica mais geral no direito em que
se situa o caso. Quando se diz que um ou outro principio oferece melhor justificação de algum
aspecto da pratica jurídica, deve-se entender melhor no sentido interpretativo, colocando
aquela prática sob uma luz mais favorável.
O autor explica que Hércules, diferentemente dos juristas, expressa seus pensamentos
de fora para dentro, de forma que, ao julgar seu primeiro caso, ele elabora uma teoria
gigantesca, de grande abrangência e apropriada para todas as situações. As pessoas comuns,
os juristas e os juízes, por sua vez, raciocinam de dentro para fora: começam por problemas
que lhe são colocados, e por razões de tempo ou necessidade não podem se dedicar longas
pesquisas e argumentações. O autor diz, porém, que não há incoerência nessas duas imagens
– Hércules, que reflete de fora para dentro, ou jurista mortal, que raciocina de dentro para
fora.
24
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
A ciência, enquanto conjunto de conhecimentos, se assemelha a uma rede inteiriça,
onde existem costuras e emendas das quais os cientistas de ocupam. A importância da ideia de
conhecimento que vem de fora para dentro está na ambição de que a nossa física seja
compatível com a nossa química, nossa metalurgia com a nossa engenharia e assim por
diante.
Na verdade, esperamos algo mais, que acreditamos já ter realizado
em parte – não apenas que cada um desses conjuntos de
conhecimentos convencionalmente distintos seja compatível com os
outros, mas que possam ser hierarquicamente dispostos de modo que
o da física, talvez, seja considerado como o mais abstrato, e que os
outros
possam
ser
vistos
como
campos
de
pensamento
progressivamente mais concretos. (DWORKIN, 2011, p. 80)
Utiliza, então, o exemplo de Minerva, que ao estilo de Hércules, gasta os séculos
necessários para dominar a história do tempo e do espaço e as forças fundamentais da teoria
das partículas antes de se dedicar a construir uma simples ponte. É sabido que nenhum
cientista pode seguir o exemplo de Minerva, mas este exemplo, segundo Dworkin, vai ao
encontro com a sua já citada ideia de que o raciocínio jurídico pressupõe um largo campo de
justificação, que incluem princípios bastante abstratos de moralidade política. E nós tendemos
a dar por certa essa estrutura, da mesma maneira que a engenharia faz com a maior parte dos
seus conhecimentos ao construir uma ponte. Nessa linha, a concepção teórica que o autor
defende é uma descrição do raciocínio jurídico, de como podemos discutir adequadamente
sobre o que é o direito.
Num segundo momento, Dworkin passa a abordar as criticas à concepção teórica,
principalmente na tendência intelectual antiteórica do fim do século XX, advinda de um
contexto de desconfiança da teoria, seja por dizê-la mistificadora, seja por dizê-la opressora,
dentre outras. Concentra-se, porém, na tendência dominante, localizada na Escola de Chicago,
notadamente no juiz Posner e no professor Cass Sunstein. Resume a argumentação em três
tópicos: metafísico, o pragmático e o profissional.
O argumento metafísico é baseado na noção de que não existem respostas
objetivamente corretas, que não existe verdade objetiva sobre a moralidade política, uma vez
que todas as nossas convicções sobre esses assuntos são criações dos nossos “jogos de
linguagem”, locais e contingentes. Dworkin o combate em dois argumentos: (a) [...] se não
25
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
existe nenhuma moral objetiva, nenhuma afirmação desse tipo pode ser, de fato, superior em
qualquer caso verdadeiramente difícil; e (b) [...] os juristas [...] devem estar prontos a
oferecer uma justificação teórica a seus julgamentos porque não é justo submeter alguns
cidadãos a um regime de princípios que a comunidade desautoriza em outras circunstâncias
– e essa própria defesa moral reivindica status objetivo (DWORKIN, 2011, p. 85). Ou seja:
[...] se o argumento de que não existe verdade objetiva acerca de
questões morais é bem fundado, sua consequência não é a de que
existe, não obstante, uma verdade para nossa comunidade, mas sim
que há uma verdade distinta para cada um de nós, e não podemos
sustentar uma abordagem teórica da decisão judicial com base nisso.
(DWORKIN, 2011, p. 86)
O argumento pragmático é aquele em que Posner afirma não querer fundamentar seus
escritos em nenhuma tese filosófica, considerando seus pontos de vista sobre a decisão
judicial como independentes. Defende que não devemos acolher ideias estranha e que
devemos estar sempre atentos às consequências da decisão como forma de condução da
atividade intelectual e jurídica. O raciocínio jurídico, então, é consequencial e não
deontológico, com finalidades utilitaristas, no sentido de que a lei ou a decisão judicial tornará
uma situação melhor se, no conjunto ou na media, resultar na melhora da condição das
pessoas. Posner ainda diz que a abordagem pragmática é experimental, recomendando que a
decisão judicial seja imaginativa, devendo os juízes experimentar soluções diferentes para os
problemas para verem quais funcionam, sem levar em consideração se são endossadas por
alguma teoria de peso.
O problema aqui, é justamente a preocupação com aquilo que
funciona apenas, e não com o que é verdadeiro, o que além de inútil é incompreensível.
A terceira objeção à abordagem teórica é o “argumento profissional”, donde Posner
afirma sermos apenas juristas, e não filósofos, devendo pensar e racionar como tanto. Cass
Sunstein retoma uma descrição de Edward Levi sobre a argumentação altamente
profissionalizada, descrita de abordagem “incompletamente teorizada”, sugerindo que juristas
e juízes devem abster-se, no exercício da responsabilidade do julgamento individual, de
aventura-se no campo abstrato da teoria moral política.
Dworkin demonstra, porém, como esse argumento de Sunstein é problemático, uma
vez que é necessário um mínimo de fundamentação teórica para decidir os casos concretos:
não podemos nem começar a responder a essas perguntas se um profundo mergulho na teoria
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(DWORKIN, 2011, p. 99). Sunstein entende isso, mas rebate dizendo que exposição teórica
utilizada remeterá a princípios “de nível mediano”, sem invocar o alto nível da integridade.
Fica claro, porém, que a expressão de “de nível mediano” é extremamente problemática, dada
a sua indeterminação e sua falta de clareza e determinação. Esse autor, portanto, não consegue
refutar a abordagem teórica, não ficando claro em sua argumentação os motivos pelos quais
ele prefere abandonar a integridade e defender a antiteoria.
Dworkin conclui dizendo:
Por esse motivo, espero que minhas palavras finais reforcem, na
mente do leitor, o porquê de a integridade ser tão importante. Toda
democracia contemporânea é uma nação dividida, e nossa própria
democracia é particularmente dividida. Nossas divisões são de
natureza cultural, étnica, política e moral. Não obstante, aspiramos a
viver juntos como iguais, e parece absolutamente crucial para essa
ambição que também aspiremos que os princípios que nos governam
nos tratem como iguais. Devemos nos empenhar o máximo possível
em não aplicar uma teoria da responsabilidade aos laboratórios
farmacêuticos e outra teoria aos motoristas, em não adotar uma
teoria da liberdade de expressão quando estamos preocupados com a
pornografia e outra teoria quando o que nos preocupa é a queima de
bandeiras. Só poderemos perseguir essa indispensável ambição se
tentarmos, sempre que necessário, nos colocar em um plano bastante
elevado em nossas deliberações coletivas, inclusive em nossas
decisões judiciais, de modo a por à prova nosso progresso em tal
direção.
Devemos
nos
incumbir
desse
dever
soberano
se
pretendermos alcançar um Estado de Direito que não seja apenas
instrumento de avanço econômico e paz social, mas um símbolo e
espelho de igual consideração publica, que nos dá o direito de
afirmar a comunidade (DWORKIN, 2011, p. 150-106).
Já no capítulo 3 da obra “Justiça de Toga”, Dworkin inicia narrando uma terceira
crítica de Posner, publicada em 1998, chamada por este de ataque à “teoria moral”. O autor
acusa o utilitarista de uma argumentação de má qualidade, com base em duas razões. A
primeira, seria a de que os argumentos de Posner estão conectados ao chamado movimento
antiteórico populista (muito poderoso na vida intelectual norte-americana), sendo a sua
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argumentação um exemplo dessa tendência. O segundo motivo para Dworkin examinar os
argumentos de Posner é de natureza tática, uma vez que, apesar desse pretender demonstrar
que juízes e pessoas comuns podem passar sem a teoria moral, acaba utilizando-se de
argumentos que recorrem o tempo todo a essa teoria. Essa contradição se dá, principalmente,
porque não se percebe a diferença crucial entre a filosofia moral por um lado, e sociologia,
antropologia e psicologia morais por outro. Há ligações importantes entre esses campos, mas
a moral é um domínio conceitualmente distinto de todos os demais. Posner diferencia
questões “sobre” moral (que incluem os domínios da sociologia moral, da antropologia moral
e da psicologia moral) de questões “de” moral (que se constituem apenas da moral em si),
para dizer que sua teoria só diz respeito ao “sobre”. Dworkin, por sua vez, vai traçar uma
argumentação para demonstrar como Posner se utiliza mais “de” moral do que “sobre” moral.
Posner combate não a moral, mas a teoria moral, que ele diz serem coisas distintas.
Dworkin afirma que tal diferença, entretanto, é apenas uma questão enganosa de grau, uma
vez que é impossível estabelecer onde o juízo moral termina e onde começa a teoria moral:
“Sustentar um ponto de vista que parece instável ou arbitrário depois
da costumeira reflexão moral, reconstituindo suas ligações com
princípios, concepções ou ideais mais amplos, é parte componente do
raciocínio moral, não algo diferente que se resolve acrescentar, assim
como alguns esportes admitem a continuidade de uma partida tendo
em vista o desempate. [...] Ele não consegue entender nem a
complexidade das razões que animam o raciocínio moral nem a
complexidade da interação entre reflexão e convicção quanto
fenômenos morais.” (DWORKIN, 2011, p.115-116).
Posner sustenta, ainda, que nenhuma teoria moral pode oferecer uma base sólida para
um juízo moral, mas fica claro para Dworkin que essa própria tese é um juízo moral de
natureza global e teórica, pois o fato de se questionar se algum tipo de afirmação moral
oferece tal base solida já constitui, em si, uma questão moral. Ou seja, tal tese “forte” só pode
ser defendida com o apoio de uma teoria moral substantiva, ainda que seja esta niilista,
dizendo que nenhum argumento teórico pode oferecer uma boa razão para considerar um ato
certo ou errado. Posner, porém, nega ser niilista, e se descreve como um “relativista” moral:
acredita que existem afirmações morais válidas, como aquelas que atendem a critérios para
declaração de tal validade. Esse critério seria local, relativo ao código moral de uma cultura
particular dentro da qual se defende a afirmação. Para tanto, utiliza-se de expressões ligadas à
28
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
biologia evolutiva, como “foi assim mesmo”, como se nossa consciência moral se resumisse à
sobrevivência sobre as demais ideias, sem que possam carregar em si alguma aspiração à
integridade e coerência.
A tese “fraca” alega que, qualquer que seja a força que a teoria moral possa ter na vida
comum ou na política, os juízes devem ignorá-la, porque eles dispõem de recursos melhores
para defender sua objetivos. Segundo Posner, seria um erro de categoria, como se tentássemos
resolver um problema de álgebra com um abridor de latas. Admite, porém, que juízes utilizam
a teoria moral em suas atividades, para serem magnânimos, para utilizarem uma linguagem
que seja mais facilmente compreendida pelos leigos e porque existe uma sobreposição
considerável entre direito e moral.
Dworkin então demonstra como os argumentos de Posner são ruins e insustentáveis.
Pergunta-se: o que explica sua resistência violenta ao “moralismo acadêmico”? O autor
acredita que as afirmações do utilitarista só podem ser mantidas se se fundamentarem numa
ampla e substantiva teoria moral própria. Acredita-se que Posner segue uma postura diferente
da que endossa, de um relativismo “adaptacionista” da moral, em que se avalia a moral pela
sua contribuição à sobrevivência da sociedade. Quando Dworkin identifica tal proposta no
autor da analise econômica do direito, diz que todos os mistérios que ele veio descrevendo até
aqui se desfazem.
“A hipótese darwiniana explica, acima de tudo, uma distinção, que
há pouco consideramos tão problemática – aquela que se dá, por uma
lado, entre o raciocínio moral inculto, “habitual”, e, por outro, o
moralismo “acadêmico”. Posner anseia em proteger o que percebe
como natural, e, para ele, “irrefletido” significa “natural”. Ele
também anseia em evitar qualquer coisa que lhe cheire não a
natureza, mas a resultado de um trabalho rigoroso e exaustivo: ele
acha que a teoria acadêmica é antinatural, intervencionista, escrita
apenas por pessoas que realmente não viveram e, ao fim e ao cabo
perigosa. [...] Seus argumentos mostram o contrário do que ele
pretendia: mostram que a teoria moral não pode ser eliminada e que
a perspectiva moral é indispensável, mesmo para o ceticismo ou o
relativismo moral. O próprio Posner é guiado por uma crença moral
tácita,
dissimulada
e
pouco
atraente,
porem
inexorável.”
(DWORKIN, 2011, p. 133)
29
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
CONCLUSÃO: O GOLPE FINAL NO CASO BUSH VS. GORE
Ainda que os argumentos até aqui colocados se prestem à negar a teoria de Posner,
temos como alegação derradeira a sua posição no caso Bush vs. Gore. Apesar de todas as
críticas aqui já trazidas à Análise Econômica do Direito e à abordagem pragmática,
verificamos que Dworkin, no final do capítulo 03 do “Justiça de Toga”, dá o golpe final contra
a teoria de Posner no argumento utilizado por este acerca da decisão da Suprema Corte norteamericana no caso Bush vs. Gore. Al Gore, candidato à presidência da república dos Estados
Unidos nas eleições de 2010, requereu a recontagem dos votos de quatro condados do estado
da Flórida, por suspeita de fraude nos resultados. A Suprema Corte norte-americana decidiu
pela improcedência do pedido por ser o mesmo inconstitucional e para evitar uma insegurança
jurídica baseada na ultrapassagem do término legal do processo eleitoral4. Com base nesse
caso, Posner afirma que adotando a abordagem pragmática os juízes terão resultados melhores
em termos gerais. Para ele, os conservadores do caso em análise agiram como a abordagem
pragmática aconselharia que eles agissem (DWORKIN, 2011, p. 134).
Aqui, Posner diferencia pragmatismo “cotidiano” (abordagem consequencialista e de
custo-benefício do raciocínio jurídico) de pragmatismo “ortodoxo” ou “recusante”. O
primeiro não ignora o precedente e a argumentação técnica-jurídica, levando em consideração
as consequências positivas e negativas da sua decisão. Os juízes devem buscar equilibrar os
benefícios do respeito à doutrina com os benefícios que decorram de ignorar esse fato. E para
esse autor, no caso Bush vs. Gore a Suprema Corte soube chegar a este equilíbrio. Vale aqui a
transcrição dos motivos de Posner para essa afirmação, nas palavras de Dworkin:
“Haveria 'as melhores consequências para a sociedade' a longo
prazo caso se levasse em consideração o precedente e a doutrina, que
recomendavam a rejeição do recurso de Bushe, portanto, a permissão
para que a recontagem dos votos prosseguisse na Flórida, ou caso se
referendasse uma argumento legal inconveniente que interrompesse a
recontagem, de modo que Bush se tornasse presidente eleito sem mais
delongas? Era previsível, afirma Posner, que se os cincos juízes
conservadores votassem pela segunda opção, concluir-se-ia que eles
haviam tomado uma decisão tendenciosa, e que a reputação de
4
Para mais informações sobre o caso Bush vs. Gore, ver: http://www.law.cornell.edu/supct/html/00949.ZPC.html, acesso em janeiro de 2013.
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honestidade e imparcialidade da Corte, que é importante, sofreria as
consequências de seu gosto. Isso apontava favoravelmente para a
primeira opção. Mas a possibilidade do que ele chama de 'pior
cenário', que decorreria dessa decisão, pesou mais em favor da
segunda opção. Aqui está o pior cenário que, para Posner, os juízes
da Suprema Corte podem ter levado em conta em dezembro de 2002,
quando tiveram de tomar sua decisão: a recontagem poderia ter
apontado Gore como vencedor na Flórida, e a Corte da Flórida
poderia, então, ter declarado que os votos do Estado eram de Gore.
Como a decisão da Suprema Corte seria tomada em 12 de dezembro,
essa recontagem não teria se concluído na data-limite desse mesmo
dia, o que tornaria a certificação dos eleitores do Estado imune a
uma contestação do Congresso; na verdade, uma recontagem
responsável não poderia ser concluída nem mesmo em 18 de
dezembro, data em que se exige que os eleitores depositem seus votos.
Nesse ínterim, o poder legislativo da Flórida, dominado pelo
republicanos, poderia ter escolhido sua chapa eleitoral favorável a
Bush. O Congresso deveria então ter optado entre as duas chapas
eleitorais, mas poderia ficar dividido: a Câmara dos Deputados de
maioria republicana aliada à chapa de Bush, mas o Senado
igualmente dividido, ainda controlado pelo vice-presidente Gore, que
teria dado o voto decisivo, referendando a chapa de Gore. Se o
Congresso não chegasse a uma posição de consenso, a chapa
confirmada pelo governador da Flórida, irmão de Bush, teria sido
empossada. Mas o que aconteceria se a Suprema Corte da Flórida
tivesse ordenado ao governador que confirmasse a chapa de Gore, se
o governador se tivesse recusado a fazê-lo, e se a Corte da Flórida o
tivesse declarado em desacato? Quem decidiria qual era o veredicto
oficial do governador? Suponhamos que, no fim, os votos da Flórida
não passassem por nenhuma recontagem. Gore então teria tido a
maioria dos votos dos eleitores, mas não a maioria do número total
de votos, e nesse caso a presidência dependeria da questão
irresolvida de saber se ele precisaria apenas dos primeiros para ser o
vencedor. A Suprema Corte poderia recursar-se a decidir a questão
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por considerá-la uma questão política, caso em que o impasse
arrastaria indefinidamente. Um presidente em exercício seria
necessário e, com base em certos pressupostos, tal presidente seria
Lawrence Summers, na ocasião Secretário do Tesouro (hoje reitor da
Universidade de Harvard). Summers teria sido um presidente em
exercício eficaz?” (DWORKIN, 2011, p. 136-137)
Dworkin alerta que Posner trata esse cenário acima exposto como o mais provável de
se prever, e que por isso um juiz pragmatista precisa equilibrar tais consequências da
recontagem no momento da sua decisão. Sim, uma análise pragmática deve considerar todas
as possibilidades possíveis para que possa se afirmar como autêntica. E isso deve ser feito em
termos comparativos, levando-se em conta a gravidade de cada hipótese e reduzindo-as de
acordo com a sua probabilidade. Dworkin, argumenta então, que a fundamentação de Posner
não considera esse aspecto essencial da abordagem pragmática, uma vez que toma como
comum o pior dos cenários, desconsiderando, inclusive, os riscos reais dessa tomada de
posição.
Conclui-se, portanto, que a proposta interpretativa da Análise Econômica do Direito é
não só falha, como demonstrado por Dworkin ao longo dos argumentos acima expostos, como
também é falaciosa e antidemocratica, como ficou claro pela derrota da tese posneriana no
caso Bush vs. Gore. A abordagem pragmática não oferece uma análise satisfatória para a
interpretação jurídica, vez que ao propor uma busca por uma pretensa objetividade a ser
alcançada pela utilidade da decisão, acaba chegando à posições extremamente discricionárias
e assim, subjetivas. Contrariamente à abordagem pragmática, o juiz deve atuar como um
Hércules5, com um olhar voltado para o passado e para o futuro, construindo uma teoria
coerente que justifica da mesma forma a comunidade de princípios que consubstanciam as
práticas sociais. Hércules supera a teoria clássica que entende a decisão jurídica em duas
etapas (encontra-se primeiro um limite das exigências do direito explícito, para num segundo
momento, exercer um poder discricionário independente, que legisla sobre aquilo que o
5
“Podemos, portanto, examinar de que modo um juiz filósofo poderia desenvolver, nos casos
apropriados, teorias sobre aquilo que a intenção legislativa e os princípios jurídicos requerem.
Descobriremos que ele formula essas teorias da mesma maneira que um árbitro filosófico construiria
as características de um jogo. Para esse fim, eu inventei um jurista de capacidade, sabedoria,
paciência, e sagacidade sobre-humanas, a quem chamarei de Hércules. Eu suponho que Hércules
seja juiz de alguma jurisdição norte-americana representativa. Considero que ele aceita as principais
regras não controversas que constituem e regem o direito em sua jurisdição. Em outras palavras, ele
aceita que as leis tem o poder geral de criar e extinguir direitos jurídicos, e que os juízes tem o dever
geral de seguir as decisões anteriores de seu tribunal ou dos tribunais superiores cujo fundamento
racional (rationale), como dizem os juristas, aplica-se ao caso em juízo”. (DWORKIN, 2010,165)
32
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direito posto não alcança), utilizando um juízo dependente da moralidade política (juízo de
direito institucional) para determinar quais direitos as partes possuem, buscando uma
aplicação coerente dos princípios sobre os quais se assentam as instituições daquela
comunidade. Assim, em nome da moralidade comunitária, Hércules defende o direito
constitucional das opiniões incoerentes que eventualmente podem surgir (por mais popular
que essas possam ser), justificando suas decisões nas leis e instituições que a comunidade
pressupõe.
Essa moralidade política, que serve de substrato para as decisões íntegras de Hércules,
pode ser explicitada nos princípios da igualdade e da liberdade, que são fundamentais para
teoria de Dworkin. A verdadeira comunidade política é aquela que aceita que seus indivíduos
são governados por princípios comuns e não somente por regras criadas a partir de um acordo
político comum. Nesse viés, o direito como integridade deixa de ser apenas uma teoria-guia
da atuação dos magistrados, para se revelar como um “compromisso de pessoas” pelo igual
respeito e consideração de todos e todas, de modo que nenhum grupo seja excluído,
orientando, assim, a realização do projeto de comunidade política (FERNANDES, 2008, p.
221).
Hércules é membro dessa comunidade, e como todo cidadão, compartilha de uma
compreensão paradigmática dessa sociedade. O paradigma lhe retira o peso das decisões
difíceis, vez que “delineia um modelo de sociedade contemporânea para explicar como os
direitos constitucionais e os princípios dever ser concebidos e implementados para que
cumpram naquele dado contexto as funções a eles normativamente atribuídas”
(FERNANDES, 2008, p. 33). No contexto do Estado Democrático de Direito, esse magistrado
garante, através de um procedimento político-democratico, a realização pessoal e coletiva dos
cidadãos e da comunidade, onde todos tenham justas condições de vida, respeitadas as
escolhas individuais de cada um. A integridade, portanto, passa a ser um elemento necessário,
e não uma opção, desse Estado democrático, permitindo que as decisões jurídicas sejam
tomadas por um mesmo “corpo coletivo”, por essa comunidade de princípios, por esse agente
moral que compartilha um projeto comum de sociedade: a sociedade que queremos.
BIBLIOGRAFIA
DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. Trad. Nelson Boeira. São Paulo: Martins
Fontes, 2010.
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
DWORKIN, Ronald. A Justiça de Toga. Trad.Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins
Fontes, 2011.
FERNANDES, Bernardo Gonçalves; PEDRON, Flávio Quinaud. Poder judiciário e(m) crise:
reflexões de teoria da Constituição e teoria geral do processo sobre o acesso à Justiça e as
recentes reformas do pode judiciário à luz de: Ronald Dworkin, Klaus Günther e Jürgen
Habermas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008.
POSNER, Richard. Problemas de Filosofia do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 2007.
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
A CONCRETIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO DIANTE DO DIREITO
CONSTITUCIONAL IMPLÍCITO DA FELICIDADE E DIGNIDADE DA PESSOA
HUMANA NA UNIÃO HOMOAFETIVA
THE CONCRETIZATION OF CONSTITUTION BEFORE THE CONSTITUTIONAL LAW
IMPLIED OF HAPPINESS AND DIGNITY OF THE HUMAN PERSON IN
HOMOSEXUAL UNION
Alexandre Gazetta Simões1
Celso Jefferson Messias Paganelli2
RESUMO
Apesar do progresso sentido na defesa dos direitos e garantias fundamentais às minorias, ainda
vivemos em uma época que claramente apresenta transição entre um pensamento extremamente
conservador para um novo ideal de convivência e de aceitação das particularidades de cada
indivíduo. A união homoafetiva e todos os direitos consequentes já ganha o espaço no qual
deve ter o devido respeito de toda a sociedade e a garantia de efetividade dos direitos
consequentes da convivência entre as pessoas do mesmo sexo. A interpretação do texto
constitucional não pode mais se dar apenas com o sentido literal, a hermenêutica exige mais do
que isso, pois já está consagrado que para se atingir o ápice de aplicação da Carta Magna é
necessário a observação dos mandamentos não isoladamente, mas sim como parte de um
conjunto, levando em conta também o caso concreto, de forma que se extraia o máximo de
efetividade das normas. Desta hermenêutica resulta a consagração de princípios que estão
implícitos na Constituição, como o princípio implícito da felicidade, tão almejada e buscada
por qualquer indivíduo e, obviamente, também é aplicável a qualquer minoria, inclusive casais
homossexuais, que encontram dificuldades extremas, também para garantir direitos
previdenciários. A interpretação das normas constitucionais com as novas teorias que buscam
superar o positivismo (legalista), juntamente com a análise do caso concreto, promete efetivar
tais direitos e garantias, proporcionando assim a tão almejada felicidade, garantida também,
ainda que de forma implícita, dentro da Constituição Federal.
PALAVRAS-CHAVE: Concretização da Constituição; Constituição e realidade; Direito à
felicidade; Dignidade da pessoa humana; União homoafetiva.
ABSTRACT
Despite progress towards the defense of fundamental rights and guarantees for minorities, we
still live in a time that clearly shows the transition between an extremely conservative thinking
to a new ideal of coexistence and acceptance of the characteristics of each individual. The
homosexual union and all consequential rights already won the space in which it shall have due
regard to the whole society and ensuring realization of the rights ensuing coexistence between
people of the same sex. The interpretation of the constitutional text can no longer be given only
with the literalness, hermeneutics requires more than that, because that is already dedicated to
Mestre em Direito pelo Centro Universitário Eurípedes de Marília - UNIVEM, Pós Graduado com Especialização
em Gestão de Cidades (UNOPEC), Direito Constitucional (UNISUL), Direito Constitucional (FAESO); Direito
Civil e Processo Civil (FACULDADE MARECHAL RONDON) e Direito Tributário (UNAMA), Graduado em
Direito (ITE-BAURU), Analista Judiciário Federal – TRF3 e Professor de graduação em Direito (EDUVALE
AVARÉ).
2
Doutorando em Direito pela ITE - Instituição Toledo de Ensino. Mestre em Direito pelo Centro Universitário
Eurípedes de Marília - UNIVEM. Pós-graduado em Direito Constitucional pela Universidade AnhangueraUNIDERP, Pós-graduado em Direito da Tecnologia da Informação pela Universidade Cândido Mendes. Graduado
em Direito pela Associação Educacional do Vale do Jurumirim. Professor de Direito. Advogado.
1
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reaching the apex of application of the Constitution is necessary observation of the
commandments not in isolation but as part of a whole, taking into account also the case, so that
extract the maximum effectiveness of the standards. This follows the consecration of
hermeneutical principles that are implicit in the Constitution, the principle of happiness, much
desired and sought by any individual and obviously also applies to any minority, including gay
couples, who find extreme difficulties also to ensure rights pension. The interpretation of
constitutional norms with new theories that seek to overcome positivism, along with analysis
of the case, promises to carry such rights and safeguards, thus providing the much desired
happiness, guaranteed also, albeit implicitly, within the Federal Constitution.
KEYWORDS: The concretization of Constitution; Constitution and reality; Right to
happiness; Dignity of the human person; Homosexual union.
INTRODUÇÃO
O ser humano tem um objetivo muito claro: ser feliz. Reconhecidamente tal meta não é
algo fácil de se atingir, no entanto, é insofismável que as minorias encontram dificuldades a
mais, já que há grande carga de preconceito, o que faz surgir entraves a mais para que possam
viver adequadamente e sejam felizes. Neste vasto grupo de minorias há que se destacar os casais
homossexuais, que enfrentam há muito tempo a resistência da sociedade como um todo para o
exercício de direitos assegurados e consagrados na própria Constituição, que diante de
interpretações literais e minimalistas acabavam por ter o efeito contrário ao desejado, ou seja,
havia clara limitação dos direitos e garantias àqueles que tinham união homoafetiva.
Com o passar do tempo e análise de diversos casos concretos houve uma nova
configuração da interpretação da constituição, principalmente por parte de estudiosos do texto
constitucional, pois perceberam que já não era mais possível limitar direitos e garantias pela
análise fria e simples de mandamentos constitucionais de forma isolada, sem correlacionar os
pontos desejados com a Constituição como um todo.
Entre inúmeros direitos e garantias fundamentais existentes na Constituição Federal de
1988, não está escrito expressamente o “direito a felicidade”. Mas, será que é possível abstrair
do texto constitucional o direito a felicidade? Será que as pessoas que lutam pelo
reconhecimento da união homoafetiva estão abarcados por esse direito?
A resposta a essas questões passa pela hermenêutica constitucional e as novas teorias
que visam superar o positivismo jurídico, de modo que a aplicação da lei como um todo consiga
atingir seu ápice, preservando e garantindo aos indivíduos a dignidade tão esperada e a
felicidade que é almejada, independente da orientação sexual que a pessoa em questão tiver.
O Estado deve ser o primeiro a levantar as questões para a defesa do interesse das
minorias e, claro, das pessoas que têm relações homoafetivas. Isso inclui também direito a
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pensão por morte, por exemplo, que pode também ser traduzido como efetividade do direito
constitucional a felicidade, vez que neste momento de dor e perda, o cônjuge sobrevivente
receberá um alento do Estado, vez que o reconhecimento da união estável homoafetiva e
consequentemente todos os direitos daí recorrentes não suplantarão o sentimento de pesar, mas
certamente fará com que essa pessoa sinta-se melhor. Além do mais, trata-se de uma questão
de justiça aritmética, considerando o caráter contraprestacional inerente ao pagamento de
contribuições que irão viabilizar o pagamento de benefícios previdenciários, tanto aos
segurados como aos seus dependentes. Destarte, é fácil perceber que a dignidade da pessoa
humana se destaca em toda sua exuberância em tal episódio, assim, qualquer tipo de limitação
aos direitos dos homossexuais só pode ser considerado como verdadeira limitação ao texto
constitucional, o que já não é mais concebível nos dias atuais.
Esse é o âmago do presente artigo, cujo objetivo é abordar a dignidade da pessoa
humana, união homoafetiva e direito a felicidade, sob o olhar constitucional e suas garantias e
direitos. A discussão acadêmica se justifica, pois atualmente experimentamos inúmeros casos
nos quais para que seja possível o exercício do que já é determinado pela Constituição, tais
pessoas, minorias discriminadas, precisam recorrer ao Judiciário. O Estado assim não está
efetivamente garantindo o tratamento adequado a tais pessoas, já que só o faz quando ocorre a
determinação judicial, o que não é o ideal. Em um mundo perfeito, que é sabido é impossível
de ser alcançado, mas altamente desejável, essas minorias deveriam ter seus direitos atendidos
e garantidos já pela população e pelo Estado em fase administrativa, sem a necessidade de se
utilizar o Judiciário para a concretização dos mandamentos constitucionais. Assim, se pretende
fazer uma crítica ao sistema existente, buscando, por meio do método indutivo-dedutivo chegar
à conclusão de que o direito a felicidade está descrito implicitamente na Constituição, atrelado
ao princípio da dignidade da pessoa humana, sendo essencial a qualquer pessoa.
1 A APLICAÇÃO DO TEXTO CONSTITUCIONAL ESTÁ INTRINSECAMENTE
LIGADA À REALIDADE DO COTIDIANO
Conforme a concepção apresentada por Friedrich Müller (2007, p. 12), a aplicação do
direito não pode ficar estagnada ao paradigma antigo do positivismo, ou seja, de que a lei é “os
caracteres sobre o papel dos textos legais”. Propondo um novo paradigma ele observa que a
ação jurídica é complexa, que para a devida solução há que se levar em conta muito mais do
que apenas a semântica da frase, do texto e do contexto. Tal teoria ficou mundialmente
conhecida como “Teoria Estruturante do Direito”.
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Segundo essa teoria, a aplicação prática do direito não deve ficar restrita a “norma e
fato”, deve-se levar em consideração a estrutura da normatividade jurídica. Destarte, a
normatização jurídica, levando em consideração o direito e a realidade, deve ser analisada como
problema do bom emprego do direito. O raciocínio dessa questão só se completa com o estudo
aprofundado da jurisprudência constitucional.
Assim considera Friedrich Müller (2007, p. 17):
Com especial rigor, o direito constitucional faz tomar consciência sobre a questão em
torno do direito normativo e da realidade normatizada. À primeira vista já demonstra
que é precisamente neste terreno que se vê a jurisprudência, ante a necessidade de
recorrer a fatos empiricamente demonstráveis do mundo social, para assim apoiar a
interpretação de disposições legais ou mesmo para definir o conteúdo destas.
Como se vê, Müller, em sua Teoria Estruturante do Direito, afirma que o tratamento da
problemática da aplicação exige uma reformatação do que é norma, de modo que deve ser
levado em conta a materialidade inerente e intrínseca à realidade que circunda o direito na
ocasião de sua integração e aplicação.
A norma, portanto, deve ser estudada a partir de reflexões internas da própria ciência
jurídica e não deixando de lado mesmo outras ciências ou a filosofia e sempre levando em
consideração a própria realidade em si.
Diz Friedrich Müller (1996, p. 12) com propriedade:
(...) a ciência do direito é suficientemente rica de impulsos práticos assim como de um
potencial de reflexão para se mover a uma teoria moderna, enquanto procedendo de
forma indutiva e imanente, aprofundada pela sua própria reflexão, em vez de desviar
sua rota pelos planos de disciplinas não-jurídicas. (nossa tradução)3
Há de se notar que a teoria formulada por Müller coloca em foco a relação entre texto
de norma (dados linguísticos) e a realidade, sendo que os elementos constantes e inerentes a
ambos são codeterminadores do conteúdo da norma, que nada mais é do que o produto de um
trabalho progressivo, dinâmico e materialmente vinculado. A norma jurídica, assim, não é
apenas um dever-ser, mas é entendida como um fenômeno real formada de linguagem e de
fatos. A conclusão, portanto, é que não faz sentido haver oposição entre dever-ser e ser. A teoria
estruturante da norma jurídica reveste de caráter normativo tudo aquilo que determina o caso
concreto a ser decidido, tudo o que possibilita à sua solução. A norma deve ser estabelecida
para o caso concreto partindo de um trabalho sobre os textos (que são os dados linguísticos) e
Traduzido do original: “(...) la science du droit est suffisamment riche d’impulsions pratiques comme d’un
potenciel de réflexion pour se mouvoir au niveau d’une théorie moderne tout en procédant de façon inductive et
immanente, par approfondissement de sa propre réflexion plutôt qu’en détournant sa route pour les terres des
disciplines non-juridiques”.
3
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sobre os dados baseados em fatos (que são os dados da realidade). Desse duplo trabalho emana
a estrutura da norma em um programa normativo (que é o resultado do trabalho de
interpretação) e um âmbito normativo (que é resultado da análise do segmento da realidade
pertinente ao caso).
A concretização da norma, assim, pode adequadamente designar o processo real de
criação normativa, aliás, tal concepção é adotada por várias diferentes correntes do pensamento
hermenêutico, com significados muito distintos, sendo, inclusive, por vezes antagônicos. Dessa
forma a concretização pode e deve ser entendida como uma construção estruturada da norma
jurídica, e não apenas e tão somente como especificação, densificação, individualização ou
justificação. É comum acontecer na jurisprudência a apresentação que precedendo a decisão,
exibe os motivos determinantes da decisão: eles proclamam o texto da norma jurídica em um
caso (não apenas o texto de norma), para em seguida se chegar à norma-decisão que dá solução
ao caso da espécie.
Ao moldar a teoria da norma jurídica como um processo dinâmico materialmente
ordenado segundo os pressupostos de uma teoria constitucional adequada às exigências
estruturais do que hoje é conhecido como Estado Democrático de Direito, a ciência jurídica
exsurge como ciência eminentemente decisória e a construção normativa resulta dos diversos
operadores do direito envolvidos – ação constitucionalmente orientada, dirigida e vinculada, da
jurisprudência, da ciência jurídica e da legislação, bem como da administração e do governo. É
por isso que se pode dizer que a norma jurídica não é criação do processo legislativo, mas sim
resulta da participação de todos os agentes, aqui compreendido os poderes públicos e também
os atores privados, envolvidos na solução do caso concreto.
A teoria estruturante do direito afasta a concepção tradicional da função da metódica (a
importância da metódica jurídica é relativa em dois sentidos: é específica para a ciência jurídica
e é limitada pela racionalidade possível no direito), imaginada como uma arte da justificação,
para uma concepção pós-positivista de ponderação sobre a produção do direito que seja, ao
mesmo tempo, realista e respeitosa, dos princípios da democracia e do Estado de Direito. Aliás,
Dworkin, que também pretende superar o formalismo positivista, aponta que no positivismo a
fundamentação da decisão busca a sua justificação. Pode-se acrescentar que não busca a
construção da norma, atividade que aquele que decide está verdadeiramente realizando. Ronald
Dworkin (1977-1978, p. 51) disseca o positivismo na versão que considera a mais elaborada, a
exposta por Herbert Hart, como se vê:
Quando um juiz recorre a uma regra de qualquer norma que a legislatura emite é lei,
ele está tomando um ponto de vista interno que o efeito existe, mas ele vai além de
39
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
simplesmente dizer que é assim. Ele sinaliza sua disposição de considerar a prática
social como uma justificação para sua conformidade com ela. (nossa tradução) 4
Destarte, da perspectiva do pós-positivismo, o magistrado em sua atuação quando toma
decisões, ou seja, quando decide casos jurídicos, é verdadeiramente um construtor da norma
jurídica, não podendo ser considerado apenas como mero justificador das decisões tomadas.
Friedrich Müller (2007, p. 110) continua explicando:
Como ciência social normativa, a ciência jurídica deve, para além de toda e qualquer
mediação meramente linguística e conceitual, incluir com a maior abrangência
possível os teores materiais envolvidos a serviço da implementação prática, da
objetividade normativamente fundamentada e da validade universal plausível no
âmbito do ordenamento jurídico positivo. (...) A racionalização da aplicação do direito
visa portanto, não em último lugar, a inserção metodicamente controlada dos teores
materiais envolvidos na concretização de prescrições jurídicas.
A norma jurídica, então, deve e precisa ser produzida no decurso temporal da decisão
proferida. Assim, não existe um tempo antes do caso, o próprio caso da decisão lhe é
coconstitutivo. O texto que está descrito na lei é tão somente um dado de entrada do processo
que pode ser chamado de concretização. A norma jurídica que é criada no caso está estruturada
segundo “programa da norma” e “âmbito da norma”, ou seja, “segundo o resultado da
interpretação linguística e o conjunto dos fatos individuais e gerais do caso/tipo de caso
conformes à interpretação linguística” (MÜLLER, 2007, p. 137).
Desse modo, o “direito é alográfico. E alográfico é porque o texto normativo não se
completa no sentido nele impresso pelo legislador”. Assim, o intérprete “desvencilha a norma
do seu invólucro (o texto), nesse sentido ele ‘produz’ a norma”, portanto, o significado, ou seja,
a norma, é o resultado da atividade interpretativa. Desse modo, as normas resultam da
interpretação, de modo que o ordenamento “é um conjunto de interpretações, isto é, um
conjunto de normas” (GRAU, 2009, p. 30).
A efetividade da Constituição, portanto, está ligada à realidade do momento atual e
também do caso concreto. Destarte, quanto a questões de direitos fundamentais e
previdenciários ligados a casais homossexuais, não se pode imaginar uma interpretação literal
ou gramatical, pois estar-se-ia assim violando o espírito da Constituição e demais princípios
que regem a Carta Magna como um todo. O texto constitucional deve ser interpretado como
máxima de garantias e direitos fundamentais, não o contrário. Imprescindível, portanto, a
análise do caso concreto para possibilitar ao julgador exarar sua decisão de forma a possibilitar
Original: “When a judge appeals to the rule that whatever the legislature enacts is law, he is taking an internal
point of view that effect exists, but he goes beyond simply saying that this is so. He signals his disposition to regard
the social practice as a justification for his conforming to it”.
4
40
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
às minorias, mesmo que de relações homoafetivas, apesar de não citadas expressamente pelo
texto constitucional, a efetiva garantia de benefícios previdenciários, realizando assim o que
realmente se espera da aplicação da Constituição Federal, ou seja, a defesa dos interesses da
população, principalmente de pessoas ou grupo de pessoas menos favorecidas, que justamente
por puro preconceito da sociedade muitas vezes ficam marginalizadas, sofrendo a consequência
de algo que não deveria pesar em sua vida como um todo.
2 DIREITOS FUNDAMENTAIS E PESSOA HUMANA
A Constituição Federal em seu artigo 5º traz insculpidos os direitos fundamentais
garantidos a todos os residentes no Brasil5. Não obstante, temos também o Pacto de San Jose
da Costa Rica, do qual o Brasil é signatário, que traz diversas proteções ao indivíduo6.
A Constituição tem sentido sociológico, político e jurídico. Com o sentido sociológico
ela se aproxima do poder social, foi concebida como fato social, não como norma propriamente
dita. A Constituição é o resultado do momento histórico do país, de sua realidade social, das
forças que exercem o poder na sociedade. A representação desse poder se dá de forma escrita,
mas não pode apenas ficar como “folha de papel”, conforme ensina Michel Temer (2010, p.
22):
Representante mais expressivo do sociologismo jurídico é Ferdinand Lassalle, que,
em obra clássica, sustentou que a Constituição pode representar o efetivo poder social
ou distanciar-se dele; na primeira hipótese ela é legítima; na segunda, ilegítima. Nada
mais é que uma ‘folha de papel’. A sua efetividade derivaria dos fatores reais do
poder. Espelha o poder. A Constituição efetiva é o fato social que lhe dá alicerce.
Assim, a ‘folha de papel’ – a Constituição – somente vale no momento ou até o
momento em que entre ela e a Constituição efetiva (isto é, aquele somatório de
poderes gerador da ‘folha de papel’) houver coincidência; quando tal não ocorrer,
prevalecerá sempre a vontade daqueles que titularizam o poder. Este não deriva da
‘folha de papel’, da Constituição escrita, mas dos fatores reais de poder.
Veja o artigo 5º, incisos IX e X da Constituição Federal:
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos
estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à
propriedade, nos termos seguintes:
(...)
IX - é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de
censura ou licença;
X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização
pelo dano material ou moral decorrente de sua violação;
6
Pacto de San Jose da Costa Rica, artigo 11:
(...)
Artigo 11 - Proteção da honra e da dignidade
1. Toda pessoa tem direito ao respeito da sua honra e ao reconhecimento de sua dignidade.
2. Ninguém pode ser objeto de ingerências arbitrárias ou abusivas em sua vida privada, em sua família, em seu
domicílio ou em sua correspondência, nem de ofensas ilegais à sua honra ou reputação.
3. Toda pessoa tem direito à proteção da lei contra tais ingerências ou tais ofensas.
5
41
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
O texto constitucional, portanto, não é apenas para ficar “no papel”. Ele deve ser
aplicado com sua máxima força, a fim de servir a todos os seus objetivos, principalmente
visando o bem estar social. A sociedade, legitimadora do poder que possibilitou a Constituição,
espera dos Poderes o retorno adequado a todos os seus anseios, ou seja, as liberdades, garantias
e, principalmente, direitos fundamentais.
Cabe, portanto, aos operadores do direito a responsabilidade de fazer valer o texto
constitucional, em seu verdadeiro propósito, considerando, principalmente, o conceito da
dignidade da pessoa humana, visto que “as normas atinentes à justiça não são apelos duvidosos,
sendo, no núcleo essencial, dotadas de eficácia direta e imediata” (FREITAS, 2010, p. 145).
Desse modo, os princípios constitucionais podem e devem ser aplicados
autonomamente, utilizando toda a força emanada por estes, sempre considerando o
sopesamento do indivíduo com a sociedade. Não se deve, no entanto, utilizar a dignidade da
pessoa humana de forma superficial, para que esta não caia em vala comum, conforme ensina
Alexy (2009, p. 454):
O que se pergunta é se o indivíduo tem um direito subjetivo constitucional a essa
proteção, e como esse direito deve ser fundamentado. (...) dever estatal de proteger a
dignidade humana, (...) transfere o dever de proteção aos direitos fundamentais
subsequentes. A vantagem dessa construção reside no fato de ela se apoiar diretamente
no texto constitucional; sua desvantagem, no fato de que ela se vê diante do dilema
de ou ampliar de forma extrema o conceito de dignidade humana, para poder abarcar
tudo aquilo que seja digno de proteção, o que implica o sempre suscitado risco de
trivializar a dignidade humana, ou renunciar a abarcar algumas coisas dignas de
proteção.
Para que haja a efetivação das normas constitucionais, não permitindo que sejam apenas
“pedaço de papel”, basta a aplicação do disposto na Carta Magna para obter a plenitude de seus
mandamentos, reservando conceitos que exigem uma maior dose de subjetividade para os casos
nos quais serão imprescindíveis, ou seja, para a utilização da dignidade da pessoa humana devese ter precisão cirúrgica, atingindo o propósito adequado, não suscitando-a de forma genérica,
para que assim atinja a aplicação desejada, impedindo argumentação em sentido contrário.
Não existem “classes” de direitos constitucionais. Um direito não está acima do outro,
então há que se fazer um sopesamento dos direitos envolvidos quando da análise do caso
concreto, já que este é que fornecerá os elementos necessários para que o operador do direito
tenha condições de estabelecer quando é o caso de prevalecer determinado mandamento
constitucional. Não há uma regra que possa ser aplicada a todos os casos igualmente, pois há
uma carga subjetiva considerável a ser levada em conta quando se fizer o sopesamento entre
tais direitos.
42
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
Para Gomes Canotilho as expressões “direitos do homem” e “direitos fundamentais” são
utilizadas corriqueiramente como sinônimas, no entanto, uma distinção entre ambas pode ser
feita: direitos do homem são aqueles válidos para todas as pessoas e em todos os tempos,
representando assim uma dimensão jusnaturalista-universalista. Já os direitos fundamentais são
os direitos do homem jurídico-institucionalizadamente garantidos. Os direitos do homem
emanam da própria natureza humana e assim tem o seu caráter inviolável, bem como atemporal
e universal. Os direitos fundamentais, por outro lado, são os direitos vigentes dentro de uma
ordem jurídica (1993, p. 547).
Norberto Bobbio ensina que saber os direitos fundamentais não é tão importante quanto
a sua devida aplicação, pois de nada adianta a definição de quais e quantos são se não houver a
efetiva utilização destes, os transformando em garantias que possam ser exercitadas de fato
pelas pessoas. Bobbio (2004, p. 30) preleciona:
Não está em saber quais, quantos são esses direitos, qual a sua natureza e o seu
fundamento, se são direitos naturais ou históricos, absolutos ou relativos; mas sim
qual é o modo mais seguro para garanti-los, para impedir que, apesar das solenes
declarações, eles sejam continuamente violados.
Dessa forma, para a aplicação dos direitos fundamentais, há que se passar também pelo
princípio da dignidade da pessoa humana, que foi insculpido na Constituição Federal de 1988
e constitui, sem dúvida alguma, um dos marcos do direito nos dias atuais e, portanto, um enorme
avanço ao se tratar do bem estar de todas as pessoas7.
O homem precisa e deve ser respeitado em toda a sua dignidade, levando em
consideração seu valor de fim e não apenas de meio, vez que a dignidade da pessoa humana
eleva por meio de uma imposição o ser humano ao ponto central de todo o sistema jurídico, no
sentido de que o direito positivo é feito para a pessoa e sua realização existencial. A
Constituição Federal de 1988 elevou a tutela e promoção da pessoa humana a um valor máximo,
exarando que a dignidade do homem, ou seja, a dignidade da pessoa humana, é inviolável.
O Estado deu uma garantia a todos quando insculpiu a dignidade da pessoa humana
como garantia fundamental, pois deste princípio emana a segurança que todos podem e devem
ter de que poderão viver de forma digna.
Apenas para relembrar, veja-se o artigo primeiro da Carta Magna:
TÍTULO I
Dos Princípios Fundamentais
Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito
Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:
[...]
III - a dignidade da pessoa humana;
7
43
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
3 SOPESAMENTO DE DIREITOS CONSTITUCIONAIS
Alexy (2009, p. 614 e 615) traz importante doutrina sobre o tema:
A teoria dos princípios pode se alinhar quase que automaticamente a essas
considerações gerais sobre a estrutura da discricionariedade cognitiva. Direitos
fundamentais, compreendidos como princípios, exigem uma realização máxima
diante das condições fáticas e jurídicas presentes. Reconhecer ao legislador uma
discricionariedade cognitiva de tipo empírico significa a possibilidade de se admitir
que, diante das possibilidades fáticas presentes, esses direitos não sejam realizados na
extensão do que seria possível. Diante disso, o princípio de direito fundamental
afetado negativamente exige, enquanto mandamento de otimização, que não seja
reconhecida nenhuma discricionariedade cognitiva. Se esse fosse o único fato
relevante, um direito fundamental só poderia ser restringido em virtude de premissas
empíricas cuja veracidade fosse certa. Se essa veracidade não puder ser comprovada,
seria autorizado partir apenas das premissas empíricas que forem mais vantajosas ao
direito fundamental, que são aquelas sobre cuja base a intervenção ou a não-garantia
de proteção não tem como ser justificada.
Os direitos fundamentais geram calorosas discussões, ainda mais quando há provável
“colisão” entre estes, forçando que um ganhe mais destaque do que outro, ou seja, sempre um
terá que prevalecer sobre o outro. Por isso mesmo, tal aflição, como se vê, já ocorre no âmago
do próprio surgimento da norma, no processo legislativo, pois não há como se negar que o
legislador tem uma enorme carga empírica própria ao criar uma norma, posto que sua
experiência é fator determinante à sua conclusão.
A discricionariedade não é apenas uma possibilidade legislativa, mas também jurídica,
na qual os juízes podem e devem julgar de acordo com sua convicção, lastreados pela lei e pelas
provas apresentadas, sem dúvida, mas conforme suas consciências assim apontam para a
resolução do caso concreto. Natural, portanto, que surjam conflitos, colisões, entre direitos
fundamentais também para o julgador, que deverá sopesá-los para exarar sua decisão.
Canotilho (1993, p.643), em sua doutrina sobre direito constitucional, ensina:
De um modo geral, considera-se existir uma colisão de direitos fundamentais quando
o exercício de um direito fundamental por parte do seu titular colide com o exercício
do direito fundamental por parte de outro titular. Aqui não estamos perante um
cruzamento ou acumulação de direitos (como na concorrência de direitos), mas
perante um «choque», um autêntico conflito de direitos. A colisão ou conflito de
direitos fundamentais encerra, por vezes, realidades diversas nem sempre
diferenciadas com clareza.
Quando o legislador está criando a norma, principalmente a Constituição, não há como
prever cada aspecto que será enfrentado no dia a dia dos cidadãos ou mesmo pela Justiça,
obviamente, de acordo com sua experiência é possível prever uma quantidade de
acontecimentos que possivelmente poderão ocorrer e assim determinar os direitos fundamentais
para toda a sociedade. Ocorre que, não raras vezes, há um conflito entre tais direitos, o que
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
exige do julgador uma cautela maior no uso de sua discricionariedade para julgar o caso
concreto, de modo que não se viole nenhum princípio constitucional.
O eminente doutrinador continua a ensinar (CANOTILHO, 1993, p. 646 e 647):
Os direitos fundamentais são sempre direitos prima facie. Se, nas circunstâncias
concretas, se demonstrar, por ex., a alta probabilidade de o julgamento público de um
indivíduo pôr em risco o seu direito à vida (risco de enfarte), a ponderação de bens
racionalmente controlada justificará, nesse caso, o adiamento da audiência de
discussão e julgamento. O direito à vida tem, nas circunstâncias concretas, um peso
decisivamente maior do que o exercício da acção penal. Do mesmo modo, a colisão
entre o direito à vida, mais concretamente, o direito a nascer, e o direito à interrupção
da gravidez por motivos criminógenos (a gravidez resulta de crime de violação), só
pode decidir-se quando se demonstre que, num caso concreto, o nascituro é «filho do
crime», podendo o legislador solucionar o conflito, excluindo, nestes casos, a ilicitude
ou a culpa no comportamento dos intervenientes na interrupção da gravidez. Os
exemplos anteriores apontam para a necessidade de as regras do direito constitucional
de conflitos deverem construir-se com base na harmonização de direitos, e, no caso
de isso ser necessário, na prevalência (ou relação de prevalência) de um direito ou
bem em relação a outro (Dl P D2). Todavia, uma eventual relação de prevalência só
em face das circunstâncias concretas se poderá determinar, pois só nestas condições é
legítimo dizer que um direito tem mais peso do que outro (Dl P D2)C, ou seja, um
direito (Dl) prefere (P) outro (D2) em face das circunstâncias do caso (C).
Conforme se observa há que se atribuir pesos aos direitos fundamentais quando do
julgamento do caso concreto, que é definido por Canotilho como “harmonização dos direitos”.
Partindo da premissa de que “a realização de um regra ou princípio constitucional não pode
conduzir à restrição a um direito fundamental que lhe retire um mínimo de eficácia” (ÁVILA,
2009, p. 146), há colisão entre direitos fundamentais nos casos que é possível identificar o
exercício de diferentes direitos individuais por titulares também diferentes. Nesses casos devese identificar o âmbito da proteção do direito em questão com a finalidade de determinar se a
conduta está ou não protegida, haja vista não ser raro se deparar com situações na quais se
imagina que há conflito de direitos fundamentais, mas que com uma melhor análise se percebe
que a ação não encontra respaldo em um direito fundamental para lhe dar suporte.
Nenhum direito é absoluto, nem mesmo a vida. Quando há colisão de direitos
fundamentais não é possível uma solução adequada abstratamente, esta somente poderá ser
estabelecida à vista dos elementos do que aconteceu no caso concreto, devendo o operador do
direito utilizar-se dos princípios informadores da hermenêutica constitucional, que servem
como parâmetros para ponderação de valores e interesses e que levará a uma solução aceitável
para todas as partes como modo de se obter justiça.
Assim, nos casos de conflitos entre direitos individuais, devem ser levados em conta no
juízo de ponderação os valores relativos a esse princípio, quais sejam, inviolabilidade da pessoa
humana, inviolabilidade do direito de imagem e da intimidade, entre outros.
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
Destarte, o artigo 32 do Decreto n° 678 de 06/11/1992, que promulga a Convenção
Americana sobre Direitos Humanos – Pacto de São José da Costa Rica – diz: "Art.32. (...) 2.
Os direitos de cada pessoa são limitados pelos direitos dos demais, pela segurança de todos e
pelas justas exigências do bem comum, numa sociedade democrática.".
Porém, não existe uma resposta pronta nem um roteiro a ser usado para se ter uma
solução justa quando o conflito surgir, mas sim, há que se analisar caso a caso, com todas as
suas variáveis e interesses em conflito, o que sem dúvida será desafiador a qualquer magistrado
que venha a enfrentar a situação.
Destarte, para saber o princípio que preponderará no caso concreto, aquele que está
interpretando as normas deverá sopesar os princípios em conflito, lançando mão da máxima da
proporcionalidade, composta dos elementos da adequação, necessidade e da proporcionalidade
stricto sensu, chegando, assim, à decisão mais apropriada no caso analisado.
Para Müller, o sopesamento é um método irracional, sendo sujeito a diferentes
valorações, versando mais em uma “pré-compreensão” do que, de fato, em uma decisão
fundamentada. Para ele, a possibilidade de decisões diferentes em casos similares, quando ora
um princípio prevalecerá, ora outro, é a comprovação da impossibilidade do emprego deste
método, em um Estado que ambicione ser Estado de Direito.
Robert Alexy refuta a tese de Müller afirmando que este expande inaceitavelmente o
conceito de norma, abrangendo conceitos que excedem o direito posto. Ambos concordam, no
entanto, ser necessária uma fundamentação sólida, coerente e lógica na decisão judicial
(ALEXY, 2009, p. 83-84):
A possibilidade de uma fundamentação correta para a atribuição a uma disposição de
direito fundamental é um critério para identificar a norma em questão como uma
norma de direito fundamental. (...) No final das contas, as normas atribuídas fazem
com que fique claro o papel decisivo da argumentação referida a direitos fundamentais
na resposta à questão acerca daquilo que é válido no âmbito dos direitos fundamentais.
Nesse ponto é necessário concordar com Müller já que sua teoria da norma salienta
essa importância.
Aos magistrados, portanto, cabe o devido sopesamento dos direitos e garantias
fundamentais existentes na Carta Magna, norteados pelo princípio da dignidade da pessoa
humana, quando houver o julgamento de demandas que tratem de temas extremamente
sensíveis às pessoas.
Espera-se, assim, que o Poder Judiciário tenha a parcimônia e esclarecimento esperados
e imperativos, levando em consideração não apenas as características necessárias para a
convicção do magistrado a respeito de uma lide, mas também o aspecto da dignidade das partes
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envolvidas, não permitindo que um pensamento retrógrado permaneça exercendo controle da
população com posicionamentos arcaicos.
4 DIREITO À BUSCA DA FELICIDADE NAS RELAÇÕES HOMOAFETIVAS:
POSTULADO CONSTITUCIONAL IMPLÍCITO DERIVADO DA DIGNIDADE DA
PESSOA HUMANA
Aqui a discussão pode começar a ser tratada com a leitura do artigo 226, da Constituição
Federal: “A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado”. A principal
argumentação daqueles que são contrários à união homoafetiva e, por conseguinte, também às
consequências da legalização desse ente familiar, como casamento, adoção, entre outros, é
justamente com o parágrafo 3º, que diz: “Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a
união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua
conversão em casamento”. Estes se apegam à literalidade do texto, ou seja, “homem e a
mulher”, para defender que não há previsão legal para que o Estado reconheça a relação
homoafetiva.
Os que são contra ao reconhecimento da união estável homoafetiva sempre argumentam
que o disposto no artigo 226, §3º, da Carta Magna, é claro. O alegado é que este preceito
constitucional barraria, portanto, a possibilidade do reconhecimento da união homossexual, e
que deveria haver, então, uma emenda constitucional para alterar o texto de modo que fosse
possível tal reconhecimento. No entanto, esta interpretação literal do texto já não tem mais lugar
dentro do ordenamento jurídico, vez que não considera os demais dispositivos constitucionais
e tão pouco a realidade da sociedade.
O Texto Magno não é um conjunto de mandamentos isolados, sem conexão alguma. É
na verdade justamente o oposto, pois trata-se de um sistema aberto de princípios e regras, assim,
cada mandamento, cada um dos elementos, deve ser compreendido à luz de todo o texto
constitucional. Aqui se revela um importante princípio da própria hermenêutica constitucional,
qual seja, a unidade da Constituição.
A Constituição brasileira possui princípios que desempenham um valor mais destacado,
compondo a sua estrutura básica, que encontram-se insertos no Título I da Carta, que se intitula
“Dos Princípios Fundamentais”. E é justamente neste tópico que estão as cláusulas essenciais
para a hermenêutica em sua plenitude: princípios da dignidade da pessoa humana, da construção
de uma sociedade livre, livre de preconceitos e discriminações, justa e solidária, do Estado
Democrático de Direito, dentre outros.
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
Fica evidente que quando da interpretação de mandamentos setoriais constitucionais há
a necessidade de se buscar a inclusão e não a exclusão das minorias, o que também deve ser
feito com o §3º do art. 226, o objetivo é justamente a garantia de direitos fundamentais aos
grupos menos favorecidos e não a mantença do preconceito e da desigualdade. Ademais, é fácil
perceber pela leitura da norma em comento que há a garantia expressa do reconhecimento da
união estável entre homem e mulher, no entanto, não há como se concluir que a ausência de
texto sobre união homoafetiva signifique a proibição.
O plenário do Supremo Tribunal Federal já proferiu decisão reconhecendo como
entidade familiar a união entre pessoas do mesmo sexo8, observando que devem ser atendidos
os mesmos requisitos exigidos para a constituição da união estável entre homem e mulher. A
decisão proferida foi além, já que fixou que os mesmos direitos e deveres dos companheiros
nas uniões estáveis heteroafetivas também se estendem aos companheiros na união estável entre
pessoas do mesmo sexo.
Fica cristalino, portanto, que a Suprema Corte declarou que ninguém, absolutamente
nenhuma pessoa, pode ser privada de direitos ou tampouco suportar quaisquer restrições de
ordem jurídica por pretexto de sua orientação sexual.
Isso significa que homossexuais têm direito de receber o igual amparo das leis e do
sistema político-jurídico instituído pela Constituição Federal, mostrando-se arbitrário e
completamente intolerável e inaceitável qualquer estatuto que puna, exclua, discrimine ou
mesmo que promova a intolerância, incite o desrespeito e que desiguale as pessoas em razão de
sua preferência e orientação sexual.
O que se percebe, portanto, é que o Estado não pode adotar nenhum tipo de medida ou
tampouco formular leis que tenham conteúdo discriminatório, cujo efeito prático seja a exclusão
de determinados grupos, que podem ou não ser minoritários, mas que integram a população,
que tal qual qualquer cidadão, tem como prerrogativa essencial garantido pela Carta Magna, as
liberdades públicas.
Vê-se que há a necessidade de se viabilizar a completa realização dos valores igualdade,
da liberdade e da não discriminação, que representam fundamentos essenciais à conformação
de uma sociedade genuinamente democrática, tornando efetivo o princípio da igualdade,
assegurando o devido respeito à liberdade pessoal e à autonomia individual, conferindo
prioridade à dignidade da pessoa humana, esmigalhando paradigmas históricos, também
8
ADPF 132/RJ e ADI 4.277/DF, ambas de relatoria do Ministro Ayres Britto.
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culturais e sociais e removendo barreiras que, até então, inviabilizavam a busca da felicidade
de homossexuais vítimas de tratamento discriminatório.
Destarte, deu-se um passo expressivo contra a discriminação e contra o tratamento
excludente que a todo momento têm marginalizado grupos minoritários, viabilizando-se a
instauração e também a consolidação de uma ordem jurídica genuinamente inclusiva.
A doutrina - apoiando-se em valiosa hermenêutica construtiva e invocando princípios
fundamentais, como os já citados, dignidade da pessoa humana, da autodeterminação, da
liberdade, do pluralismo, da igualdade, da intimidade, da não discriminação e, por fim, da busca
da felicidade, tem revelado assombrosa percepção quanto ao sentido de que se revestem tanto
o reconhecimento do direito individual e personalíssimo à orientação sexual quanto ao
manifesto da legitimidade ético-jurídica da união de casais homossexuais como entidade
familiar, em ordem a possibilitar que se extraiam, em favor destes parceiros, relevantes
consequências no plano concreto do Direito, especialmente no campo previdenciário, e,
também, na esfera das relações sociais e familiares9.
5
PENSÃO
POR
MORTE
AOS
CASAIS
HOMOSSEXUAIS:
GARANTIA
CONSTITUCIONAL LIGADA À DIGNIDADE E FELICIDADE
Quando se aborda a temática adstrita à concessão de pensão por morte, considerados
os dependentes de primeira classe, a questão referente à concessão daquele benefício aos casais
de homossexuais avulta. Assim, a título de introdução, tem-se que o benefício de pensão por
morte apresenta previsão no artigo 74 da Lei nº 8213/01. Portanto, tem-se que: “Art. 74. A
pensão por morte será devida ao conjunto dos dependentes do segurado que falecer, aposentado
ou não [...]”. Trata-se, pois, de um benefício previdenciário devido aos dependentes quando
ocorre a morte do segurado.
Em um primeiro momento pode-se até mesmo estranhar dizer que a pensão por morte
estaria ligada também ao direito constitucional implícito de felicidade. No entanto, é justamente
Nesse sentido, tem-se o seguinte julgado: “Relação homoerótica – União estável – Aplicação dos princípios
constitucionais da dignidade humana e da igualdade – Analogia – Princípios gerais do direito – Visão abrangente
das entidades familiares – Regras de inclusão (...) – Inteligência dos arts. 1.723, 1.725 e 1.658 do Código Civil de
2002 – Precedentes jurisprudenciais. Constitui união estável a relação fática entre duas mulheres, configurada na
convivência pública, contínua, duradoura e estabelecida com o objetivo de constituir verdadeira família,
observados os deveres de lealdade, respeito e mútua assistência. Superados os preconceitos que afetam ditas
realidades, aplicam-se, os princípios constitucionais da dignidade da pessoa, da igualdade, além da analogia e dos
princípios gerais do direito, além da contemporânea modelagem das entidades familiares em sistema aberto
argamassado em regras de inclusão. Assim, definida a natureza do convívio, opera-se a partilha dos bens segundo
o regime da comunhão parcial. Apelações desprovidas.” (Apelação Cível 70005488812, Rel. Des. JOSÉ CARLOS
TEIXEIRA GIORGIS, 7ª Câmara Civil, Tribunal Regional Federal da 4ª Região)
9
49
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nesse momento de dor, que uma minoria, qual seja, os casais homoafetivos, podem encontrar o
mínimo de conforto proveniente do Estado através do pagamento de pensão pela morte de seu
cônjuge. Este benefício previdenciário, longe de ser uma espécie de “favor”, revela a plena
aplicação prática da Constituição Federal com todo o seu fervor. Nem poderia ser diferente,
pois é inimaginável que uma pessoa que efetivamente dedicou e passou boa parte de sua vida
dividindo todos os acontecimentos diários, alegrias e frustrações, não pudesse receber o devido
amparo estatal em hora tão difícil. Assim, também está a se falar no princípio da felicidade,
através do conforto material almejado que o cônjuge sobrevivente alcança através do benefício
da pensão por morte, ou seja, o princípio da dignidade da pessoa humana é totalmente aplicável,
demonstrando o caráter humanitário esperado pela aplicação do texto constitucional.
Nesse sentido, Frederico Amado (2013, p. 658) explica que:
A pensão por morte é um benefício previdenciário dos dependentes do segurado,
assim considerados as pessoas listadas no artigo 16, da Lei 8213/91, devendo a
condição de dependente ser aferida no momento do óbito do instituidor, e não em
outro marco, pois é com o falecimento que nasce o direito.
Por seu turno, no que tange aos dependentes, os mesmos encontram-se listados no
artigo 16 da Lei 8213/9110. Desse modo, quanto aos dependentes de primeira classe, ou seja, os
mencionados no inciso I, do artigo 16, lista-se a parceria homoafetiva, onde se inclui no
conceito de companheiro, o parceiro homossexual, ante a aplicação do princípio da isonomia.
Assim, a exclusão dos dependentes homossexuais do regime geral, considerando que
o segurado verteu contribuições ao regime geral de seguridade social, não se justifica quando
confrontada com o princípio da universalidade, esculpido no artigo 194, Parágrafo Único, da
Constituição Federal.
Tal acepção, ao ser conjugada, sobremaneira, com o teor o artigo 3º, IV, da
Constituição Federal, apresenta-se ainda mais inaceitável, ante o teor daquele dispositivo
legal11. Por sua vez, a jurisprudência pátria aponta também essa abordagem:
Art. 16. São beneficiários do Regime Geral de Previdência Social, na condição de dependentes do segurado:
I - o cônjuge, a companheira, o companheiro e o filho não emancipado, de qualquer condição, menor de 21 (vinte
e um) anos ou inválido ou que tenha deficiência intelectual ou mental que o torne absoluta ou relativamente
incapaz, assim declarado judicialmente;
II - os pais;
III - o irmão não emancipado, de qualquer condição, menor de 21 (vinte e um) anos ou inválido ou que tenha
deficiência intelectual ou mental que o torne absoluta ou relativamente incapaz, assim declarado judicialmente;
11
Art. 3º. Constituem-se objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:
[...]
IV – promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de
discriminação.
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
RECURSO ESPECIAL. DIREITO PREVIDENCIÁRIO. PENSÃO POR MORTE.
RELACIONAMENTO HOMOAFETIVO. POSSIBILIDADE DE CONCESSÃO
DO BENEFÍCIO. MINISTÉRIO PÚBLICO. PARTE LEGÍTIMA.
[...]
3 - A pensão por morte é: "o benefício previdenciário devido ao conjunto dos
dependentes do segurado falecido - a chamada família previdenciária - no exercício
de sua atividade ou não (neste caso, desde que mantida a qualidade de segurado), ou,
ainda, quando ele já se encontrava em percepção de aposentadoria. O benefício é uma
prestação previdenciária continuada, de caráter substitutivo, destinado a suprir, ou
pelo menos, a minimizar a falta daqueles que proviam as necessidades econômicas
dos dependentes. " (Rocha, Daniel Machado da, Comentários à lei de benefícios da
previdência social/Daniel Machado da Rocha, José Paulo Baltazar Júnior. 4. ed. Porto
Alegre: Livraria do Advogado Editora: Esmafe, 2004. p.251).
4 - Em que pesem as alegações do recorrente quanto à violação do art. 226, §3º, da
Constituição Federal, convém mencionar que a ofensa a artigo da Constituição
Federal não pode ser analisada por este Sodalício, na medida em que tal mister é
atribuição exclusiva do Pretório Excelso. Somente por amor ao debate, porém, de tal
preceito não depende, obrigatoriamente, o desate da lide, eis que não diz respeito ao
âmbito previdenciário, inserindo-se no capítulo ‘Da Família’. Face a essa
visualização, a aplicação do direito à espécie se fará à luz de diversos preceitos
constitucionais, não apenas do art. 226, §3º da Constituição Federal, levando a que,
em seguida, se possa aplicar o direito ao caso em análise.
5 - Diante do §3º do art. 16 da Lei n. 8.213/91, verifica-se que o que o legislador
pretendeu foi, em verdade, ali gizar o conceito de entidade familiar, a partir do modelo
da união estável, com vista ao direito previdenciário, sem exclusão, porém, da relação
homoafetiva.
6- Por ser a pensão por morte um benefício previdenciário, que visa suprir as
necessidades básicas dos dependentes do segurado, no sentido de lhes assegurar a
subsistência, há que interpretar os respectivos preceitos partindo da própria Carta
Política de 1988 que, assim estabeleceu, em comando específico: "Art. 201- Os planos
de previdência social, mediante contribuição, atenderão, nos termos da lei, a: [...] V pensão por morte de segurado, homem ou mulher, ao cônjuge ou companheiro e
dependentes, obedecido o disposto no §2º."
7 - Não houve, pois, de parte do constituinte, exclusão dos relacionamentos
homoafetivos, com vista à produção de efeitos no campo do direito previdenciário,
configurando-se mera lacuna, que deverá ser preenchida a partir de outras fontes do
direito.
8 - Outrossim, o próprio INSS, tratando da matéria, regulou, através da Instrução
Normativa n. 25 de 07/06/2000, os procedimentos com vista à concessão de benefício
ao companheiro ou companheira homossexual, para atender a determinação judicial
expedida pela juíza Simone Barbasin Fortes, da Terceira Vara Previdenciária de Porto
Alegre, ao deferir medida liminar na Ação Civil Pública nº 2000.71.00.009347-0, com
eficácia erga omnes. Mais do que razoável, pois, estender-se tal orientação, para
alcançar situações idênticas, merecedoras do mesmo tratamento.
9 - Recurso Especial não provido. (REsp 395904/RS, Rel. Ministro HÉLIO
QUAGLIA BARBOSA, SEXTA TURMA, julgado em 13/12/2005, DJ 06/02/2006,
p. 365)
Portanto, ante tais ponderações, mostra-se inviável a consideração isolada do disposto
no artigo 226, §3º da Constituição Federal, para deixar de incluir, em seu teor, as uniões
homoafetivas no conceito de entidade familiar. E, de forma concludente, a acepção apontada
pelo já mencionado no artigo 5º da Constituição Federal aponta nessa direção.
De outra parte, em um ponto de vista estritamente ligado à principiologia adstrita ao
regime geral de previdência social, avoca-se sua natureza contributiva, o que impede a não
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
concessão de um benefício previdenciário se todas as suas condições legais para sua concessão
foram cumpridas pelo beneficiário.
Desse modo, é assegurado, por disposição Constitucional e derivação legal, o direito à
concessão de pensão por morte do segurado, não só ao cônjuge, homem ou mulher, como
também ao companheiro, sem distinção quanto ao sexo e dependentes.
CONCLUSÃO
Friedrich Müller já afirmava que os Estados Constitucionais atuais devem procurar
reelaborar a textualidade, dentro de um contexto empírico. Fica evidente assim a estrutura
textual da democracia e também do Estado de Direito. Na esfera desse conjunto estruturado a
Carta Magna, ou seja, a Constituição, é distinguida em nível supremo, assim a concretização da
constituição é relevante para a práxis em nível supremo. A constituição, portanto, não é algo
meramente formal, sob qualquer ponto de vista, e tampouco diz respeito à mera lei
constitucional. Assim, considerando-se o texto constitucional como dado de entrada de um
conjunto de prescrições hierarquicamente soberanas a ser considerado, é a Constituição nesse
sentido operacional, que a ciência fundamenta e elabora e do qual o trabalho jurídico efetivo
carece.
A norma jurídica, portanto, aparece com a aplicação do texto da lei, principalmente da
Constituição, com o caso concreto. As proteções e garantias da Carta Magna devem levar em
conta a práxis, o trabalho empírico, fazendo com que surja a norma em seu sentido mais amplo
e verdadeiramente reconhecível, como forma de total ajuste aos mandamentos constitucionais,
valorizando os objetivos sociais, valorizando o que de mais essencial existe em um Estado
Democrático de Direito, buscando assim o bem estar, a saúde e plena satisfação da dignidade
da pessoa humana.
A Carta Magna, portanto, conforme aqui demonstrada, atinge plenamente o esperado
pelos cidadãos e também por sua própria força de expressão, seja através da proteção já
externada em vários mandamentos constitucionais para a devida proteção da dignidade da
pessoa humana, inclusive para abarcar os acontecimentos sociais vividos hodiernamente, não
sendo possível aceitar quaisquer limitações a direitos fundamentais com uma interpretação
restritiva ou meramente gramatical do texto constitucional.
O imperativo das normas constitucionais reforça a proteção estatal para todas as pessoas,
independentemente de sua orientação sexual, inclusive para a percepção de benefícios
previdenciários. A não realização de tais benefícios previdenciários significaria ato
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
discriminatório do Estado, deixando sem proteção justamente as pessoas que mais necessitam,
por encontrarem-se em flagrante situação de minoria, o que nem sempre conta com a boa
vontade da sociedade na defesa de seus interesses, razão pela qual que nessas situações é que
se espera o pleno desenvolvimento do texto constitucional e sua aplicação com toda a sua
abrangência possível.
O simples fato de imaginar a possibilidade de desrespeito ou prejuízo a qualquer pessoa
em função de sua orientação sexual seria dispensar tratamento indigno ao ser humano. Não se
pode ignorar a condição pessoal do indivíduo, legitimamente distintiva e constitutiva de sua
identidade única e pessoal, na qual, sem dúvida, se inclui a orientação sexual, como se tal
aspecto não abrangesse nenhuma relação com a essencial dignidade humana.
É perceptível através da história as mudanças do que é considerado casamento, até
mesmo do conceito de amor, ficando evidente que têm assumido contornos e formas de
manifestação e institucionalização em vários sentidos. O assentimento das uniões homoafetivas
é um fenômeno mundial, que em alguns países pode ser visto de forma mais implícita, com a
expansão da compreensão do conceito de família dentro do ordenamento jurídico já existente;
em outros de maneira bem mais explícita, pois é feito a modificação do ordenamento jurídico
de modo a legalizar textualmente a união homoafetiva.
A verdade é que mudanças legislativas podem demorar a ocorrer, assim, o Judiciário
não pode ignorar as transformações pelas quais a sociedade passa, que, não raro, muitas vezes
se antecipam à essas modificações das leis. Uma vez que seja reconhecida com o auxílio dos
princípios norteadores contidos na constituição pátria e a sua devida interpretação, a união
homoafetiva como passível de ser englobada dentro do conceito de entidade familiar e afastados
quaisquer barreiras de natureza atuarial, deve a Previdência tratar os casais de mesmo sexo nos
mesmos moldes das uniões estáveis que ocorrem entre heterossexuais, devendo ser exigido
daqueles o mesmo que se exige destes para fins de demonstração e comprovação do vínculo
afetivo e também de dependência econômica presumida, entre os casais, quando do
processamento de eventuais pedidos de pensão por morte ou mesmo auxílio-reclusão, dentre
outros benefícios.
É evidente, portanto, que é totalmente justificável a extensão às uniões homoafetivas do
mesmo regime jurídico que é aplicável à união estável entre pessoas heterossexuais, sendo que
tal incidência é legitimada, dentre outros, dos princípios constitucionais da dignidade, da
liberdade, da igualdade, da segurança jurídica e, muito importante, também do mandamento
constitucional implícito que visa consagrar o direito à busca da felicidade. Tais princípios tem
o condão de privilegiar o sentido de inclusão que decorre da própria Constituição Federal (art.
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
1º, III, e art. 3º, IV), fundamentos autônomos e satisfatórios aptos a conferir arrimo legitimador
para a união homoafetiva como entidade familiar.
Deve-se observar, portanto, nas relações homoafetivas, os mesmos requisitos inerentes
à união estável constituída por pessoas heterossexuais, conforme disposto no Código Civil, art.
1.723. Presentes os vínculos de amor, de solidariedade e de projetos de existência em comum,
os casais homossexuais merecem todo o amparo do Estado, sendo que este deve lhes dar o
mesmo tratamento que as uniões estáveis heterossexuais recebem.
Como se vê o afeto tem valor jurídico e está impregnado de natureza constitucional,
valorizando esse novo paradigma como âmago conformador do conceito de família. Assim é
indiscutível que este novo paradigma após a promulgação da Constituição Federal de 1988, no
plano das relações familiares, para fins de se estabelecer direitos e deveres que decorrem do
vínculo familiar, consolidou-se na existência e também no reconhecimento do afeto.
O governo existe essencialmente para proteger o direito do homem ir em busca de seu
mais alto anseio, que é a felicidade ou o seu bem-estar. O homem é motivado com empenho e
pelo interesse próprio na busca de sua felicidade. A sociedade e o governo é uma construção
social com o propósito de proteger cada cidadão e indivíduo, permitindo que todos possam
viver juntos de forma reciprocamente benéfica.
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Malheiros Editores Ltda. São Paulo: 2009.
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FREITAS, Juarez. A Interpretação Sistemática do Direito. 5ª ed. São Paulo: Malheiros
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ROCHA, Daniel Machado da; JÚNIOR, José Paulo Baltazar. Comentários à Lei de Benefícios
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TEMER, Michel. Elementos de Direito Constitucional. 23ª ed. São Paulo: Editora Malheiros,
2010.
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
A EFICIÊNCIA SEGUNDO A ANÁLISE ECONÔMICA DO DIREITO COMO
ELEMENTO HERMENÊUTICO PARA ATINGIR A MÁXIMA EFETIVIDADE DA
NORMA CONSTITUCIONAL
EFFICIENCY BY ECONOMIC ANALYSIS OF LAW AS AN HERMENEUTIC TO
ACHIEVE MAXIMUM EFFECTIVENESS OF CONSTITUTIONAL STANDARD
Autor:
GUILHERME HELFENBERGER GALINO CASSI, Mestrando em Direito Econômico e Socioambiental na
Pontifícia Universidade Católica do Paraná; Especialista em Direito Civil e Empresarial pela Pontifícia
Universidade Católica do Paraná. Advogado.
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RESUMO
A hermenêutica jurídica mostra-se como um campo sempre essencial ao estudo do Direito,
especialmente quando direcionada ao texto da Constituição Federal. A leitura da norma
contida nos princípios e regras constitucionais exige do intérprete uma análise profícua e
embasada em critérios objetivos bem determinados na ciência da interpretação. Sobretudo,
quando se interpreta deve-se buscar a efetividade da norma, pois as garantias previstas pelo
legislador constituinte tem por finalidade a máxima amplitude. Com essa premissa a Análise
Econômica do Direito pode revelar-se como um valioso instrumento na investigação da
norma jurídica a fim de que a efetividade da Constituição seja potencializada. Com a
aplicação do conceito de eficiência prevista nessa ferramenta do Direito pode o intérprete, em
conjunto aos demais métodos hermenêuticos, extrair do texto de lei um comando muito mais
efetivo e, por consequência, justo.
Palavras-chave: Hermenêutica jurídica; interpretação constitucional; métodos; análise
econômica do direito; eficiência; efetividade.
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
ABSTRACT
The legal hermeneutics shows up as a field always essential to the study of law, especially when
directed at the text of the Federal Constitution. The reading of the rule contained in the
Constitucional principles and rules requires from the interpreter an useful analysis based on well
determined objective criteria in the science of interpretation. Especially, when interpreting should
seek the effectiveness of the rule, because the guarantees intended by the constituent legislator
aims at maximum amplitude. Based on this premise the Economic Analysis of Law may revels to be a
valuable tool in the investigation of the law so that the effectiveness of the Constitution is
maximized. With the application of the concept of efficiency provided in this legal tool can the
interpreter, combining with other hermeneutic methods, extract from the legal text more
effectiveness and therefore fair.
Keywords: Legal hermeneutics; constitutional interpretation; methods, economic analysis of law,
efficiency, effectiveness.
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1. INTRODUÇÃO
Em uma sociedade em que a produção legislativa tenta acompanhar o mesmo
compasso dinâmico das mudanças que se desenrolam no mundo dos fatos, a escolha e a
manutenção de um eixo interpretativo em consonância à vontade e aos princípios da
Constituição Federal são uma necessidade a fim de se garantir o continuísmo do
desenvolvimento nacional. A hermenêutica, ao ser a ciência da interpretação, se mostra assim
um importante campo de estudo do Direito, sobretudo quando dirigida à interpretação e
aplicação do texto constitucional.
O destaque ao tema é demonstrado no fato de que a simples leitura textual da lei não
é suficiente para a compreensão de seu significado e extensão. A correta aplicação da norma
está atrelada ao uso da hermenêutica como uma lente, a qual deve ser colocada entre o
intérprete e a legislação para somente então se descobrir como se deve ocorrer a aplicação do
Direito aos casos concretos.
O estudo ganha ainda mais riqueza quando se percebe que não há apenas um método
que pode ser utilizado pelo intérprete para extrair a verdadeira norma jurídica dos textos de
lei. A atividade interpretativa é complexa e densa, podendo ser feita com a utilização de
elementos históricos, deontológicos, teleológicos, entre outros, de forma isolada ou conjunta,
o que, ao depender da escolha, pode alterar substancialmente o que se vê como conteúdo da
lei e seus efeitos possíveis.
Acrescenta-se a esse volume de informações o fato de que a hermenêutica não é
capaz de apontar um método interpretativo considerado “correto”, cuja utilização se dê de
forma imperativa perante os demais. A prática jurídica demonstra que a escolha dos
elementos hermenêuticos ocorre de maneira subjetiva, sem que haja uma uniformidade
interpretativa entre todos os intérpretes. A consequência é uma enorme gama de
interpretações e aplicações distintas da mesma norma jurídica.
Grandes exemplos são os próprios julgamentos colegiados realizados pelo Supremo
Tribunal Federal nos quais, nos mesmos temas, acontece nítida divergência nos
posicionamentos exarados pelos Ministros. Não há que se olvidar que todos são exímios
conhecedores do Direito e principalmente da Constituição Federal, porém mesmo assim veem
o mesmo comando legal com ótica e consequências díspares. Diante destas situações é
possível indagar se um ou outro raciocínio é incorreto, se algum dos magistrados não possui
uma base técnica suficiente para aplicar a própria norma constitucional. Entretanto, denota-se
que, ao inverso do que se pode imaginar prima facie, mesmo as posições mais contraditórias
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
podem encontrar amparo à luz do Direito, e quase sempre com fundamentos jurídicos críveis
que justificam plenamente o raciocínio adotado, sendo que a única diferença entre elas reside
unicamente no método hermenêutico adotado para se chegar à conclusão.
Uma das poucas características indeléveis na ciência hermenêutica – com destaque
no presente trabalho – é a de que independente do método utilizado deve o intérprete sempre
primar pela efetividade da norma (sobretudo a norma constitucional), que nada mais é do que
ampliar ao máximo as consequências benéficas previstas pelo legislador quando a editou e
vislumbrou a sua aplicação aos casos concretos.
Para tanto, mesmo não havendo uma corrente uníssona na doutrina ou na
jurisprudência quanto ao melhor elemento interpretativo, sugere-se, em relação aos princípios
e regras contidos na Constituição Federal, a utilização da Análise Econômica do Direito como
potencializadora da efetividade da norma.
Justifica-se que a aplicação da norma é na verdade um feixe composto por um
espectro de vários elementos interpretativos incidentes sobre o texto normativo, dentre os
quais podem ser incorporados os princípios da Economia aplicada ao Direito como forma de
se obter o melhor extrato da lei. Há décadas reiterados estudos comprovam que a Análise
Econômica do Direito é um potente ferramental analítico e normativo, o qual, dada sua
característica inata de prover a melhor alocação de recursos, pode ser estendida à
hermenêutica constitucional como mais um elemento interpretativo, especialmente o seu
conceito de eficiência.
A metodologia adotada para exposição do tema parte da delimitação da hermenêutica
jurídica como a ciência de interpretação do Direito, com a demonstração de seus princípios e
métodos, e então desenvolver o tema sobre o ponto de vista da Constituição Federal.
Passo seguinte, após firmar as premissas do estudo hermenêutico constitucional,
apresenta-se a Análise Econômica do Direito como uma nova vertente do estudo jurídico.
Após longo tempo em que a ciência do Direito se satisfez por si mesma, sem dialogar com
demais campos de estudo científico, modernamente tem-se entendido que a Sociologia,
Filosofia, Psicologia e a própria Economia têm importantes fundamentos que podem
contribuir a explicar o funcionamento do sistema jurídico e, principalmente, a racionalidade
dos indivíduos e da sociedade.
Assim posto em linhas iniciais, nas próximas páginas a hermenêutica é tratada como
um dos sustentáculos da ciência jurídica, bem como a exposição de que a confluência com
Análise Econômica do Direito, quando aplicada à interpretação da Constituição Federal, pode
resultar em um aumento substancial no que se entende como efetividade da norma.
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
2. HERMENÊUTICA
A hermenêutica pode ser compreendida como a doutrina que, a partir das hipóteses
de interpretação dos mais diversos textos, pretende objetivamente indicar a mais adequada. É
uma ciência que por meio dos princípios interpretativos procura afastar o relativismo e
vincular a interpretação a um critério objetivo (SANTOS, 2012).
A sua origem é ancorada no estudo dos princípios gerais de interpretação bíblica.
Para judeus e cristãos, seu objeto era descobrir as verdades e os valores contidos na bíblia
(BARROSO, 2011). A própria palavra intérprete tem uma conotação investigativa, pois sua
origem latina – interpres –designava aquele que descobria o futuro nas entranhas das vítimas.
Tirar das entranhas ou desentranhar era, portanto, o atributo do interpres, de que deriva para a
palavra interpretar o significado específico de desentranhar o próprio sentido das palavras
(MORAES, 2012).
A hermenêutica, especificamente a hermenêutica do Direito, resulta em um domínio
teórico, especulativo, cujo objeto é a formulação, o estudo e a sistematização dos princípios e
regras da interpretação das leis (BARROSO, 2011). A própria origem da palavra intérprete
deixa implícito que a tradução do verdadeiro sentido da lei é algo bem guardado, entranhado
em sua própria essência.
Maria Helena Diniz, ao resumir a hermenêutica como a teoria científica da arte de
interpretar, completa que é uma ciência que compila o conjunto de princípios e normas que
norteiam a interpretação jurídica (DINIZ, 2005).
Ao criar regras para serem seguidas pelo intérprete, a hermenêutica não deixa de
conter um aspecto normativo: as regras são postas socialmente como direções para a ação do
intérprete, como regimentos de conduta a serem seguidas como adequadas para a ciência
jurídica.
Apesar da indissociável relação que existe entre os termos, interpretação e
hermenêutica não se confundem. Categoricamente faz-se a distinção atribuindo à primeira a
noção de técnica, enquanto que a segunda é associada à ideia de ciência, é a ciência de
interpretação das normas jurídicas.
A hermenêutica seria entendida como a teoria da interpretação dos sinais, não sendo,
pois, a interpretação em si (SEGANFREDDO, 1981). Carlos Maximiliano cita que
hermenêutica é algo superior à interpretação, assim como a teoria das cores é algo superior á
arte de combiná-las. Interpretar é a arte de determinar o sentido e o alcance das formas
sensíveis, materiais, do Direito (MAXIMILIANO, 2007).
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
Interpretar, por sua vez, é extrair um significado de um texto, fazendo um caminho
inverso ao do legislador: do abstrato procura chegar a preceituações mais concretas, o que só
é factível ao se extrair o exato significado da norma. Neste sentido, complementa Paulo
Bonavides (BONAVIDES, 2012):
Busca a interpretação estabelecer o sentido objetivamente válido de uma
regra de direito. Questiona a lei, não o direito. Objeto de interpretação é, de
modo genérico, a norma jurídica contida em leis, regulamentos ou costumes.
Não há norma jurídica que dispense interpretação.
Em conclusão, se hermenêutica é a ciência que delimita a arte de interpretar, a
interpretação em si é atividade prática de revelar o conteúdo, o significado e o alcance de uma
norma, tendo por finalidade fazê-la incidir em um caso concreto.
Passos adiante, a importância da hermenêutica para o Direito vai muito além do
simples debate teórico, pois para o exercício da subsunção (aplicação do Direito ao fato da
vida) é necessária uma interpretação para saber qual a norma que incide sobre o caso sub
judice, ou melhor, para determinar a qualificação da matéria fática sobre a qual deve incidir
uma norma geral. A subsunção está, portanto, condicionada por uma prévia escolha de
natureza axiológica entre as várias interpretações possíveis.
Fala-se em várias interpretações porque a hermenêutica não apresenta uma regra
interpretativa única para a leitura dos textos normativos. A afirmação chega a ser
desalentadora, pois, com respeito à superioridade que possa demandar cada um dos métodos
de interpretação jurídica, nenhum oferece uma receita infalível para estabelecer o sentido
preciso da lei (BONAVIDES, 2012).
Desta forma, a prévia escolha de um método pelo intérprete é pressuposto da leitura
que será realizada da norma e como ela será aplicada em um determinado caso concreto. Se
verificada uma discrepância entre decisões judiciais que analisam o mesmo fato sob a égide
de idêntica legislação, provavelmente isto se deve ao caminho interpretativo utilizado pelo
juiz para realizar a atividade de subsunção.
2.1. MÉTODOS DE INTERPRETAÇÃO DA NORMA JURÍDICA
O estudo da hermenêutica através do tempo resultou na estipulação de elementos
básicos na interpretação da norma jurídica. Apesar de a atividade interpretativa ser
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
iminentemente um ato do sujeito enquanto intérprete, assim sendo subjetiva, a ciência
hermenêutica teve a preocupação em estabelecer eixos centrais de interpretação.
Sem o escopo de exaurir a totalidade dos possíveis métodos interpretativos da norma
jurídica, para o momento é possível firmar uma base sólida com a apresentação dos chamados
elementos tradicionais de interpretação jurídica, os quais, na sistematização adotada no Brasil
e nos países de Direito codificado, remontam à contribuição de Savigny (BARROSO, 2011).
Assim, a interpretação da legislação com o intuito de se investigar e extrair um comando deve
levar em conta o texto da norma (interpretação gramatical), sua conexão com outras normas
(interpretação sistemática), sua finalidade (interpretação teleológica) e aspectos do seu
processo de criação (interpretação histórica).
2.1.1. MÉTODO GRAMATICAL
A primeira interpretação que se faz de um texto normativo é justamente a busca pelo
seu sentido literal. A interpretação gramatical funda-se nos conceitos existentes na norma e
nas possibilidades semânticas das palavras que integram o seu relato. Vale ressaltar que os
conceitos e possibilidades semânticas do texto figuram como ponto de partida e como limite
máximo da interpretação (BARROSO, 2011).
Trata-se aqui de dominar o idioma em que a norma jurídica foi produzida e assim
estabelecer uma definição, momento a partir do qual se busca fixar qual o sentido dos
vocábulos do texto normativo.
Além de fixar o sentido de cada uma das palavras que compõe a norma jurídica,
verifica-se também a sintaxe, observando a pontuação, colocação e escolha dos vocábulos
dentre outros aspectos. Caso a expressão tenha um sentido comum e um sentido técnico devese dar preferência ao sentido técnico – a não ser que dentro do contexto daquela norma
jurídica específica este sentido técnico não lhe seja adequado.
2.1.2. MÉTODO SISTEMÁTICO
A interpretação sistemática disputa com a teleológica a primazia no processo de
aplicação do Direito (BARROSO, 2011). Através deste método se analisa a norma jurídica
dentro do contexto em que ela está inserida, relacionando-as com as demais normas do
mesmo sistema jurídico.
63
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
No entendimento de Glauco Barreira Magalhães Filho temos que a interpretação
sistemática é a interpretação da norma à luz das outras normas e do espírito (principiologia)
do ordenamento jurídico, o qual não é a soma de suas partes, mas uma síntese (espírito) delas
(MAGALHÃES FILHO, 2002). A interpretação sistemática procura compatibilizar a partes
entre si e as partes com o todo – é a interpretação do todo pelas partes e das partes pelo todo.
Como afirma Paulo Bonavides, graças a esse meio hermenêutico, é possível inquirir
a norma em sua essência lógica, em conexão com as demais normas e, finalmente, referi-la a
todo o ordenamento jurídico (BONAVIDES, 2012).
Começa naturalmente onde se concebe a norma como parte de um sistema – a ordem
jurídica, que compõe um todo ou unidade objetiva, única a emprestar-lhe o verdadeiro
sentido, impossível de obter-se se a considerássemos insulada, individualizada, fora, portanto,
do contexto das leis e das conexões lógicas do sistema (BONAVIDES, 2012).
A interpretação sistemática ganha grande destaque quando considerada que todas as
normas infraconstitucionais não podem ser interpretadas isoladamente, sem a incidência
valorativa das normas contidas em outros regramentos legais e, principalmente, na
Constituição Federal.
2.1.3. MÉTODO TELEOLÓGICO
O método teleológico tem por objetivo a interpretação da norma jurídica a partir do
fim social que ela almeja. A norma jurídica seria um meio – ou o meio – adequado para se
atingir um fim desejado. Chama-se teleológico o método interpretativo que procura revelar o
fim da norma, o valor ou bem jurídico visado pelo ordenamento jurídico com a edição de
dado preceito (BARROSO, 2009).
A Constituição e as leis visam resguardar certas necessidades e devem ser
interpretadas no sentido que melhor atenda à finalidade para a qual foi criada. O legislador
brasileiro, em uma das raras exceções em que editou uma lei de cunho interpretativo, agiu,
precisamente, para consagrar o método teleológico, ao dispor, no art. 5º da Lei de Introdução
ao Direito, que na aplicação da lei o juiz atenderá aos fins sociais a que ele ela se dirige e às
exigências do bem comum (BARROSO, 2009).
64
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
2.1.4. MÉTODO HISTÓRICO
Este método empreende uma análise pelo intérprete do contexto histórico em que a
norma jurídica foi criada. São relevados os motivos que levaram à elaboração da legislação e
quais os interesses dominantes que ela buscava resguardar.
O método traça toda a história da proposição legislativa, desce no tempo a investigar
a ambiência em que se originou a lei, procura enfim encontrar o legislador histórico, as
pessoas que realmente participaram da sua elaboração, trazendo à luz os intervenientes fatores
políticos, econômicos e sociais, configurativos da occasio legis (BONAVIDES, 2012).
Faz-se a ressalva que a análise histórica desempenha um papel secundário,
suplementar na revelação do sentido da norma. À medida que a Constituição e as leis se
distanciam no tempo e na conjuntura histórica em que foram promulgadas, a vontade
subjetiva do legislador vai sendo substituída por um sentido autônomo e objetivo da norma,
que dá lugar, inclusive, à construção jurídica e à interpretação normativa (BARROSO, 2011),
mais a frente adensadas.
O método histórico vê o Direito como sendo um produto do tempo em que se
concretiza, oriundo da vida social e, desta forma, capaz de adaptar-se às novas condições e
realidades sociais. Destaca-se, por fim, que não é utilizado de maneira isolada na
interpretação e aplicação do Direito, pois uma verificação puramente histórica caberia ao
historiador, e não ao jurista.
3. A HERMENÊUTICA DA CONSTITUIÇÃO
A hermenêutica aplicada aos princípios e regras constitucionais é mais complexa e
ampla do que aquela no trato da lei comum. A Constituição, como norma basilar, possui a
responsabilidade ímpar de estabelecer a organização do Estado e impor linhas gerais e
imperativas a todas as demais leis.
A Constituição é, por consequência, um documento normativo que reside em posição
de supremacia em relação ao restante do ordenamento jurídico, supremacia que diz-se formal
e substancial (FACHIN, 2006). A supremacia substancial significa que determinados
conteúdos, inscritos ou não na constituição, têm dignidade constitucional e, por conseguinte,
ascendência sobre o restante do ordenamento jurídico. A supremacia formal implica em
reconhecer que a Constituição escrita localiza-se em posição superior às demais normas do
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
ordenamento jurídico e que exige um procedimento específico para ser alterada. A conotação
que se é conferida aos seus preceitos irradia toda sua força normativa ao restante das leis
infraconstitucionais, razão pela qual a sua adequada interpretação é de tão grande
importância.
Há de se dizer que à rigor não existe distinção de natureza entre a interpretação das
normas constitucionais e a interpretação das demais normas do ordenamento jurídico, existem
sim distinções decorrentes da peculiaridade das regras básicas, de seu conteúdo ou do aspecto
material, mas que não devem afetar a essência da norma jurídica (BONAVIDES, 2012).
A interpretação das normas constitucionais, pelo caráter político de que se
revestem em razão de seu conteúdo, se aparta, em importantíssimo ponto, da
metodologia empregada para a fixação do sentido e alcance de outras normas
jurídicas, cuja interpretação se move num círculo menos sujeito a incertezas
e dificuldade como aquelas que aparecem tocante à norma constitucional
(BONAVIDES, 2012).
Destarte,
os
mesmos
elementos
hermenêuticos
da
interpretação
da
lei
infraconstitucional podem ser utilizados para extração dos comandos normativos previstos na
Constituição. Os métodos clássicos, inclusive, também têm seu papel nesta tarefa.
A análise semântica do texto constitucional descreve particularmente o comando
permissivo ou restritivo a ser aplicado em determinado caso concreto – são os limites da
norma impostos pelo legislador constituinte; a interpretação histórica do contexto em que a
Constituição foi elaborada e promulgada perfaz um indicativo de qual era a finalidade
proposta pelos seus criadores, bem como é um indicativo da efetividade que deve ser
perseguida pelo intérprete (interpretação teleológica); finalmente, a Constituição é a base e o
fim de todo o ordenamento jurídico, ao ponto sua leitura, tanto interna, quanto frente às leis de
menor envergadura, deve ser feita de maneira sistemática.
Mesmo que sendo uma tarefa ardil, a interpretação constitucional impõe ao intérprete
a utilização de múltiplos métodos por uma linha de atuação que menos reflete uma opção
preferencial por qualquer deles do que adesão a determinada postura ideológica (GRAU,
2012). Porém, apesar de tais considerações, por óbvio que o estabelecimento de critérios
absolutos para a interpretação da Constituição se afigura como uma tarefa complexa, se não
impossível (GRAU, 2012).
66
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
3.1. CRITÉRIOS ESPECIAIS DA HERMENÊUTICA CONSTITUCIONAL
Apesar de a interpretação constitucional seguir a linha geral apresentada pela
hermenêutica para interpretação dos textos do Direito, a importância da Constituição para o
ordenamento jurídico faz com que certos princípios lhe sejam peculiares, cuja observância
mostra-se como condição sine qua non para que o intérprete faça uma correta leitura da norma
nela insculpida.
Os preceitos peculiares da leitura constitucional apresentados na doutrina
especializada sobre o tema variam conforme o jurista de sua autoria, contudo em essência não
se dissociam àqueles citados por Canotilho em sua obra (CANOTILHO, 2003):

Unidade da Constituição: a interpretação constitucional deve ser
realizada de maneira a evitar contradições entre suas normas;

Efeito integrador: na resolução de problemas jurídico-constitucionais,
deverá ser dada maior primazia aos critérios favorecedores da integração
política e social, bem como o reforço da unidade política;

Máxima efetividade: a uma norma constitucional deve ser atribuído o
sentido que maior efetividade;

Justeza
ou
conformidade
social:
os
órgãos
encarregados
da
interpretação da norma constitucional não poderão chegar a uma posição
que subverta, altere ou perturbe o esquema organizatório-funcional
constitucionalmente estabelecido pelo legislador constituinte originário;

Concordância prática ou harmonização: exige-se a coordenação e
combinação dos bens jurídicos em conflito de forma a evitar o sacrifício
total de uns em relações com outros;

Força normativa da Constituição: entre as interpretações possíveis, deve
ser adotada aquela que garanta maior eficácia, aplicabilidade e permanência
das normas constitucionais.
Com uma leitura convergente dos princípios acima pode-se sintetizar que a aplicação
das regras de interpretação para a Constituição deverá buscar a harmonização do texto
constitucional com suas finalidades precípuas, adequando-as à realidade e pleiteando a maior
aplicabilidade dos direitos, garantias e liberdades públicas.
67
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Talvez o ponto de grande destaque quando se procede a interpretação do texto
constitucional é a premissa de que ele se encerra em um verdadeiro e único código de regras e
princípios, cuja significação destes não é obtenível pela compreensão isolada de cada um,
sendo necessário levar em conta que eles dialogam entre si. Disso resulta uma interferência
recíproca entre as normas e princípios que faz com que a vontade constitucional só seja
extraível a partir de uma interpretação sistemática.
Portanto, é essencial ao intérprete considerar que a constituição, além de ser um
subsistema normativo em si, é também fator de unidade do sistema como um todo, ditando os
valores e fins que devem ser observados em conjunto com o ordenamento (BARROSO,
2011).
Princípios que compõem um sistema jurídico-democrático, tais como a liberdade e a
igualdade, têm que ser postos conjuntamente, em relação à dialética com a realidade, num
debate de compromisso, em busca da solução mais adequada, evitando-se construções
unilaterais ou unidimensionais, que importem em sacrifício de um princípio em proveito do
outro: por exemplo, igualdade sufocando a liberdade, ou a liberdade reprimindo a igualdade
(BONAVIDES, 2012).
Desta forma a interpretação de uma norma constitucional levará em conta todo o
sistema, tal como positivado, dando-se ênfase, porém, para os princípios que foram
valorizados pelo constituinte.
3.2. ABSTRAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO PRINCIPIOLÓGICA
A amplitude e complexidade da hermenêutica dos preceitos constitucionais se
justificam na natureza da linguagem das Constituições, própria à veiculação de normas
principiológicas e esquemáticas, o que faz com que aqueles apresentem maior abertura, maior
grau de abstração e, consequentemente, menor densidade jurídica.
Esta
característica
inata
à
Constituição
é
resultado
do
movimento
neoconstitucionalista que dominou o Direito durante o século XX. O paradigma
neoconstitucional representou um marco de conversão da abordagem do direito no plano
interno, com uma abertura maior para a dimensão axiológica, normalmente abandonada pela
ótica positivista que consagra a ciência jurídica, afastando o direito dos valores (EMERIQUE,
2009). Com o neoconstitucionalismo ocorreu o reconhecimento da normatividade dos
princípios (EMERIQUE, 2009).
68
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
Os princípios incorporados à ordem constitucional possuem grande grau de
abstração, sendo que conceitos como os de igualdade, moralidade, função social da
propriedade, justiça social, bem comum, dignidade da pessoa humana, dentre outros,
conferem ao intérprete um significativo espaço para a discricionariedade.
O preenchimento do sentido dos princípios constitucionais poderá ser realizado com
a utilização dos métodos hermenêuticos interpretativos já citados, porém, em alguns casos a
simples interpretação não será suficiente para solucionar o vácuo normativo existente a
determinado caso concreto. Deste modo, outro conceito relevante, especialmente no âmbito
da interpretação constitucional, é o de construção. Por sua natureza, uma Constituição se
utiliza de termos vagos e de cláusula gerais, e isso se deve ao fato de que ela se destina a
alcançar situações que não foram expressamente contempladas ou detalhadas no texto
(BARROSO, 2011).
Quando houver obscuridade na solução normativa aplicada a determinado fato social,
a plenitude do enunciado constitucional normativo dependerá da chamada atuação integrativa
do intérprete, a quem cabe fazer valorações e escolhas fundamentadas à luz dos elementos do
caso concreto. Essa função criativa do sentido das normas pelo intérprete dá margem ao
desempenho de uma atividade criativa, que se expressa em categorias como a interpretação
construtiva (BARROSO, 2011).
A interpretação construtiva consiste na ampliação do sentido ou extensão ou alcance
da Constituição – seus valores, seus princípios – para o fim de criar uma nova figura ou uma
nova hipótese de incidência não prevista originariamente, ao menos não de maneira expressa.
Significa tirar conclusões que estão fora e além das expressões contidas no texto e dos fatores
nele considerados. A interpretação é limitada à exploração do texto, ao passo que a construção
vai além e pode recorrer a considerações extrínsecas (BARROSO, 2011).
O método concretista, que somente é possível em casos concretos, considera a
interpretação constitucional uma concretização, admitindo que o intérprete, onde houve
obscuridade, determine o conteúdo material da Constituição. Desse modo o teor da norma só
se completa no ato interpretativo (BONAVIDES, 2012). A concretização gravita ai redor de
três elementos: a norma que se vai concretizar, a “compreensão prévia” do intérprete (leia-se
o conhecimento dos pressupostos de aplicação da norma pelo intérprete) e o problema
concreto a resolver.
69
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3.4. A EFETIVIDADE CONSTITUCIONAL
A Constituição, nascida a partir de dadas circunstâncias fáticas e históricas,
contempla o ser, porém não escapa à função de um dever-ser. Expressa o ser porque, de certo
modo, é produto de um contexto político e social existente. É dever-ser porque pretende
conformar essa realidade, impondo-se como norma (FACHIN, 2006). A Constituição, como
consequência, está intimamente ligada a uma expectativa que o legislador constituinte tem
para com a sociedade, de modo que o comando normativo, quando interpretado e em seguida
aplicado, deve produzir os efeitos esperados e transformar o dever-ser em uma realidade.
Essa concretização dos efeitos fáticos prospectados com a aplicação da norma
jurídica é chamada de efetividade. Efetividade é o compromisso final da Constituição.
A ideia de efetividade expressa o cumprimento da norma, o fato real de ela ser
aplicada e observada, de uma conduta humana se verificar na conformidade de seu conteúdo.
Significa, em suma, a realização do Direito, o desempenho concreto de sua função social. Ela
representa a materialização, no mundo dos fatos, dos preceitos legais e simboliza a
aproximação, tão íntima quanto possível, entre o dever-ser normativo e o ser da realidade
social (BARROSO, 2011).
Aqui cabe frisar que a terminologia de efetividade, apesar de próxima, é distinta das
ideias de eficiência e de eficácia. Enquanto efetividade é sintetizada na concretização dos
efeitos esperados com a norma jurídica, eficácia é a capacidade da norma de produzir efeitos,
já eficiência é o desenvolver desses efeitos de maneira adequada.
Feito este aparte, o intérprete constitucional deve ter compromisso com a efetividade
da Constituição: entre interpretações alternativas e plausíveis, deverá prestigiar aquela que
permita a atuação da vontade constitucional, evitando, no limite do possível, soluções que
refugiem no argumento da não autoaplicabilidade da norma ou na ocorrência de omissão do
legislador (BARROSO, 2011).
Neste sentido, tal como apresentado quando dos princípios específicos da
hermenêutica voltada à Constituição, a atuação do intérprete deve ser regida pelo princípio da
máxima efetividade, também chamado de interpretação efetiva, e que pode ser formulado nos
seguintes termos: “a uma norma constitucional deve ser atribuído o sentido que maior eficácia
lhe dê” (FACHIN, 2006).
A extensão máxima dos efeitos da Constituição depende inteiramente do método
hermenêutico escolhido pelo intérprete para fazer a leitura do texto positivado. Por exemplo,
enquanto uma análise gramatical pode ser capaz de restringir o alcance da norma, uma
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
sinergia com o contexto histórico em que a Constituição foi elaborada talvez seja suficiente
para levar o sujeito cognoscente a interpretar o comando legal de maneira extensiva.
4. A ANÁLISE ECONÔMICA DO DIREITO
A primazia da hermenêutica constitucional pela efetividade pode ser auxiliada de
maneira contundente por uma seara jurídica que é muito pouco explorada pelos juristas
voltados ao tema: a chamada Análise Econômica do Direito.
A ciência econômica há anos vem auxiliando a percepção do Direito de uma maneira
nova, e até não poderia ser diferente, pois a Economia, tal como o Direito, igualmente se
desenvolveu para explicar de maneira concreta e empírica as mais diversas relações humanas.
Historicamente, a inter-relação entre as Ciências teve início com a aplicação do
raciocínio econômico para condutas antitruste e de regulamentação, que desde então tem sido
expandida para trazer uma análise econômica (em graus variáveis) em todos os aspectos do
currículo das escolas de Direito. Inobstante ocasionais dissidências, a junção de Direito e
Economia é amplamente considerada como uma história de sucesso (WILLIAMSON, 2005).
A visualização do mundo jurídico sob este aspecto econômico notadamente pode-se
dar em várias vertentes. Na contribuição do Direito para a Economia temos a regulação
jurídica de certas áreas e práticas econômicas, como leis de regulação às relações de consumo,
relações societárias, mercado de capitais, concorrência empresarial, leis antitrustes, etc. Na
via inversa, da Economia para o Direito, é possível citar a análise do resultado
comportamental com a aplicação de determinada lei, as circunstâncias e probabilidades para
que um sujeito escolha entre o cumprimento ou descumprimento de um contrato, as chances
de sucesso ou insucesso em um eventual e futuro litígio judicial, e tantas outras confluências
possíveis.
Essa relação tornou comum que a Constituição Federal começasse a utilizar
abundantemente termos da Economia, tais como desenvolvimento econômico, crescimento
econômico, teoria econômica, escassez, produto nacional, capital, demanda, oferta, procura,
pleno emprego, moeda, inflação, mercados, monopólio, oligopólio, concorrência e outros
(FACHIN, 2006).
Mesmo que o Direito Econômico (regulação da Economia pelo Direito) e a Análise
Econômica do Direito (estudo de fatos jurídicos através de noções econômicas) não se
confundam, é um demonstrativo do diálogo com outras fontes que tem permeado a ciência do
Direito nos últimos dois séculos (GICO JUNIOR, 2010).
71
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No que diz respeito à Análise Econômica do Direito, a abordagem juseconômica
investiga as causas e as consequências das regras jurídicas e de suas organizações na tentativa
de prever como os cidadãos e agentes públicos se comportarão diante de uma dada regra e
como alterarão seu comportamento caso esta regra seja alterada (TIMM, org., 2012).
Assim, a figura da lei, fonte de Direito, é entendida pela Economia não apenas como
provedora da justiça, mas também incentivo para a mudança de comportamento e como
instrumento para se atingir objetivos de eficiência e distribuição de riquezas (COOTER,
2010).
Como se passará a demonstrar, um dos principais fundamentos da Economia – a
eficiência – pode ser criteriosamente utilizado como mais um elemento hermenêutico,
auxiliando de maneira preciosa a atividade do intérprete na busca pela mais adequada leitura
da Constituição.
5. O INCREMENTO DA EFETIVIDADE CONSTITUCIONAL COM A ANÁLISE
ECONÔMICA DO DIREITO
A questão central a ser respondida do presente trabalho é como a Análise Econômica
do Direito – AED – pode contribuir como elemento hermenêutico para o aumento da
efetividade das normas constitucionais.
Parte-se da premissa de que a AED pode ser sintetizada como o campo do
conhecimento humano que tem por objetivo empregar os variados ferramentais teóricos e
empíricos econômicos e das ciências afins para expandir a compreensão e o alcance do
Direito. Com ela, aperfeiçoa-se o desenvolvimento, a aplicação e a avaliação de normas
jurídicas, principalmente com relação às suas consequências (GICO JUNIOR, 2010). É,
assim, um potente ferramental para avaliar as consequências da aplicação de uma norma
jurídica e prever se ela será efetiva.
