o deserto de ferrugem
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o deserto de ferrugem
D. PEREIRA O DESERTO DE FERRUGEM 1ª edição Maringá 2013 Copyright © 2013 D. Pereira Todos os direitos reservados. Nenhuma parte deste livro pode ser reproduzida sob quaisquer meios existentes sem a devida autorização por escrito do Editor. Ilustração da Capa “Rodes Sotiris”, por Diogo Al-chueyr Martins Pereira ISBN: 978-85-913056-3-6 Saiba mais sobre o livro “O Deserto de Ferrugem”. Acesse www.facebook.com\pequenosdelirios. O Deserto de Ferrugem O dia de trabalho mal havia começado quando o comunicador do engenheiro de minas Rodes Sotiris soou. A voz da Governadora Ayla, distorcida pela interferência, requisitava a presença de Rodes em seu escritório o quanto antes. Resignado, o engenheiro avisou o segundo em comando sobre a sua saída e começou a caminhada pelo longo túnel de paredes de resina de coloração ocre. Duas linhas de lâmpadas azuladas se estendiam pelo teto até aonde a vista alcançava. As instalações da mina de extração de cobalto haviam melhorado muito nos cinco anos desde à chegada de Rodes a Estação Urano. No início os acidentes eram comuns, dada a precariedade dos equipamentos disponíveis. Ele mesmo quase havia perdido a vida numa explosão ocorrida quando um bolsão de gás foi atingido durante a abertura de um dos novos túneis. Após alguns minutos de caminhada, Rodes chegou ao elevador do duto principal que levava aos níveis superiores da Estação. À medida que o elevador subia, o ar se tornava mais respirável, e ele pôde desligar o filtro em seu capacete. Mais alguns andares e os sensores do seu traje de sobrevivência indicaram que o capacete poderia ser removido. Mesmo sentindo um odor pesado de ferrugem, era bom respirar sem ajuda de aparelhos. Os trajes de sobrevivência eram uma necessidade, um item indispensável à continuidade do ser humano no planeta. Os trajes controlavam a temperatura, filtravam o ar, aumentavam a força de seu usuário em até duas vezes e possuíam uma dezena de sensores e outras funções secundárias, mas não menos essenciais. Eles consistiam de um macacão grosso, justo e com placas de captação de energia solar nos ombros, tórax, mãos e pernas. As placas eram responsáveis por gerar toda a energia necessária ao funcionamento dos trajes. Elas eram feitas de material vítreo negro e muito resistente. Cada placa era segmentada em diversas partes menores, entrecortadas por fios de transmissão que brilhavam com luz amarela de alta intensidade. Os fios percorriam as placas em intrincados padrões geométricos que, diziam os cientistas, seguiam alguma lógica, mas para Rodes apenas uma mente insana poderia encontrar lógica naqueles desenhos. Observados no escuro, sem a utilização de lanternas, só podiam ser vistos nos trajes esses finos fios de transmissão. Dependendo da função do indivíduo, os trajes vinham em diferentes cores; vermelhos para o pessoal do Governo, negros para Agentes de Segurança, azuis para operários das minas e mais uma série de outras ramificações. A Estação Urano era um dos nove redutos habitáveis no Deserto de Ferrugem. A principal e maior Estação era a Sol, capital do Governo Solar (ou Central), lar de aproximadamente duzentas mil pessoas e centro industrial do planeta. A partir da Estação Sol, espalhavam-se na direção sul as outras oito estações principais, nomeadas a partir dos planetas componentes do Sistema Solar. Entre as Estações principais existiam algumas dezenas de subestações, pequenos povoados que serviam de apoio aos maiores, mas que nem sempre conseguiam se sustentar e acabavam sendo abandonados; suas instalações servindo como um lembrete àqueles que por ventura topassem com elas de que algum dia, naquele lugar, a humanidade havia tentado prosperar. Mil pessoas podiam chamar a Estação Urano de