A AED aplicada como método hermenêutico parte de o intérprete (1) identificar as
possíveis alternativas normativas advindas das técnicas hermenêuticas e (2) investigar as
prováveis consequências de cada uma para, a partir de então, (3) comparar os resultados
obtidos sob critérios de eficiência.
Nas próximas linhas, como o raciocínio pode ser utilizado na prática.
72
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
5.1. HERMENÊUTICA APLICADA
Para fim didático, e inclusive coroar Análise Econômica do Direito como um método
que não se restringe a temas jurídico-econômicos, os postulados da AED utilizada como
elemento hermenêutico serão trabalhados de maneira aplicada, com o exemplo da disposição
constitucional acerca ao reconhecimento e proteção da união estável prevista no artigo 226,
§3º, na Constituição Federal 1.
Em primeiro lugar, quando o intérprete se depara com determinado texto positivado
na Constituição, deve fazer uma análise textual daquilo que se pretende interpretar. É o
contato imediato com a norma jurídica e que lhe determina o objeto e os contornos previstos
pelo legislador.
Com tal providência, sob a ótica do artigo 226, §3º, o intérprete pode deduzir pelo
menos cinco assertivas: a união estável é reconhecida como entidade familiar; portanto
merece guarnição no Estado; somente por ocorrer entre homem e mulher; não se confunde
com casamento; a lei deve facilitar a sua conversão em casamento.
Contudo uma interpretação meramente textual das normas constitucionais é sempre
considerada pobre, devendo ser acompanhada de outros elementos que venham a melhor
elucidar o comando normativo.
Assim, após a análise gramatical, deve o intérprete realizar um cotejo teleológico do
objeto interpretado. Rememora-se que o método teleológico observa a finalidade precípua
insculpida pelo legislador na norma constitucional. É um conceito intimamente ligado com a
efetividade, pois esta existe quando é concretizada a finalidade para a qual determinada lei
fora criada.
No nosso exemplo, o reconhecimento da união estável no corpo da Constituição
Federal se deveu ao volumoso número de casais que constituíam verdadeiramente uma
unidade familiar sem, contudo, gozar dos direitos conferidos pelo instituto do casamento.
Desta forma, a finalidade maior da lei foi garantir a fruição de direitos conjugais e
patrimoniais àqueles que não estavam formalmente amparados pelo então Código Civil de
1916.
Até este momento a combinação entre a interpretação gramatical e teleológica já
trazem várias conclusões sobre qual vem a ser o comando normativo previsto do texto legal.
Contudo, uma das principais regras da hermenêutica constitucional, senão a principal, é que a
1
“Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade
familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento”.
73
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
de que a interpretação sempre deve ser realizada de forma sistêmica, pois a Constituição se
encerra em um corpo jurídico uno e conciso, do qual não é possível excluir a influência de um
único elemento sobre os demais valores ou regras.
No que diz respeito à proteção constitucional à união estável, reconhecida a partir de
então como entidade familiar, grande divergência sempre houve quanto à possibilidade de
casais homoafetivos obterem o mesmo reconhecimento. A reticência para esta espécie de
união ser acolhida pelo Direito levou a muitos debates doutrinários e ações judiciais com o
intuito do reconhecimento das prerrogativas dos parceiros pelo Estado.
No caso, se uma análise meramente gramatical exclui essa possibilidade, pois o texto
constitucional traz expressamente que a união estável se dá “entre homem e mulher”, e o
elemento teleológico não auxilia para responder a dúvida lançada, a utilização do método
sistemático, indispensável para a hermenêutica da Constituição, é fundamental para
sacramentar que a união estável se estende sim a pessoas do mesmo sexo.
Tal qual decidiu o Supremo Tribunal Federal quando sedimentou a matéria 2, não é
possível ler o artigo 226, §3º, da Constituição Federal sem considerar o artigo 3º, inciso IV 3.
O princípio fundamental veda qualquer discriminação em virtude de sexo, raça, cor e que,
nesse sentido, sendo que ninguém pode ser diminuído ou discriminado em função de sua
preferência sexual. Conforme expôs o Ministro Carlos Ayres Brito, Relator das ações, “o sexo
das pessoas, salvo disposição contrária, não se presta para desigualação jurídica”.
Portanto, apesar de textualmente a Constituição dizer que união estável ocorre entre
pessoas de sexos diferentes, a interpretação sistemática é suficiente para entender que tal
passagem é meramente exemplificativa, podendo se dar também para casais homoafetivos.
Esta nova interpretação dada ao comando legal é reflexo do fenômeno da construção
(acima citado) e de outro, ainda inédito neste trabalho, conhecido como mutação. A mutação
constitucional por via de interpretação consiste na mudança do sentido da norma, em
contraste ao entendimento preexistente. Como só existe norma interpretada, a mutação
constitucional ocorrerá quando se estiver diante da alteração de uma interpretação
previamente dada (BARROSO, 2011).
2
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI nº 4277/ ADPF º 132. Relator Min. Carlos Ayres Brito. J.
05/05/2011.
3
Art. 3º - Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: IV - promover o bem de todos,
sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.
74
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
O que há de se indagar é se a partir deste momento, com a construção e a mutação
advindas da interpretação hermenêutica sobre o dispositivo, a norma constitucional foi
elevada à sua máxima efetividade.
Da mesma forma em que houve a sobreposição de elementos interpretativos para se
concluir que o Estado garante proteção a união estável entre pessoas do mesmo sexo, sugerese a partir de agora a incorporação da Análise Econômica do Direito para se verificar se a
norma extraída do texto legal é mesmo efetiva ou se poderia ser lida de uma maneira mais
completa.
5.2. A EFICIÊNCIA COMO ELEMENTO HERMENÊUTICO CONSTITUCIONAL
De início deve-se entender que, diferente do entendimento comum sobre o que vem a
ser a Economia, esta ciência tem por foco a investigação do comportamento humano em um
ambiente que os recursos são escassos. Acaso fosse diferente, houvesse plenitude de recursos
para todos, não haveria por que fazer escolhas, pois tudo seria abundante. Como são
realizadas essas escolhas é o que a Economia busca responder.
Toda escolha pressupõe alternativas possíveis e excludentes – ou seja, aquelas que
serão preteridas. Como consequência, pode-se dizer que a alternativa que não foi escolhida é
o ônus – o custo – daquela que o foi, pois é algo que poderia ter ocorrido, mas não vai. É o
chamado trade off da escolha (IVO GICO, 2010).
Portanto, quando alguém se vê diante de alternativas possíveis, realizará o cotejo
entre o custo/benefício do que se tem a ganhar e perder com cada uma delas, então optará por
aquela que maximiza os seus resultados e deixará de lado aquela que lhe é menos benéfica.
O que se propõe é que o mesmo raciocínio seja realizado na interpretação da norma
constitucional para se para primar pela efetividade. A aplicação deste conceito para a
hermenêutica constitucional ocorre quando o intérprete, dentro dos resultados obtidos com os
diversos métodos interpretativos, escolhe por aquele que possui a maior eficiência. O caminho
para tanto é o que será desvendado.
Pode-se verificar no tópico anterior que cada elemento interpretativo que incidia
sobre o texto constitucional lhe acrescentava ou diminuía um significado. Acaso o intérprete
ao analisar o artigo 226, §3º, da Constituição Federal conferisse mais importância à analise
gramatical do que aos demais elementos hermenêuticos, ou mesmo realizasse uma verificação
sistemática sem antes promover o entendimento teleológico da norma, teria por conclusão que
75
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
apenas casais heterossexuais poderiam ter reconhecida sua união estável nos termos da lei. É
uma questão de escolha entre as interpretações possíveis, nos exatos termos acima.
A escolha do agente pela melhor forma de interpretação será por aquela mais efetiva.
Na possível dúvida sobre qual interpretação confere maior efetividade à norma constitucional,
será efetiva quando também for eficiente sobre o ponto de vista da Análise Econômica do
Direito.
Em outras palavras, a escolha pela melhor interpretação da norma constitucional,
aquela que possui mais grau de efetividade, também é possível de ser realizada através dos
critérios de eficiência trazidos pela Economia.
Para tanto, cumpre ao intérprete conhecer que o conceito de eficiência para a ciência
econômica é comumente elaborado sob dois critérios principais: Pareto e Kaldor-Hicks.
No que diz respeito à eficiente circulação da riqueza, o critério usual é o
proposto por Pareto, segundo o qual os bens são transferidos de quem os
valoriza menos a /quem lhes dá mais valor. O economista considera que a
mudança é eficiente, numa sociedade, quando alguém fica melhor do que
anteriormente com a mudança de alguma atribuição de bens anterior, sem
que ninguém fique pior.
Outro critério proposto para avaliação da eficiência é desenvolvido por
Kaldor e Hicks que, partindo de modelos de utilidade, tais como
preconizados por Bentham, sugerem que as normas devem ser desenhadas de
maneira a gerarem o máximo de bem estar ao maior número de pessoas
(STAJN, Raquel; ZYLBERSTAJN, 2005).
O critério de Pareto seria aquele em as modificações em uma determinada sociedade
melhoram a situação para alguém sem que haja a piora na situação de outrem (RIBEIRO;
GALESKI, 2009), é, desta forma, um conceito que busca uma situação de equilíbrio.
Já a eficiência perante o critério de Kaldor-Hicks se dá quando em determinada
alteração o proveito obtido por quem ganha permite compensar os prejuízos de quem perde
(RIBEIRO; GALESKI, 2009). Prega a maximização de resultado a alguém desde que esse
ganho compense o que outro perdeu.
A decisão sobre qual dos dois critérios deve ser utilizado depende inteiramente do
caso concreto, pois, avaliando que a aplicação e interpretação da norma constitucional tem
acima de tudo um escopo deontológico, utilizar um critério de eficiência sem que ele possa se
amoldar o objeto interpretado pode vir a desvirtuar justamente o elemento teleológico da
norma.
A efetividade da norma constitucional, então, poderá ser alcançada quando as
modificações por ela implementadas melhorarem a situação de alguém sem prejudicar a de
76
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
outrem ou, quando necessário, que os ganhos de um possam compensar os prejuízos de
outrem.
Pelo raciocínio inverso, a norma não será efetiva quando não melhorar a situação
pretérita de um dos atingidos pela sua eficácia ou, em segunda análise, quando os benefícios
conferidos a alguns não puderem compensar os prejuízos sofridos por outros.
No exemplo utilizado para ilustrar a hermenêutica não é factível utilizar o critério de
Kaldor-Hicks porque não há uma proporção entre perdas e ganhos na interpretação da norma
sobre a união estável na Constituição, apenas ganhos. Desta feita, a eficiência na norma
interpretada deve ser medida pela máxima proteção conferida àqueles que vivem em união
estável, ou seja, utiliza-se o critério de Pareto. Quanto mais abrangente o alcance da norma,
mais eficiente, porque mais pessoas ganham; quanto mais eficiente, mais efetividade da
norma constitucional.
No caso citado a leitura gramatical da norma já seria em parte eficiente, pois a partir
da promulgação da Constituição Federal de 1988 a proteção a esta unidade familiar passou a
ser fundamental ao Estado. Pelo critério de Pareto, todos os homens e mulheres que viviam
em situação idêntica teriam um incremento em sua proteção jurídica.
Contudo, mesmo diante da verificada eficiência da interpretação gramatical,
pergunta-se: é possível interpretar a norma de modo que alguém fique em situação melhor
sem que ninguém fique em situação pior?
O contexto social brasileiro se alterou substancialmente nos quase 25 anos desde que
a Constituição Federal de 1988 foi promulgada, vindo a mostrar de forma cada vez mais
flagrante que uma parcela da população estava à margem da interpretação restritiva do artigo
226, §3º. Isto porque os pares homoafetivos foram paulatinamente incorporados ao panorama
social e inclusive aceitos como uma unidade familiar, porém que não viam reconhecidos os
seus direitos civis, tal como já ocorria com os companheiros heterossexuais.
Como já afirmado, a leitura da Constituição Federal com a utilização da interpretação
sistemática foi o suficiente para remediar a discriminação e proteger todos os casais,
independentemente da orientação sexual. Esta interpretação redunda em abranger mais
pessoas pelo elemento finalístico da norma jurídica, o qual, in casu, é reconhecer o instituto
como merecedor da proteção civil, à exemplo dos direitos sucessórios conferidos também aos
companheiros, assim como às pessoas casadas.
A fundamentação utilizada pelo Supremo Tribunal Federal para julgar as ações que
tratavam sobre o tema foi calcada no diálogo que deveria existir entre o artigo 226 e o artigo
3º, inciso IV, ambos da Constituição Federal. Contudo, na oportunidade poderia o Tribunal
77
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também justificar o posicionamento na máxima efetividade da norma constitucional, a qual,
segundo critérios da hermenêutica constitucional através do elemento da eficiência
econômica, seria atingida com a abrangência da proteção prevista na norma jurídica ao maior
número de pessoas e situações.
O mesmo raciocínio da eficiência como critério de escolha do mais adequado método
interpretativo pode ser utilizado em várias oportunidades. A eficiência segundo Kaldor-Hicks
é uma grande ferramenta, por exemplo, na interpretação de normas constitucionais quando,
em uma análise sistemática, verifica-se uma colisão com outro direito constitucional.
A máxima efetividade da norma é medida pelo maior alcance de suas finalidades.
Pode ocorrer, porém, de o alcance da norma invadir a seara de proteção jurídica de outra regra
ou princípio constitucional. O intérprete, nesta hipótese, poderá socorrer-se em duas soluções
- subsidiárias uma da outra, sendo que a segunda é a eficiência de Kaldor-Hicks.
A interpretação da garantia constitucional à proteção da intimidade encontra
bloqueio onde começa a proteção à vida, contudo se deita em maior extensão sobre o direito à
liberdade de expressão. Assim, a primeira solução do intérprete para marcar a efetividade das
normas constitucionais é compreender que elas têm valores jurídicos distintos, regrados por
ideais axiológicos que indicam às pessoas quais são os mais caros. Deste modo, quando o
jurista interpreta a garantia constitucional à intimidade, o alcance de sua finalidade
(efetividade) vai até onde conflita com outro princípio de maior valor jurídico. A efetividade
de uma norma termina onde começa a da outra.
Por outro lado é possível verificar que existem casos em que os valores contidos em
normas jurídicas conflitantes são aparentemente parelhos, oportunidade em que é possível a
utilização do critério de Kaldor-Hicks como elemento hermenêutico.
A interpretação gramatical e teleológica do artigo 225 da Constituição Federal
4
resulta na afirmação indelével de que o Meio Ambiente deve ser salvaguardado a qualquer
custo. Já a interpretação sistemática mitiga a proteção ambiental integral em prol de outros
dizeres constitucionais, como em relação à exploração de recursos naturais estabelecida no
artigo 176, também da Constituição Federal 5. Neste caso, utilizando-se da eficiência de
Kaldor-Hicks, o intérprete deve extrair do artigo 225 que o Meio Ambiente possui suma
proteção, mas que grande utilidade na exploração de recursos naturais, verificada in concreto,
4
Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à
sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para
as presentes e futuras gerações.
5
As jazidas, em lavra ou não, e demais recursos minerais e os potenciais de energia hidráulica constituem
propriedade distinta da do solo, para efeito de exploração ou aproveitamento, e pertencem à União, garantida ao
concessionário a propriedade do produto da lavra.
78
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
poderá compensar os danos ambientais causados. A efetividade de uma norma vai até onde
por compensar a retroação de outra.
Em tais possibilidades reside a aplicação da eficiência segundo critérios da Análise
Econômica do Direito como elemento hermenêutico para interpretação da Constituição.
6. CONCLUSÃO
Não há como se aplicar o Direito sem antes interpretá-lo. A letra crua da lei
positivada em codificações ou legislações esparsas não tem o condão de indicar sumariamente
ao jurista qual o comando legal previsto pelo legislador. É preciso antes de tudo interpretar,
extrair do texto a verdadeira norma jurídica, incrustada muitas vezes embaixo de significados
dúbios ou interesses não tão bem explícitos.
A correta leitura da norma jurídica depende de que ele seja iluminada por uma luz
branca, resultante da combinação de todas as cores (métodos) que são propiciadas pela ciência
da interpretação, a hermenêutica.
A árdua tarefa de se interpretar o Direito foi refletida de maneira apenas indicativa
no presente trabalho. A hermenêutica é uma ciência de vários princípios e regras que não
poderiam ser compilados em um único artigo. Contudo, indicou-se de maneira precisa a
importância dessa ciência para o conhecimento jurídico e como ela pode ser aplicada
concretamente.
O tema ganha contornos de maior complexidade quando se volta à letra da
Constituição, cujo corpo jurídico transformou-se em um código de natureza principiológica,
mutante no tempo e adaptável pelo seu intérprete. A sua relevância é de igual medida porque
aqui a interpretação da norma não é só imediata à Constituição, mas também mediata a todo o
ordenamento jurídico nela subsistente. O intérprete tem, portanto, um grande poder nas mãos
quando exerce a atividade cognitiva interpretativa da Constituição.
Apesar de a interpretação constitucional fundar-se nos mesmos métodos
hermenêuticos aplicáveis à legislação de menor calibre, contém princípios norteadores que lhe
propicia contornos próprios. Neste ponto se fala da interpretação sistemática, da supremacia
da Constituição, da força normativa e, principalmente, da primazia pela máxima efetividade.
A concretização das finalidades contidas na norma constitucional, denominada
efetividade, deve ser sempre um objetivo do intérprete, de modo que o comando legal se torne
algo factível e com amplo alcance em benefício da sociedade.
79
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A proposta do presente trabalho surge no mesmo instante que a indagação sobre
como escolher a interpretação constitucional mais efetiva.
Os métodos clássicos e contemporâneos da hermenêutica podem ser aplicados como
lentes ao texto constitucional, sendo que cada ponto de vista, seja ele isolado a um elemento
interpretativo ou através de elementos sobrepostos, traz uma leitura diversa do que vem a ser
a norma jurídica.
A interpretação mais efetiva da Constituição torna-se desta forma uma questão de
escolha do intérprete, cuja análise é a especialidade de uma terceira ciência que também pode
confluir com o Direito e a Hermenêutica: fala-se da Economia, especialmente aplicada ao
mundo jurídico, através da Análise Econômica do Direito.
Sob o aspecto da Análise Econômica do Direito, dentre possibilidades interpretativas
distintas, o jurista escolhe a mais adequada de acordo com critérios econômicos. Assim,
considerando o mote da interpretação constitucional, o benefício que explica a escolha do
agente é a maior efetividade da norma interpretada.
Por sua vez, para escolher a interpretação mais efetiva, a proposta aqui lançada é a
utilização da eficiência segundo critérios da Análise Econômica do Direito em conjunto a
demais elementos hermenêuticos.
A metodologia para uso da eficiência como elemento hermenêutico é simples.
Dependendo dos métodos utilizados o intérprete chegará a conclusões distintas sobre
qual é norma contida no texto constitucional. A partir destas conclusões, aplica-se os critérios
econômicos de eficiência. Propõe-se que quanto mais eficiente a interpretação, maior a
efetividade da norma constitucional.
Apresenta-se que pelo critério de Pareto será eficiente aquela interpretação que tornar
mais abrangente o alcance da finalidade para a qual a norma foi criada. Quanto mais pessoas
forem contempladas pelo benefício jurídico insculpido na norma, sem que outras tenham
prejuízo, maior será a efetividade constitucional.
Outra possibilidade é a utilização de um segundo conceito de eficiência (KaldorHicks) para compreender qual o alcance da norma interpretada quando há colisão com outro
direito constitucional, especialmente quando há valores jurídico-sociais similares entre eles.
O conceito de que a eficiência se alcança quando os ganhos compensam as perdas
pode ser utilizado para a interpretação de bens jurídicos por vezes antagônicos, como
propriedade e meio ambiente, intimidade e liberdade de expressão, autonomia privada e
dignidade da pessoa humana. Será efetiva aquela interpretação que, quando encontrar a
colisão com outra norma constitucional, compensa a sobreposição de uma sobre outra.
80
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
De todo o exposto, em linhas gerais, se dessume que a hermenêutica assim como o
Direito é uma ciência em constante transformação, a qual pode dialogar com outras fontes que
há pouco tempo pareciam intangíveis, como a Economia. Nesta toada, a eficiência
incorporada pela Análise Econômica do Direito é uma importante aliada naquilo que a ciência
da interpretação deve primar, que é a máxima efetividade da Constituição.
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82
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
A HERMENÊUTICA FILOSÓFICA COMO CONDIÇÃO DE POSSIBILIDADE
PARA O RESGATE DO “DNA” DO DIREITO NAS DECISÕES JUDICIAIS
Marcelo Cacinotti Costa1
RESUMO
Trabalho voltado à verificação da necessidade da Hermenêutica Filosófica integrar a
adequada interpretação do Direito. Logicamente que, tal proposta, exige que se defina qual o
lugar de fala e, assim, passa-se a exigir dos conceitos o seu sentido e a sua fundamentação.
Portanto, não se admite em Direito a presença de conceitos anêmicos e nem decisões sem uma
adequada pré-compreensão, ou seja, é necessário, a partir da transcendência, deixar que os
sentidos das coisas se manifestem. E é neste contexto hermenêutico que o Direito passa a ser
visto na linguagem e como possibilidade, a partir da tradição, da coerência e da integridade.
Dessa forma, a hermenêutica filosófica gera segurança e proporciona garantia no
contexto de aplicação do Direito, principalmente quando se refere ao problema do relativismo
e da discricionariedade judicial.
ABSTRACT
Work aimed at verify the need of philosophical hermeneutics integrates the proper
interpretation of the law. Logically, such a proposal, which requires a definition of the place
of talking and, thus, becomes requires of concepts its meaning and its grounding. Therefore, it
is not admissible in Law anemic concepts and nor decisions without a proper pre
understanding, that is, it´s necessary, from the transcendence, let the sense of things manifest
themselves. And, is in this hermeneutical context that Law is seeing in language and as
possibility, from the tradition, the coherence and the integrity.
Thus, the philosophical hermeneutics generates security and provides assurance in the context
of Law enforcement, especially when referring to the problem of relativism and juridicial
discretion.
PALAVRAS-CHAVE – HERMENÊUTICA FILOSÓFICA – O DIREITO E
TRANSCENDÊNCIA – O SENTIDO DAS COISAS.
KEYWORDS - PHILOSOPHICAL HERMENEUTICS – THE LAW AND
TRANSCENDENCE - THE SENSE OF THINGS.
1 Doutorando em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS; Mestre em Direito pela
Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e Missões – URI, campus de Santo Ângelo/RS; Advogado
e Professor no Instituto de Ensino Superior de Santo Ângelo – IESA.
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Introdução
O tema ora trabalhado no presente artigo é corrente e assola o cotidiano forense de
forma a gerar instabilidade e aguçar a insegurança daqueles que dependem das decisões
judiciais. É sabido e incontroverso que o ato decisório do juiz é um ato estatal e, portanto,
deve ser revestido de imparcialidade e isenção da parte do julgador. Parcela considerável da
comunidade jurídica, no entanto, trabalha com a ideia de que o juiz possui “liberdade”
decisória. Dessa forma, o ato de julgar estaria ligado ao ato de “sentir” ou de atribuir
“qualquer sentido” ao que lhe é levado à apreciação. Dito de outro modo, a sentença, nessa
linha de raciocínio, seria uma derivação de “sentire”2, expressão comum reproduzida em
série nos manuais de introdução ao estudo do Direito3.
Na verdade, o juiz exerce o poder jurisdicional, poder este outorgado
constitucionalmente, cujo foco principal de atribuição constitucional e munus estatal não
devem se desviar em hipótese alguma. Portanto, a subjetividade do magistrado acerca de
determinados casos que lhe são postos para que preste a jurisdição não deve preponderar
sobre o sentido constitucional que é inerente à tradição histórica da comunidade jurídica,
formadora da consciência histórica, da coerência e da integridade do Direito (nos moldes do
que pensa, por exemplo, Ronald Dworkin).
É lógico que todo juiz terá um grau (mínimo) de subjetividade que é próprio do seu
estar-no-mundo. Aliás, sem essa subjetividade, não teríamos sequer possibilidade de nos
relacionarmos com os outros e nem de lidar com as coisas mais singelas. Mas todas as coisas
existentes no mundo já vêm carregadas com um sentido prévio (martelo – martelar; casa –
morar; chave – abrir; e assim por diante). Por conta disso, não estamos livres para atribuir
qualquer sentido àquilo que já possui uma significação histórica determinada. É o que Martin
Heidegger denomina de “débito”4 (Schuld). É o débito que temos com o passado. Da mesma
2 A crítica de Lenio Luiz Streck a tal postura é pontual. Veja-se: STRECK, Lenio Luiz. O que é isto – decido
conforme minha consciência? Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010, p. 33-54.
3 Não é incomum nos depararmos no dia-a-dia forense com observações cercadas de incertezas sobre o ato
judicial decisório. Assim é que se escuta, por exemplo, que “a antecipação da tutela ou o pedido liminar
dependerão principalmente do juiz para quem for distribuída a ação”. Ocorre que os requisitos que regulam a
matéria processual para deferimento de liminar são de caráter objetivo e, em regra, independem da
discricionariedade do juiz. Além disso, há um sentido (constitucional) prévio que se antecipa no ato de julgar
e que impede que o juiz diga “qualquer coisa sobre qualquer coisa”.
4 O ente cujo ser é o “cuidado” não apenas pode carregar um débito de fato, senão que, no fundo de seu ser, é e
está em débito, e este estar em débito constitui a condição ontológica para que o Dasein (ser-aí) possa tornarse em débito no seu existir fáctico. Este essencial ser em débito é co-originariamente a condição existencial
de possibilidade do “moralmente” bom e mau, ou seja, da moralidade em geral e das suas conformações
facticamente possíveis. O originário ser em débito não pode ser determinado pela moralidade, porque ela já o
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forma que as coisas já contêm uma semântica histórica, não é possível que trabalhemos com o
Direito a partir de um “grau zero de compreensão”, como se os conceitos jurídicos fossem
vazios e, a partir de um dado momento, o juiz pudesse, então, atribuir capas de sentido a seu
livre prazer5.
É a partir dessas notas iniciais que discorreremos sobre a temática pontualizada no
título, iniciando por discutir o problema do chamado “hiato” existente entre a Hermenêutica
Filosófica e a decisão judicial e avançando – sempre “encilhado” na Hermenêutica – na
tentativa de encontrar condições de possibilidade para o resgate do DNA do Direito como
condição de possibilidade da decisão judicial. Mãos à obra, portanto.
1. Algumas considerações sobre o “hiato” entre a Hermenêutica Filosófica e a
decisão judicial a partir de uma análise feita por Alexandre Morais da Rosa
Há um problema crucial para o futuro do Direito: o modo como a Hermenêutica6 tem
sido ensinada nos bancos acadêmicos. Na verdade, o que menos se tem ensinado é
“Hermenêutica” (e aqui paramos de colocar aspas no termo; também não nos preocuparemos
se aparecerá a inicial “H” em forma maiúscula ou minúscula), pois ainda convivemos com a
ideia de uma hermenêutica como método ou disciplina, o que, curiosamente, aponta para uma
não-compreensão do que efetivamente seja a hermenêutica, digamos assim7. Dito de outro
modo, a hermenêutica praticada e ensinada nas salas de aula não é hermenêutica!
Ora, em tempos de viragem linguística, com o sepultamento da filosofia do sujeito
(cartesiano), já deveria ser mais que a hora de pensarmos o problema hermenêutico a partir da
pressupõe por si mesma HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. Parte I. Tradução de Márcia de Sá Cavalcante.
9. ed. Petrópolis: Vozes, 2000, p. 286).
5 Como diz Lenio, “toda decisão deve se fundar em um compromisso (pré-compreendido). Esse compromisso
passa pela reconstrução da história institucional do direito – aqui estamos falando, principalmente, dos
princípios enquanto indícios formais dessa reconstrução – e pelo momento de colocação do caso julgado
dentro da cadeia da integridade do direito. Não há decisão que parta do “grau zero de sentido”. STRECK,
Lenio Luiz. O que é isto – decido conforme minha consciência? Porto Alegre: Livraria do Advogado,
2010, p. 98.
6 Classicamente, a hermenêutica é ensinada a partir de Hermes, como “mensageiro divino”: aquele que
transmite as mensagens dos Deuses aos homens. A hermenêutica está ligada, portanto, à tradução: traduzir
para uma linguagem acessível a todos o que se manifestou de modo incompreensível. Assim, a tarefa da
tradução sempre conterá uma margem de “liberdade”. Essa liberdade se verifica na relação entre Hermes e os
homens, já que somente ele, Hermes, está dotado da capacidade de interpretar e traduzir a fala dos deuses e
torná-la acessível aos homens. Mas, quem assegura que Hermes compreendeu corretamente o que os deuses
queriam dizer? E, na hipótese de ter compreendido corretamente, quem assegura que Hermes tenha dito aos
homens exatamente o que os deuses quiseram que ele dissesse?
7 Por todos, no Direito, incorporando as lições de Martin Heidegger (Filosofia Hermenêutica) e Hans-Georg
Gadamer (Hermenêutica Filosófica), a original obra de STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m)
crise: uma exploração hermenêutica da construção do direito. 10. ed. rev., atual. e ampl. Porto Alegre:
Livraria do Advogado, 2011.
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ruptura da relação sujeito-objeto, alçando, assim, a hermenêutica – por que não dizer a
“linguagem” em que nos inserimos? - como uma “condição de possibilidade” e fazendo da
compreensão algo bem mais do que um produto da aplicação de um determinado “método” 8.
É que o caminho é inverso: chegamos ao método pela compreensão, e não o contrário.
Pois é partindo dessa preocupação que adiante passaremos a sintetizar alguns
aspectos pontuais de um texto (também sintético, mas nem por isso raso) de autoria do
Professor e Juiz de Direito em Santa Catarina, Alexandre Morais da Rosa. O texto do
Professor Alexandre, nominado “O hiato entre a Hermenêutica Filosófica e a decisão
judicial”9, é importante em razão de uma série de enfrentamentos a que o autor procede e
porque tem tudo a ver com o modo como o Judiciário atualmente decide, problema que é tão
caro à hermenêutica jurídica. E por ser caro à hermenêutica jurídica é que sugerimos sua
leitura. Pois bem.
O presente texto, cuja inspiração vem do texto de Alexandre, origina-se de uma
preocupação com a utilização dos chamados “métodos tradicionais de interpretação jurídica”
(cujos “usuários” acreditam, por exemplo, ser possível cindir interpretação e aplicação) e com
a necessidade de resgate de um ensino jurídico vinculado às vicissitudes da facticidade (caso
concreto). É que, como lidadores do direito, “volta e meia” nos deparamos surpresos com os
rumos que as coisas acabam tomando, principalmente quando os juristas acabam caindo na
armadilha de apostar no subjetivismo do intérprete10.
8 Remetemos o leitor às seguintes obras: GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I: traços fundamentais
de uma hermenêutica filosófica. Tradução Flávio Paulo Meurer. 3. ed. Petrópolis: Vozes, 1999; GADAMER,
Hans-Georg. Verdade e método II: complementos e índice. Tradução de Ênio Paulo Giachini. Petrópolis:
Vozes, 2002. Outras obras obras importantes de Gadamer são: GADAMER, Hans-Georg. Arte y verdad de la
palabra. Traducción José Francisco Zúñiga García e Faustino Oncina. Barcelona: Paidós, 1998; GADAMER,
Hans-Georg. El giro hermenéutico. Traducción de Arturo Parada. Madrid: Catedra, 1998; GADAMER,
Hans-Georg. El problema de la conciencia histórica. Traducción e introducción de Agustín Domingo
Moratalla. 2. ed. Madrid: Tecnos, 2000; GADAMER, Hans-Georg. Elogio da teoria. Tradução João Tiago
Proença. Lisboa: Edições 70, 2001; GADAMER, Hans-Georg. Hermenéutica de la modernidad:
conversaciones con Silvio Vietta. Traducción de Luciano Elizaincín-Arrarás. Madrid: Trotta, 2004.
HEIDEGGER, Martin. Conferências e escritos filosóficos. Tradução e notas de Ernildo Stein. São Paulo:
Abril Cultural, 1979 (Os pensadores); HEIDEGGER, Martin. O conceito de tempo. Prólogo, traducción y
notas de Irene Borges-Duarte. Lisboa: Fim de Século, 2003; HEIDEGGER, Martin. Ontología: hermenéutica
de la facticidad. Versión de Jaime Aspiunza. Madrid: Alianza Editorial, 1998; HEIDEGGER, Martin. Que é
uma coisa?. Tradução de Carlos Morujão. Lisboa: Edições 70, 2002; HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo.
Parte I. Tradução de Márcia de Sá Cavalcante. 9. ed. Petrópolis: Vozes, 2000; HEIDEGGER, Martin. Sobre a
essência da verdade. Tradução de Carlos Morujão. Porto: Porto, 1995.
9 O texto integra o excelente STEIN, Ernildo; STRECK, Lenio (Org.). Hermenêutica e epistemologia: 50 anos
de Verdade e Método. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2011, p. 127-131. Dita obra é resultado da
manifestação de um grupo de professores que vem estudando a obra de Hans-Georg Gadamer, surgindo
como marco dos 50 anos da publicação de “Verdade e Método”.
10 Como há tempos vem denunciando Lenio Luiz Streck. Ora, o subjetivismo nada mais é do que a outorga ao
intérprete da possibilidade de realizar “escolhas”; e escolha é ato de vontade. Como diz Lenio, o Direito
parece ser o lócus privilegiado desse “mundo que não muda”, dessa cultura prét-a-porter à “disposição”
como “secos, molhados e miudezas em geral”. http://www.conjur.com.br/2012-mai-24/senso-incomum86
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
Ligado a esse problema está o de que algumas discussões/interpretações vêm
carecendo de uma adequada compreensão do Direito como “transcendência”11. Dito de outro
modo, o senso comum dos juristas há tempos vende a ideia de que Direito é uma espécie de
combinação entre regras, conceitos e dogmática, o que faz com que os acadêmicos de Direito
tenham uma única preocupação: o acesso rápido à informação por meio de modelos e manuais
“ultra sintetizados”, em decorrência da ultrapassagem do conhecimento jurídico pela
velocidade da banda larga e do “you tube”. Daí a importância da aproximação do Direito – e,
à obviedade, das decisões judiciais - à Hermenêutica Filosófica12, pois sua característica
principal (da Hermenêutica Filosófica) é o “mundo vivido”, a facticidade. Noutras palavras, é
uma “filosofia da concretude do mundo da vida”.
O que queremos denunciar é o problema do predomínio de uma falsa ideia de que o
texto subsiste independentemente da norma e vice-versa (proposições que representam o
mundo), como já há tempos vem fazendo Lenio Luiz Streck, e o problema de que o Direito
está impregnado de conceitos e teorias anêmicas que passam longe da concretude do Direito e
da própria fenomenologia que, ao fim e ao cabo, é o que justifica e dá sentido a existência não
apenas de um sistema filosófico, mas de qualquer sistema jurídico. Para tanto, buscamos na
Filosofia Hermenêutica (Martin Heidegger) e na Hermenêutica Filosófica (Hans-Georg
Gadamer) um “fundo” (sem fundo) filosófico para demonstrar a relevância do resgate do
sentido do ser dos entes, já que sentidos não são frutos da escolha do intérprete e nem podem
ser utilizados de maneira “ad doc”, uma vez que não há separação entre texto e norma (há,
sim, uma diferença entre eles – que é ontológica – parafraseando Lenio Streck, tributário das
lições de Heidegger).
Pelo que já se escreveu parece ficar óbvio que a abordagem da temática neste texto
conhecimento-fast-food-homer-simpson-direito, acessado em 17-03-2013.
11 A constituição de possibilidade já é e está sempre determinada a ser uma ultrapassagem; talvez porque sua
condição maior tenha de ser a ação. Mas, ultrapassar o quê? O que está para ser ultrapassado é a própria
possibilidade, uma própria inserção, lançar-se. É tornar a ser o que já é e está sendo. Um tornar-se que está
fora do âmbito de um início constatado, um começo sem começo nem fim; uma irrupção que não pode ser
medida de um ponto de partida a fim de enxergar dali o ponto de chegada. Mas é talvez o próprio ponto de
chegada o próprio início, como em um círculo. Esta é uma clarividência que Heidegger nos ensina muito
bem. A esta ultrapassagem denominou-a transcendência, pois ambas as palavras são sinônimas. “Trans”,
etimologicamente, refere-se a um movimento, a uma noção de origem e destino. Ultrapassar não trata de
superar, como, p. ex., o que acontece numa corrida em que os carros disputam por velocidade quem chegará
primeiro; mas, antes, o verbo diz outra coisa: ultrapassar se refere a ser, ao tornar-se, perfazer-se, transcender.
BRAZIL, Luciano Gomes. Transcendência em Heidegger: sobre Racionalidade e Fundamento. Revista
Aproximação, nº 03, 1º Semestre de 2010. O Direito, assim, tem de transcender o mero aspecto estrutural, a
mera pragmaticidade. Direito não é só isso. Direito imbrica normatividade e moralidade. É um freio à
política, mas é essencialmente político.
12 A matriz teórica da hermenêutica fenomenológica gadameriana é o pensamento filosófico de Heidegger
sobre o Dasein (ser-aí); é dizer, a condição do sujeito de estar imerso em um contexto histórico-linguístico,
condição de possibilidade que molda e oferta um horizonte de sentidos.
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que ora apresentamos vem calcada na forte contribuição acadêmica do Professor Lenio Streck
com a denominada Nova Crítica do Direito (NCD), que de há muito vem denunciando os
problemas oriundos das concepções tradicionais acerca da interpretação jurídica13.
Na verdade, uma compreensão mais adequada sobre a temática deste trabalho
envolve questões filosóficas que, se fossem bem entendidas e estivessem presentes no
contexto jurídico, certamente seriam capazes de evitar algumas indagações de natureza
metafísica que contribuíram em grande medida para obnubilar a ciência do Direito. Dito de
outro modo, as questões que circundam o direito e o mundo da facticidade envolvendo os
entes e o sentido do ser dos entes em momento algum podem ser dissociadas da aplicação
jurídica. E é na facticidade que se verificam as diversidades e se dá de forma constante a
(re)construção do direito, principalmente quando se compreende a questão da diferença
ontológica14.
Se é na facticidade que podemos verificar a diversidade mundana e se é a partir dela
que (re)construímos o Direito no nosso cotidiano, não há como evitar, então, que a decisão
judicial se prenda ao texto e ao contexto, pois é isso justamente o que deve ocorrer. Ou seja,
se a aplicação do Direito quando da decisão judicial envolve produção de sentido a partir de
uma facticidade, a decisão judicial, inevitavelmente, não pode repousar na subjetividade do
intérprete. E essa ideia Alexandre Morais da Rosa conseguiu transmitir muito bem no texto de
sua autoria que referimos há pouco. Alexandre parte de uma ideia de Hans-Georg Gadamer,
publicada em um texto de 1977 (“O jogo da arte”), criticando a “embriaguez moderna” que vê
o animal como “mero autômato” e o homem como “criatura de Deus” distinta pela
“autoconsciência” e pela “livre vontade”. Segundo Gadamer, há um século estaria crescendo
uma forte suspeita de que o comportamento do indivíduo e dos grupos é determinado
sobretudo pelas determinantes naturais. Assim, o comportamento humano não corresponderia
à consciência dos que escolhem e agem livremente. Ou seja, nem tudo aquilo que
acompanhamos com a consciência de nossa liberdade seria, então, realmente consequência de
uma decisão “livre”, pois fatores inconscientes, compulsões e interesses também determinam
13 As concepções tradicionais da interpretação jurídica defendem a ideia decorrente do processo interpretativo
clássico, concebendo a interpretação em três momentos distintos, ou seja: primeiro conhecemos, depois
interpretamos e, por fim, aplicamos.
14 A diferença ontológica significa, formalmente, que o ser não é um ente; logo, ele não pode ser pensado do
mesmo modo que pensamos os entes. Por sua vez, a constituição onto-teo-lógica da metafísica indica o fato
de ela nunca ter pensado a diferença entre ser e ente. Por isso, sempre pensou o ser como se ele fosse um ente
possível; por isso ela se caracteriza por ser uma ciência (lógica) que pesquisa o ser (onto), determinando-o
como se ele fosse uma causa primeira: Deus (teo): o pensamento metafísico sempre pensou o ser como
essência, e esta como um fundamento primeiro: a idéia, para Platão; a energia, para Aristóteles (384-322
a.C.); a consciência, para Descartes (1596-1650); a razão, para Kant (1724-1804); o espírito, para Hegel
(1770-1831); a vontade de poder e o eterno-retorno, para Nietzsche (1844-1900).
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nossa consciência, além de dirigirem nosso comportamento.
É a partir dessa constatação de Gadamer que Alexandre maneja sua reflexão sobre o
“hiato” que existe entre a teoria da decisão (judicial) manejada pelo senso comum teórico
(Warat) e as possibilidades da Hermenêutica Filosófica, lançando uma discussão sob a
temática pela perspectiva da “moda”. É que a moda, segundo nosso autor, é uma “variável”
importante para a discussão hermenêutica. Sua compreensão “autêntica” pode nos auxiliar a
compreender o porquê da ausência de efetividade da Hermenêutica Filosófica no campo do
Direito.
De fato, no cotidiano dos juristas, a “hermenêutica tradicional” continua operando
com noções (v.g., objetivismos, subjetivismos, discricionariedade, intenção da lei, vontade do
intérprete etc.) que realmente não fazem mais sentido do ponto de visto hermenêutico. Essas
noções, porém, “estão na moda”. E por quê? Alexandre irá responder, de forma muito clara:
“nos encontramos na era do 'Realismo Jurídico Tropical' em que a lógica que preside este
modelo é a dos informativos etiquetados com as grifes com durabilidade efêmera, de uma
semana, aliás, como as coleções da Grife 'Gap'. Até a próxima semana não se sabe, de fato, o
que pode ter mudado. O aumento da velocidade constante impede, também, a possibilidade de
reflexão. (…) A última edição da interpretação (sic) ocupa o lugar da última versão da moda e
como a maioria não quer aparentar estar 'out', o sentido migra 'automaticamente' (…) O
produto – verbete – nesta nova economia simbólica do Poder Judiciário decide desde antes e
pelo sujeito. Não lhe concede, ademais, espaço para dizer o contrário. O argumento da
autoridade toma o lugar da reflexão”15.
O “jogo jogado”, portanto, segundo Morais da Rosa, apresenta, de um lado, a
“premência” de estar “in”; de outro, a irracionalidade do mercado consumidor. Daí por que o
cenário jurídico acaba por se transformar no cenário da moda (ou “próximo da moda”, como
diz Rosa): de um lado, o sujeito “deficiente filosoficamente” acolhe a última verdade
apresentada; de outro, o sujeito descobre que não há mais “verdade verdadeira” e passa a se
apoiar na “estrutura paranoica” que lhe diz a verdade, passando a fazer da parte de uma
“Hermenêutica do Conforto”, na expressão de Alexandre16.
Como conclusão disso tudo, o sujeito, que não está por dentro dos últimos
informativos dos tribunais, começa a acreditar que “está por fora”. A razão (ou “as razões”),
que deveria ser buscada para a reflexão, agora passa a ser vendida com a “aparente” reflexão
15 ROSA, Alexandre Morais da. O hiato entre a hermenêutica filosófica e a decisão judicial. In: STEIN,
Ernildo; STRECK, Lenio (Org.). Hermenêutica e epistemologia: 50 anos de Verdade e Método. Porto
Alegre: Livraria do Advogado, 2011, p. 127-131.
16 Idem, ibidem.
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pronta, embalada em “papel de presente aparentemente hermenêutico”. É que a pressa e a
urgência decorrem de variáveis mercadológicas, fazendo com que a qualidade da
interpretação seja subtraída em nome do “conforto”. Assim é que as decisões judiciais vão
deixando de dizer o caso, pois são produzidas apenas para “serem vistas”. Sua vitrine são o
computador e a internet. “Orquestradas” pelos órgãos de cúpula do sistema, as decisões se
espraiam como um todo resultando una “compulsão” por admirar, copiar e legitimar quem
nos conduz, como diz Alexandre17. Claro! A decisão judicial está “vestida” com as “roupas da
última coleção” garantida pela grife do STF ou STJ.
É possível verificar, portanto, que a lógica do mundo da moda, ao adentrar no campo
do Direito, desfaz a noção de “tradição”. Não haveria de ser de outro modo. Nas palavras de
Morais da Rosa: “A moda não se vincula à tradição, mas à escolha. E escolha é ato de
vontade, bem aponta Lenio Streck. Não é hermenêutico. (…) o Direito quando gira em torno
da moda não atende a racionalidades. Gira por gostos, caprichos, questões estéticas e
econômicas. (…) O sujeito, ao mesmo tempo livre das amarras da tradição e preso aos
desígnios da moda, transforma-se em presa fácil dos discursos da eficiência, do pragmatismo
(…) 'discurso do conforto' O espírito de nossa época é da 'eficiência'”18.
Em definitivo, como diz Alexandre, entre a decisão que serve de paradigma, ou seja,
a decisão tomada “lá atrás”, quando apreciado outro caso, outro contexto, e a decisão
retomada com base na primeira, há um “fosso de sentido preenchido pelo imaginário de uma
analogia ingênua”, pois a decisão paradigma real é substituída pelo signo simbólico que
representa e não raro sua aplicação é imaginária, servindo para legitimação de “qualquer
decisão”, mormente quando fundamentada exclusivamente em verbetes de ementas.
Ocorre que é impossível “preencher” o fosso do real na ementa de uma decisão. A
relação entre uma ementa e o caso (onde ela, a ementa, seria aplicada) é arbitrária. O
problema é que “vende” e “faz” decisões judiciais, como bem aponta Morais da Rosa. E tem
razão. É esse modelo que a academia tem o dever de criticar, se o senso comum teórico dos
juristas não o faz (aliás, não o faz por ser “comum”). É que a jurisprudência não é um “fim em
si mesmo”, como diz Alexandre, e nem desonera o intérprete19. A jurisprudência, portanto,
não é e não pode ser sinônimo de hermenêutica; muito menos de fundamentação, pois
demanda um contexto para fazer sentido. Como não há uma “língua individual”, também o
intérprete não pode tudo, não pode criar uma língua individual, pois seu estilo pessoal guarda
17 Idem, ibidem.
18 Idem, ibidem.
19 Idem, ibidem.
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uma referência coletiva. Daí por que há necessidade de se resgatar a “responsabilidade do
sujeito”, que pode levar à compreensão autêntica. E isso é uma das tarefas da Hermenêutica
Filosófica.
Para terminar essas primeiras considerações, reprisamos o “diálogo entre dois
magistrados” de que nos fala Alexandre: “- Concordas com a decisão?” “- Sim, se for do
Supremo”. Responde o Juiz que decide conforme a moda. “- Mas e o conteúdo, você
concorda?” Pergunta o primeiro magistrado. “- E precisa? A embalagem me satisfaz”20.
2. Algumas considerações sobre a importância de se desenvolver o estudo de
uma Hermenêutica distinta da que estamos acostumados a ver no ambiente acadêmico
Falar do texto de Alexandre Morais da Rosa significa falar de algo “autêntico” (no
sentido hermenêutico, portanto); significa falar de um texto cujo autor não “doura” a pílula
para dizer o que pensa. Significa, enfim, falar de um texto que desvela, sem pudores, como os
juízes têm decidido os casos que lhes são submetidos. Por isso é um texto que merece ser lido:
crítico, direto ao ponto, sem “firulas”. O texto (e o estilo) de Alexandre é leve, claro, didático
e de fácil “digestão”. É claro que, para leigos e profanos, e mesmo para estudantes que estão
iniciando o curso de Direito ou já estejam nele “adiantados”, o texto pode apresentar algumas
dificuldades de leitura, mas isso é algo absolutamente normal. E contornável. Afinal de
contas, se o “tempo” é o “nome do ser”, como ensinou Martin Heidegger 21, é necessário
respeitar o tempo de cada um e as dificuldades de compreensão a ele inerentes. E carregamos
a marca da “finitude”, física e de compreensão.
O sentido, pois, à evidência - por vezes para muitos não tão-evidente assim -,
depende da temporalidade, entendida esta não apenas como um desdobramento linear de
passado, presente e futuro, mas como um existencial próprio do ser humano (Heidegger). Por
isso é que, quando se lê novamente o mesmo texto, ele já nos diz algo diferente; já se
apresenta a nós de forma diferente. Por isso “ouvimos” e “vimos” o que ele, texto, tem a nos
dizer e mostrar de forma diferente. É a temporalidade e seus efeitos agindo no intérprete.
Em que pese, no entanto, as dificuldades inerentes ao Dasein (“ser-aí”, na expressão
utilizada por Heidegger22, também traduzido por “existência”, “homem” etc.), isto é, à
20 Idem, ibidem.
21 HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. Parte I. Tradução de Márcia de Sá Cavalcante. 9. ed. Petrópolis: Vozes,
2000.
22 Em que pese não se constituir objeto do presente texto, faço aqui uma (breve, para ser redundante) síntese da
temática relativa ao Dasein. É que, sem essa síntese, o leitor que não está acostumado com a Hermenêutica
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existência de cada um dos alunos, é possível perceber que as condições de possibilidade para
ingressar no estudo da Hermenêutica Jurídica (e Filosófica) e desenvolver um Direito parelho
aos seus ditames mesmo alunos da graduação e recém-saídos do ensino médio as têm. E isso é
importante que se diga. Sobretudo para que seja dada à Hermenêutica (em especial a
Filosófica) a posição de destaque que merece ocupar, “surrada” que está pela hermenêutica
tradicional desenvolvida no interior do “senso comum teórico” dos juristas (Warat).
É a partir da desconstrução e reconstrução da hermenêutica, que agora deve passar a
ser vista como um “modo-de-ser-no-mundo” (Gadamer, a partir de Heidegger), no âmbito da
academia (e, consequentemente, no dos tribunais, pois, obviamente, os operadores do Direito
serão aqueles que sairão dos bancos escolares para trabalhar com o jurídico), que poderemos
ter esperanças em experimentar mudanças nos rumos do Direito, em especial para que volte a
se “encontrar” com a ética e a moral (nos moldes da co-originariedade de que nos fala Ronald
Dworkin), impedindo a colonização do Direito pelas imposições do mercado e do seu
correlato pragmatismo (“eficientismo”).
Agora, é possível ter esperanças com relação ao futuro do Direito e sua práxis?
Pensamos que sim. As discussões que havemos feito em sala de aula deixam bem que claro
que os estudantes de Direito vêm se dando conta de que os meios tecnológicos (computador e
internet) são ferramentas. São meios práticos e rápidos, eficientes para que se possam buscar
Filosófica poderá ter dificuldades em entender o que quero dizer. Martin Heidegger, talvez o maior filósofo
do século XX, pressupõe que há uma “diferença ontológica” entre o ser e o ente. E essa diferença – que é um
dos teoremas fundamentais da sua filosofia – repousa na ideia de que o ser sempre é o ser do ente e que o
ente só é em seu ser. Chamamos “ente” muitas coisas e em diversos sentidos. Ente, segundo Heidegger, é
tudo aquilo de que falamos, tudo aquilo a que miramos, aquilo para o qual nos comportamos de tal e tal
modo. Ente é também o que e como nós mesmos somos. Então, o ente é tudo aquilo com quem o homem
mantém uma relação; é aquilo sobre o que se pode dizer algo. O ente, no entanto, não é o ser, embora de este
não se separe em razão da diferença ontológica. O ser, ao contrário, diz respeito ao universo de condições do
encontro com os entes. Diz respeito às condições desde as quais se faz possível um encontro com entes
“como” entes qualificados, ou seja, entes que vêm ao encontro sempre submetidos a uma perspectiva. Para
Heidegger, no entanto, a questão sobre o sentido do ser é a mais universal e a mais vazia. Ainda assim, ela
abriga igualmente a possibilidade de sua mais aguda singularização. Há, no entanto, outra categoria que
Heidegger utiliza e que, sem ela, não é possível compreender sua filosofia. É o Dasein, o ser-aí. Agora, o que
é o Dasein? O que é o ser-aí? De fato, é possível chegar a uma ideia aproximada do que significa ser-aí.
Segundo Ernildo Stein, em Heidegger, o Dasein é o ente que compreende ser. O ser “é” desde a compreensão
do Dasein e o Dasein é desde a compreensão do ser. O Dasein, assim, é um ente de caráter superior entre os
entes que se constitui pela compreensão do ser. O Dasein é um plano em que se dão ente e ser, no nível do
ente privilegiado. É aqui que se introduz a dita diferença ontológica, sustentada pelo Dasein. É aqui que
Heidegger ultrapassa o caráter metafísico e objetivista e o espaço fenomenológico-transcendental. Dasein,
portanto, apresenta-se na obra de Heidegger com vários sentidos: tanto como uma “abertura do ser” como
compreensão, homem, existência, vida humana (ente que no seu ser conhecemos como vida humana, ente
que cada um de nós é etc.). O que importa é que sem o Dasein, o ser-aí, não há compreensão, pois o Dasein é
o ente que compreende ser, e isso não pode esquecer quem pretende compreender a filosofia de Heidegger.
Consultem-se: HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. Parte I. Tradução de Márcia de Sá Cavalcante. 9. ed.
Petrópolis: Vozes, 2000, p. 6-70; HEIDEGGER, Martin. O Conceito de Tempo. Prólogo, Tradução e notas
de Irene Borges-Duarte. Lisboa: Fim de Século, 2003, p. 12-33; STEIN, Ernildo. Nas proximidades da
antropologia: ensaios e conferências filosóficas. Ijuí: Unijuí, 2003, p. 17.
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
posicionamentos dos tribunais em decisões já proferidas. Não passam disso, porém. O
problema é que esse “método” tornou-se “moda” entre os juristas. Não se analisa mais, assim,
o problema concreto. Não se fundamenta o que se decide, pois é mais fácil “copiar” (Ctrl c) e
“colar” (Ctrl v) ementas do que analisar profundamente cada caso, “tomando” uma decisão de
forma autêntica e responsável.
Embora assim seja, vem crescendo, no entanto, uma tomada de consciência entre os
estudantes de Direito no sentido de que “ficar fora da moda pode não ser tão ruim assim”,
pois a compreensão – e isso os alunos têm conseguido compreender - não pode decorrer de
uma observação do que diz a jurisprudência do STF ou do STJ, a “última moda”, mas de uma
racionalidade que se consolida no meio social, a partir de uma tradição, de uma moral
institucionalizada (Dworkin) e da concretização de princípios que introduzem o mundo
prático no Direito (Streck).
A razão, assim, não pode ser “comercializada” com reflexões prontas, como diz
Alexandre Morais da Rosa. O Direito, então, não pode deixar de atender à racionalidade para
restar subjugado pela “moda”. O sujeito que decide deve atuar com responsabilidade. No
Direito isso é inegociável. A prática do “menor esforço”, da “Hermenêutica do Conforto”
(Morais da Rosa), é, pois, incompatível com o termo “fazer justiça”.
A decisão judicial não pode, portanto, depender de “escolhas”, do que é ou não
melhor economicamente ou diante da mídia. Escolher “moldes” para decidir, definitivamente,
não condiz com a atividade dos juízes. Claro que a moda causa seus impactos e não pode ser
desconsiderada em meio à tradição. Mas o argumento da autoridade, “produtora da moda”,
não pode invadir o espaço da reflexão. Por isso é o Direito não pode ser o que os juízes dizem
que é, como bem vem defendendo Lenio Luiz Streck.
Nessa obscena relação (e comparação) entre Direito e moda é possível constatar,
pois, a “decadência” do Dasein (Heidegger), que resvala para a inautenticidade ao não
“estranhar” mais o mundo, terminando por se identificar com os seus semelhantes. É que, no
seio do grupo social, quem não compartilha da mesma opinião é havido como “fora da moda”
e, portanto, como alguém invisível. Em suma, se o STF “lançou o estilo”, disse que a roupa é
“da moda”, é bonita e que tem de ser usada, a tendência é que assim seja, ainda que a
singularidade do caso reste descuidada. Como os juízes querem ser “aceitos”, querem estar
“dentro da moda”, seu papel se vê reduzido. Dito de outro modo, o juiz somente passa a
escolher e não interpretar. Como está na moda, porém, não se incomodará com essa situação.
O jurista, no entanto, não pode consumir a “imagem”. Deve deixar que o texto se
aproprie dele. E texto, como diz Lenio Streck, é evento; é o “caso”. A hermenêutica não pode
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ser apropriada pelo intérprete. É a hermenêutica que se apropria do intérprete. Assim, não
bastas aos juízes utilizar a hermenêutica como adorno. Muitos Juízes, Desembargadores ou
Ministros do STF, por exemplo, “volta e meia” utilizam citações de Heidegger, Gadamer,
Schleiermacher, entre outros. Tais citações, todavia, podem correr o risco de serem tão
profundas quanto um “pires”. Explico. Hermenêutica (ou filosofia hermenêutica, para
mudarmos um pouco o termo e nos aproximarmos mais de Heidegger) não é adorno; não é
enfeite. Não pode ser adjudicada. Hermenêutica é filosofia; é filosófica. É, pois, reflexão a
partir de uma pré-compreensão que sempre nos escapa enquanto antecipação de sentido. Ou
ela “atua” no agente como seu modo-de-ser-no-mundo, ou não há compreensão.
Decorre daí também a conclusão de que nem tudo no Direito é funcionalidade23. O
Direito, antes de tudo, tem um caráter deontológico, normativo. E isso é bom que se diga.
“Automatização de pensamento”, “facilidades interpretativas”24 e busca de “resultados
rápidos”, assim, não são aquilo que se espera do Direito. Seguir pensando que essa é a
“salvação da lavoura”, portanto, significa apenas continuar mantendo a Hermenêutica
Filosófica – e consequentemente a compreensão – separada das decisões judiciais. Daí a
importância de se estudar a Hermenêutica Jurídica como disciplina cuja condição de
possibilidade, porém, é a hermenêutica filosófica. Afinal de contas, de fato, não há uma
hermenêutica “específica”, embora tecnicamente, como “método”, possamos falar de
23 Nesse sentido, contra o pragmatismo, vejam-se, por exemplo, as críticas dirigidas no Brasil à Escola
Instrumentalista (capitaneada por Cândido Rangel Dinamarco) por Lenio Streck, Rafael Tomaz de Oliveira,
André Karam Trindade, Francisco José Borges Motta, Adalberto Narciso Hommerding, André Cordeiro Leal,
Dierle Nunes e outros autores: STRECK, Lenio Luiz. Verdade e consenso: Constituição, hermenêutica e
teorias discursivas. Da possibilidade à necessidade de respostas corretas em Direito. Rio de Janeiro: Lumen
Juris, 2008; OLIVEIRA, Rafael Tomaz de. Decisão judicial e o conceito de princípio: a hermenêutica e a
(in)determinação do direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008; STRECK, Lenio Luiz; OLIVEIRA,
Rafael Tomaz de; TRINDADE, André Karam. O “cartesianismo processual” em Terrae Brasilis: a filosofia e
o processo em tempos de protagonismo judicial. Inédito; MOTTA, Francisco José Borges. Levando o direito
a sério: uma crítica hermenêutica ao protagonismo judicial. Coleção Lenio Luiz Streck. Florianópolis:
Conceito, 2010; HOMMERDING, Adalberto Narciso. Fundamentos para uma compreensão hermenêutica do
processo civil. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007; LEAL, André Cordeiro. Instrumentalidade do
processo em crise. Belo Horizonte: Mandamentos, Faculdade de Ciências Humanas, FUMEC, 2008.
NUNES, Dierle José Coelho. Processo jurisdicional democrático: uma análise crítica das reformas
processuais. Curitiba: Juruá, 2008; NUNES, Dierle José Coelho. Comparticipação e policentrismo. Belo
Horizonte: Del Rey, 2008.
24 Vivemos em um tempo em que, cada vez mais, somos movidos por “conceitos sem coisas”. Frases
(enunciados) sem contexto. E tentativas de esmagar o mundo e colocá-lo “dentro dos conceitos”. O Google,
como lembra Lenio Luiz Streck, é um bom exemplo desta novilíngua, deste “mundo-que-parece-querer(sobre)viver-sem-contextos”. Se você colocar no Google “Cataratas do Iguaçu”, ele vai ter dar “n”
informações do tipo: “opero cataratas em clínicas de olhos em Foz do Iguaçu”; se você quiser saber sobre
“testemunhas”, aparecerá, como resultado, “testemunhas de Jeová”, “testemunhas da nova ressurreição” etc.
Provavelmente nada do que você queria. Claro que deve haver modos de aprimorar a pesquisa. Mas não é
disso que se trata. Nossa vida e a cotidianidade do Direito acabam sendo uma sucessão de conceitos sem
coisas, onde os contextos importam cada vez menos. O Direito, especialmente, se torna anacrônico e atópico.
http://www.conjur.com.br/2012-mai-24/senso-incomum-conhecimento-fast-food-homer-simpson-direito
acessado em 17-03-2013.
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
“hermenêutica constitucional”, “hermenêutica penal” etc. O que há, sim, são disciplinas cuja
condição de possibilidade, repito, repousa na hermenêutica filosófica como modo-de-ser-nomundo. Numa frase, para concluir este ponto: ou os estudantes e operadores do Direito
começam a compreender isso ou o Direito e as decisões judiciais não têm mais solução.
3. E a práxis do Direito? O que tem mostrado? A applicatio como “garantia
hermenêutica” a evitar o solipsismo do intérprete
O que se tem visto na práxis do Direito é a produção de uma gama de decisões
judiciais sem “DNA”, como vem apontando Lenio Streck. Ou seja, decisões que se baseiam
em interpretações “vazias” e sem argumentos de princípio. Os decisores não respeitam mais
as regras do jogo - como defendia Hans Kelsen a partir de sua Teoria Pura do Direito, e como
sempre denunciou Luís Alberto Warat (veja-se a “Katchanga Real”25) – e não se preocupam
com o problema do poder concentrado nas mãos de um homem só, como também tem
denunciado Jürgen Habermas, situação essa que ele, Habermas, tenta controlar a partir da
razão comunicativa procedimental/discursiva.
Se a razão analítica pode ser caracterizada como “razão sem esperança” (Javier
Murgueza), o irracionalismo, por sua vez, pode conduzir ao solipsismo e à discricionariedade,
o que, em última análise, nada mais são do que arbitrariedade e totalitarismo. Ora, se não se
quer isso no cotidiano das decisões judiciais, teremos de reivindicar para o Direito
interpretações baseadas na situação hermenêutica que nos possibilita a tradição, alternativa
capaz de dar conta, por exemplo, das críticas recebidas por Kelsen quando indagado sobre os
problemas empíricos de sua teoria, já que a indagação sobre o problema da liberdade para
atribuir sentidos de acordo com a vontade do intérprete é respondida com o mito do dado. A
Filosofia no Direito não pode renunciar o tratamento “epistemológico” do tema da justiça e
nem a Teoria da Justiça pode abdicar da racionalidade prática (moralidade), que desde já se
antecipa a partir da tradição.
E é neste contexto de entrelaçamento entre a compreensão/interpretação e a
facticidade, entre a consciência histórica (fusão de horizontes) e o círculo da compreensão
(tradição), para lembrarmos a Hermenêutica Filosófica de Gadamer, que se verifica a
25 “A dogmática jurídica é um jogo de cartas marcadas”. E quando alguém consegue entender “as regras”, ela
mesma, a própria dogmática, tem sempre um modo de superar os paradoxos e decidir a “coisa” ao seu modo.
Ela, por si, é decisionista, no sentido da “vontade do poder” (Wille zur Macht).
http://www.leniostreck.com.br/site/2012/02/10/a-estoria-da-katchanga-real-por-lenio-streck/ - acessado em
17-03-2013.
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“transcendência”, característica indispensável para que algo não se deixe apreender como
ente. E a transcendência se manifesta exatamente pela ligação que se verifica da hermenêutica
com o inapreensível, com a ligação que existe entre as coisas de agora com as coisas do
passado, característica esta que devemos analisar previamente antes de ingressar propriamente
na transcendência.
É Martin Heidegger quem rompe com a fenomenologia da essência (Husserl) e
propõe uma hermenêutica da facticidade, compreensão como mobilidade de fundo de
Nietzsche (historicidade). Os existenciais (ser-com, ser-aí etc.) são tratados como
características inerentes ao estar-no-mundo, ou seja, características que são inerentes ao fato
de estar no mundo, algo que não podemos retirar ou escolher viver sem. Gadamer, que aposta
na sua Hermenêutica Filosófica, faz surgir a questão do sentido ligado à compreensão do
mundo vivido; o mundo vivido ligado à substância (Hegel), que significa a história enquanto
tradição. Ou seja, Gadamer dirá que em toda a subjetividade existe uma dimensão de
historicidade de sentido que deve ser interpretada, mas não pode ser inteiramente apropriada.
Daí a universalidade da hermenêutica, não como um fim último, mas como o propósito de
descerrar o não explorado, as condições prévias (historicidade) que o compreender traz para o
conhecimento.
Assim é que o objeto e o intérprete estão ligados por um contexto de tradição. Na
interpretação, como diz o Professor Lenio Streck, “não somos uma folha em branco”. Como
consciência do tempo, a consciência histórica26 é o tempo de acolhimento de heranças do
passado e da abertura para as incertezas do futuro. Assim, a identidade própria só ocorrerá no
tempo histórico, o que significa a aceitação de um horizonte que nos chega de outras vidas
(senso histórico que é a própria razão humana).
A historicidade da compreensão, portanto, é uma concepção complexa derivada de
pelo menos duas premissas fundamentais: a singularidade histórica e a não-superação da
localidade dos compromissos epistêmicos e práticos (contexto da significatividade). A
posição do intérprete não é fixa; não há posição neutra, pois a interrogação ou o entendimento
acontecem (na linguagem), já que o local de interpretação é por si só o efeito do passado
sobre o presente (consciência histórica efeitual). A soberania do sujeito, assim, é fictícia, pois
o intérprete é pouco mais que o efeito da tradição ao invés de sujeito controlador. Assim, os
pré-conceitos jamais poderão ser postos no mesmo nível da consciência, simplesmente porque
26 A consciência histórica é facilmente verificada no Direito, principalmente quando se está diante de uma lei
vigente, mas que, pelas modificações sociais, não mais se justifica em sua totalidade. Exemplo disso é o
Decreto-Lei nº 3.688/1941 e seus artigos 58 e 59, que tratam das contravenções penais do “jogo do bicho” e
da “vadiagem”, respectivamente.
96
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
eles são a condição da consciência. Quando alguém lê um texto, o horizonte do texto se
mistura com o horizonte do leitor de tal forma que ele será afetado pelo encontro com o texto
(tensão entre texto e presente, em constante mutação).
Sendo a linguagem condição de possibilidade, não haverá ponto algum fora dela do
qual poderíamos vir a testá-la. Afinal, “quando penso em pensar eu já pensei” (Gadamer).
Todos os aspectos da vida têm uma estrutura hermenêutica. “O ser que pode ser entendido é
linguagem” (Gadamer27).
Não é a subjetividade humana a controladora do significado linguístico. Na verdade,
o sentido é resultado do produto dialógico, decorre da tradição (encontramo-nos sempre
inseridos na tradição). Portanto, devemos deixar que pré-compreensão nos diga algo, é
preciso que o texto se deixe mostrar, dizendo alguma coisa ao intérprete, pois ambos têm seus
próprios horizontes e pré-conceitos – autênticos e inautênticos28.
Antes de fundamentar, o juiz já compreendeu porque já pré-compreendeu. Há, assim,
um processo hermenêutico único. O texto jurídico não existe sem a norma; o texto não existe
na sua “textitude”; como sempre tem pontuado Lenio Luiz Streck; a norma não pode ser
vista; ela apenas existe no sentido (texto). Por isso é que na desconsideração disso sempre
“sobra a realidade” (fato é norma e norma é fato). Como ensina Lenio Luiz Streck, “Eu não
posso atravessar o abismo da interpretação e depois voltar para construir a ponte no lugar por
onde eu já passei”29.
O essencial em Gadamer está na ideia de que o intérprete e o objeto de interpretação
estão ligados por um contexto de tradição, o que implica a existência prévia de uma
compreensão do seu objeto quando intérprete o aborda, sendo por isso incapaz de começar
com um “espírito neutro”.
O intérprete não é um livro em branco, não parte de um grau zero, de um ponto cego
de compreensão ou de atribuição de sentido, à medida que a linguagem, como a história,
possui um peso, uma força que nos conduz e nos arrasta. Isso significa que o tempo não é um
obstáculo para compreender o passado, e sim o âmbito onde tem lugar a autêntica
compreensão, na medida em que quando ausentes o tempo e a tradição, falta o descerrar da
compreensão. Neste contexto, não podemos lidar com a existência do objeto histórico30, que
GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método. Petrópolis: Vozes, 1999.
28 Reconhecer a morte (finitude) é a mais autêntica das condutas (responsabilidade – o ser-humano se sente
responsável por sua existência); negá-la é a mais inautêntica, isso porque ninguém pode substituir o humano
e inevitável.
29 Lenio Luiz Streck, anotações do seminário da disciplina de Hermenêutica, Interpretação, Direito e
Linguagem, Programa de Pós-Graduação da Unisinos, doutorado 2012.
30 Objeto histórico seria algo entificado pelo direito, por exemplo, instituto jurídico cuja aplicação se dá
27
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
Gadamer irá denominar de “fantasma”31, como o mito do dado, pois um pensamento
verdadeiramente histórico tem de pensar também a sua própria historicidade. O objeto
histórico não se enquadra na verdadeira historicidade atualmente vivida; daí a metáfora do
fantasma.
Veja-se que, para se destacar um preconceito ou algo não recepcionado pela tradição,
é necessário suspender a validade, pois, na medida em que continuamos determinados por um
preconceito, não temos conhecimento dele e nem o pensamos como um juízo. Dessa forma,
não se conseguirá colocar um preconceito no aberto, diante de si próprio, enquanto estiver
constantemente e inadvertidamente em jogo, mas somente quando, por assim dizer, ele é
incitado. O que permite incitá-lo, portanto, é o encontro com a tradição. O primeiro elemento
com que se inicia a compreensão é o fato de que algo nos interpela. É a primeira de todas as
condições hermenêuticas. Portanto, a suspensão dos prejuízos não significa neutralidade ou
auto-anulamento, mas um modo de abertura para o texto, uma atitude hermenêutica receptiva
para a alteridade do texto.
Nesse sentido, o preconceito autêntico é aquele que é capaz de fazer o intérprete
adequar o texto ao contexto singular e próprio de cada momento histórico. Acontece quando o
ser humano se sente responsável por sua existência, não se tornando um estranho para si
mesmo, ou seja, quando ele deixa que o texto lhe diga alguma coisa. O texto fala que precisa
ser readequado/redefinido por força da linguagem, da consciência histórica e dos efeitos que
ela é capaz de produzir.
Daí o grande salto da hermenêutica, e tudo que ela integra como, por exemplo,
circularidade, diferença ontológica, consciência histórica, tradição etc. A hermenêutica serve
de suporte (re)fundação de institutos jurídicos e sociais que não podem se deixar apreender
(esquecimento do ser). Quando esquecemos desse detalhe, terminamos por incorrer no velho
problema da metafísica clássica: a entificação do ser. E aí não haverá compreensão, pois não
haverá o questionamento a partir do Dasein, o ser-aí.
Na analítica existencial de Martin Heidegger, o ser-aí é projeto. O ser-aí está sempre
envolto a um acontecer; portanto, no projeto prévio do ser sempre ultrapassamos de antemão
o ente. Assim, somente com base na elevação ou transcendência32 o ente se torna manifesto
exclusivamente por força do senso comum dos juristas, ideia plantada a partir de um falso paradigma jus
naturalista.
31 Fantasma é a denominação dada por Gadamer ao objeto histórico acima explicitado.
32 O termo transcendência indica essa excelência do homem de ultrapassar e superar a obscuridade do ente,
com o qual constantemente se comunica em sua existência, iluminando-lhe o sentido, tornando-lhe
transparente o ser da Verdade. LEÃO, Emanuel Carneiro. Aprendendo a Pensar. Petrópolis: Vozes, 1977,
p. 112.
98
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
como ente. Ou seja, na medida em que o projeto pertence à essência do ser-aí, a
ultrapassagem ou transcendência do ente já precisa sempre ter acontecido e continuar
acontecendo no fundo do ser-aí (círculo hermenêutico).
O ato prévio de ultrapassagem do ente é designado por Heidegger com a palavra de
origem latina transcendere e denomina a ultrapassagem como transcendência33. Isso significa
dizer que o ser-aí como tal é transcendente, que o ente que nós mesmos somos, essência
fundamental da constituição ontológica, se caracteriza pela ultrapassagem do ente, levando a
uma elevação originariamente própria de si mesmo.
Somente porque reside na essência do ser-aí esta capacidade de elevação este mesmo
ser-aí existente pode cair. Significa dizer que o ser-aí está determinado em seu modo de ser
pelo que se denomina de decadência (Ser e Tempo34).
Heidegger irá dizer que “o manter-se no ser-no-mundo, esse apoiar-se nele pertence
necessariamente à transcendentalidade, porque ela é determinada essencialmente pela
ausência de apoio. Transcendência – liberdade”35!
Podemos afirmar, portanto, que transcender é ter liberdade para ultrapassar o ser das
coisas, força capaz de emergir o novo e o diferente, num movimento oposto à caída ou ao agir
impróprio, o senso comum teórico, as concepções jusnaturalistas36 etc. O próprio conceito
cosmológico de mundo dado por Kant37 é um bom exemplo para demonstrar o estreitamento
do conceito de mundo, pois trabalha a totalidade do ente por si subsistente, correlato à
experiência finita e, com efeito, à experiência teórico-científica.
É certo que o conceito de mundo, acima explicitado, dado por Kant passa ao largo da
problematização filosófica, o que levaria a algum desavisado, convencido de estar balizado
por pensadores clássicos, trabalhar conceitos de maneira insuficiente, reduzida e equivocada.
E tal problema é bastante corrente no mundo do Direito, principalmente quando se tem uma
formação jurídica absorvida pela metafísica (relação sujeito-objeto) dissociada do pensamento
crítico e reflexivo, como sói acontecer de forma bastante intensa em terrae brasilis. Um
33 HEIDEGGER, Martin. Introdução à Filosofia. Tradução Marco Antônio Casanova; revisão de tradução
Eurides avance de Souza; revisão técnica Tito Lívio Cruz Romão. São Paulo: Martins Fontes, 2008, p. 221.
34
HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. Parte I. Tradução de Márcia de Sá Cavalcante. 9. ed. Petrópolis: Vozes,
2000.
35 Idem, p. 366.
36 Neste contexto o jus naturalismo está associado ao positivismo com um falso dilema (normativista), ou seja,
o direito positivo é postulado como um direito natural inerente ao homem, integrante de sua personalidade e
imutável e universal em seus primeiros princípios, motivo pelo qual a lei e a ordem passam a ser os valores
naturais básicos que se deveria preservar. FARIA, José Eduardo. A Reforma do Ensino Jurídico. Porto
Alegre: Fabris, 1987, p. 42.
37 Registra-se a título de evitar mal-entendidos e falsas designações de pensadores consagrados que, embora se
lance mão do conceito cosmológico de mundo cunhado por kant, não se tem a pretensão aqui de afirmar que
o filósofo pensava o mundo na sua totalidade a partir desse conceito.
99
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
Direito não problematizado filosoficamente é um Direito não transcendentalizado, sem
compreensão.
A partir da analítica existencial, no campo da filosofia, é possível afirmarmos que a
transcendência aproximou-se de nós por meio da compreensão do ser, ou seja, da questão
fundamental de que na relação com o ente nos remetemos para adiante dele e somente nesta
medida podemos compreendê-lo como ente. Caracteriza-se essa compreensão do ser como
transcendência, com a ressalva de que a transcendência não é determinada por completo
mediante a compreensão do ser. A compreensão do ser deve servir como fio condutor para
interpretar o ser-no-mundo, cujo fenômeno fundamental do ser-aí reside na transcendência.
Para explicitar tal fenômeno, Heidegger utiliza a ideia de mundo como jogo 38, resumindo em
quatro pontos os caracteres fundamentais do que pretende expor como jogo.
Ao utilizar a palavra jogo num sentido ontológico, Heidegger busca fazer uma
metáfora com o “jogo da vida”, o ser-no-mundo como jogo originário da transcendência.
Primeiramente, o jogo quer dizer jogar num sentido de realização do jogo; em segundo lugar,
designa o todo de um conjunto de regras com as quais o jogo é jogado. No entanto, o jogo
como jogar não se resume a obediência às regras ou um comportamento de acordo com elas,
pois os jogos sempre são apenas determinadas possibilidades fáticas e conformidades de
jogar.
Assim, o ser-no-mundo como jogo originário da transcendência é trabalhada por
Heidegger como a característica do Dasein em sua plena capacidade de se lançar para além do
ôntico, situação que no Direito deveria estar sempre presente perante seus operadores, já que
o Direito se constitui, por natureza, de conceituações a priori, cuja matriz legalista induz o
seu operador ao apego demasiado ao que está posto, obnubilando a transcendência.
No mundo do ser-aí dentro da esfera da cotidianidade, o ser aparece sempre
intermediado pelos entes (experiência ôntica). Porém, a experiência ôntica indica que há em
sua totalidade uma unidade superior à soma das partes. Esta unidade imensurável é uma
38 1. Jogar é um livre formar que sempre tem, a cada vez, a sua própria consonância interna, na medida em que
ele a forma para si em meio ao jogar; 2. Com isso, apesar de ser um livre formar, jogar é precisamente uma
vinculação. Não é uma estrutura solta, mas constitui o ato formador de se vincular ao e no próprio formar que
consiste em um jogo; 3. Desse modo, jogar nunca é um comportamento em relação a um objeto. Jogar não é
absolutamente um mero comportamento em relação a, mas jogar o jogo e o jogo do jogar são sobretudo um
acontecimento originário e mostram-se indissociáveis; 4. Nesse sentido, denominamos jogar o ser-no-mundo,
a transcendência que caracterizamos inicialmente como a ultrapassagem do ente. O ser-no-mundo já sempre
se lançou para além do ente o envolveu em seu jogo; nesse jogar, forma-se pela primeiríssima vez o espaço –
e espaço, mesmo no sentido real – no interior do qual encontramos o ente. HEIDEGGER, Martin.
Introdução à Filosofia. Tradução Marco Antônio Casanova; revisão de tradução Eurides avance de Souza;
revisão técnica Tito Lívio Cruz Romão. São Paulo: Martins Fontes, 2008, págs. 336-337.
100
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
experiência ontológica39. Há experiências ontológicas cotidianas mediadas pelos entes que
junto ao ser-aí perfazem o mundo necessariamente possível. Este aceno de estruturas da
mundanidade ilustra bem o que de resto é ontológico e o que é ôntico, na medida em que o
transcendente e originário dizem respeito à diferença ontológica. Sem a compreensão do que é
a diferença ontológica40, isto é, a diferença entre ente e ser, não se detém a compreensão de
transcendência.
Se inexiste cisão entre texto e norma, pela simples razão de que o fato de serem
diferentes não significa que tenham existência autônoma, vem a conclusão de não ser possível
atribuir qualquer sentido ao texto (jurídico)41. Daí por que interpretar não é colocar capas de
sentido ao caso. E, muito menos, interpretar significa investigar o real sentido pretendido pelo
legislador. Sobretudo, interpretar é deixar que o texto nos diga algo, é investigar o sentido da
norma em meio à diferença ontológica e o círculo hermenêutico que, desde já, antecipa (o
sentido).
Em consequência, tem toda razão Lenio Streck ao dizer que não há texto isolado da
norma, simplesmente porque, na linha de Gadamer, interpretar não se constitui em ultrapassar
etapas, mas é, simplesmente, applicatio42:
“Na verdade, o texto não subsiste como texto; não há texto isolado
da norma! O texto já aparece na “sua” norma, porque não interpretamos por
partes; interpretar é aplicar (applicatio). O sentido do texto (que é a sua
norma) ex-surge do processo de atribuição de sentido do intérprete, uma vez
que a atribuição de sentido ex-surgirá de sua situação hermenêutica, da
tradição em que está inserido, enfim, a partir de seus pré-juízos. A diferença
ontológica, locus do ato aplicativo (applicatio) funciona, assim, como
garantia contra essa discricionariedade representada por pretensa „liberdade
de atribuição de sentidos‟. Por isso a hermenêutica não é relativista. A
applicatio evita arbitrariedade na atribuição de sentido, porque decorre da
atribuição de sentido que é próprio da hermenêutica de cariz filosófico que
39 O ontológico é condicionado pela finitude.
40 A diferença ontológica significa, formalmente, que o ser não é um ente, logo ele não pode ser pensado do
mesmo modo como se pensa os entes. Por sua vez, a constituição onto-teo-lógica da metafísica indica o fato
de ela nunca ter pensado a diferença entre ser e ente e, por isso, sempre pensou o ser como se ele fosse um
ente possível; por isso ela se caracteriza em ser uma ciência (lógica) que pesquisa o ser (onto), determinandoo como se ele fosse uma causa primeira: Deus (teo): o pensamento metafísico sempre pensou o ser como
essência e, esta, como um fundamento primeiro: a idéia, para Platão; a energia, para Aristóteles (384-322
a.C.); a consciência, para Descartes (1596-1650); a razão, para Kant (1724-1804); o espírito, para Hegel
(1770-1831); a vontade de poder e o eterno-retorno, para Nietzsche (1844-1900). O projeto filosófico de
Heidegger propõe, em um diálogo com a filosofia tradicional, mostrar a diferença ontológica e, com isso,
indicar a necessidade de superar a característica onto-teo-lógica de nossa filosofia, elaborando a questão do
ser em um novo horizonte de pensamento.
41 Daí a pertinente citação de Nelson Saldanha no texto de STRECK, Lenio Luiz. Diferença (Ontológica)
Entre Texto e Norma: Afastando o Fantasma do Relativismo, p. 62. “...cada texto está relacionado ao
conteúdo: não procuraria uma mensagem religiosa no texto de um livro de química, nem se buscaria um
conteúdo poético no texto de um decreto”. http://www.estig.ipbeja.pt/~ac_direito/Streck.pdf - acessado em
30-10-2012.
42 Idem, p. 61.
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
rompeu com o método. Aquilo que é condição de possibilidade – précompreensão/antecipação de sentido – não pode vir a transformar-se em um
„simples resultado‟, manipulável pelo intérprete”.
Evidenciada a diferença entre o texto e a norma, esta, a norma, será sempre o
produto da interpretação daquele, cujo sentido não está contido no texto, mas decorre da
situação hermenêutica e da tradição em que se encontra inserido. Assim, a applicatio,
funciona como uma garantia hermenêutica para suplantar o solipsismo do intérprete que
acredita ser livre para atribuir sentido, já que a pré-compreensão antecipa o sentido do texto.
Podemos exemplificar o exposto a partir de uma situação em que o texto legal não dá conta da
facticidade. É o caso que se verifica na doutrina civilista pátria quanto à taxatividade do rol de
direitos reais, conforme o que dispõem os incisos do art. 1.225 do Código Civil Brasileiro43.
Sabe-se que o referido artigo vem sendo tratado, repetidamente, como sendo uma disposição
que atribui aos direitos reais a característica de serem numerus clausus, no sentido de que,
pela reserva legal, sua modificação exigiria competência específica prevista na Constituição
da República para legislar em matéria civil.
Assim, conforme o Código Civil e a própria doutrina, não caberia mitigar o rol
dos direitos reais para ampliá-lo. Essa tipicidade, assim, remonta ao esboço de Teixeira de
Freitas no artigo 3.073 que dizia: “a nenhum direito se atribuirá o caráter de direito real (art.
19) fora das espécies designadas neste Título, e de modo pelo qual neste livro regula-se cada
uma delas”.
O mundo da vida, porém, como se sabe, apresenta situações que demandam
normatização, sob pena de não conseguirmos dar conta dos casos trazidos à apreciação
jurisdicional. Um desses exemplos é o da aplicação do art. 1.225 do CCB acima referido.
Em decorrência do crescente aumento populacional das grandes cidades, surgiu na
jurisprudência o instituto denominado de “condomínio de fato” ou - utilizando a terminologia
jurídica - composse. À luz do rol do artigo 1.225, a posse (composse) não constitui direito
real, de tal forma que, na hipótese do condomínio de fato, as obrigações condominiais
decorrentes da com(posse) não constituem obrigação propter rem, típica dos direitos reais,
que, diferentemente das obrigações pessoais, vinculam-se ao bem. Assim, se nos atrelarmos
ao texto como concebido pela doutrina e pelo senso comum dos juristas, a uma determinada
43 Art. 1.225. São direitos reais: I - a propriedade; II - a superfície; III - as servidões; IV - o usufruto; V - o uso;
VI - a habitação; VII - o direito do promitente comprador do imóvel; VIII - o penhor; IX - a hipoteca; X - a
anticrese. XI - a concessão de uso especial para fins de moradia; (Incluído pela Lei nº 11.481, de 2007); XII a concessão de direito real de uso. (Incluído pela Lei nº 11.481, de 2007).
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
associação de moradores em condomínio de fato restaria apenas a possibilidade de cobrar as
despesas comuns pela via ordinária relativa às obrigações pessoais.
A jurisprudência, porém, atendendo ao princípio da função social da propriedade, faz
transcender a regra adequando o sentido do texto (normatizando) de forma que dele se possa
retirar efetividade44. Daí a conclusão de que, primeiro, não há sentido unívoco no texto e,
segundo, interpretar não é atribuir capas de sentido aos casos, porquanto imprescindível que o
direito não seja absorvido por pretensos “modelos de interpretação”, por meio dos quais o
intérprete opera a partir de metacritérios ou critérios de normatividade que substituam o
processo de compreensão.
E isso é um problema exatamente porque o empreendimento da hermenêutica
filosófica se dá a partir de uma matriz circular que leva em consideração a condição humana
de estar-no-mundo, mediado pela tradição (histórica) e pela moral (constitucional). Portanto,
todo o esforço de se chegar a um fundamento absoluto, prévia e determinadamente seguro não
passa de uma tarefa absolutamente ilógica.
As vicissitudes da vida quotidiana, portanto, não podem ser desconsideradas no
processo interpretativo. Elas integram o Dasein como ser jogado-no-mundo e, portanto, a
“saída” não se dá nem no modelo de subsunção (porque este método sempre chega tarde,
como vimos no exemplo anterior), e muito menos está na pessoa do intérprete (sujeito
solipsista) que não “dispõe” dos argumentos, principalmente porque não há um reservatório
de argumentos à disposição do intérprete para que ele lance mão na medida de sua vontade. E
argumentos são decorrência da compreensão. Eis a questão! A compreensão chega antes. O
argumento é o que explicita a compreensão.
Dessa forma, fica claro que o sentido não é um ato de escolha de alguém, mas é um
existencial do Dasein na medida em que o sentido se dá no movimento circular do velamento
e desvelamento (sentido do ser). De outra forma, estar-se-ia entendendo o sentido como uma
propriedade do ente que se dá por acoplamento, por proposições capazes de representar o
mundo, como se pudéssemos aprisionar a realidade em proposições previamente definidas.
Neste sentido, novamente nos abeberamos na lição do professor Lenio quando insiste
44 CONDOMÍNIO ATÍPICO – DESPESAS EM BENEFÍCIO DE MORADORES – PAGAMENTO DE
COTA-PARTE POR TODOS – OBRIGATORIEDADE. Sumaríssima. Condomínio de fato. Despesas
efetuadas em prol dos moradores. Obrigatoriedade do rateio das despesas através do pagamento de quotaparte. Apelação parcialmente provida (A.C. nº 7.677/93, 2ª CC, rel. Des. Newton Azevedo da Silveira).
Preceito da Súmula nº 79 do TJRJ: Associação de Moradores. Condomínio de Fato. Cobrança de despesas
comuns. Princípio do não enriquecimento sem causa. Em respeito ao princípio que veda o enriquecimento
sem causa, as associações de moradores podem exigir dos não associados, em igualdade de condições com os
associados, que concorrem para o custeio dos serviços para ela efetivamente prestados e que sejam do
interesse comum dos moradores da localidade.
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
no tema relacionado à impossibilidade de atribuição de sentido de forma arbitrária e artificial,
dizendo45:
Daí a minha insistência, no sentido de que se tenha claro que a
pergunta pelo sentido do texto jurídico é uma pergunta pelo modo como esse
sentido se dá na concretude do mundo da vida. O intérprete não é um
outsider do processo hermenêutico. Há um já-sempre-compreendido em todo
processo de compreensão. No conto está o contador. É por isso que
Heidegger vai dizer que o mensageiro já vem com a mensagem. E é por isto
que não se pode falar, de forma simplista, em „textos jurídicos‟. O texto não
existe em si mesmo. O texto – que só é na sua norma – só se complementa
no ato interpretativo. O texto como texto é inacessível, e isto é
incontornável! O texto não segura, por si mesmo, a interpretação que lhe
será dada. Do texto saíra, sempre, uma norma.
Portanto, verifica-se basicamente que a dicotomia texto-norma não implica uma
separação como se pudessem coexistir autonomamente. Fosse diferente, estaríamos
entificando o texto. Há, pois, como dito, uma diferença (ontológica) entre texto e norma, que
possibilita a transcendência, na qual já terá ocorrido à antecipação de sentido de sua situação
hermenêutica e da tradição que está inserido.
4. O Direito tem sido visto como “transcendental”? Onde está, afinal, o DNA do
Direito? E por falar em princípios? Uma sintética conclusão
É possível afirmar, portanto, que os efeitos da tradição e a consciência histórica são
partes essenciais para uma correta abordagem interpretativa no Direito. A formação jurídicosocial de uma comunidade é relevantíssima para ela e para o Direito que pretende aplicar. Da
mesma forma têm importâncias os contextos e adversidades por que passa até que chegue a
praticar um Direito mais democrático e igualitário. É isso que podemos verificar, por
exemplo, o sentido do contexto constitucional que advêm de toda uma tradição moral
institucionalizada no âmbito de uma comunidade. Princípios constitucionais, nesse sentido,
não são algo que se pode “criar” a todo instante, como se fosse possível inventar princípios
com o intuito único de legitimar decisões sob o fundamento de “princípio”, sem qualquer
fundamento. Algo não é princípio apenas porque consta na Constituição ou porque alguém
(jurista ou não) diz que é. Ora, a Constituição está repleta de regras (e princípios). Mas o fato
de nela constar não significa que estamos por vezes diante de um princípio. Podemos estar
diante de uma proposição, mas precisamos, em cada decisão, reconstruir a história
45 STRECK. Lenio Luiz. Diferença (Ontológica) Entre Texto e Norma: Afastando o Fantasma do
Relativismo, p. 60-61. http://www.estig.ipbeja.pt/~ac_direito/Streck.pdf - acessado em 30-10-2012.
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
institucional a partir de argumentos de princípio que necessariamente incorporem a
moralidade institucionalizada no seio da comunidade política e jurídica.
Nesse aspecto, podemos dizer que tal não é o que acontece na prática das decisões
judiciais, pois há um vezo no imaginário dos juristas no sentido de que necessitamos de um
princípio para adornar ou fundamentar as decisões, questão já há muito denunciada por Lenio
Streck com o nome de “panprincipiologismo”. E é este manancial de “princípios” sem DNA
que acarreta um enfraquecimento da autonomia do Direito e da força normativa da
Constituição.
A utilização de “princípios” tão-somente como retórica (como adorno, conforme
denunciamos
há
pouco),
ultrapassando
os
limites
semânticos
da
Constituição
(supraconstitucionalidade), pois utilizados apenas para justificar as decisões sem qualquer
fundamento, apenas servem para enfraquecer a democracia. Ora, princípios não podem ser
utilizados como uma espécie de discurso com “pretensões de correção”, totalmente ao
alvedrio do julgador (intérprete). Quando isso acontece terminamos por cair na
panprincipiologia, o que faz com que, na lacuna da lei, o juiz se sinta autorizado a lançar mão
de “metaprincípios”, “escolhendo” os princípios que estariam em jogo (mais ou menos nos
termos do que defende, por exemplo, Robert Alexy) e que possuiriam uma textura “aberta”
como “mandados de otimização” que, na verdade, apenas repristinariam o velho positivismo
do protagonismo judicial.
No ponto, Lenio Luiz Streck explicita bem o problema, merecendo transcrição:
Em tempos de „densa principiologia‟ e „textura aberta‟, tudo isso
propicia a que se dê um novo status ao velho non liquet. Isto é, os limites do
sentido e o sentido dos limites do aplicador já não estão na Constituição,
enquanto „programa normativo-vinculante‟, mas, sim, em um conjunto de
enunciados criados ad hoc (e com funções ad hoc), que, travestidos de
princípios, constituem uma espécie de „supraconstitucionalidade‟. Agreguese a tudo isso a relevante circunstância de que muitos dos princípios gerais
do direito – que teriam sido „constitucionalizados‟ – são incompatíveis com
a Constituição46.
Neste contexto, há inúmeros “princípios” retirados do senso comum dos
juristas ou considerados princípios gerais do direito, tais como “supremacia do interesse
público sobre o interesse privado47”, “o juiz é o destinatário da prova48”, “não há nulidade
46 STRECK, Lenio Luiz. Verdade e Consenso. Constituição, Hermenêutica e Teorias Discursivas. Da
possibilidade à necessidade de respostas corretas em direito. 2ª Edição. Rio de Janeiro: Lumen Juris,
2008, p. 539.
47 Veja-se a seguinte ementa, que é um bom exemplo do que afirmamos: Honorários advocatícios - Consoante
o disposto no artigo 20, § 4º, do Código de Processo Civil, nas causas em que for vencida a Fazenda Pública,
105
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
sem prejuízo”, “verdade real”, “íntima convicção”, para ficar apenas nestes, que nada têm a
ver com o conjunto de princípios da Constituição, servindo, portanto, exclusivamente para
reforçar o velho problema da subjetividade que herdamos do modelo positivista kelseniano,
que sempre apostou na “liberdade” do juiz, e enfraquecer o DNA do Direito.
Mas, afinal de contas, onde é que iremos encontrar o DNA do Direito? Pois bem.
Com certeza, não será no senso comum dos juristas e no panprincipiologismo que iremos
encontrá-lo. A Hermenêutica Filosófica é a condição de possibilidade para demonstrar que é a
partir de uma tradição e a partir da compreensão que podemos tentar começar a procurar algo.
E isso não é um essencialismo. Em absoluto! O DNA do Direito não está guardado em um
“jarro”. Também não está na “cabeça privilegiada” de algum julgador. Ele, o DNA, desde-jásempre-está inserto na tradição da comunidade jurídica que constrói a moralidade e que se
institucionaliza no seu bojo. Mas esse próprio DNA é reconstruído e se reafirma a partir de
cada decisão que respeita a coerência e a integridade do Direito.
A transcendentalidade do Direito, por sua vez, faz-se presente quando nos damos
conta de que a interpretação jurídica é um problema de compreensão – e, portanto, um
problema de Hermenêutica Filosófica – que se instaura a partir de um marco, de uma tradição.
Interpretações vazias, instrumentalizadas e pragmáticas, fundadas no senso comum teórico
dos juristas e, portanto, despreocupadas com o caso e alheias a argumentos de princípio
“corroem” o DNA normativo, deontológico do Direito.
O DNA do Direito está imbricado com a moralidade, mas essa moralidade não é
qualquer moralidade; não é a moralidade do juiz ou do legislador. A moralidade que é cooriginária do Direito é uma moralidade institucionalizada (Dworkin), política, reconstruída na
decisão judicial a partir de argumentos de princípio. E essa reconstrução só se dá a partir da
compreensão. E da compreensão de que integramos uma comunidade jurídica e política, com
uma tradição que a carrega. Para “compreender” isso é que a Hermenêutica Filosófica vem
nos “dar uma mão”.
os honorários advocatícios serão fixados segundo a apreciação equitativa do juiz. Por conseguinte, tendo em
vista a repetitividade da matéria em análise e a desnecessidade de dilação probatória, o entendimento
consolidado por esta Câmara é de que os honorários advocatícios devem ser fixados em 5% sobre o valor da
condenação. (Apelação Cível Nº 70050803048, Vigésima Quinta Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS,
Relator: Helena Marta Suarez Maciel, Julgado em 03/10/2012).
48 Por exemplo, a seguinte ementa: AGRAVO DE INSTRUMENTO. SEGUROS. PERICIA.
DETERMINAÇÃO PELO JUÍZO DA PRODUÇÃO DA PROVA. GRADUAÇÃO DA INVALIDEZ.
ACIDENTE POSTERIOR A MP 451/2008. O juiz é o destinatário da prova, portanto, tem o poder de
determinar as provas que achar necessárias ao seu convencimento. Inteligência do art. 130 do CPC.
AGRAVO A QUE SE NEGA SEGUIMENTO, EM DECISÃO MONOCRÁTICA. (Agravo de Instrumento
Nº 70051376655, Sexta Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Artur Arnildo Ludwig, Julgado
em 15/10/2012).
106
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
Os juízes, para poderem julgar, devem estar bem conscientes dos seus preconceitos.
Sem preconceitos não há juízo, mas sem suspendê-los não há um “bom” juízo, um “autêntico”
juízo. A transcendentalidade do Direito determina aos juristas que ultrapassem, portanto,
posturas positivistas e discricionárias, evitando, pois, que “caiam” na inautenticidade e
irresponsabilidade quando decidirem.
A compreensão é que faz a transcendência do Direito “aproximar-se do próprio
Direito”. É o que faz o jurista aproximar-se do Direito. E a compreensão é hermenêutica. Por
isso é que o apego ao método, ao pragmatismo e aos predadores do Direito (caso da política,
da subjetividade do juiz, dos valores, da economia etc.) é “terrível” para o Direito, pois
ocultam a sua transcendência, liquidando com o seu DNA. Em definitivo, se isso não for
entendido, então o Direito e as decisões judiciais seguirão sendo obra da subjetividade do
intérprete, nada mais restando a fazer por parte dos operadores do Direito que, logo ali,
estarão vendo a derrocada definitiva do Direito e da democracia.
Referências bibliográficas
107
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
FARIA, José Eduardo. A Reforma do Ensino Jurídico. Porto Alegre: Fabris, 1987
GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método. Petrópolis: Vozes, 1999.
HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. Parte I. Tradução de Márcia de Sá Cavalcante. 9. ed.
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_______________. Introdução à Filosofia. Tradução Marco Antônio Casanova; revisão de
tradução Eurides avance de Souza; revisão técnica Tito Lívio Cruz Romão. São Paulo:
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LEÃO, Emanuel Carneiro. Aprendendo a Pensar. Petrópolis: Vozes, 1977.
STRECK, Lenio Luiz. O que é isto – decido conforme minha consciência? Porto Alegre:
Livraria do Advogado, 2010.
STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica
da construção do direito. 10. ed. rev., atual. e ampl. Porto Alegre: Livraria do Advogado,
2011.
STRECK, Lenio Luiz. Verdade e Consenso. Constituição, Hermenêutica e Teorias
Discursivas. Da possibilidade à necessidade de respostas corretas em direito. 2ª Edição.
Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008.
108
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
A LÓGICA INTERPRETATIVA DE PETER HABERLE COMO EXTENSÃO
DO PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA SOLIDARIEDADE
Raphael Juan Giorgi Garrido1
Resumo: A partir da concepção pluralista da teoria da interpretação de Peter Haberle, o
presente artigo tem por objetivo demonstrar que a noção pluralista e procedimental de
sua hermenêutica guarda relação específica com o princípio constitucional da
solidariedade, estampado no artigo 3º da CF. A proposta de Haberle se insere em uma
perspectiva de complexidade social e cultural em harmonia com o princípio
constitucional da solidariedade, o qual se consubstancia como uma virtude ética de
reconhecimento do indivíduo como potencialmente capaz de interagir não somente para
se tornar um destinatário da norma jurídica constitucional, mas igualmente um autêntico
intérprete. É justamente a compreensão do princípio da solidariedade como um conceito
plúrimo voltado à finalidade do cidadão e implicando responsabilidade recíproca que se
estende a uma concepção aberta e pluralista de interpretação constitucional.
Palavras-chave: Interpretação Constitucional; Princípio da Solidariedade; Sociedade
Aberta; Pluralismo; Extensão.
THE PETER HABERLE´S INTERPRETATIVE LOGIC AS A EXTENSION OF
CONSTITUTIONAL PRINCIPLE OF SOLIDARITY
Summary: From the Peter Haberle´s pluralist conception of interpretation theory, this
article objetive show that pluralist and procedural arrangement of his hermeneutics has
any specific relation to solidarity, as a constitutional principle, in article 3 of brazilian
constitution. The Haberle´s proposal involve a complex socialcultural perspective
according solidarity principle, which one is a ethic virtue of recognize a person as if
capable, not only to receive the constitutional law, but also to become a original
interpreter of it. The comprehension of the solidarity principle as multiple conception
Pós-Graduado em Direito Empresarial pela Escola Paulista de Direito – Mestrando em Direito da
Sociedade da Informação pela UNI-FMU – Advogado em São Paulo.
1
109
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
for citizen`s necessities and implying responsabilities to one another that is extensive to
a opened and pluralist conception of constitutional interpretation.
Keywords: Constitutional Interpretation; Solidarity Principle; Opened Society;
Pluralism; Extension.
1. INTRODUÇÃO
A Constituição Federal de 1988 é um marco histórico na vida do país, pois além
de ter refletido os anseios sociais de abertura política após longo período de ditadura
militar, contemplou direitos fundamentais de três gerações, garantindo-se então aos
cidadãos brasileiros, bem como aos estrangeiros aqui residentes uma ampla proteção
jurídica. Coube a Constituição Federal de 1988 a tarefa de positivar no ordenamento
jurídico os direitos fundamentais, atribuindo-lhes uma tutela mais sólida e dinâmica,
erigindo-os inclusive como parte de um núcleo de normas inabolíveis, intangíveis e
irrevogáveis, mesmo por emenda constitucional, conforme artigo 60, §4º, IV. Assim, os
direitos
fundamentais
são
marcados
pela
universalidade,
indivisibilidade
e
interdependência com os demais direitos.
Houve assim, uma inovação legislativa ao conferir aos direitos fundamentais
proteção constitucional. Os direitos fundamentais, sejam
individuais, sociais ou
ambientais estão estritamente ligados à dignidade da pessoa humana e à cidadania que
são fundamentos do Estado Democrático consoante artigo 1º da Constituição Federal.
Dignidade e cidadania são fundamentos que servem como princípios maiores 2 na
interpretação e aplicação dos direitos fundamentais. E se é fundamento isto significa
dizer que a existência do Estado deve estar vinculada ao respeito da dignidade da pessoa
humana, como valor básico, principal, pois é fundamento “porque constitui num valor
supremo, num valor fundante da República, do País, da Democracia e do Direito”3.
NUNES, Luiz Antonio Rizzatto. Curso de Direito do Consumidor: com exercícios. 2 ed. rev. modif. e
atual. São Paulo: Saraiva, 2007, p.25
2
3
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 30 ed. São Paulo: Malheiros,
2008, p.92.
110
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
Releva notar contudo, que a Constituição Federal não se limita a estabelecer
proteção apenas àqueles direitos nela expressamente previstos, mas igualmente permite
a recepção de direitos oriundos do regime e princípios por ela adotados, bem como
decorrentes de tratados internacionais nos quais o Brasil seja signatário. A proteção foi a
mais ampla possível de modo a contemplar direitos fundamentais de todas as espécies, a
fim de conferir integralidade da proteção à esfera dos cidadãos. Conforme bem pondera
Virgílio Afonso da Silva “a ideia mestra é a irradiação de efeitos das normas
constitucionais”4.
2. DISTINÇÃO ENTRE PRINCÍPIOS E REGRAS
Analisando o aspecto da inserção da solidariedade no âmbito do Direito
constitucional brasileiro, é preciso atentar-se primeiramente ao fato de que solidariedade
não regra, está acima de uma mera regra constitucional, trata-se de princípio.
Solidariedade é princípio, e mais do que isso, é princípio constitucional e isto traz
implicações relevantes a serem levadas em conta. A primeira delas é que tanto regras
assim como os princípios são espécies de normas, pois se referem a condutas, ao deverser. Trata-se assim, da distinção entre dois tipos de normas5.
Contudo, segundo
doutrina majoritária, pode-se afirmar que regras e princípios são espécies de normas
jurídicas e que se distinguem segundo critério de grau de abstração, de aplicação e
natureza. Por estes critérios, os princípios se distinguem das regras de direito por
possuírem grau mais elevado de abstração, caráter de fundamentalidade, por ocuparem
posição hierárquica superior, pois possuem caráter estruturante, além de possuírem
natureza normogenética, ou seja, os princípios ocupam lugar privilegiado, constituem-se
na base do ordenamento jurídico, determinando a razão de ser das regras jurídicas,
sendo vinculantes em relação a elas. Exatamente por este motivo, os princípios
raramente são aplicados diretamente na solução dos casos concretos, sendo
fundamentais à integridade do ordenamento jurídico como um todo, pois constituem o
AFONSO DA SILVA, Virgílio. A constitucionalização do direito: Os direitos fundamentais nas
relações entre particulares. São Paulo: Malheiros, 2005, p.39.
4
5
ALEXY, Robert. Teoria de los Derechos Fundamentales. Trad. Ernesto G. Valdés. Madrid: Centro de
Estúdios Constitucionales, 2001, p.83.
111
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
alicerce, a base das regras jurídicas. As regras jurídicas por seu turno, correspondem a
prescrições ou descrições dirigidas especificamente a determinadas situações, não
possuindo o grau de essencialidade dos princípios.
Outro autor bastante relevante na tópica de distinção entre regras e princípios
constitucionais é Ronald Dworkin. Dworkin, assim como Alexy, advogam a ideia de
que os princípios diferem das regras por um critério lógico qualitatitivo. Dworkin parte
de uma concepção crítica ao positivismo de Hart e Kelsen, compreendendo-o como
falho na fundamentação de decisões de caráter complexo, pois segundo ele a realidade é
mais ampla e é impossível ao sistema ser coeso, completo e coerente a todo tempo
apenas fundamentando-se nas regras existentes.
Segundo Dworkin, as regras possuem apenas e tão somente a dimensão da
validade. Se são válidas, são aplicáveis, se não são válidas não são aplicáveis. Com os
princípios, tal lógica não se perfaz. Segundo Dworkin, o princípio é qualitativamente
superior, ou seja, possui, um peso maior que a regra. Destarte, não é a validade que
determinaria, segundo ele, a aplicabilidade de um princípio não se resolve no campo da
validade, mas sim no campo da argumentação jurídica. É a argumentação de acordo
com o caso concreto que definirá o “peso qualitativo” de determinado princípio jurídico
na aplicação a algum caso concreto.
Semelhantemente à Dworkin, Alexy parte do mesmo pressuposto, qual seja, o de
que princípios e regras se diferem quanto ao grau qualitativo superior dos primeiros em
relação às segundas. Sua concepção basilar foi a de construir os princípios jurídicos
como sendo mandamentos de otimização. Isto significa que, segundo Alexy, os
princípios são normas, as quais devem “otimizadas”; isto é, devem ser maximizados em
seu potencial de aplicabilidade de acordo com as condições jurídicas presentes. Assim,
para Alexy, princípio se define pela sua estrutura normativa e não por sua
fundamentalidade, contrariando a concepção da doutrina majoritária no Brasil.
Outra distinção bastante importante a ser destacada em relação a este tópico, é
no que diz respeito à colisão de regras e princípios. Os princípios devem ser realizados
112
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
na máxima medida, ao passo que as regras devem ser aplicadas no todo6. A colisão
entre os princípios se resolvem por meio do sopesamento entre eles, afastando-se o
princípio desprestigiado no caso concreto, ao passo que o conflito de regras se resolve
invalidando outra norma conflitante. O princípio afastado não deixa de ser um princípio,
mas a regra afastada tem sua validade comprometida em função de seu afastamento.
3. O PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA SOLIDARIEDADE
Erigida à categoria de princípio constitucional, estampado no artigo 3º, I, além
de consubstanciar-se como objetivo institucional da República Federativa do Brasil, a
solidariedade possui um claro viés inspirado na concepção iluminista francesa ao lado
da liberdade e da igualdade. Releva notar que sua previsão não se trata de um mero
enfeite ou adorno constitucional, mas antes de mais nada de uma imposição
constitucional imprescindível em prol da garantia de vida coletiva e da concretização de
uma consciência moral coletiva em benefício do espírito público. Nas palavras de Maria
Celina Bodin citada por Alenílton Cardoso, a solidariedade corresponde a um:
Fato social que dá razão à existência do ser humano no mundo, como
virtude ética para que uma pessoa reconheça na outra um valor absoluto
ainda mais amplo do que a justa conduta exigiria, e ainda, como resultado
de uma consciência moral e de boa-fé como comportamento pragmático
para evitar lesão a outrem, a si mesmo, e à sociedade.7
Assim, apara a autora acima mencionada, a solidariedade é princípio que guarda
relação com a dignidade da pessoa humana, consistindo no reconhecimento do potencial
valor do próximo como ser humano que é. Pode-se afirmar que a solidariedade ou
fraternidade se relaciona com a proteção de grupos humanos, consubstanciando como
direitos de titularidade difusa ou coletiva8 e possuem uma implicação universal,
6
ÁVILA, Humberto Bergmann. A distinção entre princípios e regras e a redefinição do dever de
proporcionalidade. In: Revista de Direito Administrativo 215 (1999): 151-179, p.164
BODIN, Maria Celina apud CARDOSO, Alenílton da Silva. Princípio da Solidariedade: a confirmação
de um novo paradigma. In: Revista Forense: Forense, a.105, v.405, set/out. 2009, p.4.
7
8
SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais. 6 ed.Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2006, p.58
113
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
transindividual, em função dos esforços coletivos exigidos para sua efetivação 9. Na
mesma esteira, é Pietro Perlingieri para o qual:
(...) pode-se discorrer da solidariedade das comunidades intermediárias, dos
membros da família para com a família, dos sócios em relação à sociedade,
de um associado respeito à associação. Solidariedade pde concernir ao
grupo menor ou intermédio em face do maior, como o Estado, ou exaurir-se
no âmbito do grupo intermédio em prejuízo das pessoas que não fazem parte
dele. Ela pode significar correlação, fraternidade entre os membros da
mesma comunidade, mas também posição egoísta em relação àquela de
quem não faz parte dela ou de quem é mebro de uma comunidade
concorrente.10
Percebe-se que Perlingieri vai além da mera concepção de solidariedade como
cooperação, adotando o conceito de solidariedade mecânica e orgânica de Emile
Durkheim. Tal concepção é oriunda das teorias sociológicas e não se confunde como
mero sentimento de piedade ou caridade em relação ao próximo. Trata-se de um
conceito de solidariedade mais amplo, o qual parte do reconhecimento de que a
sociedade se mantém como tal a partir de forças solidárias. Uma dessas forças solidárias
é a mecânica, a qual corresponde a um conjunto de valores e crenças compartilhadas
socialmente. A outra é a solidariedade advinda da divisão social do trabalho,
consistindo na interdependência entre as pessoas.
Analogamente ao pensamento durkheimiano, é Leon Duguit, para o qual a
perspectiva individualista de plena liberdade e completude do homem em si não passa
de mera “abstração sem realidade alguma”11. E acrescenta Duguit:
Nosso ponto de partida é o fato incontestável de que o homem vive em
sociedade, sempre viveu em sociedade e não pode viver mais que não em
sociedade com seus semelhantes, e que a sociedade humana é um fato
primário e natural, e em maneira alguma produto ou resultado da vontade
9
SARLET, Ingo Wolfgang. Op. Cit. p.59
PERLINGIERI, Pietro. O direito Civil na Legalidade constitucional. Trad. Maria Cristina de Cicco.
Rio de Janeiro: Renovar, 1997, pp.461-462.
10
11
Duguit, Leon. Manual de derecho constitucional. p.5. apud AVELINO, Pedro Buck. Princípios da
solidariedade: imbricações históricas e sua inserção na constituição de 1988. In: Revista de Direito
Constitucional e Internacional, n.º 53, out/dez,São Paulo: RT, 2005, p. 243.
114
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
humana. Todo homem, forma, pois, parte de um grupo humano; o tem
formado e formará sempre, por sua própria natureza.12
Ambos os teóricos propugnam pela ideia de que a solidariedade é um fato social.
Absolutamente impossível conceber a solidariedade na perspectiva individualista. O
princípio da solidariedade implica o reconhecimento da pluralidade social, participação
e compartilhamento de responsabilidades de todos os cidadãos. É exatamente esta a
razão pela qual o texto constitucional se refere à “construção de uma sociedade livre,
justa e solidária” como objetivo fundamental institucional. Muito embora a expressão
solidária apenas apareça no inciso I do artigo 3º da Carta Magna, o princípio da
solidariedade deve ser interpretado do modo mais amplo possível, de modo a conferir a
maior efetividade possível. Destarte, o princípio constitucional da solidariedade implica
responsabilidade mútua dos cidadãos, reconhecimento e aceitação do pluralismo social,
de modo a garantir a todos os cidadãos, independentemente da raça, religião, sexo, ou
qualquer outro fator, o seu bem-estar. Neste sentido, também é o entendimento de Maria
Celina Bodin de Moraes, para quem:
O princípio constitucional da solidariedade identifica-se desse modo, com o
conjunto de instrumentos voltados para se garantir uma existência digna,
comum a todos, numa sociedade que se desenvolva como livre e justa, sem
excluídos ou marginalizados.13
Desta feita, em se tratando de objetivo institucional fundamental da Rapública
Federativa do Brasil, o princípio da solidariedade implica igualmente no
reconhecimento de espaço aos cidadãos, pois não se poderia falar-se em cidadania, sem
oferta de oportunidades na construção de espaço democrático de participação ativa no
poder. E como elemento integrador fundamental, deve evidentemente valer em relação
não apenas à esfera governamental, ou das ações governamentais, mas igualmente a
todas as esferas de poder, incluindo o poder legislativo e o judiciário, pois não se pode
conceber em uma sociedade complexa e pluralista que as atividades legiferante e
judicante sejam “ilhas isoladas”, e imunes à construção de uma sociedade mais livre,
aberta, justa e solidária. De certa maneira, a solidariedade implica igualmente abertura
12
Idem.
MORAES, Maria Celina Bodin de. O princípio da solidariedade. In: Na medida da pessoa humana,
estudos de direito civil-constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2010, p. 247.
13
115
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
social, transparência, coparticipação na construção das atividades estatais, as quais
atinjam direta ou indiretamente todos os cidadãos. É exatamente essa a concepção de
Peter Haberle.
4. INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL ABERTA COM EXTENSÃO DO
PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA SOLIDARIEDADE
O reconhecimento do princípio constitucional da solidariedade dentro do
complexo quadro social traz implicações relevantes no sentido de moldar as estruturas
de poder para a coparticipação dos cidadãos no processo de construção de uma
“sociedade aberta, livre, justa e solidária”. Admitir esta realidade social igualmente
implica comprometer os velhos alicerces sobre os quais repousa a hermenêutica
positivista, proporcionando espaço amplo à construção de uma hermenêutica voltada à
concretização dos direitos e garantias fundamentais.
Em face da necessidade de concretização de direitos fundamentais, bem como
de construção de uma cidadania solidária, a jurisdição se encontra em meio a um duplo
choque dos campos político e jurídico. A demanda por maior coparticipação dos
cidadãos igualmente decorre da complexidade das questões as quais são levadas ao
judiciário. A legitimação do judiciário passa por uma renovação a partir da necessidade
de ampliação do debate público acerca das matérias mais relevantes e que atingem
direta ou indiretamente a todos.
Diante da condensação de forças sociais que permeiam a estrutura políticosocial, Peter Haberle tenta empreender uma nova maneira de compreender de forma
ampla, o processo de abertura democrática em um quadro social complexo pós-moderno
e pluralista de uma sociedade a qual demanda efetividade constitucional a partir do
reconhecimento de seus valores e anseios, não apenas como componentes reflexos, mas
como elementos integradores da prática jurisdicional de interpretação e decisão com
efeitos vinculantes. Este é o fator fundamental da teoria de Haberle.
Peter Haberle intenta compreender de que modo a dinâmica das forças sociais
se consubstancia em fator preponderante na interpretação do texto constitucional. Assim
116
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
conforme sua perspectiva, não somente a Constituição perfura a estrutura social, mas
sua efetividade é em muito, determinada por ela.
Conforme visto, é a partir do princípio constitucional da solidariedade, previsto
no artigo 3º da CF, como elemento integrante dos valores centrais para a construção de
uma cidadania ativa, dentro do reconhecimento da pluralidade social, é que deve as
instituições se direcionar para o progresso e desenvolvimento social. E como princípio
inequivocamente constitucional que é, a solidariedade deve ser reconhecida e efetivada
não apenas pela esfera governamental, em suas políticas públicas de inclusão social e
crescimento econômico, mas permear todas as esferas de poder, incluindo o poder
judiciário, em sua forma de interpretar e decidir.
Sobre Haberle, anota Gilmar Ferreira Mendes:
Häberle anota que não existe norma jurídica, senão norma jurídica
interpretada, ressaltando que interpretar um ato normativo nada mais é do
que coloca-lo no tempo ou integrá-lo na realidade pública (...) Portanto, o
processo constitucional torna-se parte do direito de participação
democrática. O peculiar significado da proposta de Häberle para uma
democratização da interpretação constitucional, ou se quiser, para a
hermenêutica constitucional da sociedade aberta.14
Ao anotar que “interpretar um ato normativo nada mais é do que colocá-lo no
tempo ou integrá-lo na realidade pública” e que “o processo constitucional torna-se
parte do direito de participação democrática”, deixa-se claro a interpretação
constitucional deve ser reconhecida dentro de uma perspectiva de participação ativa do
cidadão; isto é reconhece-se efetividade ao princípio da solidariedade igualmente à
atividade jurisdicional. Solidariedade como coparticipação ativa dos cidadãos na
construção de uma sociedade, bem como nas instituições que a modelam, inclusive
interpretando a norma constitucional.
Pela aplicação do princípio constitucional da solidariedade, é forçoso rechaçar por
outro lado a ideia de poderes institucionais herméticos, presos a procedimentos formais.
A ideia de uma interpretação rígida e lógico-sistemática de normas perde espaço em
prol de uma vinculação potencial às forças sociais, as quais condensam seus anseios e
14
HÄBERLE, Peter. Hermenêutica Constitucional. A sociedade aberta dos intérpretes da
Constituição: contribuição para uma interpretação pluralista e procedimental da Constituição.
Tradução: Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Editora Sérgio Antônio Fabris, 1997. p.9
117
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
valores de modo a ampliar a interpretação a um infindável número de critérios jurígenos
ou ajurígenos (técnico-científico, ético, cultural, econômico-social etc.).
Evidentemente que ao propugnar por uma dinâmica interpretativa pluralista e
aberta, Haberle não quer significar qualquer espécie de desordem ou anarquia. Haberle
reconhece a existência de duas formas de interpretação: em sentido lato ou estrito.
Ambas tem seu grau de relevância reconhecido por Haberle, embora considere que a
interpretação jurisdicional técnica deva subsistir como sendo a interpretação definitiva.
Destarte, a interpretação lata é aquela decorrente da condensação das forças
sociais, fruto do amplo debate e repercussão sociais geradas em torno da quaestio juris .
Paulo Bonavides ao se referir à interpretação lata anota que:
(...) A interpretação da Constituição nessa acepção lata é realmente
“interpretação”, visto que serve de ponte para ligar o cidadão, como
intérprete ao jurista, como hermeneuta profissional. Com isso se faz
juridicamente relevante a interpretação viva do cidadão em face daquela que
compreende, por via cognitivas e racionais o jurista habilitado, a primeira
impessoal, a segunda, exercida consciente e personalizadamente.15
A interpretação lata portanto reflete as bases do amplo debate, dos valores e forças
sociais as quais gravitam em torno da matéria sub judice, ao passo que a interpretação
estrita é a estritamente jurídica, reflexo do trabalho técnico-profissional do magistrado,
estudioso do Direito. Isto não quer dizer porém, que interpretação na acepção lata não
seja técnica e nem jurídica, apenas que não seja produzida exclusivamente no campo
institucional do poder judiciário. Haberle deixa claro que faz parte da interpretação na
acepção ampla, a manifestação de opiniões de juristas, mas somente daqueles não
envolvidos com a decisão.
Assim sendo, na perspectiva Haberliana, a Constituição não pode ser reputada
como um conjunto de normas técnicas, mas um produto oriundo de um complexo
cultural, o qual demanda a coparticipação ativa de todos os cidadãos.
É imprescindível contudo, considerar que Haberle projeta o mundo da cultura
como sendo um conceito multifuncional, abrangendo a realidade social em seus
múltiplos aspectos. Assim, ao pensar a cultura, Haberle a compreende como a totalidade
15
BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 21 ed. São Paulo: Mallheiros, 2007. p. 510
118
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
dos aspectos da vida cultural, os quais complementam a vida jurídica. Para Haberle a
cultura deve passar por uma espécie de prisma de projeções de modo a concebê-la sob
múltiplos aspectos. Primeiro ele enfatiza o prisma histórico, o qual diz respeito às
tradições, cultivadas por determinado meio social. Em segundo a cultura é vislumbrada
sob o aspecto normativo, das regras de convivência social, incluindo aí seus valores e
ideais de conduta individual e social. O terceiro prisma é o psicológico. Trata-se da
cultura como simbologia projetada pelo consciente coletivo. E o quarto é a cultura sob o
prisma estrutural, como modelo de organização, como produto social.
Percebe-se claramente que a perspectiva conceitual haberliana se projeta em um
contexto multifacetário, de modo a tentar compreender a cultura como a síntese de um
complexo de experiências sociais, as quais determinam a vivência do indivíduo no
âmbito social.
Tal aspecto multifacetário projetado por Haberle possui igualmente implicações
no contexto jurídico-constitucional, afetando de modo determinante as esferas pessoais
tanto no plano individual, no campo dos direitos e garantias fundamentais do indivíduo,
no plano coletivo, ou institucional, bem como no plano corporativo referindo-se ao
exercício da cidadania.
Em sendo a Constituição um produto cultural, isto refletindo uma multiplicidade
de aspectos da vida social, a jurisdição constitucional integra-se em um processo
hermenêutico de larga amplitude. Haberle concebe uma polarização entre o aspecto
jurídico-normativo e o jurídico-cultural da Constituição, de modo que ora ela é
ordenadora da ordem social, ora ordenada por esta. A implicação deste entrechoque é
muito clara e insofismável: O processo de sedimentação da ordem normativa da
Constituição é determinada pela variável cultural em seus múltiplos aspectos, de modo
que as vicissitudes alteram significativamente as possibilidades interpretativas no plano
espácio-temporal.
A compactação multifacetária do contexto cultural, conforme concebido por
Haberle, se integra decisivamente ao processo político, o qual não se desvincula da
interpretação constitucional, mas ao contrário: dá início à formatação de diversas
manifestações ideológicas, as quais servirão de base para a implementação de um
processo hermenêutico complexo e variado.
119
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
A efetividade normativa da Constituição não se desvincula da multiplicidade do
contexto cultural na qual está inserida. Contudo, o fato de configurar-se como produto
de uma realidade complexa, não significa afirmar que o elemento normativo não
interage de modo a consolidar sua força ordenadora. O que Haberle quer dizer é que
uma Constituição desvinculada da realidade cultural é vazia, e uma Constituição sem
força normativa é apenas uma simbologia sociocultural.
Não há como conceber, segundo Haberle, independência ou autonomia existencial
à Constituição como norma, assim como não há como conceber existência autônoma à
Constituição como cultura.
Percebe-se em Haberle uma dessacralização da figura do técnico-burocrata,
intérprete de ofício, em prol de um solidarismo interpretativo de base amplamente
democrática. Trata-se do processo de integração político-democrática estendido à esfera
do poder jurisdicional.
É certo assim, que tal dessacralização dos elementos de substancialização da
ordem constitucional exclusivamente na perspectiva técnica igualmente se impõe por
uma projeção do princípio da solidariedade constitucional, pois o reconhecimento e
aceitação da pluralidade não pode apenas se restringir a um aspecto de desenvolvimento
de políticas públicas, mas igualmente ao reconhecimento aos indivíduos de participarem
ativamente na construção normativa da Constituição que rege a vida social.
Como princípio constitucional que é, conforme acima demonstrado, a
solidariedade deve ter máxima efetividade, de modo a assegurar máxima amplitude. Em
assim sendo, a coparticipação ativa dos cidadãos no processo de integração
hermenêutica da norma que encerra a multiplicidade cultural da vida social insere-se
perfeitamente na projeção que deve ser conferida ao princípio constitucional da
solidariedade estampado no artigo 3º da CF.
Solidariedade implica abertura, implica reconhecimento e aceitação de todos
como potencialmente aptos a consolidarem suas visões no processo de integração
hermenêutica da norma constitucional. A limitação jurídico-funcional em prol de uma
abertura favorável ao desenvolvimento do espaço público.
120
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
A solidariedade projetada no âmbito da democracia vai além da questão eleitoral e
de representação política, pois se desenvolve através de um amplo processo de
participação pública em todas as esferas de poder. Neste particular, é o próprio Peter
Haberle:
Povo não é apenas referencial quantitativo que se manifesta no dia da
eleição e que, enquanto tal, confere legitimidade democrática ao processo de
decisão. Povo é também um elemento pluralista para a interpretação que se
faz presente de forma legitimadora no processo constitucional [...] e sua
competência objetiva para a interpretação constitucional é um direito da
cidadania.16
Assim sendo, na perspectiva democrática de Haberle, busca-se a canalização do
potencial de cada cidadão na construção de uma Constituição a qual atenda os anseios
sociais. Tal concepção, contrariamente ao que se poderia imaginar à primeira vista, não
compromete a unidade das normas constitucionais, mas consolida seu fortalecimento na
medida em que as decisões jurisdicionais passam de certo modo pelo crivo da esfera
pública. O que ocorre em realidade é o fortalecimento da natureza constitucional da
decisão tomada em harmonia com o princípio constitucional da solidariedade, fazendo
com que a lei exprima objetivamente os aspectos sociais a que está destinada a realizar.
É possível plenamente vislumbrar na prática tal concepção pluralista no âmbito da
própria jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, conforme aponta Gilmar Mendes:
A influência do professor Häberle também pode ser notada no âmbito do
Supremo Tribunal brasileiro. Nesse sentido, em julgamento deste tribunal, o
voto do eminente Ministro Celso de Mello em questão de ordem na ADIn nº
2.777, em novembro de 2003, afirmou a possibilidade da sustentação oral de
terceiros admitidos no processo de ação direta de inconstitucionalidade, na
qualidade de amicus curiae. Sua argumentação foi inteiramente compatível
com a orientação de Peter Häberle que, “não só defende a existência de
instrumentos de defesa da minoria, como também propõe uma abertura
hermenêutica que possibilite a esta minoria o oferecimento de 'alternativas'
para a interpretação constitucional”.17
HÄBERLE, Peter. Hermenêutica Constitucional: a sociedade aberta dos intérpretes da
Constituição: contribuição para a interpretação pluralista a procedimental da Constituição. (Trad.).
Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1997, p. 37.
16
MENDES, Gilmar Ferreira.Homenagem à doutrina de Peter Haberle e sua Influência no Brasil.
Disponível
em:
http://www.stf.jus.br/repositorio/cms/portalStfInternacional/portalStfAgenda_pt_br/anexo/Homenagem_a
_Peter_Haberle__Pronunciamento__3_1.pdf > acesso em 05.mar.2013.
17
121
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
Eis um exemplo claro e nítido de projeção do princípio constitucional da
solidariedade no campo da interpretação da norma jurídica. O reconhecimento da
necessidade de abertura de espaço de defesa daqueles que são reconhecidamente
minoria com uma dificuldade natural de exercício de seus próprios direitos.
Desta feita, Peter Haberle procura desenvolver uma concepção renovadora a partir
da complexidade cultural da sociedade contemporânea, concebendo dentro do âmbito de
uma pluralidade democrática, o reconhecimento do potencial de cada cidadão de influir
na esfera do poder de decisão jurídica.
Trata-se de um processo de democratização interpretativa a partir da
dessacralização da função técnica-burocrática, a qual se fecha na representação de
interesses e fica mais vulnerável influências de campos específicos de poder. Neste
sentido, pondera Monica Leal:
Segundo ele, até hoje a teoria da interpretação constitucional sempre se
centrou muito na sociedade “fechada” de intérpretes, fixando seu foco no
aspecto jurídico e formal, em que a interpretação é uma atividade de cunho
predominantemente estatal e institucional. Se o tema quiser ser levado a
sério, no entanto, é preciso que se considerem, igualmente, a formação e a
realidade constitucionais, o que implica, necessária e conseqüentemente, a
formação de um amplo e pluralista círculo de intérpretes, onde cada um
vivencia a norma – cidadão, grupos, órgão estatais – é, também, o seu
intérprete legítimo, direta e indiretamente. Esta viragem, que rompe com a
noção puramente institucional e insere tal atividade numa esfera aberta,
formada por pessoas concretas, é, por seu turno, cunhada por Häberle, como
“personalização” (Personalisierung) da jurisdição e da interpretação
constitucional. 18
Desta maneira, para Haberle, houve sempre uma vinculação a uma arquétipo
interpretativo fechado, nos moldes positivistas ou neopositivistas, a qual conduzia a
uma redução da atividade interpretativa ao trabalho puramente técnico dos magistrados.
Para Haberle uma teoria de interpretação constitucional não pode se restringir ao campo
técnico-jurídico, mas de vê conformar-se a uma realidade sociocultural, definida
conforme os parâmetros delineados pela vivência social.
18
LEAL, Mônica Clarissa Hennig. Jurisdição Constitucional Aberta. Reflexões sobrea Legitimidade
e os Limites da Jurisdição Constitucional na Ordem Democrática. Rio de Janeiro: Lumen Júris, 2007.
pp. 116-117.
122
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
Conforme bem explica Antonio Junqueira de Azevedo, O Direito é um sistema de
2º ordem por se situar em função do sistema maior que é o sistema social:
Com a ideia de sistema de 2º ordem, o Direito incorpora-se a toda vida
social, o sistema maior, e passa a se justificar não somente pela lei do maior
número, mas via interpretação, por todo um processo de argumentação
“sensível à verdade”, no dizer de Habermas, - que preferimos dizer
“processo de argumentação sensível ao que é socialmente útil” – dano mais
legitimidade à própria Constituição e às leis em geral.19
E é exatamente a este “processo de argumentação sensível ao que é socialmente
útil” que era levado em conta na teoria interpretativa de Peter Haberle. A vivência da
norma implica, segundo sua posição, sua interpretação ou cointerpretação.
Conforme bem aponta Paulo Bonavides, “a democracia de Haberle, sensível a
uma espécie de metodologia tópica concretista, a que serve de escudo, não é a do povomassa, absoluto, possuidor de um novo gênero de Direito divino, mas a do povo
cidadão”20.
Em Haberle pode-se afirmar que são as forças sociais, impulsionadas pela
multiplicidade cultural se constitucionalizam de modo a firmar legitimamente o
conteúdo da própria norma constitucional, de maneira a adequá-la espáciotemporalmente.
5. CONCLUSÃO
O presente artigo procurou demonstrar como a teoria constitucional de Peter
Haberle, em sua tópica, relaciona-se com o princípio constitucional da solidariedade,
estampado no artigo 3º da Constituição.
19
AZEVEDO, Antonio Junqueira de. O Direito ontem e hoje. Crítica ao neopositivismo
constitucional e à insuficiência dos direitos humanos. In: Revista do Advogado. Ano XXVIII,
Set/2008, nº99, p. 13.
20
BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 21ª ed. São Paulo: Mallheiros, 2007.
p. 515.
123
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
O princípio constitucional da solidariedade relaciona-se diretamente com a
dignidade da pessoa humana, consistindo no real valor do próximo como ser humano e
como cidadão, apto a participar ativamente dos processos de decisão de poder em todas
as esferas do Estado e não apenas no campo político-eleitoral.
A concepção de Haberle é inequivocamente uma concepção sociológica de teoria
interpretativa, na medida em que reconhece cada indivíduo como um intérprete
potencial da Constituição. Contrariamente à concepção positivista, Haberle defende a
ideia de que a norma constitucional não possui realidade jurídica autônoma e que sua
legitimação deve necessariamente passar pelo amplo debate da matéria posta em juízo.
Em segundo lugar, pode-se concluir que é do entrechoque técnico-jurídico e
sociocultural é que norma constitucional se estabelecerá legitimamente como controle
social. Trata-se da dessacralização da função técnico-burocrática na condução do
processo de construção da interpretação da norma constitucional, em prol da projeção
do princípio da solidariedade ao reconhecimento de coparticipação do cidadão na
construção de decisões judiciais.
Esta dialética haberliana é compreendida na perspectiva de uma projeção do
princípio constitucional da solidariedade, na medida em que permite a ampliação do
foco de discussão da matéria sub judice, ou seja, se reconhece no cidadão o poder de
influência na esfera do poder jurisdicional como parte da legitimação do poder
judiciário.
Solidariedade como princípio constitucional implica necessariamente abertura
democrática, necessariamente o reconhecimento de uma sociedade livre, pluralista e
democrática, apta a exercer influências em todas as esferas de poder, inclusive no
processo de construção de decisões jurídicas acerca da norma constitucional.
A realidade social abrange a realidade jurídica e dela é indissociável. Haberle
concebe o processo de legitimação da norma constitucional como uma simbiose entre
técnica, poder, pluralidade democrática e cultura e a decisão como a síntese destes
elementos.
124
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
E é exatamente esta fusão de elementos situados espácio-temporalmente no
contexto das vicissitudes socioculturais que legitimam o conteúdo da norma
constitucional.
À guisa de conclusão, é igualmente fundamental deixar claro que, em Haberle, a
interpretação não é apenas e tão somente um direito fundamental do cidadão, mas
igualmente um elemento formador da cultural social, na medida em que a norma
constitucional abertamente interpretada é legitimada espácio-temporalmente no âmbito
social.
Conclui-se por derradeiro que o processo de abertura de interpretação
constitucional como extensão do princípio da solidariedade fortalece a unidade
constitucional, na medida em que se reconhecem no processo decisório a incidência de
diversas forças culturais, passando a norma constitucional a refleti-las de diferentes
maneiras em consonância com os aspectos multiculturais formadores da sociedade.
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dever de proporcionalidade. In: Revista de Direito Administrativo 215 (1999): 151179.
125
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
AZEVEDO, Antonio Junqueira de. O Direito ontem e hoje. Crítica ao neopositivismo
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intérpretes da Constituição: contribuição para uma interpretação pluralista e
procedimental da Constituição. Tradução: Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre:
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LEAL, Mônica Clarissa Hennig. Jurisdição Constitucional Aberta. Reflexões sobrea
Legitimidade e os Limites da Jurisdição Constitucional na Ordem Democrática.
Rio de Janeiro: Lumen Júris, 2007.
MENDES, Gilmar Ferreira. Homenagem à doutrina de Peter Haberle e sua
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Brasil.
Disponível
em:
http://www.stf.jus.br/repositorio/cms/portalStfInternacional/portalStfAgenda_pt_br/ane
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acesso
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SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais. 6 ed.Porto Alegre:
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126
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 30 ed. São Paulo:
Malheiros, 2008.
127
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
A ÚNICA DECISÃO EM RONALD DWORKIN
REVISÃO E CRÍTICA
A SINGLE DECISION ON RONALD DWORKIN
REVIEW AND CRITIQUE
MARCUS MAURICIUS HOLANDA1
RESUMO: O estudo tem por escopo a análise da denominada decisão única na perspectiva de Ronald
Dworkin à moderna complexidade das decisões jurídicas, a partir de uma metodologia livre e
exploratória sobre o tema, do tipo bibliográfica, cujo referencial teórico dá-se por intermédio da
inferência de doutrinas especializadas. Enfatizam-se na pesquisa algumas questões sobre o
pragmatismo jurídico na visão de Dworkin e a decisão única ou correta, analisando parâmetros como
proceder a interpretação em determinados casos. Entendendo o modelo do juiz Hércules criado do
Dworkin. A questão das decisões judiciais serem mais justas possíveis dentro da imparcialidade e
integridade dos juízes. Verificando como abordagem de interpretação mais abrangente próxima ao
pragmatismo jurídico. Analisa-se o direito como integridade. Dworkin demonstra que dificilmente
existiram questões sem uma resposta, mas que podem existir casos com a possibilidade de mais de
uma resposta e que a direção a ser seguida pelos juízes devem ser a que mais seja justa dentro dos
parâmetros hermenêuticos. Por último observa-se a adequação da decisão única em face do sistema do
direito comum, de índole dogmática e da complexidade nas soluções dos problemas no mundo
contemporâneo.
Palavras-chave: Hermenêutica jurídica. Argumentação jurídica. Ronald Dworkin
ABSTRACT: The study is the scope of analysis called single decision from the perspective of Ronald
Dworkin complexity of the modern legal decisions, from a free and exploratory methodology on the
subject, like literature, theoretical framework which takes place through the inference specialized
doctrines. Emphasis is on research questions about the legal pragmatism in view of Dworkin and
single decision or correct, analyzing parameters such conduct interpretation in certain cases.
Understanding the model of Dworkin's Judge Hercules created. The issue of judicial decisions are
fairer possible within the integrity and impartiality of the judges. Checking approach as more
comprehensive interpretation of the next legal pragmatism. Analyzes the right to integrity. Dworkin
demonstrates that hardly existed questions without an answer, but there may be cases with the
possibility of more than one answer and that the direction to be followed by the judges to be the most
fair is within the parameters hermeneutic. Finally there is the unique suitability of the decision in the
face of the common law system, the dogmatic nature and complexity of the solutions of the problems
in the contemporary world.
Keywords: Legal Epistemology. Political Science. Ronald Dworkin.
1
Marcus Mauricius Holanda é mestrando em Direito Constitucional pela UNIFOR. É especialista em Direito do
Trabalho e Processual Trabalhista pela Faculdade Christus. Bacharel em Direito pela Universidade de Fortaleza UNIFOR
128
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
INTRODUÇÃO
Ao analisar algumas obras de Ronald Dworkin depara-se com algumas questões
hermenêuticas, sobre como o juiz deve decidir casos, dessa maneira Dworkin cria uma técnica
para decisões, assinala a figura de “Hércules” como modelo de juiz onde este detém grande
capacidade, sabedoria com paciência sobre humana, analisando os princípios e regras tendo o
direito como integridade. Dworkin se utiliza do pragmatismo, pois cada interpretação cria
repercursões na prática que altera a sua forma e incentiva uma nova reinterpretação. Entende,
portanto, como um modelo a ser seguido por permitir ao juízes liberdade para mudarem as
regras quando entenderem que a mudança será mais importante.
O tema é de atualidade indiscutível, há questões cruciais a serem discutidas existindo
a necessidade de mergulhar nos conceitos de Dworkin para a melhor compreensão do direito e
sua interpretação nos casos difíceis. Mas então surge a questão, é possível o desiderato de
uma decisão única, para os casos apresentados á tutela jurisdicional? Eis o problema, cujos
objetivos são a compreensão da hermenêutica da decisão única e Ronald Dworkin e a
consideração de sua aplicabilidade em sistemas jurídicos distintos.
Neste mister, a pesquisa é do tipo bibliográfica, em que se administra a revisão de
doutrina especializada, manifestamente da lavra de Ronald Dworkin, e doutrinas de
hermenêutica jurídica afins, sob uma abordagem livre e exploratória sobre a temática, ao que
a pesquisa é divida na seguintes partes.
Na primeira parte contextualiza-se a hermenêutica sobre e sua arregimentação
constitucional, enfatiza-se a problemática do intérprete e a crise da subjetividade em face do
princípio da imparcialidade, e ainda, assinala-se a questão da decisão única para Ronald
Dworkin.
Na segunda parte enfatiza-se o problema da complexidade das decisões e os efeitos
em provimentos monocráticos ou colegiadas à pluralidade jurídica no trato decisório,
sobremaneira na tradição do direito comum.
Na parte terceira avalia-se a teoria da argumentação em Ronald Dworkin, na
concepção e no enfrentamento das questões de Direito, bem com o pragmatismo a que leva a
sua doutrina.
129
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
Por último, algumas considerações, enfatizando-se a problemática desse modelo na
tradição do civil law em que as diversas correntes decisórias se multiplicam na complexidade
do mundo contemporâneo.
1 A INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL E O PROBLEMA DA DECISÃO
ÚNICA NA PRÁXIS JURÍDICA
A hermenêutica é fator fundamental para a correta aplicação das normas jurídicas,
para tanto, é imprescindível que o interprete conheça os mecanismos de abstração de sentido e
alcance da norma jurídica para a melhor aplicabilidade no caso concreto.
É preciso ainda ressaltar que a hermenêutica constitucional ganha destaque na
experiência jurídica contemporânea, para Jorge de Miranda a interpretação segundo a
Constituição significa compreender todo o conjunto, não só analisar a norma legal dentro do
conjunto destas mesmas leis, mas, afirmar-se na supremacia da ordem constitucional:
[...] conceder todo o relevo, dentro do elemento sistemático da interpretação, à
referência à Constituição. Com efeito, cada norma legal não tem somente de ser
captada no conjunto das normas da mesma lei e no conjunto da ordem legislativa,
tem outrossim de se considerar no contexto da ordem constitucional; e isso tanto
mais quanto mais se tem dilatado, no século XX, a esfera de acção desta como
centro de energias dinamizadoras das demais normas da ordem jurídica positiva [...].
(MIRANDA, 2002. p.454)
A Constituição Federal como norma hierárquica superior encontra-se em posição topo
do sistema legal e, portanto todo o fundamento jurídico deve ser buscado em seu bojo. A
supremacia da constituição é elemento de suporte para a análise interpretativa, Luís Roberto
Barroso (1996) assevera que a interpretação constitucional se assenta no pressuposto da
superioridade da Constituição, sendo que nenhum ato ou manifestação possa subsistir se for
incompatível com os ditames constitucionais.
[...] Toda interpretação constitucional se assenta no pressuposto da superioridade
jurídica da Constituição sobre os demais atos normativos no âmbito do Estado. Por
força da supremacia constitucional nenhum ato jurídico, nenhuma manifestação de
vontade pode subsistir validamente se for incompatível com a Lei Fundamental [...].
(BARROSO,1996. p.150)
A interpretação constitucional deve ser realizada de maneira que seja dada a maior
efetividade, dessa maneira o interprete deve avaliar qual norma ou principio será aplicado
130
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
onde possa ter eficácia máxima, Willis Santiago Guerra Filho, nesse mesmo entendimento,
assevera:
[...] Princípio da máxima efetividade, também denominado princípio da eficiência
ou da interpretação efetiva, por determinar que, na interpretação de norma
constitucional, se atribua a ela o sentido que a confira maior eficácia, sendo de se
observar que, atualmente, não mais se admite haver na Constituição normas que
sejam meras exortações morais ou declarações de princípios e promessas a serem
atendidos futuramente [...]. (GUERRA FILHO, 2007, p 73)
Luís Roberto Barroso (1996), explica que os princípios constitucionais são o conjunto
normativo que são o espelho da ideologia da constituição:
[...] são o conjunto de normas que espelham a ideologia da Constituição, seus
postulados básicos e seus fins. Dito de forma sumária, os princípios constitucionais
são as normas eleitas pelo constituinte como fundamento ou qualificações essenciais
da ordem jurídica que institui. (BARROSO, 1996, p.141).
Celso Antônio Bandeira de Mello (2004) afirma que a investigação da norma de
tratamento jurídico discriminatória, tem que se investigar se o que é adotado como critério
discriminatório se há fundamento lógico dentro dos normativos da Constituição:
[...] tem-se que investigar, de um lado, aquilo que é adotado como critério
discriminatório; de outro lado, cumpre verificar se há justificativa racional, isto é,
fundamento lógico, para, à vista do traço desigualador acolhido, atribuir o específico
tratamento jurídico construído em função da desigualdade proclamada. Finalmente,
impende analisar se a correlação ou fundamento racional abstratamente é, in
concreto, afinado com os valores prestigiados no sistema normativo constitucional.
(MELLO, 2004. p.21-22).
Luís Roberto Barroso (2009) afirma que o Judiciário (Supremo Tribunal Federal) é o
guardião da Constituição devendo ser respeitadas os valores e procedimentos democráticos:
O Judiciário é o guardião da Constituição e deve fazê-la valer, em nome dos direitos
fundamentais e dos valores e procedimentos democráticos, inclusive em face dos
outros Poderes. Eventual atuação contramajoritária, nessas hipóteses, se dará a
favor, e não contra a democracia. Nas demais situações, o Judiciário e, notadamente,
o Supremo Tribunal Federal deverão acatar escolhas legítimas feitas pelo legislador,
ser deferentes para com o exercício razoável de discricionariedade técnica pelo
administrador, bem como disseminar uma cultura de respeito aos precedentes, o que
contribui para a integridade, segurança jurídica, isonomia e eficiência do sistema.
Por fim, suas decisões deverão respeitar sempre as fronteiras procedimentais e
substantivas do Direito: racionalidade, motivação, correção e justiça. (BARROSO,
2009, pp 71-91)
Lênio Luis Streck (2007), por sua vez, considera a importância da hermenêutica como
forma de proteção contra as arbitrariedades ou discricionariedades por partes dos juízes:
131
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
A hermenêutica funciona como uma blindagem contra interpretações arbitrárias e
discricionariedades e/ou decisionismos por parte dos juízes. Mais do que isso, a
hermenêutica será antipositivista, colocando-se como contraponto à admissão de
múltiplas respostas advogada pelos diversos positivismos (pensemos, aqui, nas
críticas de Dworkin à Hart). Nesse sentido, lembro que a noção de “positivismo” é
entendida, neste texto e no restante de minhas obras, a partir de sua principal
característica: a discricionariedade que ocorre a partir da “delegação” em favor dos
juízes para a resolução dos casos difíceis (não “abarcados” pela regra). A holding da
discussão encontra-se nas críticas dirigidas à Herbert Hart por Ronald Dworkin, para
quem o juiz não possui discricionariedade para solver os hard cases. Antes de tudo,
trata-se de uma questão de democracia. Entretanto, parece despiciendo acentuar ou
lembrar que a crítica à discricionariedade judicial não é uma “proibição de
interpretar”. Ora, interpretar é dar sentido (Sinngebung). É fundir horizontes. E
direito é um sistema de regras e princípios, “comanda do” por uma Constituição.
Que as palavras da lei (lato sensu) contêm vaguezas e ambigüidades e que os
princípios podem ser – e na maior parte das vezes são – mais “abertos” em termos
de possibilidades de significado não constitui nenhuma novidade. (STRECK, 2007,
p 140)
A importância da hermenêutica para a aplicação da norma jurídica é fundamental para a
correta aplicação, Manuel A. Domingues de Andrade (1987, p. 9) leciona que a ordenação das
regras é incompleta sendo necessário uma complementação que se dá através da
hermenêutica:
[...] a minuciosa ordenação da vida através das regras do direito e dos costumes é
incompleta, necessitando de uma complementação produtiva. Ela precisa de juízo
para avaliar corretamente os casos concretos. Conhecemos essa função do juízo
sobretudo a partir da jurisprudência, campo em que o desempenho jurídico
complementar da ‘hermenêutica’ reside justamente em promover a concreção do
direito. (ANDRADE, 1987, p. 9)
Na mesma direção Konrad Hesse (1991) leciona que a interpretação tem significado
decisivo para que seja consolidado e preservado a força normativa da Constituição. A questão
que ora se apresenta é o enfrentamento na verve de Ronald Dworkin, a saber, a dimensão da
única decisão para o caso concreto, como se passa a delinear a seguir.
1.1 O problema da decisão única na práxis jurídica
Imagine-se um magistrado que assinale o reclame de uma partes da relação jurídica
processual, ao que um dos sujeitos afirme pleitear do juiz um provimento jurisdicional único
para o seu caso, vale dizer, que não albergasse variantes, tampouco, divergências, haja vista
tratar-se de um caso singular, ao que o magistrado perplexo entende explicar que tal fato não
seria possível, porquanto há subjetividade no próprio ato decisório e que este mister é
132
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
diferente para o juiz “x”, bem como para o juiz “y” e, outrossim, para o colegiado de um
Tribunal.
A explicação comum parece razoável, isto é, o de que se deve voltar para um modelo
complexo, cuja pretensão não comporta perspectivas monocráticas, mas pluralistas, na
experiência jurídica contemporânea. Não é essa, porém, a opinião Ronald Dworkin ao afirmar
ser possível uma decisão única para cada caso concreto.
1.2. A imparcialidade hercúlea de Dworkin
A pergunta que todo jurista deve fazer é: como devo proceder para resover certo
problema juridicamente? Muito embora não se encontre uma resposta definitiva para os
problemas.
Esta pergunta parece, um tanto óbvia na terceira asservita, ou seja, de que problemas
jurídicos merecem uma resolução jurídica, por sinal, tautológica. Mas isto não é tarefa fácil, é
um problema recorrente que as instâncias de validade jurídica não podem solucioná-la senão
através de valores, e valores demandam uma multiplicidade de saberes que faz com que o
Direito se torne pluridimensional.
Como, pois, demarcar um limite para que um magistrado não julgue questões que lhe
tenham interesses diretos e indiretos, de vez que isto feriria largamente o princípio da
imparcialidade?
Mas o que vem a ser imparcialidade? Para Dworkin (2003. p. 271-272) “o princípio
judiciário de integridade instrui os juízes a identificar direitos e deveres legais, até onde for
possível, a partir do pressuposto de que foram todos criados por um único autor - a
comunidade personificada -, expressando uma concepção coerente de justiça e equidade.”
A imparcialidade em um direito como integridade deve ter as proposições jurídicas
derivadas de princípios de justiça e equidade juntamente com
o devido processo legal,
oferecendo portanto, uma interpretação mais justa e consequntemente imparcial.
O direito como integridade é tanto o produto da interpretação abrangente da prática
jurídica quanto sua fonte de inspiração. O programa que apresenta aos juízes que
decidem casos difíceis é essencialmente, não apenas contingentemente,
interpretativo; o direito como integridade pede-lhes que continuem interpretando o
mesmo material que ele próprio afirma ter interpretado com sucesso.( DWORKIN,
2003, p. 273)
133
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
A integridade e a imparcialidade deve ser o sustentáculo de aplicação do Direito e
coerente, justa e imparcial. Dworkin entende que existem, ideais para serem buscados, tais como, os
ideais de uma estrutura política imparcial com justa distribuição de recursos com as mesmas
oportunidades:
Os ideais de uma estrutura política imparcial, uma justa distribuição de recursos e
oportunidades e um processo eqüitativo de fazer vigorar as regras e os regulamentos
que os estabelecem. Para ser breve, vou chamá-los de virtudes da eqüidade, justiça e
devido processo legal adjetivo. (DWORKIN, 2003, pp. 199-200)
Deve-se compreender que a moralidade exigida do Estado e da comunidade deve tomar
como partida um conjunto único e coerente de princípios:
a integridade torna-se um ideal político quando exigimos o mesmo do Estado ou da
comunidade considerados como agentes morais, quando insistimos em que o Estado
aja segundo um conjunto único e coerente de princípios mesmo quando seus
cidadãos estão divididos quanto à natureza exata dos princípios de justiça e eqüidade
corretos.(DWORKIN, 2003, p. 200)
Dworkin faz a distinção das formas de integridade: a integridade na legislação que restringe
o que os legisladores podem fazer e a integridade na deliberação judicial fazendo com que seja
possivel descobrir normas implcitas dentro das normas explicitas .
A primeira restringe aquilo que nossos legisladores e outros partícipes de criação de
direito podem fazer corretamente ao expandir ou alterar as normas públicas. A
segunda requer que, até onde seja possível, nossos juizes tratem nosso atual sistema
de normas de modo a descobrir normas implícitas entre e sob as normas explícitas.
(DWORKIN, 2003, pp. 201-260)
A importancia de imparcialidade e da integridade se torna muito importante, Dworkin,
nos mostra a importancia e a complexidade de como as decisões judiciais podem afetar a vida
da comunidade: Nesse sentido:
Os processos criminais são os mais temidos de todos, e também os mais fascinantes
para o público. Mas os processos civis, nos quais uma pessoa pede que outra
indenize ou ampare por causa de algum dano causado no passado ou ameaça de
dano, têm, às vezes, consequências muito mais amplas que a maioria dos processos
criminais. A diferença entre dignidade e ruína pode depender de um simples
argumento que talvez não fosse tão poderoso aos olhos de outro juiz, ou mesmo o
mesmo juiz no dia seguinte. As pessoas frequentemente se vêem na iminência de
ganhar ou perder muito mais em decorrência de um aceno de cabeça do juiz do que
de qualquer norma geral que provenha do legislativo” (DWORKIN, 2003. p 03).
134
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
Dworkin para demonstrar que em determinados casos era necessário a imparcialidade e
principamente a integridade do interprete criuo o modelo de juiz o qual denominou de
“Hércules” com capacidade e outros atributos sobre humanos:
Podemos, portanto, examinar de que modo um juiz filósofo poderia desenvolver, nos
casos apropriados, teorias sobre aquilo que a intenção legislativa e os princípios
jurídicos requererem. Descobriremos que ele formula essas teorias da mesma
maneira que um árbitro filosófico construiria as características de um jogo. Para esse
fim, eu inventei um jurista de capacidade, sabedoria, paciência e sagacidade sobrehumanas, a quem chamarei de Hércules (DWORKIN, 2002, p. 165).
Dworkin ao criar as caracteristicas de “Hércules” desejava não só criar possíveis teorias,
mas para que essas fossem testadas para que fossem elaborados conceitos “quando o poder de
discriminação desse teste estiver exaurido, ele deverá elaborar os conceitos contestados que a
teoria exitosa utiliza.” (DWORKIN, 2002, p. 168)
Ao decidir um caso difícil Hércules sabe que os outros juízes decidiram casos que,
apesar de não guardarem as mesmas características, tratam de situações afins. Deve,
então, considerar as decisões históricas como parte de uma longa história que ele
deve interpretar e continuar, de acordo com suas opiniões sobre o melhor andamento
a ser dado à história em questão. Hércules adota o direito como integridade, uma vez
que está convencido de que ele oferece tanto uma melhor adequação quanto uma
melhor justificativa da prática jurídica como um todo (LAGES, 2001, p. 47).
Dworkin refere-se ao juiz como um romancista, pois este deve ler tudo que foi realizado
no passado por outros juízes para que além de descobrir o que já foi feito, chegar a uma
opinão para que possa formular decsões futuras:
Cada juiz, então, é como um romancista na corrente. Ele deve ler tudo o que outros
juízes escreveram no passado, não apenas para descobrir o que disseram, ou seu
estado de espírito quando o disseram, mas para chegar a uma opinião sobre o que
esses juízes fizeram coletivamente, da maneira como cada um de nossos romancistas
formou uma opinião sobre o romance escrito até então. Qualquer juiz obrigado a
decidir uma demanda descobrirá, se olhar nos livros adequados, registro de muitos
casos plausivelmente similares, decididos há décadas ou mesmo séculos por muitos
outros juízes, de estilos e filosofias judiciais e políticas diferentes, em períodos nos
quais o processo e as convenções judiciais eram diferentes. Ao decidir o novo caso,
cada juiz deve considerar-se como parceiro de um complexo empreendimento em
cadeia, do qual essas inúmeras decisões, estruturadas, convenções e práticas são a
história; é seu trabalho continuar essa história no futuro por meio do que ele faz
agora. Ele deve interpretar o que aconteceu antes porque tem a responsabilidade de
levar adiante a incumbência que tem em mãos e não partir em alguma nova direção.
(DWORKIN, 2001, p. 283)
Dessa maneira Dworkin, dentro de complexa estrutura da interpretação jurídica cria a figura de
“Hércules” juiz imaginário, com capacidades sobre-humanas e este aceita o direito como integridade.
135
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
Dworkin mostra que “Hércules” não é um ativista, pois este vai recusar a substituir o seu julgamento
quando observar que não são questões de princípio:
Vai recusar-se a substituir seu julgamento por aquele do legislador quando acreditar
que a questão em jogo e fundamentalmente de politica, e não de principio, quando o
argumento for sobre as melhores estratégias para satisfazer inteiramente o interesse
coletivo por meio de metas, tais como a prosperidade, a erradicação da pobreza ou o
correto equilíbrio entre economia e preservação. (DWORKIN, 2003, pp. 474-475).
Dworkin explica que “Hércules” como modelo ideal na condição sem ser o ser pefeito:
O leitor entenderá agora por que chamei nosso juiz de Hércules. Ele deve construir
um esquema de princípios abstratos e concretos que forneça uma justificação
coerente a todos os precedentes de direito costumeiro e, na medida em que estes
devem ser justificados por princípios, também um esquema que justifique as
disposições constitucionais e legislativas. (DWORKIN, 2002, p. 182).
Dworkin ao criar “Hércules” o colocou em um patamar de “semi-deus” pois a sua finalidade era
de criar um sistema de tomadas de decisões baseada na minimização de erros (DWORKIN, 2002, p.
203).
1.3 Da decisão única ou correta
Dworkin demonstra que a busca por um conceito de Direito que tenha capapcidade de
refletir as práticas da sociedade sob a melhor interpretação.
Juízes devem decidir o que é o direito interpretando o modo usual como os outros
juízes decidiram o que é o direito. Rejeitamos o convencionalismo, que considera a
melhor interpretação a de que os juízes descobrem e aplicam convenções legais
especiais, e o pragmatismo, que encontra na história dos juízes vistos como
arquitetos de um futuro melhor, livres da exigência inibidora de que, em princípio,
devem agir coerentemente com os outros. (DWORKIN, 2003, p. 488-489).
A questão da única resposta pode ser vista de maneira que o juiz tem que decidir, dessa
forma entende ser dificil encontrar casos sem nehuma resposta correta. Dessa maneira
Dworkin afirma que parece ser dificil em casos jurídicos a não existir respostas certas:
Questão, portanto, de se existem casos sem nenhuma resposta certa em um
determinado sistema jurídico – e se tais casos são raros ou numerosos – não é uma
questão empírica comum. Acredito que tais casos, se é que existem, devem ser
extremamente raros nos Estados Unidos e na Grã-Bretanha. Alguém que conteste
isso [não] terá êxito se tentar encontrar exemplos efetivos de casos sem nenhuma
resposta certa numa investigação, caso a caso, dos relatos jurídicos. Cada relato de
caso contém um parecer sustentando que, na comparação, um lado tem o melhor
argumento no debate jurídico. .... O argumento de que estou errado, portanto, deve
ser um argumento filosófico. Deve contestar minha suposição de que um sistema
136
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
jurídico complexo e abrangente é improvável que duas teses difiram a ponto de
exigir respostas diferentes em algum caso e, ainda assim, adequar-se igualmente
bem ao conteúdo jurídico relevante. Deve fornecer e defender alguma ideia de
ceticismo, ou de indeterminação na teoria moral, que torne plausível supor que
nenhuma de tais teorias pode ser preferida em detrimento da outra com base na
moralidade política. Não acho que tal argumento tenha sido fornecido, apesar de
certamente não ter demonstrado que isso seja impossível (DWORKIN, 2005, p. 215)
Dworkin defende que possam existir casos sem resposta correta, mas que são muitos
dificeis, afirma que podem ocorrer casos onde existem duas respostas, mas que o juiz deve
usar da discricionaridade para decidir qual se ajusta melhor as condições apresentadas
devendo se utilizar dos princiio da integridade do direito. Nesse sentido:
Ao postular a teoria da única e melhor decisão possível, é o duplo dever de
evidenciar e fundamentar as convicções morais forçosamente subjacentes a qualquer
decisão judicial com base em princípios. (MARTINS, 2006. p 282)
.
Dworkin,nesse sentido argumenta:
Muitas pessoas, que agora tenho em mente, dizem-me que não existe uma única
resposta correta para essas questões tão difíceis com as quais a Suprema Corte lida.
Eu, então, indago: por que isso? E falo sobre a interpretação, de como ela relaciona
Direito, moral e política. E, aí, os alunos respondem: ‘Arra! Bem que nos dissemos.
Pois agora você diz que o Direito depende de justiça e todos sabem que a justiça é
apenas subjetiva’. Então indago a eles: vocês têm uma opinião formada a respeito do
aborto enquanto questão moral? Aí cada um tem uma opinião diferente. Muitos
dizem: ‘O aborto é um crime. ’ A maioria costuma dizer; ‘A legislação antiaborto é
tirânica’. E eu digo: vocês efetivamente acreditam nessas opiniões? E eles
respondem: ‘Claro que sim, inclusive vou participar de uma passeata esta tarde
carregando faixas defendendo essas opiniões’. Replico: ‘Mas vocês disseram que
não existe uma resposta correta em matéria política, que esta não passa de uma
questão de opinião... ’ Aí então eles pensam e respondem: ‘Ah, mas essa é a minha
opinião. ’ Bem, a contradição é evidente, não é mesmo? Com certeza é logicamente
possível assumir uma posição absolutamente cética sobre o aborto, ou sobre
qualquer outra matéria referente à justiça política ou social. Mas aí é preciso que
você desista de sua opinião pessoal. E a maioria das pessoas confrontadas com essas
questões vão preferir desistir da filosofia ruim a deixar de sustentar intensamente
suas convicções. (DWORKIN, 1997. p 70-71)
Lênio Luiz Streck que as decisões são o maior desafio, pois como se chegar a uma
resposta correta sem a ntrferencia dos decisionismo, atvismos, como tranformar a constituição
em um direito fundamental com resultados:
Trata-se, pois, de entender que, se o primeiro problema metodológico – como se
interpreta – tem uma resposta que está fundamentada na superação do paradigma
representacional, em que não mais cindimos interpretação de aplicação, o segundo –
como se aplica – parece bem mais difícil de resolver, isto é, aqui se trata de dar uma
resposta talvez ao maior desafio do direito nestes tempos de pós-positivismo: como
137
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
evitar decisionismos, ativismos, etc, e alcançar uma resposta correta (adequada
constitucionalmente) em cada caso. Ou seja, como transformar a Constituição – e a
sua interpretação – em um direito fundamental do cidadão, no sentido de que o
resultado dessa interpretação não seja fruto de um sujeito solipsista ou dependente
de métodos igualmente elaborados a partir do (velho) paradigma representacional.
Este é o cerne da discussão hermenêutica.. (STRECK, 2007. p 8)
No sentido de que a decisão a ser tomada seja um caso facil ou dificil, Streck afirma que
tudo depende da pré-compreensão do interprete, pois o que seria fácil para alguns poderá ser
considerado difícil para outros:
O problema de um “caso” ser fácil (easy) ou difícil (hard) não está nele mesmo, mas
na possibilidade – que advém da pré-compreensão do intérprete – de se compreendêlo. Fosse possível distinguir/cindir (a priori) casos fáceis e casos difíceis, chegar-seia à conclusão de que os casos seriam fáceis para determinados intérpretes e difíceis
para outros...! A questão – vista de outro modo – é: fácil ou difícil para quem?
(STRECK, 2007. p 17)
A busca por respostas correta é uma necessidade, Streck, nesse sentido sustenta:
Frente ao estado da arte representado pelo predomínio do positivismo, que sobrevive
a partir das mais diversas posturas e teorias que se sustentam, de um modo ou de
outro, no predomínio do esquema sujeito objeto – problemática que se agrava com
uma espécie de protagonismo do sujeito-intérprete (especialmente juízes e tribunais)
em pleno paradigma da intersubjetividade – penso que, mais do que possibilidade, a
busca de respostas corretas em direito é uma necessidade. (STRECK. 2007, p 22)
2 A HERMENÊUTICA DO PLURALISMO JURÍDICO
O viés pluralista diz respeito às concepções ideológicas que fundamentam as decisões
de direito enfeixados em segmentos que se integram ao sistema jurídico, a qual se levariam
em conta os acertos exógenos em que o jurista se preocuparia em aplicar a norma ao caso
concreto sob certas condições sociais, uma espécie de prestação de contas à sociedade.
Para tanto essas decisões precisam fruir de legitimidade, do contrário a pluralidade há
de ser vista como falaciosa, quando as instituições pluralistas são substituídas por idéias que
aparentam uma pseudocompleição cidadã, mas nada mais seriam que os oportunismos em
detrimento dos interesses fundamentais da sociedade.
138
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
A legitimidade de uma decisão jurídica não está em o intérprete seguir correntes
majoritárias, sob o pretexto da maioria, tampouco decidir-se pelas minoritárias ou incorrer em
voz isolada por mera insurgência ou arbítrio, como a incorrer na tese freudiana, mutatis
mutandis, de que todo grupo minoritário é radical para afirmar-se diferente, porquanto nem
um nem outro promoverá a concreção mais justa do direito se não atentar para a realidade
social e o propósito de reduzir das desigualdades, do contrário fomentar-se-ia um processo de
segregação jurídica,2 às vistas de interesses particularizados ou de concepções políticas
predominantes consoante ainda ao pensamento de Otvio Ianni (2004, pp.179-180): “Há forças
sociais mais poderosas empolgando boa parte dos meios disponíveis e fazendo com que a
imagem de uma vasta desarticulação predomine sobre a integração”.
Tampouco, sob o pseudomanto da neutralidade, exigir-se-ia do jurista que se
esquecesse, renunciasse ou afastasse suas convicções pessoais, sua religião, suas tradições, o
que seria até um contra-senso quando se fala em uma sociedade plural, a pretexto de decisões
estritamente jurídicas. Não obstante, uma decisão contrária ao direito vigente, mas que por
qualquer fonte venha a fazer parte do sistema jurídico, não quer dizer que tal decisão esteja
imune às contestações do grupo social, geralmente, mais contundente que a vigência formal
de uma norma, quando manifestamente o controle social informal não assimile ou não tolere
tal modelo3.
O que não se pode perder de vista, entretanto, é que o jurista em sua ética, em seus
valores, têm inferências simpáticas e empáticas por determinado fim da norma jurídica e neste
caso a exegética finalística estaria impregnada do interesse do jurista no resultado que a
norma possa alcançar. Por mais queira o jurista a imparcialidade dos fins normativos, vale
2
Miguel Reale (1985, p.19): “Nesse sentido particular será lícito afirmar que o modelo jurídico é de natureza
teleológica, sem que isto signifique que sejam os modelos jurídicos engendrados para corresponder a pretensos
fins ou modelos ideais existentes fora da experiência concreta, como protótipos ou arquétipos inhistóricos”.
3
Ascensão (1999, p. 314) na construção de uma perspectiva luso-brasileira do Direito considera: “Em Portugal e
no Brasil o papel da jurisprudência é significativo. Muitas soluções tidas por assentes, nos últimos tempos de
vigência do Código Civil português de 1867, eram de facto muito mais de filiar na jurisprudência que no Código,
a que formalmente se referiam. E o mesmo diremos de muitas das soluções hoje obtidas no Brasil.
Em todo o caso, devemos dizer que a relevância prática da jurisprudência nunca terá sido tão grande como
noutros países. Para isso terá contribuído em Portugal um certo alheamento da doutrina em relação à vida
judiciária, bem como um excessivo individualismo dos nossos julgadores, que têm dificultado a criação de
correntes jurisprudenciais estáveis. A publicação do novo Código Civil diminuiu logicamente o relevo da
jurisprudência civil.
Quanto ao Brasil, há uma excessiva desenvoltura da jurisprudência perante a lei, que por vezes leva a soluções
claramente contra legem. Mas essa tendência não tem levado à proclamação teórica da independência do juiz
perante a lei. E até podemos dizer que essa mesma liberdade jurisprudencial se torna um óbice à formação de
correntes jurisprudenciais estáveis, pois cada juiz facilmente põe de novo tudo em questão, impressionado
sobretudo pelas particularidades do caso concreto.”
139
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
dizer, a manutenção dos resultados pelo próprio objeto dos fins normativos, isso pode
encontrar ou colidir com os interesses do jurista, ao que pode o resultado ser inverso ao de sua
vontade ou um efeito antipático à pretensa materialização simpática ou empática da norma
jurídica. Miguel Reale referindo-se a doutrina inglesa da “Moral da Simpatia”,
manifestamente a Adam Smith, assinala que o ato de julgar é dos mais difíceis porquanto
pressupõe a capacidade de colocar-se na posição do outro, e considera: “O juiz deve ser
imparcial, é certo, mas o acerto de sua decisão depende da capacidade psicológica e digamos
até amorosa de situar-se ‘simpaticamente’ na posição do outro, isto é, das partes em litígio.”
(REALE, 1994, p.142). Neste certame afirma, outrossim, Paulo Albuquerque (2005, p.672)
que a
Dinâmica dos contrários reencontra-se na epistemologia das ciências
contemporâneas na noção de sujeito como medida do real. Quando os sujeitos no
entanto só reconhecem a si mesmos a partir de uma noção idealizada de si mesmos,
como na sociedade contemporânea, a capacidade explicativo-integradora de tal
modelo mostra-se esgotada.
A questão é que as decisões jurídicas são evoluções na vida jurídica, isto é, não estáticos
como os institutos geralmente pacificados ou vinculantes na positividade brasileira.
O problema surge quando determinado grupo jurídico forte, por imposições políticoeconômicas, e, por infeliz, à margem da vida social pluralista, enseja estatalizar as decisões
jurídicas em detrimento de outros manifestamente democráticos, verdadeiro engessamento
dos paradigmas, o que retiraria toda a carga dinâmica das decisões limitando-os objetivamente
no processo criativo do jurista. O que se critica é um corporativismo nefasto de certos grupos
ou de parcelas de grupos que detenham ou controlam o poder e impelem certas decisões
jurídicas em desvantagem de outros. Assim é que Paulo Albuquerque (2005, p.676) considera
o que se deve ter por referente à democracia, vale dizer, a “tradução de fórmulas de
convivência abrangente de relações sociais, o que passa atualmente pela capacidade de
incorporar a dimensão política da individualidade não atomizada, valorizando a autorealização dos indivíduos como expressão da efetividade do direito”.
A assertiva eleva também à questão da democracia, partindo da afirmativa que a
legitimidade como reconhecimento da autoridade que detém o poder de criar normas,
juntamente com o reconhecimento da realização ou produto pela qual se sustenta essa
autoridade, ao que se pode inferir também a preponderância do fator político sobre o jurídico.
140
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
Duas questões então surgem, uma pela qual o jurista não pode afastar-se da realidade
humana, do sujeito comum, mas, sobretudo do sujeito mínimo e singular, para que saiba
também relativizar o interesse das minorias, da particularidade de certos casos e outra, de
finalmente livrar-se da onisciência e onipresença dos grupos centralizadores de cuja sanção
sofrem tais monopolizações nos escândalos e nas insurgências sociais que venham a moralizar
e enfrentar os poderios oponentes.
3. O PROCESSO DE ARGUMENTAÇÃO DA TEORIA: A INTERPRETAÇÃO
EM DWORKIN
Dworkin, em sua obra O Império do Direito explica como analisará o direito, adotando
como ponto de vista interno a do participante que tenta aprender a natureza da argumentação
dentro da própria prática:
Este livro adota o ponto de vista interno, aquele do participante; tenta apreender a
natureza argumentativa de nossa prática jurídica ao associarse a essa prática e
debruçar-se sobre as questões de acerto e verdade com as quais os participantes
deparam. Estudaremos o argumento jurídico formal a partir do ponto de vista do
juiz, não porque apenas os juízes são importantes ou porque podemos compreendêlos totalmente se prestamos atenção ao que dizem, mas porque o argumento jurídico
nos processos judiciais é um bom paradigma para a exploração do aspecto central,
proposicional, da prática jurídica. Os cidadãos, os políticos e os professores de
direito também se preocupam com a natureza da lei e a discutem, e eu poderia ter
adotado seus argumentos como nossos paradigmas, e não os do juiz. Mas a estrutura
do argumento judicial é tipicamente mais explícita, e o raciocínio judicial exerce
uma influência sobre outras formas de discurso legal que não é totalmente recíproca.
(DWORKIN, 2003, p 19)
Dworkin demonstra que a melhor interpretação deriva da pratica jurídica da
comunidade:
Segundo o direito como integridade, as proposições jurídicas são verdadeiras se
constam, ou se derivam, dos princípios de justiça, equidade e devido processo legal
que oferecem a melhor interpretação construtiva da prática jurídica da comunidade.
(DWORKIN, 2003, p 272)
Dessa maneira observa-se que a interpretação repercute e altera a prática, Dworkin,
afirma que dessa maneira alterando a sua forma cria incentivos a uma nova interpretação:
A interpretação repercute na prática, alterando a sua forma, e a nova forma incentiva
uma nova reinterpretação. Assim, a prática passa por uma dramática transformação,
embora cada etapa do processo seja uma interpretação do que foi conquistado pela
etapa imediatamente anterior. (DWORKIN, 2003, p 59)
141
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
Dworkin estabelece a distinção entre as etapas do processo de interpretação
Primeiro, deve haver uma etapa ‘pré-interpretativa’ na qual são identificados as
regras e os padrões que se consideram fornecer o conteúdo experimental da prática.
[...] é preciso haver um alto grau de consenso [...] se se espera que a atitude
interpretativa dê frutos. [...]. Em segundo lugar, deve haver uma etapa interpretativa
em que o intérprete se concentre numa justificativa geral para os principais
elementos da prática identificada na etapa pré-interpretativa. Isso vai consistir numa
argumentação sobre a conveniência ou não de buscar uma prática com essa forma
geral. [...] deve ajustar-se o suficiente para que o intérprete possa ver-se como
alguém que interpreta essa prática, não como alguém que inventa uma nova prática.
Por último, deve haver uma prática pósinterpretativa ou reformuladora à qual ele
ajuste sua idéia daquilo que a prática ‘realmente’ requer para melhor servir à
justificativa que ele aceita na etapa interpretativa. (DWORKIN, 2003, p 19)
4 O PRAGMATISMO JURÍDICO NA CONCEPÇÃO DE DWORKIN
Dworkin demonstra que “o direito de uma comunidade é o sistema de direitos e
responsabilidades que respondem a esse complexo padrão: autorizam a coerção porque
decorrem de decisões anteriores do tipo adequado” (DWORKIN. 2003, p. 116). Afirma que as
concepções do direito aperfeiçoam a interpretação e cada concepção oferece respostas às
perguntas ligadas ao Conceito, onde, portanto, Dworkin as organiza da seguinte forma:
“primeiro, justifica-se o suposto elo entre o direito e a coerção? Faz algum sentido exigir que
a força pública atue somente em conformidade com os direitos e responsabilidades que
decorrerem de decisões políticas anteriores? Segundo se tal sentido existe, qual é ele?
Terceiro que leitura de decorrer – que noção de decisão de coerência é a mais apropriada?
(DWORKIN. 2003, p. 118). Dworkin apresenta três formas de interpretação abstrata da
prática jurídica que elaborou como respostas ao grupo de perguntas. Dessa maneira nomeia
três concepções de “pragmatismo jurídico” “convencionalismo” e o “direito como
integridade” DWORKIN. 2003, p. 118), essas novas concepções são novas em determinado
sentido, mas como afirma “não pretendem exatamente rivalizar com as escolas doutrinárias”.
Dworkin conceitua o pragmatismo jurídico como uma “concepção cética do direito”.
Negando portanto que a comunidade assegure alguma vantagem real ao exigir que as decisões
de um juiz sejam verificadas por qualquer suposto direito dos litigantes à coerência com
outras decisões políticas tomadas no passado Interpretando a prática jurídica no sentido de
que os juízes tomam e devem tomar quaisquer decisões que lhes pareça melhor para o futuro
142
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
da comunidade, ignorando a coerência com o passado como algo que tenha valor em si
mesmo (DWORKIN, 2003, p. 119).
Para Dworkin, o pragmatismo jurídico afirma que as pessoas nunca têm direito a nada, a
não ser à decisão judicial que, ao final, se revelar a melhor para a comunidade como um todo,
sem considerar nenhuma decisão política tomada no passado (2003, p. 180):
O pragmatismo jurídico, afirma que as pessoas nunca têm direito a nada, a não ser a
decisão judicial que, ao final, se revelar a melhor para a comunidade como um todo,
sem considerar nenhuma decisão politica tomada no passado. Portanto, não tem o
direito de que se use o poder coletivo do Estado em seu beneficio, nem de que não
se use contra elas em razão simplesmente do que uma legislatura ou outro tribunal
tenha decidido no passado. Veremos, em poucas palavras, que o pragmatismo e
menos radical do que essa descrição pode fazê-lo parecer, pois, reconhece razoes
estratégicas pelas quais as leis devem ser geralmente aplicadas de acordo com seu
significado manifesto e pretendido, e pelas quais as decisões judiciais anteriores
devem ser normalmente respeitadas nos casos atuais. Do contrario, o governo
perderia seu poder de controlar o comportamento das pessoas, o que sem duvida
viria a piorar a comunidade como um todo. (DWORKIN, 2003, p. 180):
No pragmatismo jurídico, na opinião de Dworkin o pragmatismo cria uma dificuldade
de prever o modo de como irão se comportar os tribunais, mas permite uma liberdade aos
juízes mudarem as regras quando pensarem que a mudança será mais importante:
O pragmatismo torna um pouco mais difícil prever o modo como vão comportar-se
os tribunais nos casos que, do ponto de vista do convencionalismo, são fáceis. Mas o
pragmatismo tem vantagens correspondentes. Deixa os juízes livres para mudarem
as regras quando pensam que a mudança seria - ligeiramente ao menos mais
importante que qualquer mal que a mudança pudesse causar. Também estimula a
comunidade a esperar tais mudanças, e desse modo obtém uma boa parte do
beneficio da mudança sem o desgaste do litigio, ou sem o dispendioso, incerto e
inconveniente processo de criação do direito (DWORKIN, 2003, p. 181)
Como modelo de regime de interpretação Dworkin afirma que se tivessem que escolher
um modelo de interpretação o pragmatismo cria uma dificuldade de prever o modo de como
irão se comportar os tribunais, mas permite uma liberdade aos juízes mudarem as regras
quando pensarem que a mudança será mais importante:
se tivéssemos de escolher uma das duas estratégias para um futuro indefinido, seria
melhor escolher o pragmatismo, que é muito mais adaptável!. Se a estrutura
econômica e social de nossa comunidade se desenvolve de tal modo que,
retrospectivamente, parece que uma estratégia convencionalista teria sido mais
apropriada, então 0 pragmatismo já terá levado modelo dominante de jurisdição
muito próximo do convencionalismo. Pois, tanto os juízes quanto as pessoas comuns
terão percebido que a esfera que deveria ser dominada pela previsibilidade e muito
vasta, e os cidadãos farão seus planos pressupondo que os juízes adotam esse ponto
143
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
de vista e, portanto, não reverterão com frequência a prática jurídica estabelecida. O
contrario, porém, não e verdadeiro. O sistema convencionalista não tem a
capacidade de chegar a nada que se assemelhe a flexibilidade do pragmatismo, pois
qualquer abrandamento envolveria, inevitavelmente, o fracasso da expectativa
publicamente estimulada. Não quero dizer que endosso o pragmatismo. Seus méritos
e defeitos constituem 0 tema do próximo capitulo. Quero apenas oferecer a seguinte
resposta ao argumento da coordenação como um argumento favorável ao
convencionalismo. Se formos tentados a optar pelo convencionalismo com base no
argumento de que oferece uma estratégia aceitável para chegar ao equilíbrio mais
eficaz entre certeza e flexibilidade, devemos então optar pelo pragmatismo, que
parece ser uma estratégia muito melhor. Em resumo, [...] o convencionalismo se
ajusta mal a nossas políticas jurídicas. (DWORKIN, 2003, p. 181 - 182)
A flexibilidade alcançada pelo pragmatismo fornece melhores condições para se chegar
ao equilíbrio dado as condições das políticas jurídicas.
CONCLUSÃO
Na interpretação com o fato primordial às decisões dos juízes, para que a norma
aplicada tenha a melhor eficácia nos casos concretos, Dworkin tenta, assim, delinear questões
de aplicação, pois os juízes, ao se confrontarem a necessidade de tomada de decisões
aplicariam regras, princípios já devidamente analisados como forma de obter a máxima
aplicabilidade da decisão. A hermenêutica funcionaria como uma proteção contra as
interpretações arbitrárias e contra decisionismos jurídicos.
Dworkin analisando o judiciário como integridade onde este deve instruir os juízes a
identificar direitos e deveres partindo do pressuposto de que são criadas pela comunidade com
uma concepção coerente de justiça e equidade, por isso a interpretação jurídica deve ser a
mais justa e imparcial para se chegar ao melhor resultado ou a melhor resposta.
A interpretação, o raciocínio jurídico deve ser um exercício de interpretação
construtiva, de que o nosso direito constitui a melhor justificativa do conjunto de nossas
praticas jurídicas. A integridade e a imparcialidade deve ser a base para a aplicação do Direito
de forma coerente e justa, mas imparcial.
Como criar o modelo de interpretação infalível? Dworkin cria o modelo do juiz
“hércules” com várias qualidades sobre-humanas que aceita o direito como integridade, com
Hércules, Dworkin não cria o ser perfeito, mas deseja o modelo criado seja que as decisões
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
tomas sejam baseadas na minimizaçãos do erros, ou seja a criaçao de um sistema em
constante aperfeçoamento.
O problema da interpretação única, voltada à argumentação de hermenêutica
constitucional monocrática, é arauto da verve dworkiniana, mas é prudente ainda, ressaltar
sob concepção crítica ao longo do trabalho, duas realidades, a saber, a do modelo
consuetudinário, em que se encontra Dworkin e a do direito comum, na tradição do civil law.
REFERÊNCIAS
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no quadro da práxis democrática contemporânea. In: ROCHA, Fernando Luiz Ximenes,
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Sul de Minas – ano XXIII – n. 25 – jul./dez. 2007, p 133 - 154
146
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
AS LIBERDADES DE PENSAMENTO, DE EXPRESSÃO E DE INFORMAÇÃO
VERSUS COMUNICAÇÃO SOCIAL: DIREITOS DA PERSONALIDADE?
Iara Rodrigues de Toledo*
Sarah Caroline de Deus Pereira**
Por que acontece então acreditar-se numa pessoa cujo julgamento merece realmente
confiança?Pela razão de ter mantido o seu espírito aberto à crítica das suas opiniões
e conduta; pela razão de ter sido o seu hábito escutar tudo quanto tenha sido dito em
seu desfavor, aproveitando dessa crítica o que era justo, esclarecendo não só a si
mesma mas, por vezes, aos outros da falácia daquilo que é enganoso; pela razão de
ter sentido que a única maneira de um homem tentar conhecer o fundo de um
problema é escutar o que se diz a respeito do mesmo por pessoas com as mais
diversas opiniões e estudar todas as formas em que o mesmo pode ser considerado
por todas as morais. Nenhum homem douto adquiriu a sua sabedoria doutro modo
senão deste; nem está na natureza do intelecto humano tonar-se sabedor de qualquer
outra forma. JOHN STUART MILL – Da Liberdade de Pensamento e Expressão,
p. 17.
RESUMO: Como, de pronto, deflui-se pela interrogação que finaliza o título do presente
estudo, giza-se a problematização sobre a possível outorga de natureza jurídica de direitos da
personalidade às liberdades de pensamento, de expressão, de informação, e quiçá à
comunicação social, mais precisamente, em outras palavras, à liberdade de imprensa. Frise-se,
ademais, figurarem, todas elas, sob o epíteto de figuras jurídicas de status constitucional. A
reflexão nortear-se-á, a modo de pano de fundo, pelos paradigmas do Neoconstitucialismo, do
Pós-Positivismo e da Pós-Modernidade, numa visão discursiva-jurídica-plúrima na qual
outras ciências sociais, tais como a sociologia, a filosofia, a psicanálise entrelaçam-se num
concerto em prol de uma Ordem Jurídica Justa e da Pacificação Social. Nesse viés, direitos
fundamentais e direitos da personalidade se entrelaçam numa musicalidade afinada ao
princípio-mor da Dignidade da Pessoa Humana, fim último do Direito. Para tanto, adotar-seá o método lógico-dedutivo e as pesquisas legislativa, em diplomas nacionais e internacionais,
doutrinária e jurisprudencial.
PALAVRAS-CHAVE: Liberdades. Comunicação Social. Constituição Federal. Direitos
Fundamentais. Código Civil. Direitos da Personalidade.
FREEDOM OF THOUGHT, OF EXPRESSION AND OF INFORMATION, VERSUS
SOCIAL COMMUNICATION: PERSONALITY RIGHTS?
ABSTRACT: As the interrogation which ends the title of the present study, it describes the
problem about the possible grant of juridical aspect of personality rights concerning freedom
of thought, of creation, of information and expression and maybe social communication,
specifically, in other words, to freedom of the press. It is important to emphasize that all of
them partake under the epithet as juridical figures of constitutional status. The reflection will
Advogada. Ex-Procuradora do Estado de São Paulo. Mestre e Doutora pela Pontifícia Universidade Católica de
São Paulo – PUC/SP. Docente do Programa de Mestrado em Direito do UNIVEM/Marília-SP.
** Mestranda em Teoria do Direito e do Estado, no Centro Universitário Eurípedes de Marília – UNIVEM,
bolsista CAPES. Especialista em Direito e Processo do Trabalho na Universidade Anhanguera-Uniderp.
Advogada. Estágio-docência em Antropologia e Sociologia do Direito. Aluna pesquisadora do grupo: “Bioética e
Direitos Humanos”. Membro do Núcleo de Direitos Humanos e Cidadania de Marília.
*
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be guided by the paradigms of Neo-Constitutionalism, of Post-Positivism and PostModernity, in a multiple-discursive-juridical vision, in which other social sciences, as well as
sociology, philosophy, and psychoanalysis are in favor of a Fair Juridical Order and Social
Pacification. According to this, fundamental rights and personality rights are well connected
regarding the main principle of the Human Being Dignity, the aim of the Right. For this
finality, the logical-deductive method will be followed, and the legislative researches in
national and international diplomas, doctrinarian and jurisprudential.
KEY-WORDS: Freedom. Social Communication. Federal Constitution. Civil Code.
Fundamental Rights. Personality Rights.
1.
INTRODUÇÃO: PÓS-POSITIVISMO; NEOCONSTITUCIONALISMO; PÓS-
MODERNIDADE
Os institutos jurídicos do Pós-Positivismo, do Neoconstitucionalismo e da PósModernidade, põem-se, na figuração de “pano de fundo”, como estruturador e contexto para o
presente artigo.
Para tanto, de pronto, descreve-se as cinco principais teses da doutrina do Positivismo
Jurídico, quais sejam: 1. O direito é constituído de comandos emanados por seres humanos; 2.
Não há conexão necessária entre direito e moral; 3. A tese da relevância da análise dos
conceitos jurídicos e sua diferenciação das pesquisas de cunho histórico ou sociológico; 4. A
tese que considera o direito como sistema fechado de normas; 5. A tese que considera os
juízos morais irracionais, ao contrário dos juízos de fato1.
Contudo, no final dos anos 90, o Positivismo Jurídico, fosse o “exclusivo” de Kelsen,
fosse o “inclusivo ou moderado” de Herbert Hart, sujeitou-se à críticas crescentes e severas
que fizeram surgir uma onda doutrinária denominada “Pós-Positivismo”, que no Brasil foi
desenvolvida por Albert Calsamilia obtendo efetiva recepção, mormente pela sua adoção e
divulgação por Paulo Bonavides na sua obra Curso de Direito Constitucional.Mais à frente,
na compreensão da necessidade de uma nova teoria, a nomenclatura Pós-Positivismo foi
abandonada e substituída por “Neoconstitucionalismo”, de aceitação internacional.2
Conquanto o neologismo “Neoconstitucionalismo”, também denominado de
“Constitucionalismo
de
Direitos”,
“Constitucionalismo
Avançado”
ou
“Paradigma
Argumentativo”, padeça da falta de precisão conceitual, importa realçar que o seu modelo
normativo não é prescritivo ou descritivo, mas axiológico. Seu principal objetivo é a
efetivação dos direitos fundamentais, mormente aqueles de natureza social. Sua base
1
H.l.A Hart Il Positivismo e La Separazione tra Diritto e Morale in Aldo Schiavello Positivismo Jurídico e
Relevância da Metaética, p. 63, 2008.
2
Eduardo Ribeiro Moreira O Momento do Positivismo, p. 236 -238, in Teoria do Direito Neoconstitucional ,p.
236 - 238, 2008.
148
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filosófica é a filosofia analítica e a hermenêutica. A Constituição dirigente, em países
periféricos como o nosso, desempenham a função de realizar as “promessas da modernidade”,
que até agora não se tornaram realidade para parcela significativa da população. Destarte,
ultrapassa os marcos semânticos e passa a exercer uma função normativa, com força cogente
para todos os poderes estabelecidos. Seu objetivo é servir, efetivamente, como “pacto
vivencial da sociedade” em que o conteúdo de seus postulados alcance concretude fática..O
Neoconstitucionalismo é propulsionado pelos seguintes aspectos: a) falência do padrão
normativo que fora desenvolvido no século XVIII, baseado na supremacia do parlamento;
b)influência da globalização; c) pós-modernidade; d) superação do positivismo clássico; e)
centralidade dos direitos fundamentais; f) diferenciação qualitativa entre princípios e regras;
g) revalorização do Direito.3
O sistema jurídico, como um todo, sofre diretamente os impactos e abalos da pósmodernidade em sua configuração, eis a necessária constatação. Sabendo-se tratar de um
sistema que não vive automaticamente, com relação aos demais sistemas (social, cultural,
político, econômico, científico, ético...), é de se dizer que o sistema jurídico recebe
diretamente o impacto das modificações sofridas nas últimas décadas, que acabaram por
produzir profunda desestruturação nos modos tradicionais e modernos de concepção do
mundo. A pós-modernidade é poliforma, plural e multifacetada. Entre o novo (hoje) e o velho
(ontem), entre o insondável do futuro (amanhã), está-se diante de um jogo de incertezas, pois
se vivem os três tempos a um só tempo (passado, presente e futuro, não necessariamente nesta
ordem). A sensação do expectador não é outra senão a de estar dentro de uma sala de
espelhos, sem saber definir ao certo o que é real e o que é ilusório, o que é palpável e o que é
imaginário. Nela, praticamente, tudo é permitido e autorizado, menos proibir e coibir. Há uma
nova lógica, pós-moderna, das relações humanas irrompendo para construir uma consciência
diferente dos modos de organização da sociedade e das interações sociopolíticas. Pode-se
mesmo dizer que uma nova ordem de instituições e valores, fundados na ideia de ecletismo e
do pluralismo, desponta como norte pós-moderno às formas de vida. Esta nova ordem é ainda
um projeto em andamento; a própria pós-modernidade é parcamente consciente de si mesma.
Mais que isso, a pós-modernidade surge como bastião de todos os cinturões ideológicos e
teóricos até então existentes, de modo a não se confundir com nenhum e a não postular
confundir-se com nenhuma tendência reconhecível. O retrato mais exato da pós-modernidade
pode ser dado ao dizer-se que inexiste uma ontologia, uma bandeira ou uma identidade pós3
Walber de Moura Agra Neoconstitucionalismo e Superação do Positivismo, p. 435 - 438.
149
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
moderna, tendo-se em vista sua rebeldia aos paradigmas existentes. Todo este novo arcabouço
de mutações socioculturais redunda num afastamento contínuo da lógica moderna, com a qual
se organizam os esquemas de vida e as formas de juízo (axiológico, estético, político,
científico, cultural...) acerca do mundo4.
A primeira exigência da civilização, portanto, é a da justiça, ou seja, de que a garantia
de que uma lei, uma vez criada, não será violada em favor de um indivíduo. Isso não acarreta
nada quanto ao aspecto ético de tal lei. O curso ulterior do desenvolvimento cultural parece
tender no sentido de tornar a lei não mais a expressão da vontade de uma pequena
comunidade – uma casta ou camada de uma população ou grupo racial -, que, por sua vez, se
comporta como um indivíduo violento frente a outros agrupamentos de pessoas, talvez mais
numerosos. O resultado final seria um estatuto legal para o qual todos – exceto os incapazes
de ingressar em uma comunidade – contribuíram com um sacrifício de seus instintos que não
deixa ninguém – novamente com a mesma exceção – à mercê da força bruta5.
Na sociedade de consumidores, ninguém pode se tornar sujeito sem primeiro virar
mercadoria, e ninguém pode manter segura sua subjetividade sem reanimar, ressuscitar e
recarregar de maneira perpétua as capacidades esperadas e exigidas de uma mercadoria
vendável. A “subjetividade” do “sujeito” e a maior parte daquilo que essa subjetividade
possibilita ao sujeito atingir concentra-se num esforço sem fim para ela própria se tornar, e
permanecer, uma mercadoria vendável. A característica mais proeminente da sociedade de
consumidores – ainda que cuidadosamente disfarçada e encoberta – é a transformação dos
consumidores em mercadoria; ou antes, sua dissolução no mar de mercadorias6 (...).
À luz deste painel introdutório com temáticas tripartidas e que, a modo de vasos
comunicantes, se interpenetram e se complementam, serão refletidas e modeladas as figuras
jurídicas que compõem o título e a problemática do presente estudo.
2.
UM OLHAR SOBRE OS DIREITOS DA PERSONALIDADE EM FACE DOS
DIREITOS FUNDAMENTAIS E DO DIREITO GERAL DE PERSONALIDADE
No Brasil, o Código Civil de 1916, espelhou-se no modelo francês e tão somente
algumas normas referiam-se à especificidades dos direitos da personalidade. Assim no art.
Eduardo C. B. Bittar O Direito na Pós-Modernidade, p. 209 e 160-161, 2009.
Sigmund Freud O Mal Estar na Civilização, p. 102, 1996.
6
Zygmund Bauman Vida para Consumo – A Transformação das Pessoas em Mercadoria, p. 20, 2008.
4
5
150
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666, item X regrava-se o direito à imagem7; no art. 671, parágrafo único, preservava-se o
segredo da correspondência8; os arts. 649; 650, parágrafo único; 651, parágrafo único, e 658 a
resguardarem o direito moral ao autor9,bem como o art. 667 a veicular texto polêmico
permissivo à cessão do direito de ligar o nome à obra, cuja tese dominante interpretou-a como
inválida em face do sistema jurídico por “aberrar o sistema”. Tais dispositivos legais viriam a
ser revogados pela Lei nº 9.610 de 1998, que ficaria conhecida como a lei dos direitos
autorais.
De forma esparsa, sucederam-se outras legislações10, tais como a Lei nº 8.069 de
1998 (Estatuto da Criança); Decreto nº 24.559 de 1934 com vistas à proteção da pessoa e dos
bens dos psicopatas; Lei nº 3.133 de 1957 visando atualizar a adoção do Código Civil; Lei nº
8.560 de 1992 sobre a investigação de paternidade de filhos havidos fora do casamento; lei nº
8.489 de 1992 que se refere ao corpo vivo e o cadáver proibindo qualquer utilização
econômica e só permitindo a disposição do corpo para fins humanitários e terapêuticos no art.
1011; Lei nº 8.501 de 1992 sobre a utilização do cadáver para pesquisas científicas; Lei nº
4.701 de 1965 disciplina a atividade homoterápica e institui a política do sangue humano.
Nessa parte relativa ao sangue também é regida pela Lei nº 6.437 de 1977; Lei nº4.117 de
1962 que rege as telecomunicações, em prol da proteção dos direitos da personalidade; Lei nº
5.250 de 1967 que ao disciplinar a imprensa sanciona abusos contra os direitos da
7
Art. 666, X. Não se considera ofensa aos direitos de autor: (...) X. A reprodução de retratos ou bustos de
encomenda particular, quando feita pelo proprietário dos objetos encomendados. A pessoa representada e os seus
sucessores imediatos podem opor-se à reprodução ou pública exposição do retrato ou busto.
8
Art. 671. Quem publicar qualquer manuscrito sem permissão do autor ou de seus herdeiros ou representantes
será responsável por perdas e danos. Parágrafo único. As cartas missivas não podem ser publicadas sem
permissão dos seus autores ou de quem os represente, mas podem ser juntas como documento em autos
judiciais.
9
Art. 649. Ao autor de obra literária, científica ou artística pertence o direito de reproduzi-la. § 1.º Os herdeiros
e sucessores do autor gozarão desse direito pelo tempo de sessenta anos, a contar do dia do seu falecimento. § 2º
Morrendo o autor sem herdeiro os sucessores, a obra cai no domínio comum. Art. 650. Goza dos direitos de
autor para os efeitos econômicos por este Código assegurados o editor de publicação composta de artigos ou
trechos de autores diversos, reunidos num todo, ou distribuídos em séries, tais como jornais, revistas, dicionários,
enciclopédias e seletas. Parágrafo único. Cada autor conserva, neste caso, o seu direito sobre a sua produção, e
poderá reproduzi-la em separado. Art. 651. O editor exerce também os direitos a que se refere o artigo
antecedente, quando a obra for anônima ou pseudônima. Parágrafo único. Mas neste caso, quando o autor se
der a conhecer, assumirá o exercício dos seus direitos, sem prejuízo dos adquiridos pelo editor. Art. 658. Aquele
que, com autorização do compositor de uma obra musical, sobre os seus motivos escrever combinações ou
variações, tem, a respeito destas os mesmos direitos e com as mesmas garantias, que sobre aquela o seu autor.
Art. 667. É suscetível de cessão o direito que assiste ao autor, de ligar o nome a todos os seus produtos
intelectuais. § 1.º Dará lugar à indenização por perdas e danos a usurpação do nome do autor ou a sua
substituição por outro, não havendo convenção que a legitime. § 2.º O autor da usurpação, ou substituição será,
outrossim, obrigado a inserir na obra o nome do verdadeiro autor.
10
Dados extraídos da obra de Carlos Alberto Bittar, Os direitos da personalidade, p.38-40.
11
Essa legislação revogou o Decreto nº 20.931 de 1932, voltada à área médica e que proibia a esterilização; idem
à Lei nº 4.280 de1963 sobre a extirpação de órgãos, que, igualmente, viria a ser revogada pela Lei nº 5.479 de
1968 sobre a retirada de órgãos e transplantes.
151
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personalidade; Lei nº 7.232 de 1984 regra a informática, visando o sigilo de dados e acesso do
interessado aos registros; Lei nº 9.609 de 1998 específica sobre sofware.
Gilmar Ferreira Mendes, Inocêncio Mártires Coelho e Paulo Gustavo Gonet
Branco12, doutrinam que ganhou alento a percepção de que os direitos fundamentais possuem
uma feição objetiva, que não somente obriga o Estado a respeitar os direitos fundamentais,
mas que também o força a fazê-los respeitados pelos próprios indivíduos, nas suas relações
entre si, e dão seguimento, com estes dizeres:
Ao se desvendar o aspecto objetivo dos direitos fundamentais, abriu-se à inteligência
predominante a noção de que esses direitos, na verdade, exprimem os valores
básicos da ordem jurídica e social, que devem ser prestigiados em todos os setores
da vida civil, que devem ser preservados e promovidos pelo Estado com princípios
estruturantes da sociedade.
Em linguagem límpida, Jorge Miranda13, após escrever14 com rara modéstia, que
“com algum exagero, decerto, chegámos a escrever: os direitos fundamentais são direitos de
personalidade no Direito público; os direitos da personalidade os direitos fundamentais no
Direito privado” professora sobre o discrímen entre os direitos fundamentais e direitos de
personalidade, nestas palavras:
Mas, sobretudo, são distintos o sentido, a projeção, a perspectiva de uns e outros
direitos. Os direitos fundamentais pressupõem relações de poder, os direitos de
personalidade relações de igualdade. Os direitos fundamentais têm uma incidência
publicística imediata, ainda quando ocorram efeitos nas relações entre os
particulares (como prevê o art. 18º, nº 1, a ser estudado a seu tempo); os direitos de
personalidade têm uma incidência privatística, ainda quando sobreposta ou subposta
a dos direitos fundamentais. Os direitos fundamentais pertencem ao domínio do
Direito constitucional, os direitos de personalidade ao do Direito civil.
Ao explanar, José Joaquim Gomes Canotilho,15 sobre a distinção entre os direitos
fundamentais e os direitos da personalidade, o faz iniciando com a frase enfática “muitos dos
direitos fundamentais são direitos da personalidade, mas nem todos os direitos fundamentais
são direitos de personalidade” e vai avante com o seguinte pensamento:
Os direitos de personalidade abarcam certamente os direitos de estado ( por ex.:
direito de cidadania), os direitos sobre a própria pessoa (direito à vida, à integridade
moral e física, direito à privacidade), os direitos distintivos da personalidade (direito
à identidade pessoal, direito à informática) e muitos dos direitos de liberdade
(liberdade de expressão). Tradicionalmente, afastam-se dos direitos da personalidade
os direitos fundamentais políticos e os direitos de prestação, por não serem atinentes
ao ser como pessoa.
12
Curso de Direito Constitucional, 2008, p. 275.
Manual de direito constitucional, tomo IV – Direitos fundamentais, 2008, p.69.
14
Ibidem, p.69, n. r.1. O autor refere-se a escrito da sua obra Ciência política, tomo II, p. 213.
15
Direito constitucional e teoria da constituição, 1999, p. 372.
13
152
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
Adverte, ademais,16 agora já na esfera do Direito Geral de Personalidade ao qual
conceitua como “direito à pessoa ser e à pessoa de vir”, no sentido de que:
Contudo, hoje em dia, dada a interdependência entre o estatuto positivo e negativo
do cidadão, e em face da concepção de um direito geral de personalidade como
“direito à pessoa ser e à pessoa de vir”, cada vez mais direitos fundamentais tendem
a ser direitos de personalidade e vice-versa.
A opção de classificação dos direitos da personalidade pela doutrina é habitual, no
entanto, não reflete um modelo fechado, enumerável, exaustivo, mas tão somente uma teoria
didática, meramente exemplificativa17, como convém à uma sociedade mudancista e
complexa em perene reconstrução. Em outras palavras, esses direitos estão em perene
expansão, com surgimento de novos direitos a modo de agasalhar novos cenários sociais.
Dessa constatação de repetida e seqüencial mutação em tela jurídica de direitos da
grandeza dos da personalidade, advém a construção científica do “direito geral de
personalidade”, ou seja, uma construção teórica contestadora, de pronto, da própria
nominação assente de “direitos da personalidade”, para ter como científico a existência
jurídica de um único direito, com conteúdo indefinido. Ressalta Mário Luiz Delgado 18 tratarse da “chamada doutrina unitária ou monista, de origem germânica, que sustenta a existência
de um único direito da personalidade, originário e geral, contra a qual se opôs a corrente
pluralista, defensora da existência de múltiplos direitos da personalidade”. Na voz de Gustavo
Tepedino19, para os partícipes desta corrente, “a pessoa humana é um valor unitário e que aos
seus interesses relativos ao ser, mesmo se dotados de características conceituais próprias,
apresentam-se substancialmente interligados” e professora:
[...] não se trataria de enunciar um único direito subjetivo ou classificar múltiplos
direitos da personalidade, senão, mais tecnicamente, de salvaguardar a pessoa
humana em qualquer momento da atividade econômica, quer mediante os
específicos direitos subjetivos (previstos na Constituição e pelo legislador especial
– saúde, imagem, nome, etc.) quer como inibidor de tutela jurídica de qualquer ato
jurídico patrimonial ou extra patrimonial que não atenda à realização da
personalidade.
3. AS LIBERDADES DE PENSAMENTO, DE EXPRESSÃO E DE INFORMAÇÃO NA
CONSTITUIÇÃO FEDERAL
3.1. CONCEITUANDO A LIBERDADE
16
Id. 1999, p. 372.
Como expôs Miguel Reale na exposição de motivos do Código Civil vigente e já, neste estudo, mencionado.
18
Direitos da personalidade nas relações de família, in Família e Dignidade Humana – Anais do V Congresso
Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM, 2006, p. 686.
19
Temas de Direito Civil, 2004, p. 45.
17
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
Immanuel Kant20 aduz sobre o conceito de liberdade:
O conceito filosófico de liberdade, tendo em vista que sua realidade é demonstrada
por meio de uma lei apodíctica da razão prática,constitui a pedra angular de todo o
edifício de um sistema da razão pura, inclusive da razão especulativa e todos os
demais conceitos (os de Deus e da imortalidade) que , enquanto simples ideias,
permanecem na razão especulativa sem apoio , conectam-se com este [conceito], e
adquirem com ele e por meio dele consistência e realidade objetivas, isto é, a sua
possibilidade é demonstrada pelo fato de ser liberdade efetiva, uma vez que tal ideia
se manifesta por meio da lei moral.
Sobre a liberdade de consciência, Alexande de Moraes21, lastreando-se na doutrina
de José Celso Mello Filho22, redige:
A liberdade de consciência constitui o núcleo básico de onde derivam as demais
liberdades do pensamento. É nela que reside o fundamento de toda a atividade
político-partidária, cujo exercício regular não pode gerar restrição aos direitos de seu
titular.
Expõe José Emílio Medauar Ommati23:
Em um Estado Democrático de Direito, os princípios da igualdade e liberdade são
reconciliados, de modo que a realização de um deles implica, sob pena de
contradição, a realização do outro, de modo que os dois princípios são
equiprimordiais ou co-originários, se quisermos usar a linguagem de Jürgen
Habermas, ou ainda, para usarmos uma linguagem mais leve e mais poética, a de
Ronald Dworkin, a igualdade é a sombra que cobre a liberdade.
3.2. A LIBERDADE DE PENSAMENTO
Na Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948, já regrava, no seu
art.1824, a liberdade de pensamento. Carlos Alberto Bittar25,após aludir aos diferentes direitos
que compõem o elenco das liberdades públicas, que as Declarações Internacionais e os
doutrinadores procuram enumerar, sob critérios díspares, destaca, naquele plano, a Convenção
Europeia dos Direitos do Homem (Paris, 1948) que enumera os seguintes direitos: a) dos
direitos da pessoa (vida, liberdade, segurança); b) do indivíduo em face da coletividade
(nacionalidade, livre circulação, propriedade); c) liberdades públicas e direitos políticos
(consciência, religião, associação, opinião); d) direitos econômicos e sociais (sindicais, ao
trabalho, greve); e) direito moral de autor, expõe:
20
Crítica da Razão Prática, 2008, p.11-12.
Direito Constitucional, 2209, p. 45.
22
Constituição Federal Anotada, 1986, 440.
23
Liberdade de Expressão e discurso de Ódio na Constituiçãode 1988, 2012, 91.
24
Art. 18: Todo o homem tem direito à liberdade de pensamento, consciência e religião; este direito inclui a
liberdade de mudar de religião ou crença e a liberdade de manifestar essa religião ou crença, pelo ensino, pela
prática, pelo culto e pela observância, isolada ou coletivamente, em público ou em particular.
25
Os Direitos da Personalidade, 2008, p.26.
21
154
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De nossa parte, acreditamos deva a matéria ser definida no plano do direito positivo
interno em cada ordenamento jurídico, em cujas normas se identificarão as
liberdades reconhecidas. Assim, no direito brasileiro, encontram-se elas
compendiadas na Constituição Federal em que para a sua efetividade são
compreendidas garantias destinadas a assegurar o seu respeito e a sua realização
concreta.
No Brasil a Constituição Federal de 1946, previa, conquanto não na sua plenitude, a
manifestação do pensamento, com estas palavras:
§5º. É livre a manifestação do pensamento, sem que dependa de censura, salvo
quanto a espetáculos e diversões públicas, respondendo cada um, nos casos e na
forma que a lei preceituar, pelos abusos que cometer (...). A publicação de livros e
periódicos não dependerá de licença do poder público. Não será, porém tolerada
propaganda de guerra, de subversão da ordem ou de preconceitos de raça ou de
classe. Grifou-se.
Com singeleza e desprovida de censura, reza o art. 5º, inciso IV, da Constituição
Federal de 1988, ao instituir o Estado Democrático de Direitos, a liberdade de pensamento, in
verbis:
Art. 5º. (...)
IV - é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato;
John Stuart Mill26, à sua vez, explicita:
A tendência fatal da humanidade em desistir de pensar numa coisa quando a mesma
já não oferece dúvidas é a causa de metade dos seus erros. Um autor contemporâneo
falou apropriadamente da “profunda sonolência duma opinião tomada”. Mas quê!
Pode perguntar-se será a ausência de unanimidade uma condição essencial do
verdadeiro conhecimento? Será necessário que uma parte da humanidade tenha de
persistir no erro para permitir a qualquer compreender a verdade? Será que uma
crença cessa de ser verdadeira e vital assim que é geralmente recebida, e será que
uma proposição nunca é completamente compreendida e sentida a menos que
permaneça alguma dúvida? Assim, que a humanidade aceita unanimemente uma
verdade, será que esta perece? (...) As dialéticas de Sócrates tão magnificamente
exemplificadas nos diálogos de Platão, foram uma sugestão desta descrição.
Consistiam essencialmente numa discussão negativa das grandes questões da
filosofia e da vida, as quais com consumada perícia se destinavam a convencer
qualquer pessoa, que tivesse simplesmente adotados os lugares-comuns da opinião
recebida de que não percebia nada do problema – do qual até então não tinha
atribuído nenhum significado definitivo às doutrinas que professava; afim de que,
tomado conhecimento da sua ignorância, essa pessoa pudesse ser colocada no
caminho de alcançar uma crença estável, com base numa nítida compreensão tanto
do significado das doutrinas como da sua evidência.
3.3. A LIBERDADE DE EXPRESSÃO
Na Declaração Universal dos Direitos do Homem, no seu art. 1927, era desenhada a
liberdade de expressão.
26
Da Liberdade de pensamento e de Expressão, 2010, p. 61-64.
Art. 19: Todo o homem tem direito à liberdade de opinião e expressão; este direito inclui a liberdade de, sem
interferências, ter opiniões e de procurar receber e transmitir informações e ideias por quaisquer meios,
independentemente de fronteiras.
27
155
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
No Brasil, afora a Carta de Lei de 02 de outubro de 1823, todas as constituições,
fossem elas de natureza democrática ou outorgada, prestigiaram a liberdade de expressão28.
Lê-se no art. 5º, § IX da Constituição Federal de 1988 “é livre a expressão da atividade
intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença”.
Alexandre de Moraes29afirma que a liberdade de expressão não pode sofrer nenhum
tipo de limitação prévia, no tocante à censura de natureza política, ideológica e artística,
contudo é possível à lei ordinária a regulamentação das diversões e espetáculos, classificandoos por faixas etárias a que não se recomendem, bem como definir locais e horários que lhes
sejam inadequados, exemplificando com o acórdão do TRF, AC 111.545-RJ, 5º T., Relator
Min. Geraldo Sobral Diário da Justiça, 11 abr. 1989, RJ 139/119.
Artur César de Sousa30 transcrevendo texto de Antonio Magdaleno Alegría31 revela
que:
A liberdade de expressão não é um direito público subjetivo de todos os cidadãos,
trata-se, sobretudo, de uma característica essencial do sistema democrático (..) Sem
a liberdade de comunicar e receber ideias, os cidadãos não podem desempenhar a
tarefa de se autogovernar democraticamente. O propósito da liberdade de expressão
não é a autorealização pessoal, senão a preservação da democracia e o direito do
povo em decidir o seu futuro. A liberdade de expressão é um meio de
autodeterminação coletiva. (...)
As manifestações sociais são representantes fidedignas do uso da liberdade de
expressão. A título ilustrativo, destacam-se a “Marcha da Maconha”, como noticia o jornalista
da UOL Notícias em Brasília32, Fábio Brandt, e bem como o “ O Movimento dos Sem
Mídia”, noticiado no Jornal Correio do Brasil, Ano XI, Número 4278, nos textos que se
seguem:33
A discussão sobre a marcha da maconha chegou ao STF em junho de 2009, quando
a Vice - Procuradora Geral da República Deborah Duprat ajuizou a Arguição de
Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF nº 187). Na ação, a procuradora
indica que a proibição judicial das marchas da maconha e de outros entorpecentes
têm sido baseada em interpretação errada do Código Penal. Segundo ela é
“equivocado” dizer a realização das manifestações constitui “apologia ao crime”. Os
28
CF.1824: a) art. 179, IV; b) CF 1891: art. 72, §12; c) CF 1934: art. 113, p; d) CF 1937: art. 122, 15; e) CF
1946: art. 141, § 5º; f)CF 1967: art. 150, § 8º.
29
Idem, 2009, p.52.
30
A Decisão do Juiz e a Influência da Mídia: Ineficácia da prova divulgada pelos meios de comunicação para o
processo penal e civil, 2010, p. 184.
31
Los Limites de lãs Liberdades de expresión e información em El Estado Social y Democrático de Derecho.
2006, 49.
32
http://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2011/06/15/stf-decide. Acesso em 21/08/2012.
33
http://correiodobrasil.com.br/manifestaçao-na-paulista-pede-democratizacao-comunicação. Acesso em
18/09/2011.
156
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oito Ministros do Supremo Tribunal Federal-STF que participaram do julgamento
foram unânimes em liberar as manifestações pela legalização das drogas, como a
Marcha da Maconha, no Brasil. Eles consideraram que as manifestações são um
exercício da liberdade de expressão e não apologia ao crime, como argumentavam
juízes que proibiram a marcha anteriormente. Para se definir a favor da Marcha da
Maconha, o Ministro Celso de Mello considerou que a Constituição “assegura a
todos o direito de livremente externar suas posições, ainda que em franca oposição à
vontade de grupos majoritários”. Mello também classificou como “insuprimível” o
direito dos cidadãos de protestarem, de se reunirem e de emitirem opinião em
público, desde que pacificamente. Para o Ministro Ayres Britto, nenhuma lei, nem
penal, “pode se blindar quanto à discussão de seu conteúdo. Não está livre da
discussão sobre seus defeitos e suas virtudes”. O Ministro ainda brincou, dirigindo
se ao relator “Se me permite o trocadilho, a liberdade de expressão é a maior
expressão da liberdade”.34
Cerca de 100 pessoas, segundo a Polícia Militar, participaram no vão livre do Museu
de Arte de São Paulo (MASP), na Avenida paulista e uma manifestação pela
Democratização da Comunicação no Brasil. Organizado pelo Movimento dos Sem
Mídia, o objetivo é cobrar dos veículos de comunicação uma cobertura imparcial
dos casos de corrupção no Brasil, independentemente da esfera de governo e do
partido envolvido nas denúncias. De acordo com Antonio Donizete da Costa, um
dos organizadores da Manifestação, o movimento lançou também uma campanha
nacional de apoio à democratização e regulamentação dos meios de comunicação.
Aqueles que quiserem apoiar a campanha poderão se manifestar por meio de um
abaixo-assinado que ficará disponível no Blog da Cidadania. O documento será
encaminhado para a Frente Parlamentar pela Democratização da Comunicação da
Câmara Federal. O Movimento dos Sem Mídia reivindica ainda a
descriminalização dos movimentos sociais. A mídia trata muito a questão de
movimentos sociais como se fosse caso de polícia e quem fazia isso era a ditadura
militar. Hoje estamos em um regime de pleno Estado de Direito e Democrático. Esta
postura da mídia também é nociva para a sociedade.35
3.4. LIBERDADE DE INFORMAÇÃO
A liberdade de informação tem o seu leito constitucional no art. 5º, § XIV, primeira
parte, com a seguinte redação “é assegurado a todos o acesso à informação” (...).
À luz dos autores Luiz Roberto Barroso36, Vidal Serrano37 e Bárbara Svalov38afirma,
após esclarecer que “principalmente nos dias de hoje, a informação passou a constituir um
bem jurídico de alta relevância, seja para a tomada de decisões pessoais, o conhecimento da
realidade ou para se obter consciência plena ao se decidir”, que:
A doutrina brasileira distingue as liberdades de informação e de expressão,
registrando que a primeira diz respeito ao direito individual de comunicar livremente
fatos, e ao direito difuso de ser deles informado (...). O desenvolvimento
34
STF decide que ato por legalização de drogas é liberdade expressão e libera Marcha da Maconha.
Manifestação em São Paulo pede comunicação mais democrática no país.
36
Colisão entre Liberdade de Expressão e Direitos da Personalidade. Critérios da ponderação. Interpretação
Constitucionalmente Adequada do Código Civil e da Lei de Imprensa.In Revista de Direito Privado, Ano 5, nº
18, 2004, p. 122.
37
A Proteção Constitucional da Informação e o Direito à Crítica Jornalística, 1997, p. 10.
38
O Direito à Informação e a Proteção dos Direitos da Personalidade, In Informação e Direitos Fundamentais,
2012, p. 58.
35
157
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tecnológico, especificamente no tocante aos meios de comunicação de massa, trouxe
ao mundo um novo fenômeno social: o da globalização da informação.
João Ricardo Brandão Aguirre39 assinala a relevância da liberdade de Informação
afirmando:
(...) a informação constitui bem de inegável valor para um mundo globalizado e em
constante transformação. Do sujeito que vai consultar-se com um médico àquele que
pretende comprar um computador, do casal que contrata um arquiteto para realizar o
sonho de construir seu lar àquele que consulta o advogado para pôr fim à sociedade
conjugal, todos demandam por informações especializadas, cujas deficiências na
prestação podem constituir fonte de danos a exigir sua reparação. Por conseguinte,
faz-se necessária a democratização do acesso á informação e ao conhecimento, afim
de que se possa promover a construção de uma sociedade mais justa, equânime e
solidária, ideal perseguido pela República Federativa do Brasil.
Como alude Artur César de Souza40, “o direito de informação, mais que um direito
individual, constitucional, configura-se modernamente como um direito social de garantia
democrática das sociedades multiculturais e complexas”.
No pensamento de Sérgio Ricardo de Souza41 sob o prisma da necessidade humana o
direito à informação:
Não é mais visto como simples liberdade de externar o pensamento (de expressarse), mas sim como um direito fundamental de participação da sociedade travestindose no direito de informar (de veicular informações), no direito de ser informado (de
receber informações) e ainda por parte da sociedade até mesmo no de se informar
(de recolher informações) sendo, pois, base a democracia – a qual configura um dos
princípios fundamentais da República Federativa do Brasil – conforme dispõe o art.
1º da constituição Federal)
Esse mesmo autor, agora na esteira da lição de Norberto Bobbio42, propõe:
Que a informação é indispensável para a vida social, principalmente para a vida
política e em particular para a eleição (sufrágio), meio através do qual o povo elege
os representantes que vão decidir sobre assuntos de suma importância nos aspectos
individual e coletivo, e que em seu nome governa e que terminam por exercer todo o
poder que ao povo pertence, em um legítimo sistema de democracia representativa,
já que a forma de democracia direta experimentada em sociedades menos complexas
como a de Atenas Clássica, não se apresenta viável nestes tempos de pósmodernidade.
4. COMUNICAÇÃO SOCIAL
4.1. CONCEITO DE COMUNICAÇÃO SOCIAL
39
Responsabilidade e Informação. Efeitos Jurídicos das Informações, Conselhos e Recomendações entre
Particulares, 2011, p. 16.
40
A Decisão do Juiz e a Influência da Mídia. Ineficácia da Prova Divulgada pelos Meios de Comunicação para o
Processo Penal e Civil, 2011, p. 185.
41
Controle Judicial dos Limites Constitucionais à Liberdade de Imprensa, 2008, p. 102.
42
O Futuro da Democracia, 2002, p. 53-56.
158
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A Constituição Federal descreve a Comunicação Social tendo sua essência delineada
no art. 220, conquanto estenda-se até o art. 224 com normatizações complementares
relevantes. Reza o art. 220:
A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer
forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto
nesta Constituição.
§1º. Nenhuma lei conterá dispositivo que possa constituir embaraço à plena
liberdade de informação jornalística em qualquer veículo de comunicação social,
observado o disposto no art. 5º, IV, V, X, XIII e XIV.
§2º. É vedada toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística.
§3º. Compete à lei federal:
IRegular as diversões e espetáculos públicos cabendo ao Poder Público
informar sobre a natureza deles, as faixas etárias a que não se recomendem, locais e
horários em que sua apresentação se mostre inadequada;
IIEstabelecer os meios legais que garantam à pessoa e à família a
possibilidade de se defenderem de programas ou programações de rádio e televisão
que contrariem o disposto no art. 221, bem como da propaganda de produtos,
práticas e serviços que possam ser nocivos à saúde e ao meio ambiente.
§ 4º. A propaganda comercial de tabaco, bebidas alcoólicas, agrotóxicos,
medicamentos e terapias estará sujeita a restrições legais, nos termos do inciso II do
parágrafo anterior, e conterá sempre que necessário advertência sobre os malefícios
decorrente de seu uso.
§ 5º. Os meios de comunicação social não podem, direta ou indiretamente, ser objeto
de monopólio ou oligopólio.
§ 6º. A publicação de veículo impresso de comunicação independe de licença de
autoridade.
Clóvis Rossi43, citado por Sérgio Ricardo de Sousa44em seu estudo intitulado “O que
é jornalismo”, esclarece:
A atividade jornalística independentemente de qualquer definição acadêmica, é uma
constante busca pela conquista das mentes e corações de seus alvos, os quais são os
leitores, telespectadores ou ouvintes. Uma batalha geralmente sutil e que usa uma
arma de aparência extremamente inofensiva, mas poderosa, a palavra, acrescida, no
caso da televisão, de imagens. Essa grande importância do ponto de vista político e
social, explica as imensas verbas canalizadas por governos, partidos, empresários e
entidades diversas para o que se convencionou chamar veículos de comunicação de
massa.
Pedro Luís Piedade Novaes45 diz:
O direito à informação (...) subdivide-se em três aspectos que se completam: o
direito de informar, o direito de se informar e o direito de ser informado. (...)
O direito de informar consiste na faculdade de veicular informações a outrem sem
restrições, havendo previsão no texto constitucional na sua forma individual (o
direito à liberdade de expressão da atividade intelectual, artística, científica e de
comunicação, realizada pela mídia (artigos 220. caput, e §§1º e 2º, CF). (...)
43
2000, p. 7.
Idem, p. 98.
45
Tutela do Direito de Sigilo da Fonte Jornalística- Doutrina e Jurisprudência, 2011, p. 27. Dissertação de
Mestrado apresentada no Programa de Mestrado da UNITOLEDO/Araçatuba- SP, em 20011, p. 49. Já há
publicação desta pela Editora Relativa, 2002.
44
159
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Já o direito de se informar diz respeito à faculdade de obter informações sem
impedimentos de quem quer que seja (Estado ou sociedade). (...)
Finalmente o direito de ser informado é relativo à liberdade de receber informações
íntegras, verdadeiras e contínuas, sem impedimento, tendo proteção constitucional,
com as ressalvas expressas do artigo 5º, inciso XXXIII.
O mesmo autor revela, na mesma obra46, no tema o “Dever de Divulgação de Notícia
Verdadeira e de Interesse Público”, que:
Quando se fala em divulgação de notícia verdadeira por parte da imprensa, não se
exige a busca da verdade absoluta de um fato. (...) Na prática, infelizmente temos
exemplos desastrosos de divulgação de notícias falsas pela mídia. Um famoso
ocorreu em 07/09/2003 no Programa do Gugu, então no SBT, em que foi veiculada
uma entrevista com dois integrantes da facção criminosa do PCC (Primeiro
Comando da Capital) que posteriormente se revelou uma grande farsa. A gravidade
de tal divulgação foi imensurável, já que na falsa entrevista os supostos criminosos
ameaçaram várias autoridades e personalidades, dentre eles o Padre Marcelo Rossi e
o então vice-prefeito de São Paulo, Hélio Bicudo. Esse episódio ficou famoso como
o escândalo Gugu-PCC e acarretou em perda de credibilidade e de audiência do
referido programa televisivo.
Paulo Klautau Filho47 expõe:
(...) Retomando, a regra disposta no inciso XXXIII (resultante do exercício de
ponderação em prima facie do constituinte) é a rejeição ao segredo e à mentira
governamental, através do reconhecimento do direito à informação que em última
instância, leva ao reconhecimento do direito do cidadão à verdade. No direito deste
positiva-se a exigência kantiana quanto ao dever do governante de dizer a verdade.
Essa exigência é, assim, adotada como um princípio (valor) fundamental em nossa
Constituição.
No enfrentamento do sensível tema do Sigilo da Fonte Jornalística, Pedro Luís
Piedade Novaes elucida:
A preservação do sigilo da fonte jornalística está prevista no art. 5º, XXIV in fine da
Constituição Federal da seguinte forma “é assegurado a todos o acesso à informação
e resguardado o sigilo da fonte, quando necessário ao exercício profissional.“Está
inserida no rol dos “direitos e garantias individuais” e, consequentemente, tem o
status de cláusula pétrea (art. 60,§ 4º, IV, CF), O que significa que ela não pode ser
abolida do texto constitucional nem mesmo por Emenda Constitucional. (...) De
modo que se pode afirmar que as fontes jornalísticas são pessoas e documentos dos
quais se extrai a notícia, ou seja, são eles os portadores da informação, do qual o
jornalista noticiará o fato; são, portanto, a causa, a origem, o princípio de uma
matéria jornalística. Isso porque nem sempre o profissional da mídia estará presente
no momento da ocorrência de um fato que mereça a divulgação pela imprensa,
precisando destarte, buscar informações por meio de fontes. (...) Um exemplo de
fonte é a organização transnacional WikiLeaks, sediada na Suécia a qual publica
diariamente, em seu site documentos e informações confidenciais, vazadas de
governos ou empresas, cujo conteúdo é divulgado pela mídia internacional. Dentre o
vasto material disponível no referido site estão milhares de dados secretos da
diplomacia norte-americana, situação essa que vem causando grande
46
47
Idem 50.