lar. Dessas, oitocentas estavam envolvidas diretamente com a mineração, sendo o restante encarregado das atividades administrativas, de segurança e manutenção. Como todas as outras cidades do planeta, boa parte das instalações estava localizada nos subterrâneos, sendo que apenas uma “Cúpula”, formada por painéis de captação de energia solar de alta capacidade, se projetava cem metros acima da superfície do deserto. Essa era a única fonte de energia abundante e, na verdade, possível, no Deserto de Ferrugem. A energia captada pelo Sol era lançada nas profundezas das Estações através de torres de transmissão, e proporcionava aquecimento, movimentava as máquinas e veículos, além de manter os trajes de sobrevivência em funcionamento. Sem ela, o ser humano jamais poderia sobreviver em um local tão agressivo. O elevador chegou ao topo da “Cúpula”. Rodes parou no corredor e contemplou o deserto através de uma janela panorâmica completamente vedada. Urano se encontrava aos pés de uma colossal montanha, cujos picos monolíticos de calcário cinza claro despontavam como presas brotando de uma gengiva avermelhada e sumiam nas alturas. Os vales e ravinas aos pés da montanha eram cobertos por dunas de areia escarlate; a mesma areia que pairava constantemente em suspensão no ar, bloqueando a visão do céu, mesmo quando não havia ventos. O Sol podia ser visto como uma grande bola de fogo através da cortina de areia durante boa parte do dia de dezenove horas. Na verdade, areia não era exatamente o termo correto a se utilizar, neste caso. Todas as noites, ventos cósmicos carregados de radiação varriam o planeta, destruindo todo o material metálico com que entrassem em contato. Até mesmo o ferro encontrado no sangue do ser humano era destruído e carregado. Ao longo das últimas três décadas, esse material havia sido depositado no que hoje é o Deserto de Ferrugem. Os cientistas estimam que o deserto atingiu a área de treze milhões de quilômetros quadrados nesses últimos trinta anos e, se houvesse metal suficiente no planeta, ele decerto tomaria a sua superfície. A agressividade dos ventos corrosivos era tamanha que obrigou os seres humanos a praticamente abolir componentes metálicos do seu dia-a-dia, ou então a protegê-los da ação dos ventos nos subterrâneos. As resinas plásticas dos mais variados tipos e resistências formavam a base de todo aparato utilizado, sendo as três mais comuns chamadas de plastômero, elastímero e plastmest. Rodes apertou o botão no painel ao lado da porta e esta se abriu, expelindo vapor das emendas. A luz entrava filtrada através de duas grandes janelas com persianas negras. Ayla, uma mulher pálida, magra e de cabelos e olhos escuros, contemplava em pé e com os braços cruzados atrás de si uma grande imagem de satélite projetada contra uma das paredes da sala. Ela sinalizou com a cabeça uma das cadeiras, e Rodes sentou-se. “Pois não, Governadora.”, iniciou Rodes. “Perdemos contato com uma das nossas equipes de campo.”, ela respondeu secamente, acrescentando: “Bashira está entre os desaparecidos.” Bashira Nesrin. O nome trazia a Rodes um misto de emoções. A maioria delas, boas. Eles haviam se conhecido sete anos antes, e foi por causa dela que Rodes decidiu abandonar a sua vida razoavelmente estabilizada na Estação Sol para se aventurar nas Estações mais distantes. O primeiro encontro ocorreu durante o treinamento na Agência de Segurança, onde ambos passaram com méritos pelas provas às quais todo cidadão tinha que se submeter. Ao término do treinamento, os que se destacavam eram convidados a ingressar na Agência, que tinha a função de polícia, ou então se tornavam reservistas e seguiam a vida civil. Na época, ambos optaram pelo caminho da Agência, o que parecia lógico para jovens que mal haviam chegado aos trinta anos, estavam no auge da forma física e tinham uma