O Direito dos Cidadãos à Verdade perante o Poder Público, 2008, p.132.
160
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
constrangimento das autoridades daquele País e de todo o planeta. Não se discute
aqui a legalidade da conduta do site e nem a forma pela qual é conseguido o material
ali contido, e sim na possibilidade legítima da mídia internacional divulgar tais
informações, já que se tratam, a princípio de fatos verdadeiros e de interesse público,
que merecem ser informados ao público em geral.
4.2
A
COMUNICAÇÃO
SOCIAL
E
ACÓRDÃOS
DOS
TRIBUNAIS
DE
SOBREPOSIÇÃO – STJ e STF
A livre circulação de informação é tida como imprescindível para a saúde das
democracias. O Conselho Constitucional da França acaba de decidir, por exemplo, que o
acesso à internet é um direito humano fundamental e que a publicação de opiniões na rede
mundial representa uma forma de liberdade de expressão48.
Em maio último, a Terceira Turma julgou o primeiro recurso (Resp 984.803) sobre
responsabilidade de veículo de comunicação após a retirada da Lei de Imprensa do
ordenamento jurídico. A decisão sobre o caso relatado pela Ministra Nancy Andrighi, criou
um precedente que deverá nortear os próximos julgamentos do STJ em situações semelhantes.
O recurso foi interposto pela TV Globo com o intuito de alterar uma decisão de
segunda instância que havia condenado a emissora a pagar indenização por ter
veiculado reportagem no programa Fantástico na qual relacionava um jornalista à
“máfia das prefeituras” no Espírito Santo. A decisão do STJ de afastar a indenização
tornou-se uma espécie de libelo a favor da liberdade de imprensa com
responsabilidade. No voto, a Ministra Relatora debruçou-se sobre a natureza do
processo de produção de notícias reconhecendo não ser possível exigir que a mídia
só divulgue fatos após ter certeza plena de sua veracidade. “Impor tal exigência à
imprensa significaria engessá-la e condená-la à morte” afirmou.“O Processo de
divulgação de informações satisfaz verdadeiro interesse público, devendo ser célere
e eficaz, razão pela qual não se coaduna com rigorismos próprios de um
procedimento judicial”, acrescentou. Grifou-se 49
O conflito entre liberdade de informação e direitos da personalidade também se
apresenta com regularidade em processos julgados pelo Superior Tribunal de Justiça - STJ
cujas partes são pessoas com notoriedade, como artistas, políticos e, empresários. A
jurisprudência reconhece que essas pessoas têm proteção mais flexível dos direitos relativos à
sua personalidade como a imagem e a honra. O entendimento do STJ, entretanto, é que
mesmo pessoas notórias têm direito a uma esfera privada para exercer, livremente, sua
personalidade.
Esse posicionamento ficou claro no julgamento recente de dois recursos apreciados
pela Terceira e Quarta Turmas. O primeiro processo (Resp 984.803) teve origem
com a divulgação por uma revista de fotos de um conhecido ator de TV casado. As
48
http://www.conjur.com.br-jul-19/leia-casos-stj-conflitos-entre-privacidade-direito-a-informação, Acesso em
21/18/2012.
49
Idem, p.2
161
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
imagens mostravam-no beijando outra mulher. O segundo (Resp 706.769) envolveu
a veiculação por uma rádio de Mossoró, no Rio Grande do Norte, de informações
ofensivas à prefeita da cidade. O STJ manteve a decisão da segunda instância da
Justiça fluminense que havia condenado a editora da revista a indenizar o artista. O
fundamento da decisão foi exatamente que o ator, pessoa pública conhecida por
participar de várias novelas, possui direito de imagem mais restrito, “mas não
afastado”. Os Ministros concluíram que houve abuso da imagem publicada com
“nítido propósito de incrementar as vendas” da revista. A tese de que pessoas
notórias, embora de maneira mais restrita, têm direito a prerrogativas inerentes à sua
personalidade também alcança os políticos. No recurso envolvendo a rádio de
Mossoró, o STJ, favorável aos argumentos apresentados pela prefeita, definiu que o
limite para o exercício da liberdade de informação é a honra da pessoa que é objeto
da informação divulgada50 .
No embate judicial, por exemplo, entre o direito à privacidade e a liberdade de
informação jornalística, aplicável a técnica interpretativa de ponderação de princípios, ora
maximilizando um (uns), e minimilizando outro (s), por meio do princípio-mor da
proporcionalidade, em face do retrato factual subjudice. Se por um aspecto, a liberdade de
informar encontra barreira na proteção aos direitos da personalidade, há julgados do STJ a
evidenciar, que em variadas hipóteses, houve prevalência à livre informação. Assim, têm-se
situações nas quais os próprios autores das demandas judiciais, como atores, jogadores e até
mesmo pessoas sem notoriedade, provocam o interesse jornalístico no intento de, ao depois, a
pretexto de terem a sua honra ou imagem violadas, requererem indenizações, como já
reconhecido em julgamentos por Ministros do STJ.
Num recurso julgado em 2004 (Resp 595600) o Ministro Cesar Rocha, atual
presidente do STJ, enfrentou a questão como Relator. O caso envolvia a publicação
em um jornal local da foto de uma mulher de topless numa praia em Santa Catarina. A
mulher recorreu à Justiça reclamando indenização por danos morais e, após vários
recursos, o caso chegou ao STJ. O Ministro Cesar Rocha não conheceu do recurso
interposto pela suposta vítima, entendendo que a proteção à privacidade estaria
limitada pela própria exposição pública realizada por ela de seu próprio corpo. “Não
se pode cometer o delírio de, em nome do direito de privacidade, estabelecer-se uma
redoma protetora em torno de uma pessoa para torná-la imune de qualquer veiculação
atinente a sua imagem”. E completou: “Se a demandante expõe sua imagem em
cenário público, não é ilícita ou indevida sua reprodução pela imprensa”.51
O Supremo Tribunal Federal – STF, suspendeu, no dia 26 de julho de 2012, a
legislação que proibia programas de rádio e TV de usar o humor para satirizar candidatos
durante o período eleitoral. O Ministro Presidente Carlos Ayres Britto concedeu liminar a
Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e TV (ABERT), depois que a entidade propôs
uma ação para que o STF considerasse inconstitucionais alguns artigos da Lei Eleitoral.
Segundo o “O Estado de São Paulo” o Ministro declarou que não cabia ao Estado “definir
50
51
Ibidem, p.2
Ibidem, p. 3.
162
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
previamente o que pode ou não pode ser dito por indivíduos e jornalistas”. O Ministro Carlos
Ayres Britto disse, ainda que o argumento de que o humor poderia revelar algum tipo de
apoio político e ridicularizar candidatos não deve ser passível de censura prévia, e que cada
caso deverá ser analisado individualmente.
A lei eleitoral brasileira proibia o uso de recursos audiovisuais em programas de
rádio ou TV que poderiam denegrir ou ridicularizar candidatos em período eleitoral.
A multa para quem infringisse a lei poderia chegar a cem mil reais e em caso de
reincidência o valor seria duplicado. (...) No domingo, dia 22 de julho, foi realizada
no Rio de Janeiro a “Marcha Humor Sem Censura”, que reuniu humoristas e artistas
para protestar contra a lei eleitoral. O evento também havia recolhido assinaturas
pedindo mudanças na legislação. A organização não governamental Repórteres Sem
Fronteiras (RSF) havia aderido ao abaixo-assinado e declarou que a legislação
eleitoral tinha “vestígios de um período autoritário”, e que “o direito à caricatura e
ao humor constitui um pilar fundamental da liberdade de expressão”. 52
4.3 RESPONDENDO À INTERROGAÇÃO: SÃO DIREITOS DA PERSONALIDADE
A COMUNICAÇÃO SOCIAL?
Problematizou-se no presente estudo a atribuição de natureza jurídica de Direito da
Personalidade ao Capítulo Constitucional relativo à Comunicação Social, com destaque ao art. 220.
Tal interrogação encontra na imemorável contribuição do Ministro Carlos Ayres
Britto, na condição de Relator, da Histórica Decisão do Supremo Tribunal Federal- STF na
Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental - ADPF N. 130 – DF, na qual,
soberanamente, foi julgada a “Total procedência da ADPF, para o efeito de declarar como não
recepcionado pela Constituição de 1988 todo conjunto de dispositivos da Lei Federal nº
5.250, de 9 de fevereiro de 1967”.
Sob o título, no item 3 desse acórdão, “O Capítulo Constitucional da Comunicação
Social como Seguimento Prolongador de Superiores Bens de Personalidade que são a mais
Direta Emanação da Dignidade da Pessoa Humana: A Livre Manifestação do Pensamento e o
Direito à Informação e à Expressão Artística, Científica, Intelectual e Comunicacional.
Transpasse da Natureza Jurídica dos Direitos Prolongados ao Capítulo Constitucional sobre a
Comunicação Social, lê-se:
O art. 220 da Constituição radicaliza e alarga o regime de plena liberdade de
atuação da imprensa, porquanto fala: a) que os mencionados direitos de
personalidade (liberdade de pensamento, criação, expressão e informação) estão a
salvo de qualquer restrição em seu exercício seja qual for o suporte físico ou
tecnológico de sua veiculação; b) que tal exercício não se sujeita a outras
disposições que não sejam as figurantes dela própria, Constituição. (...) Os direitos
que dão conteúdo à liberdade de imprensa são bens de personalidade que se
52
http://portalimprensa.uol.com.br/portal/ultimas_noticias/2010/08/27/i. stf-. Acesso em 21/08/2012.
163
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
qualificam como sobredireitos. Daí que, no limite as relações de imprensa e as
relações de intimidade, vida privada, imagem e honra são de mútua excludência, no
sentido de que as primeiras se antecipam, no tempo, às segundas; ou seja, antes de
tudo prevalecem as relações de imprensa como superiores bens jurídicos e natural
forma social sobre o poder do Estado, sobrevindo às demais relações como eventual
responsabilização ou consequência do pleno gozo das primeiras. A expressão
constitucional “observado o disposto nesta Constituição” (parte final do art. 220)
traduz a incidência dos dispositivos tutelares de outros bens da personalidade, é
certo, mas como consequência ou responsabilização pelo desfrute da “plena
liberdade de informação jornalística” (§ do mesmo art. 220 da Constituição Federal).
Não há liberdade de imprensa pela metade ou sob as tenazes da censura prévia,
inclusive a procedente do Poder Judiciário, pena de se resvalar para o espaço
inconstitucional da prestidigitação jurídica. Silenciando a Constituição quanto ao
regime da internet (rede mundial de computadores) não há como se lhe recusar a
qualificação de território virtual livremente veiculador de ideias e opiniões, debates,
notícias e tudo o mais que signifique plenitude de comunicação53 .
O jornalista Juliano Basile, De Brasília, em 3 de junho de 2011, no artigo
denominado “A Liberdade de Expressão e o STF – “Leveza do ser”, o grande problema”,
ressalta que:
Ministro Ayres Britto: “Hoje, o inimigo da imprensa é um pequeno seguimento do
Judiciário, mas ele será cada vez mais reduzido”. A decisão do Supremo Tribunal
Federal (STF) que derrubou a Lei de Imprensa, em 2009, foi um marco histórico a
favor do jornalismo, mas não impediu que novos casos de censura a jornais
continuassem a surgir no Brasil. É o que o Ministro Carlos Ayres Britto, relator do
processo no STF, chamou de “Síndrome da Insustentável Leveza do ser”.
Inicialmente, os juízes foram acostumados a aplicar essa lei que, desde de 1967,
regulou e puniu as atividades jornalísticas. Mas, livres do seu peso alguns setores do
Judiciário ainda não compreenderam como deve ser pleno o exercício da liberdade
de imprensa54.
5. CONCLUSÃO
Como se não bastasse o lúcido julgamento do STF, a Liberdade de Informação
Jornalística, sinonímia, na Constituição Federal Cidadã de 1988, de Liberdade de Imprensa,
numa Pós-Modernidade com lindes nacionais esmaecidos, em estonteante celeridade e em
imorredoura construção e transformação, numa sociedade complexa, perplexa, consumista,
insegura e asfixiante na sua imagem crua, já adjetivada como “Mal – Estar na Civilização”
(Freud) e “Vida para o Consumo” (Bauman), põe-se como de vital relevância para a formação
da cidadania e da lucidez do conhecimento, na ininterrupta busca da felicidade, motivação
primária da própria existência humana.
Acresça-se, sobretudo, que a “liberdade de informação jornalística” é versada na
Constituição Federal, no art. 220, como sinonímia de “liberdade de imprensa” e, acima de
53
54
http://www.raul.pro.br/didatic/ADPF-imprensa.htm, acesso em 21/08/2012.
http://supremoemdebate.blogspot.com.br/2011/06/liberdade-de-expressao-e-o-stf.html, acesso em 21/08/2012.
164
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
tudo, vista, esta normatização de status maior como “seguimento prolongador de superiores
bens da personalidade” que são a mais direta emanação da Dignidade da Pessoa Humana.
Em face desse cenário luminoso, de galhardia do Estado Democrático de Direito
vivenciado no país “tropical, abençoado por Deus e bonito por natureza”, de indelével
sonoridade libertária a fluir para os decantados versos do Hino da Proclamação da República:
(...) Eia, pois, brasileiros avante!
Verdes louros colhamos louçãos!
Seja nosso País triunfante,
Livre terra de livres irmãos!
Liberdade! Liberdade!
Abre as asas sobre nós!
Das lutas na tempestade
Dá que ouçamos tua voz!
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166
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
ATIVISMO JUDICIAL EXERCIDO PELO TRIBUNAL SUPERIOR ELEITORAL A
PARTIR DA RESOLUÇÃO N° 22.610/2007 E A VIOLAÇÃO DE PRECEITOS
CONSTITUCIONAIS
JUDICIAL ACTIVISM EXERCISED BY THE ELECTORAL COURT SINCE
RESOLUTION FROM TSE N° 22.610/2007 AND THE VIOLATION OF THE
CONSTITUTIONAL PRECEPTS
Martônio Mont’Alverne Barreto Lima
Bruno César Braga Araripe
RESUMO
Apresenta-se o constitucionalismo contemporâneo focado no tema da valorização da atuação do Poder Judiciário
em detrimento do Legislativo/Executivo, momento em que as questões atinentes à política são transferidas à
resolução daquele em virtude do descrédito destes. Ao assumir uma postura ativa, o Judiciário se transforma em
protagonista da efetivação dos direitos fundamentais. Nesse sentido, observa-se os órgãos judicantes, como é o
caso da Justiça Eleitoral, legislando e ultrapassando os limites impostos pela Constituição e assim cometendo
abusos de poder. Nesse contexto, apresenta-se a Resolução do TSE n° 22.610/2007, que criou a sanção, não
prevista na Constituição, de perda do mandato eletivo ao político que cometeu infidelidade partidária. O presente
trabalho propõe a analisar esse tema e propor críticas ao ativismo judicial, a partir do estudo desta resolução,
fundamentando-se na violação a preceitos constitucionais.
Palavras-Chave: Ativismo Judicial. Justiça Eleitoral. Resolução TSE n° 22.610/2007.
ABSTRACT
Constitutionalism contemporary features focused on the issue of valuation of judicial power actions at the
expense of the Legislative / Executive, situations that the questions related to the politics are transferred to
judicial resolution in discredit of the legislative / executive. Admitting a active attitude, the judiciary transforms
itself in the leading figure of the assurance of the fundamental rights. Thereby, observes the courts, as is the case
of the Electoral Court, legislating and crossing the limits imposed by the Constitution and committing power
abuses. In this context there is the resolution from TSE n° 22.610/2007 TSE which created the sanction,
predicted on the Constitution, of elective command loss for the politician who committed party infidelity. This
paper propose to analysis from the theme and propose critics against the judicial activism from the study of this
resolution, based on the violation of the constitutional precepts.
Key-words: Judicial activism. Electoral Justice. Resolution from TSE n° 22.610/2007
INTRODUÇÃO
A Constituição Federal de 1988 estabelece a tripartição dos poderes, incumbindo ao
Legislativo a função primordial de editar normas que regerão as contingências sociais, no
167
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
âmbito de uma sociedade cada vez mais pluralista e complexa e no âmago de uma democracia
representativa e liberal, como é a brasileira.
Contudo, verifica-se que quando o Poder Legislativo não desempenha de modo
satisfatório a incumbência mínima que é a de legislar, ou mesmo quando se omite, busca-se
outros caminhos na tentativa de tornar efetiva os direitos fundamentais disposto na
Constituição Republicana. Exsurge, então, o Poder Judiciário, função estatal, guardadas às
devidas proporções ao modelo desenvolvido por Montesquieu, incumbida a diversas
atribuições, dentre elas a de realizar a pacificação social, através da resolução de casos
concretos posto à apreciação dos órgãos jurisdicionais, tendo, por observância contínua, o que
reza as normas legais, notadamente a Constituição republicana. Do caminho escolhido para
solucionar um sentimento de inoperância do Legislativo, atribuindo a competência desta ao
Judiciário, apresentam-se diversos questionamentos quanto a essa “nova” função atribuída ao
órgão judicante, e uma das principais redunda na representatividade: estar-se-á dotando uma
função estatal não sufragada pelo povo, mas legitimada pela Constituição, a dirimir questões
atinentes ao universo da política, tendo, por consequência, a judicialização da política.
Ou seja, aquilo que não foi decidido ou criado pelos congressistas, legítimos
representantes do povo, é transferido agora ao crivo do Judiciário. Assim é o que podemos
perceber pela resolutividade de questões como a possibilidade de aborto de feto anencéfalo,
de pesquisa com células-tronco embrionárias, da união homoafetiva, da greve dos servidores
públicos utilizando-se por analogia o regulamento do movimento paredista do serviço civil, a
tentativa de regulamentação do aviso prévio, a demarcação de terras indígenas na região
conhecida como Raposa Serra do Sol, dentre outros. Observa-se que ao Poder Judiciário, e de
modo especial, o Supremo Tribunal Federal, como guardião da Constituição, é garantida a
possibilidade de instituir normas, de decidir sobre a política, e por que não dizer, de atuar no
lugar do Parlamento, agindo sem a chancela direta do povo. Se se sobressair normas que não
espelhem os verdadeiros anseios da sociedade, quem poderá afirmar que as mesmas são
inconstitucionais ou ilegítimas, já que a Corte Constitucional não possui controle de si1 – o
seu controle decorre da própria Constituição, todavia são os membros do STF o autêntico
intérprete desta, podendo, ao gosto dos mesmos, exercer a exegese que melhor referende as
suas condutas, de modo a enquadrá-las no texto constitucional.
168
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
Transparece-se desse modo ser um caminho, pelo menos, perigoso esse escolhido
para tornar efetivos os direitos fundamentais, uma vez que poderá está a malferir a tripartição
dos poderes. Observa-se que o Poder Judiciário estará adentrando em seara funcional alheia.
Em tal contexto, apresentar-se-á no presente trabalho científico a Justiça Eleitoral,
que, dentre outras funções estabelecidas no Código Eleitoral, possui o papel de organizar,
executar e coordenar o processo de escolha dos candidatos, além de exercer função
administrativa, consultiva e regulamentar. Ocorre que, atuando com verdadeiro ativismo
judicial, a Justiça Eleitoral editou a Resolução n° 22.610/2007, que simplesmente normatizou
a sanção de perda do mandato eletivo ao político que incorreu em infidelidade partidária, cuja
sanção não contava até então com previsão constitucional. Como será demonstrado, a Justiça
Eleitoral agiu além de suas prerrogativas constitucionais, criando uma norma ao arrepio da
Constituição. Assim, o propósito deste trabalho é desenvolver uma argumentação contrária ao
posicionamento atual do Poder Judiciário, especialmente da Justiça Eleitoral, perante esta
conduta ativista, e utilizando uma modalidade de interpretação constitucional, será verificado
que o TSE ofendeu as normas constitucionais.
1 ATIVISMO JUDICIAL
Passando-se de um Estado liberal, onde se vivenciou uma menor intervenção estatal
nas relações entre particulares e na economia, como também se registrou o acentuado respeito
às leis, a proporcionar segurança jurídica aos indivíduos, e um Judiciário neutro e
independente dos conflitos sociais e “meramente garantista, simples mantenedor de uma
ordem espontânea, que lhe é exterior, uma vez que não proveniente do Estado”2 3, para um
Estado social, no qual se observa uma inter-relação entre fatores econômicos e sociais e uma
ascensão do Poder Judiciário, vindo a se consolidar, no Brasil, com a redemocratização
consolidada com a CF/88, observou-se uma atenção especial destinada aos indivíduos, à
cidadania, à paz, ideias a ser materializadas pelo Estado4. Nesse Estado social, a Constituição
reclama pela busca por igualdade material dos cidadãos através da implementação dos direitos
fundamentais, descrevendo-o de modo exaustivo no corpo da Lei Maior. Com efeito,
possibilita-se que haja uma maior exigência à atuação do Legislativo e Executivo, no sentido
de atender aos ditames impostos na Constituição. Caso isso não aconteça, procura-se guarida
no Judiciário. Com efeito, é a situação vivenciada atualmente no País: um Judiciário ativo,
bastante exigido e impulsionado a dar respostas à sociedade às contingências que as outras
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funções estatais não conseguem lidar, a materializar aos direitos fundamentais ou dar-lhes a
amplitude desejada5.
Sobre o papel do Judiciário atual como protagonista na concretização dos direitos
fundamentais a partir da redemocratização no País, Vianna (1997, p. 11) doutrina que:
O aprofundamento do processo da transição, entretanto – em particular após a
promulgação da Constituição de 1988, que redefiniu o papel republicano do Poder
Judiciário -, e mais a progressiva identificação desse Poder como lugar de ampliação
de direitos por parte de uma nova clientela até então distante dele, trouxeram esse
“retardatário” para o primeiro plano da vida pública. [...] O protagonismo do
Judiciário, assim, é menos o resultado desejado por esse Poder, e mais um efeito
inesperado da transição para a democracia, sob a circunstância geral – e não apenas
brasileira – de uma reestruturação das relações entre o Estado e a sociedade, em
consequência das grandes transformações produzidas por mais um surto de
modernização do capitalismo.
Já Garapon (2001, p. 39) argumenta que:
A irrupção do ativismo jurídico só poderá ser compreendida se relacionada a um
movimento profundo, do qual ele é apenas uma das manifestações. Não se trata de
uma transferência de soberania para o juiz, mas sobretudo de uma transformação da
democracia. A grande popularidade dos juízes está diretamente ligada ao fato de que
foram confrontados com uma nova expectativa política, da qual se sagraram como
heróis, e que encarnaram uma nova maneira de conceber a democracia. O que
aconteceu, então, nesta última década? A origem desse movimento se encontra mais
no investimento do direito no imaginário democrático do que no próprio direito. Ele
converteu-se na nova linguagem com a qual se formulam as demandas políticas que,
desiludidas com um Estado inativo, se voltam maciçamente para a justiça.
Através do ativismo judicial, aceita-se a ideia do poder criativo do julgador. Para
solucionar o caso posto a sua apreciação, dando amplitude às normas constitucionais, aos
valores públicos, ou mesmo torná-los efetivas, ou interpretar os diversos princípios e
conceitos indeterminados encartados na legislação, o juiz inova, vai além do direito posto,
adentrando a seara da política. É a teoria originalista, explicada por Leal (2011, p. 5-7), sob
uma perspectiva norte-americana, que prega a reconstrução da intenção original dos
legisladores, ou seja, é aquela que:
Quanto mais elementos extranormativos ou valores públicos, tais como elementos
econômicos, institucionais, sociais e morais, o juiz utilizar para interpretar um
preceito legal, maior será a criação judicial sobre a obre do legislador, de modo que
menos se sujeitará referido intérprete ao princípio da supremacia do legislador (que,
decorrente também da idéia de vontade geral, reza ser o legislador o principal órgão
de produção normativa). [Nesse sistema] Os Tribunais, então, devem atuar como
garantidores dos valores públicos, adaptando a eles o conteúdo normativo dos
preceitos.
E não é só: uma vez existente a norma, possibilita-se ao julgador discutir se a mesma
padece ou não do vício da inconstitucionalidade, exercendo-se aí jurisdição constitucional,
170
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
através do controle de constitucionalidade, seja na modalidade difusa ou concentrada 6. Na
visão de Garapon (2001, p. 39), “a lei torna-se um produto semi-acabado que deve ser
terminado pelo juiz”. É uma competência a mais sendo atribuída aos juízes, pessoas não
escolhidas pelo povo, e que, portanto, a legitimidade é discutível. Todo esse cenário redunda
no que se chama de judicialização da política. Quer dizer, as matérias que deveriam ser
enfrentadas no âmbito da política, isto é, no Congresso, são transferidas ao Judiciário. Em
decorrência disso, surgem alguns questionamentos, dentre eles: será que estão os órgãos
judicantes preparados para atuar nessa nova função e cientes das responsabilidades que
decorrem desse protagonismo? E será que os argumentos consolidados pelas instâncias
judiciárias correspondem ao ideal esperado pela sociedade? São os questionamentos que esse
ativismo judicial vem a enfrentar.
Baseando-se em Ruy Barbosa, para quem “a atribuição de declarar inconstitucionais
os atos da legislatura envolve, inevitavelmente, a Justiça Federal em questões. É,
indubitavelmente, um poder, até certa altura, político, exercido sob as formas judiciais”, é
possível aceitar que relação entre direito e política seja passível de sindicabilidade pelos
órgãos jurisdicionais, exatamente para que se tenha claro o respeito às regras constitucionais e
infraconstitucionais estabelecidas. O problema é saber quais os limites, a extensão e
profundidade de tal ocorrer, ou melhor, descobrir em que medida a ação judicial incisiva
sobre atos e comportamentos públicos e privados não exorbita dos quadrantes delimitadores
de sua competência e invade a autonomia e independência de outros poderes. (LEAL, 2011, p.
11)
Outrossim, há quem argumente como positivo tal postura ativista, como Barroso (online, p. 9), que acentua que o “Judiciário está atendendo a demandas da sociedade que não
puderam ser satisfeitas pelo parlamento, em temas como greve do serviço público,
eliminação do nepotismo ou regras eleitorais”. Por outro lado, há quem seja contrário. Nesse
sentido, entende Lima (2006, p. 188) que:
Como a renovação concreta e democrática do poder constituinte não tem como
emanar do Poder Judiciário, uma vez que não está ele no centro das tensões políticas
concretas da sociedade, resta comprometida então a capacidade deste de solidificar a
democracia quando impõe direções ao Legislativo e ao Executivo. [...] Em
sociedades do capitalismo periférico [a exemplo do Brasil], a atuação do Judiciário
neste sentido desarticula o poder social organizado, transferindo para o âmbito da
administração situações que pertencem à esfera do político, de reatualização do
papel do Estado e da democracia”.
171
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
Diante de tais considerações, pode-se então responder que o ativismo judicial se
converte como um fenômeno de exacerbação do Judiciário sob o entendimento de procurar
tornar efetivos os direitos fundamentais estabelecidos na Constituição, o que poderá facilitar,
a partir de então, que abusos sejam cometidos devidamente ao fato deste protagonista não
assumir a responsabilidade causada pelo risco de adentrar em ambiente destinado à politica,
espaço ao qual não foi preparado a lidar ou que não foi inserido legitimamente pela vontade
do povo.
2 TRIBUNAL SUPERIOR ELEITORAL – COMPOSIÇÃO E FUNÇÕES
Como Órgão incumbido de comandar as eleições dos futuros representantes da
sociedade, a CF/88 confiou à Justiça Eleitoral, integrando-a ao Poder Judiciário, como é
verificando no seu artigo 92, V, o que significou que o controle do processo eleitoral fosse
realizado através de um sistema jurisdicional.
Tal Órgão é composto pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE), como órgão de última
instância em material eleitoral, pelos Tribunais Regionais Eleitorais (TER’s), como instância
intermediária, localizados nas capitais dos Estados-membros e Distrito Federal, pelas juntas
eleitorais e pelos juízes de direito das comarcas que respondem como juízes eleitorais em
primeira instância. Para fins desse trabalho científico, será procedida à análise apenas do TSE,
devido ser o Órgão promulgador da Resolução n° 22.610/2007, objeto de estudo deste
trabalho.
Com efeito, os membros do TSE, todos com a característica de ministros, são, em
sua maioria, magistrados (três ministros do STF – artigo 119, I, a CF/88 – e dois do STJ –
artigo 119, I, b, CF/88) e apenas dois operadores do direito que possuam notável saber
jurídico e idoneidade moral, indicados pelo STF e escolhidos pelo Presidente da República
(artigo 119, II, CF/88), dotando assim de um caráter heterogêneo a composição deste
Tribunal, onde seus membros exercerão mandato por 02 anos, com possibilidade de
recondução por igual período. É que o se chama de princípio da temporariedade das funções
do magistrado eleitoral, a evitar que o poder e o contato político tornem os seus membros
parciais. (PINTO, 2008, p. 47).
172
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
Quanto à competência do TSE, a mesma encontra-se determinada no artigo 121 da
CF/88 e delineada nos artigos 22 e 23 da Lei n° 4.737 de 15 de julho de 1965, os quais
dispõem que:
Art. 22. Compete ao Tribunal Superior: I - Processar e julgar originariamente: a) o
registro e a cassação de registro de partidos políticos, dos seus diretórios nacionais e
de candidatos à Presidência e vice-presidência da República; b) os conflitos de
jurisdição entre Tribunais Regionais e juizes eleitorais de Estados diferentes; c) a
suspeição ou impedimento aos seus membros, ao Procurador Geral e aos
funcionários da sua Secretaria; d) os crimes eleitorais e os comuns que lhes forem
conexos cometidos pelos seus próprios juizes e pelos juizes dos Tribunais
Regionais; f) as reclamações relativas a obrigações impostas por lei aos partidos
políticos, quanto à sua contabilidade e à apuração da origem dos seus recursos;
g) as impugnações á apuração do resultado geral, proclamação dos eleitos e
expedição de diploma na eleição de Presidente e Vice-Presidente da República;
h) os pedidos de desaforamento dos feitos não decididos nos Tribunais Regionais
dentro de trinta dias da conclusão ao relator, formulados por partido, candidato,
Ministério Público ou parte legitimamente interessada. (Redação dada pela Lei nº
4.961, de 1966) i) as reclamações contra os seus próprios juizes que, no prazo de
trinta dias a contar da conclusão, não houverem julgado os feitos a eles distribuídos.
(Incluído pela Lei nº 4.961, de 1966) j) a ação rescisória, nos casos de
inelegibilidade, desde que intentada dentro de cento e vinte dias de decisão
irrecorrível, possibilitando-se o exercício do mandato eletivo até o seu trânsito em
julgado. (Incluído pela LCP nº 86, de 1996) II - julgar os recursos interpostos das
decisões dos Tribunais Regionais nos termos do Art. 276 inclusive os que versarem
matéria administrativa. Parágrafo único. As decisões do Tribunal Superior são
irrecorrível, salvo nos casos do Art. 281. Art. 23 - Compete, ainda, privativamente,
ao Tribunal Superior, I - elaborar o seu regimento interno; II - organizar a sua
Secretaria e a Corregedoria Geral, propondo ao Congresso Nacional a criação ou
extinção dos cargos administrativos e a fixação dos respectivos vencimentos,
provendo-os na forma da lei; III - conceder aos seus membros licença e férias assim
como afastamento do exercício dos cargos efetivos; IV - aprovar o afastamento do
exercício dos cargos efetivos dos juizes dos Tribunais Regionais Eleitorais; V propor a criação de Tribunal Regional na sede de qualquer dos Territórios; VI propor ao Poder Legislativo o aumento do número dos juizes de qualquer Tribunal
Eleitoral, indicando a forma desse aumento; VII - fixar as datas para as eleições de
Presidente e Vice-Presidente da República, senadores e deputados federais, quando
não o tiverem sido por lei; VIII - aprovar a divisão dos Estados em zonas eleitorais
ou a criação de novas zonas; IX - expedir as instruções que julgar convenientes à
execução deste Código; X - fixar a diária do Corregedor Geral, dos Corregedores
Regionais e auxiliares em diligência fora da sede; XI - enviar ao Presidente da
República a lista tríplice organizada pelos Tribunais de Justiça nos termos do ar. 25;
XII - responder, sobre matéria eleitoral, às consultas que lhe forem feitas em tese por
autoridade com jurisdição, federal ou órgão nacional de partido político; XIII autorizar a contagem dos votos pelas mesas receptoras nos Estados em que essa
providência for solicitada pelo Tribunal Regional respectivo; XIV - requisitar a
força federal necessária ao cumprimento da lei, de suas próprias decisões ou das
decisões dos Tribunais Regionais que o solicitarem, e para garantir a votação e a
apuração; (Redação dada pela Lei nº 4.961, de 1966) XV - organizar e divulgar a
Súmula de sua jurisprudência; XVI - requisitar funcionários da União e do Distrito
Federal quando o exigir o acúmulo ocasional do serviço de sua Secretaria; XVII publicar um boletim eleitoral; XVIII - tomar quaisquer outras providências que
julgar convenientes à execução da legislação eleitoral.
Desse extenso rol de competência estabelecido ao Tribunal Superior Eleitoral, podese concluir que este órgão possui não somente a função jurisdicional, mas também
173
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administrativa, na medida em que pode se auto-organizar, elaborando regimento interno
próprio; consultiva, respondendo através de pareceres as dúvidas sobre matérias em tese
quando suscitadas por partidos políticos de âmbito nacional; e regulamentar, na medida em
que expede instruções com o fito de facilitar a execução das normas e do processo eleitoral, é
o exemplo da instrução sobre propaganda eleitoral, votação, apuração, registro de
candidaturas, etc.
Chamamos a atenção à função regulamentar do TSE. Sabe-se que em relação ao
regulamento, a Constituição Republicana atribuiu privativamente ao Presidente da República
a competência de promulga-lo – é o que prevê o artigo 84, IV da CF/88 – dando-o caráter de
mero ato administrativo, e não legislativo, o que importa afirmar que servem apenas para
especificar os mandamentos da lei ou prover situações ainda não disciplinadas por estas.7
Não obstante o fato da Lei Maior somente destinar ao Chefe do Executivo o poder de
promulgar regulamentos, o Código Eleitoral inovou e incluiu também o TSE tal poder.
Quanto a isso, não houve nenhuma argüição de inconstitucionalidade, até porque se partiu do
pressuposto que as instruções seriam simples atos de hierarquia infralegal, que não poderiam
contrariar as Leis e muito menos inovar o direito, sob pena de adentrar no ambiente destinado
ao Legislativo. Assim, tais regulamentos seriam apenas atos secundários, a complementar as
Leis, como bem definido pelos administrativistas.
Contudo, apesar da definição sobre os atos regulamentares, a situação ora encontrada
quando da publicação da Resolução do TSE n° 22.610/2007 estar a demonstrar o alargamento
desta função, chegando a possuir o viés de lei, como se abordará no tópico a seguir.
3 RESOLUÇÃO N° 22.610/2007 – ABORDAGEM HISTÓRICA E CRÍTICAS
Para melhor compreensão da Resolução n° 22.610/2007, faz necessário uma
abordagem inicial, ainda que de modo breve, dos motivos que desencadearam a sua edição
pelo TSE. Assim é que se pode afirmar que o constituinte originário, ao tratar dos partidos
políticos, e no âmbito de um processo de redemocratização vivenciado em 1987, estabeleceu
no Ordenamento a possibilidade do pluripartidarismo e atribuiu aos partidos o poder de
autonomamente definir sua própria estrutura interna, organização e funcionamento e escolher
o regime de coligações eleitorais, sem vinculação entre candidaturas em âmbito nacional,
estadual ou municipal, devendo o estatuto estabelecer normas sobre a fidelidade partidária. É
174
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
o que reza as normas inseridas no Capítulo V da CF/88. Ademais, tornou obrigatória a
filiação partidária a qualquer cidadão que desejar se eleger a algum cargo eletivo (artigo 14,
§3º, V da CF/88).
A escolha feita pelo legislador originário foi consciente da importância dos
partidos políticos para a concretização da democracia representativa, conquanto os mesmos
“exprimem um dos meios fundamentais no processo de legitimação do poder estatal, na
medida em que o povo tem, nessas agremiações, o veículo necessário ao desempenho das
funções de regência política do Estado”8. Não é sem razão a promulgação da Lei n° 9.096 de
19 de setembro de 1995, a qual, logo em artigo 1º dispõe que o partido político “destina-se a
assegurar, no interesse do regime democrático, a autenticidade do sistema representativo e a
defender os direitos fundamentais definidos na Constituição Federal”.
Para alcançar o fortalecimento dos partidos, salutar que a identidade política seja
preservada, que o plano político, os princípios e a ideologia propagada sejam mantidas para
além do período eleitoral. É daí que resulta a questão do candidato que obtém um mandato
eletivo através de um partido político de baixa representação se manter filiado durante todo o
mandato ao partido que o elegeu; os eleitores confiaram na ideia do partido, ou pelo menos se
presume que assim o fizeram. Caso o político migre para outro partido, até então o anterior
perderia a representação política, desfortalecendo-o, consequentemente. Tal prática, sob a
ótica da CF/88, estaria a infringir um direito fundamental assegurado ao partido político, que
é a questão da fidelidade partidária, como se observa na leitura da parte final do seu artigo 17,
§1º.
Apesar desse direito assegurado aos partidos, a Constituição brasileira foi omissa no
tocante em determinar quem seria o detentor do mandato: o partido político ou candidato? Em
razão disso, o então Partido da Frente Liberal – PFL (atual Democratas – DEM) manejou uma
Consulta ao TSE (Consulta n° 1398/DF), indagando ao referido órgão a quem pertenceria o
mandato eletivo em caso de pedido de cancelamento de filiação ou de transferência do
candidato eleito por um partido para outra legenda. Eis que o Tribunal, por maioria de 6 votos
a 1, entendeu que os mandatos obtidos nas eleições de sistema proporcional pertenceriam ao
partido político, o que geraria, então, a perda do mandato a diversos políticos que haviam
mudado de filiação à época, dando ampliação ao que dispunha a CF/88. E assim foi feito,
sendo solicitada, pelos partidos políticos, à mesa da Câmara dos Deputados a declaração da
vacância dos deputados de sua agremiação que se desfiliaram após a eleição, motivo pelo qual
175
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
desencadeou a recusa por parte da consultoria jurídica da Câmara, com base no artigo 55 da
CF/88.
Desta recusa, impetrou-se três Mandados de Segurança (MS n° 26.602, 26.603,
26.604) perante o STF, circunstância que, em 4 de outubro de 2007, esta Corte referendou a
decisão proferida pelo TSE de que o mandato pertence ao partido, recaindo no suplente do
partido a vaga surgida. Além disso, determinou que a perca de mandato por infidelidade
partidária ocorreria mediante procedimento administrativo a ser apreciado pela justiça
eleitoral e que o TSE editaria uma resolução disciplinando tal procedimento, fazendo-se
elencar os motivos autorizativos para a desfiliação partidária sem que incorra em infidelidade.
Com a chancela do STF, o TSE editou a Resolução n° 22.610/20079, disciplinando o
processo de perda de cargo eletivo e a justificação de desfiliação partidária, desencadeando, a
partir disso, alguns questionamentos quanto ao poder regulamentar do TSE. O motivo é
simples: o TSE, legislando positivamente, editou uma norma que não possui força
constitucional e que a mesma não encontra previsão na própria Constituição dispondo sobre a
perda de mandato eletivo a político que incorrer em infidelidade partidária. Como se aceitar
que um Poder diverso do Legislativo insira uma norma dentro da Constituição?
O TSE através da aludida Resolução invadiu competência do Poder Legislativo,
atribuindo ao rol taxativo do artigo 55 da CF/88 a hipótese de perda de mandato eletivo
decorrente de infidelidade partidária. Modificar, alterar, ampliar normas da Constituição,
como é cediço, apenas através de emenda constitucional, a exigir a aprovação de 3/5 de cada
casa legislativa. Entender de modo contrário estar-se-á permitindo que outras espécies
normativas não originadas do Legislativo modifiquem o texto constitucional; assim seria o
caso das sobreditas resoluções, dos decretos, das portarias, e porque não dizer das circulares
expedidas por órgãos administrativos. O caminho percorrido viola diretamente o princípio da
supremacia das normas constitucionais e da tripartição dos poderes.
Mas não é só, resulta da Resolução n° 22.610/2007 uma nova competência à Justiça:
processar e julgar os processos de políticos que tenham sido infiéis com seus respectivos
partidos; prazos e ritos são estabelecidos nesta resolução. Ora, o artigo 121 da CF/88
determina que apenas lei complementar disporá sobre competência dos tribunais, dos juízes e
das juntas eleitorais. E mais, o entendimento do TSE era o de que processo que intente
questionar o mandato eletivo devido a práticas de abuso de poder econômico ou político só
176
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
poderia ser interposto perante a Justiça Eleitoral durante o período eleitoral, findando com a
diplomação dos eleitos. Após esse período, discutir mandato eletivo ocorreria apenas perante
Justiça Comum. Contudo, através desta Resolução, o mandato pode ser questionado em
decorrência de infidelidade a qualquer tempo perante a Justiça Eleitoral. Pode-se então
visualizar uma manifesta inconstitucionalidade desta Resolução que deveria apenas deter
natureza um ato administrativo. Todavia, estabeleceu, por meio de um ato diverso de lei
complementar, uma nova competência ao TSE para processar e julgar , violando o preceito
normativo do art. 121 da CF/88.
E ainda, o TSE ao tratar dos aspectos procedimentais na mencionada Resolução não
se baseou em nenhum rito já existente no direito processual eleitoral. Na realidade, criou um
novo rito que conjuga o rito eleitoral da Ação de Impugnação de Registro de Candidatura com
o pedido de reconsideração admito nos Juizados Especiais Cíveis e Criminais (Lei n°
9099/95). Pela leitura do artigo 22, I da CF/88, conclui-se que compete apenas à União
legislar sobre direito processual. Como se observa, o TSE foi além do que determina a Carta
Magna, infringindo-a, por conseguinte, ao dispor sobre normas de direito processual.
Ademais, pode-se sustentar que a comentada Resolução adentrou em assunto interna
corporis dos partidos políticos, isso porque a CF/88, no artigo 17, §1º garantiu aos mesmos a
prerrogativa de dispor sobre as formas de acometimento de fidelidade partidária em seus
respectivos estatutos e os artigos 15, V e 23 da Lei n° 9.096/95 preceituaram que competiria
às agremiações partidárias apurar, em sede de processo disciplinar e desde que observada a
garantia da ampla defesa, os casos de infidelidade, possibilitando a aplicação de penalidades
aos seus filiados infiéis. Sobre tal tema, aliás, era o entendimento firmado pelo TSE,
consoante os precedentes jurisprudenciais a seguir:
Filiação partidária. Matéria interna corporis. Autonomia dos partidos políticos (art.
17, §1º da Constituição). Recurso a que se nega provimento. (TSE, Ac. n° 5, relator
min. Diniz de Andrada, julgado em 21 de março de 96)
Mandado de segurança. Partido Político. Expulsão de filiado. Admissível a
segurança contra a sanção disciplinar, se suprimida a possibilidade de o filiado
disputar o pleito, por não mais haver tempo de filiar-se a outro partido político. Não
há vício no ato que culminou com a expulsão quando, intimado de todas as fases do
processo disciplinar, o filiado apresentou ampla defesa. As razões moveram o
partido a aplicar a sanção disciplinar constituem matéria interna corporis, que não se
expõe a exame pela Justiça Eleitoral. Segurança denegada (TSE, Ac n° 2.821, relator
min. Garcia Vieira, julgado em 15 de agosto de 2000) (BRASIL, TSE, 2012, online)
Contudo, a Resolução dispõe em seu parágrafo segundo do art. 1º a possibilidade da
ação ser ajuizada perante a Justiça Eleitoral por qualquer pessoa que tenha interesse jurídico
177
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
ou pelo ministério público eleitoral (MPE). Ora, sendo o processamento dos casos de
infidelidade partidária de competência interna das agremiações, é de pressupor que apenas
estas possuem o interesse jurídico de interpor ações tratando de tal assunto. Assim, ao ampliar
o rol de legitimados, a Resolução está diretamente afrontando o art. 17, §1º da CF/88, de sorte
que retira dos partidos a autonomia de dispor sobre assunto interna corporis, de tratar
internamente do procedimento disciplinar contra casos de infidelidade, e de decidir,
politicamente, na observância de seus estatutos, quanto à plausibilidade de intentar ou não em
juízo a perca do mandato eletivo ao político ex-filiado sem justa causa: em caso de omissão
dos partidos, é que qualquer pessoa ou o próprio MPE se torna aptos a requerem em juízos.
Vale, ainda, afirmar que, ao utilizarmos os princípios de interpretação constitucional,
sob a perspectiva da hermenêutica constitucional, observamos que a Corte Eleitoral e a Corte
Constitucional, violaram o princípio da correção funcional. Para apresentar justificativa desta
argumentação é preciso explicar inicialmente que a hermenêutica constitucional pode ser
entendida como a ciência que tem por objetivo desenvolver métodos, princípios e técnicas
científicas de exegese das constituições, resultando da mesma a criação de diversas
modalidades de interpretação fixadoras de sentidos das normas da lei fundamental,
objetivando solucionar problemas práticos e aproximando os casos concretos do
disciplinamento das normas. Assim pode-se citar como métodos hermenêutio-concretizador,
idealizada por Hans-Georg Gadamer, na qual busca suprir deficiências normativas,
preenchendo se necessário for, lacuna constitucionais; o método científico-espiritual,
formulado por Rudolf Smend, em que as constituições devem ser interpretadas de modo
elástico e flexível, para acompanharam o dinamismo do Estado, e o método normativoestruturante, lançado por Friedrich Muller, cujo objetivo é que o intérprete constitucional não
separe o programa normativo, inserido nas constituições, da realidade social (BULOS, 2010,
p. 131).
Além disso, há princípios a ajudarem o intérprete a compreender a mensagem
inserida na constituição, e um deles é o princípio da correção funcional, o qual, segundo
Coelho (2010, p. 176):
[...]Tem por finalidade orientar os intérpretes da Constituição no sentido de que,
instituindo a norma fundamental um sistema coerente e previamente ponderado de
repartição de competências, não podem os seus aplicadores chegar a resultados que
perturbem o esquema organizatório-funcional nela estabelecido, como é o caso da
separação dos poderes, cuja observância é consubstancial à própria idéia de Estado
de Direito.
178
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
Por esta ótica, pode-se verificar que a interpretação constitucional dada pelo STF a
possibilitar a criação normativa do TSE encontra em desacordo com o texto constitucional, na
medida em que atribuiu novas funções à Justiça Eleitoral, vindo, em consequência, usurpar
competências do Legislativo e da União, violando a separação dos poderes e assim
perturbando o esquema organizatório-funcional estabelecido na Constituição.
Por fim, e não menos importante, é necessário destacar que o art. 5º, II da
Constituição Federal é bastante claro ao dispor que “ninguém será obrigado a fazer ou deixar
de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”, lei esta sendo compreendida como um ato
normativo editado e aprovado pelo Parlamento. Como é possível observar, traduz-se em um
direito atribuído a qualquer cidadão. A partir disso, a Constituição consolida a existência do
princípio da legalidade, juntamente com o da igualdade de todos perante a lei10. Ordenar de
modo contrário estará, em princípio, ofendendo a Constituição. E não é só, partindo-se do
pressuposto de que os enunciados constitucionais dispostos no artigo quinto são
caracterizados como direitos fundamentais, na medida em que estão protegidos pelo inciso IV
do §4° do art. 60, constata-se que uma obrigação dada a um cidadão cujo teor não encontra
escopo legal, ofenderá tais direitos fundamentais.
Nesse sentido, volvendo-se ao objeto em análise deste trabalho científico, como se
exigir que alguém faça ou deixe de fazer uma coisa em virtude de uma Resolução emanada do
Tribunal Superior Eleitoral, na qual não é lei, e nem poderá ser tida como? Eis o problema,
que, aliás, ganha proporção ainda maior na medida em que tal Resolução se estende aos
Órgãos do Poder Judiciário e a todas as esferas da administração pública, ocasionando que o
cidadão faça e deixe de pautar suas condutas não em virtude de lei aprovada pelos
congressistas, mas em virtude de decisão judicial.
É de se observar então que, em prol do ativismo judicial, estar-se a admitir a
relativização da norma constitucional do art. 5°, II, ou seja, do principio da legalidade,
ofendendo os direitos fundamentais, em favor da resolução, que em seu âmago guarda uma
inconstitucionalidade material e formal, tendo em vista que não obedeceu a um processo
legislativo.
CONCLUSÃO
O constitucionalismo contemporâneo, positivando-se nos textos constitucionais
direitos fundamentais relativos à dignidade da pessoa humana, a cidadania, ao meio ambiente,
179
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
respeito às minorias, dentre outros, no âmbito de nações re-democratizadas admitiu uma
concepção de que o Estado assumiria o compromisso de constantemente tornar efetivas tais
preceitos. Como afirma Vianna (1999, p. 40) “a vontade geral se encontraria, portanto,
hipostasiada na Constituição, com o que a sua concretização reclamaria a intervenção da
comunidade, institucionalizada na qualidade de intérprete do texto constitucional”. Alcançar
essa vontade geral implica em um Estado atuante, intervencionista, e a materialização desses
preceitos se dariam ao longo dos anos. Nesse contexto, apresenta-se o Poder Legislativo como
incumbido de tal tarefa haja vista ser o representante político da sociedade.
Todavia, a tarefa exercida pelo Parlamento, de modo especial o brasileiro, tem
demonstrado não ser satisfatória aos reclamos da sociedade, cada vez mais complexa, além de
continuarem sem efetividade diversos preceitos constitucionais, importando-se assim em um
sentimento de descrédito do Congresso. Daí porque se buscou alento no Judiciário, sobretudo
impulsionado pela imprensa brasileira (segundo comenta Lima (2006, p. 2) “um dos mais
evidentes mecanismos a empurrar o Judiciário para o ativismo é a imprensa brasileira”.).
Embora se afigure um caminho fácil e que, em princípio, demonstre ser aquilo que
proporcione resultados de forma mais célere e seguro, corre-se um grave risco ao judicializar
a política ao creditar ao Judiciário uma postura de ativista, tendo que adentrar ao universo da
política e exercendo práticas notadamente legiferantes e, por que não dizer, inovadoras,
usurpando a competência do Legislativo.
Isto se confirma a partir da análise dos preceitos consolidados pelos Tribunais
Superiores que tem força vinculante perante o Executivo e o Judiciário. E um deles está
relacionado à tentativa buscada pelo STF e pelo TSE de fortalecer os partidos políticos contra
os políticos que são infiéis com os quais conseguiram se eleger. Editou-se uma resolução com
status constitucional, disciplinando o rito de perca de mandato de eletivo, atribuindo-se nova
competência à Justiça Eleitoral e interferindo em assunto interna corporis dos partidos
políticos. Como abordado, essa tentativa não pareceu ser a melhor opção para fortalecer as
agremiações partidárias. A própria Constituição Federal restou malferida em diversos
preceitos, além do que se evidenciou uma inovação praticada pela Justiça Eleitoral, na medida
em que estabeleceu no artigo 55 da CF/88 mais uma circunstância a desencadear uma sanção
de perca de mandato. Uma vez exacerbado de sua competência, o TSE ocasionou pertubação
ao esquema organizatório-funcional estabelecidos às Instituições brasileiras pela CF/88.
180
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
Em diversos aspectos, portanto, mostra-se a Resolução n° 22.610/2007 eivada de
vícios e contrário aos ditames da Constituição. Releva igualmente um ato abusivo da Corte
Eleitoral em adentrar em seara destinada ao Parlamento, comprometendo a separação a dos
poderes. Tal fato não demonstra surpresa quando parte-se do pretexto de compreender que o
Judiciário não se preparou para atuar como protagonista da efetivação dos direitos
fundamentais. E nem é para está, pois não foram legitimados pelo povo para tanto.
Conclui-se, portanto, que apesar dos avanços conquistados por uma efetiva
democracia e valorização do homem, o caminho atribuído ao Judiciário tem apresentado ser
negativo aos anseios da sociedade. Em verdade, impunha-se que seja a verdadeira discussão
trabalhada no âmbito do Parlamento, como meio de alcançar a soberania nacional. Partir para
o ativismo judicial sob o escopo de um descrédito do legislativo não parece ser a melhor
solução; ao invés disso, seria preferível que a resolução desse dilema de desmoralização seja
feito de outra forma, qual seja: através do voto, da consciente escolha dos representantes
políticos, permitindo-se deixar ao alcance do Judiciário a apreciação dos casos concretos
postos a sua apreciação, o que em relação a isso já se encontra assoberbado.
Por fim, não é demais lembrar as palavras de Rousseau (1981, p. 96):
“O poder legislativo é o coração do Estado, o poder executivo é o cérebro, que dá o
movimento a todas as partes. O cérebro pode cair em paralisia e o indivíduo
prosseguir vivendo. Um homem fica imbecil e vive, mas assim que o coração cessar
suas funções, o animal está morto. Não é pela lei que o Estado subsiste, mas pelo
poder legislativo
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181
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182
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
1
Nesse sentido é o entendimento de José de Albuquerque Rocha (in: Estudos sobre o Poder Judiciário. São
Paulo: Malheiros, 1995, p. 70), de que o “Judiciário não está sujeito ao controle de qualquer poder, pois as
técnicas de defesa dos direitos fundamentais contra atos abusivos do Judiciário são internos, configurando o
chamado controle interno ou auto-controle [...]. Com efeito, se a Constituição é quem cria e organiza o Estado,
estabelecendo seus Poderes e demarcando-lhes as respectivas competências, quem interpreta a Constituição em
última instância e com caráter obrigatório para todos, controla a própria Constituição e, por extensão, o Estado e
seu Poderes, ao menos quanto ao aspecto jurídico-formal.
2
ROCHA, José de Albuquerque rocha, ob. cit. , p. 128
3
Para Barroso (on-line, p. 7), nessa época havia nessa época uma auto-contenção judicial, ou seja, o Poder
Judiciário evitava de aplicar diretamente a Constituição a situações que não estejam no seu âmbito de incidência
expressa, procuravam não interferir nas definições das políticas públicas e utilizavam critérios rígidos e
conservadores para a declaração de inconstitucionalidade de leis e atos normativos.
4
Por conta dessa redemocratização, sustenta BARROSO (on-line, p. 3) que “reavivou a cidadania, dando maior
nível de informação e de consciência de direito amplos segmentos da população, que passaram a buscar a
proteção de seus interesses perante juízes e tribunais.”
5
Não apenas se referindo ao Brasil, mas sim um contexto global, Garapon (2001, p. 48) ressalta que o “juiz é
chamado a socorrer uma democracia na qual legislativo e um executivo enfraquecidos, obcecados por fracassos
eleitorais contínuos, ocupados apenas com questões de curto prazo, reféns do receio e seduzidos pela mídia,
esforçam-se em governar, no dia-a-dia, cidadãos indiferentes e exigentes, preocupados com suas vidas
particulares, mas esperando do políticos aquilo que ele não sabe dar: uma moral, um grande projeto.
6
Nas palavras de Leal (2011, p. 4), essa experiência do controle de constitucionalidade demonstra que a “dicção
jurisdicional, ao abolir do sistema normativo dispositivos legais que se afigurem inconstitucionais, não só impõe
medidas corretivas das decisões do Parlamento, mas também outorga parâmetros indicativos do que se pode
chamar constitutional right legislative will, ou seja, a vontade do legislador conformada à Constituição
7
É o entendimento do conceituado administrativista Hely Lopes Meirelles (in Direito administrativo brasileiro,
36ª ed. São Paulo: Malheiros, 2010, p. 129), para quem o poder regulamentar é definido como “a faculdade de
que dispõem os Chefes de Executivo de explicar a lei para sua correta execução, ou de expedir decretos
autônomos sobre matéria de sua competência ainda não disciplinada por lei”.
8
Trecho extraído da ementa do processo de Mandado de Segurança 226003/2007, impetrada pelo Partido da
Social Democracia Brasileira – PSDB e julgada pelo Supremo Tribunal Federal em 4 de outubro de 2007, sob a
relatoria
do
Ministro
Celso
de
Mello.
Disponível
em
http://www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoTexto.asp?id=2403840&tipoApp=RTF>. Acesso em: 06 dez.
2012.
9
O TRIBUNAL SUPERIOR ELEITORAL, no uso das atribuições que lhe confere o art. 23, XVIII, do Código
Eleitoral, e na observância do que decidiu o Supremo Tribunal Federal nos Mandados de Segurança nº 26.602,
26.603 e 26.604, resolve disciplinar o processo de perda de cargo eletivo, bem como de justificação de
desfiliação partidária, nos termos seguintes:
Art. 1º - O partido político interessado pode pedir, perante a Justiça Eleitoral, a decretação da perda de cargo
eletivo em decorrência de desfiliação partidária sem justa causa.
§ 1º - Considera-se justa causa:
I) incorporação ou fusão do partido;
II) criação de novo partido;
III) mudança substancial ou desvio reiterado do programa partidário;
IV) grave discriminação pessoal.
§ 2º - Quando o partido político não formular o pedido dentro de 30 (trinta) dias da desfiliação, pode fazê-lo, em
nome próprio, nos 30 (trinta) subseqüentes, quem tenha interesse jurídico ou o Ministério Público eleitoral.
183
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§ 3º - O mandatário que se desfiliou ou pretenda desfiliar-se pode pedir a declaração da existência de justa causa,
fazendo citar o partido, na forma desta Resolução.
Art. 2º - O Tribunal Superior Eleitoral é competente para processar e julgar pedido relativo a mandato federal;
nos demais casos, é competente o tribunal eleitoral do respectivo estado.
Art. 3º - Na inicial, expondo o fundamento do pedido, o requerente juntará prova documental da desfiliação,
podendo arrolar testemunhas, até o máximo de 3 (três), e requerer, justificadamente, outras provas, inclusive
requisição de documentos em poder de terceiros ou de repartições públicas.
Art. 4º - O mandatário que se desfiliou e o eventual partido em que esteja inscrito serão citados para responder
no prazo de 5 (cinco) dias, contados do ato da citação.
Parágrafo único – Do mandado constará expressa advertência de que, em caso de revelia, se presumirão
verdadeiros os fatos afirmados na inicial.
Art. 5º - Na resposta, o requerido juntará prova documental, podendo arrolar testemunhas, até o máximo de 3
(três), e requerer, justificadamente, outras provas, inclusive requisição de documentos em poder de terceiros ou
de repartições públicas.
Art. 6º - Decorrido o prazo de resposta, o tribunal ouvirá, em 48 (quarenta e oito) horas, o representante do
Ministério Público, quando não seja requerente, e, em seguida, julgará o pedido, em não havendo necessidade de
dilação probatória.
Art. 7º - Havendo necessidade de provas, deferi-las-á o Relator, designando o 5º (quinto) dia útil subseqüente
para, em única assentada, tomar depoimentos pessoais e inquirir testemunhas, as quais serão trazidas pela parte
que as arrolou.
Parágrafo único – Declarando encerrada a instrução, o Relator intimará as partes e o representante do Ministério
Público, para apresentarem, no prazo comum de 48 (quarenta e oito) horas, alegações finais por escrito.
Art. 8º - Incumbe aos requeridos o ônus da prova de fato extintivo, impeditivo ou modificativo da eficácia do
pedido.
Art. 9º - Para o julgamento, antecipado ou não, o Relator preparará voto e pedirá inclusão do processo na pauta
da sessão seguinte, observada a antecedência de 48 (quarenta e oito) horas. É facultada a sustentação oral por 15
(quinze) minutos.
Art. 10 - Julgando procedente o pedido, o tribunal decretará a perda do cargo, comunicando a decisão ao
presidente do órgão legislativo competente para que emposse, conforme o caso, o suplente ou o vice, no prazo de
10 (dez) dias.
Art. 11 - São irrecorríveis as decisões interlocutórias do Relator, as quais poderão ser revistas no julgamento
final, de cujo acórdão cabe o recurso previsto no art. 121, § 4º, da Constituição da República.
Art. 12 - O processo de que trata esta Resolução será observado pelos tribunais regionais eleitorais e terá
preferência, devendo encerrar-se no prazo de 60 (sessenta) dias.
Art. 13 - Esta Resolução entra em vigor na data de sua publicação, aplicando-se apenas às desfiliações
consumadas após 27 (vinte e sete) de março deste ano, quanto a mandatários eleitos pelo sistema proporcional, e,
após 16 (dezesseis) de outubro corrente, quanto a eleitos pelo sistema majoritário.
Parágrafo único – Para os casos anteriores, o prazo previsto no art. 1º, § 2º, conta-se a partir do início de vigência
desta Resolução.
(Marco Aurélio – Presidente. Cezar Peluso – Relator. Carlos Ayres Britto . José Delgado. Ari Pargendler.
Caputo Bastos. Marcelo Ribeiro. Brasília, 25 de outubro de 2007). TRIBUNAL SUPERIOR ELEITORAL.
Resolução
n°
22.610/2007.
Disponível
em:
http://www.tse.jus.br/internet/partidos/fidelidade_partidaria/res22610.pdf>. Acesso em: 06 dez. 2012.
10
Sobre a Constituição Federal de 1988 ter como pilares o princípio da legalidade e da igualdade, especialmente
destacado no início do art. 5°, Lima (2008, p. 283) nos ensina que: O inciso II do 5º da Constituição consolida
uma das unânimes conquistas do constitucionalismo liberal democrático, qual seja, o princípio da legalidade que
consiste na determinação de que de ninguém será exigida conduta não prevista em lei. Referido princípio é
antecedido somente pelo elemento fundante do conteúdo da democracia na modernidade: a igualdade de todos
perante a lei, com ênfase à inequívoca condição de igualdade entre homem e mulher. Esta ordem de princípios
constitucionais não me parece aleatória, porém como produto da “razão da história”. Os outros princípios
constitucionais a precederem àquele da legalidade ratificam-no. É que a objetiva definição constitucional de que
o estado brasileiro é uma república democrática não deixa espaço para incertezas: somente se pode pensar uma
república democrática numa ambiência de igualdade e legalidade democráticas.
184
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
ATIVISMO JUDICIAL: A CONSTITUCIONALIDADE DAS SÚMULAS
E RESOLUÇÕES DO TRIBUNAL SUPERIOR ELEITORAL
JUDICIAL ACTIVISM: THE CONSTITUTIONALITY OF PRECEDENTS AND
RESOLUTIONS OF THE SUPERIOR ELECTORAL COURT
Antonio Carlos Segatto 
Ian Matozo Especiato 
RESUMO
Hodiernamente há um grande ativismo por parte do judiciário, principalmente entre as cortes
superiores, versando sobre assuntos diversos, dentro o âmbito de competência de cada
tribunal. Um desses importantes órgãos judiciários é o Tribunal Superior de Eleitoral (TSE),
que tem prestado grande ajuda para agilização do processo eleitoral e combatido a corrupção,
por meio, por exemplo, das resoluções que disciplinam as doações em campanhas de
candidatos. As medidas desse tribunal vêm sendo elogiadas pela imprensa e pela própria
sociedade, devido sua celeridade e eficiência em disciplinar matérias em que o legislativo é
moroso. Entretanto, por vezes, essa emissão de súmulas seria exagerada e inconstitucional,
porquanto afrontaria os princípios da legalidade, da divisão de poderes e o próprio devido
processo legal. Então, esse se torna o objetivo do presente ensaio, a discussão da
constitucionalidade dessas medidas do TSE, a validade das mesmas, a causa de existirem e
como elas podem ir de encontro à concretização dos Direitos Fundamentais.
PALAVRAS-CHAVE: Corte; Eleitoral; Normativa; Inconstitucionalidade.
ABSTRACT
Nowadays there is a big activism on the part of the judiciary, mainly between the upper courts
on various subjects within the scope of jurisdiction of each court. One of these important
judicial organs is the Superior Electoral Court (TSE), which has provided great help in
facilitating the electoral process and fought corruption, through, for example, of the
resolutions that govern donations in candidate campaigns. These measures of this Court have
been praised by the press and by society itself, due to its speed and efficiency in matters in
which the disciplinary legislation is lengthy. However, sometimes, this issue of precedents
would be excessive and unconstitutional, because would violate the principles of legality, of
division of powers and due process of law. So, this becomes the purpose of this test, the

Doutor em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Mestre em Direito Negocial
pela Universidade Estadual de Londrina (UEL). É Professor de Direito Constitucional da Universidade Estadual
de Maringá (UEM). Líder do Núcleo de Estudos Constitucionais (NEC) regularmente inscrito no diretório de
grupos de pesquisa do CNPq. Tem experiência na área de Direito, com ênfase em Direito Constitucional,
atuando principalmente nos seguintes temas: novos direitos e direitos fundamentais, garantias constitucionais,
efetividade da jurisdição e controle de constitucionalidade.

Graduando em Direito pela Universidade Estadual de Maringá (UEM), monitor do Núcleo de Estudos
Constitucionais (NEC), o qual tem como linha de pesquisa a Eficácia dos Direitos Fundamentais e controle de
constitucionalidade.
185
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
discussion of the constitutionality of the measures of the TSE, the validity of the same, the
cause there are and how they going towards the realization of Fundamental Rights.
KEYWORDS: Court; Electoral; Normative; Unconstitutional.
1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Com o advento das ideias iluministas surge no seu seio um pensador, que contribuiu,
significativamente, para o âmbito da Ciência do Direito, o seu nome: Charles-louis de
Secondat, barão de Montesquieu. Suas ideias eram vanguardistas para seu tempo, idealizava a
separação das três esferas de poder do estado: legislativo, executivo e judiciário. Imaginava o
desaparecimento do judiciário arbitrário da França, o qual era dominado pela nobreza e
subsistia à revelia desta, interpretando as leis com alto grau de discricionariedade, assumindo
a função do legislador positivo. Visualizava o sistema político britânico como o ideal, devido
à independência das funções estatais. 2
Em terras brasileiras, a partir do processo de independência, os constituintes
republicanos consagraram uma República Federativa, a qual passou por dois grandes períodos
turbulentos, que abalaram as instituições democráticas: o Estado Novo – 1937 a 1945- e o
Golpe de 64, que inaugurou o regime militar ditatorial.
As ideias do pensador francês ainda perduram, uma vez que a própria Carta Magna
nacional reconhece a divisão dos poderes estatais, em seu artigo 2º, em que determina que
eles devam ser “independentes e harmônicos entre si”. Todavia, tornou-se recorrente, em sede
pátria, a edição de resoluções e súmulas, com força de lei, por parte do poder judiciário em
face da omissão e morosidade do legislativo. Como exemplo, podem-se nominar as
resoluções do TSE (Tribunal Superior Eleitoral) ao disciplinar sobre o numero de vereadores,
processo eleitoral, inelegibilidade, corrupção, doações para campanhas, dentre outras
matérias.
2
Esse filósofo objetivava a salvaguarda da liberdade individual, para tanto, formulou o princípio da separação de
poderes do Estado, que se constitui como vetor constitucional de maior relevância no período liberalista. Ainda,
em sua época, a liberdade política foi fundamento de uma única Carta Política: a Constituição da Inglaterra,
desse modo se propõe a estudar os mandamentos de otimização por meio dos quais a liberdade é garantida no
sistema inglês. AUGUSTO, Natália Figueiroa; DOURADO, Edvânia A. Nougueira; ROSA, Crishna Mirella de
Andrade Correa. Dos Três Poderes de Montesquieu à Atualidade e a Interferência do Poder Executivo no
Legislativo no Âmbito Brasileiro. In: V CONGRESSO INTERNACIONAL DE HISTÓRIA, 2011, Maringá.
Anais online do V Congresso Internacional de História. p. 2638-2649. Disponível em:
http://www.cih.uem.br/anais/2011/trabalhos/213.pdf. Acesso em: 02 de fev. 2012.
186
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
Entretanto, questiona-se a constitucionalidade dessas resoluções, em face da
ingerência do poder judiciário em questões de competência do legislativo, em total violação
ao princípio da separação dos poderes, consagrado na Constituição Federal.
Dessa forma, esse presente ensaio tentará responder as indagações quanto à
inconstitucionalidade das resoluções e súmulas editadas pelo TSE, questionando-se, ainda, a
possibilidade de violação do princípio da separação dos poderes estatais.
2 ANTECEDENTES HISTÓRICOS DA JUSTIÇA ELEITORAL BRASILEIRA E
TRIBUNAL SUPERIOR ELEITORAL (TSE)
Por mais elitista que fora a Revolução de 1930, por possuir como objetivo central o
desmantelamento político do regime denominado “café com leite”, ou melhor, o regime do
“café”, visto que o candidato à sucessão do presidente Washington Luís seria Júlio Prestes
(paulista), havia nela certo cunho de moralização do sistema eleitoral. Por essa razão, um dos
atos primeiros do “governo provisório” foi a criação de uma comissão de reforma eleitoral,
cujos trabalhos resultaram na elaboração do primeiro Código Eleitoral do Brasil, instituído
pelo Decreto nº 21.076, de 24 de fevereiro de 1932. 3
O referido código criou a Justiça eleitoral que ficou responsável, dentre outros
assuntos, pelo alistamento, organização das mesas de votação, apuração dos votos,
reconhecimento e proclamação dos eleitos, bem como pela regulamentação do pleito eleitoral
nas três esferas da federação.
Em 1935, devido às críticas ao código de 1932, houve à promulgação do segundo
Código Eleitoral, com o surgimento da Lei nº 484. Posteriormente, em 1937, a Constituição
do Estado Novo, outorgada por Getúlio Vargas, extingui a Justiça Eleitoral e atribui
privativamente à União o poder de legislar sobre matéria eleitoral5.
3
José Carlos Francisco, explanando sobre a história dos partidos políticos, comenta: “A Revolução de 1930 e a
Segunda República (1930-1945) e, especialmente, o Decreto no 21.076/32 regularam eleições e dispuseram
sobre a existência jurídica dos partidos e sobre seus funcionamentos, prevendo partidos permanentes. (com
personalidade jurídica nos termos do artigo 18 do Código Civil da época) e partidos provisórios (formados
transitoriamente à véspera dos pleitos, apenas para disputá-los).” FRANCISCO, José Carlos. Traços históricos
dos partidos políticos: do surgimento até a segunda era da modernidade. Estudos Eleitorais, Brasília, v. 5, n.° 1,
p. 79-86, jan./abr. 2010. p. 81-82.
4
TRE/RN.
História
da
Justiça
Eleitoral.
Disponível
em:<http://www.trern.gov.br/nova/inicial/links_especiais/centro_de_memoria/artigos/historia_justicaeleitoral.htm> . Acesso em: 2
de jul., 2010
5
TSE. Institucional: História do TSE. Disponível em: <http://tse.gov.br/internet/institucional/o_tse.htm>.
Acesso em: 2 de jul., 2010.
187
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
Getúlio Vargas, pressionado pela oposição dos intelectuais, estudantes, religiosos e
empresários, fez editar a Lei Constitucional nº 9/45, que modificou vários artigos da
Constituição, inclusive os que tratavam dos pleitos. Já o Decreto-Lei 7.586, de maio de 1945,
restabeleceu a Justiça Eleitoral, bem como o Tribunal Superior Eleitoral.6
O processo de restabelecimento do sistema democrático no Brasil inicia-se ainda no
final do Estado Novo e é consolidado durante o governo Dutra. Com a redemocratização em
andamento, a Justiça Eleitoral reinstala-se com a posse do presidente Eurico Gaspar Dutra e
com ele veio a Assembléia Nacional Constituinte de 1945, resultando na Constituição de 18
de setembro de 1946, e esta, por sua vez, consagra a Justiça Eleitoral entre os órgãos do poder
judiciário.
Após a quadra denominada de “terceira república” por José Carlos Francisco, período
compreendido entre 1945 à 1964, dá-se início a “quarta república” – regime militar -, segundo
o autor a mesma:
[...] foi marcada por modificações no sistema partidário promovidas pelo AI
no 2, de outubro de 1965 (p. ex., adotando a fidelidade partidária, sob pena
de perda de mandato) e pela atuação da Arena (Aliança Renovadora
Nacional) e do MDB (Movimento Democrático Brasileiro), que seguiram na
vida política até a Lei no 6.767/79, que reformulou vários dispositivos da Lei
Orgânica dos Partidos Políticos para dar liberdade na criação de partidos, o
que se refletiu no atual sistema constitucional e legal, marcada pela
pluralidade e ampla existência de partidos constituídos como instituições
privadas e registradas na Justiça Eleitoral.7
A Justiça Eleitoral, bem como seu tribunal máximo, sobreviveu ao regime ditatorial
instituído pelo golpe político de 1964, sendo reafirmada no capítulo III – Do Poder Judiciário
– arts. 92, 119, 118, 120, 121, da atual Constituição Federal, promulgada em 1988, como um
dos órgãos essenciais à justiça.8
Nos anos que se seguiram à promulgação da Constituição Federal nota-se um
alargamento do ativismo judicial por parte da corte eleitoral. As questões controversas,
6
Em abril de 1960 com a mudança da capital federal para Brasília foi o TSE instalado em um dos edifícios da
Esplanada dos Ministérios. Já no ano de 1971, a sede do Tribunal foi transferida para a Praça dos Tribunais
Superiores, onde permanece até hoje (TSE, 2010).
7
FRANCISCO, José Carlos. op. cit. p. 82.
8
Não confundir com funções essenciais à justiça, próximo capítulo da Carta Magna de 1988. Usa-se a expressão
“órgão essencial à justiça” por se entender que a Justiça Eleitoral é indispensável à democracia, e que sem esta
não há propriamente um Estado de Direito, muito menos justiça, tida aqui como um ideal.
188
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
chamadas ou consideradas casos difíceis9, que pendem do conflito de comandos normativos
ou ainda não normatizados pelo legislador são sumulados e ganham validade quase
normativa, sendo que a própria decisão do TSE tem caráter definitivo, irrecorrível,
excetuando-se as que contrariem a Constituição e as denegatórias de habeas corpus e
mandado de segurança (art. 121, § 3º, CF). De acordo com Luís Roberto Barroso: “Mesmo
nesses casos excepcionais, a revisão só pode se dar por recurso específico – recurso
extraordinário e recurso ordinário – nunca por mandado de segurança ordinário (102, I, d,
CF)” 10.
O ativismo do TSE, principalmente em períodos eleitorais é tão intenso, que por vezes
se assemelha aos precedentes anglo-saxões, ao direito costumeiro, baseado em construções
jurisprudenciais (p. ex. sistema jurídico norte-americano). Em contrapartida, isso não se
constitui propriamente em novidade visto que o fenômeno de commonlawlização do civil law,
sistema precipuamente baseado no Direito escrito adotado em sede pátria, é recorrente nos
tribunais brasileiros, com ainda mais magnitude após a reforma do judiciário em 2004
conforme a Emenda Constitucional nº 45, que criou a súmula vinculante do Supremo Tribunal
Federal.
Antes da instituição do sistema de súmulas com caráter vinculante pela emenda
Constitucional nº 45/2004, a jurisprudência era tida como fonte secundária ou mediata do
direito. Todavia, a partir da retro-mencionada emenda, permitiu-se a aprovação pelo Supremo
Tribunal Federal (STF) de súmulas com conteúdo vinculante aos demais órgãos do poder
judiciário11.
Segundo Eneida Desiree Salgado, em sua tese de doutorado acerca dos princípios
estruturantes deste ramo jurídico:
9
De acordo com Lenio Luiz Streck, a ampla liberdade interpretativa tem suas raízes no positivismo, tanto no
decisicionismo Kelseniano, quanto na discricionariedade admitida por Hart na solução dos “casos difíceis”,
como se pode extrair do trecho: “A (histórica) discricionariedade positivista – embora (historicamente)
“limitada” pelo ordenamento jurídico – tem proporcionado uma espécie de “mundo da natureza hermenêutico”,
em que viceja a liberdade interpretativa (veja-se, por todos, o decisionismo kelseniano e a discricionariedade
admitida por Herbert Hart para a resolução dos hard cases), onde, no fundo, queiramos ou não, cada juiz decide
como quer (arbitrariamente), de acordo com a sua subjetividade (esquema sujeito-objeto), mesmo porque esses
“limites” do ordenamento são limites semânticos, os quais jamais foram obstáculo para as pretensões
positivistas, bastando, para tanto, um exame da incontável quantidade de súmulas (para falar apenas nesse tipo
de prêt-à-portêr) contra-legem e/ou inconstitucionais.” STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica,
Neoconstitucionalismo e “O Problema da Discricionariedade dos Juízes”. Anima – revista eletrônica do curso
de Direito da OPET, Curitiba, 1 ed., v. 1, p. 383-413. 2009. p. 390.
10
BARROSO, Luís Roberto. Constituição da República Federativa do Brasil anotada. 4. ed. São Paulo:
Saraiva, 2003, p. 601.
11
NOHARA, Irene Patrícia. Direito Administrativo. v. 1. São Paulo: Atlas. 2011, passim.
189
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
No Direito Eleitoral, braço estrutural do Direito Constitucional, pela atuação
da corte sustentada pelo tribunal máximo, parece persistir uma prática
jurisdicional de construção da regra pelo Poder Judiciário, sem respeito aos
precedentes, sem coerência, sem consistência e sem unidade. Uma mistura
pragmática (talvez esquizofrênica) entre commom law e civil Law. 12
O questionamento central gira ao redor dos limites do ativismo da Corte Eleitoral, de
questionamentos tais como: a emissão desenfreada de súmulas e resoluções é constitucional?
Pode o magistrado assumir o papel de legislador diante de questões até então não
normatizadas pelos parlamentares sem o sacrifício do princípio da independência harmônica
dos três poderes da república? E quando as dúvidas levadas ao TSE forem acerca da
efetivação de Direitos Fundamentais, não seria dever dos togados dessa corte estabelecerem
condições para efetivação desses direitos essenciais? Quais princípios constitucionais
eleitorais que devem ser observados quando os magistrados proferem as decisões ou sumulam
uma questão jurídica? Esses questionamentos serão devidamente debatidos a seguir.
3 ORIGEM E DESENVOLVIMENTO DAS SÚMULAS ELEITORAIS
René David agrupou em quatro categorias básicas os direitos da contemporaneidade,
sendo que a primeira seria composta por aqueles ligados à tradição romano-germânica ao
direito continental codificado, conhecido como civil law. Já a segunda classe de direitos
estaria ligada aos precedentes judiciais anglo-saxônicos, também chamado de common law.
Pode-se dizer que a terceira, qual seja, a vinculada dos “direitos socialistas”, não se avulta
quanto ao estudo do instituto “súmula”. A quarta seria composta por outra (s) acepção(s) da
ordem social e jurídica (direito muçulmano, hindu, entre outros). 13
O sistema jurídico brasileiro optou por adotar o aparato romano germânico,
influenciado pela Europa continental. O chamado civil Law, ou modelo codificado, atende
tanto ao pensamento indutivo quanto ao dedutivo, porquanto estabelece premissas normativas
obtendo conclusões por processos lógicos conduzindo-se, assim, a formulação de normas
gerais organizadoras.
12
SALGADO. Eneida Desiree. Princípios Constitucionais Estruturantes do Direito Eleitoral. Tese,
Programa de Pós-Graduação em Direito, Curso de Doutorado em Direito do Estado, Universidade Federal do
Paraná, Curitiba/PR, 2010, p. 1.
13
DAVID, René. Os grandes Sistemas do Direito Contemporâneo. Tradução de Hermínio A. Carvalho. 17.
ed. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 17.
190
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
Já o sistema da common law, do qual deriva, em parte, o instituto da súmula, apóia-se
em precedentes judiciais, do chamado stare decisis14, o caso já decidido, sendo que a decisão
primeira sobre o tema atua como fonte para o estabelecimento de uma direção a ser seguida
nos casos posteriormente julgados. Passa-se o precedente a ser fonte do direito, ganhando
força normativa.
Acerca da evolução do “direito sumular” no Brasil, pode-se dizer que no período
colonial as Ordenações Afonsinas não conheceram tal instituto. A partir das Ordenações
Manuelinas com o aparecimento dos assentos15, da Casa de Suplicação, a decisão dos juízes,
que extinguia a dúvida jurídica levada ao conhecimento da referida casa, formulava uma
proposição normativa. 16
A Constituição da República de 1891 extinguiu a pratica de assentos. Sendo instituída,
apenas em 1963, a Súmula da Jurisprudência Predominante do Supremo Tribunal Federal, por
meio de emenda regimental. A justificativa dada seria que a emissão de súmulas distinguiria a
jurisprudência firme, daquela que se achava em vias de fixação e também por razões
pragmáticas, inspiradas pelo princípio da igualdade. Por essa razão, pleitos iguais, em um
mesmo contexto histórico social, não poderiam ter decisões contrarias, logo, o leigo não a
compreenderia, o que fatalmente conduziria a sociedade à desconfiança do sistema jurídico o
que de fato poderia causar uma instabilidade política-institucional.
14
De acordo com Matheus Barreto Gomes o stare decisis seria a vinculação das decisões judiciais aos
precedentes jurisprudenciais que dispõe sobre o mesmo tema, ainda “(...) a teoria do stare decisis (da expressão
latina: stare decisis te non quieta movere) que significa: “mantenha-se a decisão, não se moleste o que foi
decidido, característica marcante do common law , vem ganhando força nos sistemas jurídicos filiados à família
do civil Law e, portanto, influenciando os contornos do ordenamento jurídico pátrio (...) é preciso ter em conta
que a ideia de que a regra do stare decisis é peculiar à família do common law é errônea, haja vista tratar-se de
um conceito lógico-jurídico e, portanto, aplicável a qualquer ordenamento jurídico – ao menos os ordenamentos
jurídicos ocidentais.” GOMES, Matheus Barreto. Precedentes Judiciais: legitimação pelo procedimento.
Dissertação, programa de Pós-graduação em Direito, Faculdade de Direito, Universidade Federal da Bahia,
Salvador/ BA, 2009, p. 48-50..
15
MUSCARI. Marco Antonio Botto. Súmula Vinculante. São Paulo: Juarez de Oliveira, 1999. p. 15- 16.
16
Segundo o Arquivo Edgard Leuenroth – Centro de Pesquisa e Documentação Social (UNICAMP) “A Casa da
Suplicação do Brasil foi criada após a transferência da Corte portuguesa para o Brasil pelo alvará de 10 de maio
de 1808, em substituição a Relação do Rio de Janeiro (1751-1808), órgão que tinha sobre sua jurisdição as
capitanias do Sul e Minas Gerais. Suas atribuições judiciais eram as de julgar em última instância todos os
agravos ordinários e apelações oriundas das Ilhas da Madeira e Açores, como também das províncias do Pará,
Maranhão, e da Relação da Bahia. Suas funções legislativas eram as de tomar providências quanto às ordenações
do Reino, a sanção de Leis, Decretos e Assentos. Segundo a obra Organização Judiciária Brasileira, “Não existe
nenhum diploma legal determinando a extinção da Casa da Suplicação.”. Mas na lei de 22 de setembro de 1828,
que extingue os Tribunais das Mesas do Desembargado do Paço e da Consciência e Ordens, fica claro, que as
funções atribuídas à Casa da Suplicação do Brasil foram paulatinamente absorvidas pelas Relações e pelo
Superior Tribunal de Justiça”. AEL, INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIENCIES HUMANAS – UNICAMP. A
Casa
da
Suplicação.
Disponível
em:
<http://segall.ifch.unicamp.br/site_ael/index.php?option=com_content&view=article&id=109&Itemid=90>.
Acesso em: 10 de abr. 2011.
191
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
Por seu turno, as súmulas do TSE não possuem caráter vinculante, porque esse
instrumento - sumula vinculante – é de competência exclusiva do Supremo Tribunal Federal,
sendo que esse enunciado produz efeitos de vinculação para os demais órgãos do Poder
Judiciário e da administração pública. A jurisprudência sumulada do TSE representa, em
verdade, súmulas de caráter persuasivo, que apesar de não vincularem os órgãos judiciários
inferiores, apresentam o entendimento pacificado do tribunal sobre a matéria, na medida em
que seu impacto é processual e indicativo, o que leva a persuasão dos demais órgãos judiciais
eleitorais a no sentido de decidirem da mesma forma.
4
RESOLUÇÕES
DO
TRIBUNAL
SUPERIOR
ELEITORAL
E
SUAS
CARACTERÍSTICAS
Além de legislar através de seus julgados, a corte eleitoral tem competência de emitir
resoluções normativas periódicas (em anos eleitorais – a cada biênio), para a fiel consecução
das eleições, o que implica afirmar não ser ele somente um órgão jurisdicional, atuando como
um verdadeiro Leviatã devido à cumulação de poderes – executivo (toma as providencias
cabíveis para a execução das eleições), legislativo (emite resoluções normativas) e judiciário
(julga lides).17
Essa prerrogativa, quase administrativa, do TSE é dada pela redação do artigo 23 do
Código Eleitoral (Lei. 4.737/ 1965), que em seu inciso IX prescreve ser da competência
privativa, deste tribunal, expedir quaisquer instruções que sejam convincentes a execução
desse mesmo código. 18
17
Explanando sobre ativismo judicial, Rafael da Silveira Petracioli comenta que “as causas principais que geram
e justificam o fenômeno, mesmo distintas, deságuam inevitavelmente na falibilidade dos outros poderes em
atender às demandas sociais hodiernas. E tais impossibilidades decorrem da mesma crise institucional
mencionada, criando um ciclo vicioso que parece impassível de interrupção. A própria inércia ou insuficiência
de atuação dos outros poderes gera ainda mais inércia e insuficiência, e assim tendem ad infinitum. É bem
verdade que o modelo é perigoso, tentador a quem o utiliza, posto que está a colocar o Judiciário como
protagonista absoluto da cena republicana. Seria de se pensar num absolutismo às avessas, onde órgãos
apolíticos assumiriam a face do Leviatã de Hobbes. Também é fato que o fenômeno é altamente passível de
críticas, algumas delas coerentes, que apontam tanto para a periculosidade comentada quanto para a
desconfiguração do sistema republicano”. PETRACIOLI, Rafael da Silveira. Ativismo judicial, democracia e
Direito Eleitoral. Disponível em: <http://jus.uol.com.br/revista/texto/13579/ativismo-judicial-democracia-edireito-eleitoral>. Acesso em 11 ago. 2010.
18
Interessante salientar que para Hans Kelsen a lacuna no processo eleitoral, p. ex., seria técnica, sendo assim
admitida mesmo por aqueles que, partindo de análise positivista, rejeitam à existência de lacunas próprias, ou
seja, brechas no Direito. Nas palavras do referido autor: “Ao lado das lacunas próprias costumam distinguir-se as
lacunas técnicas, que são consideradas possíveis mesmo por aqueles que, de um ângulo de visão positivista,
negam a existência de lacunas próprias. Uma tal lacuna técnica apresenta-se quando o legislador omite normar
algo que deveria ter normado para que de todo em todo fosse tecnicamente possível aplicar a lei [...] O órgão
encarregado de realizar a eleição pode determinar o processo de eleição como bem entenda. A determinação do
192
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
Antes da reforma eleitoral em 2009, o artigo 105 da Lei 9.504/1997 atribuía
considerável discricionariedade ao tribunal, no sentido de que, não impunha restrições quanto
aos critérios para emissão de resoluções - por vezes até contraditórias em se tratando de
resoluções de dois pleitos próximos - como se verifica na redação anterior desse artigo.19
A reforma eleitoral, empreendida pela Lei 12.034/ 2009, trouxe como principal
propósito, o de refrear o ativismo judicial da corte eleitoral, desse modo, o artigo 105, da Lei
Eleitoral 9.504/1997, adquiriu nova redação.
O novo dispositivo denota a clara intenção dos parlamentares, de reduzirem a atuação
do TSE, nesse quesito. O legislador derrogou a expressão “expedirá” e acrescentou a seguinte
redação ao artigo 105, in verbis: “atendendo ao caráter regulamentar e sem restringir direitos
ou estabelecer sanções distintas das previstas nesta Lei, poderá expedir todas as instruções
necessárias para sua fiel execução” (grifo nosso).
Anteriormente, o tribunal poderia adotar quaisquer providências que acreditasse serem
necessárias para a fiel execução da Lei 9.504/97 e, por conseguinte, das eleições, sendo assim,
sua discricionariedade era significativa, e ainda mais, arbitrária, visto que poderia criar
resoluções com alto grau de arbitrariedade, vez que não possuía limitação na lei
infraconstitucional. Logicamente, a eventual inconstitucionalidade poderia ser argüida em
sede de uma das ações de inconstitucionalidade que a Constituição dispõe, até ser levada por
meio de recurso extraordinário para apreciação do Supremo Tribunal Federal.
Todavia, a atual redação restringe o âmbito do protagonismo judicial, por mencionar
expressamente, que a atuação deverá atender ao caráter regulamentar, o que implica na
impossibilidade de estreitar direitos - não deve arvorar a si a função normatizadora, criadora
do direito, que compete ao legislador – e muito menos estabelecer sanções sem que sejam
aquelas cominadas pela própria lei.
Rafael da Silveira Petracioli, explanando acerca da função regulamentadora do TSE
diz que:
A utilidade das resoluções pretórias deveria ser encarada sob a
impossibilidade de se editarem novas leis a cada eleição, o que ocorre a cada
biênio. Portanto, prestam-se estes atos normativos a complementar os textos
das leis eleitorais, e, nesta missão, não é razoável a normatização contra
processo eleitoral é deixada a uma norma de escalão inferior”. KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. 6. ed.
Tradução de João Baptista Machado. São Paulo: Martins Fontes, 1998. p. 174.
193
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
legem ou ultra legem. Entretanto, não é assim que se apresenta a realidade.
No plano atual, a corte máxima eleitoral abusa do poder normativo que lhe
foi cedido, incluindo em suas resoluções preceitos sequer esboçado nas leis
pertinentes: cria prazos, normatiza sanções, inova institutos jurídicos.20
Essa nova redação do artigo 105 tem como objetivo harmonizar as resoluções
eleitorais por vezes contraditórias, e coibir a normatização contra legem ou ultra legem. Não é
dado a corte eleitoral abusar do poder, de certa forma normatizador que lhe é conferido. Em
face do princípio do devido processo legal, somente ao legislador é dado criar a lei.
Usurpando a função legislativa o tribunal estaria ferindo não só esse princípio constitucional,
como também o princípio da independência harmônica dos poderes da República.
5 A QUESTÃO HERMENÊUTICA E O ATIVISMO JUDICIAL
Com a ruína do método exegeta, o juiz passa a não apenas adequar a norma ao caso,
fazendo subsunção21, mas sim adquire a prerrogativa de buscar os objetivos da norma, de
interpretá-la de uma forma mais teleológica, não cabendo a ele somente declarar o conteúdo
desta. Dessa forma surge o receio, em parte da doutrina jurídica, sobre os limites da
interpretação do magistrado, ou seja, a barreira que proporcionará segurança jurídica ante as
construções jurisprudências, como as sumulas vinculantes – prerrogativas do Supremo
Tribunal Federal, que possuem uma quase força normativa e atribuem grande
discricionariedade aos magistrados na interpretação da lei.
As Constituições anteriores a 1988, viviam relegadas a planos secundários, vistas
como algo de diminuta normatividade, em face da baixa densidade constitucional vivenciada
pelo sistema jurídico pátrio, recheadas de programas que atribuíam ao legislador a função de
dar efetividade aos objetivos contidos em seu texto, o que não se concretizava diante da
omissão legislativa.
19
Antiga redação do Art. 105, Lei 9.504/97. Até o dia 5 de março do ano da eleição, o Tribunal Superior
Eleitoral expedirá todas as instruções necessárias à execução desta Lei, ouvidos previamente, em audiência
pública, os delegados dos partidos participantes do pleito.
20
PETRACIOLI, Rafael da Silveira. A minirreforma eleitoral e o ativismo judicial do TSE. Disponível em: <
http://jus.uol.com.br/revista/texto/13654/a-minirreforma-eleitoral-e-o-ativismo-judicial-do-tse> . Acesso em
11 ago. 2010.
21
Matheus Barreto Gomes, afirma que há algum tempo atrás, não muito, predominava na mentalidade dos
juristas que o “Direito era o mesmo que retirar o verdadeiro sentido e o real alcance da lei”, dessa forma “O juiz
não podia desobedecer à letra da lei sob pretexto de penetrar em seu espírito; os códigos – afirmavam – nada
deixavam ao arbítrio do interprete, este já não tinha por missão fazer o Direito, pois o Direito já estava feito.”
GOMES, Matheus Barreto. op. cit., p. 113.
194
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
A Carta Magna de 1988, no entanto, representa uma quebra de paradigma, na medida
em que adquiriu força normativa, tanto em seus princípios quanto em suas regras, e
condiciona toda a legislação inferior, e também a hermenêutica dos magistrados que a ela
devem se vincular. Entretanto, mesmo o atual texto constitucional, que é dirigente, tende a
não se concretizar em face da história e costumes dos tribunais brasileiros.
Segundo Lenio Luiz Streck:
[...] é preciso compreender que o direito – neste momento histórico – não é
mais ordenador, como na fase liberal; tampouco é (apenas) promovedor,
como era na fase do welfare state (que nem sequer ocorreu no Brasil); na
verdade, o direito, na era do Estado Democrático de Direito, é um plus
normativo em relação às fases anteriores, porque agora é transformador da
realidade. E é exatamente por isso que aumenta sensivelmente o polo de
tensão em direção à invenção contra majoritária: a jurisdição constitucional,
que no Estado Democrático de Direito, vai se transformar na garantidora dos
direitos fundamentais-sociais e da própria democracia. 22
Ante ao ativismo judicial surge um obstáculo hermenêutico, qual seja, toda a resposta
dada ao caso concreto, tem que se ajustar, ou melhor, buscar fundamento de validade na
Constituição Federal. A decisão jurisprudencial necessita conter justificação que a legitime
em um Estado democrático de Direito que prima pelos direitos fundamentais. O juiz, num
primeiro momento, tem que compreender os objetivos e o sentido do texto constitucional,
para depois proceder à interpretação e aplicação da norma, a fim de que sua decisão não
venha a ser baseada na subjetividade, o que levaria a arbitrariedade.
Percebe-se, desta forma, que há carência de se limitar o poder hermenêutico do juiz,
quando se verifica o decréscimo da liberdade de conformação do legislativo, em prejuízo do
aumento do ativismo judicial, principalmente da justiça constitucional (que possui súmulas
que vinculam os tribunais inferiores). Esse imperativo de limitação pode ser suprido pela
interpretação e aplicação da norma ancorada na Constituição Federal, que é compromissória e
dirigente, e confere, ao cidadão, o direito fundamental de obter uma resposta do poder
judiciário adequada a ela.
Em sede da corte eleitoral, apesar de não possuir um instituto que tenha força de lei
(como o STF – súmula vinculante), o TSE acumula funções das três esferas de poder,
22
STRECK, Lenio Luiz. Verdade e consenso: Constituição, Hermeneutica e Teorias Discursivas. Da
possibilidade à necessidade de respostas corretas em direito. 3 ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009, p. 11.
195
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
relativamente reduzido pela reforma de 2009, emitindo resoluções que condicionam as
eleições que, por sua vez, vinculam-se a um direito fundamental, mais precisamente, o direito
a votar e ser votado e, genericamente, o direito à democracia.
5.1 O Ativismo Judicial e a Jurisdição Eleitoral
A onda de “commonlawlização”- aproximação com o sistema do direito costumeiro,
não escrito - nos tribunais brasileiros, principalmente nas cortes superiores, não se constitui
propriamente em novidade para os pesquisadores do direito. Denota-se um grande ativismo
judicial quando o legislador se faz silente nas questões que deveria regular, passando o
magistrado a atuar como regulamentador, ou melhor, colmatador de lacunas do sistema
jurídico. Isso não se faz diferente na atuação da corte eleitoral, que excede sua função de
colmatar a legislação para efetivamente criá-la, emitindo resoluções, por vezes, contra ou
ultra legem e “legislando” por meio de seus julgados.
Com o neoconstitucionalismo, não se espera mais que o juiz seja “a boca da lei” como
dantes almejavam os positivistas, o ativismo judicial, principalmente em um órgão
indispensável à democracia, como o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), tem vital importância,
no sentido de que coíbe com mais efetividade os abusos eleitorais, tais como captação ilícita
de eleitores e abuso de poder econômico, do que efetivamente faz o legislador pátrio.
Em se tratando de legislação eleitoral, os parlamentares são extremamente
corporativos, como se verifica na pequena reforma efetivada pela Lei 12.034/09, que apesar
de restringir a competência do corte eleitoral, refreando a atuação intensa desta, pouco se
tratou dos financiamentos privados das campanhas e nem se chegou a cogitar a implantação
de um sistema de financiamento somente público dos pleitos. Ao contrário, as instituições que
não poderiam doar aos candidatos estão protegidas pelo anonimato da doação, que não é feita
propriamente ao candidato, mas sim ao partido, constituindo-se em doação indireta, já que
este repassará a quantia àquele.
Dessa forma, o protagonismo judicial do TSE se faz necessário, na medida em que se
coíbe praticas eleitorais desleais, e inova, moderniza a legislação eleitoral, tão oprimida
quanto a real necessidade de reforma eleitoral. Todavia, há que se combater a chamada
“ditadura da toga”
23
quando o tribunal possui tanto poder, que acaba por eclipsar as outras
instâncias governamentais – legislativo e executivo.
23
Sobre a mais contundente objeção contra a criação jurisprudencial do direito, qual seja, a legitimação
democrática do mesmo, o italiano Mauro Cappelletti: “Essa taciturna admoestação [crítica de Lord Develin ao
196
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
Desse modo, percebe-se que há o imperativo de respeito aos princípios estruturantes
do direito eleitoral, tais como:
O
princípio constitucional
da
autenticidade
eleitoral, o princípio
constitucional da liberdade para o exercício do mandato eletivo, o princípio
constitucional da necessária participação das minorias no debate público e
nas instituições políticas, o princípio constitucional da máxima igualdade na
disputa eleitoral e o princípio constitucional da legalidade específica em
matéria eleitoral. 24
Como consagra a própria Constituição da República, as decisões dos magistrados são
livres, mas têm de ser fundamentadas.25 Essa fundamentação advém da própria Constituição,
não se deseja um magistrado exegeta, mas aquele que esteja comprometido com as promessas
de modernidade da Constituição, com o modelo de sociedade que ela dispõe. Um julgador que
atue na concretização de direitos sociais sempre respeitando defendendo e efetivando os
ditames constitucionais.
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A ditadura gera um temor natural aos nacionais, ainda mais quando já se passaram
grandes períodos de República, como é o caso do Brasil, sob julgo de regimes autoritários,
como a Era Vargas (que teve fim em 1945) e o regime militar (cujos resquícios só foram
deixados para trás, de fato, com o advento da atual Constituição em 1988). De igual modo, a
ditadura dos togados, magistrados, é também temível.
Há que se considerar que os ministros do TSE, ou quaisquer juízes, não devem tomar
decisões sem que elas sejam fundamentadas na Constituição, visando, sempre uma correta
fundamentação a Direitos Fundamentais. Dessa forma, além de se estar preservando o Estado
Direito Jurisprudencial] não pode ser considerada como ligeireza; muito menos no caso do ativismo judiciário
desenvolvido no âmbito do controle judiciário das leis, em que a criatividade do juiz pode se considerar não
apenas como a “desviação” da estrada principal do “processo legislativo”, mas sem hesitação como “obstáculo”
ao livre curso do mesmo. E certamente reconhece-se que até um judiciário inicialmente dedicado à proteção da
liberdade dos cidadãos, pode terminar, malgrado seu, por se transformar em instrumento de tirania, se privado
por longo tempo de legitimação democrática”. CAPPELLETTI, Mauro. Juízes Legisladores? Tradução de
Carlos Alberto Alvaro de Oliveira. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1993. p. 94.
24
SALGADO. Eneida Desiree. op. cit., p. 4.
25
Art. 93, inciso IX, Constituição Federal: “todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos,
e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade, podendo a lei limitar a presença, em determinados
atos, às próprias partes e a seus advogados, ou somente a estes, em casos nos quais a preservação do direito à
intimidade do interessado no sigilo não prejudique o interesse público à informação”.
197
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
Democrático de Direito, estar-se-á, também, privilegiando a segurança jurídica, a harmonia
das decisões, que devem seguir uma regularidade para que a população tenha maior fé no
poder judiciário.
A corte eleitoral, de dois em dois anos, acumula um pouco de cada poder da
República, porquanto emite resoluções normativas, com força de lei dentro de seu âmbito de
aplicação, dá providências cabíveis para o fiel cumprimento dos pleitos, função executória, e
julga as lides provenientes de matéria eleitoral, que chegam por via recursal. Então, é de se
esperar que haja uma limitação em todo esse poder. Essa restrição se deu com o advento da lei
Lei 12.034/2009, que visou diminuir o protagonismo judicial principalmente contra e ultra
legem ou que retirasse direitos.
As resoluções desse tribunal não são inconstitucionais na medida em que seguem uma
regularidade, respeitando princípios constitucionais-eleitorais, e tendo como limite os Direitos
Fundamentais ligados à democracia. Já as súmulas do TSE, surgem com intuito de criar certa
regularidade nas decisões da justiça eleitoral como um todo. Não possuem caráter vinculante,
somente persuasivo, isso implica em dizer que a decisão do magistrado inferior, que contrarie
a súmula da corte eleitoral, não será reformada somente em virtude disso. Se ela possuir
correta fundamentação em Direitos Fundamentais, poderá ser válida assim mesmo.
É função do próprio TSE o resguardo na democracia, a mantença desta e a moralidade
dos pleitos. Por vezes o legislador é moroso em regulamentar direitos essenciais à população,
e quando estiver debaixo da competência desse tribunal a efetivação de Direito Fundamental,
como a representação obrigatória das minorias no debate público e nas instituições políticas,
faz-se imperioso que ele o efetive, que crie possibilidades, seja através de resoluções eleitorais
ou da fixação firme da jurisprudência para que o direito do cidadão de aplicação imediata seja
respeitado. Em um país, vítima de tantas ondas de corrupção (que já não causam tanto espanto
em seus nacionais) como é o Brasil, é necessário um ativismo judicial eleitoral um tanto
quanto enérgico, sempre limitado pelos ditames constitucionais e nunca diminuindo direitos
dos cidadãos sem que antes haja o devido processo legal ou regular recurso judicial.
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200
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
DO PODER CONSTITUINTE ORIGINÁRIO COMO FORMA DE MANIFESTAÇÃO
DO DIREITO NATURAL, A FIM DE FUNDAMENTAR A PROTEÇÃO DA
DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA, EVIDENCIANDO UMA NOVA REGRA
HERMENÊUTICA PARA O ORDENAMENTO JURÍDICO
THE CONSTITUENT POWER ORIGINATE AS A FORM OF DEMONSTRATION OF
NATURAL LAW, IN ORDER TO SUBSTANTIATE THE PROTECTION OF THE
DIGNITY OF THE HUMAN PERSON, SHOWING A NEW HERMENEUTIC RULE FOR
THE LEGAL SYSTEM
Cleide Aparecida Gomes Rodrigues Fermentão1
http://lattes.cnpq.br/4532145888110686
Luis Gustavo Liberato Tizzo2
http://lattes.cnpq.br/2210465457037662
RESUMO
O presente artigo objetiva realizar um breve estudo sobre o Poder Constituinte Originário sob
o viés de que este decorre e se fundamenta no direito natural. A partir de então se busca fazer
um paralelo com a dignidade da pessoa humana, a qual possui base valorativa pautada
também no direito natural, com o fim de demonstrar a estreita relação entre o poder
constituinte e a promoção dos direitos humanos, direitos fundamentais e direitos da
personalidade, os quais se formam de maneira análoga com a promoção da dignidade humana.
Por fim, aponta-se a dignidade como o vetor interpretativo de todo o ordenamento jurídico,
devendo influenciar no processo hermenêutico das normas, em qualquer esfera judicial ou
administrativa.
PALAVRAS-CHAVE: Poder Constituinte Originário; Direito Natural; Dignidade da Pessoa
Humana; Hermenêutica.
ABSTRACT
This article aims to hold a brief study on the constituent power originating in under a bias that
this derives from and is based in natural law. From then we search make a parallel with the
dignity of the human person, which has basic valuative based also in natural law, to
demonstrate the close relationship between the constituent power and the promotion of human
1
Doutora em Direito das relações sociais pela UFPR (Universidade Federal do Paraná), Mestre e graduada em
Direito pela UEM (Universidade Estadual de Maringá); professora no Programa de Mestrado, especialização e
graduação do CEUMAR (Centro Universitário de Maringá); membro do IBDFAM; do Instituto dos Advogados
do Paraná; Advogada. Endereço eletrônico: [email protected]
2
Mestrando em Direito pelo CESUMAR (Centro Universitário de Maringá); Pós-graduado em Direito
Constitucional Contemporâneo pelo IDCC (Instituto de Direito Constitucional e Cidadania); Graduado em
Direito Pela PUC-PR (Pontifícia Universidade Católica do Paraná); Advogado; Juiz Leigo. Endereço Eletrônico:
[email protected]
201
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
rights, fundamental rights and duties of the personality, which are formed in a similar way
with the promotion of human dignity. Finally, it indicates the dignity as the vector of
interpretative throughout the legal system, and should influence the hermeneutic process of
the rules, in any judicial or administrative.
KEY WORDS: Constituent Power Originate; Natural Law; Dignity of the human person;
Hermeneutic.
INTRODUÇÃO
Um dos temas mais controversos no estudo do direito constitucional é a teoria do
poder constituinte. Vários são os entendimentos a respeito e poucos são os aprofundamentos
teóricos sobre o assunto. Não reflete a intenção deste artigo discorrer exaustivamente sobre
poder constituinte, todavia, buscar-se-á a inserção do assunto dentro de um contexto sistêmico
do direito, no qual a teoria por si não reproduz valor se não adequada ao objeto que a justifica.
O aspecto filosófico-axiológico da teoria mencionada é objeto da presente pesquisa
conjuntamente com o direito natural, no sentido de que o poder constituinte possui estreita
ligação com o jusnaturalismo, decorrendo deste.
A presente pesquisa enfrentará os seguintes questionamentos: seria o direito natural
autêntico fundamento ao poder constituinte a ponto de legitimar uma exegese não
exclusivamente vinculada ao formalmente estabelecido? O axioma dignidade encontrara seu
conceito primeiro no direito natural? Seria válida uma decisão judicial pautada no viés da
dignidade, sem tanto apego ao pragmatismo formal?
Para o desenvolvimento do tema, a pesquisa será dividida em três partes; a primeira
se refere ao poder constituinte, sendo que, dentre as suas classificações, será analisado – de
forma específica – somente o poder originário, diante da carga valorativa que este possui, o
qual se comunica com o escopo do trabalho, de caráter fundamentalmente axiológico.
A segunda parte se refere ao direito natural, apontando aspectos gerais, conceito e
características, bem como traçando uma relação com a teoria do poder constituinte. Por fim, a
terceira parte do trabalho versa sobre a dignidade da pessoa humana, como valor fundamental
do Estado, extraída também do direito natural, e de importância reconhecida pelo Poder
Constituinte que resultou na promulgação da Constituição Federal de 1988.
No exame da dignidade da pessoa humana como valor, será discorrido sobre sua
função vetorial, influenciando a interpretação e aplicação das leis. Porém a sua análise como
valor hermenêutico não se reduzirá ao aspecto meramente de disposição constitucional, mas
de mandamus principiológico, cuja justificação é mais profunda.
202
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
1 DO PODER CONSTITUINTE
1.1 Dos aspectos gerais
Tratar sobre poder constituinte não é uma tarefa das mais simples, haja vista as
divergências doutrinárias existentes acerca do assunto. Em que pesem as diferenças de
posicionamentos encontradas no meio científico, não se pode perder de vista que a teoria do
poder constituinte é uma teoria de legitimidade do poder. Segundo o jurista Paulo Bonavides,
esta teoria “surge quando uma nova forma de poder, contida nos conceitos de soberania
nacional e soberania popular, faz sua aparição histórica e revolucionária em fins do século
XVIII”3.
Importante esclarecer que não se pode confundir o poder constituinte em si e sua
teoria, eis que esta represente a organização teórica e didática de algo já existente; ou seja, o
poder constituinte, para sua existência, prescinde da teoria, mas esta não se perfaz sem seu
objeto de estudo.
Alexandre de Moraes, de maneira sucinta e direta, afirma que “o Poder Constituinte é
a manifestação soberana da suprema vontade política de um povo, social e juridicamente
organizado”4. Neste viés estrutura-se um pensamento no sentido de que o poder constituinte é
aquele capaz de fazer nascer um núcleo social, sendo o elemento corporificador do
documento que se denomina Constituição, da qual se extraem os preceitos normativos
identificadores do Estado.5
A partir do momento em que se entende que tal poder é capaz de fazer nascer um
núcleo, e não que decorre deste, conclui-se que seu trato envolve questões anteriores ao
próprio nascimento do Estado. Note-se o interessante apontamento feito por Walter Claudius
Rothenburg:
O sujeito histórico que estabelece uma Constituição detém e exerce uma
capacidade, uma força social, designada ‘poder constituinte originário’.
Portanto, nesse sentido, ‘poder constituinte’ é uma ‘energia’, uma função,
um ‘algo’ e não um ‘alguém’ (um sujeito).6
3
BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 27. ed., atual. São Paulo: Malheiros, 2012.
p.147.
4
MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. 23. ed., atual. São Paulo: Atlas, 2008. p. 26.
5
TEMER, Michel. Elementos de direito constitucional. 20. ed., rev. e atual. São Paulo: Malheiros,
2005. p.29.
6
ROTHENBURG, Walter Claudius. Direito constitucional. São Paulo: Verbatim, 2010. p. 69.
203
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O poder constituinte se estabelece como um poder essencialmente soberano, o qual
ao teorizar-se, marca as nuances (metamorfose) do poder, que por ele alcança a máxima
institucionalização ou despersonalização. Assim, pelo norte valorativo, o poder constituinte
manifesta um conceito de legitimidade, uma crença às virtudes que aderem ao seu titular, de
que é inseparável, ou com o qual ordinariamente vem a confundir-se.7
O poder constituinte, por meio da estrutura advinda de sua teorização, pode ser
classicamente classificado como originário ou reformador, no sentido de criar a norma
constitucional ou de alterá-la, evidenciando sua amplitude. Alguns autores entendem que o
poder constituinte se limita a criação originária do Direito enquanto outros compreendem que
este é bem mais amplo, incluindo uma criação derivada do Direito por meio da reforma do
texto constitucional, adaptando-o aos processos de mudança sociocultural, e ainda o poder
constituinte decorrente, característica essencial de uma federação, quando os entes federados
recebem (ou permanecem com) parcelas de soberania expressas na competência legislativa
constitucional.8
1.2 Do Poder Constituinte originário
Trata-se de um poder responsável pela criação do Estado, conferindo-lhe uma
primeira Constituição ou, por meio da ruptura da ordem jurídica existente, estabelece um
novo modelo de Estado, dando-lhe nova Constituição. Nesse sentido, o poder constituinte
originário está localizado fora do Direito, precedendo o Estado e a Constituição, os quais são
criados por ele.9
Paulo Bonavides destaca a dificuldade em se identificar sobre quem recai a
titularidade do poder constituinte10; retirando-se da indagação de legitimidade, a qual abrange
considerações valorativas, deixando de lado o fundamento ou a justificação da pessoa
investida nesse poder, a resposta se mostra mais evidente. Assim, sua identificação sobre a
titularidade se equivale à trazida por Zulmar Fachin, ao apontar como titular do poder
7
BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 27. ed., atual. São Paulo: Malheiros, 2012.
p.149-150.
8
DANTAS, Ivo. Poder Constituinte e Revolução. Rio de Janeiro: Rio Sociedade Cultural, 1978. p.33.
9
FACHIN, Zulmar. Curso de direito constitucional. 5. ed., rev., atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense,
2012. p.48-49.
10
BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 27. ed., atual. São Paulo: Malheiros, 2012.
p.164-165.
204
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
constituinte, de acordo com as circunstâncias históricas, Deus, o Monarca, a Nação, e –
finalmente – o povo.11
O poder constituinte, dentre as características que possui, destaca-se que é inicial (em
razão de sua obra – a Constituição – ser a base da ordem jurídica), ilimitado, autônomo e
incondicionado (pois não está condicionado ao direito anterior, não precisando respeitar
preceitos estabelecidos por direito positivo antecedente).12
Canotilho sintetiza essas características, com relação ao poder originário, dizendo
que:
O poder constituinte, na teoria de Sieyés, seria um poder inicial, autônomo e
omnipotente. É inicial porque não existe, antes dele, nem de facto nem de
direito, qualquer outro poder. É nele que se situa, por excelência, a vontade
do soberano (instância jurídico-política dotada de autoridade suprema). É um
poder autónomo: a ele e só a ele compete decidir se, como e quando, deve
‘dar-se’ uma constituição à Nação. É um poder omnipotente,
incondicionado: o poder constituinte não está subordinado a qualquer regra
de forma ou de fundo.13
Ressalta-se que as características do poder constituinte originário decorrem da
corrente cuja doutrina foi desenvolvida. Pedro Lenza destaca que a corrente jusnaturalista não
reconhece de forma absoluta o caráter ilimitado de tal poder, eis que deve observar e se pautar
nos ditames estabelecidos pelo direito natural. Em suas palavras, para os positivistas, nem
mesmo o direito natural limitaria a atuação do poder constituinte.14
Conforme se observa, é bastante controversa a natureza do poder constituinte. Para
os de formação jusnaturalista, se trata de um poder de direito; para outros, em regra
positivistas, trata-se de um poder de fato. De acordo com a primeira tese, o poder constituinte
originário é um poder de direito, tendo por fundamento o Direito natural, que é anterior e
superior ao Direito do Estado.15 Segundo Manoel Gonçalves Ferreira Filho “deste Direito
natural decorre a liberdade de o homem estabelecer as instituições por que há de ser
11
FACHIN, Zulmar. Curso de direito constitucional. 5. ed., rev., atual. e ampl. Rio de Janeiro:
Forense, 2012. p.50-51.
12
MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. 23. ed., atual. São Paulo: Atlas, 2008. p. 28.
13
CANOTILHO, J. J. Gomes, apud MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. 23. ed., atual. São
Paulo: Atlas, 2008. p. 28.
14
LENZA, Pedro. Direito constitucional esquematizado. 14. ed., rev., atual. e ampl. São Paulo:
Saraiva, 2010. p. 155.
15
FACHIN, Zulmar. Curso de direito constitucional. 5. ed., rev., atual. e ampl. Rio de Janeiro:
Forense, 2012. p.49.
205
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
governado. Destarte, o poder que organiza o Estado, estabelecendo a Constituição, é um poder
de direito”16.
E é sobre esta perspectiva, de poder constituinte respaldado nas regras axiomáticas
do direito natural, que se direciona a reflexão ora construída, razão pela qual se mostra
oportuno tecer consideração sobre essa escola de pensamento jurídico.
2
DO
DIREITO
NATURAL:
CONCEITO,
CARACTERÍSTICAS
E
SUA
COMUNICAÇÃO COM A TEORIA DO PODER CONSTITUINTE
A Escola Jusnaturalista, ou do Direito Natural, possui longa tradição, a qual remonta
desde os filósofos gregos, caracterizando-se como a Escola fundada no pressuposto de que
existe uma lei natural, eterna e imutável, uma ordem preexistente.17
Um dos primeiros registros literários acerca da doutrina que embasa o Direito
Natural pode ser verificado na história da personagem Antígona, escrito por Sófocles. Note-se
a seguinte passagem, quando a personagem principal responde ao rei Creonte se teve a
audácia de desobedecer a sua determinação:
Sim, porque não foi Júpiter que a promulgou; e a Justiça, a deusa que habita
com as divindades subterrâneas jamais estabeleceu tal decreto entre os
humanos; nem eu creio que teu édito tenha força bastante para conferir a um
mortal o poder de infringir as leis divinas, que nunca foram escritas, mas
são irrevogáveis; não existem a partir de ontem, ou de hoje; são eternas,
sim! E ninguém sabe desde quando vigoram!18
O Jusnaturalismo reivindica a existência de uma lei natural, eterna e imutável,
diferente do sistema normativo fixado por um poder institucionalizado (direito positivo),
englobando as mais diversas manifestações do idealismo, traduzindo-se na crença de um
preceito superior advindo da vontade divina, da ordem natural das coisas, do instinto social,
ou mesmo da consciência e da razão do homem.19
Agostinho Ramalho destaca que:
16
FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Curso de direito constitucional. 31. ed. São Paulo: Saraiva,
2005. p.23.
17
NUNES, Rizzatto. Manual de introdução ao estudo do direito. 5. ed., rev. e ampl. São Paulo:
Saraiva, 2003. p.39.
18
SÓFOCLES. Antígone. Traduzido por J. B. de Mello e Silva. Ebooksbrasil, 2005. Disponível em:
<http://www.ebooksbrasil.org/adobeebook/antigone.pdf>. Acesso em 26 ago. 2012. p. 30.
19
WOLKMER, Antonio Carlos. Ideologia, Estado e direito. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1989.
p.124.
206
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
O jusnaturalismo é uma corrente de pensamento jurídico tão ampla, que
podemos afirmar que, tomado em seu sentido lato, o termo engloba todo o
idealismo jurídico, desde as primeiras manifestações de uma ordem
normativa de origem divina, passando pelos filósofos gregos, pelos
escolásticos e pelos racionalistas do século XVII e XVIII, até chegar às
modernas concepções de Direito Natural formuladas, entre outros, por
STAMMLER (1856-1938) e DEL VECCHIO (1878-1970).20
De acordo com Ana Lúcia Sabadell “o direito natural é, ao mesmo tempo, anterior à
criação da sociedade e das instituições políticas e superior ao direito escrito, estabelecido pela
sociedade”21. Este conceito se mostra extremamente válido, evidenciando o nascedouro do
poder constituinte originário, o qual não poderia decorrer do acaso.
Diante desses conceitos conclui-se que o direito natural é aquele que tem em toda
parte (pantachoû) a mesma eficácia, prescrevendo ações cujo valor não depende do juízo que
sobre elas tenha o sujeito, mas existe independentemente do fato de parecerem boas a alguns e
más para outros; tratam-se de ações cuja bondade é objetiva.22 No viés da eficácia muito
próximo também é o entendimento acerca do poder constituinte originário, possuindo eficácia
comum e de abrangência geral no âmbito do exercício de sua titularidade.
A teoria acerca do Direito Natural desenvolveu-se, basicamente, em três vertentas,
uma de natureza teológica, outra cosmológica, e, por fim, a antropológica. A percepção
teológica considera o Direito Natural como decorrente do divino, no sentido de que a natureza
não é o que se vê em razão do modo de ser da coisa, mas também pelo fato de que Deus assim
a criou.23 Assim, o Direito Natural seria fundamentado na vontade de Deus, como produto de
sua decisão, a qual cria uma lei eterna que passa a gerir o universo. O Deus cristão concede ao
homem a possibilidade de refrear o mundo, e – em seqüência – outorga-lhe a lei a ser
seguida.24
Conforme a matéria e a doutrina jusnaturalista foi sendo aperfeiçoada surgiu a
divisão do tema em subvertentes de pensamento, todas com um ponto comum, mas divergente
quanto a identificação e manifestação da norma axiomática apriorística.
A primeira vertente a ser analisada é a cosmológica, a qual, nas palavras de António
Braz Teixeira é assim identificada:
20
MARQUES NETO, Agostinho Ramalho. A ciência do direito. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2001.
p. 91.
21
SABADELL, Ana Lúcia. Manual de sociologia jurídica: introdução a uma leitura externa do direito. 2.
ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. p. 22.
22
BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico: lições de filosofia do direito. Tradução de Márcio
Pugliesi. São Paulo: Ícone, 1999. p.17.
23
TEIXEIRA, António Braz. Sentido e valor do direito: introdução à filosofia jurídica. Lisboa: IN-CM,
1990. p. 124.
24
SABADELL, Ana Lúcia. Manual de sociologia jurídica: introdução a uma leitura externa do direito. 2.
ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. p. 26.
207
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
O Direito Natural clássico dos gregos compreende uma concepção
essencialista ou substancialista do Direito Natural: a natureza contém em si
a sua própria lei, fonte de ordem, em que se processam os movimentos dos
corpos, ou em que se articulam os seus elementos constitutivos essenciais.
A ordem da natureza é permanente, constante e imutável. Trata-se da
concepção cosmológica da natureza, que marcou o pensamento grego présocrático.25
Para o entendimento grego existiria uma cosmologia antiga (palavra que decorre do
termo Cosmos, cujo significado é natureza ordenada), formadora do mundo e composta por
vários seres, dentre eles o ser humano. Neste viés os homens são vistos como mortais
enquanto o mundo é tido como imortal. Razão pela qual, o mundo, por meio de sua natureza e
de suas leis (embasadas na idéia de imortalidade) impõe-se aos seres mortais, no qual o
homem está inserido.26
Por sua vez, o entendimento antropológico destaca que os preceitos do Direito
Natural são oriundos da razão humana, pois a natureza ocupa o lugar de emanadora das
normas jurídicas, entretanto, o entendimento acerca destas não se dá pela natureza, e sim pela
compreensão racional do homem, e a colocação – da norma – em prática.27 Neste momento
tem-se a laicização da Ciência Jurídica em razão do desenvolvimento de uma metodologia
própria, baseada na razão.
Conferindo uma forma diferente de análise, Miguel Reale traz duas divisões para o
Jusnaturalismo, sendo relevante sua inclusão no presente texto:
De maneira geral podemos dizer: são duas as diretrizes fundamentais do
Direito Natural, uma transcendente e outra transcendental. Considero
transcendente a doutrina clássica, de inspiração aristotélica-tomista,
segundo a qual seria possível estabelecer a priori uma estrutura nominativa
válida em si e por si e capaz de dar-nos, a um só tempo, a compreensão e o
fundamento da ordem jurídica positiva [...]. Já a teoria transcendental, de
inspiração originariamente kantiana, mas não necessariamente vinculada ao
formalismo de Kant, afirma, de um lado a exigência a priori de
determinados “valores jurídicos”, mas, de outro, os situa em função da
experiência histórica do Direito, visto partir-se da afirmação essencial de
que só se pode falar em “condição transcendental” em função de uma
realidade “possível”.Nesta segunda colocação do problema, que me parece
mais plausível, o Direito Natural correlaciona-se com “invariáveis
25
TEIXEIRA, António Braz. Sentido e valor do direito: introdução à filosofia jurídica. Lisboa: IN-CM,
1990. p. 126.
26
SABADELL, Ana Lúcia. Manual de sociologia jurídica: introdução a uma leitura externa do direito. 2.
ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. p. 26.
27
BITTAR, Eduardo Carlos Bianca; ALMEIDA, Guilherme Assis de. Curso de filosofia do direito. São
Paulo: Atlas, 2001. p. 227.
208
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
axiológicas” que viram se revelando por meio do processo histórico, sem
serem, no entanto, meros produtos da história.28
Em todas as suas principais vertentes, o jusnaturalismo é fiel ao seu pressuposto
apriorístico, representado pela idéia de uma lei natural, eterna e imutável, traduzida na
existência de um universo já legislado, sendo – esta lei – reflexo da inteligência divina, ou da
ordem natural das coisas, ou da razão do homem em seu intuito social. Em qualquer que seja
o caso é por meio da razão que se pode compreender a lei natural, entretanto, a razão não
chega a trabalhar sobre realidades concretas, mas volta-se para si, descobrindo os princípios
universais dessa lei, válidos para sempre.29
Importante observar que o Direito Natural não se reduz à Axiologia Jurídica ou à
Teoria da Justiça; eis que no Direito Natural a vis compusiva – própria dos valores – se
converte em vis normativa, própria da juridicidade, ao exemplo dos direitos humanos. Por
certo que são poucos os valores fundantes ou universais dos quais decorrem normas jurídicas,
sendo que – conforme destaca Miguel Reale – cada período histórico contribui para o
surgimento de novas invariáveis axiológicas.30
Na leitura do citado autor não se pode ignorar sua vertente culturalista, a qual resulta
na análise dos pressupostos axiomáticos vinculados, em boa parte, ao momento e a evolução
histórica do próprio valor; todavia, tal perspectiva pode resultar em uma conclusão que se
distancia um pouco do sentido inicial do jusnaturalismo, ao reconhecer a evolução conceitual
do tema de acordo com elementos condicionantes, sendo que o Direito Natural classicamente
se apega à existência de valores e preceitos imutáveis, de característica atemporal e universal,
e estas se inserem no seio social por meio de normas criadas – eventualmente – por questões
históricas e culturais, contudo, não depende delas para o reconhecimento de sua validade,
vigência e reivindicação.
Note-se o apontamento de Alessandro V. Zenni:
Por instinto natural uma sociedade se estabelece, os grupos se formam por
disposição ontológica, ordenadas a atingir o bem, seja nas aglomerações
menores, como no âmbito familiar, seja na realidade estatal, há sempre um
direito natural que vincula a todos os integrantes do grupo. Este será o
ponto de partida de todo o direito, seu enraizamento ontológico elementar e
natural, todo aporte ao posterior direito positivo que venha a ser legislado e
aplicado.31
28
REALE, Miguel. Direito natural/ direito positivo. 1. ed., 2. tir. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 46.
MARQUES NETO, Agostinho Ramalho. A ciência do direito. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2001.
p. 92.
30
REALE, Miguel. Direito natural/ direito positivo. 1. ed., 2. tir. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 16.
31
ZENNI, Alessandro Severino Váller. A crise do direito liberal na pós-modernidade. Porto Alegre:
Sergio Antonio Fabris Editor, 2006. p. 125.
29
209
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
Parte-se da premissa de que o bem reside naturalmente nos seres humano, e a partir
disto emanam-se todas as regras de direito, por pura radicação ontológica. Alessandro V.
Zenni destaca que esta é a gênese do Direito Natural, e ainda acrescenta que “a vida humana é
uma plêiade carregada de valores, busca realização com sentido, enfim, ordenada ao bem, tal
qual outras realidades da ‘natura’”.32
Diante de sua base principiológica, alguns autores consideram que o ordenamento
jurídico, para ser legítimo, tem de se conformar com o Direito Natural; não sendo suficiente
que as normas jurídicas apresentem uma validade formal (vigência) e social (eficácia). Há
necessidade de uma validade ética ou intrínseca (legitimidade) e, a natureza das coisas – ou o
justo natural – constitui a medida, por excelência, dessa validade; sem ela, os comandos legais
deixam, em rigor, de ter força e natureza de lei. 33
O pressuposto apriorístico de que o ser humano é voltado naturalmente para o bem, e
que o desejo de alcançá-lo é algo radicado no seio social faz brotar a idéia de tutela e
preservação da dignidade da pessoa, como forma de garantir sua existência voltada para o
bom. Consequentemente, o poder constituinte originário, decorrente do direito natural, traz
em seu bojo as regras de valor da qual o jusnaturalismo está fundamentado, entre elas citamse a idéia de fazer o bem, dar a cada um o que lhe é devido, agir honestamente, dentre outras
ordenanças axiológicas que permeiam o conceito de dignidade da pessoa humana.
3 DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA
3.1 Dos aspectos gerais
O artigo 1º, inciso III, da Constituição Federal coloca o princípio da dignidade da
pessoa humana como fundamento do Estado Democrático de Direito e ponto de convergência
dos direitos fundamentais. A partir disso pode-se ir além, considerando a dignidade como a
base dos direitos da personalidade, é possível afirmar que o respeito a tais direitos também
podem ser entendidos também como fundamento do Estado Democrático de Direito.
Cleide Fermentão afirma que:
32
ZENNI, Alessandro Severino Váller. A crise do direito liberal na pós-modernidade. Porto Alegre:
Sergio Antonio Fabris Editor, 2006. p. 124-125.
33
CHORÃO, Mário Bigotte. Temas fundamentais de direito. Coimbra: Almedina, 1991. p. 106.
210
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Pessoa humana e dignidade humana podem ser analisadas como sinônimas
diante da importância de cada uma para o direito. É particularmente
importante nos dias atuais refletir sobre a noção de pessoa e procurar
entender o valor da pessoa humana, na dignidade ontológica e ética.34
A dignidade passou a ser habitualmente definida como constituindo valor próprio
que identifica o ser humano como tal, definição esta que acaba por não contribuir para uma
compreensão satisfatória do que efetivamente é o âmbito de proteção da dignidade. Deve-se
sempre ter em mente que a dignidade é algo real, algo vivenciado concretamente por cada ser
humano.35
Alexandre de Moraes a define como “um valor espiritual e moral inerente à pessoa,
que se manifesta singularmente na autodeterminação consciente e responsável da própria vida
e que traz consigo a pretensão ao respeito por parte das demais pessoas”36.
Uma análise detalhada dos direitos e garantias da personalidade e sua aplicação
perante diversos casos concretos existentes no Brasil podem identificar a ocorrência de
eventuais desprezos, desconsideração ou inobservância do vetor maior da Carta
Constitucional: o princípio da dignidade humana. Tal situação deve ser rechaçada do sistema
jurídico existente, pois na tutela jurisdicional o magistrado “deve ter em mente, como bem
maior a ser protegido, a dignidade do ser humano”37, afastando toda e qualquer interpretação
equivocada que afronte este princípio.
Na doutrina, destaca-se o ensinamento de Uadi Lammêgo Bulos, para quem o
princípio da dignidade humana, esculpido no artigo 1º, inciso III, da Carta Maior é:
o vetor que agrega em torno de si a humanidade dos direitos e
garantias fundamentais do homem, expressos na Constituição de 1988.
Quando o Texto Maior proclama a dignidade da pessoa humana, está
consagrando um imperativo de justiça social, um valor constitucional
supremo. Por isso, o primado consubstancia o espaço da integridade
moral do ser humano, independente de credo, raça, cor, origem ou
status social. O conteúdo do vetor é amplo e pujante, envolvendo
valores espirituais (liberdade de ser, pensar, criar, etc.). Seu
acatamento representa a vitória contra a intolerância, o preconceito,
ma exclusão social, a ignorância e a opressão. A dignidade humana
reflete, portanto, um conjunto de valores civilizatórios incorporados
ao patrimônio do homem. Seu conteúdo jurídico integra-se às
34
FERMENTÃO, Cleide Aparecida Gomes Rodrigues. Direito à liberdade: por um paradigma de
essencialidadade que dê eficácia ao direito personalíssimo da liberdade. Curitiba: Juruá, 2009. p.
170.
35
SARLET, Ingo Wolfgang. Dimensões da dignidade: ensaios de filosofia do direito e direito
constitucional. As dimensões da dignidade da pessoa humana: construindo uma compreensão
jurídico-constitucional necessária e possível. 2. ed., rev. e ampl. Porto Alegre: Livraria do Advogado
Editora, 2009. p. 18.
36
MORAES, Alexandre de. Direitos humanos fundamentais. 9. ed. São Paulo: Atlas, 2011. p.48.
37
NUNES, Luiz Antonio Rizatto. Manual de filosofia do Direito. São Paulo: Saraiva, 2004. p. 363.
211
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
liberdades públicas, em sentido amplo, abarcando aspectos
individuais, coletivos, políticos e sociais do direito à vida, dos direitos
pessoais tradicionais, dos direitos metaindividuais (difusos, coletivos e
individuais homogêneos), dos direitos econômicos, dos direitos
educacionais, dos direitos culturais, etc. Abarca uma série de bens,
sem os quais o homem não subsistiria. A força jurídica do pórtico da
dignidade começa a espargir efeitos desde o ventre materno,
perdurando até à morte, sendo inata ao homem. Notório é o caráter
instrumental do princípio, afinal ele propicia o acesso à justiça de
quem se sentir prejudicado. No Brasil, o Supremo Tribunal Federal e
o Superior Tribunal de Justiça têm reconhecido a importância da
dignidade humana.38
A dignidade, na condição de valor intrínseco da pessoa humana, não poderá ser
sacrificada, já que, em si mesma insubstituível. Em que pese a máxima anteriormente descrita,
poderão ser justificadas violações da dignidade de tal sorte a sacrificá-las. Neste sentido já
não se poderá falar de um princípio absoluto, impedindo reconhecer que mesmo prevalecendo
em face de todos os demais princípios e regras do ordenamento não há como afastar a
necessária relativização (ou se preferir, a conivência harmônica) do princípio da dignidade da
pessoa em homenagem à igual dignidade de todos os seres humanos. 39
A dignidade do ser humano é, dessa forma, valor conformador e está presente em
todo o direito, seja nas relações econômicas entre particulares, como um contrato, seja nas
relações existenciais, como no direito de família e nos direitos de personalidade, seja nas
relações entre o indivíduo e o Estado, como no direito tributário e no direito penal.40
Percebeu-se então que as pessoas não deveriam ser protegidas apenas em suas
relações com o Estado, mas também nas suas relações particulares. Também nessa esfera de
atuação dos indivíduos deve haver cuidado para que a liberdade e a igualdade meramente
formal não se transformem em exploração acobertada pelo individualismo jurídico, versão do
liberalismo econômico. É nessa circunstância que se resgata o valor do ser humano também
nas relações privadas. A dignidade da pessoa humana passa a ser valor fundamental também
para esse tipo de situações reguladas pelo direito privado. O indivíduo deve ser protegido
contra o Poder Publico e também contra os abusos cometidos pelos mais fortes nas relações
privadas. Essa proteção do indivíduo é necessária mesmo nas relações privadas de âmbito
38
BULOS, Uadi Lammêgo. Curso de Direito Constitucional, 2ª ed., de acordo com a Emenda
Constitucional n. 56/2007. Saraiva: São Paulo, 2008. p. 392.
39
SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição de
1988. 7° ed., rev. e atual. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009. p. 82-83.
40
BORGES, Roxana Cardoso Brasileiro. Direitos da personalidade e autonomia privada. 2. ed. São
Paulo: Saraiva, 2007. p. 83.
212
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
mais íntimo, como as relações familiares: também aí o indivíduo merece proteção contra
abusos que possam vir a ser cometidos pelos membros de sua própria família. 41
O Princípio da Dignidade da Pessoa Humana possui importância constitucionalmente
enfatizada, compreendido como um dos fundamentos da República, vista como um axioma da
civilização ocidental42. Deste modo deve-se entender que sua correta utilização reflete a
aplicação de conceitos éticos que se convalidam na própria existência social, como valor
emanante do compromisso ético com a comunidade (decorrente do direito natural).
3.2 Breves apontamentos acerca da distinção entre Direitos da Personalidade. Direitos
Fundamentais e Direitos Humanos
O tema, Direitos da Personalidade, encontra-se deveras próximo de outros temas de
Direito, tal como os Direitos Humanos e os Direitos Fundamentais, dialogando-se entre si,
sendo que alguns doutrinadores tratam as três modalidades, como sinônimos. Alexandre de
Moraes define o que chama de direitos humanos fundamentais como:
o conjunto institucionalizado de direitos e garantias do ser humano que tem
por finalidade básica o respeito a sua dignidade, por meio de sua proteção
contra o arbítrio do poder estatal e o estabelecimento de condições mínimas
de vida e desenvolvimento da personalidade humana.43
O conceito trazido possui seu valor prático, havendo juristas que unificam o
conceito, contudo, parece ser mais coerente a identificação semântica de cada uma das
espécies de direitos apontadas, eis que não se pode ignorar seus elementos diferenciadores,
bem como o entendimento de que os Direitos Fundamentais não são garantias somente contra
o Estado, mas também em face do particular, como decorrência lógica do princípio da
universalidade.44
Nesse viés deve-se ponderar que os Direitos Humanos podem ser absolutos e
relativos, os relativos são os que todos os membros da sociedade jurídica tem na sua
comunidade legal (exemplo: direito ao voto); já os absolutos são aqueles referentes aos
direitos que todos possuem frente a todos (exemplo: direito a vida). Os direitos Humanos,
41
BORGES, Roxana Cardoso Brasileiro. Direitos da personalidade e autonomia privada. 2. ed. São
Paulo: Saraiva, 2007. p. 84.
42
BARCELLOS, Ana Paula. A eficácia jurídica dos princípios constitucionais. Rio de Janeiro:
Renovar, 2008. p. 121.
43
MORAES, Alexandre de. Direitos humanos fundamentais. 9. ed. São Paulo: Atlas, 2011. p. 20.
44
SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais: uma teoria geral dos direitos
fundamentais na perspectiva constitucional. 10. ed., rev., atual. e ampl. Porto Alegra: Livraria do
Advogado, 2010. p. 209-210.
213
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independentemente de serem absolutos ou relativos, são considerados suprapositivos ou
morais, configurando uma ordem jurídica superior, capaz de servir de fundamento universal
para todo o sistema jurídico.45
Os Direitos Humanos, em sua perspectiva ampla (absolutos e relativos) se positivam,
nas Constituições dos Estados, como Direitos Fundamentais, indicando aí o elemento
diferenciador entre ambos.46 Segundo Adriano de Cupis “todos os direitos, na medida em que
destinados a dar conteúdo à personalidade, poderiam chamar-se ‘direitos da personalidade’”.47
Parte da doutrina considera que os direitos da personalidade são inatos e impostos
por meio da natureza das coisas. Por outro lado – a exemplo de Adriano de Cupis48 – há
críticas à gênese jusnaturalista dada aos direitos da personalidade, dispondo que estes se
justificam historicamente, o que não se sustenta atualmente, pois a concepção dos direitos da
personalidade, por serem inatos e invulneráveis ao arbítrio do Estado não abona a imposição
de direitos à sociedade, independente da formação política, cultural ou social. 49
Os direitos da personalidade são reconhecidos como direitos subjetivos, e
representam os valores essenciais da personalidade humana, tendo como objetivo a tutela da
dignidade.50 A personalidade não se identifica com os direitos e com as obrigações jurídicas,
constituindo uma precondição destes, seu fundamento e pressuposto; nas palavras de Adriano
de Cupis “a personalidade seria uma condição física destinada a ser revestida de direitos,
assim como os direitos seriam destinados a revestir essa mesma configuração”51.
É por meio dos direitos da personalidade que o ser humano tem tutelado a garantia e
o respeito aos elementos e expressões da personalidade humana. Tal prerrogativa abrange
toda a esfera individual, acrescentando-lhe valores como o sentimento, a inteligência,
vontade, igualdade, segurança e o desenvolvimento de sua personalidade.52
45
CAMBI, Eduardo. Neoconstitucionalismo e neoprocessualismo. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2009. p.37.
46
CAMBI, Eduardo. Neoconstitucionalismo e neoprocessualismo. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2009. p.37.
47
CUPIS, Adriano de. Os direitos da personalidade. 2. ed. Traduzido por Afonso Celso Furtado
Rezende. São Paulo: Quorum, 2008. p. 23.
48
CUPIS, Adriano de. Os direitos da personalidade. 2. ed. Traduzido por Afonso Celso Furtado
Rezende. São Paulo: Quorum, 2008. p. 24-25.
49
CANTALI, Fernanda Borghetti. Direitos da personalidade: disponibilidade relativa, autonomia
privada e dignidade humana. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009. p. 73-74.
50
FERMENTÃO, Cleide Aparecida Gomes Rodrigues. Os direitos da personalidade como direitos
essenciais e a subjetividade do direito. Revista Jurídica Cesumar, v. 6, n. 1, 2006. p. 241.
51
CUPIS, Adriano de. Os direitos da personalidade. 2. ed. Traduzido por Afonso Celso Furtado
Rezende. São Paulo: Quorum, 2008. p. 21.
52
FERMENTÃO, Cleide Aparecida Gomes Rodrigues. Direito à liberdade: por um paradigma de
essencialidadade que dê eficácia ao direito personalíssimo da liberdade. Curitiba: Juruá, 2009. p.
245.
214
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A realização dos direitos de personalidade ou a materialização do livre
desenvolvimento da personalidade da pessoa humana está diretamente ligada a expressões de
liberdade jurídica, que têm uma das suas maiores expressões na autonomia privada e em seu
instrumento, o negócio jurídico. Essa realização não se dá apenas, como vê a doutrina, na
proteção desses direitos contra a lesão de terceiros; cada vez mais a realização desses
interesses se dá pelo exercício ativo de tais direitos, pelo exercício positivo dos direitos de
personalidade.53
Em que pesem as diferenças apontadas é notório que a tutela da dignidade da pessoa
humana reflete diretamente no gozo dos direitos humanos, fundamentais e da personalidade
dos indivíduos, tamanha sua abrangência e importância. Não se concebe o exercício regular
de um direito fundamental (da personalidade ou humano) sem que seja respeitada – ao titular
– sua dignidade.
3.3 Da dignidade como vetor interpretativo do ordenamento jurídico
Os direitos fundamentais, e de maneira extensiva e até mesmo lógica, os direitos da
personalidade, precisam ser encarados como origem e finalidade do Estado, bem como de
todas as demais instituições nele localizadas. Neste sentido Ronald Dworkin estabelece que é
necessário que a estrutura estatal seja concebida como instituição de direitos fundamentais,
por meio da criação de mecanismos institucionais que tornem os direitos fundamentais
(humanos e da personalidade) a origem e a finalidade não apenas do Estado, mas de todas as
instituições, inclusive as não-estatais.54
A interpretação do arcabouço jurídico pátrio é de profunda importância para a
promoção da dignidade. Vicente Ráo assevera que:
A hermenêutica tem por objeto investigar e coordenar por modo sistemático
os princípios científicos e leis decorrentes, que disciplinam a apuração do
conteúdo, do sentido e dos fins das normas jurídicas e a restauração do
conceito orgânico do direito, para efeito de sua aplicação e interpretação, por
meio de regras e processos especiais procura realizar praticamente, estes
princípios e estas leis científicas; a aplicação das normas jurídicas consiste
na técnica de adaptação dos preceitos nelas contidos assim interpretados, às
situações de fato que lhe subordinam.55
53
BORGES, Roxana Cardoso Brasileiro. Direitos da personalidade e autonomia privada. 2. ed. São
Paulo: Saraiva, 2007. p. 107.
54
DWORKIN, Ronald. A virtude soberana: a teoria e prática da igualdade. Tradução de Jussara
Simões. São Paulo: Martins Fontes, 2005. p. XXI.
55
RÁO, Vicente. O direito e a vida do direito. São Paulo: Max limonad, 1952. v. 2. p. 542.
215
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
A Constituição Federal não se caracteriza como mero ideário, não se trata de
expressão de anseios, aspirações e propósitos; a Constituição é, nas palavras de Celso Antonio
Bandeira de Mello, “a transformação de um ideário, é a conversão de anseios e aspirações em
regras impositivas em comandos. Em preceitos obrigatórios para todos: órgãos do Poder e
cidadãos”56. De maneira complementar, Luiz Edson Fachin destaca que “A herança
patrimonialista e privatista se constitui em obstáculo à concretização da constituição, e,
portanto, do Estado Social de Direito, dos direitos fundamentais sociais” 57.
Existem diversos princípios que tratam sobre a interpretação constitucional, bem
como das normas infraconstitucionais; dentre eles destaca-se o princípio da interpretação
conforme a Constituição, o qual dispõe que na existência de normas plurissignificativas, ou de
dúbio entendimento, deve dar-se preferência á interpretação que lhe dê sentido em
conformidade com o texto Constitucional, o que envolve os princípios basilares ali contidos.58
Lenio Streck afirma que este é mais que um princípio exegético, afirmando que é
“um princípio imanente da Constituição, até porque não há nada mais imanente a uma
constituição do que a obrigação de que todos os textos normativos sejam interpretados de
acordo com ela”59.
A partir disso é possível entender a legitimidade e a possibilidade jurídica de recentes
inovações produzidas pelos Tribunais pátrios, mais especificamente pelo Supremo Tribunal
Federal ao ponderar questões essencialmente principiológicas a fim de firmarem
posicionamento no sentido de reconhecer as uniões homoafetivas, por exemplo.
Maria Berenice Dias, uma das responsáveis pelo amplo movimento de mudança no
direito de família brasileiro destaca que a dignidade da pessoa humana é o princípio maior, o
que fundamenta o Estado Democrático de Direito, representando o valor nuclear da ordem
constitucional. Aduz que este princípio é “o mais universal de todos os princípios. É um
macroprincípio do qual se erradiam os demais”60.
A dignidade faz parte de todas as esferas da vida humana, sendo que o direito se
dispõe a tutelar as relações sociais. Portanto, deve se atentar o foco na promoção dos direitos
56
MELLO, Celso Antonio Bandeira de. Eficácia das normas constitucionais e direitos sociais. São
Paulo: Malheiros, 2011. p.11.
57
FACHIN, Luiz Edson. Internalidade e externalidade no debate sobre constituição e relações
privadas: um olhar a partir do revisitado Locke. Zulmar Fachin (Coordenador). 20 anos da constituição
cidadã. São Paulo: Método, 2008. p.160.
58
FACHIN, Zulmar. Curso de direito constitucional. 5. ed., rev., atual. e ampl. Rio de Janeiro:
Forense, 2012. p.139.
59
STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da
construção do direito. 5. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004. p. 252.
60
DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias. 7. ed. rev., atual e ampl. São Paulo: Revista
dos tribunais, 2010. p. 62.
216
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
humanos, fundamentais e da personalidade, por meio da promoção e do reconhecimento da
dignidade da pessoa humana, ainda que diante de aparente arrepio do regramento posto, haja
vista que este possui origem e fundamento em valores principiológicos que precisam ser
incessantemente observados.
CONCLUSÃO
O Jusnaturalismo oferece diversas respostas ao sistema jurídico, eis que a atividade
jurisdicional repetidamente vem demonstrando que o direito não está reduzido à letra da lei,
nem tampouco se opera unicamente voltado à promoção do que esta consignado, sendo
analisados outros valores. As premissas básicas e iniciais do direito natural (fazer o bem, dar a
Ada um o que lhe é devido e agir honestamente) fornecem uma noção inicial de o que seria
agir com dignidade, para então produzir o conceito do digno.
O princípio da dignidade da pessoa humana legitima toda e qualquer disposição
normativa, tendo – portanto – amplitude fundamentadora, como núcleo basilar e informativo
de todo o sistema jurídico vigente. Nesse sentido o vetor estrutural da dignidade humana deve
sempre ser observado na criação de novas regras deontológicas, e também pelo magistrado
quando da prestação da tutela jurisdicional, em todas as suas fases, haja vista que a dignidade
da pessoa orienta a atividade exegética da Constituição, como valor irrenunciável,
contaminando toda e qualquer tutela jurisdicional que a ignore.
Deve-se reconhecer a existência de uma relação decorrente, iniciada no direito
natural, através do reconhecimento do axioma da dignidade da pessoa humana,
fundamentando o Poder Constituinte (o qual atual como poder criador de uma base valorativa
e organizacional do Estado), e orientando a estrutura jurídica vigente e o processo
hermenêutico legislativo.
As recentes – e polêmicas – decisões proferidas pelo Supremo Tribunal Federal,
dentre as quais se cita o reconhecimento jurídico das uniões homoafetivas, não pode ser
observado unicamente pela letra fria da lei, devendo-se extrair o espírito que move a
legislação, sua razão de ser, sua perspectiva deontológica. E então se chegará à conclusão e a
aceitação de que as bases principiológicas possuem importância sobrelevada diante de
qualquer regramento posto.
Tal evento também pode ser observado na idéia atualmente aceita e propagada acerca
da mutação constitucional, como forma de adequação exegética do odenamento posto pelo
217
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
ordenamento pressuposto, principiológico e hierarquicamente superior, o que reconhece o
valor dos princípios para a orientação da norma.
Trata-se de um procedimento adequado de juízo, no qual se reconhece a dignidade
como valor extraído do direito natural, o qual subsidia o poder constituinte originário que se
manifestou indicando a dignidade como fundamento da república. Ora, é um evidente
processo cíclico de valores jurídicos construído em um patamar superior ao regramento
positivado, subsistindo a este e retirando-lhe a validade por uma relação de necessária e
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
ESTUDO DA DISCIPLINA DA INTERPRETAÇÃO: RUPTURA
PARADIGMÁTICA E CONCRETIZAÇÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS
STUDY OF DISCIPLINE OF INTERPRETATION: PARADIGMATIC RUPTURE
AND REALIZATION OF FUNDAMENTAL RIGHTS
Jussara Suzi Assis Borges Nasser Ferreira1
Kelly Cardoso Mendes de Moraes 2
RESUMO: A interpretação positivista-dominante embasada na teoria do conhecimento –
análise indutiva do objeto pelo sujeito -, outrora tratada de forma subsuntiva e posteriormente
de forma solpsista, é mantida hodiernamente pelo neopositivismo o que gera arbitrariedades e
descisionismos subjetivistas. Tratada como mero método para interpretar, a hermenêutica
filosófica jurídica rompe paradigmas por meio do giro ontológico linguístico compreensivo.
Em decorrência de uma resposta correta e decisões consubstanciadas na integridade, pretendese uma adequação ao Estado Democrático de Direito para concretização dos direitos e
garantias fundamentais expressas. Além de uma interpretação hipercomplexa, tendo a
Constituição como corolário da democracia, os direitos privados, face o sobressalto contratual
entre privados e prestadores de serviços públicos, também pretendem a concretização e
fiscalização desses direitos fundamentais através do Estado.
Palavras-chaves: interpretação; hermenêutica; positivismo; círculo hermenêutico; ontologia
lingüística; direito fundamentais; concretização; direito privado
ABSTRACT: The positivist-dominant interpretation supported for theory of knowledge –
inductive analysis of the object by the subject -, once trated as subsumption and subsequently
of solipsist form, is maintained nowadays by the neopositivism, wich is creates arbitrary and
decision/assets. Treated as a mere method for interpret, the philosophical legal hermeneutics
breaks paradigms through at the ontological linguistic comprehensive turn. As a result of one
correct reply and consubstantiated decisions on the integrity, it is intended an adequation to
Democratic State of Law for concretizing rights and fundamental warranties assured
expressly. Apart at one hypercomplex interpretation, having the Constitution as corollary of
democracy, the private rights, due to contractual upsurge between private and public service
providers, also intend the achievement and inspection these fundamental rights through the
State.
Key words: interpretation; hermeneutics; positivism; hermeneutic circle; linguistic
ontological; fundamental rights; achievement; private law
1
Doutora em Direito das Relações Sociais pela PUC/SP. Professora Permanente do Programa de Mestrado em
Direito da UNIPAR - Universidade Paranaense. Advogada. [email protected]
2
Discente do Curso de Mestrado em Direito Processual e Cidadania da UNIPAR. Especialista em Direito
Constitucional pela UNIPAR campus de Francisco Beltrão - PR. Especialista em Direito Civil e Processo Civil
pela UNIPAR campus de Francisco Beltrão - PR. Bacharelada em Direito pela Faculdade Materdei de Pato
Branco - PR. Tabeliã-substituta. [email protected]
221
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
1 INTRODUÇÃO
O objetivo da investigação reside em é tratar a ruptura paradigmática da interpretação
jurídica dominante – positivista -, consubstanciada pelas teorias do conhecimento que tentam
manter com o neopositivismo a epistemologia dicotômica sujeito-objeto, ou seja, ciência
jurídica que busca verdades absolutas da norma; isto é, o que a norma e o legislador “querem
dizer”. Além disso, tal concepção permite ao intérprete partir de duas formas interpretativas:
por meio da subsunção à lei, ou discricionariedade hermenêutica jurídica como forma de
interpretação. Porém, são “métodos” dominantes, trazidos historicamente da época codiscista,
inadequados ao atual Estado Democrático de Direito. Nesse sentido, contra o método e por
uma hermenêutica filosófica, os conhecimentos de Hans-George Gadammer fazem-se
importantes quanto à aplicação do círculo hermenêutico (compreender para interpretar) e a
análise intersubjetiva (sujeito-sujeito), esta, iniciada por Martin Heidegger.
Busca-se um novo paradigma na interpretação jurídica, tendo a Constituição como
cerne e precursora, porém sem restringir-se a um sistema fechado como dispunha o
positivismo objetivista-normativista. Por outro lado, sem beirar ao solipsismo-kelsiano, que
permite o julgador decidir “de acordo com sua consciência”, ocasionando decisões diversas e,
consequentemente, conforme o jargão, uma “loteria” de decisões. Pretende-se, portanto,
desconsiderar os extremos entre o positivismo-exegético e o solipsismo-alternativista-radical,
ressaltando a hermenêutica ontológica compreensiva, como descreve Streck.
A hermenêutica ontológica compreensiva, defendida por Streck e advinda das
conjecturas de Heidegger, Gadamer e Dworkin, consubstancia-se na desconstituição da teoria
da consciência obtida por métodos e por meio da dogmática jurídica positivista, propõem-se
ao julgador partir de uma análise do Desein (ser-aí) - consequentemente intersubjetiva -, não
conceituando objetos abstratamente, mas compreendeendo o ser-aí para então interpretar.
Como restará despretensiosamente comprovado, interpretar é, pois, aplicar a norma ao caso
concreto obtendo-se a resposta correta e adequada ao Estado Democrático de Direito.
Mais do que intentar uma interpretação adequada, perceber-se-á a necessidade de uma
interpretação ontológica compreensiva para obter-se, da melhor forma, a eficácia dos direitos
e garantias fundamentais expressos ou implícitos (princípios) na Constituição Federal.
No intuito de consumar os direitos e garantias fundamentais, contemporaneamente,
também se faz essencial ao direito privado, corolário do Estado Democrático de Direito e
222
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
distanciamento definitivo do Estado Liberal, base das relações privadas, principalmente
contratuais. Deve-se isso ao contrato presente em todas as relações privadas, ou, públicoprivadas, em especial quando se trata de serviços prestados por particulares que, em suas
características, deveriam ser fornecidos ou fiscalizados pelo Estado, daí o cerne da eficácia
dos direitos fundamentais no direito privado.
2 HERMENÊUTICA JUSFILOSÓFICA
2.1 BREVES CARACTERÍSTICAS HISTÓRICAS
A interpretação jurídica-filosófica ou hermenêutica contemporânea nos seus vários
vieses têm sua base introduzida pelo pós-positivismo hodierno ou comumente chamado de
neoconstitucionalismo.
Historicamente, a interpretação legislativa inicia-se com a Escola da Exegese na
França, pós-revolução, por meio da codificação napoleônica em 1804. Nesse sentido, o
Código:
previa todas as situações da vida, sendo quase impossível a existência de casos nele não
previstos. A lei estava ligada à vontade do legislador, expressando-lhe a vontade. A
interpretação, então, deveria limitar-se à pesquisa da vontade do legislador, sua intenção, sendo
permitido, porém, o uso da analogia no caso de a lei ser omissa (PEIXINHO, 2003, p. 22).
A escola da exegese francesa limitava-se a uma interpretação passiva e mecânica do
Código: a mentalidade dos juristas dominada pelo princípio da autoridade 3; há uma
justificativa jurídico-filosófica na separação dos poderes (legislativo, executivo e judiciário); e
a certeza jurídica, com a estabilidade das leis 4, desprezava a filosofia e a história, reduzindo a
técnica a comentários artigo por artigo do próprio Código5 (BOBBIO, 1995, p.78-83).
Na Inglaterra, pelo contrário, não houve codificação, mas foi elaborada a mais ampla
teoria da codificação, a de Jeremy Bentham, denominado exatamente de o “Newton da
legislação” (BOBBIO, 1995, p. 91). Baseava-se no sistema do Common Law, mantido até
3
“[...] a vontade do legislador que pôs a norma jurídica” (BOBBIO, 1995, p. 79).
Segundo Bobbio (1995, p. 80): “a exigência da segurança jurídica faz com que o jurista deva renunciar a toda
contribuição criativa na interpretação da lei, limitando-se simplesmente a tornar explícito, através de um
procedimento lógico (silogismo), aquilo que já está implicitamente estabelecido”.
5
Interessante salientar que tal técnica de comentar artigos por artigos do Código, ou seja, um sistema de ensino
jurídico de “reprodução”, criticado por autores como Streck, ainda persiste hodiernamente no Brasil.
4
223
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
hoje por meio da criação de normas consuetudinárias – interpretações jurídicas independentes
– e uso de precedentes.
Na Alemanha, entre o fim do século XVIII e o começo do século XIX, surgiu o
historicismo e teve, de fato, sua origem com a escola histórica do direito, sendo o seu maior
expoente Savigny. Note-se bem que “escola histórica” e “positivismo jurídico” não são a
mesma coisa; contudo, a primeira preparou o segundo através de sua crítica radical do direito
natural (BOBBIO, 1995, p. 45). De acordo com Peixinho, a interpretação histórica:
assim como o exegetismo, não permitia a interpretação criadora, isto é, prescindindo do texto
legal. Antes dever-se-ia perquirir a vontade do legislador quando da elaboração da lei, intenção
esta que visava não só à aplicabilidade da lei à época de sua elaboração, como também à intenção
dela para ser aplicada em épocas posteriores, o que fundamentava o trabalho de interpretação
histórica (PEIXINHO, 2003, p. 24).
Anterior a 1814, Savigny afirmava que “interpretar era mostrar aquilo que a lei diz”;
posterior a 1814, destacava que “interpretar é compreender o pensamento do legislador
manifesto no texto da lei”. Com isso têm-se as chamadas teorias subjetivista - o
reconhecimento da vontade do legislador –, e objetivista, isto é, a vontade da lei como sede do
sentido da norma. (PEIXINHO, 2003. p. 25-26).
Em seguida à escola histórica, o direito científico alemão dá origem à doutrina
pandectista, elaborada principalmente por Jhering, criando-se métodos de interpretação
jurídica, pois os juristas alemães, como os franceses e ingleses, eram premidos pela
quantidade de material jurídico confuso e disperso, mas sustentavam que a obrigação de trazer
ordem ao caos cabia a eles mesmo e não a um legislador mais ou menos sagaz (BOBBIO,
1995, p. 123).
Mesmo alheia à codificação francesa, a Alemanha acaba por instituí-la em 1900,
porém, ainda assim, a “verdade absoluta” incutida na interpretação positivista dos códigos não
supre as expectativas jurídicas. Porém, “de algum modo se perceberá que aquilo que está
escrito nos Códigos não cobre a realidade” (STRECK, 2011(a), p. 32).
2.2 INTERPRETAÇÃO JURÍDICA POSITIVISTA
O Estado impositivo e positivo pós-revolução francesa, formado pela classe burguesa com
intuito de disseminar “verdades” incontestáveis por meio da codificação, pautava-se na
224
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
legislação desprovida de lacunas, imperfeições ou imprevisões, como forma de manutenção
do poder. Entende Foucault como “verdade”:
A ‘verdade’ está circularmente ligada a sistemas de poder, que a produzem e apóiam, e a efeitos
de poder que ela induz e que a reproduzem. ‘Regime’ da verdade. Esse regime não é
simplesmente ideológico ou superestrutural; foi uma condição de formação e desenvolvimento
do capitalismo. É ele que, com algumas modificações, funciona na maior parte dos países
socialistas. [...] O problema não é mudar a ‘consciência’ das pessoas, ou o que elas têm na
cabeça, mas o regime político, econômico, institucional de produção da verdade (FOUCAULT,
2007, p. 14).
Assim, a figura do positivismo jurídico concebe a atividade da jurisprudência voltada
não para produzir, mas para reproduzir o direito, isto é, para explicitar com meios puramente
lógico-racionais o conteúdo de normas jurídicas já dadas (BOBBIO, 1995, p. 212), mantendo
as “verdades e certezas” impostas pelo Estado e o controle da sociedade. Trata-se, portanto,
de um paradigma dominante6, razão pela qual se faz a referida abordagem.
A síntese científica, ou seja, os resultados advindos com a interpretação congnoscente
do objeto (lei) caracteriza uma das falhas do positivismo, pois são utilizados como ponto de
partida para a aplicação, ou seja, trata-se de explicações abstratas e nulas de critérios de valor
aliadas ao ser – realidade fática e social -, o que presume o surgimento de resultados
duvidosos e variados. “Todos os resultados que a Ciência nos oferece serão sempre válidos?
Quantas e quantas vezes a Ciência não nos apresenta conclusões provisórias, precárias e, até
mesmo, precipitadas!” (REALE,1999, p.25).
Nesse sentido, Streck aponta duas fases no positivismo: “a primeira legalista e a
segunda normativista” e apresenta alguns problemas de interpretação do direito. Considera
como característica da primeira fase, “a realização de uma análise que, nos termos propostos
por Rudolf Carnap, poderíamos chamar de sintática. Nesse caso, a simples determinação
rigorosa da conexão lógica dos signos que compõem a ‘obra sagrada’ (Código)” resolveria o
problema da interpretação do direito. “Assim, conceitos como o de analogia e princípios
gerais do direito” (STRECK, 2011(a), p. 32) apresentam-se como elementos concebidos numa
teoria hipotética fundamental - conceitos modulados -, isto é, um comportamento coercitivo
da lei.
O método criado pelo positivismo jurídico, segundo Bobbio (1995, p. 214), “sustenta
uma concepção estática da interpretação; põe um limite intransponível à atividade
interpretativa”, conhecida como subsunção.
6
“O positivismo (exegético) ainda é regra [...]” (STRECK, 2011(a), p. 96).
225
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
No que tange ao positivismo normativista, altera-se significativamente a forma de
interpretação relacionada ao positivismo e o fato. “Em princípio, as primeiras décadas do
século XX viram crescer, de modo avassalador, o poder regulatório do Estado – que se
intensificará nas décadas de 1930 e 1940” (STRECK, 2011(a), p. 32) – desconstituindo-se a
interpretação codicista embasada nos moldes sintático-semânticos7, considerados inoperantes
à época. Surge, então, outro problema para a interpretação, os sentidos impressos às normas,
desencadeando o discricionismos.
Kelsen, na tentativa de manter o método analítico, “tradição positivista que foi
construída pela Jurisprudência dos Conceitos” (STRECK, 2011(a), p. 33), contraria as teorias
Jurisprudência dos Interesses e da Escola do Direito Livre, considerando que a ciência do
direito, como justificativa de decisões, significava utilizar-se de subjetivismos, ou seja,
valorar a norma o que acreditava ser trabalho da ética e da política.
Nesse sentido, segundo Streck, um dos maiores problemas apresentados pela teoria
kelseniana, afora a interpretação sistemática e diferenciação de ciência jurídica ou política,
refere-se à possibilidade criada de uma interpretação arbitrária que continua atualmente nas
interpretações jurisdicionais. Assim, hipotetisando-se a existência de lacunas, ao jurisconsulto
é permitido decidir de maneira discricionária. “É nesse sentido que se pode afirmar que, no
que tange à interpretação do direito, Kelsen amplia os problemas semânticos da interpretação,
acabando por ser picado fatalmente pelo “aguilhão semântico” de que fala Ronald Dworkin”
(STRECK, 2011(a), p. 33).
No que tange ao solipsismo, Kelsen alegava que não poderia existir lacunas, porém,
enfatizava a possibilidade rara de inexistência de regra positivada (teoria hipotética
fundamental). Assim, de uma interpretação metodo-lógica-dedutiva permeada pela subsunção
objetivista, passa-se à interpretação solipsista. Este é o ponto crucial de interrogações e
discussões trazidas à seara jurídica. Atualmente, a mantença de uma teoria positivista
subjetivista, comumente chamada de “ativismo judicial”.
É mister salientar a importância da crítica embasada principalmente nas obras de
Streck, que trazem os ensinamentos de Heidegger e Gadamer para uma hermenêutica
jusfilosófica e uma virada ontológica linguística, que se perfazem em face de um ambiente
vivenciado pelo Estado Democrático de Direito, tendo a Constituição da República Federativa
Brasileira como norteador interpretativo, ainda recentemente “descoberta” - em parte - pelos
juristas brasileiros de sua capacidade concretizadora de direitos fundamentais.
7
“A sintaxe estabelece a correção dos enunciados; a semântica determina as condições de verdade desses
enunciados [...]” (STRECK, 2011(b), p. 201).
226
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
Diferentemente de doutrinas estrangeiras surgidas em momentos históricos, na Europa
Ocidental, desde o Estado Liberal, permeado pelo Estado Social, e culminando no Estado
Democrático de Direito, no Brasil, segundo alguns doutrinadores, como Streck, além de não
ter existido realmente um Estado Social, vive-se sob argumentos de teorias estrangeiras não
passíveis de serem aplicadas totalmente ao sistema jurídico – o qual possui uma constituição
expressa com direitos e garantias fundamentais -, imbricadas em controvérsias interpretativas.
A celeuma interpretativa hodierna depara-se com a tentativa de adequar métodos
interpretativos dissociados da subsunção positivista para permear um decisionismo
discricionário, correndo sérios riscos de desestabilização do Estado Democrático. Nesse
âmbito, demonstrar-se-á uma abordagem contemporânea sobre uma possível hermenêutica
adequada aos parâmetros brasileiros, desconsiderando a subsunção e, principalmente, os
argumentos solipsistas para não incorrer em errônea mutação constitucional desencadeando
um retrocesso social. Segundo Streck:
O novo paradigma do direito instituído pelo Estado Democrático de Direito proporciona a
superação do direito-enquanto-sistema-de-regras, fenômeno que (somente) se torna possível a
partir das regras (preceitos) e princípios – produzidos democraticamente – introduzidos no
discurso constitucional e que representam a efetiva possibilidade de resgate do mundo prático
(faticidade) até então negado pelo positivismo (veja-se, nesse sentido, por todos, o sistema de
regras defendido por jusfilósofos como Kelsen e Hart) (STRECK, 2011(a), p. 62).
Portanto, teorias como a de Kelsen e a de Hart desestabilizam a substância do Estado
Democrático de Direito advindo com a vigência da Constituição Federal Brasileira em 1988,
o que justifica a adoção de um novo paradigma hermenêutico compatível com o “ser” e o
“ente” propiciando a eficácia dos direitos fundamentais.
3
A
TEORIA
DO
CONHECIMENTO
PARA
UMA
INTERPRETAÇÃO-
HERMÊUTICA JURÍDICA
Ao falar de interpretação hermenêutica jurídica, necessário se faz a correlação com a
teoria do conhecimento, no sentido de conhecer algo (o fato, o direito, a hermenêutica)
visando obter respostas adequadas em busca de verdades. Segundo Leão, em apresentação ao
livro Ser e Tempo, de Martin Heidegger:
Para se conhecer é imperativo pensar; mas o que significa pensar? Quando dizemos ou ocultamos
o verbo pensar e seus derivados, pensador, pensamento, pensativo, pensável ou pensado,
evocamos logo toda uma cadeia de significantes: o sujeito que pensa, o objeto pensado, o ato de
227
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
pensar, o processo de pensamento, conteúdo em que o sujeito pensa o objeto, a forma de que se
reveste o objeto e se veste o processo de pensar, o contexto ideológico que tudo sobredetermina.
(2005, p. 11).
Nesse processo de pensamento, como ou de que forma obter-se-á um conhecimento
verdadeiro? Assim, em diferentes momentos da história, criaram-se teorias do conhecimento
para comprovar verdades e certezas - conhecimentos adquiridos por um sujeito -, a razão das
coisas serem como são, conhecidas como são, nominadas e conceituadas como são. Essa
acepção advém da ciência, ou hermenêutica. Gadamer consubstancia a seguinte conceituação:
Entende-se por hermenêutica, a teoria ou a arte da interpretação. A expressão usual alemã no
século XVIII: ‘Kunstlehre’ (= ‘teoria da arte’) é, na realidade, uma tradução da palavra grega
‘techne’ e situa a Hermenêutica junto com aquelas ‘artes’ tais como a Gramática, a Retórica, e a
Dialética. Não obstante, a expressão ‘teoria da arte’ se refere, na verdade, a uma tradição
educativa diferente da do último período da Antiguidade, isto é, a uma tradição que vem de mais
longe e que, hoje, praticamente carece de vida como a filosofia aristotélica. Existia nela uma
chamada filosofia prática (sive política) que sobrevivera até fins do século XVIII. Ela constituía
o marco sistemático de todas as ‘artes’, na medida em que elas estavam a serviço da ‘polis’
(GADAMER, 1983, p. 57).
Assim, Gadamer afere a importância da filosofia na hermenêutica e sua
compatibilidade com a ciência, seja ela jurídica ou não, ampliando sua concepção. Define a
filosofia diferenciando-a de outras ciências:
Insistimos, em todo caso, que também é ciência; mais ainda, a rainha das ciências. Filosofia não
significa outra coisa que ‘ciência’. Porém não se entendia por ciência, naquela época, unicamente
a investigação que está baseada no conceito moderno do método, isto é, que maneja a
matemática e a mediação, mas também se incluíam sob este termo todos os conhecimentos
objetivos e conhecimentos da verdade, na medida em que não fossem adquiridos através do
processo anônimo do trabalho empírico- científico. Assim, na expressão aristotélica ‘filosofia
prática’, a palavra filosofia se refere à ‘ciência’ naquele sentido geral de saber que trabalha com
provas e que possibilita a teoria, e no sentido da ciência que, para os gregos, era o modelo de
conhecimento teórico: a matemática. (GADAMER, 1983, p.57-58).
Percebe-se que a Filosofia, como “ciência maior”, era o método para obter
conhecimento. Na visão de Reale, a ciência é apenas uma parte de um todo, de um
conhecimento universal, ou seja, “condição de observação e análise, nunca deixando de ser
observação de fatos e de relações entre fatos” (REALE, 1999, p. 15). E a filosofia serviria
apenas como ordenadora desses conceitos. Nesse sentido, Nader, ao se referir à lógica formal,
define método:
[...] provém do grego methodos (caminho para alcançar um fim), é procedimento adotado pelo
homem na busca do conhecimento. Ele possui a virtude de conduzir à visão da realidade, não,
porém à decisão do espírito na decantação final da verdade. A atividade do filósofo não
pressupõe apenas o caminho, mas também a projeção da experiência na escolha de cada direção e
na formação de cada juízo. A Filosofia requer métodos, todavia não se resume neles. A reflexão
228
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
filosófica é a concatenação da cultura total, o que faz supor além do método, substância ativa do
saber (NADER, 2001, p. 14).
Para o direito interessa saber principalmente que a teoria do conhecimento propugnada
pelos filósofos tratava-se de um meio de provar e instituir a verdade, não como algo
supranatural, mas como vinculação da criação de um poder político detentor da verdade.
Nesse sentido, perfazem-se as teorias do racionalismo, empirismo, criticismo, o idealismo,
realismo e fenomenalismo.
3.1 O EMPIRISMO
O Empirismo, de origem inglesa, surgiu no contexto da revolução francesa, decorrente
de alguns pensadores como Francis Bacon, Thomas Hobbes, John Locke e David Hume, que
detinham a seguinte concepção: quem é que dá o conhecimento verdadeiro? É a experiência.
De onde vem o pensamento? A experiência que determina a verdade que tem na razão, por
meio das sensações; o pensamento processa essas sensações criando o conhecimento. Máxima
do empirismo: a experiência. O que não se consegue provar não é verdadeiro. Segundo Reale:
Os empiristas sustentam que o direito é um fato que se liga a outros fatos através de nexos de
causalidade. Do fato, seja ele econômico, geográfico, demográfico ou racial, passar-se-ia à regra
jurídica, através de um laço necessário de causalidade. Esta é a tese do empirismo jurídico: — até
mesmo os princípios mais gerais do direito seriam afinal redutíveis a fontes empíricas (REALE,
1999, p. 92).
No empirismo, há uma valorização da natureza, sobretudo com Hobbes e Locke.
Pautando-se, portanto, o princípio da teoria política do liberalismo inglês de que o
conhecimento advinha da natureza. Nesse período, a ascensão do capitalismo não estava
completa, o que justificava aquele liberalismo-jusnaturalista - todos são iguais pela natureza,
portadores de direitos ao nascer, portanto, livres – contrariando a idéia disseminada pelo
período medieval. Pois, no empirismo, havia uma valorização do trabalho, este dignificava o
homem e a riqueza era fruto dele.
3.2 O RACIONALISMO
229
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
O racionalismo estabelecia que todo o homem é detentor de razão, num momento em
que só existia razão no divino. René Descartes desconstituiu essa idéia em seu livro Discurso
do Método, numa abordagem crítica ao período medieval, - época em que negar o discurso
existente, segundo o qual havia uma subordinação a argumentações metafísicas - alegando
que todos possuiriam poder se usassem bem a razão. Criou, assim, um método para bem usar
a razão, e consequentemente provar a existência de verdades. Nesse âmbito, de acordo com
Reale:
As verdades de fato são contingentes e particulares, implicando sempre a possibilidade de
correção, sendo válidas dentro de limites determinados. Em se tratando de verdades de fato, os
resultados são sempre provisórios, sujeitos a retificações e verificações sucessivas. As verdades
da razão, ao contrário, inerentes ao próprio pensamento humano, são dotadas de universalidade e
certeza. Não se pode pensar, admitindo, por exemplo, identidade dos contrários ou admitindo que
A seja não-A ao mesmo tempo. As verdades de razão, portanto, não se originam do fato, mas
constituem condições do pensamento, para se conhecer até aquilo que está nos fatos, ou que
pelos fatos se revela (REALE, 1999, p. 94).
A filosofia moderna recria e retoma a capacidade racional do cidadão. Questiona-se:
como se chega a um conhecimento verdadeiro? Nega-se todas as outras verdades, ou seja, não
se deve aceitar nada como verdade até que se tenha plena consciência de que aquilo é verdade
ou não. A teoria do conhecimento pressupõe a existência de um direito munido de razão e
objeto exterior. Portanto, o racionalismo é a teoria do conhecimento que afirma o
conhecimento pela capacidade racional do objeto – todos têm razão. Surge então o critério da
dúvida, segundo o qual é necessário perguntar-se: o conhecimento existente é o verdadeiro? A
razão produzirá um conhecimento que seja inquestionável? Descartes provou que sim através
do método da dúvida. Assim, “penso, logo existo” - a razão pode dar uma certeza da verdade;
por meio da razão pode-se obter uma verdade absoluta. Portanto, a consciência da existência
institui a razão de que algo existe. Há uma razão e ela é a razão que dá a última verdade.
3.3 O CRITICISMO
O criticismo definia-se pela crença na razão e no conhecimento, e que estes
interligavam-se por meio de um estudo metódico, ou seja, a forma como conhecer a realidade,
ou, segundo Reale: “[...] uma disposição metódica do espírito no sentido de situar,
preliminarmente, o problema do conhecimento em função da correlação "sujeito-objeto",
indagando de todas as suas condições e pressupostos (REALE, 1999, p. 100).
230
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
O criticista e fenomenalista Immanuel Kant, através da sua lógica transcendental,
difundiu a idéia de que se conhece algo no ato de pensar e que um objeto só existe em face do
sujeito que o observa, não havendo o sujeito não há objeto – intuição sensível -, e este obtém
características com base na subjetividade do sujeito (elementos da lógica do sujeito antes do
empirismo que já existe no sujeito – lógica transcendental), ou seja, não existe objeto que não
esteja comprometido pelo sujeito, como ele aparece para o sujeito.
Kant chama de
fenomenon (o que é capaz de ser conhecido) e noumenon (o que não pode ser conhecido).
Portanto “tudo aquilo que se amolda ao nosso espírito torna-se objeto de experiência, e, por
conseguinte, fenômeno; ou seja, o que aparece e pode ser apreendido por nossa sensibilidade,
cujas intuições o intelecto ordena segundo suas ‘categorias’” (REALE, 1999, p. 122).
O empirismo é certo na experiência, mas não produz entendimento em si, por isso é
necessária a utilização da razão. Há a necessidade da participação ativa do sujeito e do objeto.
Entretanto, constrói-se a idéia de que a razão permanece crítica com ela mesma, para manterse na capacidade de ser razão. Nesse sentido, Kant utiliza-se de categorias 8 lógicas para
interpretar o objeto, o sujeito é apenas um fenômeno que apreende a realidade, e o objeto que
é apreendido pelo conhecimento.
Também no criticismo, o idealismo de Hegel (1789) sistematizou toda a filosofia
moderna, construção de uma filosofia que homogeneizou o real e a razão, diferenciando-se do
pensamento Kantiano, formalista e estático sobre o conhecimento. Hegel introduziu a
observância da realidade como necessária para o desenvolvimento humano de forma
dinâmica.
3.4 O REALISMO
“O realismo é a atitude natural do espírito humano” (REALE, 1999, p. 116). O sujeito
aceita as coisas como elas são e como são conceituadas sem questionar-se. Nesse sentido
explica Reale:
[...] nós temos o realismo ingênuo, que é pré-filosófico, ou seja, anterior a qualquer pergunta, a
qualquer ‘problema’, há, portanto, uma aceitação espontânea do que se oferece ao homem como
suscetível de suas sensações e de sua representação (pré-filosófico). De outra lado, há o realismo
crítico que indaga os seus fundamentos e procura demonstrar que suas teses são verdadeiras,
acentuando a verificação de seus pressupostos pela funcionalidade sujeito-objeto, distinguindo as
8
Categoria é a representação intelectual do objeto, enquanto integrado na dialética do conhecimento que une o
sujeito com seu objeto gnósico. Não é uma forma subjetiva ou objetiva de conhecimento, mas trata-se de um
pensamento crítico, pois instrumentaliza o pensar dialético.
231
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
camadas cognoscíveis do real assim como a participação, não apenas ativa, mas criadora do
espírito no processo gnoseológico (filosófico) (REALE, 1999, p. 116-117).
De acordo com Reale, há diferença entre o realismo e o idealismo, e expressa isso da
seguinte forma:
Enquanto no realismo o conhecimento é uma captação da res, ou uma apreensão do real, no
idealismo há a tendência de subordinar tudo a esquemas ou ‘formas’ espirituais. No idealismo,
em suma, declara-se que o homem, quando conhece, não copia uma realidade exterior a ele, já
dada, mas cria um objeto com os elementos de sua subjetividade, sem que ‘algo’
gnoseologicamente (note-se esta limitação ao plano do conhecimento) preexista ao ‘objeto’.
Subordina o conhecimento à representação, por entender que a verdade das coisas está menos
nelas do que em nós, em nossa consciência ou em nossa mente, no fato de serem ‘percebidas’ ou
‘pensadas’ (REALE, 1999, p. 119-120).
Nas teorias apresentadas, observa-se que há um ponto comum: a relação de um sujeito
que conhece e quer conhecer (sujeito cognoscente) e de um objeto cognoscível. Assim, por
meio da teoria do conhecimento é que se terá o “método” para a interpretação que, segundo
Nader, “se for empirista, isto é, se admitir que o saber provém da experiência, da observação,
dará prioridade ao método indutivo; se, ao contrário, for adepto do racionalismo, selecionará
aqueles que valorizem o poder da razão” (2001, p. 16). Esta análise será de grande
importância para o desenvolvimento de uma moderna interpretação hermenêutica jusfilosófica
ontológica compreensiva, no direito contemporâneo, visto que a interpretação indutiva –
defendida por Kelsen – é intentada pelo neopositivismo.
Essa visão metodológica, inclusive, é explicada por Ferraz Jr., nos seguintes termos:
A questão do método entende-se, por conseguinte, em atenção ao que chamamos modelo
analítico, como o modo pelo qual a CIÊNCIA DO DIREITO tenta captar o fenômeno jurídico
como um fenômeno normativo, realizando uma sistematização das regras para a obtenção de
decisões. Como já sugerimos anteriormente, a teoria jurídica procura, nestes termos, construir
uma analítica. Entendemos por analítica um procedimento que constitui uma análise. Análise, de
um lado, é um processo de decomposição em que se parte de um todo, separando-o e
especificando-o nas suas partes. O método analítico é, neste sentido, um exame discursivo que
procede por distinções, classificações e sistematizações. O método analítico serve-se de
procedimentos lógicos, como a dedução e a indução, no caso do direito, sobretudo a analogia
(1980, p. 53).
Dessa forma, para uma interpretação embasada no sistema analítico e aplicada ao
mundo jurídico, segundo Ferraz Jr. (1980, p. 91-92), “a norma geral funciona como premissa
maior, o caso conflitivo como premissa menor e a conclusão seria a decisão”. Condição
problemática, pois a premissa menor representa a análise da regra pré-estabelecida ao caso
concreto, e a premissa maior, a subsunção do caso concreto à regra. Essa problemática perante
um Estado Democrático de Direito, que possibilita uma interpretação – aplicação normativa –
232
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
aberta por meio de regras e princípios ou regras e cláusulas gerais, torna-se insustentável e
passível de novos paradigmas.
4 HERMENÊUTICA JURÍDICA CONTEMPORÂNEA
4.1 DESCONSTRUINDO O PARADIGMA EPISTEMOLÓGICO
O intuito das teorias do conhecimento é de interpretar o objeto – texto - para, então,
conhecê-lo; o método correto para isso, questionando ou não sobre sua conceituação,
validado-a e permitindo a concepção de verdades. Gadamer define a interpretação de um texto
da seguinte forma:
Em sentido amplo, falamos de interpretação quando o significado de um texto não é
compreendido de imediato. Uma interpretação torna-se então necessária. Em outros termos,
torna-se necessária uma reflexão explícita sobre as condições que levam o texto a ter esse ou
aquele significado. A primeira pressuposição do conceito de interpretação é o caráter ‘estranho’
daquilo a ser compreendido. Com efeito, o que é imediatamente evidente, o que nos convence
com sua simples presença não requer nenhuma interpretação. Se considerarmos por um instante a
arte da interpretação de textos tal como os antigos a aplicavam na filologia e na teologia,
observaremos de imediato que se tratava sempre de uma arte ocasional. Lançava-se mão dela
somente quando o texto transmitido apresentava algum aspecto obscuro. Hoje ao contrário, o
conceito de interpretação tornou-se um conceito universal que pretende englobar a tradição como
um todo (GADAMER, 2003, p.19).
Com isso, percebe-se que o problema fulcral da hermenêutica embasada nas teorias do
conhecimento, anteriormente expostas, principalmente no que se refere à teoria de Kant
examinada por Kelsen – interpretação indutiva -, é tratar a hermenêutica filosófica como mera
metodologia interpretativa, ou seja, não é/era utilizada para criticar o direito impositivo
(paradigma epistemológico dominante), mas para reproduzir uma idéia de senso comum por
meio de verdades absolutas; tendo um sujeito que “interpreta” uma regra de forma subsuntiva,
ou, em não havendo conduta prevista - lacunas na lei – beira ao total discricionismo solipsista.
Nesse sentido, Gadamer fundamenta, a filosofia como algo mais do que apenas um método
interpretativo, que:
Como sabemos, isto significaria então que a filosofia não seria mais do que uma espécie organon
deste último tipo de ciência. Mas se, ao contrário, percebermos a ciências humanas como um
modo autônomo de saber, se reconhecermos a impossibilidade de submetê-las ao ideal de
conhecimento próprio às ciências da natureza (o que implica considerar absurdo tratá-las
segundo o ideal de semelhança mais perfeita possível com os métodos e graus de certeza das
ciências da natureza), então é a própria filosofia que está em questão, na totalidade de suas
pretensões. É igualmente inútil, nessas condições, limitar a elucidação da natureza das ciências
humanas a uma pura questão de método. Não se trata, em absoluto, de definir simplesmente um
233
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
método específico, mas sim de fazer justiça a uma idéia inteiramente diferente de conhecimento
da verdade. Desse modo, a filosofia, que se impõe tal exigência, possui outras pretensões que não
aquelas motivadas pelo conceito da verdade encontrado nas ciências da natureza (2003, p. 2021)9. (sem grifo original)
No direito contemporâneo, não há mais a possibilidade de se manter a dicotomia
sujeito-objeto10 quando o sujeito cognoscente (sujeito que conhece) ao interpretar/conhecer
um objeto (objeto cognoscível), não se preocupa com os problemas sociais, principalmente,
com os direitos fundamentais essenciais à existência do ser protegido pela Carta
Constitucional, ou seja, a interpretação abstrata torna-se dissociável do momento histórico
atual. Nesse sentido, Wolkmer eloquentemente descreve que:
Na atualidade perpassa, nos diferentes campos das ciências humanas, uma certa dificuldade em
encontrar-se um novo parâmetro de verdade diante da crise de fundamento que vive a sociedade
hodierna. As verdades teológicas, metafísicas e racionais que sustentaram durante séculos as
formas de saber e de racionalidade dominantes não conseguem mais responder inteiramente às
inquietações e às necessidades do presente estágio de desenvolvimento da modernidade humana.
Os modelos culturais, normativos e instrumentais que fundamentaram o mundo da vida, a
organização social e os critérios de cientificidade tornaram-se insatisfatórios e limitados. A
crescente descrença em modelos filósofos e científicos que não oferecem mais diretrizes e
normas seguras abre espaço para se repensarem padrões alternativos de fundamentação. Os
paradigmas que produziram um ethos, marcado pelo idealismo individual, pelo racionalismo
liberal e pelo formalismo positivista, bem como os que mantiveram a logicidade do discurso
filosófico, científico e jurídico, têm sua racionalidade questionada e substituída por novos
modelos de referência (2002, p. 1-2).
Streck explica que essa epistemologia utilizada pelas instituições propaga
conhecimentos axiológicos, dentro do sentido comum teórico dos juristas, reproduzindo-o
sem explicá-lo – argumentá-lo -, criando um conformismo para os operadores do direito, ou
seja, mero hábito dogmático11. “Segundo Warat, o sentido comum teórico é instrumentalizado
por uma racionalidade positivista, que atua como fetiche de sua razão cotidiana, além de atuar
como mediadora dos conflitos sociais” (STRECK, 2011(b), p. 84). Ainda, Streck ao citar
Rocha, faz considerações sobre as verdades dominantes formadoras de conceitos e senso
comum, alegando que:
O sentido comum teórico ‘coisifica’ o mundo e compensa as lacunas da ciência jurídica.
Interioriza – ideologicamente – convenções linguísticas acerca do Direito e da sociedade. Referese à produção, à circulação e à ‘consumação’ das verdades nas diversas práticas de enunciação e
de escritura do Direito, designando o conjunto das representações, crenças e ficções que
influenciam, despercebidamente, os operadores do Direito. Traduz-se em uma ‘para-linguagem’,
9
Gadamer, Hans-George. O problema da Consciência histórica. 2 ed. Rio de Janeiro: FGV, 2003.
Afirmação categoricamente demonstrada por Lênio Luiz Streck em seus livros Hermenêutica Jurídica e(m)
crise e Verdade e Consenso.
11
Streck faz pontuações sobre a dogmática jurídica, como epistemologia reprodutiva sem sentido e justificação,
transformando os fenômenos sociais em coisas, analisadas como meras abstrações sociais, pois não consta no
discurso dogmático - discurso de para o discurso sobre – limite à interpretação hermenêutica jurídica;
simplificando: o que não está previsto nos discursos dogmáticos é coisa abstrata. (STRECK, 2011(b)).
10
234
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
situada depois dos significantes e dos sistemas de significação dominantes, que ele serve de
forma sutil, para estabelecer a ‘realidade’ jurídica dominante (ROCHA apud STRECK, 2011(b),
p. 82).
Há, portanto, uma crise epistemológica da consciência decorrente de uma
interpretação liberal-individualista-normativista e discricionária – crise do paradigma
epistemológico da filosofia da consciência -, resultando num direito alienado da sociedade
que, para ser modificado, necessária se faz uma percepção da teoria do giro ontológico
compreensivo.
A teoria da linguagem ganha maior importância no século XX. Essa “passagem da
filosofia da consciência para a filosofia da linguagem, segundo Habermas, traz vantagens
objetivas, além de metódicas, uma vez que ela nos tira do círculo aporético no qual o
pensamento metafísico se choca com o antimetafísico [...]” (STRECK, 2011(b), p. 211),
permitindo abertura ao social ao invés do individual.
Na obra Hermenêutica Jurídica e(m) Crise, Streck destaca três frentes que considera
importantes, não apenas para a “viragem linguística”, mas para a invasão da filosofia pela
linguagem:
a) Primeiro, pode ser arrolado o neopositivismo lógico ou empirismo lógico, que buscava a
construção de linguagens ideais. [...] sustentavam a idéia de que o conhecimento pode ser
obscurecido por certas perplexidades de natureza estritamente linguística. Desse modo,
reduzindo a filosofia à epistemologia, e esta à semiótica 12, afirmam que a missão mais importante
da filosofia deve realizar-se à margem das especulações metafísicas, numa busca de
questionamentos estritamente linguísticos. O rigor discursivo passa a ser o paradigma da ciência;
sem rigor linguístico não há ciência; fazer ciência é traduzir numa linguagem rigorosa os dados
do mundo, isto é elaborar uma linguagem mais rigorosa que a linguagem natural. [...]
b) A segunda frente em que se operou o giro lingüístico foi a filosofia de Wittgenstein, naquilo
que se pode denominar de ‘segunda fase’. Em sua primeira fase Wittgenstein trabalha uma
concepção instrumentalista-designativa-objetivista da linguagem; pode-se dizer que pregava um
isomorfismo, problemática ainda presente nas súmulas Vinculantes do Supremo Tribunal
Federal. Posteriormente, seu pensamento aproxima-se de Heidegger, quando a linguagem deixa
de ser um instrumento de comunicação do conhecimento e passa a ser condição de possibilidade
para a própria constituição do conhecimento. Cai por terra, assim, a teoria objetivista. Não há
essências. Não há relação entre nomes e coisas. Não há qualquer essência comum entre as coisas
no mundo. Não há uma linguagem exata e definitiva. Alega-se que a linguagem tem sentido, e
que usar a linguagem significará ‘interação social-simbólica’. [...]
c) A terceira frente ocorreu com o desenvolvimento da filosofia da linguagem ordinária. Trata-se
da concepção de que toda a linguagem possui sentidos – paixões e preconceitos – advindos dos
homens, portanto, mesmo que ordinária/originária a primeira palavra não é a última palavra;
passa a dar ênfase à pragmática, ou seja, relação do signo com o usuário (STRECK, 2011(b), p.
212-221).
12
A linguagem é o objeto da semiótica, representada por signos na seguinte forma: a) sintaxe: correção dos
enunciados (relação entre os signos); b) semântica: condições de verdade desses enunciados (vinculação dos
signos com os objetos designados), e, c) pragmática: regras por meio das quais os enunciados têm qualidade
oficial; ou seja, para obter a verdade dos enunciados (relação do signo com o usuário) (STRECK, 2011(b), p.
213).
235
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
O giro ontológico linguístico perpassa a doutrina heideggeriana de Ser e tempo, a qual
Gadamer enfatiza a destruição do conceito de “consciência” que é, em verdade, a reconquista
da pergunta acerca do ser. Nesse sentido, explica Gadamer:
O que constitui o caráter revolucionário no empreendimento heideggeriano é o fato de ele não
colocar a pergunta crítica por detrás da consciência, no sentido em que a psicologia profunda e a
crítica à ideologia à sua maneira fizeram, mas de ele colocar a pergunta radical sobre o que se
tem de compreender propriamente por ‘ser’ e de afirmar que isso não é acessível quando as
pessoas se recolhem apenas na suposta autenticidade da consciência e da autoconsciência. Assim,
Heidegger propiciou a retomada da pergunta platônica-aristotélica acerca do ‘ser’ e transformou
com isso em verdade o todo da filosofia mais recente (GADAMER, 2009, p. 34).
Ao explicar sobre um ponto referente à teoria da linguagem - representada em Hegel e
Aristóteles em estudos realizados por Heidegger - Gadamer faz referência à palavra grega
ousia ou essência – “‘Ser’ é o ‘que se acha diante de nós’. Ser significa aqui achar-se diante
de nós no sentido do ter-sido-representado. Verdade seria autoasseguramento, ou seja,
certitudo” (GADAMER, 2009, p. 29). Em seus estudos, Gadamer afirma que Heidegger
apresentava dois momentos distintos: um tardio, que a essência deveria ser vista apenas como
a certeza do representado, isto contraria a teoria metafísica, considerada por Heidegger como
“esquecimento do ser”, acentuado nas teorias de Hegel, e num outro momento, “em
Aristóteles, Mestre Eckhart e Leibniz, o sentido verbal de ‘ser’ e ‘essência’” (GADAMER,
2009, p. 30). Continuando o raciocínio, salienta Gadamer que:
o ser é compreendido ou concebido ou pensado. Em Heiddeger tínhamos: Ele é falado, ou seja, é
assim que se fala sobre isso13. Portanto, [...] o fato de se aprender a pensar a vida em todas as
suas muitas direções de autointerpretação e de experiência linguísticas representa naturalmente
uma tarefa genérica. A isso pertence a experiência da transcendência, a experiência da poesia, da
arte, do culto, do rito do direito – tudo isso precisa ser pensado de maneira nova. Esse era o
interesse de Heiddeger (GADAMER, 2009, p. 30).
A teoria da linguagem falada desconstrói a metafísica e o objetivismo positivista da
tese de que o sujeito conhece e interpreta um objeto dado para então obter uma síntese (para
os positivistas caberia aqui a linguagem como resultado) como se o objeto fosse destituído de
qualquer linguagem anterior, de qualquer pressuposto. Importante salientar que, ao incorrer
em tal interpretação, cada sujeito – jurista – poderia conceituar o objeto conforme sua própria
consciência, discricionariamente. Nesse sentido, não há como o sujeito conceituar o objeto,
pois o objeto já existe através do sujeito. Assim, “o que efetivamente importa é que a
13
“O pensamento sempre está, em verdade, em uma aliança com a língua realmente falada. Essa fornece-nos as
nossas experiências de pensamento. Em verdade, isso vale para todas as línguas faladas” (GADAMER, 2009, p.
33). Tais acepções feitas em Gadamer por Heidegger - Ser e Tempo -, servem como prova de desconstrução da
metafísica - teoria criticada pelos autores do pensamento lógico-racional - por meio da linguagem falada.
236
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
linguagem passou a ser a condição de possibilidade do próprio filosofar” (STRECK,
2011(b), p. 223).
Portanto, a linguagem é considerada como possibilidade de se obter a hermenêutica
interpretativa e não o resultado. Nesse sentido, Neves menciona que:
[...] tendo deixado de ser a hermenêutica tão-só a tradicional ars de interpretação de textos (ars
interpretandi, ars bene intelligendi) «cânone de regras que tinham por objecto operar com
textos» -, para se assumir numa referência ontológica à própria existência humana, já que o
compreender se revelou na analítica dessa existência, como «um modo fundamental do ser, do
Dasein» enquanto ser finito e histórico no mundo, analogamente se poderá afirmar que «o ‘serno-direito’ pertence ao ser do homem» (como ser comunitário em coexistência de mútuo
reconhecimento) e que nesses termos sempre uma compreensão, e portanto, uma hermenêutica
será base constitutiva do direito – mesmo como sua condição ontológica, enquanto é o direito a
compreensiva objectivação das validades ou dos sentidos axiológico-normativos implicados por
essa coexistência comunitária e assim hermenêutica positivação da «consciência jurídica» ou do
seu princípio normativo (o princípio fundamentante e regulativamente constitutivo da
juridicidade) (NEVES, 2003, p. 49-50).
Assim, desconstitui-se a teoria epistemológica dicotômica sujeito-objeto (textos) - ou
seja, interpretação hermenêutica-filosófica como método abstrato - para a hermenêuticafilosófica sujeito-sujeito (intersubjetiva) universal aplicada (concretizadora) que, com o uso
da linguagem (meio de possibilidade) compreende para interpretar. Aplicada, pois,
corresponde à jurisprudência, momento não abstrato, mas concreto. Esse momento concreto
caracteriza-se através do conhecimento do “ser” pelo “ser-aí” por meio do “ente”.
Nesse sentido, para interpretar algo, o questionador/interpretador (Desein) tem uma
pressuposição do ser, pois o ser já é conhecido por meio do ente, não há uma dedução do ser,
mas uma demonstração do ser, pois, interpretá-lo, é preciso compreender o ser e o ente
pressuposto para obter-se outro ente, redefinindo-o na busca de uma resposta correta. Assim,
há uma resposta correta, porém, para a hermenêutica, ela não será uma resposta finita e
imutável, a depender da aplicação no caso concreto poderá ser reformulada para adequar-se e
novamente obter-se uma resposta correta.
4.2 HERMENÊUTICA CONTEMPORÂNEA ONTOLÓGICA COMPREENSIVA
Após a desconstrução da teoria do conhecimento vinculada ao sujeito cognoscente,
objeto cognoscível e síntese, recepcionadas pelo positivismo jurídico e mantida atualmente
para interpretações hermenêuticas deturpadas e arbitrárias; a recepção da teoria do
conhecimento intersubjetiva - heideggariana e gadameriana - representada pelo círculo
237
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
hermenêutico lingüístico surge, então e desencadear de possibilidades para se obter
interpretações condizentes ao Estado Democrático de Direito.
Percebe-se que a teoria do ente e do ser-aí (Desein14) possibilita, por meio da
existência e tradição do ser, interpretar o texto sem desconsiderar os preconceitos 15 ou
pressupostos, porém separando os pressupostos falsos dos pressupostos autênticos - legítimos.
Deve-se ter consciência histórica de tudo o que forma os preconceitos/pressupostos por meio
de uma auto-reflexão para uma a interpretação adequada. Isso é importante, pois, o
hermeneuta deve ter consciência da história, do todo, da sociedade, da família, dos problemas
sociais, das leis, enfim, do contexto necessário para a aplicabilidade da norma, ou seja,
compreender para interpretar – “interpretar é aplicar, o intérprete não reproduz sentidos
(Auslegung); na verdade, sempre atribuímos sentidos (Sinngebung)” (STRECK, 2011(b), p.
224). Há um desvelar da linguagem (ente) do texto no momento concreto, porém sem ser
arbitrário16. Ainda, segundo Gadamer (1997, p.408-409):
O que nos induz a erros é o respeito pelos outros, por sua autoridade, ou a precipitação que existe
em nós mesmos. O fato de que a autoridade seja uma fonte de preconceitos coincide com o
conhecido princípio fundamental do Aufklärung17, tal como formula Kant: tenha coragem de te
servir de teu próprio entendimento. (...) Procura compreender a tradição corretamente, isto é,
isenta de todo o preconceito e racionalmente. Mas isso traz uma dificuldade muito especial, pelo
mero fato de que a fixação por escrito contém em si própria um momento de autoridade de peso
determinante. Não é fácil consumar a possibilidade de que o escrito não seja verdade. O escrito
tem a palpabilidade do que é demonstrável, é como uma peça comprobatória. Torna-se
necessário um esforço crítico especial para que nos liberemos do preconceito cultivado a favor
do escrito e distinguir, tanto aqui, como em qualquer afirmação oral, entre opinião e verdade.
Seja como for, a tendência geral do Aufklärung é não deixar valer autoridade alguma e decidir
tudo diante do tribunal da razão.
Nesse âmbito, consubstancia Gadamer como regra geral da hermenêutica de que “temse que compreender o todo a partir do individual e o individual a partir do todo” (1997,
14
Streck explica, em sua obra Hermenêutica jurídica e(m) crise, que o Desein é o ser-no-mundo, o ser que está
jogado no mundo recebe as coisas como elas mesmas com seus conceitos prévios, mas passíveis de
desvelamento e reformulação, reconstrução.
15
Preconceito (Vorurteil) quer dizer um juízo (Urteil) que se forma antes da prova definitiva de todos os
momentos determinantes segundo a coisa. No procedimento juris-prudencial um preconceito é uma pré-decisão
jurídica, antes de ser baixada uma sentença definitiva. Preconceito não significa, pois, de modo algum, falso
juízo, pois está em seu conceito que ele possa ser valorizado positivamente ou negativamente. Somente a
fundamentação, a garantia do método (e não o encontro com a coisa como tal) confere ao juízo sua dignidade
(GADAMER, 1997, p. 407-408).
16
Conclusões da leitura de Verdade e Método de Gadamer. Ainda, no que tange à arbitrariedade Gadamer afirma
que: Quando se ouve alguém ou quando se empreende uma leitura, não é necessário que se esqueçam todas as
opiniões prévias sobre seu conteúdo e todas as opiniões próprias. O que se exige é simplesmente a abertura à
opinião do outro ou à do texto. Mas essa abertura já inclui sempre que se ponha a opinião do outro em alguma
relação com elas. Claro que as opiniões representam uma infinidade de possibilidades mutáveis (em comparação
com a univocidade de uma linguagem ou de um vocabulário), mas dentro dessa multiplicidade do opinável, isto
é, daquilo em que o leitor pode encontrar sentido e, enquanto tal pode esperar, nem tudo é possível, e quem não
ouve direito o que o outro está dizendo, realmente, acabará por não conseguir integrar o mal-entendido em suas
próprias e variadas expectativas de sentido (GADAMER, 1997, p. 404-405).
17
Reconhecimento.
238
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
p.436). Isso permite uma compreensão e auto-reflexão do todo e do individual, mas como
afirma Gadamer, não se trata de um círculo objetivo ou subjetivo, a antecipação de sentido,
“que guia a nossa compreensão de um texto não é um ato da subjetividade, já que se
determina a partir da comunhão que nos une com a tradição” (1997, p. 439-440). Portanto,
não se trata de um método, ou, um “círculo metodológico”. Em complementaridade ao
raciocínio gadameriano, Streck conclui que “o conhecimento não vem antes do compreender”
(2011(b), p. 223).
Portanto “é na linguagem que se dá o sentido (e não na consciência do sujeitointérprete)” (STRECK, 2011(b), p. 224). Para melhor elucidação sobre a tradição, Streck
assevera que:
[...] a história é a condição prévia para que o ente seja um ser-no-mundo. Não há uma
contraposição entre sujeito e objeto, e sim uma fusão entre ambos a partir de sua historicidade.
O existir do ‘sujeito’ é um existir histórico, enquanto ser-no-mundo, em que o ‘objeto’ não é
construído como ‘cogito’ e tampouco refletido na consciência, mas, sim, se desvela pela
linguagem. O desvelamento do ser de um ente passa a possibilidade de seu existir, que só
acontece na história linguisticamente apreendida. Quem compreende não tem uma mente em
branco, como uma tábua rasa, e sim, já tem, desde sempre, uma prévia compreensão das coisas
e do mundo; já tem (sempre) uma pré-compreensão, algo prévio que vem com o ente, como
curador/vigilante do ser. Desde sempre, o sujeito da compreensão já está jogado no mundo,
dentro do qual as suas condições de possibilidade estão definidas (e se definem cotidianamente)
na e pela linguagem. O sujeito da compreensão recebe o legado da tradição; esse legado é
compulsório; não há possibilidade de a ele renunciar (STRECK, 2011(b), p. 264). (sem grifo no
original)
Assim, o sujeito não reconta a história, porque os fatos históricos mudam, por isso, o
ser-no-mundo está jogado no mundo, desvelando as regras e princípios como são, adequando
a realidade aos fatos e ao ser. Supera-se dessa forma a abstratalidade positivista alheia ao real
e ao social. Portanto, o sujeito (ser-no-mundo) recebe a história e a reformula ao seu tempo
por meio da linguagem. O autor nomina de “giro ontológico-linguístico”, aduzindo que, a
“palavra ‘ontologia’ usada é identificada como a fenomenologia. Por quê? Porque a
fenomenologia é utilizada para descrever também o fenômeno da compreensão do ser”
(STRECK, 2011(b), p. 225). Ainda, analisa que:
É a partir daí que a fenomenologia (hermenêutica) faz uma distinção entre ser (Sein) e ente
(Seiende). Ela trata do ser enquanto compreensão do ser e do ente enquanto compreensão do ser
de um ou outro (ou cada) modo de ser. Classicamente, a ontologia tratava do ser e do ente. Aqui,
a ontologia trata do ser ligado ao operar fundamental do ser-aí (Desein), que é o compreender do
ser. Esse operar é condição de possibilidade de qualquer tratamento dos entes. Tratamento esse
que pode ser chamado na tradição de ‘ontológico’, mas sempre entificado. Essa ontologia do ente
é que Heidegger irá chamar de met-ontologia. Essa teoria tratará das diversas ontológicas
regionais (naturalmente, dos entes). [...] A explicitação dessa dimensão ontológico-linguística irá
tratar da linguagem não simplesmente como elemento lógico-argumentativo, mas como um modo
239
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
de explicitação que já é sempre pressuposto aí onde lidamos com enunciados lógicos (STRECK,
2011(b), p. 225).
Ao compreender o texto para interpretar – aplicar – não podemos desconsiderar os
pressupostos e preconceitos (entes) limitados pela tradição (necessidade de uma consciência
histórica efeitual); todo o conhecimento adquirido deve ser utilizado. Isso tudo é fulcral
quando analisado sob a ótica do Estado Democrático de Direito permeado por uma
Constituição Federal embasada em princípios e regras que possibilitam uma norma correta e
adequada. Além do mais, “[...] a viragem (giro) ontológico-linguística se coloca como o que
precede qualquer relação positiva. Não há mais um ‘sujeito solitário’; agora há uma
comunidade que antecipa qualquer constituição de sujeito” (STRECK, 2011(b), p. 228).
Portanto, aquém de uma interpretação embasada nos códigos - principalmente no que
tange ao Estado Liberal caracterizado pelo Código Civil -, não se intenta desconstruir o que
existe, ou seja, uma Constituição advinda de um sistema Democrático de Direito, onde se
preocupou constar uma proteção às pessoas ou grupo de pessoas – identificáveis ou não hipossuficientes ou desprovidas de direitos fundamentais à sua existência, e que, quando não
detentores desses direitos o Estado está compelido à concessão; todavia, desconsiderar uma
mera reprodução de sentidos ocasionados pela interpretação subsutiva, ou pior, arbitrária e
solipsista (decido conforme minha consciência). Possibilitando, dessa forma, a interpretação
fundamentada – aplicação – por meio da ontologia-compreensiva, uma resposta adequada,
correta e concretizadora dos direitos fundamentais. Ainda, não há como se falar
contemporaneamente em interpretação abstrata da lei e dos textos de forma dogmática, pelo
fato de que, considerando-as e recepcionando-as no momento que forem aplicadas
(interpretadas) ao caso específico não será o mesmo momento histórico em que foram criadas.
Portanto, deverá o hermeneuta por meio da compreensão adequar as regra e os textos ao
momento de aplicabilidade.
Falar em concretização de direitos fundamentais é consequentemente falar em
interpretação constitucional. Neste sentido, explana Hesse:
A interpretação constitucional é ‘concretização’ (Konkretisierung). Precisamente aquilo que não
aparece, de forma clara, como conteúdo da Constituição é o que deve ser determinado mediante a
incorporação da ‘realidade’ de cuja ordenação se trata. Nesse sentido, a interpretação
constitucional tem caráter criativo: o conteúdo da norma interpretada só se completa com a sua
interpretação; mas, veja-se bem, só em tese possui caráter criativo, pois a atividade interpretativa
fica vinculada à norma (HESSE, 2009, p. 108).
Streck pontua brilhantemente a construção de uma hermenêutica contemporânea em
Heidegger e Gadamer, desconsiderando-se a visão positivista-lógica-objetiva no uso de
240
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
metodologia pré-estabelecida de uma interpretação ontológica (sujeito-objeto), como também,
teorias interpretativas positivista-objetivistas – de Norberto Bobbio -, e subjetivistas-solipsista
– de Hans Kelsen -, apresentando a interpretação ontológica compreensiva intersubjetiva
(sujeito-sujeito), por meio do círculo hermenêutico.
A intenção da hermenêutica contemporânea apresentada pelos autores, não pretende
seguir o positivismo imposto – verdades incontestáveis -, ou, tão pouco beirar ao solipsismo
jurídico, mas buscar a interpretação mais adequada. Neste sentido, explica Hesse:
A interpretação adequada é aquela que consegue concretizar, de forma excelente, o sentido
(Sinn) da proposição normativa dentro das condições reais dominantes numa determinada
situação. Em outras palavras, uma mudança das relações fáticas pode – ou deve – provocar
mudanças na interpretação da Constituição. Ao mesmo tempo, o sentido da proposição jurídica
estabelece o limite da interpretação e, por conseguinte, o limite de qualquer mutação normativa.
A finalidade (Telos) de uma proposição constitucional e sua nítida vontade normativa não devem
ser sacrificadas em virtude de uma mudança de situação. Se o sentido de uma proposição
normativa não pode mais ser realizado, a revisão constitucional afigura-se inevitável (HESSE,
1991, p. 22-23).
Para que se cumpra a força normativa da Constituição o que ela prevê - normas
regulamentadas ou não, ou princípios que possibilitem uma interpretação aberta, formadores
de um Estado Democrático de Direito e constituídos pela base de direitos fundamentais deve ser aplicado, efetivado, realizado, concretizado pelo Poder Público (Poder Legislativo,
Executivo e Judiciário) para que não passem apenas de normas abstratas. “A Constituição
jurídica está condicionada pela realidade histórica. Ela não pode ser separada da realidade
concreta de seu tempo. A pretensão de eficácia da Constituição somente pode ser realizada se
se levar em conta essa realidade. (HESSE, 1991, p. 24).
A releitura lingüística pressupõe, portanto, uma interpretação ontológica da
compreensão por parte dos jurisdicionados em um Estado Democrático de Direito no qual, o
juiz não possui mais a característica de mero aplicador do direito como instituído no Estado
Liberal, mas como mediador e hermeneuta da universalidade jurídica, social e política. E que
em momentos onde a lei é vaga – incompleta, ou, omissa, o juiz adequaria a decisão ao caso
concreto por meio de regras em conjunto com princípios constitucionais ou cláusulas gerais,
mas não de forma subjetiva – soliptista -, mas de forma a “criar”, reformulando a norma –
interpretação/aplicação. Nesse sentido, Canotilho define a interpretação ontológica
compreensiva como “método hermenêutico-concretizador”, e define:
O método hermenêutico-concretizador arranca da idea de que a leitura de um texto normativo se
inicia pela pré-compreensão do seu sentido através do intérprete. A interpretação da constituição
também não foge a este processo: é uma compreensão de sentido, um preenchimento de sentido
juridicamente criador, em que o intérprete efectua uma actividade prático-normativa,
241
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
concretizando a norma para e a partir de uma situação histórica concreta. [...] este método
concretizador afasta-se do método tópico-problemático, porque enquanto o último pressupõe ou
admite o primado do problema perante a norma, o primeiro assenta no pressuposto do primado
do texto constitucional em face do problema (CANOTILHO, 2003, p. 1212).
O ideal subjetivista – decidir conforme sua própria consciência como classifica Streck
- embute a idéia de que não existem verdades e que tudo não passa de uma total abstração, o
que poderia beirar ao caos; pois, se nada do que está presente nas leis, ou, tampouco na
Constituição Federal Brasileira, são passíveis de ser uma “verdade”, ou mesmo “meia
verdade”, todas as vezes que se criam novas verdades consequentemente estas também serão
refutadas e assim haverá uma inverdade infinita gerando um ciclo vicioso. Ainda, afirma
Streck:
[...] o direito não é aquilo que o intérprete quer que ele seja. Portanto, o direito não é aquilo que o
tribunal, no seu conjunto ou na sua individualidade de seus componentes diz que é. [...] Há que
se ter o devido cuidado: a afirmação de que o ‘intérprete sempre atribui sentido (Sinngebung) ao
texto’ nem de longe pode significar a possibilidade de autorizá-lo a ‘dizer qualquer coisa sobre
qualquer coisa’, atribuindo sentidos de forma arbitrária aos textos, como se texto e norma
estivessem separados (e, portanto, tivessem ‘existência’ autônoma) (2011(a), p. 264).
O que se pretende com a ontologia da compreensão fenomenológica é reformular
novas verdades sem prejudicar certos pré-conceitos de cada sujeito. Pensar-se-ia que, se todas
as “verdades” são contestáveis, não existiriam verdades, mas dúvidas eternas - ou, respostas
jurisprudenciais díspares, beirando ao caos e a insegurança jurídica -, consequentemente a
existência perde a finalidade. Não havendo verdades, não há sentidos, entretanto estes
sentidos devem estar interligados com o universo e não apenas com o sujeito – sozinho -,
assim, deve-se respeitar outras verdades (o hermeneuta deve estar aberto a outras opiniões).
Não criar um direito, mas reformulá-lo para o bem 18. Complementa Hesse que o interprete
consciente de seus pré-juízos/pré-compreensões explicando-as, atenderá “ao primeiro
comando de toda a interpretação; evitar a arbitrariedade do instantâneo, prestando atenção às
‘coisas mesmas’” (HESSE, 2009, p.109).
Essa arbitrariedade mencionada pelo autor está relacionada à falta de concretização da
Constituição Federal Brasileira, ou seja, falta de aplicação de políticas públicas pelo Governo
(Poderes Executivo e Legislativo) de acordo com os direitos e garantias fundamentais por ela
previstos. Em razão disso, Streck afirma que:
Em face do quadro que se apresenta – ausência de cumprimento da Constituição, mediante a
omissão dos poderes públicos, que não realizam as devidas políticas públicas determinadas pelo
pacto constituinte -, a via judiciária se apresenta – por vezes – como a via possível para a
realização dos direitos que estão previstos nas leis e na Constituição. É claro que o Judiciário
não faz e não fará políticas públicas. Aliás, é nesse sentido que devemos desmitificar algumas
18
Streck, L. Hermenêutica jurídica e(m) crise.
242
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
idéias que se propagam a respeito do direito e das políticas públicas. Com efeito, política pública
é um problema de ação do Poder Executivo. O que o Direito pode fazer é regulamentar a
execução dessas políticas e é nesse âmbito regulatório que o Judiciário pode intervir (STRECK,
2011(b), p. 64-65)19.
Porém, é com base na interpretação adequada – correta – aplicada ao fato,
caracterizada por Dworkin, que se intenta a efetividade normativa da Constituição, e que
segundo Streck (2011(a), p. 341) “o texto da Constituição só pode ser entendido a partir de
sua aplicação. Entender sem aplicação não é entender. A applicatio é a norma(tização) do
texto constitucional”.
Portanto, de suma importância a pré–compreensão no que tange ao significado da
Constituição, a função que dela insurge com a virada lingüística fazendo com que se torne
“condição de possibilidade para a configuração do lugar da cooriginariedade, onde habita a
estrutura prévia do compreender a partir da virtuosidade do circulo hermenêutico”
(STRECK, 2011(a), p. 350); obtendo-se, consequentemente juízos autênticos (legítimos) –
direito como integridade20 aplicada por Dworkin. Na busca da “real” efetivação dos direitos e
garantias fundamentais existentes na Constituição Federal por meio do mínimo existencial, ou
seja, um mínimo para uma existência digna.
5 A HERMENÊUTICA CONSTITUCIONAL NO DIREITO CIVIL BRASILEIRO –
ABORDAGEM À RESPOSTA CORRETA
Contemporaneamente,
adentrar
na
concretização
de
direitos
fundamentais21
indubitavelmente é necessário correlacionar o Direito Privado, este precursor de garantias e
proteções no âmbito jurídico das relações particulares, porém, atualmente, indissociável de
uma interpretação hermenêutica jusfilosófica constitucional. Sarlet pontua:
19
Há casos limítrofes, em que a decisão judicial evita um desvio de finalidade do orçamento público e das
próprias políticas públicas que advêm da Constituição e da Lei Orgânica do Município. Mutatis mutandis, é o
exemplo que vem da Comarca de Joinville (SC), em que o juiz Alexandre Morais da Rosa, atendendo a ação
civil pública promovida pelo Ministério Público, determinou à municipalidade a criação de 2.948 vagas de
ensino fundamental na rede pública de ensino. No caso, a municipalidade havia ‘preferido’ colocar elevada verba
em favor de um clube de futebol (Joinville Esporte Clube, que disputa a terceira divisão do Campeonato
Brasileiro (STRECK, 2011(b), p. 65-66).
20
O direito como integridade nega que suas manifestações sejam relatos factuais do convencionalismo [...]
(STRECK, 2011 (a), 352). A integridade exige que as normas públicas da comunidade sejam criadas e vistas, na
medida do possível, de modo a expressar um sistema único e coerente de justiça e equidade na correta proporção
(DWORKIN apud STRECK, 2011(a), p. 354).
21
A Constituição Federal de 05.10.1988 agasalhou, no seu Título II (Dos Direitos e Garantias Fundamentais),
um extenso e diferenciado rol de posições jurídicas expressamente designadas de fundamentais, logo após ter
enunciado os princípios e objetivos fundamentais, dentre os quais desponta a dignidade da pessoa humana,
expressamente guindada à condição de fundamento da República Federativa do Brasil (SARLET, 2010, p.16).
243
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
Antes mesmo de adentrarmos o exame da possível eficácia dos direitos fundamentais no âmbito
do Direito Privado, importa registrar que a problemática ora versada segue constituindo um tema
teórico e prático atual e relevante, ainda que as constituições nacionais estejam gradativamente
perdendo em centralidade, bastando aqui breve referência ao fenômeno da internacionalização do
Direito, que, na Europa, assume feições particularmente relevantes. Soma-se a isso a crescente
perda da capacidade de regulação e de tutela, mas também da capacidade prestacional do Estado
e do Direito estadual (também do Direito Constitucional!) no contexto da sociedade
contemporânea ou pós-moderna, como preferem alguns. Todavia, justamente os conhecidos
déficits de proteção e regulação verificados numa ambiência marcada pelo incremento dos
poderes sociais e econômicos por parte de atores não estatais acabam, mesmo que de modo
diferenciado, influenciando o debate sobre a vinculação dos particulares aos direitos
fundamentais, o que também alcança os direitos sociais, notadamente no que diz respeito à
privatização das funções e tarefas estatais, como, por exemplo, ocorre nos setores de
fornecimento de energia, água, serviços de saneamento básico, telecomunicações, entre tantos
outros (SARLET, 2010, p. 20).
Além desses serviços citados pelo autor, poder-se-ia mencionar contratos bancários
que ajudam a fornecer moradia à maioria da população, com a ajuda de projetos advindos do
governo federal (por exemplo, o projeto minha casa minha vida através da Caixa Econômica
Federal22), em cumprimento ao direito fundamental de moradia constante a Constituição
Federal Brasileira, art. 6º.
Importante salientar, em continuidade do raciocínio anteriormente exposto sobre a
hermenêutica ontológica compreensiva, como e de que forma poder-se-ia interpretar (aplicar)
a norma, possibilitando uma concretização dos direitos fundamentais expressos na
Constituição Federal Brasileira nas relações limitadas, até então, ao Direito Privado, pois,
como bem denota Streck “interpretar é aplicar”. É pertinente, introduzir a teoria de
interpretação constitucional antológica compreensiva para uma resposta correta e adequada –
“íntegra” - defendida por Streck (embasada, em grande parte, em Dworkin) para a solução de
conflitos jurídicos. Portanto, para a resposta hermeneuticamente adequada (correta), há que se
ter em mente que:
[...] entre texto e sentido do texto (norma) não há uma cisão – o que abriria espaço para o
subjetivismo (teorias axiológicas da interpretação) – e tampouco existe, entre texto e norma, uma
identificação (colagem) – o que abriria espaço para o formalismo de cunho objetivista. Entre
texto e sentido do texto há, portanto uma diferença. Negar essa diferença implica em negar a
temporalidade, porque os sentidos são temporais. A diferença (que é ontológica) entre texto e
norma (sentido enunciativo do texto, ou seja, o modo como o podemos descrever
fenomenologicamente) ocorre na incidência do tempo (STRECK, 2011(a), p. 336). [...]
Dito de outro modo, negar essa diferença é acreditar no caráter fetichista da lei, que arrasta o
direito em direção ao positivismo exegético. Daí a impossibilidade de reprodução de sentidos,
como se o sentido fosse algo que pudesse ser arrancado dos textos (da lei etc.). Os sentidos são
atribuíveis a partir da faticidade em que está inserido o intérprete e respeitando os conteúdos de
base do texto, que devem nos dizer algo (STRECK, 2011(a), p. 338).
22
É mister lembrar-se que se trata de empresa pública com personalidade jurídica de direito privado, exploradora
de atividade econômica, correlacionado nos artigos 170 e 173 da Constituição Federal Brasileira.
244
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
Assim, para obter a normatização, o jurista interpreta o texto acrescentando sentidos conscientemente separando os falsos preconceitos dos preconceitos autênticos 23 – à situação
prática, dispensada a abstração, a subsunção e a arbitrariedade advindas do positivismo e
neopositivismo.
Para obter-se uma normatização, ou, uma resposta correta – adequada – à
Constituição, consequentemente, ao Estado Democrático de Direito, deve-se preservar o
sentido
do
texto
analisando-o/interpretando-o
de
forma
universal,
na
faticidade
fenomenológica e autenticamente, obtendo-se uma decisão processual íntegra. Assim,
permitir ao juiz que acrescente sentido (falso) ao texto normatizando-o sem observar esses
limites propulsionaria arbitrariedades descontroladas, inconstitucionais e antidemocráticas.
Isso ocorria, e ocorre, quando juízes utilizam-se de princípios vagos, não conceituados na
constituição, para aplicá-los dissociados das regras a eles inerentes, apregoando sentidos
subjetivos, o que propiciaria decisões díspares, irregulares, inadequadas e total insegurança
jurídica. Como constata Streck, “não se pode dizer qualquer coisa sobre qualquer coisa”,
portanto, não se pode atribuir sentidos “decidindo conforme sua própria consciência”24.
Segundo Dworkin, “justice is a matter of outcomes: a political decision causes
injustice, however fair the procedures that produced it, when it denies people some resource,
liberty, or opportunity that the best theories of justice entitle them to have” (1986, p.180).
Promover decisões políticas (embasadas em preconceitos subjetivos falsos) causaria mais
injustiças que lacunas e faltas na lei. Porém, o Poder Judiciário, na figura de seu julgador, tem
o dever de buscar uma solução e resposta íntegras, adequadas ao caso, sem transpor toda uma
universalidade de sentidos fenomenologicamente presentes. Assim, a integridade serve como
adequador:
This connection between integrity and the rhetoric of equal protection is revealing. We insist on
integrity because we believe that internal compromises would deny what is often called “equality
before the law” and sometimes “formal equality”. It has become fashionable to say that this kind
23
A autenticidade da interpretação exsurgirá da possibilidade de o jurista/intérprete apropriar-se do que foi
compreendido. A apropriação do compreendido passa a ser a sua condição de poder fazer uma interpretação que
supere o conteúdo reprodutor/reprodutivo e objetivante representado por esse habitus dogmaticus (o sentido
comum teórico dos juristas, que, efetivamente, representa aquilo que se pode denominar ‘tradição inautêntica do
direito’). O poder apropriar-se é a chave para escancarar as portas o mundo inautêntico do direito (STRECK,
2011(a), p. 348).
24
Negar a possibilidade de que possa existir (sempre), para cada caso, uma resposta conformada à Constituição,
portanto, uma resposta correta sob o ponto de vista hermenêutico (porque é impossível cindir o ato interpretativo
do ato aplicativo), pode significar a admissão de discricionariedades interpretativas, o que se mostra antitético ao
caráter não relativista da hermenêutica filosófica e ao próprio paradigma do Constitucionalismo Contemporâneo,
introduzido pelo Estado Democrático de Direito, incompatível com a existência de múltiplas respostas
(STRECK, 2011(a), p. 440).
245
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
of equality is unimportant because is offers little protection against tyranny. This denigration
assumes, however, that formal equality is only a matter of enforcing the rules, whatever they are,
that have been laid down in legislation, in the spirit of conventionalism. The equal protection
cases show how important formal equality becomes when it is understood to require integrity as
well as bare logical consistency, when it demands fidelity no just to rules but to the theories of
fairness and justice that rules presuppose by way of justification (DWORKIN, 1986, p. 185).
Para que isso ocorra, os princípios constitucionais servem como meio e não como fim.
Häberle faz algumas observações importantes sobre a interpretação contemporânea, ou seja, a
Constituição constante em um Estado Democrático de Direito deve ser norteadora da eficácia
de direitos fundamentais, inclusive das relações privadas. Nesse sentido, assevera o autor que:
Não obstante, os princípios e métodos de interpretação constitucional preservam o seu
significado, exercendo, porém, uma nova função: eles são os “filtros” sobre os quais a força
normatizadora da publicidade (normierende Kraft der Öffentlichkeit) atua e ganha conformação.
Eles disciplinam e canalizam as múltiplas formas de influência dos diferentes participantes do
processo (HÄBERLE, 2002, p. 43-44).
Salienta-se que, ao interpretar/aplicar e, consequentemente, normatizando/decidindo,
utilizando-se das regras infraconstitucionais sob a luz da Constituição, o juiz, conforme
mencionado anteriormente, deve procurar obter a resposta correta (norma) utilizando-se de
regras e princípios25 como meios de possibilidade para isso. Assim, Dworkin, contrariando
teorias de que existem várias respostas para o caso, alega que “o ‘mito’ de que (...) só existe
um resposta correta é tão obstinado quanto bem-sucedido. Sua obstinação e seu êxito valem
como argumentos de que não se trata de um mito” (2002, p.446). Ainda, se houvesse várias
respostas ao caso concreto, não se teria uma decisão íntegra e condizente com a Constituição,
pois, se cada juiz expõe suas convicções (preconceitos falsos ao invés de autênticos) como
“verdades incontestáveis”, prevalecerão falácias, partir-se-á da negação da negação sem obter
um consenso, ou seja, uma decisão adequada ao caso específico 26. Portanto, para Dworkin
num processo sempre haverá uma argumentação certa e uma argumentação errada, não
devendo os juízes utilizar-se de princípios e conceitos vagos para provar suas opiniões, mas,
caso necessário, para obter uma norma correta e adequada, devem utilizar-se de regras e
princípios para amplificar o pretendido pelo Estado Democrático de Direito e esboçado na
Constituição27.
25
“Principles have a dimension that rules do not – the dimension of weight or importance. […] principles play
an essential part in arguments supporting judgments about particular legal rights and obligations” (DWORKIN,
1978, p. 26;28).
26
Ressalta Dworkin que a “idéia geral, de que algumas decisões jurídicas não têm nenhuma resposta certa
porque a linguagem jurídica às vezes é imprecisa, não resulta da imprecisão, de que não pode haver nenhuma
resposta certa para uma questão jurídica quando juristas sensatos discordam quanto ao que é a resposta certa”
(2005, p. 193-194).
27
Democracia significa (se é que significa alguma coisa) que a escolha de valores políticos substantivos deve ser
feita pelos representantes do povo, não por juízes não eleitos (DWORKIN, 2005, p. 80).
246
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
Por esses motivos, Streck considera a teoria de Dworkin complementar à teoria de
Gadamer, pois, se no momento de decisão, obtiver-se apenas uma resposta correta ao caso, e
os tribunais inferiores seguindo-a, não significa que ela não possa ser reformulada, permitindo
a abertura necessária ao julgador. Além disso, se se considerar que não há possibilidade de
reformulação das decisões – poder-se-ia citar aqui as súmulas vinculantes – ter-se-iam regras
e não julgados, o que não condiria com a hermenêutica filosófica jurídica gadameriana e,
portanto, com a virada ontológica compreensiva.
Todas essas observações são necessárias e indispensáveis, pois, aplicáveis à
constitucionalização do direito privado. Porém, os direitos fundamentais possuem eficácia
direta ou indireta a relações privadas? Acredita-se que, para que isso ocorra, deverá existir
uma mediação tanto legislativa (eficácia indireta) como judiciária (eficácia direta). Sarlet
esclarece que, “estando vinculado (diretamente) pelos deveres de proteção, o Juiz, aplicando
os direitos fundamentais e cumprindo, portanto, com seu dever de tutela – no sentido de
proteger os particulares uns contra os outros – estará assegurando a sua incidência na esfera
das relações privadas” (2010, p. 24). Ponto em que alguns doutrinadores entendem que os
particulares são ligados aos direitos fundamentais apenas indiretamente. Porém, segundo
Ubillos:
Junto a la mediación legislativa, se há sugerido una segunda via de penetración de los derechos
fundamentales en el Derecho privado: los jueces, por imperativo constitucional, tomarán en
consideración estos derechos a la hora de interpretar la normas de Derecho privado. Es el juez, en
el desarollo de su función jurisdiccional, el vehículo a través del cual se concreta o materializa
esa incidencia de los derechos fundamentales en el Derecho privado (2010, p. 274).
Sarlet ressalta a importância dos direitos fundamentais sob uma “perspectiva jurídicoobjetiva”, pois considera que tais direitos expressam certos valores que o Estado é compelido
a respeitar e promover - por meio de políticas públicas -, inclusive, fiscalizar sua concessão.
“Verifica-se que a doutrina tende a reconduzir o desenvolvimento da noção de uma
vinculação também dos particulares aos direitos fundamentais ao reconhecimento da sua
dimensão objetiva, deixando de considerá-los meros direitos subjetivos do indivíduo perante o
Estado” (SARLET, 2008, p. 399).
Tal acepção deverá ser realizada com cautela para não gerar interpretações distorcidas
e discricionárias, inclusive exageros na utilização dos princípios. Porém, através de uma
interpretação pautada na teoria ontológica compreensiva obter-se-á a resposta correta nas
relações privadas à luz da Constituição Democrática Brasileira, permitindo a proteção dos
direitos e garantias fundamentais expressos.
247
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A interpretação jurídica decorrente das leis codificadas na França e da Jurisprudência
dos Conceitos na Alemanha eram utilizadas de forma abstrata, aplicando-se de forma
subsuntiva (do particular para o geral), sem a devida preocupação com os problemas sociais.
Partia-se da afirmação de que os deveres e as obrigações das pessoas eram previstos na lei ou
pelos precedentes. Criavam-se “verdades” pelos detentores do poder político e jurídico – a
burguesia -, impostas à população para garantir o controle e o domínio das massas.
A hermenêutica era considerada apenas um método, pois, para manter o interesse
dominante, poderia o juiz apenas interpretar o sentido da lei ou o sentido do legislador ao criar
a lei. Consubstanciava-se na interpretar do objeto (lei) pelo intérprete (sujeito) para obter uma
síntese, corolário das teorias de conhecimento, ou seja, conhecer o objeto para então
conceituá-lo (forma semântica).
O direito positivo, quando não se utilizava da interpretação subsuntiva, na existência
de lacunas na lei, permitia a interpretação discricionária pelo juiz “limitada à moldura
constitucional” segundo Kelsen, porém, beirando ao solipsimo-arbitrário que, hodiernamente,
o neopositivismo desencadeou como ativismo judicial.
A partir da observância das teorias do conhecimento, percebe-se a necessidade de
desconsiderá-las para que o direito torne-se também um mediador na eficácia dos direitos
fundamentais, ou seja, a alteração das situações e momentos históricos conjugados com a
inércia e desatualização legislativa concorre para o surgimento de lacunas. Nesse sentido, a
dicotomia sujeito-objeto deve ser desconstituída – desconsiderada -, e introduzir-se a teoria
heideggariana e gadameriana do Ser-aí (Desein) que conhece a si mesmo e o ser, que busca o
ente, para reformular o conhecimento pelo ser, compreender para interpretar – teoria
ontológica compreensiva (nomenclatura streckiana).
A partir da hermenêutica filosófica, não mais como mero método interpretativo, passase a um conhecimento intersubjetivo, permitindo ao juiz interpretar (aplicar) a norma
considerando
pré-compreensões
autênticas,
intentando-se
uma
resposta
correta
(fundamentação/motivação) ao caso concreto, adequada à integridade jurídica, e não à
decisionismos solipsistas (ativismo judicial) ou decisões subsuntivas como adverte Streck.
Nesse caminho, obter-se-á, então, a eficácia dos direitos e garantias fundamentais
garantidas pelo Estado Democrático de Direito. Inclusive, no que tange ao direito privado,
248
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
face a prestação de serviços públicos fornecidos por particulares, dos quais o Estado - quando
não os conceder - deverá ser o fiscalizador, para que aqueles direitos sejam efetivamente
protegidos. Assim, torna-se de suma importância a mediação, não apenas legislativa, mas
judiciária na interpretação e aplicação de normas – regras e princípios – no caso concreto.
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250
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
FILOSOFIA ANALÍTICA DA LINGUAGEM E INTERPRETAÇÃO DO DIREITO
ANALITICAL PHILOSOPHY OF LANGUAGE AND LEGAL INTERPRETATION
Rosana Pizzatto1
Resumo. A análise da linguagem ordinária não tem como única finalidade esclarecer vocábulos ou expressões.
Com o exame dos usos da linguagem é possível conhecer os significados, mas também os fenômenos que se quer
compreender. A análise da realidade a partir da análise da linguagem pode ser, portanto, um método. E se isso
for correto, esse método pode ser útil para compreender a experiência do direito. A hipótese central deste
trabalho consiste nisso: sustenta-se que a metodologia de análise dos usos da linguagem desenvolvida pelo
Círculo de Oxford para investigar as propriedades lógicas do uso da linguagem, em especial os trabalhos de John
L. Austin, tem alta aplicabilidade para a teoria e prática do direito visto que pode ajudar na compreensão tanto
das palavras quanto das realidades jurídicas por ela referidas. O presente estudo aborda, para isso, recentes
contribuições da teoria da linguagem em suas conexões com a teoria do conhecimento e com a teoria moral,
transitando de forma interdisciplinar entre a filosofia da linguagem, a teoria do direito e a teoria da justiça.
Palavras-chave: Análise da linguagem; interpretação do direito; decisão judicial.
Abstract. The analysis of ordinary language is not only to clarify words or expressions. An examination of the
uses of language helps to know the meanings, but also the phenomena one want to understand. The analysis of
the language can therefore be a method to understand the reality. And if that is correct, this method may be
useful to understand also the experience of law. The central hypothesis of this work consists in arguing that
analysis of the uses of language second the method developed by Oxford Circle specially dedicated to
investigate the logical properties of language use, in particular the philosophical John L. Austin´s work has high
applicability to understand both the theory and practice of Law. This is critical to what this paper suppose to
affirm since that method may help in the understanding not only the words but also the legal realities which it
referred by it. This study analyzes recent contributions to the theory of language in its connections with the
theory of knowledge and moral theory, moving in an interdisciplinary way between the philosophy of language,
the theory of law and the theory of justice.
Key words: Analysis of language; legal interpretation; judicial decision.
Introdução
A análise da linguagem ordinária não tem como única finalidade esclarecer vocábulos
ou expressões. Com o exame dos usos da linguagem é possível conhecer os significados, mas
também os fenômenos que se quer compreender. A análise da realidade, a partir da análise da
linguagem, pode ser, portanto, um método. E se isso for correto, esse método pode ser útil
para compreender a experiência do direito. A hipótese central deste trabalho consiste nisso:
sustenta-se que a metodologia de análise dos usos da linguagem desenvolvida pelo Círculo de
Oxford para investigar as propriedades lógicas do uso da linguagem, em especial os trabalhos
de John L. Austin, tem alta aplicabilidade para a teoria e prática do direito, visto que pode
ajudar na compreensão tanto das palavras quanto das realidades jurídicas por elas referidas. O
presente estudo aborda, para isso, recentes contribuições da teoria da linguagem em suas
1
Mestre em Filosofia (UFPr). Professora de Filosofia e Filosofia do Direito (Centro Universitário Curitiba,
Unicuritiba). Coordenadora do Grupo de Estudos “Linguagem da moral e teoria contemporânea do Direito no
Unicuritiba. email: [email protected] p
251
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
conexões com a teoria do conhecimento e com a teoria moral, transitando de forma
interdisciplinar entre a filosofia da linguagem, a teoria do direito e a teoria da justiça.
De acordo com uma concepção bastante conhecida na literatura jurídica, as teorias
positivistas do direito sustentam-se na tradicional perspectiva descritiva da realidade do
direito. A linguagem da teoria, nesse modelo de ciência, é desenvolvida para narrar as coisas
que formam a experiência do direito. Linguagem e experiência são, assim, fenômenos
distintos e separados. Essas teorias, portanto, são estruturadas a partir da clássica dicotomia
sujeito-objeto.
Essa estratégia de discurso não é recente, nem exclusiva das teorias do direito. Tal
como formulada por Descartes, no século XVII, essa dicotomia compreende uma
independência dos objetos com relação aos sujeitos, bem como uma identificação dos
conteúdos mentais do sujeito com o objeto. Tal visão das coisas e daquilo que se diz a
respeito das coisas permanecerá no pensamento filosófico ocidental até encontrar sua
fundamental objeção nos trabalhos de I. Kant, no século XVIII, quando surgirá um modelo
fenomenológico de explicação do relacionamento do homem com o mundo. Ocorre que na
teoria do direito, por causa da influência das teorias positivistas, a dicotomia sujeito-objeto
ainda se faz presente de modo importante. A manifestação disso – ao menos a mais conhecida
– é a tese de que a decisão judicial é o resultado da aplicação de normas formalmente
estabelecidas a um caso específico, um fato particular. Nessa versão, as normas são coisas
reais, externas ao sujeito-juiz. São tratadas pela teoria, portanto, não como fenômenos da
linguagem, mas como objetos com significância pré-estabelecida.
Um sério problema que as teorias positivistas do direito precisam enfrentar é
esclarecer como são produzidas as decisões judiciais quando não há, para um caso concreto,
uma norma simples, específica, clara e formalmente estabelecida. Nesses casos, as teorias
positivistas pouco têm a dizer. É por isso que sustentam, ainda que indiretamente, o que se
poderia chamar de solipsismo judicial. Quer dizer, segundo as teorias positivistas é a
autoridade do juiz, e portanto, o seu entendimento subjetivo, que definirá qual norma deve ser
aplicada aos casos assim. Se não há uma norma formalmente estabelecida a ser aplicada a um
fato concreto, isto é, se não há como fazer deduções nem conclusões lógicas, do tipo
silogísticas, então a decisão judicial deve ser baseada no senso pessoal de justiça de cada
magistrado.
Vários esforços interpretativos têm sido feitos para resolver o problema da
discricionariedade judicial implicada na decisão de casos assim, complexos. Não há como
desconsiderar, neste particular, as conhecidas contribuições de Dworkin (DWORKIN 2007,
252
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
127-204) na sua já clássica conceituação das normas jurídicas como uma composição de duas
naturezas distintas: regras e princípios (DWORKIN 2007, 23-126). Também não há como
ignorar os argumentos de Alexy (ALEXY 2008, 85-90) na elaboração de uma teoria lógicoracional da ponderação e do balanceamento do peso dos princípios (ALEXY 2008, 594).
O propósito que segue este texto não é discutir as vantagens (SHECAIRA 2012) ou
desvantagens das teorias positivistas, como fazem Dworkin (DWORKIN, 2010, 341-370) e
Alexy (ALEXY 2001, 8465-8469), nem tampouco dissertar sobre teorias não-positivistas,
mas sim, apresentar as contribuições oferecidas pelo método de John L. Austin (de análise da
linguagem comum) para o desenvolvimento da técnica de interpretação não arbitrária, não
unilateral e nem subjetiva (solipsista) dos textos jurídicos.
Assim, este texto está dividido em três partes: a primeira expõe o método analítico de
Austin na investigação dos usos da linguagem comum. Neste ponto, cabe observar a estreita
ligação – de tipo fenomenológica, segundo o autor – entre linguagem e mundo, tornando a
análise linguística uma ferramenta para melhor compreender os fatos ou fenômenos.
A segunda parte apresenta a análise e a conceituação de Austin sobre o tema verdade.
O propósito aqui é aproveitar não só a definição de Austin sobre a verdade, como também as
características essenciais da linguagem que são desveladas pelo autor por meio desta
investigação linguística, no intuito de contribuir para os estudos da interpretação do direito.
A terceira parte concentra algumas críticas dirigidas ao conceito de verdade
austiniano. Essas críticas nos parecem merecedoras de análise, uma vez que receberam
respostas enriquecedoras do assunto. Finalmente, a conclusão traz uma estreita relação desta
análise filosófica com a hermenêutica jurídica. Aqui, o objetivo é utilizar as características da
linguagem conforme expostas por Austin na tentativa de esclarecer a discussão sobre
interpretação no direito.
1. Técnicas de análise
A filosofia da linguagem ordinária, ou Escola de Oxford, surgiu na Inglaterra entre as
décadas de 1940 e 1950 e teve John Langshaw Austin como um de seus principais
representantes. O trabalho filosófico de Austin consiste na reflexão de algumas questões
aparentemente específicas, apoiada em uma sutil análise da linguagem ordinária, e com
grande relevância para a pesquisa científica dos usos da linguagem em direito. Uma questão
central da metodologia de Austin é saber como o investigador procederá para investigar temas
filosóficos.
253
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
É comum se ver, por isso, interpretações de que Austin desenvolveu um método de
pesquisa filosófico e, portanto, restrito ao campo filosófico. Segundo essas interpretações, o
propósito de seu método seria desfazer confusões conceituais presentes no uso da linguagem
ordinária para elucidar alguns temas tradicionais da filosofia. Interessado nos usos da
linguagem, esse método, à semelhança de um de alguns usos feitos por linguistas, mostraria
equívocos cometidos por filósofos, bem como perceberia as nuances e finas distinções
presentes na linguagem ordinária. Essa é, no entanto, uma má compreensão do pensamento de
Austin, pois com esse método ele não pretende simplesmente esclarecer palavras e
expressões, mas esclarecer, por meio do exame dos usos da linguagem ordinária, os
fenômenos mesmos que se quer compreender. O propósito é compreender a experiência, não
apenas o significado de palavras.
A investigação filosófica conforme proposta por Austin deve levar em conta, então, o
contexto dos usos da linguagem. Quer dizer, a situação em que determinada frase é usada e o
que contribui para o seu sentido. Contrário ao pensamento de que a linguagem serve
meramente para descrever os fenômenos observados, ou seja, que é essencialmente
representativa, Austin sustenta que a linguagem não é apenas um instrumento de descrição;
tem, igualmente, uma função de executar ações, como prometer, ordenar, batizar, sentenciar,
ameaçar. Todos esses atos só são verdadeiramente executados quando seguem regras
linguísticas. Linguagem e experiência estão inter-relacionados, de modo que a linguagem, se
bem analisada, acaba sendo um instrumento capaz de aguçar, avivar, ou aumentar nossa
acuidade perceptiva e reflexiva em relação aos fatos ou à experiência.
O resultado satisfatório de uma análise da linguagem, tal como pretendida por Austin,
depende fundamentalmente do emprego de um método adequado. Austin acreditava dispor de
um bom método, aplicável não só para temas tradicionais da filosofia como também para
temas inexplorados. Tal método – ou técnicas – consiste em examinar, procedendo a partir da
linguagem ordinária, “o que se diria quando”, como também “o por quê” falamos da maneira
como falamos e “o quê” queremos dizer com isso. Segundo Austin, tem-se um bom critério
de análise quando se consegue chegar a um acordo e, mesmo, à unanimidade2, sobre “o que se
diria quando”. “Para mim, o essencial, de início, é chegar a um acordo sobre a seguinte
questão: ‘o que diríamos quando’. A meu ver, a experiência prova amplamente que é possível
chegar a um acordo sobre ‘o que diríamos quando’, apesar de eu conceder que isso é
normalmente demorado e difícil.” (DG, p. 334)
2
Segundo Urmson, Austin costumava dizer que “a experiência mostra que um grupo pode lograr uma virtual
unanimidade.” (Urmson, 1969a, p. 79).
254
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
O levantamento e a identificação das circunstâncias desvia a análise linguística da pura
sintaxe para o aspecto semântico, na medida em que mostra a diversidade de situações nas
quais a linguagem é usada. E o aspecto semântico não pode ser compreendido apenas
analisando uma sentença ou proposição isolada do contexto em que é utilizada. Há, então, um
aspecto “extra-linguístico” no método analítico de Austin. Bem empregado, esse método
permite compreender, por meio das expressões utilizadas em cada situação específica, a
complexidade das experiências. Assim, “nós utilizamos a multiplicidade de expressões que a
riqueza da nossa língua nos fornece para dirigir nossa atenção à multiplicidade e riqueza de
nossas experiências. A linguagem nos serve de intérprete dos fatos que constituem nossa
experiência, fatos que tenderíamos a não perceber sem ela.” (DG, p. 333) Uma análise
adequada da linguagem nos faz notar fatos que possivelmente não seriam percebidos, caso
não estivéssemos preocupados em saber as circunstâncias de uso de uma determinada
expressão. Observar o significado de palavras e expressões é observar o modo como são
utilizadas, ou seja, é observar o contexto de uso da linguagem, assim como todo o conjunto de
relações humanas, regras e convenções que fazem com que empreguemos a linguagem desse
modo.
Ao examinarmos o que diríamos, que palavras utilizaríamos em dadas
situações, não estamos meramente considerando as palavras (ou
‘significados’, quaisquer que sejam) mas também as realidades sobre as
quais falamos: estamos empregando uma compreensão aguçada das palavras
para aguçar nossa percepção dos fenômenos, embora não como árbitros
finais. (PE, p. 182)
Em vista disso, Austin preferiu chamar seu modo de fazer filosofia de “fenomenologia
linguística” a denominá-la de “filosofia analítica” ou “análise da linguagem”. Esses nomes,
segundo ele, encerram uma suggestio falsi de que o interesse da análise é unicamente
linguístico. “Fenomenologia linguística”, ao contrário, sugere que o objeto de estudo são os
fenômenos dos quais falamos por meio da linguagem.
Austin entende que sua opção metodológica de recorrer, quando conveniente, a uma
análise da linguagem ordinária também requer justificação. A justificativa de empregar
técnicas de investigação é dada por ele de três modos. Em primeiro lugar, a necessidade de
clarificar a linguagem. Se as palavras são ferramentas com as quais os filósofos devem lidar a
todo momento, diz Austin, então devem ser usadas limpas. Assim, a função primeira da
técnica é esclarecer o significado dos termos empregados nas discussões filosóficas, evitando
ambiguidades e vaguezas, traçando distinções e, desse modo, desfazendo alguns problemas
255
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
filosóficos aparentemente insolúveis. Em seguida, recomenda que as palavras, como não são
fatos ou coisas, sejam mantidas distantes do mundo durante o exame. “Precisamos arrancá-las
[as palavras] do mundo e mantê-las à parte dele e frente a ele, de modo que possamos nos dar
conta de suas inadequações e arbitrariedades, e possamos rever o mundo sem viseiras.” (PE,
p. 182) E, finalmente, ele lembra que a linguagem ordinária constitui o vocabulário comum e
está facilmente ao dispor do investigador; lembra ainda que ela traz todas as distinções que
foram e continuam sendo consideradas válidas por muitas gerações, sobrevivendo à dura
confrontação com as situações práticas em que são usadas. Além disso, essas distinções são
sem dúvida muito mais numerosas do que algumas que poderiam ser traçadas em dado
momento por um filósofo solitário, encerrado em seu gabinete, com imaginação e experiência
limitadas. É necessário, porém, destacar que essa análise é só o princípio da investigação, não
o fim. O desenvolvimento da prática pode vir a exigir não somente recurso a um vocabulário
técnico, como o da psicologia, o do direito, o da linguística, mas mesmo a criação de um novo
vocabulário técnico.3
Nesse sentido, interessa apresentar a tese de Austin da verdade como correspondência
convencional – observando como ele utiliza as técnicas de análise da linguagem para elaborála – e, paralelamente, destacar a relevância desses resultados para a interpretação jurídica.
2. Análise do termo verdade: o significado como fruto de convenções estabelecidas entre
linguagem e realidade.
O ensaio “Truth” (1), de Strawson, inicia a fértil e polêmica discussão entre ele e
Austin sobre a verdade.4 Nesse ensaio inicial, Strawson analisa os usos da expressão “é
verdadeiro” e, servindo-se da classificação de Austin, conclui que ela apresenta um caráter
exclusivamente performativo (executivo, de ação). Isso significa, segundo Strawson, que
podemos usar “é verdadeiro” apenas para garantir, confirmar, concordar etc., o que já foi dito
por alguém, mas nunca para comunicar alguma coisa, pois falta a ela o caráter da enunciação,
declaração ou informação. Strawson retoma à sua maneira a teoria da redundância da verdade,
anteriormente esboçada por F. P. Ramsey, segundo a qual dizer “E”, onde E é um enunciado
3
Austin mesmo serviu-se de um novo vocabulário para a sua teoria dos atos de fala; em suas várias conferências
sobre filosofia da linguagem ele introduziu termos técnicos como “atos realizativos ou performativos”, “força
ilocucionária”, “atos ilocucionários”, “atos perlocutórios”, entre outros.
4
O ensaio “Truth” (1), de Strawson, é seguido de um ensaio com o mesmo nome, “Truth” (2), de Austin.
Strawson continua a discussão com um novo ensaio, “Truth” (3), criticado por Austin em “Unfair to Facts”. A
controvérsia entre Austin e Strawson é analisada por Warnock, em “A Problem about Truth”. Strawson escreve
ainda outros dois ensaios referentes ao assunto, “A Problem about Truth – A Reply to Mr. Warnock” e “Truth: A
Reconsideration of Austin’s Views”; neste último, ele recusa novamente a explicação de Austin sobre o tema.
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do tipo “o gato está sobre o tapete”, e dizer “E é verdadeiro” é absolutamente o mesmo.
Strawson nota que o segundo enunciado não comunica nada mais do que o primeiro já
comunicou. Assim, a expressão “é verdadeiro” é logicamente supérflua, pois ela nunca
expressa nada além do que o próprio enunciado já expressou.
Austin responde a Strawson em um texto de mesmo título, “Truth” (2), texto em que
Austin segue perguntando “o que é a verdade?” Apesar de conceder que Strawson percebe
uma característica importante no uso de “é verdadeiro”, a força performativa, não concorda
com a tese dele. Para Austin, o uso destacado por Strawson simplesmente explica o que
fazemos quando dizemos que algo é verdadeiro, no entanto, não explica quando um enunciado
é verdadeiro, ou seja, o que é necessário, quais as exigências semânticas, para que um
enunciado seja verdadeiro.
Segundo ele, as discussões filosóficas seguem procurando estabelecer, principalmente,
se ela é uma substância ou uma qualidade ou uma relação. Austin, entretanto, considera bem
mais prudente trabalhar com “algo mais à altura deles”, pois a investigação da “verdade” por
si só não parece muito promissora e, geralmente, acaba produzindo doutrinas metafísicas
fantasiosas. Investigar a verdade como um nome próprio destinado a nomear algo (como uma
substância ou qualidade) é desperdiçar tempo atrás de uma realidade assim nomeada. Não é
isso que deve procurar um investigador da linguagem. Seu objeto de análise deve ser a
linguagem enquanto linguagem, e não a linguagem enquanto coisa, ou seja, o que interessa
são as palavras como símbolos absolutamente convencionais. Assim, também o termo
“verdade” é convencional, e não tem seu significado dado por uma coisa ou qualidade no
mundo. Vale relembrar que analisar a linguagem para Austin não é simplesmente esclarecer
significados, mas, especialmente, analisar toda a situação de fala, todo o contexto linguístico.
Afinal, é nesse contexto que “verdade” tem sentido.
Uma técnica prática muito boa e sempre utilizada por Austin é evitar tanto quanto
possível o uso de substantivos abstratos (no caso, “verdade”) e investigar os usos de adjetivos
(“verdadeiro”) na linguagem ordinária. Mais uma vez, Austin busca elucidar um assunto
bastante discutido e controverso na filosofia a partir da análise dos usos de algumas palavras e
expressões referentes a um assunto em questão. Nesse caso, para analisar a verdade, os usos,
ou certos usos, de “verdadeiro” são relevantes.
No decorrer da investigação, Austin propõe a seguinte definição para a expressão “é
verdadeiro”: um enunciado é verdadeiro quando corresponde, ou se ajusta, aos fatos. Mas,
argumenta Austin, dizer somente isso, “quando corresponde aos fatos”, apesar de não ser
incorreto no uso ordinário, é desorientador, pois a correspondência já foi e continua sendo
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objeto de diferentes teorias filosóficas. A fim de resolver essa dificuldade, Austin elabora uma
teoria modificada da verdade como correspondência, em que a modificação consiste
especialmente no caráter convencional da correspondência, quer dizer, a relação entre as
palavras e o mundo é puramente, estritamente, convencional. E ser convencional significa
poder mudá-la sempre que for necessário ou conveniente, pois somos absolutamente livres
para escolher qualquer signo para qualquer situação encontrada no mundo. Ou seja, não se
trata de uma correspondência entre conteúdos mentais e coisas no mundo – entre um conteúdo
mental do sujeito (um conceito) e um único objeto que se identifica exclusivamente com este
conteúdo. Trata-se de uma relação entre enunciados e as circunstâncias por eles referidas. A
partir disso, Austin procura um uso primário, ou qualquer coisa equivalente, para a expressão
“é verdadeiro”; algo, entretanto, que explique tudo aquilo que dizemos ser verdadeiro e não
apenas o aspecto performativo da expressão. Ele, então, chegará a uma definição peculiar de
enunciado.5
Uma teoria correspondencialista da verdade contém, pelo menos, três aspectos: 2.1)
um comentário filosófico sobre aquilo que dizemos ser verdadeiro (os “portadores-deverdade”); 2.2) um comentário filosófico sobre aquilo que torna verdadeiro o que dizemos (os
“fazedores-de-verdade”) e 2.3) um comentário filosófico sobre a correspondência entre o que
é dito ser verdadeiro e o que torna verdadeiro o que é dito. De fato, encontramos em Austin
esses três tipos de comentário filosófico do termo “verdadeiro”. Nessa medida, ele poderia ser
caracterizado como um defensor da teoria correspondencialista da verdade.6 Com efeito,
Austin entende que a expressão coloquial “corresponde aos fatos” é inteiramente aceitável. A
expressão, diz ele, “como um fragmento do inglês padrão dificilmente pode estar errada. Na
verdade, devo confessar que não acho realmente que esteja errada: a teoria da verdade é uma
série de truísmos.” (Austin, Tr, p. 121) Alguns anos mais tarde, Austin insiste em lembrar que
apoiou, com ressalvas, “a expressão comum inglesa de que um enunciado verdadeiro é aquele
que ‘corresponde aos fatos’.” (Austin, UF, p. 154) E a tese da correspondência é ainda
reiterada por Austin em suas últimas conferências – sobre linguagem e ação – em que ele
sublinha que, na linguagem ordinária, uma pergunta como “é verdadeiro ou falso o que
declarei?” encontra sua resposta na correspondência ao fatos. (Austin, PA, p. 116)
Mas até que ponto se pode caracterizar a teoria austiniana da verdade como
“correspondencialista”? E se o for, qual é, precisamente, a especificidade de seu
“correspondencialismo”? Note-se o cuidado com o qual Austin aceita a expressão usual
5
6
Traduzimos statement por “enunciado” (ou “declaração”) e sentence por “sentença”.
De fato, muitos assim o interpretaram. Por exemplo, Strawson, Kirkham e Schmitt.
258
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“corresponde aos fatos”. Por um lado, ela é desencaminhadora (Austin, Tr, p. 121) e, por
outro, ele apenas nega que devemos entender “verdadeiro” como endosso do que outro diz
(Austin, PA, p. 116). Como expressão comum do inglês, ela é impecável. Mas, nos seus
comentários filosóficos, Austin simplesmente deixa de lado os termos “corresponde” e
“fatos”. Em “Unfair to Facts” ele nota, uma vez mais, sua desconfiança com relação a esses
termos: “confessei que não gostava desta terminologia, a seu modo sem dúvida inteiramente
satisfatória, e preferi algum jargão próprio, em que ‘fatos’ e ‘corresponde’ não ocorrem em
absoluto como uma descrição das condições que devem ser satisfeitas para dizer de um
enunciado que ele é verdadeiro.” (Austin, UF, p. 154)
Com efeito, na definição de verdade proposta por Austin, não há nenhuma menção à
correspondência ou a fatos. Eis a definição: “diz-se que uma enunciação é verdadeira quando
o estado histórico de coisas com o qual é correlacionada pelas convenções demonstrativas
(aquele a que se ‘refere’) é de um tipo com o qual a sentença usada para fazê-la é
correlacionada pelas convenções descritivas”. (Austin, Tr, p. 122) A linguagem não é vista
como um terceiro elemento independente do sujeito e do objeto, – conforme a tradicional
concepção representativa ou descritivista da linguagem – o que resultaria, nas decisões
judiciais, na observância de uma linguagem significativa a priori, sem qualquer ligação com a
realidade na qual está relacionada.
Para entender melhor a teoria de Austin, analisaremos cada um dos três tipos de
comentários filosóficos que distinguimos mais acima.
2.1. O portador do predicado “é verdadeiro”: o enunciado
A análise de Austin inicia com o que comumente dizemos ser verdadeiro ou falso.
Segundo ele, “dizemos (ou se diz que dizemos) que crenças são verdadeiras, que descrições
ou relatos são verdadeiros, que proposições ou asserções ou enunciados são verdadeiros, e que
palavras ou sentenças são verdadeiras; e isto para mencionar apenas uma seleção dos
candidatos mais óbvios.” (Austin, Tr, p. 117) Austin sustenta, contudo, que dentre todos esses
os únicos candidatos possíveis ao cargo daquilo que dizemos ser verdadeiro ou falso são os
enunciados. Todos os outros são descartados, a maioria deles com o argumento de que são
apenas variedades dos enunciados, ou que são enunciados mascarados. Vejamos as principais
razões de Austin para rejeitar primeiramente as crenças, em seguida as descrições, relatos e
proposições e, finalmente, as palavras e sentenças.
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Apesar da ideia de que “a verdade é uma propriedade das crenças” ocupar um espaço
amplo e comum dentro da filosofia, Austin levanta dúvidas sobre se a expressão “uma crença
verdadeira” é também comum fora dela. Tal expressão, argumenta ele, não parece estar na
linguagem do homem comum, e mais, mesmo que o homem comum a utilize, a referência que
ele faz não é à crença mas àquilo que crê ser verdadeiro. Ou seja, não é a crença que dizemos
ser verdadeira; há algo verdadeiro anterior a ela. A crença só é verdadeira porque diz respeito
a algo que já era verdadeiro antes. A verdade da crença é, portanto, posterior a uma verdade
primeira. Em uma palavra, quando um sujeito crê em alguma coisa que é verdadeira a crença
dele também será verdadeira. “Parece claro que se diz que um homem mantém uma crença
verdadeira quando e no sentido de que ele crê (em) algo que é verdadeiro, ou crê que algo que
é verdadeiro é verdadeiro.” (Austin, Tr, p. 118)
Quanto às descrições verdadeiras, aos relatos verdadeiros e às proposições
verdadeiras, Austin considera todos como tipos diversos de enunciados verdadeiros ou de
coleções de enunciados verdadeiros. A razão para tal consideração é que somente os
enunciados têm caráter de verdade ou falsidade, isto é, os enunciados são gramaticalmente as
únicas formas que preenchem as condições necessárias para àquilo que dizemos verdadeiro.
Quanto às proposições, em particular, Austin diz: “uma proposição em direito ou em
geometria é algo portentoso, usualmente uma generalização, que somos convidados a aceitar e
que tem que ser recomendada mediante argumento; ela não pode ser um informe direto sobre
a informação corrente – se você olha e me informa de que o gato está sobre o tapete, isso não
é uma proposição, embora seja um enunciado.” (Austin, Tr, p. 118-19) Não se deve, portanto,
dizer das proposições que são verdadeiras ou falsas, já que elas não têm esse caráter. Se se diz
que são verdadeiras, tratam-se na realidade de enunciados.
As proposições apresentam, todavia, uma peculiaridade: seu uso filosófico geralmente
diz respeito ao “significado ou sentido de uma sentença ou família de sentenças.” (Austin, Tr,
p. 119) Isso significa que, em filosofia7, a proposição, justamente devido a esse caráter de
carregar o “sentido” da enunciação, ou ser a enunciação de um juízo, é vista como aquilo que
pode ser verdadeiro ou falso. Austin apresenta uma objeção a tal significado: o uso do termo
“proposição” com esse significado (filosófico) nunca poderá ser aquilo que dizemos ser
verdadeiro ou falso. A razão disso é que “nunca dizemos ‘o significado (ou sentido) desta
7
De acordo com André Lalande, a definição de “proposição” vem de Aristóteles e designa uma espécie cujo
gênero significa “palavras com um sentido”, em oposição a outras espécies do mesmo gênero, como nomes
isolados, desejos, ordens. Desse modo, a proposição é, “propriamente, um enunciado verbal suscetível de ser dito
verdadeiro ou falso. (...) Por conseqüência, a proposição pode também ser definida como o enunciado de um
juízo, pelo menos virtual.” (Lalande, 1968, p. 873)
260
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sentença (ou destas sentenças) é verdadeiro’; o que dizemos é o que o juiz ou o jurado diz,
quer dizer, que ‘as palavras tomadas neste sentido, ou se as designamos tal e qual significado,
ou interpretadas ou entendidas assim, são verdadeiras’.” (Austin, Tr, p. 119) O que
comumente dizemos ser verdadeiro ou falso são as palavras “em certos sentidos” e não o
“sentido” propriamente dito. Por isso, nem mesmo no sentido filosófico as proposições podem
ser o que chamamos de verdadeiro ou falso.
Tampouco podemos tomar meramente palavras e sentenças como verdadeiras.
Segundo Austin, apesar de elas vez por outra serem tomadas como verdadeiras, não se deve
confundi-las com o que deve ser tomado de fato como verdadeiro ou falso, ou seja, o
enunciado. As palavras e sentenças não são naturalmente verdadeiras. . O significado,
conforme Austin, é consequência da tarefa interpretativa. Desse modo, não existe a verdade,
ou o correto, em um único sentido, pronto e acabado na letra da lei, engessado e independente
do estado de coisas no qual o texto do direito está inserido.
Igualmente ao que ocorre com as descrições, relatos e proposições, as palavras e
sentenças que podem, em determinada circunstância, serem ditas verdadeiras ou falsas são, de
fato, enunciados. A tudo o que se pode atribuir verdade ou falsidade – nas formas aparentes
de descrições, relatos, proposições, palavras ou sentenças – deve-se chamar “enunciado”,
pois, segundo Austin, somente o enunciado cumpre as exigências semânticas que a verdade
reclama.
Austin procura, a partir disso, estabelecer uma fórmula geral de expressão para o uso
de “é verdadeiro”, ou seja, busca uma noção elementar que dê conta de tudo aquilo que
dizemos ser verdadeiro, que valha para qualquer caso em que a expressão possa ser
encontrada. E, no desenrolar de sua análise, ele chega à noção de enunciado.8 Propõe, então,
três formas primárias para a emissão de “é verdadeiro”; três formas, portanto, de enunciados.
São elas: “1) é verdadeiro (dizer) que o gato está sobre o capacho; 2) esse enunciado (dele
etc.) é verdadeiro; 3) o enunciado de que o gato está sobre o capacho é verdadeiro.” (Austin,
Tr, p. 118) Se é assim e, de acordo com os usos da linguagem ordinária, assim é, as formas
primárias da expressão “é verdadeiro” são resultados da observação de alguns enunciados, ou
seja, a presença dessa expressão em um contexto determinado marca não seu caráter
performativo mas sim seu caráter descritivo, enunciativo.
8
Austin escolhe o termo “enunciado” por ser este o melhor representante para a utilização histórica de uma
sentença por meio de um comunicador. Ele adverte, porém, que essa escolha não deve ser de modo algum estrita;
dentre o que se dispõe na linguagem para transmitir ou comunicar algo a respeito do mundo, “enunciado” é o
termo imediato que melhor convém, pois ele é o que representa mais satisfatoriamente aquilo que é comunicado
por um determinado indivíduo em uma situação específica.
261
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Austin diz que “um enunciado é feito e o fazê-lo é um evento histórico, a emissão por
parte de um determinado falante ou escritor de certas palavras (uma sentença) a uma
audiência com referência a uma situação, evento, ou o que quer que seja histórico.” (Austin,
Tr, p. 119-20) O enunciado compreende, então, de um lado, palavras emitidas ou escritas por
alguém e, de outro, uma situação histórica no mundo, situação à qual o enunciado se refere.
Esses dois lados – palavras e mundo – são fundamentais para a comunicação e as correlações
entre ambos são puramente convencionais. A correspondência depende exclusivamente das
convenções envolvidas e escolhidas para se falar significativamente dentro de nossa
linguagem.
2.2. Aquilo que torna um enunciado verdadeiro: o estado de coisas
Ao aceitar a importância decisiva do mundo para a verdade de um enunciado e
entender a verdade como uma relação, Austin aproxima-se claramente de uma teoria
correspondencialista da verdade. Ele, no entanto, se distancia de algumas teorias
correspondencialistas como também, evidentemente, de teorias da coerência. Das primeiras,
Austin se distancia devido a um aspecto fundamental de sua tese: a convenção. E das últimas,
por elas considerarem “fato” como um substituto idêntico para “enunciado verdadeiro”; o
fracasso dos coerentistas, assim como o dos pragmatistas9, consiste especialmente, sublinha
Austin, na desconsideração da verdade como uma relação entre as palavras e o mundo.
A observação dos usos da linguagem ordinária, assim como a investigação no
dicionário, conduzem Austin a seguinte explicação: “fato” é regularmente ligado à cláusula
“que”, como “o fato é que S” ou “é um fato que S” ou “o fato que S”. (Austin, Tr, 122) A
expressão “fato que” designa simultaneamente as duas partes da relação linguagem-mundo e
não apenas a segunda parte dela. Em outras palavras, a utilização de “fato que” deixa de lado
a relação, de modo que linguagem e mundo passam a ser tratados como algo único e não mais
como dois constituintes de uma correspondência: “ ‘fato que’ é uma expressão designada
para usar em situações em que a distinção entre um enunciado verdadeiro e o estado de coisas
sobre o qual é uma verdade é negligenciado.” (Austin, Tr, p. 124) Do mesmo modo que
definir um elefante envolve, ao mesmo tempo, as palavras e o animal, “fato que” envolve as
palavras e algo no mundo. “Falar de ‘o fato que’ é um modo resumido de falar de uma
situação que envolve tanto as palavras como o mundo.” (Austin, Tr, p. 124) Assim, tal
9
Para os pragmatistas, em linhas gerais, o critério de verdade de uma sentença são os bons resultados de seu uso,
de sua aplicação prática.
262
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expressão não pode ser sinônimo de estado de coisas histórico, pois este é somente a segunda
parte da relação de correspondência. Na sequência do item 2.3 abaixo, voltaremos à questão
dos “fatos”.
Austin não usa o termo “fato” quando argumenta filosoficamente sobre a verdade, ou
sobre os enunciados verdadeiros; prefere a expressão “estado de coisas”: quando um
enunciado é verdadeiro, há, é claro, um estado de coisas que o faz verdadeiro e que é todo
mundo distinto do enunciado verdadeiro sobre ele; mas é igualmente claro que só podemos
descrever esse estado de coisas em palavras (sejam as mesmas ou, com sorte, outras). Só
posso descrever a situação em que é verdadeiro dizer que estou me sentindo mal dizendo que
é uma em que estou me sentindo mal (ou experimentando sensações de náuseas); entretanto,
entre o enunciar, por muito verdadeiro que seja, que estou me sentindo mal e o sentir-se mal
há um grande abismo estabelecido. (Austin, Tr, p. 123)
2.3. As relações entre enunciados e estados de coisas
As palavras são os símbolos que convencionamos para comunicar algo a respeito do
mundo. Por isso, é imprescindível à comunicação a linguagem e o mundo. Para explicar isso
gramaticalmente, Austin propõe dois diferentes tipos de convenções linguísticas: as
descritivas e as demonstrativas. Assim, para compreendermos como um enunciado pode ser
verdadeiro ou falso é antes necessário distinguir essas duas convenções. As convenções
descritivas correlacionam palavras e sentenças com tipos de situações, eventos etc. no mundo,
enquanto as convenções demonstrativas correlacionam palavras e enunciações com situações
históricas no mundo.10 Feita tal distinção, Austin define o enunciado verdadeiro. Vale repetir:
“diz-se que uma enunciação é verdadeira quando o estado histórico de coisas com o qual é
correlacionada pelas convenções demonstrativas (aquele a que se ‘refere’) é de um tipo com o
qual a sentença usada para fazê-la é correlacionada pelas convenções descritivas”. (Austin, Tr,
10
Jon Wheatley considera que a questão que causou maior conflito na teoria de Austin foi a separação de dois
grupos de convenções, descritivas e demonstrativas, e suas respectivas correspondências. Nesse sentido, ele
acredita que uma modificação nessa parte da tese pode ser bastante elucidativa. Propõe, então, ao invés de dois
tipos de convenções, algo como “convenções descritivas” e “mecanismos demonstrativos”. Segundo ele, “as
precondições das sentenças informativas devem ter no mínimo as convenções e mecanismos seguintes:
convenções descritivas (semanticamente) correlacionando palavras ou orações tal que a aplicação correta delas
envolve a classe associada, isto é, convenções que correlacionam palavras ou orações com tipos de situação
(coisas, eventos etc.) a ser encontradas no mundo. E mecanismos demonstrativos pelos quais situações
históricas, eventos, objetos, acontecimentos, etc., encontrados no mundo podem ser distinguidos por um
enunciado; esses mecanismos não precisam ser completamente lingüísticos. Assim, um enunciado é verdadeiro
quando há duas correspondências específicas entre o enunciado e o mundo, etc.: a primeira correspondência
sendo demonstrativa e a segunda descritiva.” (Wheatley, 1969, p. 234) Wheatley supõe que essa modificação
ajude a evitar as principais críticas à teoria de Austin.
263
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p. 122) O enunciado verdadeiro combina, então, as duas convenções, descritiva e
demonstrativa.
Como se vê, Austin, além de não falar em “fatos” na sua definição de enunciado
verdadeiro, não menciona a “correspondência”. O cuidado em não usar o termo
“correspondência” evita pelo menos dois erros: a linguagem como representação do mundo e
a projeção de aspectos da linguagem no mundo. Quanto ao primeiro, Austin insiste na idéia
de que “não há nenhuma necessidade em absoluto de que as palavras usadas para fazer um
enunciado verdadeiro ‘espelhem’ de algum modo, por mais indireto que seja, qualquer traço
da situação ou evento.” (Austin, Tr, p. 125) Conceber a linguagem como espelho do “real”,
pensar o enunciado verdadeiro como aquilo que reproduz naturalmente a “estrutura da
realidade” é um erro, que, aliás, provém de outro: “do erro de ler no mundo traços da
linguagem”. (Austin, Tr, p. 125) Para defender a tese de que a linguagem não reflete o “real”,
que ela não é a exata representação da realidade e que tampouco projetamos, no “real”, nossos
hábitos linguísticos, Austin usa o termo “correlação” para se referir à ligação entre palavras e
mundo.
O uso do termo “correlação”, entretanto, não impede que na tese de Austin sobre a
verdade continue a existir a idéia de “correspondência”, pois a correlação estabelecida entre
linguagem e mundo não deixa de ser uma “espécie de correspondência”. E, como vimos
anteriormente, Austin não recusa totalmente a expressão “correspondência aos fatos” (em
termos de linguagem ordinária, ele a considera perfeitamente aceita). É preciso, então,
especificar qual o caráter dessa espécie de “correspondência” presente na tese de Austin.
Passa-se, enfim, da essência para a significação, onde o importante e decisivo não está
em se saber o que são as coisas em si, mas saber o que dizemos quando falamos delas, o que
queremos dizer com, ou que significado têm as expressões linguísticas (a linguagem) com que
manifestamos e comunicamos esse dizer das coisas.
O caráter convencional da relação “enunciado-realidade”
Ao que parece, Austin procura evitar a expressão “correspondência aos fatos” em sua
explicação filosófica porque essa expressão tem sido constantemente tomada com o sentido
de “representação”. Por isso, ele prefere usar “correlação”. Nada impede, porém, que essa
correlação seja uma “correspondência”, mas uma correspondência livre dos erros antes
mencionados, ou seja, uma “correspondência” sem o sentido de representação. E o que vai
conferir um sentido diferente à “correspondência” implícita na tese de Austin é o caráter
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puramente convencional da relação. É nesse sentido que ele fala de “convenções” –
referenciais (ou demonstrativas) e descritivas – que “correlacionam” linguagem e mundo.
Assim, é possível falar em correspondência e, ao mesmo tempo, mudança linguística, pois o
nosso vocabulário pode ser alterado sempre que acharmos oportuno ou necessário sem que
com isso corramos o risco de optar por alguma “forma” incorreta de linguagem, isto é, por
uma linguagem que não “espelhe” corretamente a realidade. Não há “forma” ou “estrutura” de
linguagem certa ou errada sobre o mundo. Qualquer linguagem pode ser aceita, desde que
tenha sido convencionalmente estabelecida.
O único ponto essencial é este: que a correlação entre as palavras (= sentenças) e o
tipo de situação, evento etc. – que é tal que quando se faz um enunciado naquelas palavras
com referência a uma situação histórica desse tipo o enunciado é então verdadeiro – é
absoluta e puramente convencional. Somos absolutamente livres para eleger qualquer
símbolo para descrever qualquer tipo de situação, na medida em que se trata meramente de
ser verdadeiro. (Austin, Tr, p. 124)
Não interessa, portanto, se o enunciado tem ou não características do estado de coisas
que enuncia, ou a mesma estrutura lógica, para que seja verdadeiro. Qualquer enunciado,
simples ou sofisticado, pode representar determinada situação histórica, basta para isso que
ele tenha sido eleito para tal representação. É a convenção que determina a relação entre
palavras e mundo e, portanto, entre enunciados e estado de coisas. Um enunciado verdadeiro
é, portanto, fruto exclusivo de convenções estabelecidas entre linguagem e mundo. “A
verdade dos enunciados segue sendo um assunto, como o era com as linguagens mais
rudimentares, que depende de que as palavras usadas sejam as convencionalmente eleitas para
situações do tipo a que a referida pertence.” (Austin, Tr, p. 125-6)
O aspecto convencional da tese de Austin diferencia o seu pensamento daquelas
teorias da correspondência que sustentam uma correlação única, exata e própria entre o
discurso e o fato. A idéia de que “para todo enunciado verdadeiro há ‘um’ e seu próprio fato
precisamente correspondente – para todo gorro a cabeça em que se ajusta” (Austin, Tr, p. 123)
conduz a uma interpretação errônea de fato.11
Quando se fala em verdade ou falsidade é comum a relação que se faz com os fatos;
ou seja, se a declaração feita “corresponde ou não aos fatos”. Apesar de aceitar, com
11
Kirkham, em “Theories of truth”, explica os dois tipos de teorias da correspondência: congruência e
correlação. A primeira defende que há um isomorfismo estrutural entre enunciado verdadeiro e fato e que, por
isso, o portador de verdade (enunciado) reflete ou espelha o estado de coisas (fato). Por outro lado, a teoria da
correlação nega tal isomorfismo e sustenta que qualquer enunciado é estritamente convencional. (Kirkham,
1997, p. 119)
265
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ressalvas, essa idéia (a “correspondência” aos fatos), Austin pergunta “se pelo menos em
muitos casos não cabe uma apreciação igualmente objetiva de outras expressões livres de
infelicidades, que parecem ser tipicamente performativas.” (Austin, PA, p. 116) Ou seja,
mesmo que a verdade ou a falsidade não estejam diretamente relacionadas com os
performativos, e de fato não estão, isso não significa que os performativos prescindam a uma
apreciação mais objetiva, quer dizer, que eles não levam em conta os fatos. Afinal, um
conselho pode ser oportuno ou inoportuno, um elogio pode ser merecido ou não etc.; ou seja,
a avaliação do conselho ou do elogio acaba exigindo também a análise do contexto, da
situação histórica, dos fatos. O ponto central é: “podemos estar seguros de que quando
afirmamos que alguém declarou a verdade estamos fazendo uma apreciação de tipo diferente
do que quando afirmamos que alguém argumentou com fundamento, aconselhou bem, julgou
com probidade etc.? Essas coisas não têm nada a ver, ainda que de maneira complicada, com
os fatos?”. (Austin, PA, p. 117)
Esse ponto é fundamental para a questão da verdade. Não se deve considerar apenas os
enunciados tipicamente constatativos (“o gato está sobre o tapete”) ou somente as emissões
tipicamente performativas (“peço desculpas”). A investigação da linguagem acerca do
problema da verdade certamente não resulta simplesmente em uma diferenciação
demasiadamente simples entre verdadeiro e falso, nem tampouco entre enunciados e outros
atos de fala, pois, enunciar, adverte Austin, é apenas um dentre vários atos de fala igualmente
importantes. Por isso, a conclusão real tem de ser, certamente, que necessitamos (a) distinguir
entre atos locucionários e atos ilocucionários e (b) estabelecer especial e criticamente, com
relação a cada tipo de ato ilocucionário – advertências, estimativas, vereditos, declarações e
descrições – qual é a maneira específica em que se pretendeu realizá-los, para saber, primeiro,
se estão ou não em ordem e, segundo, se estão ‘certos’ ou ‘errados’; que termos de aprovação
ou desaprovação são usados para cada um e o que significam. (Austin, PA, p. 120)
A questão da verdade e falsidade não parece, portanto, tão objetiva como se tem
frequentemente considerado. Austin a considera em estreita ligação com a visão performativa
da linguagem. Nessa visão a linguagem é considerada como ação e não mais como mera
representação da realidade. E considerar a linguagem como uma forma de ação significa
considerá-la como uma forma de constituição de nossas experiências. Desse modo, a questão
da verdade passa de uma visão representativa – em que bastava observar os fatos para dizer se
a enunciação era ou não verdadeira – para uma visão performativa, em que o enunciado
verdadeiro é tratado, à semelhança dos proferimentos performativos, em termos de felicidade
do ato linguístico, de suas condições de sucesso; o caráter prático e moral envolvido na
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comunicação também é importante, pois quando alguém enuncia algo um compromisso é
firmado.
O caráter impreciso da relação “enunciado-realidade” como decorrência do caráter
convencional
Há outro ponto importante a observar: a relação entre a linguagem e o mundo nem
sempre é firme ou segura ou exata o suficiente para assegurar a todos os enunciados a verdade
ou falsidade. Às vezes, dependendo das circunstâncias, não é suficientemente seguro afirmar
que um determinado enunciado é verdadeiro; outras vezes é até incorreto atribuir verdade ou
falsidade a um enunciado pelo fato de ele mostrar-se mais inadequado do que qualquer outra
coisa. Nessas situações, torna-se embaraçoso e algumas vezes até mesmo impossível dizer se
o enunciado é verdadeiro ou falso. Segundo Austin, “há diversos graus e dimensões de êxito
ao fazer enunciados: os enunciados se ajustam aos fatos sempre mais ou menos frouxamente,
de diferentes formas em diferentes ocasiões para diferentes intenções e propósitos.” (Austin,
Tr, p. 130) Desse modo, os enunciados nem sempre são verdadeiros ou falsos.
Simplificadamente, tudo o que é verdadeiro ou falso é um enunciado, porém, nem
todos os enunciados são identificados como verdadeiros ou falsos: “na vida real,
diferentemente das situações mais simples consideradas na teoria lógica, nem sempre
podemos responder de maneira simples se a enunciação é falsa ou verdadeira”. (Austin, PA,
p. 117) Por exemplo, “A França é hexagonal” é uma declaração verdadeira ou falsa? Depende
de quem a está analisando, pois pode ser verdadeira para um general, mas não para um
cartógrafo. O que é essencial, explica Austin, é “entender que ‘verdadeiro’ e ‘falso’, como
‘livre’ e ‘não livre’, não designam, de forma alguma, algo simples. Tais palavras só
representam uma dimensão geral de que, nas circunstâncias dadas, em relação a um
determinado tipo de ouvinte para certos fins e com certas intenções, o que foi dito era
adequado ou correto, em oposição a algo incorreto”. (Austin, PA, p. 119)
Crítica à definição de verdade como “correspondência ao fatos”:
A tese de Austin foi criticada por Strawson, em “Truth” (3). Nesse ensaio, Strawson
afirma que a teoria da verdade como correspondência requer não purificação como sugere,
segundo ele, Austin, mas sim eliminação. O principal argumento dele é que fato não é algo do
mundo, não é similar à coisa ou objeto. Esse argumento, todavia, é irrelevante à tese de
267
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Austin; quer dizer, apesar de Austin sustentar o contrário, isto é, que os fatos estão no mundo,
tal argumentação não altera a tese dele sobre a verdade. Esse ponto será retomado mais
adiante. Por hora, consideremos os principais contra-argumentos de Strawson à noção de
enunciado empregada por Austin..
3.1. Argumentação contra o conceito de enunciado
Strawson não apresenta objeções no que diz respeito à escolha justificada de Austin em
chamar de enunciados às expressões que dizemos ser verdadeiras ou falsas. Como vimos,
Austin distingue entre i) frases nominais, como “seu enunciado é verdadeiro”, ii) pronomes
ou frases nominais acrescidos da cláusula que, como “é verdadeiro (dizer) que p”, e iii) “o
enunciado de que p é verdadeiro”. O problema está, diz Strawson, em imaginar que esses
enunciados são, por natureza, eventos históricos. Em outras palavras, Strawson acusa Austin
de confundir o enunciado com a sua emissão. Portanto, o ponto criticado por Strawson é
acerca da constituição do enunciado, do caráter essencial dele.12 Os enunciados não são
eventos históricos por natureza, como Austin supôs, pois ser um evento histórico significaria
ser episódico e os enunciados que dizemos ser verdadeiros ou falsos não são, segundo
Strawson, episódicos. Mas o que Strawson quer dizer exatamente quando afirma que os
enunciados verdadeiros não são episódicos?
Ocorre que Strawson confere dois sentidos ao enunciado: meu enunciado pode ser “meu dizêlo” ou “o que digo”. O primeiro é, sim, um episódio; o segundo, entretanto, não o é. E é
apenas o segundo que pode ser verdadeiro ou falso.
Para explicar, ele exemplifica: “se digo que o mesmo enunciado foi primeiro sussurrado por
João e depois vozeado por Pedro, emitido primeiro em francês e repetido depois em
português, estou fazendo claramente observações históricas sobre ocasiões de emissões.”
(Strawson, 1950, p. 217) O sussurro, as vozes e as emissões são os episódios. Ou seja, os
modos de falar (ou episódios de fala), juntamente com os variados contextos em que ocorrem,
são sim eventos históricos. Este é o primeiro sentido de enunciado dito acima, ou seja “o meu
dizer”. O enunciado que dizemos ser verdadeiro, porém, permanece inalterado diante de todos
esses diferentes episódios de fala. Os episódios, portanto, nada têm a ver com a verdade dos
enunciados. Assim, é possível identificar o evento, ou coisa (a quem preferir), de um episódio
de fala: pode ser sussurro, grito, aplausos, silêncio etc. Agora, identificar tal coisa ou evento
12
Conforme já foi dito acima, o conceito de enunciado criticado aqui por Strawson não atinge a tese de Austin; o
conceito proposto não se altera diante da argumentação de Strawson, como veremos logo mais.
268
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
no enunciado verdadeiro é impossível. Strawson diz que “é inútil perguntar sobre que coisa ou
evento estou falando ao declarar que um enunciado é verdadeiro; pois não há tal coisa ou
evento.” (Strawson, 1950, p. 217) Seu objetivo é mostrar a impossibilidade de atribuir
verdade ou falsidade a enunciados no sentido episódico.
O segundo sentido que Strawson confere ao enunciado, que é o sentido não episódico, é
aquele em que “enunciado” é o mesmo que “o que se diz que é verdadeiro ou falso”. É “o que
digo” e não “meu dizê-lo”. Assim, se usamos diferentes orações para fazer o mesmo
enunciado, essas diferentes orações podem ter diferentes significados, porém, o enunciado
será um só. O exemplo de Strawson é alguém que diz de João “ele está enfermo” e eu digo a
João “você está enfermo” e, ainda, o próprio João diz “estou enfermo”. O significado de cada
uma dessas orações é diferente, mas todas elas enunciam a mesma coisa: “o que todos eles
disseram, a saber, que João estava enfermo, era completamente verdadeiro”. (Strawson, 1950,
p. 219)
O argumento fundamental de Strawson para provar que enunciados não são episódicos e que,
portanto, não podem ser eventos históricos (e, então, não podem estar no mundo) é o seguinte:
o que dizemos ser verdadeiro (ou falso) não requer referência temporal, isto é, não exige um
momento histórico determinado. Por exemplo, o sentido do que é dito nas orações acima, ou
seja, o enunciado “... que p” (ou, “o que todos eles disseram”, ou ainda, “que João estava
enfermo”) não obriga à determinação histórica. Um sinal disso é que não podemos datá-lo.
Por outro lado, os eventos históricos são todos, necessariamente, datados. Strawson
exemplifica assim o seu argumento: “se subscrevo um ponto de vista de Platão, atribuindo-o
erroneamente a Russell, e se me corrigem, não descubro que estava falando de um evento
histórico separado por séculos do que imaginava que estava falando. (Uma vez corrigido
posso dizer: ‘bem, seja quem for que o tenha dito, é verdade’”. (Strawson, 1950, p. 219-20)
3.2) Argumentação contra o conceito de fato
A outra parte da relação de correspondência – os fatos – reforça ainda mais, segundo
Strawson, a impossibilidade da tese correspondencialista da verdade de Austin. Vale repetir
que Strawson não diverge de Austin em chamar de enunciado àquilo que dizemos ser
verdadeiro ou falso, embora discorde da natureza que Austin lhe confere, ou seja, discorda
que o evento histórico seja aquilo que faz do enunciado verdadeiro ou falso. Strawson
também consente que há enunciados compostos de duas partes, uma demonstrativa e outra
descritiva – apesar de manifestar sua insegurança quanto à afirmação de que essa é a única
269
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
natureza possível dos enunciados. Nessa parte da relação de correspondência, Strawson
investe contra uma comparação, equivocada segundo ele, estabelecida entre fato e coisa.
Austin teria cometido um erro ao equiparar fato com evento ou coisa ou objeto ou ainda
estado de coisas, pois isso é o mesmo que equiparar enunciar com referir.
A questão mais importante é que, para Strawson, os fatos não estão no mundo como estão os
objetos. Os objetos fazem parte do mundo, os fatos não. Podemos ver, encontrar ou tocar os
objetos, não os fatos. Mas, se os fatos não são coisas do mundo, qual seria a referência de um
enunciado verdadeiro? Pois, para que um enunciado seja verdadeiro é necessário algo no
mundo que assegure sua verdade. Por exemplo, o enunciado “o gato tem sarna” é, segundo
Strawson, um enunciado do tipo estabelecido por Austin, isto é, um enunciado composto de
duas partes: uma demonstrativa (o gato) e outra descritiva (a sarna). A questão é: se os fatos
não fazem parte do mundo, o quê, nesse enunciado, provaria que a enunciação “o gato tem
sarna” é verdadeira? Qual é a referência de tal enunciado?
A resposta de Strawson é categórica: o gato é a referência; assim, o enunciado é sobre o gato.
O que faz desse enunciado um enunciado verdadeiro não é, entretanto, o gato, mas a sua
condição, isto é, o fato de ele ter sarna. Apesar de o enunciado ser sobre o gato (referência),
ele enuncia um fato (o fato de ele ter sarna). E a verdade está no fato enunciado. Diz
Strawson, “o único candidato possível para o posto daquilo que (no mundo) faz verdadeiro o
enunciado é o fato que este enuncia; porém, o fato que o enunciado enuncia não é algo do
mundo.” (Strawson, 1950, p. 222) Strawson concorda com Austin que enunciar não é apenas
fazer referência a algo, nem tampouco descrever algo, mas é simultaneamente ambos:
enunciar é a conjunção de fazer referência e descrever. Assim, quem expressa que “o gato tem
sarna” faz referência a algo (o gato), descreve algo (a sarna), ao mesmo tempo que enuncia
um fato (o fato de que o gato tem sarna). O fato que foi enunciado não é, portanto, nem o
gato, nem a sarna, mas a condição do gato; essa condição é que faz do enunciado verdadeiro
ou falso; ela é o fato. E fato, definitivamente, não é coisa nem objeto, não é matéria:
aproximadamente, diz Strawson, “a coisa, pessoa etc., a que se faz referência é o correlato
material da parte referencial do enunciado; a qualidade ou propriedade que se diz que o
referente ‘possui’ é o correlato pseudomaterial de sua parte descritiva, e o fato a que
‘corresponde’ o enunciado é o correlato pseudomaterial do enunciado como um todo.”
(Strawson, 1950, p. 222)
Nesse sentido, a única coisa que há no mundo no que diz respeito ao enunciado “o gato tem
sarna” é o gato, que é a referência. Nada mais há além do gato. Portanto, argumenta Strawson,
supor como Austin que haja algo a mais no mundo que garanta a veracidade do enunciado é
270
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
um erro lógico. O erro de Austin seria exatamente imputar uma falsa natureza aos fatos, como
se eles fossem um relatum, fundamentalmente material, a que os enunciados
corresponderiam.
Assim, seguindo o mesmo exemplo, haveria nessa relação de correspondência dois correlatos
materiais, o gato e o fato (ou situação histórica, evento etc.). O gato como a referência
propriamente dita e o fato como um estado de coisas histórico. “A teoria que responde que
dizer que um enunciado é verdadeiro é dizer que um episódio de fala está relacionado
convencionalmente de uma maneira determinada com tal relatum reproduz o erro-tipo
incorporado nessa exigência [na exigência de que deve haver algo no mundo que faz o
enunciado verdadeiro].” (Strawson, 1950, p. 221) Por conta disso, Strawson apresenta dois
argumentos contra a hipótese de que os fatos fazem parte do mundo.
O primeiro argumento contra tal hipótese é que fato não é semelhante à coisa, ou objeto. Fato
não tem natureza material. E o problema determinante aqui é considerar enunciados e fatos
como eventos e coisas. Strawson insiste em que não se deve confundir fato com coisa, nem se
deve considerá-lo como parte do mundo. Fato não é apenas a referência de um enunciado.
Fato é uma abstração que envolve enunciado, referência e as condições da referência. A
referência está no mundo; o fato, assim como o enunciado, não. Assim, o caráter que o
enunciado tem de ser verdadeiro ou falso não se deve, como pensou Austin, à relação
convencional que há entre enunciado e fato. Em outras palavras, o que faz de um enunciado
verdadeiro ou falso não é o tipo da relação entre enunciado e fato, ou seja, a relação
convencional; o que faz dele verdadeiro ou falso é o fato que ele enuncia.
O problema das teorias da verdade como correspondência não é primariamente a tendência
em substituir relações não convencionais, pelo que é realmente uma relação convencional.
O que dá origem ao problema é a representação desorientadora de ‘correspondência entre
enunciado e fato’ como uma relação, de qualquer gênero, entre eventos, coisas ou grupos
de coisas. (Strawson, 1950, p. 226)
Não se diz que o retrato de alguém é verdadeiro ou falso porque, como sustentou Austin, a
relação entre o retrato e o retratado não é uma relação convencional, mas sim porque o
retratado é uma pessoa, ou coisa, ou algo material. Do mesmo modo, argumenta Strawson,
um enunciado é verdadeiro ou falso não por causa do tipo da relação – convencional – que
estabelece com o fato, mas porque fato não é algo material, nem uma entidade pessoal, enfim,
não é um objeto. “À diferença dos acontecimentos que ocorrem sobre o globo, os fatos não se
presenciam nem se ouvem nem se vêem, não se rompem, não se interrompem nem se
prolongam, não se lhes dá um pontapé, não se destróem.” (Strawson, 1950, p. 223)
271
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O segundo argumento de Strawson contrário à suposição de que os fatos fazem parte do
mundo é que o fato é intrínseco ao enunciado. “Por cima dos fatos (situação, estado de coisas)
não se pode, como por cima de um tabuleiro com peças de xadrez, derramar café.” (Strawson,
1950, p. 227) Ocorre que palavras como “fato” e “enunciado” contêm, fundamentalmente, a
idéia de informação. Há um discurso informativo inerente a elas, que está nos significados
próprios de cada uma. Assim, uma enunciação feita significa um fato enunciado, e, ao mesmo
tempo, uma informação relatada. Não há como separar o enunciado do fato, nem tampouco
ambos do discurso informativo.13
Por essa razão, diz Strawson, não pode ser frutífera a análise de cada termo (“enunciado”,
“fato”) separadamente, ou mesmo o significado de qualquer um desses termos por meio da
análise de outros, pois não há como investigar um fato sem levar em conta o enunciado que o
enuncia, já que não são dissociáveis. “Se nossa tarefa fosse elucidar a natureza do discurso
informativo, seria inútil tentar fazê-lo em termos das palavras “fato”, “enunciado”,
“verdadeiro”, posto que, estas palavras contém o problema, não sua solução.” (Strawson,
1950, p. 228)
3.3 Respostas de Austin às críticas de Strawson
Este é o momento de voltarmos a uma questão que ficou em aberto. Foi dito, no início do item
3, que Strawson não analisou, no ensaio “Truth” (3), o enunciado adequadamente tal qual
Austin o definiu. Ocorre que Strawson interpretou a tese de Austin como se ela fosse,
literalmente, dividida em duas partes, uma demonstrativa e outra descritiva. E, nessa
interpretação, a parte descritiva deve corresponder, assim como a demonstrativa, a algo no
mundo (evento histórico, situação, coisa etc.) para que um enunciado seja verdadeiro ou falso.
Nesse sentido é que Strawson investiu toda uma contra-argumentação com o especial objetivo
de invalidar a tese por meio da negação da idéia de fatos como matéria. A conclusão seria,
portanto, inevitável: como não há fatos no mundo, não poderia haver duas correspondências
entre enunciado e mundo, uma demonstrativa (referência) e outra descritiva (evento histórico,
situação, fato). A única correspondência real é a da primeira parte, a referência propriamente
13
Uma tese atual e, de certo modo, na mesma linha de pensamento de Strawson, é apresentada por Eduardo
Alejandro Barrio. No texto “La outra cara del escéptico”, Barrio faz uma crítica à tese da verdade de Porchat e
não aceita a teoria da verdade como correspondência. Em lugar desta, Barrio propõe uma teoria deflacionista da
verdade: “o enfoque que defendo se opõe à concepção correspondencialista da verdade. Sustentarei, em
definitivo, contra o que sustentou Oswaldo Porchat, que a melhor maneira de ser cético no que diz respeito à
verdade é defender o que comumente se chama deflacionismo ou minimalismo, o ponto de vista segundo o qual
tudo o que se pode dizer sobre a verdade se resume na idéia segundo a qual afirmar que uma oração é verdadeira
é afirmar a oração.” (Barrio, 2000, p. 64)
272
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dita. No caso de “o gato tem sarna”, a correspondência no mundo é o gato, isto é, a parte
demonstrativa. A segunda parte, a descritiva, não poderia ter correspondência no mundo, pois
é a condição de o gato ter sarna e tal condição não está no mundo. É apenas uma
pseudoentidade (o fato). Não haveria, portanto, nada no mundo que correspondesse à parte
descritiva do enunciado de Austin. Assim, a conclusão de Strawson é que uma tal
correspondência não pode ser condição de verdade.
Não é isso, porém, o que Austin sugeriu. Há dois pontos importantes para refutar a contra-tese
de Strawson. Por um lado, Austin não aceita a tese de que os fatos sejam pseudoentidades e
que, portanto, não estão no mundo. Ele, aliás, argumenta o contrário, como será mostrado
abaixo. Por outro lado, o conceito de enunciado que Austin propõe não diz expressamente que
deve haver duas coisas no mundo a que o enunciado corresponde. Isso significa que a parte
demonstrativa e a parte descritiva do enunciado podem perfeitamente corresponder à mesma
coisa, evento etc. no mundo. É necessário algo no mundo, mas isso não exige duas
referências. O que ocorre é que as duas correspondências alcançam, diferentemente, o mesmo
objeto. Não há a referência e o fato (fato como evento histórico) como interpretou Strawson.
Há somente uma única referência; e é ela própria que torna o enunciado verdadeiro ou falso,
dependendo da situação histórica envolvida. Assim, a definição de Austin segundo a qual
“uma enunciação é verdadeira quando o estado histórico de coisas com o qual é
correlacionada pelas convenções demonstrativas (aquele a que se ‘refere’) é de um tipo com o
qual a sentença usada para fazê-la é correlacionada pelas convenções descritivas” (Austin, Tr,
p. 122), pode ser assim entendida: se uma determinada sentença, vinculada a um estado de
coisas pelas convenções descritivas (sentenças – tipos de coisas no mundo) for usada para
fazer um enunciado que se refira a esse mesmo estado histórico por meio das convenções
demonstrativas (enunciado – estado histórico de coisas), então o enunciado será verdadeiro.
Um enunciado não é verdadeiro ou falso por si só. Strawson acusa Austin de confundir o
enunciado com o ato de emiti-lo mas, na realidade, o que ocorre é que o enunciado não pode
ser verdadeiro ou falso desconsiderando tal emissão.
Outro ponto ainda pode ser apresentado. Austin, apesar de ter aceitado a idéia de que “o
enunciado verdadeiro é aquele que corresponde aos fatos”, não sustentou que os termos
“fatos” e “corresponde” são ou estão entre as condições necessárias a serem observadas
quando dizemos que um determinado enunciado é verdadeiro. Vale insistir que Austin
simplesmente não objetou seriamente a tal expressão, aliás, bastante conhecida e usada, mas
sublinhou que o termo “fato” geralmente é tratado com pouca clareza. Para ele, esses termos
são até mesmo dispensáveis quando o assunto é a verdade. (Austin, UF, p. 154-5) Por outro
273
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
lado, Strawson fez questão de mostrar uma nova análise desses termos, apoiado no argumento
de que as condições que devem ser satisfeitas para que um enunciado seja verdadeiro
consideram os termos “fatos” e “corresponde”, apesar de sua ressalva em insistir que o que
fazemos realmente quando dizemos que um enunciado é verdadeiro não é assegurar o
cumprimento dessas condições, mas aprovar o enunciado dito.
4. Considerações finais
Austin acreditava, como visto, dispor de um bom método para explicar como e o que
são as coisas. Esse método, no entanto, não é aplicável só aos temas tradicionais da filosofia.
Muitos outros não explorados por Austin podem ser investigados a partir desse método. A
hipótese central deste texto é que o Direito, como campo inexplorado por Austin e, justo por
isso, pode evoluir com suas aplicações.
Para saber o que são as coisas, como o Direito, o intérprete deve levar em conta não o
que se vê como direito, nem o que as leis dizem que é o direito, tampouco o que os tribunais
dizem que é o direito. A teoria de John L. Austin resulta numa técnica e sustenta que todas as
expressões empíricas e ideais das coisas, como as expressões empíricas e ideais da ordem
jurídica e do direito, sempre são parciais. Portanto, desse ponto de vista, seria um erro
sustentar que o Direito possa ser definido de um modo simples (a simples leitura dos atos
jurídicos formais, ou a simples dedução de direitos a partir de princípios gerais não escritos).
Se Austin estiver correto, o Direito, como todas as coisas, é o resultado daquilo que um
complexo contexto dos usos da linguagem revelar que ele é. Quer dizer, a definição de um
direito específico, como a definição de todas as coisas específicas, depende da situação e dos
usos ordinários das palavras implicadas na disputa por esse direito.
Segundo Austin, a linguagem e a experiência estão inter-relacionados. E a linguagem,
se bem analisada, acaba sendo um instrumento capaz de aguçar, avivar, ou aumentar a
acuidade perceptiva e reflexiva em relação aos fatos e à experiência, portanto à dimensão real
do direito. A questão da verdade e da falsidade não parece, portanto, ser algo objetiva. Antes
disso, é algo em estreita ligação com a visão performativa da linguagem. Nessa visão, a
linguagem é considerada uma ação e não mera representação da realidade.
Se aplicado ao Direito, o método de Austin – e suas técnicas – consiste em examinar, a
partir da linguagem ordinária, “o que se diria quando”, e também “o por quê” falamos da
maneira como falamos e “o quê” queremos dizer com certa expectativa de direito ou com
certo direito ou com certo dever. Segundo esse método, um bom modo de análise do direito é
274
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chegar a um acordo e, mesmo, à unanimidade, sobre a primeira etapa da investigação, ou seja,
em relação à pergunta: o que se diria quando?. Dessa pergunta advém o aspecto extralinguístico no método. Bem empregado, esse método permite compreender a complexidade
das experiências e das realidades jurídicas.
As técnicas de investigação propostas clarificam a linguagem, mas também ajudam a
compreender, por exemplo, as circunstâncias e limites implicados pelo uso da linguagem no
Poder Judiciário. As distinções que a técnica de análise dos contextos linguísticos das
palavras implicadas num processo judicial exigem, sem dúvida, serão muito numerosas. Por
isso, esse método requer compartilhamento de experiências. A interpretação do direito, desse
ponto de vista, nunca pode ser um ato isolado de um juiz. Um Tribunal, porque órgão
colegiado, é o órgão do aparelho judicial que atende melhor às exigências performativas da
linguagem. É que o emprego dessas técnicas para a investigação do Direito exigem não
somente o recurso a um vocabulário técnico (o que um juiz singular certamente dispõe) mas,
eventualmente, a criação de novo vocabulário jurídico. E essa dimensão empírica inovadora
exige também a construção de convenções. Daí a importância das instâncias colegiadas de
deliberação.
Analisar a linguagem do Direito, segundo essa teoria de John L. Austin, como se pode
notar, não seria simplesmente uma questão de esclarecer significados de palavras
estabelecidas em atos jurídicos formais. Tampouco seria questão de mera e simples
convencionalidade, como alguns adeptos de teses procedimentalistas ou deliberativas
sugerem. O método da análise da linguagem de John L. Austin exige atenção aos usos de
todas as situações de fala sobre um tema do Direito. É nesse contexto que o texto jurídico faz
sentido; ou melhor, é nesse contexto de linguagem que o direito pode ser definido como o
produto de suas circunstâncias (de linguagem).
Austin evita o termo “fatos verdadeiros”. Sua definição de enunciado verdadeiro não
precisa da suposta “correspondência entre fatos e a linguagem”. E esse cuidado em não usar o
termo “correspondência” evita pelo menos dois erros presentes na tradição positivista da
teoria e prática do direito: 1. o de tomar o texto escrito por autoridades jurídicas como a
representação do mundo do direito, e 2. o de não considerar a linguagem na dimensão “real”
do mundo do direito, mas mero instrumento para “realizar o direito”.
O importante e decisivo é que o método de John L. Austin, de certo modo, recupera a
dignidade dos textos escritos nas discussões sobre o direito, atenuando, assim – ao menos da
perspectiva inicial deste ensaio – a força de explicações exclusivamente empíricas,
interpretacionistas, semânticas ou idealistas de afirmação do que seja o Direito.
275
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
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277
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HERMENÊUTICA ALGORÍTMICA: UMA APROXIMAÇÃO
ENTRE A TEORIA DOS ALGORITMOS E A INTERPRETAÇÃO
CONSTITUCIONAL
ALGORITHMIC HERMENEUTICS: AN APPROACH BETWEEN THE THEORY OF
ALGORITHMS AND CONSTITUTIONAL INTERPRETATION
Aluizio Jácome de Moura Júnior*
Resumo
O presente trabalho tem por objetivo uma análise da hermenêutica constitucional sob o
prisma algorítmico, mediante uma aproximação crítica entre a teoria dos algoritmos e a
interpretação constitucional. Para tanto, parte-se da premissa que a Constituição Federal
de 1988 pode ser interpretada de forma análoga à construção dos algoritmos na Ciência
da Computação. Através de análise de conceitos científicos multidisciplinares e
decisões atuais do Supremo Tribunal Federal. Num diálogo permanente e não unilinear
entre os direitos fundamentais em contraste num determinado caso concreto, de um
lado, e os fundamentos e objetivos fundamentais da Constituição, de outro.
Possibilitando, até mesmo, o reconhecimento de direitos fundamentais implícitos.
Palavras-chave: Direito Constitucional; Ciência da Computação; Hermenêutica
algorítmica.
Abstract
This work aims to do an analysis of constitutional hermeneutics from the perspective
algorithmic, through a critical approach between algorithms theory and constitutional
interpretation. To do so, we start from the premise that the Constitution of 1988 can be
interpreted similarly to the construction of algorithms in Computer Science. Through
analysis of multidisciplinary scientific concepts and current decisions of the Supreme
Court. In an ongoing dialogue and non-unilineal between fundamental rights in
contrast in a particular case, on one side, and the foundations of the Constitution and
fundamental objectives, on the other. Allowing even the implied recognition of
fundamental rights.
Keywords: Constitutional Law; Computational science; Algorithmic Hermeneutics.
Defensor Público no Estado Ceará e mestrando em Direito Constitucional pela Universidade de
Fortaleza.
*
278
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
1 Introdução
O Direito na atualidade, especialmente o Constitucional, parte de um conjunto de
normas jurídicas positivadas destinadas ao regulamentar os fatos sociais.
O Direito Constitucional, por seu turno, consubstanciado em um documento
jurídico superior e fundamentador de toda a ordem jurídica inferior, denominado
Constituição, destina-se, em especial, à atribuição e controle de poder, afirmando uma
série de direitos e garantias fundamentais dos indivíduos.
A vigente Constituição Federal brasileira ainda elenca os objetivos fundamentais e
fundamentos do Estado Brasileiro.
Dentre esses, destacamos a dignidade da pessoa humana, como fundamento, e a
construção de uma sociedade livre, justa e solidária, como objetivo fundamental.
A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal vem propondo um diálogo cada
vez mais próximo entre os direitos fundamentais, de um lado, e os objetivos
fundamentais e fundamentos da Constituição, de outro. Com ênfase destaca quando se
trata dos chamados hard cases.
Desses últimos, destacamos a Ação Direta de Inconstitucionalidade Nº 3510/DF
que discutiu a o art. 5º da Lei de Biossegurança e o Habeas Corpus Nº 82.424/RS onde
se questionava a liberdade de expressão.
Essa é a proposta desta hermenêutica algorítmica, os objetivos fundamentais e os
fundamentos da Constituição são eixos interpretativos que interagem com os direitos
fundamentais, mormente quando se trata dos chamados conflitos entre estes últimos.
A Constituição, como veículo da linguagem tem o poder genético de conceber os
direitos numa escala de procedimento não hierarquizada, mas que tem duas matrizes
gerativas.
Desse modo, a Lei Fundamental se compõe de uma totalidade jurídica, visto que
dela podemos extrair não somente a interpretação literal e reduzida de suas normas, mas
compreensões construtivas, determinando, inclusive, a existência de direitos e
princípios implícitos e a solução de choques entre normas constitucionais, mediante um
contato normativo dialogado.
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
Impende ressaltar que o escopo do presente trabalho não é afirmar concepção
mecanicista da interpretação constitucional, longe está a intenção de tratar a
Constituição como uma tábua de logaritmos, mas realizar uma aproximação crítica entre
a hermenêutica constitucional e a teoria dos algoritmos.
2 O conceito de algoritmo
Algoritmo é um conceito central da ciência da computação.
A origem da palavra é controversa, parecendo um arranjo confuso do vocábulo,
também matemático, logaritmo.
No entanto, segundo Loureiro(2007, p. 4) a palavra vem do nome do matemático
Abu Ja’Far Mohammed Ibn Musa al-Khowarizmi(780-850), astrônomo e matemático
árabe, nascido na cidade de Khowarizmi, atual Khiva, pertencente ao atual Uzbequistão.
Interessante notícia sobre a trajetória de al-Khowarizmi e da própria palavra
algoritmo é dada por Anne Rooney(2012, p. 22):
Ele traduziu textos hindus para o árabe e foi responsável pela introdução dos
numerais hindus na matemática árabe. Seu trabalho foi depois traduzido para
o latim, dando à Europa não apenas os métodos numérico e aritméticos, mas
também a palavra “algoritmo” derivado do seu nome. Quando o trabalho de
al-Khowarizmi foi traduzido, as pessoas acharam que ele tinha criado o novo
sistema numérico que ele promovia, e este se tornou conhecido como
algorismo. Os algoritas eram aqueles que usavam o sistema posicional hinduarábico. Eles estavam em conflito com os abacistas, que eram aqueles que
usavam o sistema baseado nos numerais romanos e calculavam usando o
ábaco.
Desse modo, a palavra algoritmo nasce vinculada ao destino a que se propõe,
buscar soluções otimizadas para problemas, no início a necessidade de estabelecer um
sistema de contagem superior ao romano, atualmente utilizado nos mais diversos e
opostos ramos do conhecimento humano.
Singelamente, o algoritmo parte de um conjunto de dados inicial e traça um
caminho para uma situação final definida, é um método. Apesar da distância
epistemológica entre o dia-a-dia e a ciência da computação, diz-se que utilizamos
cotidianamente os algoritmos.
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
Pode-se exemplificar vulgarmente algoritmo com a simples atitude de ligar o
motor de um automóvel. Estando o motorista sentado ao volante e com o cinto de
segurança afivelado, verifica-se se o câmbio está em ponto morto, se estiver, coloca-se a
chave na ignição, dá-se a partida e tarefa concluída, se não, o câmbio deve voltar para a
posição sem marcha e só aí se repete o procedimento de colocação da chave e partida do
motor.
A ciência da computação nos brinda com um conceito mais elucidativo de
algoritmo(CORMEN et al, 2002, p. 3):
... um algoritmo é qualquer procedimento computacional bem denifido que
toma algum valor ou conjunto de valores como entrada e produz algum valor
ou conjunto de valores como saída. Portanto, um algoritmo é uma sequência
de passos computacionais que transformam a entrada em saída.
Nesse diapasão, um algoritmo pode ser definido como um padrão sequêncial de
atitudes e verificações para se chegar a determinada situação ou solucionar algum
problema prático.
Ainda segundo Cormen(2002, p. 3):
Também podemos visualizar um algoritmo como uma ferramenta para
resolver um problema computacional bem especificado. O enunciado do
problema especifica em termos gerais o relacionamento entre a entrada e a
saída desejada. O algoritmo descreve um procedimento computacional
específico para se alcançar esse relacionamento da entrada com a saída.
Impende ressaltar, como esboçado na introdução deste ensaio, que não se tem
como pretensão afirmar uma interpretação cartesiana, exata ou matemática da
Constituição através de uma suposta hermenêutica algorítmica certa e infalível como
uma aritmética perfeita.
A Teoria dos Algoritmos não deixa de reconhecer a inexatidão e a existência de
erros, apesar de ambicionar a correção.
Assim, numa visão pragmática, a diferença entre correção e incorreção do
algoritmo baseia-se na sua capacidade em resolver ou não o problema confrontado.
De modo que também é importante a distinção científica entre algoritmos corretos
e incorretos:
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
Um algoritmo é dito correto se, para cada problema computacional dado, ele
pára com a saída correta. Dizemos que um algoritmo correto resolve o
problema computacional dado. Um algoritmo incorreto pode não parar em
algumas instâncias de entrada, ou então pode parar com outra resposta que
não a desejada. Ao contrário do que se poderia esperar, às vezes os
algoritmos incorretos podem ser úteis, se sua taxa de erros pode ser
controlada(CORMEN
et al, 2002, p. 4).
Assim, mesmo no âmbito da ciência da computação, exata em essência, admite-se
a importância dos algoritmos incorretos, mesmo que os corretos sejam os almejados,
desde que haja um controle razoável de sua taxa de erros.
Igual equívoco seria o de restringir a aplicação do conceito de algoritmo às
ciências exatas, pois o paradigma atual é de conversação entre os diversos ramos do
conhecimento.
Posteriormente, a ideia de algoritmo foi posta em diálogo com as ciências
biológicas, a economia, a administração e muito especificamente, desde os anos 50, com
a lingüística.
A ciência do direito mantém-se hermética, contudo, é possível imaginar uma
aproximação plausível.
Com efeito, na concepção de Carlos Alchourrón e Eugenio Bulygin o direito tem
pautas racionais de construção normativas, que deve respeitar imperativos de coerência
e não-contradição, assim, a positivação normativa não afasta a análise racional e
sistemática dos casos concretos:
En Alchourrón y Bulygin existe la consideración de que el derecho contiene
una especie de orden sistemático, importante tanto para el legislador como
para el científico. En consecuencia tenemos pautas racionales de construcción
normativa, respetando ciertos lineamientos como la coherencia, la no
contradicción,
la
completitud,
independencia
y
la
no
redundância.(NÁPOLES, p. 194-195).
Assim, na mesma esteira procedimental da teoria algorítmica relacionam a norma
jurídica com as soluções procuradas para os casos concretos:
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
Desarrollan un concepto de derecho muy relacionado a su noción de sistema
normativo. Exponen que norma es un enunciado que correlaciona un caso
con una solución normativa. El concepto de caso corresponde a un estado de
cosas que se define por la presencia o ausencia de una o algunas propiedades.
El concepto de solución se entiende como una modalización deóntica de una
determinada acción sea genérica o individual, que es calificada según un
carácter deóntico sea prohibición, obligación, facultad o permisión.(
NÁPOLES, p. 195).
Desse modo, para estes autores o sistema normativo é apto para correlacionar,
dedutivamente, casos e soluções:
La función de un sistema normativo consiste, pues, em establecer
correlaciones deductivas entre casos y soluciones, y esto quiere decir que del
conjunto formado por el sistema normativo y um enunciado descriptivo de un
caso, se deduce el enunciado de uma solución.(ALCHOURRÓN e
BULYGIN, 1975, p. 116).
Concluindo, o sistema normativo tem por escopo solucionar casos concretos, na
visão dos autores citados a norma jurídica, em contato com a situação fática concreta,
estaria apta a estabelecer a dedução de uma solução adequada. No presente ensaio,
pretende-se estabelecer como se dá o diálogo entre as diversas normas constitucionais
para se estabelecer essa dedução.
3 A aplicação do conceito de algoritmo a outras ciências
Não é de hoje que se discute, em diversos outros ramos da ciência, uma
aproximação epistemológica com a teoria dos algoritmos, além da ciência da
computação.
Inspirado nas ciências biológicas, especialmente na Biologia Evolutiva, John
Henry Holland concebeu os algoritmos genéticos:
Genetic algorithms were developed by Holand in 1975 as a tool to find
solutions of optimization problems in poorly understood large spaces. They
are based on the genetic processes of biological organisms, especially on the
principle of natural selection that hás become famous as “survival of the
fittest” since the publishing of “The origin of Species” by Charles
Darwin(DAWID, 1996, p. 37).
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
Nesse sentido, os algoritmos genéticos têm larga aplicação na consecução de
soluções cada vez melhores, otimizadas, evolutivas, para problemas de grande
amplitude e de variáveis pouco conhecidas.
A lógica dos algoritmos genéticos é partir das soluções possíveis de um problema
complexo, selecionando-se computacionalmente as melhores, estas formam uma
geração, cujos melhores exemplares serão novamente combinados, numa tentativa
evolutiva de encontrar a solução mais adequada.
Um exemplo clássico de desafio solucionável através de algoritmo genético é o
caso do caixeiro viajante, no inglês The Traveling-Salesman Problem - TSP(MORAIS,
2010, p. 7).
Imagine-se que um caixeiro viajante esteja em Topeka, capital do Kansas, bem no
centro dos Estados Unidos, e tenha que distribuir seus produtos nas outras 49 capitais.
Como definir a ordem das cidades a serem visitadas para que ele tome o menor caminho
possível?
Sem maiores rigores matemáticos, o número de possibilidades seria definido pelo
fatorial de 49, pois este é o número de possibilidades relativo a primeira cidade visitada.
Assim, o cálculo das opções de itinerário define-se pelo produto de 49 x 48 x 47 x 46 x
45 x ... x 4 x 3 x 2 x 1.
Aparentemente singelo, mas surpreendente como a recompensa pedida pelo
inventor do jogo de xadrez...
O
resultado,
no
entanto,
assusta,
sendo
superior
a
608.000.000.000.000.000.000.000.000(seiscentos e oito setilhões) o número de trajetos
possíveis.
Levando-se um segundo para calcular cada percurso, a demora seria de
608.000.000.000.000.000.000.000.000 para calcular todos.
Considerando
que
uma
hora
tem
3.600
segundos,
se
gastaria
168.888.000.000.000.000.000.000 horas. Como um dia tem 24 horas, dividindo-se por
24, se teria 7.027.000.000.000.000.000.000 dias. Dividindo-se a quantia por 365, se
contaria 19.252.000.000.000.000.000 anos. Considerando-se que o universo tem 13
bilhões de anos, dividindo-se o quociente por 13 bilhões, finalmente se chegaria ao
tempo de 1.480.923.000 de vezes a idade do universo para realizar o cálculo das
possibilidades de trajetória do nosso caixeiro viajante.
O enigma citado vem intrigando os matemáticos há tempos e sua solução tornouse anelo de cientistas da administração e logística.
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
De outro lado, outras ciências também se confrontam com o problema, sendo um
desafio dialógico da ciência computacional, aplicado à biologia, economia e
administração.
Obviamente, a dificuldade do problema é inversamente proporcional ao número
de cidades que o caixeiro deve visitar, a intenção, contudo, com a demonstração dessa
perplexidade matemática é ilustrar que a teoria dos algoritmos extravasa o âmbito da
ciência da computação, tendo aplicabilidade onde as solução encontrada talvez jamais
encontre demonstração de plena adequabilidade.
O papel do algoritmo, nesse ponto, na sua modalidade genética, é encontrar
respostas cada vez mais certificadas, dialogando umas com as outras, à guisa de uma
interação geracional evolutiva.
4 A aproximação entre a Hermenêutica Constitucional e a Teoria dos Algoritmos:
uma interessante imagem citada por Carnelutti
Como se daria uma aproximação possível entre a Hermenêutica Constitucional e a
Teoria dos Algoritmos?
Francesco Carnelutti, em sua obra As Misérias do Processo Penal, ambienta uma
situação fática da ocorrência de um crime de homicídio por ele testemunhado.
Argutamente salienta a dualidade do homem que praticou o crime, diferenciando
o homem delinqüente, causa do horror do autor, e o posterior homem encarcerado,
sempre digno de compaixão:
O delinquente, até que não seja encarcerado, é uma outra coisa. Confesso que
o delinquente me repugna; em certos casos me causa horror. Para mim, entre
outros, o delito, o grande delito, me aconteceu de vê-lo pelo menos uma vez,
com os meus olhos. Os briguentos pareciam duas panteras; e permaneci
estático, horrorizado; contudo bastou que visse um dos dois homens, que
tinha posto por terra o outro com um golpe mortal, enquanto os policiais,
providencialmente acudiam, metendo-lhe as algemas, para que do horror
nascesse a compaixão. A verdade é que, apenas algemado, a fera se tornou
um homem.(CARNELUTTI, 1995, p. 8-9).
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
Em seguida, ilustra a situação do encarceramento com um quadro do pintor
Mentessi, com o qual foi presenteado pelo seu amigo Carlos Magno, quando deixou a
cátedra da Universidade de Milão:
Carlo Magno, que hoje é um dos melhores advogados em Milão e foi,
naquela universidade, um dos meus discípulos mais queridos, me doou,
precisamente no dia em que eu deixei a cátedra de Milão pela de Roma, um
belíssimo desenho a pastel avermelhado, do pintor Mentessi, que
representava as mãos de um encarcerado presas nas algemas. Mentessi não
tinha certamente pessoal experiência do problema penal; todavia, aquele
desenho demonstra como são proféticas as intuições de um artista: uma das
mãos, a esquerda, tombada para baixo, inerte, em ato de desalento; a outra,
sobreposta, volve a palma para o alto, como aquela do pobre que pede a
caridade. Há toda a psicologia do encarcerado naquele pequeno
quadro(CARNELUTTI, 1995, p. 10).
Afirmou-se, alhures, que um algoritmo é um procedimento que liga um valor ou
conjunto de valores, como dados de entrada, a uma solução, que é um valor ou conjunto
de valores de saída.
Problemas complexos, sejam computacionais, matemáticos ou jurídicos, levam a
soluções múltiplas.
A ocorrência citada, ou seja, a prisão do assassino, enseja o diálogo entre diversas
normas constitucionais veiculadoras de direitos fundamentais, estas, por seu turno,
dialogam e se imbricam com os fundamentos e objetivos fundamentais da Constituição
no desenlace da solução do caso.
Nesse sentido, qual será o destino do nosso delinqüente à luz dessa Hermenêutica
Algoritmica?
Inicialmente, têm-se dois dados ou valores de entrada: a prática material de um
tipo penal, de um lado, e o encarceramento do acusado pelos policiais, de outro.
Ao fim, vislumbram-se dois dados ou valores de saída: a soltura incriminado para
que responda o processo em liberdade, homenageando-se a garantia da presunção de
não-culpabilidade, ou a mantença da custódia processual, atentando-se para o direito
fundamental da segurança pública.
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
Na teoria dos algoritmos, como falado, entre os dados de entrada e saída há o
método, o procedimento, o algoritmo propriamente dito, que liga os valores iniciais à
solução adequada.
O Direito e a Hermenêutica Constitucional, como obras do gênio humano,
admitirão múltiplas soluções para o caso. Por esta pretensa Hermenêutica Algoritmica, a
resposta, ou respostas, advém de uma composição dialética entre os direitos
fundamentais que se embatem e os fundamentos e objetivos fundamentais da
Constituição.
A Constituição Federal de 1988, em seu art. 2º, I, reza que é objetivo fundamental
da República Federativa do Brasil construir uma sociedade livre, justa e solidária.
De outro lado, o art. 3º, I da Constituição, consagra como fundamento a dignidade
da pessoa humana
Desse modo, uma sociedade livre, justa e solidária, bem como a que prima pela
dignidade da pessoa humana, é aquela que garante, tanto a presunção de nãoculpabilidade ao cidadão, como a que assegura a todos o direito à segurança(art. 6º,
caput).
Seguindo o raciocínio, uma sociedade solidária não poderia permitir a soltura de
um indivíduo de reconhecido, fática e juridicamente, perigoso, daninho ao convívio
social.
Do mesmo modo, manter no cárcere um cidadão por tempo excessivo, ou que
tivesse praticado o fato em situação propensa ao reconhecimento de legítima defesa, não
seria paradigmática de uma sociedade livre e justa.
Em qualquer caso, o fundamento da dignidade da pessoa humana asseguraria uma
solução pelo reconhecimento da garantia da ampla defesa que com qualquer das duas
conviveria.
A resolução do imbróglio, em ambas as circunstâncias citadas, implica numa
interpretação concatenada entre os direitos fundamentais conflitantes e os fundamentos
e objetivos da Constituição. Esta é a pretensão dessa Hermenêutica Algoritmica,
propõe-se a interpretação como um procedimento algorítmico, um método dialógico
entre as citadas categorias de normas constitucionais, do qual emergem soluções que
também dialogam, numa direção de conformação do sentido constitucional ao caso
concreto.
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
5 Hermenêutica Algoritmica em dois casos analisados pelo Supremo Tribunal
Federal
Sinteticamente, a interpretação algorítmica seria, então, a busca de uma solução
otimizada num determinado caso concreto através do diálogo entre os direitos
fundamentais em conflito e os objetivos e fundamentos insertos na Carta Constitucional.
Dois casos recentemente analisados pela Suprema Corte ilustram a aplicação
dessa hermenêutica.
O primeiro é o veiculado na Ação Direta de Inconstitucionalidade Nº 3510/DF,
onde se questiona a constitucionalidade do art. 5º da Lei Nº 11.105/05(Lei de
Biossegurança), permissivo legal que possibilita as pesquisas com células-tronco
embrionárias.
Em suma, a discussão girava em torno de suposta violação do direito à vida do
embrião seria violado pela utilização dos mesmos nas referidas pesquisas científicas.
Desse modo, confrontavam-se o direito à vida do embrião, com o direito à saúde
dos beneficiados com os avanços gerados pelos novos estudos(art. 6º), bem como os
direitos fundamentais da autonomia da vontade, ao planejamento familiar e à
maternidade, de titularidade do casal e da genitora(art. 226), além do direito à liberdade
de expressão científica(art. 5º, IX e 218).
Assim, esses seriam os dados de entrada do nosso algoritmo.
Os dados de saída apontam duas soluções: na primeira, a utilização das célulastronco constituiria uma violação do direito à vida e a norma seria inconstitucional; na
segunda, inexistiria a dita afronta, pois as pesquisas seriam uma forma de promover
uma sociedade mais solidária, amainando sofrimentos humanos, salvando vidas,
outrossim, o embrião, mesmo tendo proteção jurídica, não seria considerado “vida” na
expressão constitucional do termo.
O Supremo Tribunal Federal, por maioria, acolheu a segunda solução.
Percebe-se claramente o reconhecimento pela Corte do choque entre os direitos
fundamentais e do diálogo realizado com o objetivo de construir uma sociedade
fraterna:
A escolha feita pela Lei de Biossegurança não significou um desprezo ou
desapreço pelo embrião "in vitro", porém uma mais firme disposição para
encurtar caminhos que possam levar à superação do infortúnio alheio. Isto no
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
âmbito de um ordenamento constitucional que desde o seu preâmbulo
qualifica "a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a
igualdade e a justiça" como valores supremos de uma sociedade mais que
tudo "fraterna". O que já significa incorporar o advento do constitucionalismo
fraternal às relações humanas, a traduzir verdadeira comunhão de vida ou
vida social em clima de transbordante solidariedade em benefício da saúde e
contra eventuais tramas do acaso e até dos golpes da própria natureza.
Contexto de solidária, compassiva ou fraternal legalidade que, longe de
traduzir desprezo ou desrespeito aos congelados embriões "in vitro", significa
apreço e reverência a criaturas humanas que sofrem e se desesperam.
Inexistência de ofensas ao direito à vida e da dignidade da pessoa humana,
pois a pesquisa com células-tronco embrionárias (inviáveis biologicamente
ou para os fins a que se destinam) significa a celebração solidária da vida e
alento aos que se acham à margem do exercício concreto e inalienável dos
direitos à felicidade e do viver com dignidade(BRASIL, 2008).
Vê-se, portanto, que, procedendo ao diálogo dos direitos fundamentais
conflitantes com o objetivo de construir uma sociedade solidária, chegou o Pretório
Excelso à solução considerada por ele mais adequada, mantendo-se a validade da norma
atacada e a permissão para continuidade das pesquisas científicas em células-tronco
embrionárias.
Sendo direito de todos e dever do Estado, a Lei de Biossegurança permitiu o
diálogo entre o direito e a ciência, mormente na atual laicidade do Estado Brasileiro:
Saúde que é "direito de todos e dever do Estado" (caput do art. 196 da
Constituição), garantida mediante ações e serviços de pronto qualificados
como "de relevância pública" (parte inicial do art. 197). A Lei de
Biossegurança como instrumento de encontro do direito à saúde com a
própria Ciência. No caso, ciências médicas, biológicas e correlatas,
diretamente postas pela Constituição a serviço desse bem inestimável do
indivíduo que é a sua própria higidez físico-mental(BRASIL, 2008).
De outro lado, ressaltou a inexistência do dever de efetuar o aproveitamento
reprodutivo de todos os embriões formados, corolário do direito ao planejamento
familiar e à paternidade responsável, sempre em diálogo com o fundamento da
dignidade da pessoa humana:
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
A decisão por uma descendência ou filiação exprime um tipo de autonomia
de vontade individual que a própria Constituição rotula como "direito ao
planejamento familiar", fundamentado este nos princípios igualmente
constitucionais da "dignidade da pessoa humana" e da "paternidade
responsável". A conjugação constitucional da laicidade do Estado e do
primado da autonomia da vontade privada, nas palavras do Ministro Joaquim
Barbosa. A opção do casal por um processo "in vitro" de fecundação artificial
de óvulos é implícito direito de idêntica matriz constitucional, sem acarretar
para esse casal o dever jurídico do aproveitamento reprodutivo de todos os
embriões eventualmente formados e que se revelem geneticamente viáveis. O
princípio fundamental da dignidade da pessoa humana opera por modo
binário, o que propicia a base constitucional para um casal de adultos recorrer
a técnicas de reprodução assistida que incluam a fertilização artificial ou "in
vitro". De uma parte, para aquinhoar o casal com o direito público subjetivo à
"liberdade" (preâmbulo da Constituição e seu art. 5º), aqui entendida como
autonomia de vontade. De outra banda, para contemplar os porvindouros
componentes da unidade familiar, se por eles optar o casal, com planejadas
condições de bem-estar e assistência físico-afetiva (art. 226 da CF). Mais
exatamente, planejamento familiar que, "fruto da livre decisão do casal", é
"fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade
responsável" (§ 7º desse emblemático artigo constitucional de nº 226). O
recurso a processos de fertilização artificial não implica o dever da tentativa
de nidação no corpo da mulher de todos os óvulos afinal fecundados. Não
existe tal dever (inciso II do art. 5º da CF), porque incompatível com o
próprio instituto do "planejamento familiar" na citada perspectiva da
"paternidade responsável"(BRASIL, 2008).
Finalmente, restou concluída a compatibilidade da Lei de Biossegurança como
expressão válida e constitucional do direito fundamental de expressão científica,
destinado ao melhoramento da vida humana, expressão do postulado da dignidade da
pessoa humana:
A compatibilização da liberdade de expressão científica com os deveres
estatais de propulsão das ciências que sirvam à melhoria das condições de
vida para todos os indivíduos. Assegurada, sempre, a dignidade da pessoa
humana, a Constituição Federal dota o bloco normativo posto no art. 5º da
Lei 11.105/2005 do necessário fundamento para dele afastar qualquer
invalidade jurídica(BRASIL, 2008).
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O segundo caso é o do Habeas Corpus Nº 82.424/RS, chamado caso Siegfried
Ellwanger.
Nessa ação penal, a Suprema Corte debruçou-se sobre a publicação de um livro
com ideias antissemitas e se tal fato constituiria o crime de racismo previsto no art. 20
da Lei Nº 7.716/89.
De acordo com o paciente, como os judeus não se constituiriam em uma raça seria
impossível a aplicação ao fato da cláusula constitucional da imprescritibilidade prevista
no art. 5º. Ademais, estaria o autor da obra albergado pelo direito fundamental da
liberdade de expressão, também de índole constitucional.
No julgamento em análise estão em contradição, portanto, o direito de liberdade
de expressão, de um lado, que teria o condão de afastar a pretensão punitiva do Estado
e, remotamente, a segurança da sociedade, em seu sentido mais amplo, de outro. Sendo
estes os dados de entrada, nesta concepção algorítmica.
Da mesma forma, duas seriam as soluções ou dados de saída possíveis, o prestígio
da liberdade de expressão, mesmo com a divulgação manifesta de ideias de cunho
nazista, ou a segurança da sociedade, salvaguardando o direito de punir estatal, de outro.
A Suprema Corte, de modo similar ao caso anteriormente analisado, passou a
efetuar o balanço interpretativo entre os dois direitos constitucionalmente previstos que
estão em confronto, com diversos objetivos e fundamentos últimos da Constituição
Federal.
Concluiu que a liberdades públicas, entre elas a liberdade de expressão, não tem
caráter absoluto, não podendo servir como subterfúgio para práticas ilícitas como a
incitação ao racismo.
Asseverou o Supremo Tribunal Federal a prevalência dos fundamentos da
dignidade da pessoa humana e dos direitos humanos:
13. Liberdade de expressão. Garantia constitucional que não se tem como
absoluta. Limites morais e jurídicos. O direito à livre expressão não pode
abrigar, em sua abrangência, manifestações de conteúdo imoral que implicam
ilicitude penal. 14. As liberdades públicas não são incondicionais, por isso
devem ser exercidas de maneira harmônica, observados os limites definidos
na própria Constituição Federal (CF, artigo 5º, § 2º, primeira parte). O
preceito fundamental de liberdade de expressão não consagra o "direito à
incitação ao racismo", dado que um direito individual não pode constituir-se
em salvaguarda de condutas ilícitas, como sucede com os delitos contra a
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honra. Prevalência dos princípios da dignidade da pessoa humana e da
igualdade jurídica. 15. "Existe um nexo estreito entre a imprescritibilidade,
este tempo jurídico que se escoa sem encontrar termo, e a memória, apelo do
passado à disposição dos vivos, triunfo da lembrança sobre o esquecimento".
No estado de direito democrático devem ser intransigentemente respeitados
os princípios que garantem a prevalência dos direitos humanos. Jamais
podem se apagar da memória dos povos que se pretendam justos os atos
repulsivos do passado que permitiram e incentivaram o ódio entre iguais por
motivos raciais de torpeza inominável(BRASIL, 2003).
Afirmou-se o conteúdo multidisciplinar de raça humana, mesmo que, do ponto de vista
biológico, inexista diferença, de modo que o conceito de racismo deve levar em conta elementos
diversos, como sociológicos, biológicos, etnológicos, etimológicos e antropológicos:
8. Racismo. Abrangência. Compatibilização dos conceitos etimológicos,
etnológicos, sociológicos, antropológicos ou biológicos, de modo a construir
a definição jurídico-constitucional do termo. Interpretação teleológica e
sistêmica da Constituição Federal, conjugando fatores e circunstâncias
históricas, políticas e sociais que regeram sua formação e aplicação, a fim de
obter-se o real sentido e alcance da norma(BRASIL, 2003).
Ademais, no plano internacional, a República Federativa do Brasil obrigou-se a
reprimir tais condutas, concluindo-se que a prevalência dos direitos humanos leva à
conclusão da supremacia de tais direitos sobre o direito à liberdade de expressão:
6. Adesão do Brasil a tratados e acordos multilaterais, que energicamente
repudiam quaisquer discriminações raciais, aí compreendidas as distinções
entre os homens por restrições ou preferências oriundas de raça, cor, credo,
descendência ou origem nacional ou étnica, inspiradas na pretensa
superioridade de um povo sobre outro, de que são exemplos a xenofobia,
"negrofobia", "islamafobia" e o anti-semitismo(BRASIL, 2003).
Vê-se, portanto, que, não sendo os direitos fundamentais fins em si mesmos,
estando cotidianamente em conflito nos casos concretos, que sua interpretação deve ser
compatibilizada, finalmente, com os fundamentos e objetivos mais caros da
constituição, no litígio em debate apontou a Suprema Corte a prevalência dos direitos
humanos e a dignidade da pessoa humana, além da pacificação social, objetivando a
construção de uma sociedade livre, justa e solidária, além da promoção do bem de
292
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
todos, sem discriminação de qualquer natureza. Sublinhando a intolerabilidade de tais
atitudes racistas:
Fundamento do núcleo do pensamento do nacional-socialismo de que os
judeus e os arianos formam raças distintas. Os primeiros seriam raça inferior,
nefasta e infecta, características suficientes para justificar a segregação e o
extermínio: inconciliabilidade com os padrões éticos e morais definidos na
Carta Política do Brasil e do mundo contemporâneo, sob os quais se ergue e
se harmoniza o estado democrático. Estigmas que por si só evidenciam crime
de racismo. Concepção atentatória dos princípios nos quais se erige e se
organiza a sociedade humana, baseada na respeitabilidade e dignidade do ser
humano e de sua pacífica convivência no meio social. Condutas e evocações
aéticas e imorais que implicam repulsiva ação estatal por se revestirem de
densa intolerabilidade, de sorte a afrontar o ordenamento infraconstitucional
e constitucional do País(BRASIL, 2003).
Como visto, na decisão em estudo, o Pretório Excelso novamente fez dialogar
direitos fundamentais em conflito com os objetivos e fundamentos da constituição, de
forma que a solução encontrada lhe pareceu mais adequada.
A ciência da computação também costuma conceituar algoritmo como uma
estratégia matemática ou esquema computacional.
As técnicas de otimização em computação também são dialógicas, não atingem
sua finalidade senão com a busca permanente de soluções cada vez mais adequadas, que
não podem prescindir de avaliações e procedimentos interpretativos, na procura
gradativa pela saída desejada:
In a different sense, simultaneous optimization techniques solve a problem by
determining the optimal value of all variables at the same time. Some of these
techniques, such as gradient methods and linear programming, employ
iterative algorithms, which converge to the desired optimum conditions. All
the variables are evaluated during each iteration, even though none of these
variables main attain its optimal value. Systematic procedures are then
applied
to
sucessive
iterations
to
move
closer
to
the
desired
optimum.(GOTTFRIED et al, 1973, p. 21).
293
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
O Supremo Tribunal Federal, dando sua resposta jurisdicional aos hard cases
citados, efetua uma interpretação que não olvida do contato hermenêutico entre as
diversas variáveis jurídicas em análise.
A solução jurídica otimizada encontra guarida no procedimento de enfrentamento
da própria solução com o telos da Carta Magna, seus fundamentos e objetivos.
Em tudo similar a uma concatenação algorítmica entre problema e solução,
advindo esta de um diálogo procedimental, mas não procedimentalista, entre os
postulados e bens mais valiosos da ordem jurídica nacional.
Essa é a visão algorítmica da hermenêutica constitucional, um procedimento
dialógico entre direitos fundamentais conflitantes e os objetivos e fundamentos da Carta
Magna, de modo a prevalecer a solução mais consetânea com estes postulados primeiros
da ordem constitucional.
6 Direitos implícitos e Hermenêutica Algorítmica
No presente momento apresenta-se outra questão, da mesma forma que, nessa
interpretação algorítmica seria possível encontrar a solução mais adequada a um
determinado caso concreto por meio do mencionado diálogo entre direitos fundamentais
em choque e fundamentos e objetivos da Constituição, seria também possível o
reconhecimento de direitos implícitos na Carta Magna?
Para ambientar melhor a pergunta, é salutar a menção ao interessante Projeto de
Emenda Constitucional (PEC) Nº 19/2012 de autoria do Senador Cristovam Buarque.
O Projeto tenciona alterar o art. 6º da Lei Maior para incluir o direito à busca da
felicidade como direito social. O dispositivo passaria a vigorar com a seguinte redação:
Art. 6º São direitos sociais, essenciais à busca da felicidade, a educação, a
saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a
previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos
desamparados, na forma desta Constituição(BRASIL, 2012).
A inspiração é estadunidense, já que tal direito já encontrava previsão na
Declaração de Direitos da Virgínia de 1776.
Hans Kelsen, inspirado na filosofia de Platão, já especulava sobre a felicidade em
seus escritos, comparando o anseio do homem pela felicidade com o anseio por justiça:
294
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
O anseio por justiça é o eterno anseio do homem por felicidade. Não podendo
encontrá-la como indivíduo isolado, procura essa felicidade dentro da
sociedade. Justiça é felicidade social, é a felicidade garantida por uma ordem
social. Nesse sentido Platão identifica justiça à felicidade, quando afirma que
só o justo é feliz e o injusto, infeliz. (Kelsen, 2001, p. 2).
Caso positivado na Constituição Brasileira, o direito à busca da felicidade poderia
desempenhar tríplice função:
Primeiro, de vetor axiológico, sendo a felicidade um valor constitucionalmente
protegido e buscado pelos indivíduos e pela sociedade.
Segundo, de vetor interpretativo, pois a legislação infraconstitucional passaria a
ter débito de observância aos parâmetros de felicidade esperados pela comunidade
nacional.
Terceiro, de elemento psicológico, de modo a persuadir os súditos da constituição
de que estes são livres para buscar a felicidade, pelas liberdades, pelo trabalho, pelo
reconhecimento da igualdade dos modos de vida e comportamento, etc.
A pergunta inicial remanesce, seria possível, através desta hermenêutica
algorítmica, o reconhecimento de direitos constitucionais implícitos? À qual se alia
outra, a positivação do direito à busca da felicidade seria a única forma de reconhecer a
sua existência jurídica?
Responde-se negativamente à última questão, pois o Supremo Tribunal Federal já
teve a oportunidade de afirmar tal direito em alguns de seus julgados.
Com efeito, no julgamento do Agravo Regimental no Recurso Extraordinário Nº
477554/MG, o Supremo Tribunal Federal reconheceu o direito à busca da felicidade
como princípio implícito, eis um excerto da ementa do julgado:
O AFETO COMO VALOR JURÍDICO IMPREGNADO DE NATUREZA
CONSTITUCIONAL: A VALORIZAÇÃO DESSE NOVO PARADIGMA
COMO NÚCLEO CONFORMADOR DO CONCEITO DE FAMÍLIA - O
DIREITO À BUSCA DA FELICIDADE, VERDADEIRO POSTULADO
CONSTITUCIONAL IMPLÍCITO E EXPRESSÃO DE UMA IDÉIAFORÇA QUE DERIVA DO PRINCÍPIO DA ESSENCIAL DIGNIDADE
DA PESSOA HUMANA(BRASIL, 2011b).
295
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
Ao passo que se responde afirmativamente à primeira, pois tal reconhecimento é
possível nesse diálogo permanente proposto entre direitos fundamentais e objetivos e/ou
fundamentos da Constituição.
Aqui o diálogo procedimental seria inverso, dos fundamentos e objetivos da
constituição se chegaria ao direito fundamental implícito que se enquadraria na situação
fática concreta.
Nesse sentido, vê-se que o diálogo não é unilinear, tem mão dupla, podendo tomar
como ponto de partido os direitos fundamentais, ou o próprio objetivo e fundamento da
Constituição.
Foi assim que procedeu a Suprema Corte no julgamento da Arguição de
Descumprimento de Preceito Fundamental Nº 132/RJ, onde se reconheceu a
possibilidade da união civil entre pessoas do mesmo sexo ser reconhecida como
entidade familiar.
Um dos argumentos centrais para o posicionamento da Suprema Corte foi a
proteção do direito à preferência sexual como corolário do princípio da dignidade da
pessoa humana, proclamando também o direito fundamental implícito à busca da
felicidade:
Reconhecimento do direito à preferência sexual como direta emanação do
princípio da “dignidade da pessoa humana”: direito a auto-estima no mais
elevado
ponto
da
consciência
do
indivíduo.
Direito
à
busca
da felicidade. Salto normativo da proibição do preconceito para a
proclamação do direito à liberdade sexual. O concreto uso da sexualidade faz
parte da autonomia da vontade das pessoas naturais. Empírico uso da
sexualidade nos planos da intimidade e da privacidade constitucionalmente
tuteladas(BRASIL, 2011a).
No caso concreto, os direitos fundamentais de autodeterminação, de preferência e
liberdade sexual, além do também implícito direito à auto-estima, em diálogo com o
fundamento da dignidade da pessoa humana, levaram a Corte Suprema a reconhecer
como solução mais adequada ao caso concreto o reconhecimento como entidade
familiar das uniões civis entre pessoas do mesmo sexo.
Nesse
olhar
constitucional
algorítmico,
logrou-se
reconhecer
direitos
fundamentais implícitos na constituição, como o direito à auto-estima e o direito à busca
296
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
da felicidade, conseqüentes lógicos da positivação do postulado da dignidade da pessoa
humana.
Não é sem razão que José Afonso da Silva reconhece o fundamento da dignidade
da pessoa humana como o fator atrativo de todos os demais direitos, inclusive o direito
à vida:
é um valor supremo que atrai o conteúdo de todos os direitos fundamentais
do homem, desde o direito à vida (...) Daí decorre que a ordem econômica há
de ter por fim assegurar a todos existência digna (art. 170), a ordem social
visará a realização da justiça social (art. 193), a educação, o desenvolvimento
da pessoa e seu preparo para o exercício da cidadania (art. 205) etc., não
como meros enunciados formais, mas como indicadores do conteúdo
normativo eficaz da dignidade da pessoa humana.(SILVA, 2007, p. 105).
Especialmente em relação ao direito à busca da felicidade se põem algumas
questões relevantes: seria possível uma vida digna que prescindisse da felicidade? Uma
sociedade livre, justa e solidária poderia conviver com omissões relativas a esse direito?
O direito à busca da felicidade assim se tornaria o postulado fundamental, alheio e
soberano a todos os outros?
A hermenêutica algorítmica que aqui se propõe não pretende hierarquizar direitos,
princípios, objetivos ou quaisquer outros postulados constitucionais.
A felicidade orgástica de um pedófilo, por exemplo, não se coaduna, nesse
diálogo algoritmo com outros direitos fundamentais, nem com os objetivos e
fundamentos da Constituição. Assim, o dado de saída, nessa interpretação, jamais pode
conduzir à sua observância.
Até mesmo a dignidade da pessoa humana, no seu conceber mais monolítico, o
direito de permanecer vivo, pode sucumbir diante de outras normas constitucionais,
caso emblemático da guerra declarada.
Imagine-se, em outro caso, que um grupo fanático anônimo paraguaio, sem
ligação com o governo do seu país, ressentido com os horrores da Guerra do Paraguai,
resolvesse atacar a nossa capital federal.
Não há como declarar a guerra e os extremistas estão em uma aeronave há poucos
quilômetros do Distrito Federal, qual seria a saída jurídica para as forças armadas
brasileiras abaterem o avião, impingindo, por conseqüência, a pena de morte aos ditos
facínoras?
297
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
Nesse caso, as soluções possíveis seriam duas.
Poder-se-ia prestigiar a dignidade da pessoa humana, relativa aos invasores e
deixá-los atacar o coração político da nação.
Contudo, sobrelevando-se a soberania nacional, fundamento previsto no art. 1º, I
da Constituição Federal, dialogando com o direito à segurança e à vida dos
componentes de toda uma coletividade potencialmente atingida, por uma injunção até
mesmo de um viés coletivo da dignidade da pessoa humana, a solução otimizada pelo
“algoritmo jurídico” seria pelo abate da nave inimiga.
Felizmente, nossa legislação infraconstitucional já nos brindou com uma saída
legal, prevista no art. 303, §2º do Código Brasileiro de Aeronáutica, que autoriza o
abate de aeronaves hostis, mediante autorização do Presidente da República ou
autoridade por ele delegada, dispositivo que merece citação:
Art. 303. A aeronave poderá ser detida por autoridades aeronáuticas,
fazendárias ou da Polícia Federal, nos seguintes casos: I - se voar no espaço
aéreo brasileiro com infração das convenções ou atos internacionais, ou das
autorizações para tal fim; II - se, entrando no espaço aéreo brasileiro,
desrespeitar a obrigatoriedade de pouso em aeroporto internacional; III - para
exame dos certificados e outros documentos indispensáveis; IV - para
verificação de sua carga no caso de restrição legal (artigo 21) ou de porte
proibido de equipamento (parágrafo único do artigo 21); V - para
averiguação de ilícito.
§ 1° A autoridade aeronáutica poderá empregar os meios que julgar
necessários para compelir a aeronave a efetuar o pouso no aeródromo que lhe
for indicado.
§ 2° Esgotados os meios coercitivos legalmente previstos, a aeronave será
classificada como hostil, ficando sujeita à medida de destruição, nos casos
dos incisos do caput deste artigo e após autorização do Presidente da
República ou autoridade por ele delegada.(BRASIL, 1986).
Assim, até mesmo a vida tem que dialogar com os outros direitos fundamentais e
demais postulados da Constituição Federal.
Considerações finais
O objetivo do presente trabalho foi apresentar uma perspectiva de hermenêutica
constitucional algorítmica, onde há primazia do diálogo entre direitos fundamentais
298
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
contrastantes e os fundamentos e objetivos primeiros da constituição, com a finalidade
buscar soluções otimizadas para casos concretos.
Desenhou-se um procedimento análogo ao dos algoritmos que tomam dados
iniciais de um problema e, por um procedimento dialógico, encontram as soluções mais
adequadas para o mesmo.
Salientou-se que a teoria dos algoritmos tem plena aplicabilidade em outros ramos
da ciência, fora da computação.
Conclui-se que o Supremo Tribunal Federal, ao visualizar um problema jurídico e
chegar à sua solução através do diálogo entre normas constitucionais realiza uma
interpretação análoga.
Não se pretende, como alhures afirmado, uma decodificação matemática, rígida e
hermética da constituição, mas uma aproximação dialogada com outras ciências,
especialmente a aqui tratada, que extravasa o âmbito das ciências sociais.
Foi empreendida, por fim, uma compreensão desse contato interpretativo cada vez
mais estreito realizado pela Suprema Corte entre os mais importantes postulados
positivados na Constituição Federal.
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299
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
_______. Supremo Tribunal Federal. Arguição de Descumprimento de Preceito
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132/RJ.
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300
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
HERMENÊUTICA JURÍDICA CRÍTICA E CRÍTICA LATINO AMERICANA:
REPENSANDO UM NOVO MARCO TEÓRICO
(Critical Juridical Hermeneutics and Latin-American critic: elements for a new theoric mark)
Ivone Fernandes Morcilo Lixa1
“Lhe vou confessar miúdo. Eu sei que é verdade:
não somos nós que estamos a andar. É a estrada”
( Mia Couto. “Terra Sonâmbula”)
Resumo.
Hermenêutica relacionada a um saber específico acerca da “compreensão do sentido” e
sua relação com a interpretação, no contexto europeu moderno, adquire nova
significação, reinventando-se como Teoria Geral de Interpretação sob o marco do
paradigma tradicional de ciência. No Direito, indo na mesma direção do modelo de
racionalidade dominante, é absorvida a concepção instrumental de conhecimento. Em
fins do século XX, os claros sinais de esgotamento do modelo paradigmático de ciência
moderna e de projeto civilizatório, vão sendo construídos novos e difusos discursos que
apontam para a emergência de modelos que se autodenominam como “críticos”. É neste
contexto que o saber subjugado e subalterno, o colonial e colonizado, ganha relevância.
Poscolonialismo, mais que uma teoria acabada é uma atitude intelectual de
reconhecimento de que a compreensão do Direito é um processo múltiplo e plural que
implica em nova perspectiva hermenêutica.
Palavras Chave: Hermenêutica Jurídica; Crítica; Hermenêutica Jurídica Crítica;
Poscolonialismo.
ABSTRACT
Hermeneutics related to a specific knowledge about the “comprehension of the
meaning” and its relation with the interpretation, however being a constant intellectual
unrest though the history of occidental thinking, in the modern European context, gets a
1
Doutora em Direito Público pela Universidad Pablo de Olavide (Sevilla - UFSC). Mestre em Teoria do
Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Professora do Curso de Direito da
Universidade Regional de Blumenau (FURB).
301
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
new meaning, recreating itself a General Theory of Interpretation over the mark of the
modern paradigm of traditional science. On Law field, going on the same direction of
the model of dominant rationality, is absorbed the instrumental conception of
knowledge. In the science and the civilizing project, are being constructed new and
diffuse discuss that point to the emergence of new models that describe themselves as
“critical". It is on this context that the subdued and subaltern, the colonial and
colonized, gets relevance. Post colonial, more than an ended theory is an intellectual
attitude of recognition that the comprehension of the Justice is a multiple and plural
process, which implies on a new hermeneutic perspective.
Keywords: Juridical Hermeneutics; Criticism; Critical Juridical Hermeneutics; Post
colonialism
I.Hermenêutica Jurídica no marco da tradição: limites e impossibilidades.
O problema da compreensão do sentido e sua relação com a interpretação,
ou seja, as questões que envolvem a ação transformativa e comunicativa (o ato de
explicar e traduzir, o de mediar a compreensão) – oposto da mera contemplação – bem
como os pressupostos e fundamentos de sua universalidade, ao longo da história do
pensamento ocidental foi sendo definindo como “Hermenêutica”. Entretanto, somente
no contexto europeu dos séculos XVIII e XIX chega a sua dimensão mais autêntica
quando, então, abandona seu caráter meramente auxiliar (um conjunto de regras e
artifícios de explicação de textos) e desloca sua preocupação para duas dimensões da
compreensão humana: o fato de compreender um texto ou discurso e ao fenômeno da
compreensão em seu sentido existencial.
Embora a reflexão acerca da “interpretação” enquanto “arte” remonte a um
passado muito longínquo, o termo “hermenêutica”, desde seu resgate no século XVII,
passou a ter uma intenção de natureza técnica normativa, restringindo-se, até meados do
século XX, à tarefa de fornecer procedimentos metodológicos adequados aos distintos
campos do conhecimento relacionados a interpretação de textos ou discursos de forma a
eliminar possíveis controvérsias.
Resumidamente, é possível construir a história do pensamento hermenêutico
que se desenvolve desde a Antiguidade como ars interpretandi, até quando, por força
do movimento luterano, ocorre uma sistematização do que eram até então regras
302
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
esparsas de interpretação, tornando-se com Friedrich Schleiermacher (1768-1834) uma
doutrina universal posteriormente ampliada por Wilhelm Dilthey (1833-1911) como
metodologia das “ciências do espírito” (der Geisteswissenschaften). No século XX
Martin Heidegger (1889-1976) ancora a questão hermenêutica no terreno fundamental
da facticidade humana que se amplia na linguagem e experiência histórica com HansGeorg Gadamer (1900-2002). É desta hermenêutica, reinventada e ampliada para a
universalidade do fenômeno compreensivo, que resultaram elaborações teóricas críticas
(da ideologia, da teologia, da literatura, da epistemologia e da filosofia) e assim afastase definitivamente daquela “protohermenêutica originária” de caráter estritamente
prático.
A incorporação dos fundamentos hermenêuticos no campo jurídico e suas
particularidades se estabelecem e adquirem autonomia no contexto da modernidade,
quando, uma soma de transformações sociais e epistemológicas dá lugar a um novo
paradigma de ciência e de método jurídico. O modelo de ciência que vai presidir o
direito moderno (racional e universal) aliado a consolidação das novas formas políticas
resultantes da consolidação do Estado provocam uma renovação no método
hermenêutico na esfera jurídica.
De um lado, o auge da filologia obriga um maior cuidado com o significado
das palavras expressas nos textos e de outro, o desenvolvimento de uma nova lógica
jurídica que acredita ser possível descobrir o sentido objetivo da letra da lei no
“sistema” normativo positivado conferem ao jurista os elementos para justificar e
racionalizar sua tarefa: a de reconhecer e declarar o sentido objetivo da lei.
No entender de Manuel Calvo García podem ser destacadas três
consequências com o processo de estatização da lei: a) o direito deixa de ser aquele
elemento neutro que se organizava a partir de uma necessidade interior, oculta, derivada
de sua condição como verbum Dei ou de uma “razão” transformada em direito; b) se
rompe com uma sociedade “juscêntrica” que fazia do descobrimento da lei pressuposto
da organização do poder e se configurava aos juristas como estamento privilegiado na
organização política da sociedade medieval que estaria à mercê de sua intervenção tanto
no descobrimento como na aplicação da lei; c) começam a serem definidos os
pressupostos do positivismo jurídico. La ley, producto de um poder terreno, se
recalifica como objeto y hace posible la perspectiva de la ciencia en el âmbito jurídico
al desviar, en parte, las energias dogmáticas que consumia el esfuerzo de los doctores
303
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
en la creación del derecho. E, portanto, o “direito criado” enfrenta os pressupostos de
uma autoridade legisladora sedimentada nas manifestações dos doutos juristas2.
Dessa maneira, na medida em que a autoridade quase mágica dos juristas
vai perdendo terreno frente às novas formas de exercício de poder do Estado, o direito
deixa de ser um “direito de especialistas” no sentido estrito. Portanto, a legitimidade
hermenêutica da glosa e do comentário sofria uma dupla perda: a da origem do texto
legal e da negação da obscuridade de seu significado. Até então, a autoridade quase
divina de um texto legal e a opinião dos doutores garantia as exigências de segurança e
certeza na fixação de um sentido objetivo da lei. Era necessário fundar uma nova
legitimidade ao “velho” direito. Progressivamente o poder político é secularizado e se
positiva o “velho” direito e as novas estruturas de poder culmina com um complexo
processo de sistematização do direito que o coloca como objeto científico, como algo
autônomo, frente ao intérprete.
Definitivamente, como destaca F. Wiecker, a ciência jurídica deixa de ser
uma dogmática autoritária para tornar-se uma dogmática racionalista3. O mesmo
racionalismo que possibilita descobrir os princípios básicos de uma legislação perfeita
permite supor que o intérprete possa atingir hermeneuticamente a essa mesma legislação
através de procedimentos lógicos formais. Assim, firma-se a crença de que eliminados
os obstáculos lógicos “o sentido” da lei será imediatamente a solução do caso concreto,
uma vez que a “verdade” também tornar-se um valor puramente lógico. Salta aos olhos
os postulados racionalistas de coerência e plenitude, bem como a noção de sistema,
assumidos pela metodologia jurídica.
Desta maneira, as novas concepções racionalistas consolidam os postulados
de uma interpretação sistemática do ordenamento jurídico e resolver qualquer
hipoteticamente reduzido a um número de axiomas abstratos. É essa exatamente a
tradição do método jurídico, que segue até os dias de hoje, identificando sua
consolidação científica com as teorias positivistas do século XIX.
Na leitura de Lenio L. Streck o modus interpretativo vigente/dominante no
cotidiano dos juristas atualmente ainda sustenta-se em concepções herdadas na tradição
positivista e a busca de sua superação, que em um primeiro momento – chamada pelo
2
GARCÍA, Manuel Calvo. Los fundamentos del método jurídico: una revisión crítica. Madrid: Tcnos,
1994, p. 38
3
WIEACKER, F. Historia del Derecho privado de la Edad Moderna. Trad. F. Fernández Jordán. Madrid:
Aguilar, 1ª Ed.1957, p. 287.
304
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
autor de positivismo primevo resolve o problema da interpretação do direito sob uma
perspectiva sintática.
Neste caso, a simples determinação rigorosa da conexão lógica dos signos
que compõe a “obra sagrada” (Código) seria o suficiente para resolver o
problema da interpretação do direito. Assim, conceitos como o de analogia
e princípios gerais do direito devem ser encarados também nessa
perspectiva de construção de um quadro conceitual rigoroso que
representaria as hipóteses – extremamente excepcionais – de inadequação
dos casos às hipóteses legislativas4.
No segundo momento, entende Streck, define-se o positivismo normativista,
surgindo propostas que aperfeiçoam o “rigor” lógico do cientificismo positivista. Ocorre
uma modificação significativa nas primeiras décadas do século XX, quando o poder
regulatório do Estado e a falência dos modelos sintáticos-semânticos de interpretação
trazem para o primeiro plano o problema da indeterminação do sentido do Direito, que
encontra em Hans Kelsen uma forma de solução dos “desvios” subjetivistas criados
pelas correntes hermenêuticas filiadas as Escolas do Direito Livre e da Jurisprudência
dos Interesses5.
Desde então, superado o positivismo jurídico exegético e firmado o
normativista, criaram-se teses e fundamentos hermenêuticos que entre discussões e
aporias (tipo: voluntas legis versus voluntas legislatoris ou objetivismos versus
subjetivismos) acabam por situar a questão hermenêutica no campo metodológico, que
mais servem como justificativa (álibis teóricos) de legitimação para os resultados que o
intérprete se propõe a alcançar ou/e garantir.
É esta tradição hermenêutica que acabou confinando a tarefa hermenêutica
no campo epistemológico, especialmente metodológico formal, adquirindo status de
instância racional do texto legal de forma a possibilitar a superação das aparentes
contradições da ordem dogmática, “adequando” o significado da norma ao contexto de
sua aplicação. As teorias hermenêuticas de matriz formal legalista, não dando conta, ou
considerando alheio a sua tarefa, elaborar um saber jurídico-normativo adequado a uma
justa compreensão do problema concreto, dirigem todo esforço no sentido de elaborar
4
STRECK, Lenio L. Hermenêutica Jurídica e(m) Crise – uma exploração hermenêutica da construção
do Direito. 10ª Ed., Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2011, p. 120.
5
Idem, p. 120-121.
305
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
“corretos” critérios, cânones ou procedimentos capazes de produzir uma “boa”
interpretação no sentido mais exegético possível. Esta é a hermenêutica jurídica definida
por Castanheira Neves como pura idealidade prescritivo-proposicional manifestada e
subsistente numa intencionalidade lingüístico-sistematicamente significante perante um
mundo a relevar só no modo como esta significante idealidade o pensa; 6 ou seja, tarefa
compreensiva da norma-prescrição fechada em significação e idealidade.
É exatamente sobre esta tradição racionalista formal legalista que se instaura
um discurso crítico de forma difusa e não uniforme a partir da segunda metade do
século XX, quando, desde então, a hermenêutica jurídica vem assumindo um inédito
protagonismo. Particularmente no Brasil o desmonte institucional Estado após a
ditadura militar tornou clara a impossibilidade de sustentação do tradicional discurso
jurídico. O direito moderno, nas palavras de Pierre Legendre, idealizado para propagar o
desejo de submissão através da grande obra do poder que é fazer-se amar7, apenas pôde
realizar este prodígio porque pressupôs uma ciência particular, um saber que constitui a
armação desse amor e camufla com seu texto a prestigitação de uma pura e simples
imposição de adestramento.8 Em nome da ordem e segurança a história do direito em
geral e do pensamento hermenêutico jurídico em especial perpetuou-se uma forma de
poder que manteve ao limite do suportável um regime de crenças esfaceladas frente a
brutal realidade. Um universo que não encontra defensor que poderia definir-se como
feliz, mas tão somente como culpado9.
II. Crítica, Teoria Crítica do Direito e Hermenêutica: inevitável aproximação.
É sobre esta culpa assumida com desejo de reinvenção que no Brasil é
construída uma corrente crítica no direito mais acentuadamente desde meados da década
de 80 quando a realidade brasileira reclamava a reconstrução da ordem democrática. Os
instrumentos de exercício de poder esvaziados pelo fim das verdades racionais que
sustentaram durante séculos as formas de saber e de racionalidade dominantes não
6
CASTANHEIRA NEVES, A. Metodologia jurídica – problemas fundamentais. Coimbra Editora, 1993,
p. 129.
7
LEGENDRE, Pierre.O amor ao censor – ensaio sobre a ordem dogmática. Trad. Colégio Freudiano
Brasilerio., Rio de Janeiro: Forense, 1983, p. 7
8
LEGENDRE, Pierre. op.cit., p. 7
9
refiro-me especificamente ao estudo de Pierre Legendre acerca do conceito de felicidade de Estado
operado modernamente pela ciência do direito que mostra-se como a ciência dos bons sujeitos.
306
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
conseguiam mais responder inteiramente às inquietações e às necessidades daquele
momento,10 produzindo, o que se passou a designar como “crise do direito”. A “crise”,
produto da descrença e insegurança jurídica, é definida por Antonio Carlos Wolkmer
como a agudização das contradições e dos conflitos sociais em dado processo
histórico. Expressa sempre a disfuncionalidade, a falta de eficácia ou o esgotamento do
modelo ou situação histórica aceitos e tradicionalmente vigentes. 11 Sinais de
esgotamento que vão conduzindo para o interior do campo jurídico o pensamento
crítico, inaugurando, assim, uma discussão inédita e fértil.
Uma possibilidade de enfrentamento e compreensão da “crise” jurídica
brasileira foi encontrada na Teoria Crítica, concepção que desde a década de 60 vinha
influenciado pensadores do direito europeus, através das idéias provindas do
economicismo jurídico soviético (Stucka, Pashukanis), da releitura gramsciana da
teoria marxista feita pelo grupo de Althusser, da teoria crítica frankfurtiana e das teses
arqueológicas de Foucault sobre o poder. 12 Na Europa as inovações da Teoria Crítica
encontravam um terreno fértil no ambiente pós-guerra que projetavam no campo
jurídico a desmistificação do jusnaturalismo e do positivismo. Antonio Carlos Wolkmer
retomando a trajetória do pensamento jurídico crítico europeu lembra que a crítica
jurídica consolidou-se inicialmente na França por volta dos anos 70 culminando com o
“manifesto” da Associação Crítica do Direito em 1978, atingindo em seguida a Itália,
Espanha, Bélgica, Alemanha, Inglaterra e Portugal.13
Na América Latina os “ventos” inovadores chegam por volta da década de
80 com o engajamento de juristas progressistas e comprometidos com a superação dos
obstáculos políticos que impediam a construção e efetivação da democracia. Este
movimento de renovação do pensamento jurídico recebe a adesão de pensadores
brasileiros em inúmeras faculdades de direito que acabaram por serem pioneiros de uma
pedagogia jurídica emancipadora. As perspectivas epistemológicas, apesar de múltiplas,
tinham como ponto em comum a defesa do rompimento com o positivismo legalista e
revelando o caráter dominador e centralizador do direito hegemônico. 14
10
WOLKMER, Antonio Carlos. Introdução ao pensamento jurídico crítico. 8ª Ed., São Paulo: Saraiva,
2012, p. 25
11
WOLKMER, Antonio Carlos. op. cit., p.31
12
WOLKMER, Antonio Carlos. op. cit., p.40
13
WOLKMER, Antonio Carlos. op. cit., p.40
14
São inúmeros os pensadores do direito relacionados ao pensamento jurídico crítico, mas a verdadeira
arqueologia epistemológica feita por Antonio Carlos Wolkmer na obra Introdução ao pensamento
jurídico crítico, já citada, lembra com acuidade nomes e trajetórias que merecem ser registradas.
307
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
A Teoria Crítica trouxe consigo o impacto do questionamento do papel
ideológico do direito na medida em que, diferentemente da concepção moderna de
ciência, coloca no interior da discussão jurídica as contradições e ambiguidades
inerentes ao direito moderno, buscando tomar o direito como instrumento não de
manutenção da ordem estabelecida, mas a possibilidade de emancipação do sujeito
histórico tradicionalmente submerso em determinada normatividade repressora, mas
também discutir e redefinir o processo de constituição do discurso legal mitificado e
dominante.15 Mostrava-se assim um horizonte inovador, mas que trazia em si, a
necessidade de rompimentos e abandonos teóricos.
Foi exatamente neste contexto que a hermenêutica ganha um novo status na
discussão jurídica. Entretanto, esta não é uma novidade. Historicamente nos momentos
agudos de transição a questão hermenêutica ganha relevância uma vez que mais do que
nunca é necessário compreender a partir de novas categorias uma realidade também
inovadora. A complexidade desta nova problemática, qual seja, descobrir o “lugar” da
hermenêutica numa lógica jurídica emancipadora fez com que fosse instaurada uma
discussão que até este início do século XXI permanece em aberto.
O pensamento crítico permitiu ao jurista brasileiro perceber que o Brasil
chega à pós-modernidade sem ter conseguido ser liberal nem moderno. Herdeiros de
uma tradição autoritária e populista, elitizada e excludente, seletiva entre amigos e
inimigos – e não entre certo e errado, justo ou injusto -, mansa com os ricos e dura com
os pobres, chegamos ao terceiro milênio atrasados e com pressa. 16A pressa no campo
hermenêutico começa a ser a de avançar no sentido de edificar instrumentos e
instrumentadores que deem conta de des-pensar re-pensando o paradigma jurídico
dominante, construindo uma nova cultura da alteridade e da pluralidade, através de
certas categorias críticas emergentes na perspectiva latino-americana, seja como
forma de destruição, seja como instrumento pedagógico de libertação,17 resignificando
socialmente a moderna epistemologia das ausências. Ausências que chegam a tornar
concretamente invisíveis os atores sociais que nos fala Fernando Braga da Costa18.
15
WOLKMER, Antonio Carlos. op. cit., p. 18
BARROSO, Luís Roberto.Fundamentos teóricos e filosóficos do novo direito constitucional brasileiro.
In: Revista Interesse Público, nº 11, Sapucaia do Sul: Notadez, 2001, p. 45
16
17
WOLKMER, Antonio Carlos.A função da crítica no redimensionamento da filosofia jurídica atual. In:
Revista Crítica Jurídica, no. 22, Curitiba: Unibrasil, 2003; p. 176.
18
COSTA, Fernando Braga da. Homens invisíveis: retratos de uma humilhação social. São Paulo: Ed.
Globo, 2004.
308
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
Neste contexto de transição do pensamento jurídico, um dos desafios é
refletir acerca do “espaço” a ser ocupado pela hermenêutica no direito. Constatada a
insuficiência do que tradicionalmente lhe foi reservado, o espaço de um saber
dogmático acerca do sentido imanente da norma posta, é necessário discutir, para além
do método, se haveria um espaço para a reflexão hermenêutica quando se tem em vista a
edificação de uma racionalidade emancipatória no sentido de construir um
conhecimento prático-normativo adequado para uma compreensão justa de um
problema social concreto. Trata-se, portanto, de descobrir a possibilidade de uma
hermenêutica jurídica que recuse uma índole exclusivamente a favor da interpretação
normativa asséptica.
Emprestando metaforicamente o sentido de espaço definido por Milton
19
Santos
como um conjunto de fixos e fluxos, considerando, elementos fixos os que
permitem ações dinâmicas capazes de modificar o meio e os fluxos ou renovadores os
que recriam as condições sociais, a hermenêutica jurídica descobre-se como espaço
privilegiado de compreensão normativo prático sobre o direito que pode ser
emancipatório. Neste sentido, o espaço hermenêutico tradicionalmente vinculado a
preocupação epistemológica de elaboração de métodos objetivos de interpretação
transcende e redescobre a subjetividade. Descobre desafios que deverão ser respondidos
pela própria reflexão hermenêutica numa perspectiva crítica de direito. A hermenêutica
mais além do método e da certeza: para a ação política transformadora.
III.O Pós-colonial: contexto e pretexto.
Embora se tratando de um discurso crítico sobre a modernidade, elaborado a
partir do próprio esgotamento da modernidade, é necessário que se chame atenção
acerca de um aspecto central no pensamento crítico: a pós-colonialidade. A crise da
modernidade e seus infinitos “pós”, auto concebida desde o Norte carrega em si a
mesma concepção unilateral de mundo e de história que nega e oculta a colonialidade.
Reproduz a ideia monotópica e universal da modernidade para a qual a diferença póscolonial é considerada passiva. O colonial permanece bárbaro, pagão, subdesenvolvido
e incapaz que deve ser tutelado. Desconsidera que as condições históricas não são
19
SANTOS, Milton. A natureza do espaço - técnica e tempo, razão e emoção. São Paulo:
HUCITEC, 1996, p. 50
309
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
apenas locais. Desde o século XV com a expansão do sistema-mundo há um “outro
lado” liminar que paralelamente constrói o imaginário social.
Indo nesta direção, pode-se perceber que a “crise” manifestada também nas
teorias herdadas pela tradição moderna na Europa é simultaneamente pensada e
vivenciada também em suas margens/fronteiras. Há nesta “crise” um duplo movimento:
um movimento “local” no “interior” do sistema moderno que idealizou e tratou de
colocar-se como centro do projeto da modernidade e um movimento em suas fronteiras
que os reinventa.
Reconhecer o pensamento pós-colonial forçosamente se retorna aos anos se
seguiram a década de 70 do século XX, quando, a perda na tradicional referência de
centro geocultural e político, fez com que fosse difícil localizar os centros dos “projetos
globais”. E é neste contexto que os saberes subalternos ou/e subjugados, as “outras
formas” de pensar a modernidade, tornam-se insurgentes e visíveis. Saberes subjugados
é um conceito “emprestado” de Michel Foucault, como lembra Walter Mignolo, 20 que
introduziu a expressão “insurreição de saberes subjugados” para referir-se e descrever a
transformação epistemológica por ele percebida e que carrega duplo significado. Diz
Foucault: Para mim é duplo o significado de saberes subjugados. Por um lado, refirome aos conteúdos históricos soterrados e disfarçados numa sistematização
funcionalista ou formal. 21 Portanto, como um saber ocultado, absorvido e anulado pelo
saber dominante e disciplinador que, segundo Focault ainda tinha um segundo
significado:
Creio que se deveria compreender saberes subjugados como outra coisa, algo
que de certa forma é totalmente diferente, isto é, todo um sistema de
conhecimento que foi desqualificado como inadequado para suas tarefas ou
insuficientemente elaborados: saberes nativos, situados bem abaixo na
hierarquia, abaixo do nível exigido de cognição de cientificidade. Também
creio que é através da reemergência desses valores rebaixados, (tais como os
saberes desqualificados do paciente psiquiátrico, do doente, dofeiticeiro –
embora paralelos e marginais em relação à medicina – ou do delinqüente etc)
que envolvem o que eu agora chamaria de saber popular (lê savoir dês gens)
embora estejam longe de ser o conhecimento geral do bom senso, mas, pelo
20
MIGNOLO, Walter D. Histórias Locais/Projetos Globais – colonialidade, saberes subalternos e
pensamento liminar. Tradução de Solange Ribeiro de Oliveira.Belo Horizonte:Editora UFMG,2003, p44
21
Citado por MIGNOLO, Walter D. Histórias Locais/Projetos Globais – colonialidade, saberes
subalternos e pensamento liminar.op.cit.,p 44 .
310
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
contrário, um saber particular, local, regional, saber diferencial incapaz de
unanimidade e que deve suas forças apenas à espereza com a qual é
combatido por tudo à sua volta – que é através do reaparecimento desse
saber, ou desses saberes locais populares, esses saberes desqualificados, que
a crítica realiza sua função.22
Walter Mignolo trazendo a concepção de “saberes subjugados” até o limite
da diferença colonial quando se tornam subalternos da colonialidade do poder, concebeos como liminares, como saberes subjugados em pé de igualdade com o ocidentalismo
como o imaginário dominante do sistema mundial colonial/moderno: o ocidentalismo é
a face visível do edifício do mundo moderno, ao passo que os saberes subalternos são
seu lado sombrio, o lado colonial da modernidade.23 O saber liminar é o que também
Darcy Ribeiro na década de 60 definia como o subalterno. Aquele que é característico
do povo colonizado brasileiro que privado de riqueza e do fruto de seu trabalho,
degradados e humilhados assumem como sua a imagem que era um simples reflexo da
cosmovisão européia, que considerava os povos coloniais racialmente inferiores24,
mesmo as elites que serviam os interesses centrais viam-se como destinados a
subalternos políticos e intelectuais por ser naturalmente sua posição inferior à européia.
Portanto, a geopolítica do conhecimento moderna é também questionada e
reinventada a partir da periferia e num enorme esforço de desconstrução e de busca de
alternativas à “crise da modernidade”, vai-se edificando um movimento-pensamento
descolonial. Uma experiência até então invisibilizada intelectualmente, mas, presente
nos movimentos populares25 , ganhando status acadêmico na década de 80, a partir do
diálogo com os movimentos sociais e seus saberes. Embora nascido fora da academia, o
pensamento pós-colonial entra no circuito das universidades no contexto de uma nova
geografia do conhecimento a partir da periferia quando, na América Latina em
particular, são anunciadas novas formas de saber. Sem entrar na discussão acerca dos
22
Citado por MIGNOLO, Walter D. Histórias Locais/Projetos Globais – colonialidade, saberes
subalternos e pensamento liminar.op.cit.,p 44.
23
MIGNOLO, Walter D. Histórias Locais/Projetos Globais – colonialidade, saberes subalternos e
pensamento liminar.op.cit.,p. 45
24
RIBEIRO, Darcy.Las Américas y la civilización – proceso de formación y causas del desarrollo
desigual de los pueblos americanos. Caracas: Biblioteca Ayacucho, 1968, p. 63
25
Walter Mignolo lembra o Movimento Taky Onkoy no Peru durante o século XVI que promove um
regresso ao modo de vida anterior aos incas. Um autêntico movimento indígena anticolonial que
extraordinariamente mostram sua capacidade de questionar e resistir. Ou mesmo no Brasil há que se
registrar os movimentos de resistência colonial como os Quilombos, Movimentos Messiânicos, e tantos
outros incriminados pelo “direito oficial”.
311
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
estudos pós-coloniais26, em rápida síntese e tomando por empréstimo a análise de
Walter Mignolo 27 o início dos estudos pós-coloniais dá-se entre as décadas 50 e 60,
quando a atenção está centrada na Guerra Fria. No Sul, o economista argentino Raul
Prebisch em 1949 lançava, à convite da CEPAL (Comissão Econômica para América
Latina), a introdução do primeiro Estudo Econômico da América Latina, ("O
desenvolvimento econômico da mérica Latina e alguns de seus principais problemas")
causando verdadeiro pânico pela sede central das Nações Unidas. Inovava o pensamento
através do conceito de substituição de importações e da relação de preços de
intercâmbio. A introdução foi apresentada na segunda Conferência da CEPAL, em
Havana foi recebida com entusiasmo pelos países latino americanos, dedicando-se aos
estudos econômicos acerca do desenvolvimento e sua relação com a industrialização.
De certa forma, as idéias de Prebisch, conhecidas mundialmente, modificaram
a geografia do conhecimento dentro da periferia mostrando um novo campo a ser
investigado. Nas palavras de Mignolo, apesar de Prebisch estar longe de ser um
marxista, era um economista honesto e olhava o mundo a partir da periferia e não desde
o centro como tradicionalmente haviam feito Adam Smith, David Ricardo e Karl
Marx. 28 Após seus estudos, outros surgiram em meio ao otimismo da Revolução
Cubana e o duro golpe ao socialismo com fim do governo Allende no Chile. Nestes
anos 70 no tumultuoso contexto político, filosófico e epistemológico latino americano e
na explosão literária29surge o Pensamento da Libertação.
Para David Sánchez Rubio 30 é no contexto latino americano da segunda
metade do século XX que se compreende os eventos epistemológicos que caracterizam
o Pensamento da Libertação. O primeiro evento descrito por David Sánchez Rubio é a
Teoria da Dependência que embora nascendo com matriz econômica e sociológica, na
esteira do trabalho de Prebisch, representa uma reação às teses desenvolvimentistas e
funcionalistas que acaba por denunciar o que era ocultado pelo discurso econômico
26
O tema é exaustivamente tratado por pensadores como Walter G. Mignolo, Enrique Dussel, Arturo
Escobar, Michel Rolph Trouillot, Aníbal Quijano, Fernando Coronil, Carlos Lenkersdorf, dentre outros
intelectuais africanos e indus que abriram as portas das universidades européias e norte americanas aos
estudos pós-coloniais.
27
MIGNOLO, Walter G. Cambiando las éticas y las políticas del conocimiento: lógica de la colonialidad
y postcolonialidad imperial. Bogotá: Revista Tabula Rasa, nº 3: 47-72, Janeiro-Dezembro de 2005, p. 61
e seguintes.
28
MIGNOLO, Walter G. Cambiando las éticas y las políticas del conocimiento: lógica de la colonialidad
y postcolonialidad imperial. Bogotá: Revista Tabula Rasa, nº 3: 47-72, Janeiro-Dezembro de 2005, p. 61
29
Escritores latino americanos como Garcia Márquez, Vargas Llosa, Guimarães Rosa e outros são
reconhecidos e comparados aos grandes escritores mundiais.
30
RUBIO, David Sánchez. Filosofia, Derecho y Liberacion en América Latina. Bilbao: Ed. Desclée de
Brower, Coleção Palimpsesto, 1999.
312
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
liberal: que o desenvolvimento dos países centrais do capitalismo tinha como contra
partida o subdesenvolvimento para continuar o processo de acumulação. Portanto, era
denunciado que a pobreza nas áreas de periferia era efeito da riqueza das nações centrais
do sistema. O segundo é a Pedagogia da Libertação de Paulo Freire. Contrariando as
concepções dominantes, Freire defende que o sujeito deve ser parte ativa do processo de
construção de seu conhecimento e oferece formas de educação à favor dos menos
favorecidos. Milita por uma educação libertadora na qual o diálogo e o reconhecimento
do saber do Outro iria suprimindo a discriminação e a opressão através de uma
pedagogia crítica e emancipatória. O terceiro é a Teologia da Libertação que na mesma
linha busca um diálogo com os distintos campos do conhecimento social, especialmente
os de matriz marxista, e com base na fé libertadora para além das condições terrenas de
existencialidade anuncia a crença numa igualdade cristã. E finalmente a Filosofia da
Libertação que, inicialmente com a influência de Leopoldo Zea Aguilar e depois
Augusto Salazer Bondy e Enrique Dussel, denunciava a ausência de preocupação da
filosofia ocidental dominante e eurocêntrica com a condição do empobrecido latino
americano, sujeito a partir do qual deveria ser iniciada a reflexão filosófica.
Mas a colonialidade do conhecimento insiste em absorver e ocultar o
pensamento da periferia. Em não raras vezes o periférico é anulado. É comum, mesmo
academicamente, um discurso que considera como o único válido o saber europeu,
querendo significar que negros e índios latinos americanos possuem cultura e sabedoria,
o que é diferente de conhecimento. Evidentemente, nesta lógica, é no Primeiro Mundo
se produz conhecimento objetivo e científico já que no Segundo o conhecimento não é
objetivo, e o que minimanente há é “ideologicamente contaminado”. E sob este
argumento o pensamento periférico foi sendo anulado, desprezado e descartado. A
Filosofia e a Teologia da Libertação não foram tomadas à sério pelo conhecimento
global: eram mais parte da cultura do que do conhecimento. E desta forma, a
colonização do ser ia de mão dadas com a colonização do conhecimento e através de
meios sutis é enterrado. Não é saber autorizado, administrado e legitimado pelas
instituições que manejam o saber global. 31
Mas exatamente no momento em que mais se acentua a “crise” da
modernidade o subalterno/oprimido/subjulgado ganha força. É exatamente nesta direção
que emerge a preocupação de pensadores como Boaventura de Sousa Santos em
31
MIGNOLO, Walter G. Cambiando las éticas y las políticas del conocimiento: lógica de la colonialidad
y postcolonialidad imperial. op.cit., p. 62
313
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
Renovar a Teoria Crítica e Reinventar a Emancipação Social a partir do Sul. 32
Reconhece Boaventura que para os que vivem no Sul as teorias tradicionais estão fora
de lugar e não se ajustam às suas realidades. Os povos do Sul não necessitam
simplesmente de um novo conhecimento para superação da “crise”, mas do
reconhecimento que é possível produzir conhecimento de uma nova forma. Não
necessitamos de alternativas, necessitamos é de pensamento alternativo às
alternativas.33 Trata-se de retomar o pensamento crítico a partir da atitude pós-colonial,
que mais que uma construção epistemológica é política e permanece na América Latina,
seja nas serras como em Chiapas, seja nas cidades como Fórum Social Mundial, ou nas
universidades americanas e européias.
Pós-colonialismo, relacionado a emergência de uma nova geopolítica do
conhecimento, deve ser compreendido distintamente do poscolonialismo enquanto luta
de emancipação política das colônias européias. Para Boaventura de Sousa Santos é um
conjunto de práticas (predominantemente performativas) e de discursos que
desconstroem a narrativa colonial, escrita pelo colonizador, e procuram substituí-las
por narrativas escritas do ponto de vista do colonizado. 34 A diferença colonial cria uma
condição única de, sob o ponto de vista do subalterno, oferece um novo horizonte
crítico para as representações da crítica interna às narrativas modernas hegemônicas. É a
superação do discurso linear que vai do moderno precoce ao moderno e ao moderno
tardio ultrapassando as fronteiras internas – conflitos entre os impérios – e externas –
conflitos nas representações – da própria modernidade.35
Na tentativa de recuperar as experiências do pensamento jurídico crítico para
encontrar elementos a serem resgatados e reinventados pela hermenêutica jurídica
crítica brasileira é que a seguir se passa a análise das vivências do direito brasileiro no
contexto da reação à “crise” da modernidade. Trata-se da descrição e análise do que
Mignolo chama de pensamento liminar, o “outro pensamento” acerca da “crise” jurídica
moderna. A leitura feita na margem externa no ocidente europeu que busca romper e
reinventa a tradição herdada pelo colonialismo latino americano.
32
Trata-se especificamente do projeto desenvolvido por Boaventura de Sousa Santos que culmina com a
publicação em abril de 2007 um livro-manifesto neste sentido que mais adiante será explorado.
33
SOUSA SANTOS, Boaventura. Renovar a Teoria Crítica e Reinventar a Emancipação Social. São
Paulo: Boitempo, 2007, p. 20
34
SOUSA SANTOS, Boaventura de. A Gramática do Tempo: para uma nova cultura política.São Paulo:
Cortez, 2006, p. 233.
35
MIGNOLO, Walter D. Histórias Locais/Projetos Globais – colonialidade, saberes subalternos e
pensamento liminar.op.cit.,p. 11
314
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
IV.O giro hermenêutico descolonizador.
Ao longo da construção histórica da sociedade brasileira, o que foi
construído sob o nome de hermenêutica jurídica brasileira, definiu-se como parte da
cultura jurídica nacional a partir de uma matriz epistemológica que muito bem cumpriu
o papel de reprodução do direito hegemônico, e que acabou por tornar-se instrumento de
legitimação de um passado colonialista comprometido com a ausência de compromissos
de legítima emancipação nacional. Enfim, uma concepção vazia e negadora de
referenciais capazes de definir um horizonte compreensivo legitimamente justo para
com o que secularmente foi excluído do direito brasileiro: valores e necessidades
capazes de promover a emancipação política e social dos empobrecidos, dos ausentes e
dos invisibilizados pelo poder. Construiu-se como uma “hermenêutica das ausências” 36,
concepção que também serviu bem para que a “balança” da justiça sempre tenha
pendido para “o lado” “mais forte”, retirando o poder de “linguagem” dos
historicamente invisibilizados.
Em que pese o esforço de correntes hermenêuticas jurídicas que se
autoreferem como críticas, resta em aberto um espaço jurídico que inda não pôde ser
preenchido pelas práticas fundadas nestas correntes. É possível pensar uma alternativa
às práticas alternativas e reinventar a crítica desde as experiências descolonizadoras
brasileiras. Desde uma crítica à razão proléptica hermenêutica do direito moderno que
além de contrair o presente reconhecendo como única fonte compreensiva o direito
estatal, reduz o espaço de mediação jurídica ao Estado, é possível ampliar espaços
presentes emergentes.
Adotando a sugestão de Boaventura de Sousa Santos no que chama de
sociologia das emergências que é a prática de ampliar o presente reconhecendo o que foi
subtraído pela sociologia das ausências, hermeneuticamente ampliando os espaços de
possibilidades de compreensão do direito para além do Estado, é possível identificar
36
Aqui se toma emprestado o conceito de Boaventura de Sousa Santos Sociologia das Ausências que
define como um procedimento transgressivo, uma sociologia insurgente para tentar mostrar que o que
não existe é produzido ativamente como não-existente, como uma alternativa não crível, como uma
alternativa descartável, invisível à realidade. E é isso o que produz a contradição do presente, o que
diminui a riqueza do presente. (SANTOS, Boaventura de. Renovar a Teoria Crítica e Reinventar a
Emancipação Social. São Paulo: Boitempo Editorial, 2007, p. 28-29).
315
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
agentes, práticas e saberes com tendências de futuro sobre as quais é possível ampliar as
expectativas de esperança. Trata-se de uma ampliação sobre as potencialidades e
capacidades ainda não reconhecidas e necessariamente movendo-se no campo das
experiências sociais que desde as práticas do “reconhecimento”, “transferência de
poder” e “mediação jurídica” são legítimos espaços de luta por dignidade humana. 37
É indo nesta direção que é possível falar-se em reconhecer o mundo social
como mundo de possibilidade compreensiva e, portanto, fonte de uma nova
racionalidade hermenêutica. Trata-se de uma perspectiva pluralista de direito que
reconhece múltiplos espaços de fontes normativas, apesar de na maioria das vezes,
como lembra Antonio Carlos Wolkmer38 é informal e difusa. O pluralismo é uma fonte
de inúmeras possibilidades de regulação. Para Antonio Carlos Wolkmer
O pluralismo enquanto concepção “filosófica” se opõe ao unitarismo determinista
do materialismo e do idealismo modernos,pois advoga a independência e a interrelação entre realidades e princípios diversos. Parte-se do princípio de que existem
muitas fontes ou fatores causais para explicar não só os fenômenos naturais e
cosmológicos, mas, igualmente, as condições de historicidade que cercam a vida
humana. A compreensão filosófica do pluralismo reconhece que a vida humana é
constituída por seres, objetos, valores, verdades, interesses e aspirações marcadas
pela essência da diversidade, fragmentação, circunstancialidade, temporalidade,
fluidez e conflituosidade.
[...]
O pluralismo, enquanto “multiplicidade dos possíveis”, provém não só da extensão
dos conteúdos ideológicos, dos horizontes sociais e econômicos, mas, sobretudo,
das situações de vida e da diversidade das culturas.39
Em meio a discussão plural e pós colonial nas primeiras décadas do século
XXI chegam ao poder em vários países latino americanos governos progressistas que
avançaram no campo da democratização, políticas sociais e integração regional. Neste
37
Esta é a proposta defendida, entre outros, por Hélio Gallardo em Derechos Humanos como Movimiento
Social. Edicioness desde abajo, Bogotá e explorada por Norman J. Solórzano Alfaro em Fragmentos de
uma Reflexión Compleja sobre una Fundamentación Del Derecho y la Apertura a una Sensibilidad de
Derecho Humano Alternativa, a ser publicado na Revista Jurídica Eletrônica nº 2 do Curso de Direito da
Universidade Regional de Blumenau.
38
WOLKMER, Antonio Carlos. Pluralismo Jurídico – fundamento de uma nova cultura no Direito. São
Paulo: Editora Alfa Omega, 1994, p. 155.
39
WOLKMER, Antonio Carlos. Pluralismo Jurídico. op.cit., p. 158
316
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
marco, os governos populares da Bolívia, Equador e Venezuela em especial, foram
implantando um novoo paradigma constitucional a partir da plurinacionalidade,
demodiversidade, novos direitos vinculados a uma racionalidade reprodutiva da vida
que expressamente deseja a vontade descolonizadora como conteúdo fundamental do
projeto político em marcha nestas nações. 40
Neste novo contexto, o processo hermenêutico jurídico não pode ser uma
“canibalização”, para usar a expressão de Boaventura de Sousa Santos, dos demais. É
necessário uma tradução das múltiplas hermenêuticas dentre as quais jurídica. E é neste
sentido que não cabe uma hermenêutica jurídica nos moldes tradicionais. São campos
distintos que se tocam – o estatal e o social – em que mundos normativos, práticas e
saberes dialogam, se desentendem e interagem tornando possível reconhecer os pontos
de contato entre a tradição moderna ocidental e os saberes leigos. As duas zonas de
contacto constitutivas da modernidade ocidental são a zona epistemológica, onde se
confrontam a ciência moderna e os saberes leigos, tradicionais, dos camponeses, e a
zona colonial, onde se defrontam o colonizador e o colonizado. São duas zonas
caracterizadas pela extrema disparidade entre as realidades em contacto e pela
extrema desigualdade das relações de poder entre elas.41 A tarefa hermenêutica como
tradução retoma o sentido mais original do termo,mas a partir de uma perspectiva
inovadora que traduz saberes nem sempre convergentes.
Como as práticas sociais de compreensão e solução de conflitos é mais retórica
e argumentativa são grandes os desafios a serem enfrentados pelos juristas de profissão.
Boaventura de Sousa Santos sugere uma hermenêutica diatópica que em síntese consiste
em buscar os topois – lugares comuns que constituem o consenso básico e torna
possível o dissenso argumentativo – presentes na argumentação, que é normalmente
assentada em postulados, axiomas, regras e concepções aceitas por todos. O trabalho de
tradução não dispõe à partida de topoi, por que os topoi que estão disponíveis são os
que são próprios de um dado saber ou de uma dada cultura. 42 O trabalho consiste em,
sem que se tenha um ponto de partida, reconhecer os topoi que cada prática expressa
como forma argumentativa. É um trabalho exigente, sem seguros contra riscos e
sempre à beira de colapsar. A capacidade de construir topoi é uma das marcas mais
40
MÉDICI, Alejandro. La constitucionalización horizontal – teoria constitucional y giro decolonial.San
Luis de Potosí: Universidad Autónoma de San Luis Potosí, 2012, p. 56
41
SOUSA SANTOS, Boaventura. A Gramática do Tempo: para uma nova cultura política., op. cit., p.130
42
SOUSA SANTOS, Boaventura. A Gramática do Tempo: para uma nova cultura política., op. cit., p.
133
317
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
distintas da qualidade do intelectual ou sage cosmopolita. 43 São dificuldades que se
impõe e devem ser superadas pela prática do reconhecimento e da oportunidade de dar
voz ao outro, mesmo ao que não quer fazer uso dela, do que permanece em silêncio.
Já Walter Mignolo fala de uma hermenêutica pluritópica 44 como parte da
resistência à semiose colonial, porque a colonialidade do poder pressupõe a diferença
colonial como sua condição de possibilidade e como aquilo que legitima o subalterno
do conhecimento e a subjugação dos povos.45 Considerando a construção do
pensamento hermenêutico jurídico brasileiro, na linha de pensamento da descolonização
e na inclusão dos múltiplos atores sociais no processo de construção do saber jurídico,
sua perspectiva é monotópica, ou seja, é edificada sob a perspectiva de um único sujeito
cognoscente – o jurista de profissão – e com uma posição de quem fala de um lugar
virtual uma terra-de-ninguém universal, como chama Mignolo. A intenção de sua
hermenêutica é apagar a concepção de que interpretar é descrever a realidade a partir de
seu horizonte compreensivo. O objetivo é apagar a distinção entre o sujeito que
conhece e o objeto que é conhecido, entre o sujeito que conhece e o objeto que é
conhecido, entre um objeto “híbrido” (o limite como aquilo que é conhecido) e um
“puro” sujeito disciplinar ou interdisciplinar (o conhecedor) não contaminado pelas
questões limiares que descreve.46 Uma hermenêutica que assume-se como dialógica que
numa perspectiva pedagógica emancipatória, caminha para a conscientização e auto
construção.
Com estas concepções o espaço hermenêutico no direito adquire uma dimensão
distinta do que tradicionalmente lhe foi reservado e vai um pouco mais além do que até
foi edificado pela hermenêutica jurídica crítica. É um espaço de aproximação e de
assumir responsabilidades mútuas que rompe com a lógica construída pelo saber
colonizador e abre para ainda tornar possível a esperança no justo. As condições de
possibilidade de compreensão é elaborada com o outro e a partir deste outro
historicamente negado e silenciado.
43
SOUSA SANTOS, Boaventura. A Gramática do Tempo: para uma nova cultura política., op. cit., p.
133.
44
MIGNOLO, Walter.Histórias locais/projetos globais. op.cit., p. 37
45
MIGNOLO, Walter.Histórias locais/projetos globais. op.cit., p. 40
46
MIGNOLO, Walter.Histórias locais/projetos globais. op.cit., p. 42
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320
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
HIERARQUIA ENTRE NORMAS CONSTITUCIONAIS:
INTERPRETAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL BRASILEIRA DE
1988 CONFORME A CONSTITUIÇÃO
HIERARCHY BETWEEN CONSTITUTIONAL LAW RULES:
INTERPRETATION OF 1988'S BRAZILIAN FEDERAL CONSTITUTION
ACCORDING TO THE CONSTITUTION
Feliciano de Carvalho x
SUMÁRIO: Introdução. 1 O ordenamento jurídico constitucional e as suas normas.
2 Métodos e princípios de interpretação constitucional. 3 Hierarquia entre normas
constitucionais originárias. 3.1 As normas constitucionais de hierarquia superior e a
sua função interpretativa. 3.2 Outros casos de diferenciação de normas
constitucionais. Conclusão. Referências.
Resumo
O artigo terá por objeto demonstrar que existe hierarquia entre as normas constitucionais originárias e que esta
hierarquia tem função interpretativa da Constituição Federal de 1988. As normas consideradas de hierarquia
inferior não são consideradas inválidas, mas a interpretação das mesmas é direcionada a fim de conferir lógica e
coerência ao sistema, conforme a gradação axiológica normativa extraída do próprio ordenamento
constitucional. A metodologia de pesquisa é bibliográfica. A conclusão consiste em demonstrar que antes de se
utilizar os métodos tradicionais de interpretação, assim como os desenvolvidos pela doutrina constitucional, a
constituição deve ser aplicada de acordo com os valores dominantes extraídos das normas constitucionais
predominantes.
Palavras-chave: Norma; Constituição; Hierarquia; Interpretação.
Abstract
The article will demonstrate that exists hierarchy between originary constitutional law rules and this hierarchy
has interpretartive function of 1988's Federal Constitution. The lower hierarchy law rules are not invalid, but the
interpretation of them is directed to confer logic and coherence to the system, according an axiological gradation
rules extracted from own constitutional ordering. The research methodology is bibliographic. The conclusion is
to demonstrate that before use the traditional methods of interpretation, as well as those developed by the
constitutional doctrine, the constitution should be applied in accordance with the dominant values extracted from
the prevailing constitutional norms.
Keywords: Law rule; Constitution; Hierarchy; Interpretation.
x Doutorando em Direito Constitucional pela Universidade de Fortaleza – UNIFOR; Mestre em Direito
Constitucional pela Universidade de Fortaleza – UNIFOR; Especialista em Direito Empresarial pela
UVA/FESAC; Defensor Público Federal em Fortaleza-CE. [email protected]
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
Introdução
Tradicionalmente, entende-se que as normas constitucionais originárias possuem o
mesmo grau de importância entre si, de maneira que não se poderia conceber a ideia de
hierarquia entre os dispositivos da Constituição Federal que seriam frutos da mesma vontade
constituinte. Assim, caberia ao intérprete, pelos métodos de hermenêutica constitucional,
manter a coerência do ordenamento jurídico constitucional partindo da premissa da igualdade
de relevância das normas.
Essa concepção usual de mesma magnitude entre as normas constitucionais
pressupõe que se está a tratar de dispositivos oriundos do mesmo Poder Constituinte
originário. De outro lado, sempre haveria uma diferenciação entre as normas originalmente
constitucionais em relação às normas constitucionais oriundas do poder constituinte –
constituído – derivado, eis que estas poderiam, eventualmente, ser declaradas inválidas –
inconstitucionais – por irem de encontro aos comandos daquelas.
A par dessa dogmática constitucional, o presente trabalho terá por objeto demonstrar
que existe diferença hierárquica entre normas constitucionais originárias e que esta diferença
possui finalidade precipuamente interpretativa. Pretende o trabalho defender que as normas
constitucionais originárias comuns devem ser interpretadas conforme os comandos das
normas constitucionais superiores.
1 O ordenamento jurídico constitucional e as suas normas
A República Federativa brasileira caracteriza-se como Estado Democrático de
Direito não simplesmente porque assim enuncia o caput do Art. 1º da Constituição Federal de
1988, mas porque ao longo dos dispositivos do texto constitucional estão previstas as
características de tal modalidade de Estado. Com efeito, características como a limitação de
poder das autoridades estatais pelo princípio da tripartição de poderes, o pluralismo, a
soberania popular e a previsão de direitos e garantias fundamentais, como se observa do Art.
1º, V, parágrafo único, bem como o Art. 2º e 5º do texto constitucional, evidenciam tal
constatação. Os comandos normativos denotam o modelo de Estado adotado pelo Poder
Constituinte originário de 1988. Sobre as disposições basilares da Constituição Federal,
escreve Furtado (1993, p. 114):
322
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
Dessa forma, são basilares na estrutura do Estado Democrático de Direito o apego à
constituição, sendo esta a ordem jurídica fundamental, suprema, emanada da
vontade popular, onde são vinculados tanto os poderes de um modo geral, como seus
atos e as garantias de uma livre atuação das regras da jurisdição constitucional.
A Constituição Federal de 1988 dispõe sobre como deve ser o Estado brasileiro por
um complexo de normas jurídicas. Noutras palavras, prescreve por dispositivos jurídicoconstitucionais o Estado que se forma. A constituição é, assim, um ordenamento jurídico,
mais precisamente um ordenamento jurídico-constitucional, o que configura a supremacia e
relevância das suas disposições normativas em relação a toda normatividade inferior.
O termo ordenamento denota que a Constituição Federal de 1988 é um conjunto de
normas, o que impõe ao analista do texto constitucional observar todas as dimensões desse
plexo, de modo que possa extrair a coerência necessária do conjunto. Ao tratar da ideia de
ordenamento, leciona Bobbio (1999, p. 19):
No primeiro livro, estudamos a norma jurídica, isoladamente considerada; neste,
estudaremos aquele conjunto ou complexo de normas que constituem o ordenamento
jurídico. A exigência da nova pesquisa nasce do fato de que, na realidade, as normas
jurídicas nunca existem isoladamente, mas sempre em um contexto de normas com
relações particulares entre si (e estas relações serão em grande parte objeto de nossa
análise). Esse contexto de normas costuma se chamado de “ordenamento”. (Aspas
do autor)
Ora, o uso deste termo – ordenamento – exige que as normas constitucionais estejam
em “ordem”, ou seja, que elas demonstrem uma condição mínima de organização sobre suas
disposições, de sorte a conferir lógica ao sistema. Para Telles Júnior (2002, p. 3):
Toda ordem, evidentemente, é uma disposição. Ma não é uma disposição qualquer. É
uma certa disposição, uma disposição conveniente de coisas, sendo que a disposição
só pode ser considerada conveniente quando alcança o fim em razão do qual ela é
dada às coisas. (Itálico original)
O ordenamento jurídico-constitucional é, então, o conjunto de normas constitucionais
reunidas que compõem o sistema constitucional e que expressam, por seu conteúdo, a ideia e
os valores do Estado. Em relação a este papel fundamental das matérias que devem ser
tratadas no documento político máximo, escreve Diniz (2002, p. 94):
Constituição, como Constituição do Estado de Direito, é uma estrutura normativa
superior a todas as demais no interior da ordem jurídica, que, de forma sistemática e
numa perspectiva dinâmica, constitui e estrutura juridicamente o Estado e suas
instituições, dividindo o exercício do Poder Estatal, que é unitário, em funções e
órgãos especializados para atender à complexidade de suas tarefas. Enquanto
expressão maior do jurídico, realiza solenemente a necessidade de organização do
poder. Ao mesmo tempo, em função de sua finalidade ética suprema, consagra e
promove a liberdade por meio da exigência de realização dos direitos fundamentais.
A Constituição que reconhece os indivíduos, enquanto seres igualmente livres para
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
desenvolver todas as suas aptidões e potencialidades, estabelece os fundamentos
para a realização dos direitos fundamentais e estrutura juridicamente o Estado por
meio das funções, que o organizam, e pelas quais se manifesta sua atuação, é a
Constituição do Estado de Direito, realização suprema da ideia de liberdade na
história.
O ordenamento constitucional pode corresponder à constituição formalizada num
único documento, mas também pelo conjunto de várias fontes de normas constitucionais,
como ocorre, sem maiores dúvidas, no Brasil, pois além da Constituição Federal de 1988
formalizada no seu texto codificado, também recebe status de norma constitucional os
tratados internacionais sobre direitos humanos que tenham sido aprovados no Brasil com os
mesmos rigores de emenda à Constituição. Como exemplo, cita-se a Convenção Internacional
sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e o seu Protocolo Facultativo, assinados em
Nova York aos 30 dias de março de 2007, promulgada no Brasil pelo Decreto Presidencial nº
6.949/2009.
A considerar que a ordem constitucional significa o conjunto de normas
constitucionais, resta precisar o que seriam essas normas. As normas constitucionais são
prescrições, enunciados deontológicos de como deve ser o Estado. Configura espécie de
norma jurídica, de sorte que devem ser consideradas as normas jurídicas do mais alto grau de
relevância, eis que supremas em relação aos demais dispositivos jurídicos não-constitucionais.
Ao dissertar sobre a nova relevância normativa do texto constitucional, manifesta-se Barroso
(2007, p. 5-6):
Uma das grandes mudanças de paradigma ocorridas ao longo do século XX foi a
atribuição à norma constitucional do status de norma jurídica. Superou-se, assim, o
modelo que vigorou na Europa até meados do século passado, no qual a
Constituição era vista como um documento essencialmente político, um convite à
atuação dos Poderes Públicos. A concretização de suas propostas ficava
invariavelmente condicionada à liberdade de conformação do legislador ou à
discricionariedade do administrador. Ao Judiciário não se reconhecia qualquer papel
relevante na realização do conteúdo da Constituição. Com a reconstitucionalização
que sobreveio à 2ª Guerra Mundial, este quadro começou a ser alterado. Inicialmente
na Alemanha e, com maior retardo, na Itália. E, bem mais à frente, em Portugal e na
Espanha. Atualmente, passou a ser premissa do estudo da Constituição o
reconhecimento da sua força normativa, do caráter vinculativo e obrigatório de suas
disposições. Vale dizer: as normas constitucionais são dotadas de imperatividade,
que é atributo de todas as normas jurídicas, e sua inobservância há de deflagrar os
mecanismos próprios de coação, de cumprimento forçado. A propósito, cabe
registrar que o desenvolvimento doutrinário e jurisprudencial na matéria não
eliminou as tensões inevitáveis que se formam entre as pretensões de normatividade
do constituinte, de um lado, e, de outro lado, as circunstâncias da realidade fática e
as eventuais resistências do status quo.
Assim, as normas jurídicas constitucionais são prescrições de dever ser estampadas
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
no ordenamento jurídico-constitucional. Hodiernamente, predomina a doutrina de Alexy
(2008, p. 90-91) que, inspirado em Ronald Dworkin, decompõe a norma constitucional em
norma-regra e norma-princípio, sendo aquela expressa em determinações enunciativas e estas
em mandamentos de otimização com maior carga de peso valorativo.
A Constituição Federal Brasileira de 1988 seria, então, um ordenamento jurídicoconstitucional de normas que ora têm natureza de regra, ora têm natureza de princípios, num
rol de artigos consideravelmente extenso para os padrões constitucionais, daí ser classificada
como analítica. As normas do texto constitucional brasileiro preveem temas variados, tanto os
que são considerados materialmente constitucionais, como, por exemplo, as disposições sobre
a organização do Estado e de direitos fundamentais, como temas que são apenas formalmente
constitucionais, ou seja, matérias que poderiam não ser previstas no documento formal de
criação do Estado, mas que nele foram inseridas pela vontade suprema do Poder Constituinte.
Exemplo clássico de norma apenas formalmente constitucional é a previsão do § 2º do Art.
242 da Constituição Federal de 1988 que eleva ao status normativo máximo a federalização
da Escola Dom Pedro II, localizada no Rio de Janeiro.
Por se tratar de constituição analítica, a Constituição Federal de 1988 pode ser
entendida como um corpo normativo amplo e plural, haja vista que versa sobre os mais
diversos assuntos, além daquelas matérias propriamente constitucionais. Com efeito, todos os
ramos jurídicos imagináveis podem encontrar matriz em alguma – ou algumas – norma
constitucional expressa. Mas não é só. A Constituição Federal brasileira busca harmonizar os
mais variados tipos de interesses, o que se mostra um desafio ao hermeneuta do seu texto.
Sobre a pluralidade de pensamentos estampada no documento político, aduz Barroso (1996, p.
40-41):
Além das dificuldades naturais advindas da heterogeneidade das visões políticas,
também a metodologia de trabalho utilizada contribuiu para as deficiências do texto
final. Dividida, inicialmente, em 24 subcomissões e, posteriormente, em 8
comissões, cada uma delas elaborou um anteprojeto parcial, encaminhado à
Comissão de Sistematização. Em 25 de junho do mesmo ano, o relator desta
Comissão, Deputado Bernardo Cabral, apresentou um trabalho em que reuniu todos
estes anteprojetos em uma peça de 551 artigos! A falta de coordenação entre as
diversas comissões, e a abrangência desmesurada com que cada uma cuidou de seu
tema, foram responsáveis por uma das maiores vicissitudes da Constituição de 1988:
as superposições e o detalhismo minucioso, prolixo, casuístico, inteiramente
impróprio para um documento dessa natureza. De outra parte, o assédio de lobbies,
dos grupos de pressão de toda ordem, geraram um texto com inúmeras
esquizofrenias ideológicas e densamente corporativo.
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
Diante de um quadro variado de ideologias e programas normativos, não é simples
captar a essência do texto constitucional brasileiro, principalmente manter em harmonia suas
próprias disposições. A mesma dificuldade se apresenta nas modernas constituições que
trazem várias normas principiológicas. Daí surgiu a necessidade de se criar toda uma nova
hermenêutica constitucional, conforme será ligeiramente abordada no próximo item.
2 Métodos e princípios de interpretação constitucional
Antes de se debruçar sobre as nuances da atividade interpretativa do texto
constitucional, urge frisar que “interpretar” é captar o sentido da norma jurídica prevista
abstratamente, para que seja concretizada na circunstância fática específica, na qual devem ser
ponderados todos os detalhes para a escorreita aplicação do texto normativo. A hermenêutica
foi a ciência criada pela inteligência humana para teorizar a atividade interpretativa, sendo a
hermenêutica jurídica o segmento dessa ciência voltado para as normas de direito. De acordo
com Falcão (2004, p. 244):
Para bem desempenhar o seu papel, a Hermenêutica deve ensinar a interpretação a
bem conectar pensamento, objeto interpretando, objetivos da interpretação,
contornos e contexto, observando que, das alternativas infindáveis de sentido
possível, ficarão somente aquela ou aquelas que atendam, na maior escala desejável,
ao conjunto das instâncias há pouco enunciadas. Essa escolha final pode ser correta
hoje e não o ser amanhã. Nem o ter sido ontem. Servir para um caso e não servir
para outro. É a inesgotabilidade atuando e exigindo muito do saber hermenêutico.
Mais do que deste, só exige mesmo é do próprio intérprete. A cada nova
interpretação pode nascer um novo sentido, ainda quando na mente do mesmo
intérprete, ou, melhor dizendo, da mesma pessoa interpretante.
Em que pese a Constituição Federal contemplar normas jurídicas, assim como ocorre
em qualquer legislação inferior, os fins políticos da norma constitucional como própria fonte
criadora do Estado e de seus poderes, bem como o seu papel diretivo de toda a normatividade
jurídica inferior, tornam as disposições jurídicas constitucionais mais especiais que as demais.
Assim, mostra-se intuitivo que a atividade de interpretar a Constituição será diferente da
atividade de interpretar as outras regras e princípios do ordenamento jurídico
infraconstitucional. Assim conclui Pereira (2006, p. 67):
A ideia de que a Constituição deve ser interpretada com recurso apenas aos
instrumentos metodológicos tradicionalmente utilizados no âmbito do direito
ordinário é hoje superada, sendo largamente aceito o entendimento de que as
peculiaridades das normas constitucionais tornam imperativo o emprego de uma
hermenêutica pautada por critérios específicos. Assim, a discussão contemporânea
gira em torno de – em face da reconhecida insuficiência dos cânones tradicionais de
326
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
interpretação jurídica para solucionar problemas constitucionais – determinar que
critérios e princípios particulares hão de ser aplicados nessa seara.
Quando se diz que os clássicos métodos de interpretação burilados com maestria por
Savigny, tais como a metodologia da interpretação literal, teleológica, histórica, autêntica e
sistemática, não são suficientes para se interpretar as normas constitucionais, não se quer dizer
que deles o texto constitucional possa prescindir. Ao revés, são de suma importância para se
compreender as disposições constitucionais. Com efeito, como obra política, mas também
jurídica, não se pode compreender a Constituição Federal de 1988 sem o apoio da
interpretação literal, sistemática etc., no entanto, em face da magnitude dos direitos previstos
no documento político, são necessários outros recursos para bem concretizá-lo.
Nessa esteira, foram desenvolvidos métodos especiais, tais como o método
científico-espiritual; o método orientado às ciências da realidade; o método tópicoproblemático e o método hermenêutico-concretizador. O método científico-espiritual é
calcado nos valores que podem ser extraídos da Constituição, o texto é fator secundário em
relação à realidade representada no documento político e os valores que fundamentam o
Estado, que devem ser o norte da atuação do intérprete; o método orientado às ciências da
realidade busca amoldar as normas constitucionais à realidade na qual está inserida, a pecar
por subestimar a imposição normativa das normas constitucionais sobre a própria realidade,
mas deve ser considerado por sugerir uma atuação constitucional adequadamente sociológica;
o método tópico-problemático propõe que as soluções constitucionais sejam primeiramente
postas pelo intérprete e, posteriormente, justificadas em algum trecho constitucional, partindose do problema para a norma diante da complexidade que é efetivar os direitos consagrados na
ordem jurídica-constitucional; por fim, o método hermenêutico-concretizador traduz o inverso
do tópico-problemático, na medida em que defende que primeiro se parte da norma para o
problema e não o inverso, sendo a atividade de interpretação concretizadora das normas
constitucionais, na qual se busca o auxílio de todos os elementos da realidade e intelectuais,
mas sempre partindo do campo delimitado no enunciado da norma constitucional, conforme o
desenvolvimento de interpretação estruturante (PEREIRA, 2006, 67-72).
Em vista das peculiares metodologias de interpretação constitucional, foram também
desenvolvidos princípios próprios da hermenêutica, no intuito de direcionar o intérprete com
valores-guia de concretização do sistema constitucional. Dentre tais princípios, destacam-se o
da correição funcional; da praticabilidade; do efeito integrador; da unidade constitucional;
327
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
concordância prática; e da força normativa da constituição. Por força do critério da correição
funcional, a atividade interpretativa não pode alterar as competências distribuídas pelos
comandos constitucionais; conforme o princípio da praticabilidade, a concretização não pode
olvidar das noções de norma, programa normativo e enunciado normativo, devendo respeitar
coerência entre os parâmetros, inclusive ao teor literal do enunciado da norma; conforme a
noção do efeito integrador, a interpretação constitucional deve sempre buscar harmonia e
coerência no sistema normativo; o princípio da unidade constitucional determina ao exegeta
que não crie antinomias entre as normas constitucionais que devem juntas representar um todo
lógico; em homenagem ao princípio da concordância prática, os inevitáveis conflitos ou
colisões entre normas constitucionais, notadamente no caso de colisão (entre princípios),
devem ser solvidos de modo que a preponderância de uma norma signifique a mínima
submissão da outra conforme os parâmetros de razoabilidade do caso concreto, de sorte que
todas as normas sempre sejam respeitadas, admitindo-se apenas a redução da incidência
diante da circunstância peculiar; por fim, de acordo com a força normativa da constituição, o
intérprete deve atuar no sentido de dar sempre eficácia aos comandos constitucionais, a
continuamente permitir a incidência dos seus dispositivos, mantendo sempre vivas as
emanações valorativas do constituinte (MÜLLER, 2005, p. 72-78).
É possível perceber que a hermenêutica constitucional consubstancia atividade das
mais complexas, principalmente quando se tem por objeto uma Constituição analítica como a
brasileira de 1988. Por tal razão, as metodologias de interpretação tradicional foram apontadas
como insuficientes, sendo desenvolvidos outros métodos e princípios próprios da
hermenêutica constitucional. O melhor entendimento parece crer que a concretização
constitucional é um processo, pelo qual o hermeneuta deve se socorrer, primeiramente, aos
métodos tradicionais e, sendo necessário, diante do caso concreto, utilizar-se dos demais. A
escorreita interpretação decorreria da justa conjugação dessas fases processuais.
Ocorre que toda a teoria das metodologias e os princípios de interpretação
constitucional foram desenvolvidos partindo-se da premissa de igualdade entre as normas
constitucionais, ou seja, que tais normas sempre estariam no mesmo plano de dignidade
constitucional. No entanto, a importação de tal crença constitucional – de mesmo patamar das
normas – não parece se aplicar à Constituição Federal de 1988, pois, em vários pontos, esta
traça distinções axiológicas entre suas normas. Assim, o trabalho pretende demonstrar que a
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
primeira fase do processo de interpretação constitucional é aferir o grau de hierarquia da
norma constitucional em relação às demais, bem como apontar o sentido que se deve dar a
atividade interpretativa, partindo essa direção da própria Constituição Federal por suas
normas hierarquicamente superiores.
3 Hierarquia entre normas constitucionais originárias
Tentar-se-á demonstrar que as normas constitucionais tem hierarquia entre si,
elemento que deve ser considerado no caso de interpretação da Constituição Federal brasileira
de 1988. É de bom alvitre sedimentar que não se está a falar de diferença axiológica entre as
normas constitucionais originárias com as normas constitucionais produto da atuação do
Poder Constituinte derivado. Com efeito, neste último caso é possível, inclusive, cogitar a
ideia de norma constitucional inconstitucional, pois a emenda pode desrespeitar
materialmente ou formalmente os comandos constitucionais, o que já denota uma diferença
valorativa entre tais dispositivos.
Mas, mesmo nos casos de normas constitucionais oriundas de emenda ao texto
constitucional, caso não haja qualquer mácula de inconstitucionalidade, devem elas ser
consideradas igualmente importantes como qualquer norma constitucional originária. Sucede
que, como já mencionado, mesmo entre normas constitucionais originárias, existe diferença
valorativa entre elas.
Atente-se, antes que se inicie a argumentação, que a discrepância normativa dos
dispositivos da Constituição Federal de 1988 não se presta para excluir uma norma
constitucional considerada de hierarquia inferior, em privilégio absoluto da norma
constitucional considerada superior. Não se trata de pretender declarar inválida uma norma
constitucional originária por desrespeitar outra norma constitucional mais importante. A
possibilidade de se declarar uma norma constitucional originária inconstitucional em face de
outra norma da constituição foi cogitada sem eco por lição minoritária na Alemanha,
conforme doutrina Bachof (1994, p. 54-55):
Põe-se, além disso, a questão de saber se também uma norma originariamente
contida no documento constitucional (e emitida eficazmente, sob o ponto de vista
formal), uma norma criada, portanto, não por força da limitada faculdade de revisão
do poder constituído, mas da ampla competência do poder constituinte, pode ser
materialmente inconstitucional. Esta questão pode parecer, à primeira vista,
paradoxal, pois, na verdade, uma lei constitucional não pode, manifestamente,
329
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
violar-se a si mesma. Contudo, poderia suceder que uma norma constitucional de
significado secundário, nomeadamente uma norma só formalmente constitucional,
fosse de encontro a um preceito material fundamental da Constituição: ora, o fato é
que por constitucionalistas tão ilustres como Krüger e Giese foi defendida a opinião
de que, no caso de semelhante contradição, a norma constitucional de grau inferior
seria inconstitucional e inválida.
Noutro momento, tem-se a opinião sobre o tema do próprio Bachof (1994, p. 59):
[...] ora, no caso de contradição aparente entre um princípio constitucional e uma
norma singular da Constituição, tal vontade só pode em princípio ser entendida, ou
no sentido de que o legislador constituinte quis admitir essa norma singular como
excepção à regra, ou no de que negou, pura e simplesmente, a existência de
semelhante contradição.
O que ocorre é que, ao longo do seu texto, a Constituição Federal de 1988 trata de
modo diferenciado suas disposições normativas. E a finalidade desse tratamento diferenciado
consiste em fornecer uma ferramenta valiosíssima de interpretação, eis que conferida pelo
próprio Poder Constituinte originário.
3.1 As normas constitucionais de hierarquia superior e a sua função interpretativa
Num trabalho que pretende dizer que existem normas constitucionais de hierarquia
superior às demais, é necessário ter que controlar as ideologias pessoais em relação à
formação de elenco tão importante. De fato, numa pesquisa pública, cada pessoa poderia
apontar as normas que melhor se adequassem com seus sentimentos como as mais
importantes. Certamente, uma grande maioria falaria dos direitos e garantias fundamentais; os
empresários e os ricos defenderiam os princípios da liberdade econômica e o direito de
propriedade; os trabalhadores, os direitos sociais; os magistrados defenderiam as garantias da
Magistratura; os defensores públicos, a importância da Defensoria Pública; os mais humildes,
as disposições de seguridade social, especialmente a assistência pública; os acadêmicos, as
normas referentes à educação; os constitucionalistas, as cláusulas pétreas etc. No final, seria
difícil fugir da regra de que todas as disposições constitucionais têm o mesmo grau de valor,
pois, para cada segmento social, certo grupo de normas deveria ser considerado mais
relevante que os demais.
Diante desse quadro e em face da própria Constituição Federal de 1988, tenta-se
verificar qual o seria o consenso. Noutras palavras, quais se poderiam dizer normas
constitucionais de importância superior, mas que não configurasse um reflexo de uma
convicção viciada ou de uma ideologia. A solução de tal problemática não está no intelecto de
330
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
ninguém, mas na própria Constituição Federal de 1988.
Os Arts. 1º ao 4º da Constituição Federal de 1988 são as normas constitucionais
originárias superiores às demais e que condicionam a interpretação de todo o resto do texto
constitucional. Com efeito, logo no Título I do documento político, o Poder Constituinte
originário estabeleceu os seus princípios fundamentais, ou seja, os alicerces do Estado que se
estava criando. Em outros termos, a identidade político-genética da República Federativa do
Brasil.
Realmente, o Art. 1º consagra o pacto federativo e traz os fundamentos da federação.
É de ver que o termo fundamento traz consigo uma ideia superior à concepção de princípio, o
que denota os valores máximos do Estado brasileiro, consagrando que todo o poder emana do
povo; por sua vez, o Art. 2º triparte os poderes, deixando bem claro que não há autoridade
pública absoluta no Brasil; o Art. 3º traz os objetivos da República Federativa do Brasil, não
se tratando de meras intenções, mas de finalidades jurídicas perpétuas inibitórias de qualquer
ato ou lei que sejam contrárias às suas disposições; ao fim, o Art. 4º estabelece os princípios
que regem as relações internacionais do Brasil, mas que também devem ser observados
internamente, pois, por lógica ética, não se pode exigir externamente aquilo que não se
cumpre internamente, ademais, ainda consagra a prevalência dos direitos humanos em
detrimento de outros direitos.
Quando se lê princípios fundamentais, não se deve ter a concepção simplesmente
formal de norma-princípio (ALEXY, 2008, p. 90-91), no sentido de que poderia haver uma
colisão entre as normas dos Arts. 1º ao 4º da Constituição com outras normas-princípio do
mesmo texto, a demandar uma ponderação no caso concreto. As normas do Arts. 1º ao 4º se
impõem e determinam como devem ser lidas as outras normas constitucionais (ou
infraconstitucionais), de sorte que nenhuma pode ser sopesada com as mesmas, mas
simplesmente atender-lhes a direção.
Não se quer dizer que não seja possível ponderar os princípios fundamentais da
República Federativa do Brasil, em verdade é possível, no entanto, só ocorrerá na eventual
colisão entre os próprios princípios fundamentais do Título I. É de ver que eles só podem ser
ponderados entre si, e não com outras normas constitucionais. Essa diferenciação hierárquica
se dá para fins interpretativos. Não se diminui propriamente a importância das demais normas
constitucionais, mas apenas lhes dá um sentido, uma direção, para que o próprio ordenamento
331
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jurídico constitucional também tenha uma lógica.
Por força da estrutura topográfica da Constituição Federal de 1988, que rubrica como
princípios fundamentais as normas jurídicas constantes nos Arts. 1º ao 4º do seu texto, a fazer
referência expressa a ideia de fundamento, bem como tendo em mira os valores que foram
consagrados juridicamente em tais disposições, entende-se que tais normas são de hierarquia
superior, pois assim o quis o Poder Constituinte originário. E a finalidade desta diferenciação
normativa, como já assentado, é a de, além da previsão constitucional dos valores
fundamentais, conferir lógica ao restante da Constituição Federal de 1988, de modo que a
atividade interpretativa ao longo do seu texto sempre deve ser filtrada conforme as
disposições dos princípios fundamentais.
3.2 Outros casos de diferenciação de normas constitucionais
Não é difícil apontar as normas constitucionais dos Arts. 1º ao 4º como as
disposições hierarquicamente superiores às demais constantes na Constituição Federal
brasileira de 1988, haja vista que a própria estrutura topográfica do texto induz essa
conclusão. Entretanto, em face dos programas e dos enunciados normativos constantes em tais
artigos, tem-se que, literalmente, encerram os fundamentos do Estado, os seus objetivos
fundamentais e os princípios que o regem nas suas relações internacionais. É de ver que são
normas que expressam o código genético da Constituição Federal.
Sucede que ao longo do texto constitucional podem ser observadas outras normas
que preponderam previamente e abstratamente em relação às demais. Em outras palavras, o
destaque de hierarquia superior não está somente com o que dispõem os enunciados dos Arts.
1º ao 4º. É possível, dessa forma, conceber que existe uma gradação de hierarquia entre as
normas constitucionais, sendo que, como se verá, só se pode ter certeza das que estão no ápice
dessa pirâmide constitucional (os já citados Arts. 1º ao 4º), notadamente por ser a faixa
intermediária um pouco imprecisa. A questão é que se mostra impraticável impor à tradicional
noção de que não existe hierarquia entre as normas constitucionais. Sobre a hierarquia entre
os direitos fundamentais, anota Lopes (2001, p. 169):
As consequências de igualar hierarquicamente as normas constitucionais sem levar
em consideração a desigualdade axiológica dos direitos provocam, sem dúvida,
diversos problemas práticos, os que somente podem ser superados no âmbito da
concretização e interpretação normativa, a qual deverá, além de se guiar pela
linguagem formal das normas constitucionais, considerar o sistema de valores nelas
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
acolhido.
Realmente, quando se estabelecem cláusulas pétreas, já se está reconhecendo um
grupo de cláusulas mais relevante, quando em comparação com as outras disposições do
mesmo texto. Como exemplo, veja-se o Art. 60 da Constituição Federal de 1988 que veda a
possibilidade de proposta de emenda tendente a abolir direitos e garantias individuais.
Claramente certas normas são colocadas num posto superior em relação às demais, pois
enquanto estas podem ser suprimidas, aquelas devem ser resguardadas. É interessante notar
que não estão expressas como cláusulas pétreas muitas das disposições dos Arts. 1º ao 4º da
Constituição Federal de 1988, o que pode intuir o equívoco de que tais disposições não
previstas como “normas-pedra” imodificáveis poderiam ser alteradas pelo Poder Constituinte
derivado.
Será que seria materialmente válida uma emenda à Constituição Federal de 1988 que
abolisse ou tendesse a abolir o fundamento da dignidade da pessoa humana, ou que dissesse
que nem todo poder emana do povo, que o pluralismo político não fosse algo assim tão
importante como a forma federativa de Estado ou ainda que retirasse do Brasil a missão de
construir uma sociedade livre, justa e solidária? É óbvio que não, e o fundamento da resposta
é que as normas do Art. 1º ao 4º são de hierarquia superior às cláusulas pétreas comuns, pois
correspondem ao próprio espírito da Constituição Federal. Por mais difícil que seja
concretizar os objetivos da república brasileira ou fazer valer aqui os princípios que regem as
relações internacionais, por exemplo, tal desafio não pode ser deixado de lado sob o fatídico
risco da Constituição Federal se transformar numa letra morta. Com efeito, definitivamente
não se tratam de disposições ornamentais ou meras cartas de intenção, sendo que a forma de
efetivá-las consiste em subordinar todo o ordenamento jurídico, inclusive o constitucional, a
ser interpretado conforme esses comandos normativos. Na lição de Facchini Neto (2003, p.
55-56):
Auxiliar na construção de um Brasil mais justo e solidário, com vida em abundância
para todos, como queria Cristo, ou com vida digna para cada um, como desejou o
constituinte, pode parecer sonho, algo muito distante, ou uma utopia. Concedendo
que seja um sonho: como vamos realizar nossos sonhos se não os tivermos sonhado
primeiro? Concedendo que seja algo muito distante: que tristes seriam os caminhos
se não fora a presença distante das estrelas!, como lembrava Quintana. Seria quiçá
uma utopia? Recordemos então Eduardo Galeano, que comparava as utopias ao
horizonte: se eu avanço um passo, o horizonte recua um passo; se eu avanço dois
passos, o horizonte recua dois passos; eu avanço cem metros, o horizonte recua cem
metros; eu subo a colina e o horizonte se esconde atrás da colina seguinte. Mas
333
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
então, perguntava ele, para que servem as utopias? Servem para isso, para nos fazer
caminhar!
Numa comparação, uma pessoa pode querer alterar o seu corpo por cirurgias
plásticas, mas é impossível que altere o seu espírito ou sua personalidade, da mesma forma é a
ordem constitucional brasileira, que tem sua identidade mínima nos Arts. 1º ao 4º. No entanto,
é possível concluir que as cláusulas pétreas são hierarquicamente superiores às outras normas
constitucionais, e a razão é evidente, pois estas podem ser abolidas por emenda à Constituição
Federal e aquelas não.
O mesmo raciocínio pode ser aplicado às situações de crise constitucional previstas
nos Arts. 136 e 137 da Constituição Federal de 1988, referente ao Estado de Defesa e ao
Estado de Sítio, quando alguns direitos fundamentais podem ser restringidos e outros não.
Como se vê, é o próprio texto constitucional que estabelece a diferença entre suas normas e se
atente que não são entre normas de menor importância, mas entre direitos fundamentais.
Outro exemplo diz respeito ao Art. 102, § 1º, que versa sobre a competência originária do
Supremo Tribunal Federal para julgar ação de descumprimento de preceito fundamental na
forma da lei, sendo mais um indício de que a Constituição Federal considera determinados
preceitos como fundamentais e outros não. Por fim, cite-se o Art. 34, VII e suas alíneas, ao
estabelecer que a inobservância de determinados princípios constitucionais sensíveis
autorizam a intervenção entre os entes da federação.
Em todos os exemplos citados, é possível perceber a predominância concedida a
certos direitos constitucionais em relação aos demais, o que permite a lógica conclusão de que
existe uma hierarquia entre eles. Mas, como já foi dito, essa hierarquia não significa que as
normas constitucionais predominantes afastam ou excluem as demais normas que não gozam
de nenhum tipo de proteção especial, sendo, em verdade, um parâmetro de interpretação
conferido pelo Poder Constituinte originário para que seja bem aplicada a sua obra.
Conclusão
Foi visto que a Constituição Federal é um ordenamento jurídico e, como tal, está
sujeita aos métodos de interpretação comuns às demais ordens jurídicas de patamar
infraconstitucional. No entanto, em vista do caráter político do texto constitucional,
notadamente em face das normas de organização do Estado e a previsão de direitos
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
fundamentais, exige-se que as suas disposições sejam interpretadas por um processo
hermenêutico especial.
Dessa forma, a doutrina cunhou metodologias e princípios de interpretação próprios
para se analisar o ordenamento jurídico constitucional, sempre na mira de dar-lhe efetividade,
coerência e eficácia social. Assim, a interpretação das normas constitucionais seria o processo
conjugado das metodologias clássicas de interpretação, como a literal e a sistemática, com o
eventual apoio de metodologias especiais, como o método científico-espiritual e o
hermenêutico-concretizador, juntamente com princípios interpretativos, como o da
concordância prática e o da unidade da constituição.
No entanto, teceu-se crítica a estes sistemas interpretativos, pois partem da premissa
de que as normas constitucionais são uniformes em hierarquia. Com efeito, existem normas
constitucionais superiores às demais e, no caso da Constituição Federal de 1988, essas normas
são as constantes nos Arts. 1º ao 4º do texto. Não se quer dizer que as normas constitucionais
consideradas hierarquicamente inferiores serão consideradas inválidas por força das
superiores, mas estas darão o sentido interpretativo daquelas.
Assim, o primeiro valor a ser considerado para se interpretar uma norma
constitucional é dar-lhe um sentido conforme os fundamentos, objetivos e princípios externos
da República Federativa do Brasil. O exercício de interpretação nesses moldes respeitará a
identidade da Constituição Federal de 1988, dando-lhe coerência como ordenamento jurídico
e uniformizando a manifestação dos intérpretes, especialmente quando diante da colisão de
direitos principiológicos.
No mesmo sentido, demonstrou-se que ao longo das disposições constantes na
Constituição Federal de 1988, algumas normas recebem um realce especial, o que faz crer que
existe uma gradação hierárquica entre normas constitucionais, sendo certo que o ápice dessa
pirâmide é ocupado pelos Arts. 1º ao 4º. Todavia, mais uma vez reforça-se a ideia de que
todas as normas constitucionais são essenciais para a ordem jurídica brasileira, de sorte que a
hierarquia entre elas não se presta para uma negar vigência a outra, mas apenas dar-lhe
direção interpretativa, que, efetivamente, pode ser complementada, caso necessário, com as
metodologias e princípios próprios da hermenêutica constitucional.
335
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
Referências
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336
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
MECANISMO DE INTERPRETAÇÃO E REALIZAÇÃO CONSTITUCIONAL NO
NOVO PARADIGMA DE ESTADO: DUAS FACES DA MESMA MOEDA
MECHANISM OF CONSTITUTIONAL INTERPRETATION AND CONCRETION
OF STATE IN THE NEW PARADIGM: TWO SIDES OF THE SAME COIN
Marília Ferreira da Silva1
Erick Wilson Pereira2
RESUMO: Os novos paradigmas sociais, propugnados pela nova forma de Estado que se
impõe, o Estado Constitucional, urge por maior apreciação. Observando esta tendência que
não tem mais volta, percebe-se que não mais se conceber um Direito que atenda, meramente,
às exigências legalistas. A sociedade pluralista exige, pois, diante da derrocada do modelo
lógico-dedutivo, que ela mesma promoveu, diga-se de passagem, um Direito de cunho
axiológico-valorativo que dê real concreção aos dispositivos constitucionais declarados,
instituídos, mas nem sempre implementados, sob a pecha da programaticidade das normas.
Logo, é indispensável reconhecer e dar efetividade à nova teoria da interpretação
constitucional, de forma que se possa amenizar a inegável tensão havida entre a realidade
constitucional e a própria Constituição. Para tanto, o presente arrazoado pretende delinear os
principais aspectos desse novo método que exige o inevitável e necessário enfrentamento do
paradigma tradicional, demonstrando as suas insuficiências, com base no conflito pragmático
existente o texto e a realidade constitucionais, considerando, desde já, como premissa
inconteste, a renovada atmosfera em que está inserido, e envolvido, o Direito Constitucional:
o Estado Constitucional de Direito.
PALAVRAS-CHAVE: Estado; Novo Constitucionalismo; Hermenêutica.
ABSTRACT: The new social paradigms, proclaimed the new form of government that is
imposed, the State Constitutional urge for greater appreciation. Noting that this trend of no
return, one realizes that there is more that meets law conceives a merely legalistic
requirements. A pluralistic society requires, therefore, before the collapse of logical-deductive
model, she even promoted, say, in passing, a law of nature-axiological evaluative giving
concreteness to real constitutional declared, imposed, but not always implemented, under the
taint of programaticidade standards. Therefore, it is essential to recognize and give effect to
the new theory of constitutional interpretation, so that we can ease the undeniable tension held
between the constitutional reality and the Constitution itself. Therefore, this reasoning aims to
outline the main aspects of this new method requires that the inevitable and necessary
confrontation of the traditional paradigm, demonstrating its shortcomings, based on
undeniable tension existing constitutional text and reality, considering as of now as
1
Advogada. Assessora Jurídica do Município de Nova Cruz/RN. Mestranda em Direito Constitucional na
Universidade Federal do Rio Grande do Norte.
2
Advogado. Especialista em Direito e Cidadania; Criminologia e Direito do Trabalho (todas pela UFRN).
Mestre em Direito Constitucional. Doutor em Direito do Estado (ambos pela PUC/SP). Professor da
Universidade do Estado do Rio Grande do Norte – UFRN. Professor da Escola de Magistratura do Rio Grande
do Norte – ESMARN. Professor da Universidade Potiguar – UNP. Membro da Academia de Letras Jurídicas do
Rio Grande do Norte (Cadeira n. 15: Des. Paulo Pereira da Luz). Diversas obras publicadas.
337
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
unchallenged premise the renewed atmosphere in which it is inserted, and involved,
Constitutional Law: The State Constitutional Law.
KEYWORDS: State; Constitutionalism New; Hermeneutics.
1 INTRODUÇÃO
Sabe-se que no Direito, assim como em outros sistemas, as tendências estão
diretamente relacionadas com o pensamento característico de uma época que é, por sua vez,
tributário das ideias filosóficas que lhe são contemporâneas. Assim, ao positivismo jurídico
atribuem-se as formulações cartesianas e o seu racionalismo, limitando-se o âmbito da
interpretação jurídica.
Agora, a Hermenêutica se amplia para compreender outros elementos em seu
processo de concretização da norma, com o advento da transmudação dos princípios gerais de
Direito em princípios constitucionais, promovendo uma revolução de juridicidade sem
precedente nos anais do constitucionalismo, a partir de meados deste século, espargindo
claridade sobre a compreensão das questões jurídicas, no interior do sistema de normas que
passam a ser vistas através do raio de abrangência dos princípios (BONAVIDES, 2006, p. 258).
É imperioso, pois, enfrentar o modelo ainda vigente de aplicação do Direito que
atende meramente às exigências legalistas em prol do fortalecimento e da realização de um
método de interpretação constitucional que compreenda todas as potências públicas e grupos
sociais envolvidos pela necessidade de concretização dos dispositivos constitucionais, e mais,
pela necessidade de se compreender o espírito da Constituição, dando materialização aos
insculpidos objetivos da República.
É assim, todavia, que o presente estudo se dedica a constatar esta problemática
realidade que, de um lado, repele o formalismo jurídico e suas deduções e, de outro, clama
pela dignificação das interpretações, concedendo a elas um caráter mais humanitário,
condizente com a realidade a que se destinam, quais sejam, as múltiplas relações sociais que,
simultaneamente, nascem, modificam-se e se extinguem, dentro de um âmbito de convivência
inter-relacionada, vulnerável a constantes revoluções circunstanciais, históricas, políticas,
econômicas e culturais. Tudo isso no desiderato de contribuir, mesmo que minimamente, à
construção de uma nova dogmática constitucional, enquanto ator social e operador do Direito,
responsável pela sua realização.
338
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
2 OS NOVOS PARADIGMAS SOCIAIS
Os novos paradigmas sociais, marcados pela disparidade de interesses contrapostos,
impõem a superação do modelo formalista de aplicação do Direito, pelo qual o aplicador está
habilitado unicamente ao silogismo que engessa o sistema jurídico com decisões desprovidas
de conteúdo, apartadas das valorações que devem informar todo ordenamento para que este
esteja devidamente legitimado a compor o mundo dos fatos, através dos preceitos jurídicos.
André Ramos Tavares ressalva, nesta esteira, em sua obra Teoria da Justiça
Constitucional, que “ao lado da hiperlegalidade, havia uma hipolegalidade, pois a lei não mais
supria as aspirações sociais” (TAVARES, 2005, p. 69), apresentando, então, a crise, os
seguintes sintomas: desobediência generalizada à lei; não-aplicação ou aplicação seletiva das
leis pelos órgãos oficiais; ineficiência da aplicação coercitiva da lei entre os particulares.
É nesse sentido que Peter Häberle, com a teoria da sociedade aberta dos intérpretes3,
propõe o esgotamento do modelo lógico-dedutivo, assim como o monismo jurídico, pela
implementação de uma nova concepção tangente à interpretação constitucional.
Neste passo, observa a professora Margarida Camargo (CAMARGO, 2003).
O método sistemático, caracterizado pelo seu hermetismo, e que marcou o
positivismo filosófico dos séculos anteriores, não correspondia mais às
perplexidades e inseguranças causadas por um mundo de novos e variados valores,
notadamente quando as atrocidades do nazismo, cometidas sob a proteção da lei,
mostraram que a lei nem sempre é justa. Daí a atuação do Tribunal de Nuremberg,
no imediato pós-guerra, ao decidir conforme os princípios gerais de moral universal.
Müller, com sua Teoria Estruturante do Direito (2008, p. 197), também apregoa a
superação do legalismo, do formalismo jurídico. Veja-se:
O Direito não se apoia somente na norma verbal, nem pode ser conquistado a partir
dela e com o auxílio do processo puramente lógico, assim como da subsunção obtida
pela via da conclusão silogística. O direito não é idêntico ao texto literal da
disposição legal; contudo, a meta da teoria normativa estruturante aqui desenvolvida
não é estabelecer uma diferença essencial e ontológica entre Lei e Direito, no
sentido da distinção entre potência e ato, entre possibilidade e realidade, entre a ‘lei’
como uma entidade abstrata, a-histórica ou acima da história, e um ‘direito’ que, por
sua vez, é originalmente ontológico.
Assim, o Direito Constitucional, hodiernamente, está dentro de um novo cosmos, um
novo ambiente, envolvido por uma atmosfera teórica e ideológica de um novo tempo, um
Novo Constitucionalismo, denominado, por alguns, Neoconstitucionalismo, modelo que
guarnece o paradigma do novo Estado Constitucional de Direito.
3
Ver tópico 2.
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
As bases desse novo modelo, pois, encontram-se, essencialmente, na própria
Constituição, composta por diretrizes de observância obrigatória; nos princípios e valores com
elementos fulcrais de todo o sistema, inseridos nele com força normativa, e no aplicador do
Direito.
Em suma, nas palavras de Prieto Sanches (2003, p. 101), inspirado em Alexy (2004, p.
160), pode-se traçar o seguinte perfil do constitucionalismo contemporâneo: mais princípios
que regras; mais ponderação que subsunção; mais Constituição que lei; mais juiz que
legislador.
Disto se infere facilmente que a Nova Hermenêutica proposta por este novo
paradigma de Estado recorre, primordialmente, à valoração como forma de se realizar a
Justiça, sendo este o caminho que deve ser trilhado pelo intérprete diante das deficiências ou
insuficiências da norma positiva, objeto de poder do modelo lógico-dedutivo de interpretação,
alicerçado na estrita obediência à decisão estatal.
Acerca disto, não se pode deixar de trazer o contributo de Dworkin com a sua teoria
da interpretação constitucional, pela qual defende a leitura moral da Constituição como forma
de levar a moralidade política ao coração do Direito Constitucional.4 Acredita ele que a
interpretação constitucional deve tomar em consideração a história e a estrutura geral da
Constituição, assim como a filosofia moral e política.
Este novo modelo, pois, não corresponde a um movimento, mas, sim, a um
agrupamento de ideias que adquiriram sentidos idênticos ao tentar explicar a atuação do
Direito nos Estados Constitucionais, já que o Direito tem reclamado a construção de novas
abordagens que possibilitem responder às demandas sociais surgidas com o desenvolvimento
socioeconômico conflituoso, contraditório e não-linear emergentes. Ressalve-se que tal
reclame não é só pela construção de uma nova teoria do Direito, mas, sim, e por consequência
dessa, de uma prática hermenêutica que valorize os aspectos axiológico, principiológico e
sociológico e a dialeticidade do fenômeno jurídico, materializando, assim, os propósitos da
República.
4
Cabe ressalvar que com sua teoria, não quer Dworkin conceder poder absoluta aos juízes de impor suas
convicções morais irrestritamente ao público. Senão vejamos: "Los jueces, cuyas convicciones políticas son
conservadoras, van naturalmente a interpretar dichos princípios constitucionales de una manera conservadora,
como lo hicieron em los primeiros anos del siglo passado, cuando ellos erroneamente suponían que ciertos
derechos acerca de la propiedad y el contrato eran fundamentales para la libertad. Los jueces cuyas convicciones
son Los jueces cuyas convicciones son más liberais van naturalmente a interpretar aquellos princípios de un
modo liberal, como lo hiciieron em los días gloriosos de la Corte Warren”. (DWORKIN, Ronald. La lectura
moral de la constituición y la premissa mayoritaria. Instituto de Investigaciones Juridicas. Universidade Nacional
Autónoma de México, 2002, p. 06).
340
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
3 A HERMENÊUTICA CONSTITUCIONAL DE PETER HÄBERLE
A sociedade aberta definida por Häberle (1997) cumpre um dúplice papel no novo
método de interpretação constitucional. Isto porque tanto possui caráter objetivo, ao buscar
atender às expectativas sociais; como é criadora dessa interpretação, vez que sofre influência
destes no processo criativo em que se constitui a interpretação constitucional.
Em outras palavras:
A interpretação constitucional é, em realidade, mais um elemento da sociedade
aberta. Todas as potências públicas, participantes materiais do processo social, estão
nela envolvidas, sendo ela, a um só tempo, elemento resultante da sociedade aberta e
um elemento formador ou constituinte dessa sociedade. (...) Os critérios de
interpretação constitucional hão de ser tanto mais abertos quanto mais pluralista for
a sociedade.
Com a sua teoria da sociedade aberta dos intérpretes, Häberle também propõe a
ruptura do monopólio estatal da interpretação constitucional, o monismo jurídico,
considerando que em uma sociedade aberta também cabe aos agentes sociais a função de
intérprete do Direito, além de destinatário:
Todo aquele que vive no contexto regulado por uma norma e que vive com este
contexto é, indireta ou, até mesmo diretamente, intérprete dessa norma. O
destinatário da norma é participante ativo, muito mais ativo do que se pode supor
tradicionalmente do processo hermenêutico. Como não são apenas os intérpretes
jurídicos da Constituição que vivem a norma, não detém eles o monopólio da
interpretação da Constituição.
Consoante este autor, vivenciar a norma é interpretá-la, razão pela qual, por não
serem os juízes os únicos a participar desse convívio com o Direito, certamente não seriam
apenas eles os legitimados a interpretar a norma jurídica, pelo que introduz a ideia acima
descrita de que o destinatário da norma é participante ativo do processo hermenêutico, ainda
que figure como pré-intérprete.
Assim, pois, conclui que o povo
é também um elemento pluralista para a interpretação que se faz presente de forma
legitimadora no processo constitucional: como partido político, como opinião
científica, como grupo de interesse, como cidadão. A sua competência objetiva para
a interpretação constitucional é um direito da cidadania. (BASTOS, 2002, p. 250).
Porém, cabe ressaltar os riscos que a implementação irrestrita desta teoria poderia
causar, sem olvidar que, através dela, ter-se-ia uma exegese mais realista e democrática,
fazendo um breve paralelo com a doutrina do jurista brasileiro André Ramos Tavares, em sua
obra Teoria da Justiça Constitucional, que tal risco já previa.
Tavares sugere que qualquer um é partícipe na vida constitucional de seu Estado, e,
nessa medida, pode transformar-se em “curador da Constituição” (2005, p. 71), já que unidos
341
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
pela “vontade de Constituição”5 e pela ativa luta para que a Constituição seja cumprida em
suas determinações.
Karl Loewenstein, trabalhando a ideia de sentimento constitucional, muito próxima à
de vontade de Constituição, afirma o seguinte:
Com la expresión sentimiento constitucional (Verfassungsgefuhl) se toca uno de los
fenómenos psicológico-sociales del existencialismo político más difíciles de captar.
Se podría describir como aquella consciência de la comunidade que, transcendendo
a todos los antagonismos y tensiones existentes politicopartidistas,
economicosociales, religiosos o de outro tipo, integra a detentadores y destinarios
del poder em el marco de um orden comunitário obligatorio, justamente la
constitución, sometiendo el processo político a los interesses de la comunidade. Este
fenómeno pertenece a los imponderables de la existência nacional y no puede ser
producido racionalmente, aunque puede ser fomentado por uma educación de la
juventude llevada a cabo consecuentemente y, bien es certo, de manera muy
diferente a la disposición sobre ele papel de la Constitución de Weimar (...), según la
cual cada escolar, al terminar la escuela, debía recibir em mano um ejemplar de la
Constitución. También pude contribuir em algo al fortalecimento constitucional el
manejo consciente, pero no insistente, del simbolismo nacional. Sim embargo, la
formación del sentimiento constitucional depende ampliamente de los factores
irracionales, de la mentalidade y la vivencia histórica de um Pueblo, especialmente
de si la constitución há salido airosa también em épocas de necessidade nacional.
(1986, p. 200).
Contudo, Tavares consigna que não se pode desconsiderar, no extremo oposto do que
propõe a teoria da sociedade aberta dos intérpretes de Peter Haberle e da sua própria ideia de
“curador da Constituição”, a hipótese na qual o próprio povo se transforma de “amigo da
Constituição” em seu mais radical adversário, procurando depô-la, por uma outra, em nome
de uma nova ideologia ou de interesses majoritários.
Assim, pois, emerge a relevância de se constituir uma instituição “amiga” da
Constituição, de forma que esta possa oferecer, nesse momento de crise, o devido apoio e
desconsiderar a ordem constitucional anterior.
É esta a proposta de Tavares (2005, p. 76). Veja-se:
A necessidade de uma instituição orgânica para além do povo é praticamente
inafastável. De outra forma, um constante processo constituinte seria praticamente
inevitável, porque, mesmo naqueles casos em que a violação fosse flagrante, o povo,
desejando-o, poderia ignorar a ofensa, por considera-la benéfica ou necessária. Uma
instituição responsável pela defesa e pelo cumprimento da Constituição, nessas
circunstâncias, pouco poderia fazer, e sua operacionalidade funcional seria
praticamente inexistente. Além das dificuldades de ordem técnica, que impediriam
ser o povo o curador da Constituição, haveria a objeção de ordem material,
consistente na tomada constante de decisões constituintes pelo soberano (povo).
5
Esta vontade de Constituição origina-se de três vertentes, segundo Hesse: a) compreensão da necessidade e do
valor de uma ordem normativa inquebrantável, que proteja o Estado contra o arbítrio desmedido e disforme; b)
compreensão de que esta ordem precisa estar em constante processo de legitimação e, ainda, c) a compreensão
de que esta ordem não logra ser eficaz sem o concurso da vontade humana, que a manterá por atos volitivos.
(HESSE, Konrad. A força normativa da Constituição. Trad. Gilmar Mendes. Porto Alegre: SAFe, 1991, p. 19)
342
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Para Schmitt, um modelo como esse permitiria que as violações se transformassem
em modificações constitucionais, quando confirmadas pelo povo. Segundo ele, tal modelo
realizaria, na verdade, uma democracia direta, que como tal teria de ser discutida,
preocupando-se, assim, com um eventual comprometimento do elemento segurança jurídica.
(TAVARES, 2005, p. 77).
Desta feita, Tavares conclui pela conjunção de aspectos democráticos com o
necessário aporte técnico, conciliando a atuação do cidadão com a de uma instituição
especializada, atribuindo àquele legitimidade para deflagrar o processo de proteção da lei por
meio desta.
É certo que a Constituição de 1988 previu a participação do cidadão no poder
decisório em diversas circunstâncias asseguradoras do processo democrático, e outras,
conforme decorre da ação popular (art. 5º, LXXIII), do plebiscito, referendo e iniciativa
popular de lei (art. 14, I), além do direito ao voto. (GARCIA, Maria. Revista de Direito
Constitucional e Internacional, 2004, p. 105).
Como se sabe, a Constituição é um documento político e jurídico dirigido a todos os
cidadãos, sendo estes os seus essenciais destinatários e também intérpretes, seja cumprindo-a
ou a fazendo cumprir. Todavia, é interessante que tal expediente se dê através do órgão
competente, exercendo, assim, o cidadão, a sua participação no processo hermenêutico.
Parece mais sensata, pois, a proposição do jurista brasileiro em detrimento da
idealização de Häberle com a sua proposta de ampliação do quadro de intérpretes da
Constituição, cuja abertura significaria mais uma porta para a entrada de ingerências não
mediatizadas propriamente pelo Direito, aumentando a probabilidade de conflitos, que o
resguardo da Constituição, como quer.
4 OS NOVOS MÉTODOS DE INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL
O esforço dos últimos tempos no que tange à realização da Justiça Constitucional
refere-se quase que exclusivamente à interpretação do texto normativo, meio que é de se
conceder força concretiva aos comandos constitucionais, aproximando-os da realidade
constitucional.
É o que se vê das leituras das mais diversas teses formuladas dentro da Teoria
Material da Constituição, a exemplo de Hesse, Häberle, Müller, Canotilho, enfim.
Para se promover a interpretação constitucional, pois, foram se desenvolvendo
alguns métodos, cada um deles tributário do pensamento da época em que surgia. Estes
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métodos não detêm exclusividade na sua aplicação. Ao contrário, percebe-se, em dados casos,
a necessidade de conjugação deles, em um mesmo processo hermenêutico, com vistas a um
entendimento compatível com os anseios sociais e com o tempo vivenciado.
Segundo Canotilho, os métodos de interpretação constitucional são6: a) jurídico ou
hermenêutico-clássico; b) tópico-problemático; c) hermenêutico-concretizador; d) científicoespiritual; e e) normativo-estruturante.
O primeiro método, jurídico ou hermenêutico-clássico, parte da premissa de que a
Constituição é uma lei, devendo ser interpretada como tal, em conformidade com a tese da
identidade entre a interpretação constitucional e interpretação legal, dispondo o intérprete dos
seguintes elementos tradicionais ou clássicos da hermenêutica jurídica, que remontam à
Escola Histórica do Direito de Savigny, de 1840: a) gramatical (ou literal); b) histórico; c)
sistemático (ou lógico); d) teleológico (ou racional); e e) genético.
O método tópico-problemático foi criado por Theodor Viehweg, que, em 1953,
publicou a sua obra Tópica e Jurisprudência, marco divisor no pensamento jurídico
contemporâneo, sendo um dos mais relevantes trabalhos da época por romper com o
pensamento positivista até então dominante. Teve surgimento na crise da metodologia
tradicional de Savigny.7
Neste método, deve a interpretação partir da discussão do problema concreto que se
pretende resolver para, só ao final, se identificar a norma adequada. Parte-se do problema, do
caso concreto, para a norma, trilhando o caminho inverso dos métodos tradicionais, que
buscam a solução do caso a partir da norma.
O projeto teórico de Viehweg é alimentado pela constatação de que, em Direito, nem
sempre é possível encontrar uma resposta evidente e inquestionável para cada caso concreto,
de modo que muitas vezes o juiz – ou qualquer outra autoridade com poder decisório – é
chamado a realizar valorações que vão condicionar sua decisão.
6
Aqui far-se-á breves comentários acerca dos métodos interpretativos apontados por Canotilho, sem análise
meritória, apenas a título de esclarecimento.
7
O termo positivismo pode ser entendido em múltiplos sentidos, como mais tarde reconheceu o próprio Viehweg
num breve artigo destinado a esclarecer o que ele próprio designa por “positivismo no sentido existente aqui e
agora”. Para o autor de Tópica e Jurisprudência, o positivismo jurídico prático (que é para ele o mais relevante)
considera que o operador do direito está sempre obrigado a se ater, em todas as suas considerações dogmáticas, à
constituição positiva válida ici et maintenant, bem como às leis positivas e seus equivalentes, de acordo com a
constituição. O positivista está obrigado, em todos os casos, a não transgredir a lei em sentido amplo,
descartando qualquer indagação “transpositiva” (VIEHWEG, 1965, p. 184). A atitude positivista por parte do
jurista pecaria por não “pensar a respeito das suas últimas consequências”, sendo por isso mesmo considerada
um equívoco tanto pelo tomismo aristotélico quanto pelo pensamento marxista-leninista. De acordo com
Viehweg (p.183-189), esse positivismo jurídico prático não serve para realizar a função social da dogmática
jurídica, haja vista que caracteriza-se por um ceticismo exagerado contra as interpretações mais elásticas dos
textos jurídicos, além de um perigoso ceticismo quanto a legitimações/fundamentações muito amplas, já que não
consegue se posicionar frente a valores, em especial frente à aporia fundamental do direito: a justiça.
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Viehweg e Perelman apresentam uma convergência de entendimentos na medida em
que ambos criticam o positivismo por sua incapacidade de lidar com questões controvertidas,
para as quais é simplesmente impossível uma perfeita interpretação através de critérios
inflexíveis. (BUSTAMANTE, 2000, p. 153-155).
Já o método hermenêutico-concretizador, idealizado por Hesse, parte da ideia de que
a leitura do texto, em geral, e da Constituição, deve se iniciar pela pré-compreensão do seu
sentido através de uma atividade criativa do intérprete. Ao contrário do método tópicoproblemático, que pressupõe o primado do problema sobre a norma, o método concretista
admite o primado da norma constitucional sobre o problema.
Este método considera a interpretação constitucional como uma atividade de
concretização da Constituição, circunstância que permite ao intérprete determinar o próprio
conteúdo material da norma.
Porém, é interessante registrar que Hesse não entende toda realização de normas
constitucionais como interpretação. Para ele, haverá interpretação constitucional quando, a
partir de uma dúvida, se dá resposta a uma questão constitucional que a Constituição não
permite resolver de forma concludente, pelo que evidencia a necessidade do problema
concreto.
Questão presente no cerne das proposições de Hesse é a que diz respeito à
efetividade de suas normas, o que faz emergir a problemática da chamada força normativa da
Constituição, de fundamental relevância à análise da hermenêutica constitucional, já que todo
processo de interpretação se implementa a partir da normatividade jurídica constitucional.
(1991, p. 34).
Konrad Hesse na tentativa de manter uma conexão com o pensamento de Lassale,
advogado alemão, contemporâneo de Karl Marx, para quem a Constituição Jurídica apenas é
efetiva quando corresponde à Constituição Real, sob pena de ser mera “folha de papel”,
constata que, efetivamente, a visão deste autor segue a sua lógica, pois, inegavelmente, entre a
norma fundamentalmente estática e racional e a realidade fluida e irracional existe uma tensão
necessária e imanente que é ineliminável e se expressa em conflitos entre a Constituição
Jurídica e a Real.8
8
Hesse indaga, em determinado momento, o seguinte: “A questão que se apresenta diz respeito à força
normativa da Consttuição. Existiria, ao lado do poder determinante das relações fáticas, expressas pelas forças
políticas e sociais, também uma força dominante do Direito Constitucional? Não seria essa força uma ficção
necessária para o constitucionalista, que tenta criar a suposição de que o Direito domina a vida do Estado,
quando, na realidade, outras forças mostram-se determinantes?” (HESSE, Konrad. Op. cit., p. 11).
345
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Consequência direta dessa visão do mundo jurídico-constitucional reside em que, de
acordo com J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira (1991, p. 43),
Está hoje definitivamente superada a ideia de Constituição como um simples
concentrado de princípios políticos, cuja eficácia era a de simples directivas que o
legislador ia concretizando de forma mais ou menos discricionária. (...) A força
normativa da Constituição expande-se até os terrenos da ordem econômica e social.
Mesmo nos domínios em que a Constituição tradicionalmente não penetrava ou em
relação aos quais costumava ser olhada apenas como mensagem ou utopia,
reconhece-se (...) a força conformadora das normas constitucionais.
J. J. Gomes Canotilho (2007, p. 220), tratando sobre o método hermenêuticoconcretizador de Hesse, expõe resenha cuja reprodução, em parte, é inevitável:
(...)
O método hermenêutico é uma via hermenêutico-concretizante, que se orienta não
para um pensamento axiomático, mas para um pensamento problematicamente
orientado. Todavia, este método concretizador afasta-se do método tópicoproblemático, porque enquanto o último pressupõe ou admite o primado do
problema perante a norma, o primeiro assenta no pressuposto do primado do texto
constitucional em face do problema.
Proposto por Rudolf Smend, o método científico-espiritual dispõe que a
interpretação constitucional deve levar em consideração a compreensão da Constituição como
uma ordem de valores e como elemento do processo de integração. Assim, a interpretação
deve aprofundar-se na pesquisa do conteúdo axiológico subjacente ao texto, pois só o recurso
à ordem de valores obriga a uma captação espiritual desse conteúdo axiológico último da
Constituição.
Partindo da premissa de que existe uma relação necessária entre o texto e a realidade,
o método normativo-estruturante, idealizado por Friedrich Müller, afirma que o texto é
apenas a ponta do iceberg, não compreendendo a norma apenas o texto, mas também um
pedaço da realidade social.
Para
Müller,
os
métodos
tradicionais
utilizados
(silogismo,
polarização,
interpretações gramatical, sistemática, genética, histórica e teleológica) não possuem um
direcionamento à interpretação constitucional, já que desconsideram o âmbito normativo
como parte da norma, pondo-o apenas como elemento do mundo fático. Com isso, o professor
alemão quer estabelecer que norma e texto normativo não se confundem, indo contra o
normologismo que tende “a ver a lógica normativa no sentido de uma lógica do texto
normativo e de seu contexto linguístico e conceitual” (MÜLLER, 2008, p. 192).
346
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Este posicionamento se aproxima da Tópica9, onde interpretação significa adequação
mútua entre princípio e texto, ao passo que a teoria da norma jurídica (estruturante do Direito)
busca reconhecer a interpretação “como complementação daquilo que está escrito” (2008, p.
194). É um método também concretista, diferenciando-se dele, porém, na medida em que a
norma a ser concretizada não está inteiramente no texto, sendo o resultado entre este e a
realidade.
Desta feita, a partir das ideias veiculadas por estes métodos de interpretação,
representativos da Nova Hermenêutica, percebe-se o distanciamento que a teoria da norma
tem tomado das ideias do Positivismo Jurídico, em vista de que a mera subsunção da lei ao
caso concreto não atende à complexa tessitura social, informada por tantas desigualdades.
É importante, entretanto, esclarecer que a nova interpretação constitucional que se
impõe não representa o afastamento dos métodos tradicionais de hermenêutica nem tampouco
a aplicação restrita de um método novo na luta por dar sentido e buscar o alcance da norma
jurídica, com vistas à sua aplicação aos casos concretos.
Na verdade, há que se os unir, num trabalho de complementação. Por esta razão é
que se dedicou esta parte a tratar dos modelos acima de interpretação dos textos normativos,
abordando brevemente suas propostas, de onde se pode inferir a viabilidade da somatória
delas, aplicando-as pontualmente no processo de concretização normativo-constitucional.
5 A RELEVÂNCIA DA HERMENÊUTICA CONSTITUCIONAL NA REALIZAÇÃO DO
ESTADO (CONSTITUCIONAL) DEMOCRÁTICO DE DIREITO
Sabe-se que as leis jurídicas não exprimem uma determinada realidade (plano do
ser), mas, sim, a projeção de comportamentos, buscando transformar o mundo real em um
mundo ideal (plano do dever ser), sendo por esta razão considerada como a ciência do dever
ser.
Ocorre com o Direito fenômeno semelhante ao que se dá com a Arte, com os objetos
culturais, quando se tenta explica-los, já que a interpretação destes varia conforme as
experiências do observador, acrescida sempre de uma nova realidade informada pela
subjetividade do intérprete que sempre promove uma nova análise, “num processo
interminável de superação, mas, ao mesmo tempo, de conservação e de absorção de
significados” (COELHO, 1997, p. 33).
9
Para o processo de concretização, Müller afirma que a norma aparece diferenciada de acordo com o âmbito
normativo e com a ideia normativa fundamental do programa normativo, mantendo-se, sempre, a norma como
critério vinculante para a escolha dos topoi (pontos e vista argumentativos). (Op. cit., p. 205).
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Celso Bastos (2002, p. 20) entende que
No campo cultural a interpretação vem a ser a designação, a compreensão de
determinado fenômeno. (...) Os bens culturais, por expressarem a essência humana
de uma dada época e civilização dotada de valores, através da interpretação podem
ser aplicado para explicar determinados fenômenos.
Assim, certo que o Direito se projeta através da linguagem humana, e que é um
objeto cultural, quanto mais abstrata for a linguagem utilizada em seu preceitos, maior será a
margem de atividade do hermeneuta e, por consequência, maior será a relevância do processo
de interpretação das normas, eivado das subjetividades do intérprete, carregado de valores
sociais.
Paulo de Barros Carvalho, ensinando sobre linguagem, diz que é ela “a palavra mais
abrangente, significando a capacidade do ser humano para comunicar-se por intermédio de
signos cujo conjunto sistematizado é a língua” (PEREIRA, 2004, p. 29).
Neste particular, pois, há que se trazer à baila o magistério do Prof. Erick Wilson
Pereira, quando trata da linguagem como uma forma de abuso de poder, na qualidade de
instrumento de comunicação. Para ele, é no plano pragmático da linguagem que ocorre a
prática do abuso do Poder, porque as formas de utilização dos signos pelos sujeitos da
comunicação, em termos de produzir mensagens, são infinitas.
Segundo Paulo de Barros Carvalho, citado por Pereira, a linguagem persuasiva é
aquela que visa convencer ou persuadir com o intuito, de quem expede a comunicação, de
convencer o interlocutor a aceitar uma argumentação. Tal modalidade, pois, é de extrema
relevância como forma de impor uma vontade, essencial no âmbito do Poder, nos discursos
políticos, onde bem substitui a verdade, onde se constitui arma fundamental da luta que se
trava no âmbito público. (PEREIRA, 2004, p. 31-32).
Hilton Japiassú e Danilo Marcondes conceituam esta prática através da expressão
mentira, ato através do qual um emissor altera ou dissimula volitivamente aquilo que ele
reconhece como verdade, fazendo com que o receptor acredite ser verdadeiro algo que é
sabidamente falso.
Na lição platônica, a mentira tem de ser empregada – especialmente para a
manutenção da relação de dominação, ou seja, para fundamentar e solidificar a crença de que
cabe a uns mandar e a outros obedecer, e de que isso é uma necessidade absoluta, ou seja, a
vontade de deus, que encontrou na Constituição a sua expressão. E Platão diz mais, diz que
“torna-la crível exige, porém, grande capacidade de persuasão” (KELSEN, 2000, p. 239), o que
se dá através do emprego manipulado da Linguagem.
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
Tanto o é que Hannah Arendt chega a afirmar que, se em uma comunidade de
homens, existir um cuja opinião seja dada com seriedade e regulamentada pelo sentido da
bondade e que, por conseguinte, ame seus inimigos e não exista o medo de pagar o mal com o
bem, este não poderá fazer outra coisa senão manter-se afastado da Política. (PEREIRA, 2004,
p. 33).
Com este breve arrazoado quis-se apenas demonstrar a importância do elemento
linguístico no discurso político, e, por conseguinte, no Direito, aos quais estão atreladas as
decisões judiciais, resultados do processo hermenêutico de significação da norma,
essencialmente as oriundas do Supremo Tribunal Federal, Corte Política, em vista de que
objetiva, em seus atos de poder, não apenas convencer os destinatários, mas também,
transparecer que as demandas têm solução, através da manipulação das informações, da
Linguagem.
Para corroborar a relevância do Direito (Constitucional) numa dimensão política, o
que lhe impede a neutralidade diante das crises que assaltam o Estado e a sociedade, Paulo
Bonavides (1985, p. 317) ensina:
O direito não é ciência que se cultive com indiferença ao modelo de sociedade onde
o homem vive e atua. Não é a forma social apenas o que importa, mas em primeiro
lugar a forma política, pois esta configura as bases de organização sobre as quais se
levantam as estruturas do poder.
Estando assentado que Direito e Política entrelaçam-se, entre outros, por meio da
Linguagem, e qual tal entrelaçamento tem influências diretas nas decisões judiciais, cabe
inferir, igualmente, e como corolário, que os processos de interpretação das normas,
essencialmente as constitucionais, encontram-se sob esta mesma influência, motivo pelo qual
impõe-se entender que as base política que serviu de supedâneo ao positivismo jurídico cedeu
espaço diante da nova realidade sócio-constitucional, fator mutante.
Assim sendo, torna-se fácil compreender que a inconteste evolução social,
interminável, é acompanhada da evolução de seus consectários, entre eles o Direito e o
Estado, numa relação de permanente aperfeiçoamento, sempre na busca pelo apaziguamento
dos conflitos sociais, típicos de uma sociedade hipercomplexa.
Como se sabe, dar cabo aos conflitos sociais é a finalidade primeira do Direito que
estabelece padrões comportamentais “justos” que se antecedem aos acontecimentos,
protegendo os direitos da pessoa humana e também fixando deveres a eles correlatos, como
forma de harmonizar e equilibrar os interesses opostos conviventes em uma dada sociedade.
Tal expediente se realiza, porém, através da aplicação da lei ao caso concreto, mediante
atividade hermenêutica e não mera subsunção.
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Porém, a teor do que já fora brevemente delineado no item 1, a aplicação do Direito
como forma de solver os impasses que se insurgem no seio social também sofreu evolução
para acompanhar os novos paradigmas que se impunham.
Logo, o silogismo jurídico, mera observância às exigências legalistas, de forma
objetiva, deixou de atender às demandas sociais que exigem, agora, um Direito de cunho mais
subjetivo que promovesse a compreensão de cada caso, a partir de suas particularidades,
valorando-as.
Tal imposição, fez com que ganhasse espaço cada vez mais a atividade do
hermeneuta que exerce exatamente esse trabalho, mais humano e menos mecânico, de
aplicação do Direito. Surge a Nova Hermenêutica Constitucional, com novas doutrinas,
passando-se a compreender que todo texto exige interpretação, já que as circunstâncias
espaciais, temporais e pessoais podem propor realidades diferentes. Além disso, há que se
considerar o caráter de abstração e vagueza de algumas palavras ou expressões e a
subjetividade inerente de quem produz o texto e de quem o interpreta, cabendo a este
determinar o conteúdo destas normas constitucionais.
Para Celso Bastos (2002, p. 37), e em consonância com o entendimento acima
esposado, interpretação é a atribuição de sentido a um texto. Esse simples conceito já revela
algo de fundamental na atividade interpretativa: o elemento vontade é imanente à
interpretação.
Este mesmo jurista, continua, salientando que:
A norma constitucional, muito frequentemente, apresenta-se como uma petição de
princípios ou mesmo como uma norma programática sem conteúdo preciso ou
delimitado. Como consequência direta desse fenômeno surge a possibilidade da
chamada “atualização das normas constitucionais. (2002, p. 39)
Todavia, e evidentemente, o limite do intérprete deve ser sempre a letra da
Constituição, sendo-lhe permitido, apenas, a conformação desse texto à realidade vivenciada,
vedada arbitrariedades.
Já fora ressaltado em parágrafos anteriores a relação entre Direito e Política como
inerente ao processo de realização de cada um desses sistemas autônomos, que se imbricam
no aperfeiçoamento do Estado Democrático de Direito10 que evolui para se intitular Estado
Constitucional de Direito. Por esta razão, entende-se que a interpretação constitucional deve
ser necessariamente jurídico-política. Dada a inegável relação simbiótica havida entre os ditos
sistemas, não se pode negar relevância aos influxos políticos no âmbito jurídico, já que o
10
Tal relação, peculiaridades, vantagens e deficiências não é objeto do presente arrazoado, pelo que se deixa
tecer maiores considerações.
350
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Estado é um “fenômeno político por Excelência”, como já prenuncia Bonavides (2003, p. 40),
mais que jurídico.
Assim, este mesmo constitucionalista (2002, p. 420) entende que
O erro do jurista puro ao interpretar a norma constitucional é querer exatamente
desmembrá-la de seu manancial político e ideológico, das nascentes da vontade
política fundamental, do sentido quase sempre dinâmico e renovador que de
necessidade há de acompanha-la.
Nesse sentido, Friedrich Müller (1995, p. 23) leciona que é insuficiente um enfoque
que
alega dar conta da metódica jurídica de maneira autônoma como uma indagação
“puramente jurídica”, i. e, apenas a partir da tecnicidade profissional, sem incluir as
suas condições “políticas” (sociais) – como fazem o positivismo e as práticas
neopositivistas, v. g. sob o lema da “tecnocracia”.
Não se pode descurar que o Direito, objeto cultural como é, carrega valores sociais
que variam de uma época para outra, influenciado pelas circunstâncias do momento. Por
assim ser, a “atualização” das normas constitucionais busca, na sociedade, essencialmente
política, a legitimidade para sua interpretação.
Todavia, há que se cuidar para que a interpretação constitucional não se dissolva em
pura especulação política, pelo que se deve buscar sempre o equilíbrio (2002, p. 422), em prol
da realização fática e jurídica do Estado Constitucional (Democrático de Direito), pelo
prestígio que inegavelmente se deve reconhecer à Hermenêutica Constitucional propulsora e
produto do novo paradigma de Estado.
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Após breve contextualização, buscou-se tratar, com objetividade, da teoria de Peter
Häberle (a sociedade aberta dos intérpretes) e dos mecanismos de interpretação mais
condizentes com o atual modelo de Estado, além das clássicas metodologias propostas. No
que tange à aplicação destes modelos de interpretação e dos respectivos métodos, consignouse, com cautela, a importância e particularidade de cada um, ressalvando-se, inclusive, a
possibilidade do embricamento deles num mesmo caso concreto, para que se produza uma
norma constitucional que atenda aos anseios sociais.
Logo, ao passo em que se registra a relevância da aplicação deles pelo intérprete,
essencialmente pelo Poder Judiciário, registra-se também o risco de construções
351
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
interpretativas demasiadamente abertas, ilimitadas, desparametrizadas, sob pena de se por em
xeque a segurança jurídica, característica de um constitucionalismo em crise.
O que se percebe, pois, à guisa de considerações finais, é que o silogismo jurídico, a
mera aplicação da lei ao caso concreto, não encontra mais respaldo em uma sociedade
pluralista como a brasileira, que impõe, por suas sempre novas necessidades, um Direito mais
afeiçoado às particularidades de cada caso concreto, ao pensamento tributário da época, o que
é demasiado plausível.
Todavia, também não é aceitável a produção de decisões que exorbitem o Texto
Constitucional, já que é ele o limite de qualquer atividade hermenêutica para que não se
incorra em violações, escondidas sob o manto da Nova Hermenêutica Constitucional.
Entretanto, não havendo como optar, exclusivamente, entre a consagração dos
princípios morais abstratos e a manutenção da Constituição na mão morta do passado, há que
se lutar pelo ponto médio, ocasião em que exsurge clara a significação dos princípios e a
relevância do hermeneuta no processo de interpretação da norma, pois que cabe aos primeiros
humanizar a concretização da lei e ao segundo desnudá-la, já que a norma se encontra em
estado de potência involucrada no texto, sob o influxo não apenas do texto normativo (dever
ser), mas também dos dados da realidade (ser), o que impede haver soluções previamente
sistematizadas, onde se encontra o diferencial da Nova Hermenêutica que se propõe sempre a
manifestar o espírito da legislação, respeitante sempre ao que quer a Constituição, própria do
Estado Constitucional e de seus objetivos, em detrimento do falido sistema dedutivo, de
aplicação lógica do Direito.
Pode-se concluir, pois, que a realização constitucional encontra-se intrinsecamente
interligada ao manejo das interpretações normativas, em vista de que, sem ela, a norma posta
é morta, pois que o que lhe dá vida é a interpretação que se lhe atribui. Daí, a iminente
necessidade de se reconhecer a proeminência da atividade hermenêutica, e nela, a atividade de
todos os que operam o Direito, atores sociais, responsáveis pelo drama sócio-constitucional
vivenciado, desde que, por óbvio, pautada pelos limites “do sistema constitucional”. Repitase: “do sistema constitucional”. O que não implica dizer “da Constituição”.
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
NEOCONSTITUCIONALISMO, A “VIRADA HARTIANA” E O ATIVISMO
JUDICIAL: leitura a partir do atual paradigma jurídico
NEOCONSTITUTIONALISM, THE “ UPSET HARTIANA" AND THE JUDICIAL
ACTIVISM: reading from the current legal paradigm
RESUMO
Tiago Clemente Souza1
Marielen Paura Orlando2
O presente artigo tem como objetivo apresentar uma crítica às construções teóricas que negam a
abertura do Direito, mediante uma comunicação necessária com a Moral, determinando uma
atuação ativa/criativa do julgador, principalmente a partir da chamada “virada hartiana”. Assim,
buscaremos apresentar inicialmente o conteúdo objetivo da Ciência Jurídica de Hans Kelsen,
para se determinar a fase objetiva e a fase interpretativa do fenômeno jurídico, posteriormente
apresentaremos o que entendemos como o atual paradigma jurídico decorrente da reviravolta
hermenêutico-linguística-pragmática e “virada hartiana”, e finalmente a incongruência em se
defender o Ativismo Judicial, como atividade atípica, em tempos de Neoconstitucionalismo.
PALAVRAS-CHAVE: Positivismo Jurídico; Atual Paradigma Jurídico; Reviravolta
Linguística; “Virada Hartina”; Ativismo Judicial.
ABSTRACT
This paper aims to present a critique of theoretical constructs that deny the opening of the Law,
by communication required with the Morale, determining an active performance / creative
judgmental, especially from the so-called "turn hartiana." So, try to present the first objective
content of Legal Science of Hans Kelsen, to objectively determine the stage and phase of
interpretive legal phenomenon, then introduce what we understand as the current legal paradigm
due to the twist-linguistic-hermeneutic and pragmatic "turn hartiana "and finally the incongruity
in defending the Judicial Activism as atypical activity in times of neoconstitutionalism.
KEYWORDS: Legal Positivism; Current Legal Paradigm; Turnaround Linguistics; "Upset
Hartina"; Judicial Activism.
INTRODUÇÃO
Em tempos de Neoconstitucionalismo tornou-se tema da moda sustentar a
superação do positivismo jurídico, entendido como construção teórica ultrapassada,
obsoleta, que não mais satisfaz às pretensões da humanidade.
A grande questão se revela quando após o fim da Segunda Guerra Mundial
diante das atrocidades cometidas pelo eixo, estudiosos como Gustav Radbruch
incriminaram Hans Kelsen como teórico legitimador do Estado Nazista, conclamando a
moral como grande salvadora dos futuros ordenamentos jurídicos, que deveriam sequer
1
Mestrando em Teoria do Direito e do Estado pelo Univem, bolsista Capes/Prosup modalidade 1.
Membro do Grupo de Pesquisa Constitucionalização do Direito Processual. Graduado em Direito pelo
Centro
Universitário
Eurípides
de
Marília/Univem
em
2011.
Advogado.
email:
[email protected].
2
Pós-Graduanda em Direito Processual Civil pelo Centro Universitário Eurípides de Marília – UNIVEM.
Graduada em Direito pela mesma instituição. Advogada. Endereço eletrônico para contato:
<marielen¬¬[email protected]>.
355
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
reconhecer a existência dos enunciados normativos extremamente injustos. Retornando
os estudiosos do Direito ao eterno debate entre jusnaturalismo versus juspositivismo.
O presente artigo tem por objetivo realizar algumas considerações sobre o atual
paradigma jurídico e o chamado Ativismo Judicial, para tanto iremos apresentar a
Ciência Jurídica de Hans Kelsen exposta na Teoria Pura do Direito, verificando que se
trata de construção científica que busca extirpar, num primeiro momento, qualquer
construção ideológica (seja ela da social-democracia, do liberalismo político, do Estado
do bem-esta-social ou qualquer outra posição política) quando no campo científico, sem
que, posteriormente, não reconheça a necessária e natural ingerência axiológica.
No segundo e terceiros capítulos abordaremos o que chamamos de atual
paradigma jurídico, construído a partir de uma análise crítica do direito oriundo das
teorias clássicas, em que buscaremos demonstrar a (re)aproximação entre direito e a
moral, que culminará na necessidade de se estabelecer uma ética do discurso diante do
atuação criativa do hermeneuta, sendo fruto da reviravolta linguística e da “virada
hartiana”, ocasião em que faremos a análise da construção do Direito a partir do
comportamento ativo do julgador.
Finalmente no último capítulo dissertaremos sobre o comportamento ativo do
julgador, sendo certo que as construções teóricas desenvolvidas ao redor do Ativismo
Judicial nada mais representam do que uma tentativa de se estabelecer o direito do
observador, tecnocrata, que não admite a função criativa do hermeneuta, ou quando esta
ocorre é chamada de decisão que extrapola a ordem jurídica.
1. BREVES APONTAMENTOS SOBRE A CIÊNCIA JURÍDICA DE HANS
KELSEN: pela superação de um jusmoralismo irracional
Algumas considerações sobre a Teoria Pura do Direito e a pretensão científica
apresentada por Hans Kelsen apresentam-se de fundamental importância para a
delimitação das questões cotidianas do mundo jurídico. Quando se pretende estabelecer
a análise científica e crítica de determinado objeto e/ou atividade, como é o caso do
presente artigo, por questões de clareza metodológica é fundamental estabelecer a partir
de qual construção teórica se parte, determinando-se o corte epistemológico da
pesquisa.
A análise da atividade decisória jurisdicional, no interior de um processo
judicial, cujo objeto de aplicação é o conteúdo normativo do direito, reflete a
necessidade de se apresentar a partir de qual imagem do Direito se parte. Para o presente
356
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
artigo pretende-se indicar alguns apontamentos sobre a ciência jurídica na Teoria Pura
do Direto de Hans Kelsen, na tentativa de se evitar clássicos e comuns equívocos da
interpretação desta obra, o que permitirá identificar em que medida a Jurisdição irá se
apresentar dentro de uma dinâmica jurídica de aplicação normativa que elege o direito
posto como fonte de normas que regulamentará as relações sociais.
Hoje muito se fala em uma possível e necessária superação da aplicação fria da
lei pelo hermeneuta julgador, como moderníssima e contemporânea construção teórica
jurídica
nomeia-se
o
chamado
pós-positivismo,
neoconstitucionalismo
e
neoprocessualismo como verdadeiras construções salvadoras de uma dinâmica
tecnocrata-silogística, afinal Hans Kelsen com seu reducionismo jurídico legal
legitimou e permitiu todas as catástrofes ocorridas contra a humanidade pelo
movimento nazifascista durante a segunda grande guerra (reductio ad Hitlerum).
Bobbio já fazia tal constatação, principalmente pelos defensores do jusnaturalismo:
Comecemos pelos promotores do Direito Natural. Eles dizem: a
Teoria Pura do Direito, como expressão última e consequente do
positivismo jurídico, exclui que haja outro Direito fora do Direito
Positivo; por isso é obrigada a aceitar como Direito qualquer
aberração moral ou religiosa (e quantos foram os exemplos que a
história recente nos colocou diante dos olhos com dramática
evidência!) que agrade a um déspota ou a uma classe de homens
políticos sem escrúpulos de se impor nas formas do direito
constituído. O erro capital da Teoria Pura do Direito, segundo eles,
estaria no fato que, impondo ao jurista comportar-se como um frio
intérprete da norma positiva, qualquer que seja o valor ético da norma,
transforma-o em um colaborador de qualquer regime, por objeto e
repugnante que seja, num aceitador ou pelo menos num impassível
indagador do fato consumado3.
No entender de Andytias Soares:
Com a derrocada da Alemanha, surgiu a necessidade urgente de se
encontrar um bode expiatório, uma justificativa para o injustificável e
uma explicação fácil de se entender e de se aceitar para o horror
nazifascista. Encontraram-se todas essas três realidades no positivismo
jurídico, conforme a visão desfigurada que lhe impingia – e até
impinge – o renascido jusnaturalismo. A maior prova da culpa
inconteste do juspositivismo foi o fato de os réus em Nuremberg
terem justificado as suas ações com base na lei positiva: “Persegui,
torturei e matei porque assim ordenava a lei. E a lei é a lei”. Gesetz ist
Gesetz: Eis a filosofia do positivismo jurídico, bradavam, impávidos,
os jusnaturalistas. Sem a consideração de valores superiores que
devem guiar o direito, este corre o risco de se transformar em uma
ordem de opressão na qual a norma jurídica, por ser jurídica, possui
um valor intrínseco, devendo ser obedecida incondicionalmente. Essa
3
BOBBIO, Norberto. Direito e Poder. São Paulo/Editora Unesp. Trad. Nilson Moulin. 2007. p. 25.
357
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
seria então a verdadeira herança do positivismo jurídico, que
desprezando a evolução de valores jusnaturalistas como a igualdade e
a liberdade, teria imposto regimes políticos como a igualdade e a
liberdade, teria imposto regimes políticos opressivos ou, pelo menos,
justificado e legitimado as experiências autoritárias da primeira
metade do século passado4.
Mas, até que ponto é possível afirmar que a Teoria Pura do Direito legitimou
que determinadas escolhas políticas fossem institucionalizadas, como fora as
nazifascistas, o que culminou no atual paradigma do direito que renega o positivismo
jurídico, e toda aquela a pretensão de pureza de uma construção jurídica?
Conforme nos alerta Noberto Bobbio a Teoria Pura do Direito apresentou-se
como levante a duas trincheiras, contra o Direito Natural e contra a Sociologia. Contra o
Direito Natural conduzia-se em nome da objetividade da ciência, cuja tarefa era
meramente descritiva da realidade, e não avaliativa, diferente do jusnaturalismo que de
tempos em tempos, conduzido pelos movimentos políticos-ideológicos, inclinava o
direito em conformidade com certos ideias de justiça (doutrinas conversadoras ou
revolucionárias que alcançavam o poder)5. Afirma Bobbio que: “[...] Agindo contra a
objetividade da Teoria Pura do Direito (e sem objetividade não há ciência), o Direito
Natural exprime valores subjetivos ou até irracionais, os quais, por isso mesmo, são
irredutíveis a análises científicas”6.
Em relação ao afastamento da ciência jurídica da Sociologia buscou-se
determinar que a Sociologia pertence à esfera do ser, que analisará fenômenos sociais,
enquanto o direito pertence ao mundo do dever-ser, já que busca estabelecer uma
estrutura de qualificação da realidade social mediante o estabelecimento de normas
jurídicas. Assim, enquanto o objeto de estudo da Sociologia é o fenômeno social, o
direito, como ciência particular, não aborda como objeto de estudo os fenômenos das
relações humanas, mas as normas que qualificam aqueles7.
Neste sentido a Teoria Pura do Direito terá inicialmente duas pretensões: a) ser
ciência, portanto, possuir objeto delimitado que possa ser racionalmente controlável e
analisado, sem se submeter às intempéries das ideologias humanas; e b) ser a ciência
própria do objeto específico a que se dirige o direito8.
4
MATOS, Andityas Soares de Moura. Estado de Exceção e Ideologia Juspositiva: Do Culto do Absoluto ao
Formalismo como Garantia do Relativismo Ético. In Rev. Fac. Direito UFMG, Belo Horizonte, n. 54, p. 11-48,
já./jun. 2009, p. 16.
5
BOBBIO, Norberto. Direito e ... Op. Cit. p. 23.
6
Ibid.
7
Ibid., p. 24.
8
Ibid.
358
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
Assim, para impedir a confusão entre a existência do direito, com a justiça do
direito, será necessário analisar a norma (ou seu conjunto – ordenamento jurídico) a
partir de três critérios que não se confundem: 1) se é justa ou injusta; 2) se é válida ou
inválida; 3) se é eficaz ou ineficaz9.
Estabelecer a análise da justiça da norma exigirá necessariamente que se
verifique seu o conteúdo, obsevando se há ou não congruência com os valores últimos
ou finais de determinado ordenamento jurídico. Para Bobbio:
[...] O problema se uma norma é justa ou não é um aspecto do
contraste entre mundo ideal e mundo real, entre o que deve ser e o que
é: norma justa é aquela que deve ser; norma injusta é aquela que não
deveria ser. Pensar sobre o problema da justiça ou não de uma norma
equivale a pensar sobre o problema da correspondência entre o que é
real e o que é ideal. Por isso, o problema da justiça se denomina
comumente de problema deontológico do direito10.
A análise da norma voltada à sua validade está relacionada à sua existência ou
não, independentemente, portanto, do juízo de valor quanto ao seu conteúdo. Assim,
trata-se de um juízo de fato, de verificar se a norma apresentada é existente,
consequentemente se é regra jurídica. Segundo Bobbio:
[...] Enquanto para julgar a justiça de uma norma, é preciso comparála a um valor ideal, para julgar a sua validade é preciso realizar
investigações do tipo empírico-racional, que se realizam quando se
trata de estabelecer a entidade e a dimensão de um evento. Em
particular, para decidir se uma norma é válida (isto é, como regra
jurídica pertencente a um determinado sistema), é necessário com
frequência realizar três operações: 1) averiguar se a autoridade de
quem ela emanou tinha poder legítimo para emanar normas jurídicas,
isto é, normas vinculantes naquele determinado ordenamento jurídico
(esta investigação conduz inevitavelmente a remontar até a norma
fundamental, que é o fundamento de validade de todas as normas de
um determinado sistema; 2) averiguar se não foi ab-rogada, já que
uma norma pode ter sido válida, no sentido de que foi emanada de um
poder autorizado para isto, mas não quer dizer que ainda o seja, o que
acontece quando uma outra norma sucessiva no tempo a tenha
expressamente ab-rogado ou tenha regulado a mesma matéria; 3)
averiguar se não é incompatível com outras normas do sistema (o que
também se chama ab-rogação implícita), particularmente com uma
norma hierarquicamente superior (uma lei constitucional é superior a
uma lei ordinária em um Constituição rígida) ou com uma norma
posterior, visto que em todo ordenamento jurídico vigora o princípio
de que duas normas incompatíveis não podem ser ambas válidas
(assim como em um sistema científico duas proposições contraditórias
não podem ser ambas verdadeiras). O problema da validade jurídica
pressupõe que se tenha respondido à pergunta: o que se entende por
9
BOBBIO, Norberto. Teoria da Norma Jurídica. São Paulo/Editora Edipro. Tradução de Fernando Pavan Baptista
e Ariana Bueno Sudatti. 2008. p. 46.
10
Ibid.
359
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
direito? Trata-se, querendo adotar uma terminologia familiar entre os
jusfilósofos, do problema ontológico do direito11.
O terceiro elemento analítico de uma norma é o problema da eficácia, que diz
respeito ao fato de ela ser ou não seguida pelas pessoas a quem é dirigida. “[...] Que
uma norma exista como norma jurídica não implica que seja também constantemente
seguida” 12 . A questão da eficácia da norma está relacionada ao caráter históricosociológico, para o comportamento da sociedade diante do estabelecimento de uma
norma jurídica, para Bobbio trata-se de um problema fenomenológico do direito13.
Esses três critérios de avaliação normativa são independentes e não se
confundem, sendo a confusão realizada entre esses três elementos que conduzirão às
críticas infundadas à Teoria Pura do Direito. Teorias que promovem a fusão destes
elementos conduzem um “reducionismo”, que “[...] leva à eliminação ou, pelo menos,
ao ofuscamento de um dos três elementos constitutivos da experiência jurídica e,
portanto, a mutilam” 14 . Segundo Norberto Bobbio há teoria que reduz a validade à
justiça, afirmando que uma norma só é válida se é justa, sendo o exemplo mais ilustre
desta redução a doutrina do direito natural15.
Uma segunda reduz a justiça à validade, quando afirma que uma norma justa
somente pelo fato de ser válida, isto é, faz depender a justiça da validade, que pode ser
vista numa construção legalista, formalista, no sentido mais restrito e limitado do
positivismo jurídico16.
E finalmente há aquela que reduz a validade à eficácia, “quando tende a
afirmar que o direito real não é aquele que se encontra, por assim dizer, enunciado em
uma Constituição, ou em um Código, ou em um corpo de leis, mas é aquele que os
homens efetivamente aplicam nas suas relações cotidianas: esta teoria faz depender, em
última análise, a validade da eficácia. O exemplo histórico mais radical é dado pelas
correntes consideradas realistas da jurisprudência americana e pelas suas antecipações
no continente”17.
Referidas argumentações guardam estrita relação com a ideia de sistema
apresentado por Kelsen, que distingue entre os tipos de sistemas existentes o estático e o
11
Ibid. p. 47.
Ibid.
13
Ibid. p. 48.
14
Ibid. p. 54.
15
Ibid.
16
Ibid.
17
Ibid.
12
360
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
dinâmico. Estático é aquele no qual as normas estão relacionadas como as proposições
de um sistema dedutivo:
[...] ou seja, pelo fato de que derivam uma das outras partindo de uma
ou mais normas originárias de caráter geral, que têm a mesma função
dos postulados ou axiomas num sistema científico. [...] Pode-se dizer,
em outras palavras, que num sistema desse gênero as normas estão
relacionadas entre si no que se refere ao seu conteúdo18.
Já a segunda concepção de sistema, denominado estático, é aquele no qual as
normas derivam de outras através de sucessivas delegações de poder, portanto, a
comunicação normativa decorre da autoridade que as positivou e não de seus conteúdos.
“Pode-se dizer que a relação entre as várias normas é, nesse tipo de ordenamento
normativo, não material, mas formal”19. Segundo Bobbio:
A distinção entre os dois tipos de relação entre normas, a material
(estático) e a formal (dinâmico), é contestável na experiência diária,
quando, encontrando-nos na situação de ter que justificar uma ordem
(e a justificação é feita inserindo-se num sistema), abrimos dois
caminhos, ou seja, o de justificá-la deduzindo-a de uma ordem de
abrangência mais geral ou de atribuí-la a uma autoridade indiscutível.
Por exemplo, um pai ordena ao filho que faça a lição, e o filho
pergunta: “Por quê?” Se o pai responde: “Porque deves aprender”, a
justificação tende à construção de um sistema dinâmico. Digamos que
o filho, não satisfeito, peça outra justificação. No primeiro caso
perguntará: “Por que devo aprender?” A construção do sistema
estático levará a uma resposta deste tipo: “Porque precisas ser
aprovado”. No segundo caso perguntará: Por que devo obedecer a
meu pai?”. A construção do sistema dinâmico levará a uma resposta
deste tipo: “Porque teu pai foi autorizado a mandar pela lei do
Estado”. Observem-se, no exemplo, os dois diferentes tipos de relação
para passar de uma norma a outra: no primeiro caso, através do
conteúdo da prescrição, no segundo caso, através da autoridade que a
colocou20.
Kelsen sustenta que os ordenamentos jurídicos são sistemas do tipo dinâmico,
já que o estabelecimento de enunciados normativos decorre da delegação de poderes, já
os sistemas estáticos (conexões normativas determinadas pelo conteúdo) seriam
ordenamentos do tipo moral. Assim: “O ordenamento jurídico é um ordenamento no
qual o enquadramento das normas é julgado com base num critério meramente formal,
isto é, independentemente do conteúdo [...]21”
Do critério de avaliação da norma quanto a sua “validade”, portanto, de
existência (critério formal), está estritamente relacionado ao sistema dinâmico, já que a
18
BOBBIO, Norberto. Teoria do Ordenamento Jurídico. Brasília/Editora Universidade de Brasília. Tradução de
Maria Celeste Cordeiro Leite dos Santos. 1999. p. 72.
19
Ibid.
20
Ibid. p. 73.
21
Ibid.
361
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
existência normativa dependerá de um sistema de delegações de poderes que positivarão
enunciados normativos. Neste sentido, para uma construção científica formal, que seja
passível de estabelecimento de premissas objetivas e lógicas, o critério de validade
formal no interior de um sistema dinâmico será aquele que atribuirá pureza à construção
de Kelsen, sob pena de, uma vez estabelecida às premissas no conteúdo das normas
jurídicas,
promover-se
uma
moralização
do
direito,
cujas
escolhas
morais/ideológicas/políticas irão determinar a sua natureza.
O segundo Gustav Radbruch ao estabelecer o critério da justiça como
condição da existência da norma jurídica promoveu essa moralização do direito, que
conforme Andytias Soares, Radbruch:
[...] conclamou os juristas a considerarem o componente ético do
direito – a justiça – como o seu traço fundamental, devendo todo o
positivismo jurídico ser negado exatamente em razão de sua
vacuidade axiológica. A posição assumida por Radbruch foi
particularmente influente não apenas em razão da importância pessoal
de sua figura na ciência jurídica alemã, mas sim porque antes da
segunda guerra o autor apresentava – em texto de 1932 – ideias de
natureza nitidamente juspositivista, sustentando que a ordem e a
segurança
das
normas
jurídico-positivas
justificariam a
obrigatoriedade de qualquer direito, “[...] mesmo se injusto e mal
adaptado a um fim”. A justiça ostentaria então um valor meramente
secundário. Com o fim da guerra, o jusfilósofo mudou de opinião,
passando a acreditar que o jurista deveria recusar validade às leis
injustas, cabendo-lhe denunciá-las como simulacros de direito. Da
mesma forma, o povo não estaria obrigado a cumprir leis iníquas. Na
verdade, Radbruch admitia que a segurança jurídica juspositivista e a
noção de justiça entram constantemente em conflito, devendo este ser
resolvido em nome da primeira, a não ser que a contradição alcançasse
um nível de insuportabilidade tal que o “direito injusto” devesse ser
preterido em nome da justiça. Isso ocorreria, sustenta Radbruch,
quando a lei positiva desrespeitasse de forma flagrante o conceito de
igualdade – núcleo da justiça-, devendo ser, portanto, desconsiderada,
dado que o ordenamento jurídico só existe enquanto tal para realizar a
justiça. A partir do texto de Radbruch formou-se um espécie de
argumento geral contra o positivismo jurídico chamado de reductio ad
Hitlerum [...]22
A grande preocupação da Ciência Jurídica desenvolvida por Hans Kelsen foi
buscar estabelecer uma distinção bastante objetiva entre o que deveria ser direito,
partindo de critérios formais de validade, e aquilo que deveria ser direito justo, portanto,
a partir de elementos éticos. A questão de um conjunto normativo constituir direito não
passaria por uma análise ético-valorativa, mas tão somente formal de validade, neste
22
MATOS, Andityas Soares de Moura. Estado de ... Op. Cit. p. 16.
362
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
sentido justificava-se uma das frases mais polêmicas de Kelsen de que o direito poderia
ter qualquer conteúdo.
O fato de ser ou não ser direito não passaria por uma análise de conteúdo
normativo, em que se observaria a massa ética do enunciado normativo, mas tão
somente o procedimento formal de sua elaboração, o que permitiria abarcar qualquer
conteúdo, justo e injusto, já que este elemento axiológico não faz parte da condição de
validade do jurídico.
Kelsen afirmou de modo bastante claro que o direito pode ter qualquer
conteúdo. Ainda que seja óbvio que “poder ter” não significa “dever
ser”, a consequência lógica dessa proposição, para qualquer teoria
verdadeiramente juspositivista, é que juízos como “O ordenamento
sócio-normativo nazista é direito” ou “O direito soviético era tão
jurídico como o norte-americano” são não apenas perfeitamente
válidas, mas também necessárias. Aprofundando ainda mais: “O
direito do inimigo é tão jurídico quanto o meu, o que significa que não
poderei vencê-lo com a velha e boa tática do rechaço e da denúncia
ética, devendo, antes, utilizar uma perigosa opção: discutir
racionalmente com o rival, em pé de igualdade”. São proposições
como essas três que horrorizam os jusnaturalista e jusmoralistas de
todos os tempos23.
Neste sentido o fato de se reconhecer o fenômeno como jurídico será mera
atividade declarativa de uma dinâmica formal, sem que se apresente uma análise
valorativa, isso porque são campos de verificação distintos. O campo da
existência/validade do direito não se confunde com o campo da valoração do jurídico,
portanto, não se nega a existência de valores inseridos no direito, mas tão somente
realiza-se a devida segregação dos seus espaços de atuação.
No entanto, afirmar que certo conjunto normativo apresenta natureza
jurídica não significa aprová-lo ou recomendá-lo. A proposição “X é
direito” envolve um juízo de fato, e não um juízo de valor. Da mesma
maneira, quando se diz que o Império Romano assentava a sua
estrutura econômica na forma de produção escravagista não significa
que se está aprovando ou justificando a escravidão. Curiosamente, tal
raciocínio não é aplicado com frequência às proposições “X é direito”
e “X não é direito”. Tal porque seus predicados não são entendidos
como fatos, mas como valores. Para os jusnaturalistas, o juízo de fato
“X é direito” se transforma, de modo totalmente arbitrário, em juízo
de valor, já que emprestam ao termo “direito” uma função valorativa.
Para tanto, confundem direito e valor, realidade e ideal, teoria e
ideologia. É exatamente isso o que fazem também todas as teorias
hoje chamadas de jusmoralistas; e é o que o positivismo jurídico
pretende evitar a todo custo. As teorias juspositivistas dignas desse
nome entendem o direto como um fenômeno factual, empírico e
23
Ibid. p. 20
363
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
profundamente não-metafísico, desligado da esfera do sacral desde
que atingiu a sua maturidade”.24
Reconhecer que determinado conjunto normativo é justo ou injusto (portanto,
já superado a questão da sua existência) culminará na prolação de um juízo de valor
ideológico, no sentido de expressar os valores que determinada sociedade elegeu como
tal. Kelsen buscou justamente extirpar tais efeitos da sua construção científica, já que
para o autor as questões ideológicas não são passíveis de um controle racional, sendo
que representará as preferências político-ideológicas de determinado grupo, que não
será passível de um controle objetivo/formal. Para Andityas “Os jusnaturalista
entendem que o ‘mau direito’ não deve ser descrito enquanto direito, posição altamente
subjetiva que esconde uma intenção ideológica conservadora: se o direito – enquanto
descrito como ‘verdadeiro direito’ – é sempre justo, não há motivos para desobedecêlo”25.
Encerrada a fase científica, que promove a separação entre o conteúdo puro do
direito, cuja constatação é meramente formal, inicia-se a construção política, que não
rechaça a comunicação entre direito e moral. O conteúdo político-ideológico apresentase quando das construções do conteúdo normativo, no procedimento legislativo (que
não se confundem com a condição de existência do direito), bem como no
preenchimento do quadro-normativo pelo hermeneuta julgador, sendo certo que “[...] o
direito é capaz de interações axiológicas extremamente complexas, mas não é, ele
mesmo, um valor, e sim um fato ou um conjunto de fatos”. E segue o autor: “O ‘fato
direito’ pode ser avaliado segundo operação intelectual, da qual a razão não participa
mais sozinha, como no puro ato de conhecimento. Quando se trata de um juízo de valor,
a razão vem acompanhada pela vontade, que quase sempre se apresenta como ideologia.
Então já não se fala mais da realidade, mas de como deveria ser a realidade. Termina a
missão do cientista e se inicia a do político [...]26”
Surgem, assim, as construções teóricas discursivas que buscam racionalizar a
interpretação axiológica do texto normativo no caso concreto, principalmente após a
inserção de elementos valorativos no texto constitucional. Feitas essas primeiras
considerações quanto ao conteúdo científico do direito, que reclama uma atuação de
observador do julgador (já que não irá determinar o direito pelo conteúdo da norma,
construída argumentativamente – seja no processo legislativo ou judicial), passaremos a
24
Ibid.
Ibid. p. 21.
26
Ibid.
25
364
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
dissertar sobre o que entendemos por atual paradigma jurídico, que culminará em uma
necessária e intrínseca atuação ativa do julgador para a atribuição de coerência ao
sistema jurídico.
2. HERMENÊUTICA: BREVES APONTAMENTOS SOBRE O ATUAL
PARADIGMA JURÍDICO
O direito, segundo uma concepção contratualista, portanto, pensado a partir das
tradições culturais do homem ocidental, branco e cristão, foi criado historicamente
(portanto fora de uma concepção metafísica ou pré-estabelecido) para promover a paz e
a segurança social.
Fruto da idade das luzes, da cientificidade e da pretensão humana de atribuir
racionalidade a todo o conhecimento, o direito sofreu consequências significativas,
desde a delimitação de seu objeto, das suas fontes até a forma de interpretação e
aplicação das leis. Fugindo do período das Trevas, das monarquias absolutistas, das
intervenções máximas do Estado/rei nas relações privadas, o direito surgiu como um
levante a estes abusos, marcado pelo seu reducionismo a lei e ao silogismo e técnica de
interpretação da subsunção, o direito satisfez muito bem a pretensão da sociedade
burguesa do século XVIII e XIX.
Ocorre, todavia, que em decorrência desse reducionismo legalista do direito,
cujos elementos de validade (e não legitimidade – que para este momento não seria
discutido) recaiam sobre o procedimento legislativo (a partir de um processo formalista
de elaboração da lei), permitiu-se que qualquer conteúdo se institucionaliza-se
(conforme a máxima estabelecida por Kelsen), tornando-se direito qualquer elemento,
inclusive os imorais.
Assim, para cumprir a tarefa de legitimar o direito, independentemente de seu
conteúdo, surge o formalismo jurídico. Para Thomas da Rosa de Bustamente o
formalismo jurídico apresenta algumas características, oriundas do positivismo jurídico
(mas que com esse não se confunde 27 ), que impede a comunicação do direito com
qualquer outra área do conhecimento, atribuindo caráter científico ao direito. Estas
27
Para Bustamante “Percebe-se, portanto, o equívoco de se identificar o positivismo com o formalismo, pois é
perfeitamente possível ser positivista sem ser formalista, como fazem o positivismo analítico – incluindo-se sua
vertente normativista – e o realismo jurídico. A teoria pura do direito de Kelsen, por exemplo, confere ao intérprete
do direito uma ampla margem de atuação e criatividade” (BUSTAMANTE, Thomas da Rosa. Argumentação
Contra Legem: a teoria do discurso e a justificação jurídica nos casos mais difíceis. São Paulo: Renovar. 2005. p.
24). E segue o autor “A confusão entre ‘formalismo’ e ‘positivismo’ só aconteceria se se entendesse o positivismo
como sendo a hoje superada concepção que a atividade de aplicação do direito seria definida em termos puramente
dedutivos: o raciocínio jurídico basear-se-ia unicamente no silogismo prático” (Id., ibid.).
365
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
características são: a) o direito é um sistema completo e coerente, capaz de dar uma
resposta correta a cada questão jurídica; b) só os legisladores, e não os tribunais, podem
criar direito; c) o direito possui um caráter essencialmente estático; d) o Direito válido,
o verdadeiro Direito, consiste em regras gerais, tais como aparecem formuladas nos
“livros jurídicos”; e) o direito é mais perfeito quanto maior for o seu grau de
generalidade e abstração; f) os conceitos jurídicos possuem uma “lógica interna” que
permite se deduzirem soluções sem necessidade de se recorrer a argumentos
extrajurídicos; g) as decisões judiciais só podem justificar-se dedutivamente (silogismo
jurídico); h) a certeza e a predictabilidade são os máximos ideais jurídicos28.
Observa-se, portanto, que houve um afastamento entre o direito e a moral, que
conforme entende Bustamante:
A neutralidade e a autonomia absoluta da ciência jurídica, ao longo de
décadas, vinham produzindo uma espécie de esterilidade do Direito,
que, por já não possuir mais condições de se legitimar, perde também
sua força social integradora. Um direito garantido unicamente pela
força, definido de forma absolutamente independente de um conteúdo
moral e incapaz de prover qualquer critério para as valorações
jurídicas fatalmente não conseguiria dar conta das expectativas
sociais, nem muito menos fornecer a racionalidade necessária para
reverter o quadro de descrença nas instituições por que passa o final
da Idade Moderna29.
Neste sentido, uma das críticas sofridas pelo direito, após a segunda grande
guerra, foi quanto à questão de sua legitimidade, apresentada na forma de uma crítica da
legalidade. A aplicação do direito pautada tão só na formalidade e no respeito estrutural
do ordenamento jurídico, desvinculada das pretensões éticas e morais das demais
ciências sociais, culminou nas atrocidades revestidas de legalidade cometidas, por
exemplo, pelo nazi-fascismo30.
A pretensão de alguns estudiosos do Direito em torná-lo uma Ciência
desvinculada de pressupostos externos, tais como valor, ética e moral, buscando
objetividade científica, promoveu o rechaçamento do direito natural e a ascensão do
positivismo jurídico.
Segundo Franz Neumann:
O sistema legal do liberalismo, no entanto, era considerado como
hermético e sem fendas. Tudo o que o juiz tinha a fazer era aplicá-lo.
O pensamento jurídico de então era chamado de positivismo ou
28
BUSTAMANTE, Thomas da Rosa. Argumentação ... Op. Cit. p. 21-22.
Id., Ibid., p. 29.
30
Nota-se aqui a relevância de uma discussão acerca do tema do Estado de Exceção, proposta pelo jusfilósofo italiano
Giorgio Agamben, contudo, este não é o objeto do presente trabalho.
29
366
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
normativismo, e a interpretação das leis pelos juízes era chamada de
dogmática (na Alemanha) e de exegética (na França) [...]31
Para Aylton Barbieri Durão:
Quando, não obstante, diminuiu a confiança na subordinação do
direito à autonomia moral do sujeito, os teóricos do direito civil
tiveram que aceitar a fundamentação dos direitos subjetivos a partir da
vontade do legislador expressa no direito objetivo. Por conseguinte, a
pretensão idealista presente nos historiadores do direito romano
implicou a reação do positivismo jurídico a finais do século XIX que
eliminou qualquer possibilidade de sustentar uma justificação moral
do direito subjetivo. O direito passou a ser entendido, com Kelsen, por
exemplo, como resultado dinâmico de um procedimento de produção
de normas a partir de uma norma fundamental hipotética (silogismo
constitucional) que autorizava a produção de normas da legislação
ordinária, originando todo o direito objetivo como conjunto de normas
cuja legitimidade provinha da legalidade estabelecida pelas condições
do procedimento. Esta manobra possibilitou o positivismo desvincular
o direito da moral e eliminar qualquer fundamentação moral do direito
subjetivo, na medida em que o direito passou a ser justificado a partir
de um procedimentalismo formal, o qual pode permitir ao sujeito
dispor de liberdades subjetivas de ação materializadas na forma de
direitos subjetivos, entendido como mera autorização para o exercício
de liberdades individuais pelo direito objetivo.32
Assim, diante da agressão promovida aos direitos fundamentais no século XX,
inicia-se uma preocupação da humanidade, assombrada pela barbárie promovida em
nome da legalidade, cujo objetivo é revisitar de forma crítica os pilares da Teoria do
Direito, pretensão esta que vai desde a alteração das técnicas legislativas, ampliação das
fontes dos direitos e mudança de postura dos julgadores, sempre com a pretensão de
concretização dos direitos fundamentais e a proteção da humanidade33.
Este novo panorama jurídico representa o novo direito constitucional ou
neoconstitucionalismo, que promove um conjunto amplo de transformações ocorridas
no âmbito do Estado de Direito, tais como a formação do Estado constitucional de
direito; a centralidade dos direitos fundamentais, diante do assim chamado póspositivismo, com a reaproximação entre Direito e Moral; o reconhecimento da força
normativa
da
Constituição;
a
expansão
da
jurisdição
constitucional;
e
o
desenvolvimento de uma nova dogmática da interpretação constitucional34.
31
NEUMANN. Franz. Estado democrático e estado autoritário. Trad. Luiz Corção. Rio de Janeiro: Zahar
Editores. 1969, p. 46.
32
DURÃO. Aylton Barbieri. O paradoxo da legitimidade a partir da legalidade segundo Habermas. Ethic@.
Florianópolis. v. 7. n.2, Dez. 2008, p. 238.
33
Neste sentido, é de se notar o advento da Declaração Universal dos Direitos Humanos e a inserção do dever de
observância do princípio da dignidade da pessoa humana em diversas constituições do ocidente.
34
BARROSO, Luís Roberto. Neoconstitucionalismo e Constitucionalização do Direito (O triunfo tardio do direito
constitucional no Brasil). Disponível na internet: HTTP://www.direitodoestado.com.br/rere.asp. Acessado em 18 de
jan. de 2013, p. 04.
367
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
Consciente da impossibilidade de exaurir todas as soluções possíveis frente
uma hipótese de incidência fática, o legislador passou a adotar como enunciados
normativos cláusulas gerais e elementos indeterminados ampliando a proteção dos
direitos genericamente positivados. Para tanto passou a reclamar uma atuação incisiva
do magistrado, substituindo sua função tecnocrata de verificação das hipóteses legais e a
aplicação das consequências jurídicas previstas, por uma função criativa, de análise
crítica e racional dos comandos normativos positivados em valores e princípios,
desaguando na concretização dos direitos fundamentais diante da apreciação do caso
concreto, além, é claro, da abertura semântica dos textos.
Diante desta constatação observa-se que ao mesmo tempo em que surge ao
magistrado essa função criativa lhe restará o ônus da fundamentação racional, calcada
na norma constitucional que contém princípios e valores, que necessariamente nortearão
a decisão como requisito de legitimidade. Tratando-se de cláusulas gerais e de
elementos indeterminados que estabelecem um conteúdo prima facie dos direitos
fundamentais, será a análise interpretativa transversal da lei diante do caso concreto que
dará o contorno aos direitos colidentes.
Assim, a partir da reviravolta hermenêutico-linguística-pragmática 35 , o que
determinou uma guinada na Filosofia e na Filosofia do Direito do pressuposto
metodológico do “eu penso” para “eu argumento”, esse ônus argumentativo do
juiz/interprete, que dará os contornos dos direitos humanos, deverá ser guiado por uma
ética do discurso, adquirindo uma racionalidade, que segundo Karl-Otto Apel:
[...] prefiro de fato falar hoje em “ética do discurso” – e isso por dois
motivos principais: por uma lado, esse título refere-se a uma forma
particular de comunicação – o discurso argumentativo – como meio de
fundamentação concreta de normas, e por outro lado, refere-se à
circunstância de que o discurso argumentativo – e não qualquer forma
de comunicação no mundo vivo – conte também o a priori da
fundamentação racional do princípio da ética.36
No interior dessas construções discursivas, para fundamentação das normas
jurídicas, vislumbra-se a distinção entre enunciado normativo, norma (princípio e regra)
35
Segundo Duarte “A reviravolta hemenêutico-linguístico-pragmática foi uma revolução hermenêutico-filosófica
operada na Filosofia, com repercussões em toda a Teoria do Conhecimento. Ela possibilitou a transição do paradigma
da Filosofia da consciência para o da Filosofia da linguagem, representando uma guinada na busca pela intelecção de
novas condições de possibilidade e validade para o conhecimento”. (DUARTE, Bernardo Augusto Ferreira Duarte.
Direito à Saúde e Teoria da Argumentação: Em Busca da Legitimidade dos Discursos Jurisdicionais. Belo
Horizonte/Arraes. 2012. p. 8).
36
APEL, Karl-Otto. Ética do discurso como ética da responsabilidade. Cadernos de tradução n. 3 do departamento
de Filosofia da USP. Tradução de Maria Nazaré de Camargo Pacheco Amaral. 1998. p. 08.
368
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
e valor. O enunciado normativo representa a fonte positivada dos direitos, que
possivelmente prevê uma hipótese de incidência fática e uma consequência jurídica.
No caso das cláusulas gerais o enunciado normativo não terá a hipótese de
incidência e/ou a consequência jurídica exaustivamente prevista, logo a função do
magistrado, para cuja delimitação do direito irá extrair princípios e regras (que não
estarão necessariamente prescritos no enunciado) será de determinar no caso concreto
quais as hipóteses de incidência e as consequências jurídicas, sempre alinhado com
iluminuras da ética e da moral ao proferir sua decisão racionalmente fundamentada. O
ato eticamente vinculado do magistrado não resulta tão somente em estabelecer a
consequência jurídica x diante de hipótese de incidência fática y, mas sim em um
proceder (ato de decidir) racional, devidamente fundamentado.
É pontualmente na análise interpretativa dos princípios, no caso concreto, que
chegaremos à construção das normas de direitos fundamentais, concretizando seus
correspondentes direitos subjetivos. Referidas normas de direitos fundamentais são
denominadas por Robert Alexy como normas de direitos fundamentais atribuídas e
decorrem justamente do sopesamento dos princípios 37.
Os enunciados normativos
que refletem princípios
não apresentam
imediatamente a solução ao caso que se aprecia (há um caso a ser analisado, sendo
possível a aplicação de n normas). Para solução destes casos serão necessárias
valorações que não são dedutíveis diretamente do material normativo preexistente
(enunciado normativo). Logo, a racionalidade do discurso jurídico depende em grande
medida de se saber se e em que medida essas valorações adicionais são passíveis de um
controle racional38.
Diante deste novo contexto teórico em que se inserem os agentes do direito,
parece claro que o hermeneuta tem agora função criativa e delimitativa das normas de
direitos fundamentais. A grande questão que surge diz respeito a possibilidade de
fundamentação racional de juízos práticos ou morais. Robert Alexy faz a seguinte
constatação:
[...] A recente discussão no campo da Ética, influenciada, no plano
metodológico, pela moderna Lógica, pela filosofia da linguagem e por
teorias da argumentação, da decisão e da ciência e, no plano
substancial, fortemente orientada por idéias kantianas, demonstrou
que, embora não sejam possíveis teorias morais substanciais que
forneçam a cada questão moral uma única resposta com certeza
37
38
ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 102.
Ibid., p. 548.
369
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
intersubjetiva conclusiva, são possíveis teorias morais procedimentais,
que elaborem as regras e as condições da argumentação e da decisão
racional prática. Uma versão especialmente promissora de uma teoria
moral procedimental é a teoria do discurso prático racional39.
Do apresentado permite-se concluir que Alexy não traz solução unívoca para a
dialética estabelecida entre enunciado e caso concreto, estabelecendo um resultado
pronto a ser extraído das normas de direitos fundamentais. Traz critérios éticos de
procedimento, do decidir racionalmente, vinculando a atuação do magistrado a um
proceder ético, sistematicamente teorizada e regulamentada. Sendo o procedimento
discursivo compatível com resultados os mais variados será necessário associar a teoria
da moral (procedimento discursivo) com a teoria do direito, no âmbito de um modelo
procedimental em quatro níveis: o discurso prático geral; o processo legislativo; o
discurso jurídico; e o processo judicial40.
O discurso prático geral embora estabeleça um código geral da razão prática
não conduz a apenas um resultado em cada caso. A solução dos conflitos sociais clama
um resultado único, o que torna necessário um procedimento institucional de criação do
direito, não só no âmbito da argumentação, mas também da decisão. Esta necessidade
será parcialmente suprida pelo processo legislativo do Estado Democrático
constitucional, o qual é definido “por um sistema de regras que, diante das alternativas
fáticas possíveis, garante um grau significativo de racionalidade prática e que, nesse
sentido, é passível de fundamentação no âmbito do primeiro procedimento”41.
Ocorre, todavia, que mencionado procedimento não é possível determinar de
antemão e para cada caso, uma única solução. Surge então o discurso jurídico, que se
encontra vinculado à lei, ao precedente e à dogmática, o que permite uma redução da
incerteza quanto ao resultado do discurso prático geral. Porém, diante da necessidade de
uma argumentação prática geral, a incerteza quanto ao resultado ainda não é
eliminada,42.
Surge assim o quarto procedimento, o processo judicial, no qual, da mesma
forma que ocorre no processo legislativo, não apenas se argumenta, mas também se
decide. A racionalidade desse último procedimento será alcançada mediante o respeito
dos três primeiros processos. Insta ressaltar que, embora o enunciado normativo deixe
em aberto as questões valorativas que no procedimento judicial serão objeto de
39
Ibid., p. 549.
Ibid., p. 549/550.
41
Ibid., p. 550.
42
Ibid., p. 550.
40
370
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
argumentação e decisão (delimitação do conteúdo valorativo que servirá de parâmetro
para o hermeneuta estabelecer qual a hipótese de incidência e qual as consequências
jurídicas), será revestida de racionalidade 43 , já que haverá o ônus da argumentação
racional e a vinculação à lei, ao precedente e à dogmática, sob pena de ilegitimidade.
A legitimidade da decisão, que estabelecerá o alcance dos direitos
fundamentais, será determinada mediante o respeito aos procedimentos acima
mencionados. Para o magistrado que prolatará esta decisão restará tal ônus, e mais,
deverá observar o procedimento sistematizado e racionalizado para lidar com os
princípios oriundos dos enunciados, sistema criado por Alexy.
3. A Superação do Direito do Observador: o ativismo judicial como uma concepção
pré “virada hartiana”
O Direito é concebido a partir da capacidade intelectiva do ser humano, para
regulamentar comportamentos, que sob uma premissa contratualista ocidental deve
servir à sociedade de forma a promover segurança jurídica e paz, conforme já
sustentado outrora.
Esta constatação é importante para determinar que o Direito não se apresenta
pronto e acabado na natureza, cuja atuação humana seria somente de reconhecê-lo e
aplica-lo, sem qualquer ingerência em suas premissas, a partir de um ponto de vista
interno (segundo uma concepção hartiana44, que será analisado no próximo item).
Neste sentido a figura do agente do direito deixa de ser aquela de mero
observador (a partir de um ponto de vista externo), assumindo uma postura de
participante, possibilitando um alargamento do conhecimento jurídico. Segundo
Thomas da Rosa de Bustamente:
[...] essa concepção alargada do ordenamento jurídico traz para dentro
da noção de “sistema jurídico” os procedimentos argumentativos
(ditados pela teoria da argumentação) necessários para fundamentar
corretamente uma decisão jurídica. Isso implica, inevitavelmente, um
alargamento também do conceito de Direito. Esse alargamento só foi
possibilitado pela adoção da perspectiva do participante, ou seja, do
jurista que está preocupado não apenas em descrever o Direito que
existe como um fato cultural, e, portanto, como algo que pode ser
encontrado no passado, mas em convencer os destinatários da teoria
43
Ibid., p. 551.
Esta constatação é, como nos explica Thomas da Rosa de Bustamente, essencial, já que “[...] sem essa ‘virada
hartiana’ a teoria jurídica fica um tanto quanto incompleta, pois permanece necessariamente presa a um certo tipo de
positivismo que vê o Direito apenas como um ‘fato social’, como um produto pronto e acabado que é fruto
unicamente da decisão de uma autoridade cujos poderes estão institucionalizados de alguma maneira na sociedade
[...]” (BUSTAMENTE, Thomas da Rosa de Bustamente. Teoria do Direito e Decisão Racional – Temas de Teoria
da Argumentação Jurídica. Rio de Janeiro/Renovar. 2008. p. 148/149.
44
371
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
jurídica – e em especial os juízes – de que “a sua proposta [de
interpretação ou de aplicação do Direito] é a mais correta”.45
Vale ressaltar, conforme o fez Bustamante, que embora Hart alerte pela
atuação participativa do hermeneuta julgador, abrindo caminho para a superação do
positivismo clássico e para a institucionalização das mais interessantes teorias da
argumentação jurídica “Hart nem abandonou o positivismo jurídico e nem utilizou seu
insight para resolver a questão da relação entre os domínios da legalidade e da
moralidade” 46 , embora reconheça que o há uma relação entre Direito e Moral,
sustentando inclusive um certo “conteúdo mínimo de Direito natural” para qualquer
ordenamento jurídico, como pondera Bustamente47.
3.1 “A Virada Hartiana” e a Construção do Direito pelo hermeneuta
Por tempos a atuação do hermeneuta resumiu-se a observar o fenômeno
jurídico, subsumindo a expressão formal do Legislativo ao caso concreto, solucionando
os conflitos sociais que lhe eram levados a conhecimento. O formalismo jurídico,
juntamente ao positivismo exegético de origem francesa, corrente de pensamento esta
que não admitia uma abordagem do jurídico por qualquer espécie de “filosofia”, foram
movimentos que buscaram trazer ao campo jurídico uma racionalidade tecnicista, um
controle geométrico das manifestações jurídicas mediante pressupostos determinados.
Aqui, apresenta-se oportuno uma advertência, o léxico positivismo tem uma
característica conceitual e, portanto, há várias manifestações teóricas a seu respeito.
Como exemplos, podemos citar o positivismo normativista de Hans Kelsen ou os
estudos e debates feitos em solo inglês em uma perspectiva positivista analítica
representada pelas reflexões de Hart, além do positivismo exegético de origem francesa,
que promoveu o reducionismo legalista.
Vale ressaltar que não se confundem formalismo jurídico e positivismo
jurídico, uma vez que, segundo Thomas da Rosa de Bustamente, valendo-se das
reflexões de Manuel Atienza:
No que concerne às teorias da interpretação jurídica, o formalismo
sustenta que interpretar seria simplesmente conhecer/descobrir o
significado de um texto, situando-se numa posição antagônica às
denominadas teorias realistas ou céticas, para as quais ‘o interprete
não descobre mas cria o significado de um texto – de modo que não
45
Ibid., p. 152.
Ibid. p. 151.
47
Ibid. p. 152.
46
372
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
teria sentido dizer que um enunciado interpretativo é verdadeiro ou
falso [...]48
Neste momento, o que se pretende com essa distinção é evitar um equívoco
metodológico quando da análise do positivismo jurídico, pois, parece que esta
percepção do ponto de vista jurídico é apenas um reflexo de uma concepção maior
ligada ao positivismo enquanto fonte conceitual, que em última instância nos remete ao
paradigma da consciência, ou seja, uma das formas em que se apresenta a razão
esclarecida.
Do ponto de vista da teoria do direito, a concepção positivista em sua vertente
analítica ou a normativista não irão necessariamente determinar o enrijecimento da
interpretação ou de certa liberdade ou subjetividade quando da observação
hermenêutica. Thomas da Rosa Bustamante entende que:
A teoria pura do direito de Kelsen, por exemplo, confere ao intérprete
do direito uma ampla margem de atuação e criatividade. A atividade
de interpretação é considerada um processo inovador pelo qual o juiz
fixa o sentido da norma jurídica a partir dos enunciados normativos
que compõe o Direito Positivo. Neste processo, a decisão sobre qual
dos sentidos semanticamente possíveis de um enunciado normativo
deve ser adotado é absolutamente livre; a norma jurídica é vista como
“quadro a ser preenchido” pelo interprete, cuja moldura é definida
pelo texto da norma, sendo que não se pode estabelecer pautas ou
diretivas para vincular o processo de interpretação49.
Sendo assim, a atuação criativa do interprete apresenta congruência sistêmica
quando diante do positivismo analítico, que possibilita o livre preenchimento das
normas de textura aberta ou do quadro normativo, dinâmica esta negada pelo
formalismo jurídico.
Daí o fato de Hart, embora constate a distinção entre o “ponto de vista interno e
externo” que exigirá (o interno) uma atuação participativa e criativa do hermeneuta,
permanece fiel à escola positivista, não incidindo em nenhuma contradição
performativa, sendo inclusive este um dos maiores equívocos da interpretação do
positivismo kelseniano (em taxá-lo como estritito formalismo jurídico, que não permite
qualquer abertura na delimitação da norma jurídica).
Segundo Hart, o ponto de vista interno e externo apresenta-se:
[...] Quando um grupo social tem certas regras de conduta, este facto
confere uma oportunidade a muitos tipos de asserção intimamente
48
49
BUSTAMANTE, Thomas da Rosa de. Argumentação Contra ... Op. Cit. p. 22.
Ibid. p. 24.
373
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
relacionados, embora diferentes; porque é possível estar preocupado
com as regras, quer apenas como um observador, que as não aceita ele
próprio, quer como membro de um grupo que as aceita e usa como
guias de conduta. Podemos chamar-lhes os <<pontos e vista>>
respectivamente <<interno>> e <<externo>>. As afirmações feitas do
ponto de vista externo podem ser de diferentes tipos. Porque o
observador pode, sem ele próprio aceitar as regras, afirmar que o
grupo aceita as regras e pode assim referir-se do exterior ao modo pelo
qual eles estão afectados por elas, de um ponto de vista interno. Mas
sejam quais forem as regras, quer se trate de regras de jogos, como o
críquete ou o xadrez, ou de regras morais ou jurídicas, podemos, se
quisermos, ocupar a posição de um observador que não se refira, deste
modo, ao ponto de vista interno do grupo. Tal observador contenta-se
apenas com a anotação das regularidades de comportamentos
observáveis em que os desvios das regras são combatidos. Depois de
algum tempo, o observador externo pode, com base nas regularidades
observadas, correlacionar os desvios com as reacções hostis, e estar
apto a predizer com uma razoável medida de êxito e a avaliar as
probabilidades com que uma reacção hostil ou castigo. Tal
conhecimento pode não só revelar muita coisa sobre o grupo, mas
ainda permitir-lhe viver com o grupo sem as consequências
desagradáveis que esperariam uma pessoa que tentasse fazê-lo sem tal
conhecimento.50
O jurista observador apenas se colocará diante do fenômeno jurídico como
elemento externo, que não interage com o objeto observado, não podendo, com isso,
alterar sua substância, questionar suas premissas, mas irá se resumir a analisar a
hipótese de incidência e aplicar automaticamente a consequência jurídica previamente
prevista.
O que é chamada de “virada hartiana” é justamente esta rotação da atuação do
hermeneuta enquanto mero observador, que constata o fenômeno jurídico, inserindo-se
neste como verdadeiro elemento criativo, assumindo postura reflexiva das próprias
premissas do ordenamento, alcançando a consciência de que o Direito é fruto de sua
própria atividade.
[...] Para tal observador, os desvios de conduta normal por parte de um
membro do grupo serão um sinal de que é provável que se seguirá
uma reacção hostil, e nada mais. O seu ponto de vista será semelhante
ao daquele que, depois de ter observado durante algum tempo o
funcionamento de um sinal de trânsito numa rua de grande
movimento, se limita a dizer que, quando as luzes passam a
encarnado, há uma probabilidade elevada de que o trânsito pare. Ele
trata a luz apenas como um sinal natural de que as pessoas se
comportarão de certos modos, tal como as nuvens são um sinal de que
virá chuva. Ao fazer assim, escapar-lhe-á uma dimensão total da vida
social daqueles que ele observa, uma vez que para estes a luz
encarnada não é apenas um sinal de que os outros vão parar: encaram
tal como um sinal para eles pararem, e, por isso, como uma razão para
50
HART, Herbert L. A. O conceito de direito. 2ª ed. Lisboa/ Fundação Calouste Gulbenkian. 1994. p. 99.
374
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
parar em conformidade com as regras que transformam o acto de
parar, quando a luz está encarnada, num padrão de comportamento e
numa obrigação. Mencionar isto é trazer para o relato o modo por que
o grupo encara o seu próprio comportamento. Significa referir-se ao
aspecto interno das regras, visto do ponto de vista interno dele.51
Assim, não basta ao interprete observar externamente o semáforo como um
instrumento dado pela natureza que indica probabilidade de comportamentos humanos
(que ao sinal verde, como isso já vem ocorrendo, provavelmente as pessoas irão cruzar a
avenida, e ao sinal vermelho, provavelmente irão parar), mas deverá ter a consciência de
que referido instrumento apresenta-se como elemento simbólico proveniente da
racionalidade humana, que estabelece ordens para organizar o movimento ordenado nas
vias de trânsito, estabelecendo obrigações.
Conforme já salientamos no segundo capítulo, quando dissertávamos sobre o
atual paradigma jurídico, a atuação do julgador como mero observador já não se
apresentava satisfatória já que, diante da reviravolta hermenêutico-linguísticapragmática52, que superou o pressuposto metodológico do homem solipsista (homem
que conhece e objeto que é conhecido), transitou do “eu penso” para “eu argumento”,
passou-se a exigir um comportamento participativo/criativo no interior de uma relação
intersubjetiva dos indivíduos que dialogam guiados pela ética do discurso53.
O texto normativo não mais conseguiria expressar a totalidade dos sentidos,
não seria mais possível estabelecer um liame correspondencial entre a linguagem escrita
os fenômenos da vida de forma absoluta e exauriente (na realidade não se tornou
impossível estabelecer essa correspondência, mas percebeu-se que isso nunca foi
possível de maneira absoluta).
Neste sentido podemos afirmar que a atuação participativa do hermeneuta
julgador, portanto, após a chamada “virada hartiana”, ocorre principalmente porque:
A) O Direito deve ser observado como fruto da atividade humana, portanto,
está em constante fase de construção, sendo o homem e suas interações sua
principal fonte criativa;
51
Ibid. p. 99-100
Sobre a virada linguística ver nota 34.
53
Segundo P. M. S. Hacker a obra Tractatus Logico-Philosophicus de Ludwig Wittgenstein “foi a principal
inspiração do Círculo de Viena, núcleo formador do movimento conhecido como ‘positivismo lógico’, que floresceria
entre a Primeira e a Segunda Guerras. Foi também o maior influenciador da escola analítica de Cambridge nos anos
20 e 30. O Tractatus deu origem à “virada linguística” que caracterizou a filosofia analítica do século XX,
direcionando a investigação e a metodologia filosóficas para o estudo da lógica de nossa linguagem e do uso que
fazemos dela” (HACKER, P. M. S. Wittgenstein. Tradução de João Virgílio Gallenari Cuter. São Paulo/Editora
Unesp. 2000. p. 7).
52
375
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
B) Com a virada linguística, percebeu-se que a externalização da linguagem
(institucionalizada em forma de enunciados normativos) não conseguirá
estabelecer uma verdade correspondencial entre linguagem e fatos do mundo
da vida, neste sentido não há possibilidade de o legislador estabelecer um
enunciado normativo que seja absolutamente límpido e claro de forma a
impedir qualquer interpretação, conforme nos ensina Streck54, sendo certo que
todo análise do texto de lei será análise interpretativa da qual dará origem a
uma norma (possuidora de elemento deôntico).
B.1) Não há identidade entre enunciado normativo (texto de lei) e norma,
sendo que a norma (que estabelecerá um dever-ser - elemento deôntico – para
os indivíduos) será fruto da atividade interpretativa do hermeneuta julgador.
Interpretação esta que deverá observar o conteúdo moral estabelecido nas
normas de direitos fundamentais, das quais são extraídos princípios
constitucionais que deverão ser otimizados;
C) O conteúdo moral institucionalizado nas cláusulas constitucionais que
preveem direitos fundamentais para promover um maior alcance de proteção,
utilizam-se de elementos indeterminados e cláusulas gerais, sendo que as
hipóteses de incidência e as consequências jurídicas não estão previamente
estabelecidas no enunciado normativo, o que exigirá do interprete estabelecer o
conteúdo da norma jurídica (assim houve uma alteração da técnica legislativa,
que passou a exigir uma atuação participativa do hermeneuta)55.
Esses são os principais aspectos que caracterizam o atual paradigma jurídico e
que exigem necessariamente uma atuação participativa e criativa do hermeneuta
julgador. Porém, insta ressaltar que o julgador terá sua atuação limitada: primeiro pelo
discurso racional, ou seja, deverá fundamentar suas decisões (nos termos do art. 93, IX,
54
Segundo Streck não há clareza que dispense interpretação, neste sentido “Daí se no mínimo defasada a decisão do
Min. Ricardo Lewandowski, que no ano de 2012 ainda lançou mão do brocardo que afirma inexistir interpretação
diante da clareza do texto, ressaltando e elogiando esse legado da Escola Exegese. Verbis: ‘Nessa linha de raciocínio,
a tão criticada – e de há muito superada – Escola da Exegese, que pontificou na França no século XIX, na esteira da
edição do Código Civil Nepoleônico, legou-nos uma assertiva de difícil, senão impossível, contestação: In claris
cessat interpretatio. Ou seja, quando a lei é clara não há espaço para a interpretação’ (decisão do Min. Ricardo
Lewandowski no julgamento da ADPF 54) [...]” (STRECK, Lênio Luiz. O que é isto – o precedente judicial e as
súmulas vinculantes? Porto Alegre/Livraria do Advogado. 2013. p. 56.).
55
Nas Palavras de Celso Bastos e Carlos Ayres Brito: “Na medida em eu se põe como ‘o estatuto jurídico do
fenômeno político’, a Constituição transplanta para o seu próprio bojo normativo toda a ideologia que permeia os
objetivos e valores políticos [...]. A Constituição traz princípios e institutos que não podem ser traduzidos pela estrita
observância da análise vernacular, já que padecem de uma imprecisão conceitual ontológica [...]. A absorção
normativa de tal vaguidade conceitual se revela, pragmática e logicamente, como o mais eficiente meio de proteção
dos bens jurídicos nelas substanciados [...]” (BASTOS, Celso; BRITO, Carlos Ayres. A interpretação e
aplicabilidade das normas constitucionais. São Paulo/Saraiva. 1982, p. 8.)
376
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
da Constituição Federal) de acordo com a ética do discurso, que, segundo Thomas
Bustamante:
[...] No campo da ética filosófica, Habermas decididamente adota um
cognitivismo segundo o qual questões normativas podem ser
resolvidas através da argumentação levada a cabo em um discurso
prático em que a correção normativa seja, ela própria, “tematizada”.
Um tal discurso deve ser considerado um processo comunicativo que,
para ser racional, deve se aproximar suficientemente das seguintes
“condições ideias: (1) os interlocutores devem estar em uma “situação
ideal de fala” caracterizada basicamente pela “simetria geral de
condições” em que cada participante do discurso pode estruturar seus
atos de fala de modo que não exista qualquer coação senão a “força do
melhor argumento”; (2) a argumentação, entendida como
procedimento, deve ser compreendida como uma “forma de interação
sujeita a regras especiais”, e (3) argumentação deve ter como
finalidade “produzir argumentos cogentes que sejam convincentes em
virtude de suas propriedades intrínsecas e que possam ser redimidos
ou rejeitados com a ajuda de suas pretensões de validade.56
Assim, ao cumprir seu ônus argumentativo o julgador (e não somente este, mas
todo aquele que ingressa na arena do discurso jurídico) deverá se submeter inicialmente
à ética do discurso, buscando atribuir-lhe racionalidade, e concomitantemente referida
argumentação deverá preencher o quadro normativo (submetendo-se às regras jurídicas
também), buscando as razões do enunciado normativo de forma a otimizar os princípios
constitucionais. Assim a “decisão sobre qual dos sentidos semanticamente possíveis de
um enunciado normativo deve ser adotado é absolutamente livre; a norma jurídica é
vista como “quadro a ser preenchido” pelo interprete, cuja moldura é definida pelo texto
da norma, sendo que não se pode estabelecer pautas ou diretivas para vincular o
processo de interpretação”57.
O hermeneuta ao preencher o quadro normativo, deverá observar as razões do
enunciado normativo, promovendo sempre a otimização dos princípios constitucionais,
bem como a coerência de todo o sistema jurídico, de forma a não extrapolar as razões e
pretensões do enunciado e da própria ordem constitucional.
Nas palavras de Humberto Ávila ao preencher o quadro normativo,
alcançando-se a norma pela atividade interpretativa, deverá o julgador examinar a razão
que fundamenta a própria regra (rule’s purposeI) para compreender, restringindo ou
ampliando, o conteúdo de sentido da hipótese normativa, ou se recorre a outras razões,
56
57
BUSTAMENTE, Thomas da Rosa de Bustamante. Teoria do ... Op. Cit. p. 156-157.
BUSTAMANTE, Thomas da Rosa. Argumentação ... Op. Cit. p. 24.
377
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baseadas em outras normas, para justificar o descumprimento daquela regra
(overrruling).58.
Assim, para tornar mais clara nossas argumentações, tomemos o exemplo
apresentado por Ávila59:
A norma construída a partir do art. 224 do Código Penal, ao prever o
crime de estupro, estabelece uma presunção incondicional de
violência para o caso de a vítima ter idade inferior a 14 anos. Se for
praticada uma relação sexual com menor de 14 anos, então deve ser
presumida a violência por parte do autor. A norma não prevê qualquer
exceção. A referida norma, dentro do padrão classificatório aqui
examinado, seria uma regra, e, como tal, instituidora de uma
obrigação absoluta: se a vítima for menor de 14 anos, e a regra for
válida, o estupro com violência presumida deve ser aceito. Mesmo
assim, o Supremo Tribunal Federal, ao julgar um caso em que a vítima
tinha 12 anos, atribuiu tamanha relevância a circunstância
particulares não prevista pela norma, como a aquiescência da vítima
ou a aparência física e mental de pessoa mais velha, que terminou por
entender, preliminarmente, como não configurado o tipo penal, apesar
de os requisitos normativos expressos estarem presentes. Isso significa
que a aplicação revelou que aquela obrigação, havida como absoluta,
foi superada por razões contrárias não previstas pela própria ou outra
regra.60
Neste sentido, observa-se que a solução dada ao caso concreto não vem
estabelecida de forma absoluta e abstrata no enunciado normativo, mas constrói-se a
norma de forma argumentativa, levando em consideração o caso concreto, as razões
oriundas no texto legal e do caso individualizado, devendo o magistrado levar em
consideração todo sistema normativo e a ordem constitucional. Assim, como afirma
Barroso “[...] Na medida em que lhes cabe atribuir sentido a expressões vagas, fluidas e
indeterminadas, como dignidade da pessoa humana, direito de privacidade ou boa-fé
objetiva, tornam-se, em muitas situações, coparticipantes do processo de criação do
Direito”61.
3.3 Ativismo Judicial: uma tentativa clássica de atribuir caráter excepcional à
atuação ativa e participativa do julgador
58
ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. São Paulo/Malheiros,
2003, p. 38-39.
59
Vale ressaltar que neste exemplo Ávila buscar criticar o critério de distinção entre regras e princípios do modo de
aplicação “tudo ou nada” – das regras – demonstrando que esta espécie normativa também se submete à
proporcionalidade – de suas razões. O que queremos demonstrar é que, uma vez não havendo identidade entre
enunciado normativo e norma, caberá ao julgador criar a norma mediante atividade hermenêutica, buscando as razões
do enunciado inserido no sistema normativo.
60
ÁVILA, Humberto ... Op. Cit. p. 37.
61
BARROSO, Luís Roberto. Judicialização, Ativismo Judicial e Legitimidade Democrática. Disponível em
<http://www.direitofranca.br/direitonovo/FKCEimagens/file/ArtigoBarroso_para_Selecao.pdf>. Acesso em 17 de
janeiro de 2013. p. 11.
378
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
Realizada estas primeiras considerações quanto o atual paradigma jurídico e a
“virada hartiana” que conduz a criação do Direito pela atuação participativa do julgador,
torna-se necessário apresentar alguns conceitos do chamado Ativismo Judicial, que
segundo Luís Roberto Barroso:
A ideia de ativismo judicial está associada a uma participação mais
ampla e intensa do Judiciário na concretização dos valores e fins
constitucionais, com maior interferência no espaço de atuação dos
outros dois Poderes. A postura ativista se manifesta por meio de
diferentes condutas, que incluem: (i) a aplicação direta da
Constituição a situações não expressamente contempladas em seu
texto e independentemente de manifestação do legislador ordinário;
(ii) a declaração de inconstitucionalidade de atos normativos
emanados do legislador, com base em critérios menos rígidos que os
de patente e ostensiva violação da Constituição; (iii) a imposição de
condutas ou de abstenções ao Poder Público, notadamente em matéria
de políticas públicas.62
Por sua vez, Elival da Silva Ramos conceitua ativismo judicial da seguinte
forma:
[...] exercício da função jurisdicional para além dos limites impostos
pelo próprio ordenamento que incumbe, institucionalmente, ao Poder
Judiciário fazer atuar, resolvendo litígios de feições subjetivas
(conflitos de interesse) e controvérsias jurídicas de natureza objetiva
(conflitos normativos).63
Das concepções apresentadas conclui-se que o ativismo judicial irá se
representar como uma atuação proativa do julgador quando da interpretação do
enunciado normativo no caso concreto, promovendo uma maior concretização dos
valores prevista na Constituição (segundo a concepção de Barroso), externalizando,
assim, uma função para além dos limites impostos pelo próprio ordenamento (segundo a
concepção de Ramos). Segundo Baio e Charur referida conceituação de Ramos decorre
de base teórica que se assenta: a de vinculação do interprete ao texto base da norma64.
Alerta Simionato que existem duas espécies de ativismo judicial: “o ativismo
inovador e o ativismo revelador. Aquele, representando uma verdadeira intromissão
indevida do Judiciário na função Legislativa, ocorre quando o juiz efetivamente cria
uma nova norma, ou intenta uma norma não contemplada no ordenamento jurídico
pátrio”. E segue: “Por outro lado, há ativismo judicial relevador quando o magistrado
62
Ibid. p. 6.
RAMOS, Elival da Silva. Ativismo Judicial Parâmetros Dogmáticos. São Paulo/Saraiva. 2010. p. 219.
64
BAIO, Lucas Seixas; CHARUR, Alan Ibn. A pretensão à correção como parâmetro dogmático do ativismo
judicial. Primas Jurídico. São Paulo, v. 10, n. 1, p. 173-194, jan/jun. 2011, p. 177.
63
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
cria uma norma ou uma regra a partir de valores e princípios já constitucionalmente
consagrados, complementando o entendimento de um princípio ou regra lacunosa”65.
Neste sentido podemos afirmar que o Ativismo Judicial possui a seguintes
características:
A) Exige uma atuação ativa do julgador;
B) Exercício jurisdicional que visa concretizar os valores inseridos na ordem
constitucional;
C) Atividade que extrapola os limites estabelecidos pelo ordenamento jurídico;
D) Função que cria uma norma não contemplada no ordenamento jurídico ou
complementa o sentido estabelecido por princípios ou regras lacunosas.
Podemos afirmar que os itens A e B encontram-se em consonância com as
construções teóricas que desembocarão no atual paradigma jurídico não-positivista,
inicialmente nos termos da já apresentada “virada hartiana”, e pela função jurisdicional
de guardar a ordem constitucional que estabelece valores em forma de regras e
princípios que deverão ser concretizados.
Ocorre, todavia, que dizer que a atividade criativa (que concretiza os valores
constitucionais – itens C e D) é extrapolar os limites estabelecidos pelo ordenamento
jurídico é afirmar que há uma contradição entre a decisão judicial consciente da sua
função no atual estágio constitucionalista e o próprio ordenamento jurídico. Quando o
magistrado busca a concretização dos valores constitucionais, superando, algumas
vezes, a própria regra normativa66, diante das razões oriundas do caso concreto e dos
valores constitucionais (que embasam o próprio enunciado normativo que esta sendo
superado), o magistrado está nada mais nada menos do que promovendo a integridade
da ordem constitucional e do próprio sistema normativo, proporcionando coerência
sistêmica.
O que queremos sustentar é que a única atividade do julgador condizente com
o atual paradigma jurídica é aquela ativa, que retira a norma do enunciado normativo,
buscando a otimização dos valores constitucionais, mas para isso encontrará limites na
65
SIMIONATO, Manoelle Brasil Soldati. Poder Judiciário: o protagonista em destaque. Disponível em <
http://www.esmesc.com.br/upload/arquivos/8-1259587874.PDF>. Acesso em 13 de jan. de 2013. p. 3.
66
Salutar apresentar a seguinte passagem de Thomas da Rosa de Bustamante que sustenta argumentação contra
legem, em consonância com o atual paradigma jurídico: “Entre nós, merece destaque o acórdão do Superior Tribunal
de Justiça que decidiu ser juridicamente permitido o levantamento do FGTS para fins de tratamento de portador do
vírus do HIV, ‘ainda que tal moléstia não se encontre elencada no art. 20, XI, da Lei 8.036/90”, afastando-se a
aplicação de uma norma jurídica que proibia o resgate dos valores do fundo fora das hipóteses taxativamente
previstas na lei. Partindo de uma análise da finalidade social do Fundo e com base nos princípios constitucionais de
proteção aos direitos à vida, à saúde e a dignidade humana, o Tribunal afasta a ‘letra fria da lei’, rompendo com os
significados possíveis do texto que veicula a norma jurídica excepcionada” (BUSTAMANTE, Thomas da Rosa.
Teoria do Direito ... Op. Cit. p. 318).
380
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
própria razão prática e no quadro normativo, daí a importância da concepção de
coerência sistêmica.
Legitima foi a pretensão do positivismo jurídico de frear as irracionalidades da
decisão judicial, das preferências políticas-partidárias, ideológicas. Neste sentido
Barroso expõe interessante passagem que apresenta o direito não político como
instrumento que buscou por tempos barrar referidos argumentos irracionais:
Evidentemente, Direito não é política no sentido de admitir escolhas
livres, tendenciosas ou partidarizadas. O facciocismo é o grande
inimigo do constitucionalismo. O banqueiro que doou para o partido
do governo não pode ter um regime jurídico diferente do que não
doou. A liberdade de expressão de quem pensa de acordo com a
maioria não pode ser protegida de modo mais intenso do que a de
quem esteja com a minoria. O ministro do tribunal superior, nomeado
pelo Presidente Y, não pode ter a atitude a priori de nada decidir
contra o interesse de quem o investiu no cargo. Uma outra observação
é pertinente aqui. Em rigor, uma decisão judicial jamais será política
no sentido de livre escolha, de discricionariedade plena. Mesmo nas
situações que, em tese, comportam mais de uma solução plausível, o
juiz deverá buscar a eu seja mais correta, mais justa, à luz dos
elementos do caso concreto. O dever de motivação, mediante o
emprego de argumentação racional e persuasiva, é um traço distintivo
relevante da função jurisdicional e dá a ela uma específica
legitimação.67
Entretanto, quando falamos na ética do discurso68 não há possibilidade de se
argumentar racionalmente os pontos apresentados na passagem acima transcrita, a
racionalidade discursiva providenciará a retirada de toda e qualquer argumentação
irracional (ou argumento ad absurdum) que busque a satisfação de interesses
particulares, cuja pretensão de universalidade e sinceridade não pode ser cumprida.
Afirmar que o ativismo judicial é atividade excepcional à atividade judicante é
apresentar uma concepção exclusivamente descritiva do Direito, ou seja, uma
construção mergulhada na perspectiva do observador (visualizando um Direito estático,
67
BARROSO, Luís Roberto ... Op. Cit. p. 14.
Quanto à justificação das regras do discurso que pressupõe uma ética discursiva Bustamante afirma que: “Alexy
procura fundamentar uma teoria analítico-normativa do discurso jurídico, que se preocupa tanto com a ‘estrutura
lógica dos argumentos realmente existentes ou possíveis’ (elemento analítico) quanto em estabelecer ‘critérios para a
racionalidade do discurso jurídico’ (elemento normativo). Rejeitam-se, assim, as tentativas de explicação empírica da
argumentação jurídica” e segue “No catálogo denominado ‘regras fundamentais’, Alexy refere-se àqueles que
constituem as condições prévias da possibilidade de comunicação linguística em que se trate de verdade ou correção.
São válidas para qualquer discurso, seja monológica ou dialógico, considerando-se fundamentais pelo caráter
elementar nelas presente. Compõem este catálogo: as regras fundamentais da lógica, em especial da lógica deôntica
(regra 1.1); o princípio da sinceridade (1.2) – sem o qual “sequer seria impossível mentir, pois na ausência de uma
regra que pressupõe a sinceridade, seria possível a decepção” -; o princípio kantiana da universalidade (1.3) – base da
teoria procedimentalista da argumentação prática -; e finalmente, uma regra pragmática sobre o uso da linguagem,
sem a qual o entendimento se torna impossível (1.4), tendo em vista o princípio lógico do terceiro excluído”.
(BUSTAMANTE, Thomas da Rosa de Bustamante. Argumentação Contra ... p. 79/80).
68
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
que prevê enunciados normativos claros e límpidos suficientes para solucionar todos os
fatos futuros), não de um participante, assumindo uma categoria “pré-hartiana”69.
Por tais razões falar em Ativismo Judicial como atividade que extrapola o
ordenamento jurídico e a função do Poder Judiciário é negar o atual paradigma jurídico
e a necessária e intrínseca abertura do nosso sistema normativo às questões morais. E
mais, falar em ativismo, como atividade atípica, é negar a pretensão de racionalidade do
nosso sistema, evidenciando postura retrograda e submissa às clássicas construções.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A necessidade de se promover a proteção dos direitos humanos, a irradiação
dos valores constitucionalmente previstos em todo o ordenamento jurídico, a
consequente extirpação de todo movimento de retrocesso e reducionismo dos direitos
fundamentais apresenta-se como o brado dos constitucionalistas e estudiosos do direito
contemporâneo, que não mais admitirá um julgador de pedra, que se apresenta como
mero observador do fenômeno jurídico.
Certo é que o direito dos homens, posto mediante um processo legislativo
(legítimo ou não), sempre apresentou embate direto com as concepções jusnaturalistas,
cuja fundamentação de legitimidade está centrada na essência humana, doutrina
filosófico jurídica que sustenta a existência de normas de direito natural anteriores ao
ordenamento jurídico histórico-temporal ou positivo.
Percebe-se, portanto, que há uma grande preocupação dos juristas em realizar
uma (re)aproximação do direito à moral, realizando o devido controle do direito
positivo a partir de um paradigma suprapositivo, ou decorrente dos valores positivados.
A grande preocupação que se apresenta diz respeito, portanto, inicialmente à
função ativa e criativa do julgador e a possível ausência de critérios racionais quando da
(re)aproximação do direito e a moral, já que conforme salientado por Alexy, há uma
tensão pela moralização do direito, cujas construções jurídicas ficam à deriva das
deduções morais.
Desta forma, quando falamos em atividade judicante necessariamente
deveremos nos remeter a uma atuação ativa/criativa inerente à própria função
jurisdicional no atual paradigma jurídico, sob pena de retrocedermos à escola exegética
e ao formalismo excessivo, impedindo o direito de cumprir sua própria tarefa, que é de
Conforme nos informa Bustamante, a categoria “pré-hartiana” foi cunhada por Massimo La Torre
(BUSTAMANTE, Thomas da Rosa de. Teoria do ... Op. Cit., p. 181.
69
382
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
concretizar os direitos fundamentais contribuindo para a proteção e evolução da
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384
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 28 - Hermenêutica
O ATIVISMO JUDICIAL. INSTRUMENTO DE CONCRETIZAÇÃO DE
DIREITOS OU INGERÊNCIA NO PRINCÍPIO DA SEPARAÇÃO DOS PODERES?
THE JUDICIAL ACTIVISM. INSTRUMENT OF REALIZATION OF RIGHTS
OR INTERFERENCE IN THE PRINCIPLE OF SEPARATION OF POWERS?
Daniel Leão Hitzschky Madeira1
Rosendo Freitas de Amorim2
Resumo:
Analisar o ativismo judicial e seus desdobramentos tem sido recorrente nos meios acadêmicos e profissionais da
área jurídica, devido às repercussões inerentes ao problema, tanto no que concerne à concretização de direitos e
garantias fundamentais, quanto a uma possível intromissão nas outras esferas de poder, contribuindo para o que
seria uma diluição do secular princípio da separação dos poderes. A temeridade de um ativismo judicial
exacerbado possibilitaria também o risco de uma fragilização da democracia e de uma nova ordem constitucional
orientada e definida pela jurisdição constitucional. Entretanto, o comportamento ativista poderia ter outra
compreensão, a de que o Poder Judiciário vem assumindo um papel de protagonista na efetivação de direitos e
garantias constitucionais.
Palavras-Chave: Ativismo Judicial. Concretização de Direitos. Interpretação Constitucional. Separação dos
Poderes.
Abstract:
Analyze judicial activism and its consequences has been recurrent in the academic and legal professionals, due to
the effects inherent to the problem, both as regards the implementation of fundamental rights and guarantees, as
a possible intrusion into other spheres of power, contributing for what would be a dilution of the secular
principle of separation of powers. The temerity of a judicial activism also enable exacerbated the risk of a
weakening of democracy and a new constitutional order driven and defined by the constitutional court. However,
the behavior could have another activist understanding, that the judiciary has taken a leading role in enforcing
rights and constitutional guarantees.
Keywords: Judicial Activism. Implementation of Rights. Constitutional Interpretation. Separation of Powers.
1. Introdução
Apesar de inúmeras obras relacionadas à temática do ativismo judicial, mostra-se
oportuno uma abordagem do assunto, notadamente pela repercussão na seara jurídica de
recentes decisões proferidas pelo Supremo Tribunal Federal em casos que envolviam
delicadas questões jurídicas e sociais, as quais provocaram o debate em diversos setores da
sociedade.
1
Defensor Público do Estado do Ceará, Bacharel em Direito pela Universidade de Fortaleza; Pós-Graduado em
Direito Constitucional e Processo Constitucional pela Escola Superior do Ministério Público do Estado do Ceará,
Mestrando em Direito Constitucional pela Universidade de Fortaleza.
2
Professor titular do Programa de Pós-graduação em Direito Constitucional na Universidade de Fortaleza
(UNIFOR).
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Longe de ter um consenso entre os juristas e um conceito definido, o ativismo
judicial suscita algumas polêmicas, inicialmente por não ter um conceito delimitado e
definido, bem como por provocar uma tensão entre o Poder Judiciário e os demais poderes,
colocando em questionamento o secular princípio da separação dos poderes.
Nesse sentido, apresentam-se dois grandes questionamentos, seria o ativismo judicial
um método hermenêutico destinado a concretizar direitos ou uma ingerência desmedida do
Poder Judiciário nos Poderes Legislativo e Executivo, porquanto os efeitos de algumas
decisões se destinam a direcionar políticas públicas ou obrigar uma atuação legislativa para
suprir vácuos ou omissões.
A problemática apresentada e seus desdobramentos, aliada a uma visão crítica
possibilitará em uma análise dialética e, por consequência, em um amadurecimento dos
conceitos. Ademais, a dimensão da atividade realizada pelo intérprete constitucional e sua
delimitação, vai fundamentar e influenciar não só os casos concretos analisados e decididos,
mas toda a sociedade e seus integrantes.
Não podemos esquecer ainda, o fato de que as mudanças sociais influenciam o
direito; não existe uma sociedade estanque, principalmente nessa era de globalização, não
havendo, portanto, normas estanques. Não existe um direito único e acabado, mas direitos que
variam com o tempo, o lugar, entre outros elementos circunstanciais. Não há direito
descontextualizado da realidade. Consoante o disposto, explica Pereira (2006, p. 50): “[...] É
que as chances de preservação do texto constitucional serão maiores quando este for dotado
de plasticidade suficiente para adaptar-se aos câmbios sociais e políticos”.
Assim, o presente artigo procura realizar uma análise sobre o problema, apresentando
variadas compreensões sobre o assunto, com o escopo de firmar, ou pelo menos tentar, um
posicionamento sobre essa polêmica matéria.
2. A origem e a delimitação do termo “Ativismo Judicial”.
Embora haja uma divergência quanto à origem do termo ativismo judicial, prevalece
o entendimento de que tal termo teria sido criado pelo jornalista americano Arthur M.
Schlesinger Jr., o qual em 1947, em matéria jornalística dirigida à revista “Fortune”, teve a
missão de construir o perfil político e ideológico dos nove membros da suprema corte norteamericana na época, a qual enfrentava um momento de tensão política com o governo de
Franklin Delano Roosevelt, cujo teor consubstanciava-se em aprovar um plano político e
econômico conhecido como new deal, que envolvia algumas medidas legislativas marcadas
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pelo traço da inconstitucionalidade, com o escopo principal de resgatar o desenvolvimento
econômico da nação americana, após o declínio ocorrido pela grande depressão da década de
30. O artigo se intitulava “The Supreme Court: 1947”. (SCHLESINGER JR., 1947.)
Em decorrência da postura de embate judicial, e porque não dizer político, travado
com a suprema corte norte americana, o presidente Roosevelt utilizando-se de uma manobra
política duvidosa, envia um projeto de lei ao Congresso, cujo teor discriminava que um juiz
adicional poderia ser acrescentado à Suprema Corte, para cada juiz que tivesse mais de 70
anos de idade. Com tal medida a suprema corte aumentaria de tamanho e possibilitaria que o
Poder Executivo nomeasse novos juízes que compactuassem com os ideais de Roosevelt.
A Suprema Corte Norte Americana nesse período tinha como presidente o Justice
Hugo Black, classificado pelo artigo de Arthur Schlesinger como um Judicial Activists,
porém, a maioria da cúpula do poder judiciário norte americano, por apenas um voto,
sucumbiu ao poder político do presidente Roosevelt, extinguindo a crise institucional que se
instalava entre os poderes, declarando constitucional as leis que arrimavam o novel plano
econômico. Tal posicionamento da corte constitucional ficou conhecida como the switch in
time that saved nine (a mudança em tempo de salvar nove), segundo Lawrence Baum (1987,
p.42).
O artigo escrito por Arthur Schlesinger traz pela primeira vez a expressão “ativismo
jurídico”, mencionando e narrando a postura tomada por alguns juízes da Suprema Corte
naquele período, que diante de um comportamento de jurisdição defensiva (judicial restraint),
oriunda de um pensamento eminentemente positivista, se esquivavam de enfrentar casos
relevantes e essenciais à sociedade.
Como se vê, em um primeiro momento, a expressão ativismo judicial, nada tinha a
ver com métodos hermenêuticos ou de interpretação, traduzia uma postura tomada pelos
juízes no enfrentamento de questões políticas e legislativas submetidas ao crivo do judiciário.
O conceito, a amplitude e o uso do termo ativismo judicial, não é uníssono, há uma
divergência de entendimento, inclusive no país que lhe deu origem, conforme ensina Valle
(2009, p. 21):
“A consulta a duas fontes elementares – ainda que prestigiadas – de conceituação no
Direito norte-americano, Merriam-Webster’s Dictionary e Black’s Law Dictionary,
evidencia que, já de origem o termo “ativismo” não encontra consenso. No
enunciado da primeira referência, a ênfase se dá ao elemento finalístico, o
compromisso com a expansão dos direitos individuais; no da segunda, a tônica
repousa em um elemento de natureza comportamental, ou seja, dá-se espaço à
prevalência as visões pessoais de cada magistrado quanto à compreensão de cada
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qual das normas constitucionais. A dificuldade ainda hoje subsiste, persiste o caráter
ambíguo que acompanha o uso do termo, não obstante sê-lo um elemento recorrente
tanto da retórica judicial quanto de estudos acadêmicos, adquirindo diversas
conotações em cada qual desses campos.”
Ronald Dworkin (1999) ratifica o entendimento de que o ativismo judicial decorre de
uma intensa participação do poder judiciário na concretização e efetivação dos valores
constitucionais, o qual pode ser concretizado e efetivado de diferentes maneiras, como por
exemplo, a aplicação direta da constituição, independentemente da participação do legislador
ordinário, a imposição ou abstenção de condutas ao Poder Público para garantir direitos
constitucionalmente previstos, a interpretação pelo Poder Judiciário dos chamados “padrões
vagos”, todas essas atitudes ou mecanismos aplicados pelo poder judiciário, possuem uma
concepção teleológica de resguardar e proteger direitos fundamentais. A partir dessas
premissas, começa o ativismo judicial a ser compreendido como um método de integração e
de interpretação.
Esse mesmo pensamento é reafirmado por Norberto Bobbio (1992, p. 25), senão
vejamos:
“o problema que temos diante de nós não é filosófico, mas jurídico e, num sentido
mais amplo, político. Não se trata de saber quais e quantos são esses direitos, qual é
a sua natureza e seu fundamento, se são direitos naturais ou históricos, absolutos ou
relativos, mas sim qual é o modo mais seguro para garanti-los, para impedir que,
apesar das solenes declarações, eles sejam continuamente violados.”
Por exemplo, um argumento utilizado por alguns juristas, é o de que, mesmo no
“vácuo legislativo”, o julgador em sua análise interpretativa, não pode extrapolar a mens legis,
ou seja, o intérprete constitucional ou legal não pode atuar de qualquer maneira, deve-se
evitar de qualquer forma o subjetivismo, para eles toda norma já traz implícita um comando
normativo que não pode ser deturpado, principalmente por ser expressão da vontade popular
representada pelo poder legislativo. Seria como um engenheiro que executa um projeto
arquitetônico, ele pode acelerar ou diminuir o ritmo da obra, mas jamais poderá sair dos
termos definidos no projeto.
Há ainda autores, os denominados semânticos ou textualistas, os quais entendem que
faz-se necessária muita cautela com a utilização do chamado ativismo judicial, sob pena de
ser instalada uma ditadura do judiciário, com a consequente atrofia dos demais poderes e o
vilipêndio do secular princípio da separação dos poderes, o qual está expressamente previsto
no Art. 2º da Constituição brasileira. Ademais, atentam para o perigo de ser desvirtuado o
sentido original da norma constitucional e a intenção daqueles que promulgaram a
constituição.
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Assim, o ativismo judicial não possui um conceito determinado e acabado, sendo
identificado pela doutrina pelo menos sete conotações à expressão ativismo judicial, conforme
artigo publicado por William P. Marshall (2002, p. 101-140), quais sejam: a) o ativismo
contra-majoritário: marcado pela relutância em relação às decisões dos poderes diretamente
eleitos; b) ativismo não-originalista: caracterizado pelo não reconhecimento de qualquer
originalismo na interpretação judicial, sendo as concepções mais estritas do texto legal e as
considerações sobre intenção do legislador completamente abandonadas; c) ativismo de
precedentes: o qual consiste na rejeição aos precedentes anteriormente estabelecidos; d)
ativismo jurisdicional: marcado pela resistência das cortes em aceitar os limites legalmente
estabelecidos para sua atuação; e) ativismo criativo: resultante da criação de novos direitos e
teorias na doutrina constitucional; f) ativismo remediador: marcado pelo uso do poder judicial
para impor atuações positivas dos outros poderes governamentais ou controlá-las como etapa
de um corretivo judicialmente imposto e g) ativismo partisan: o qual consiste no uso do poder
judicial para atingir objetivos específicos de um determinado partido ou segmento social.
Entrementes, tal diferenciação e classificação, embora sirva de um importante
paradigma, não possui um critério absoluto, prevalecendo hodiernamente na doutrina
brasileira o entendimento de que tal expressão é utilizada 

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