necessidade de descobrir um novo mundo, cheio de mistérios a serem desvendados. O fato é que, após dois anos na Estação Netuno, a mais erma das povoações humanas, Rodes cansou-se da tensão e violência associadas à sua função e decidiu retomar a sua formação original em engenharia de minas. O fato do relacionamento amoroso dos dois ter chegado ao fim certamente influenciou muito nesta decisão. Eles só vieram a se reencontrar quatro anos depois, quando Bashira foi designada como chefe da polícia na Estação Urano, onde Rodes havia construído rapidamente uma carreira na mina de cobalto. Ele se lembrava do reencontro como se fosse ontem. Um grupo de trabalhadores estava insatisfeito com a distribuição das cotas dos resultados, e promoveu uma revolta nas instalações inferiores da mina. Duas pessoas foram aprisionadas e mantidas como reféns por outros vinte trabalhadores. Rodes tentava negociar a libertação dos prisioneiros quando um alvoroço pôde ser ouvido nas salas onde os revoltosos haviam se trancado. Em questão de minutos, um grupo de ataque liderado por Bashira havia invadido sorrateiramente o local e libertado os reféns. O resultado para os trabalhadores insatisfeitos foi uma série de hematomas, contusões, ossos quebrados e alguns dias de prisão. A imagem do momento em que conseguiu adentrar o cativeiro não saía da cabeça de Rodes. Em meio à fumaça, gritos e pessoas atracadas em combate corporal, ele topou com Bashira e, se algo havia mudado nela, é que estava ainda mais atraente. Ela era alta e tinha pernas longas e com músculos bem definidos. A pele morena, os grandes olhos castanhos e os cabelos negros compridos e cortados numa franja reta continuavam os mesmos, assim como o piercing dourado espetado no nariz. Como era de se esperar, ela vestia um temível traje de sobrevivência negro. Os dois cumprimentaram-se com um aceno de cabeça e um resmungo, e Rodes sentiu certo embaraço ao ser avaliado por ela. Enquanto ela se manteve no auge da forma física, a sua mudança de atividade e hábitos havia se refletido em seu corpo ao longo do curto período em que eles ficaram sem se ver. A barriga já mostrava certa proeminência e, apesar de continuar com o corpo forte, resultado de uma rotina relaxada de exercícios, ele podia ser considerado um ex-atleta. A vida no subterrâneo havia deixado a sua pele e cabelos pálidos. Pelo menos os olhos pequenos e cinzentos, e o rosto de traços angulares, nariz aquilino e barba por fazer continuavam os mesmos, apesar de algumas rugas a mais. “Seu cabelo está mais curto.”, Bashira disse. Ela cutucou a barriga de Rodes com o cassetete de plastômero manchado com algumas gotas de sangue. “Não é muito saudável manter cabelos compridos aqui embaixo. Temos problemas com piolhos.”, ele respondeu. “Sei.”, ela disse secamente. Silêncio. “Enfim, tenho um trabalho a terminar. Até mais.”, ela acrescentou, virando as costas e encerrando a conversa, deixandoo com a boca semiaberta, com algo a ser dito enquanto ela se afastava. *** Rodes despertou dos seus devaneios ao sentir uma quase imperceptível espetada na perna. Era a “hora do almoço”. A base da alimentação das pessoas que habitavam o Deserto de Ferrugem era um composto injetável que fornecia todos os nutrientes e hidratação necessários. Como a comida e a água eram artigos praticamente inexistentes, o composto era a única maneira de sobreviver. Através de um engenhoso processo, cuja indústria principal situava-se na Estação Sol, extraía-se de qualquer formação mineral todos os componentes necessários para manter a máquina humana em perfeito funcionamento. Era como “tirar leite de pedra”, literalmente. Todos vestiam, diariamente, cintos carregados com seringas de agulhas minúsculas, que com um simples aperto de botão injetavam o composto alimentar no corpo do usuário. Os trajes de sobrevivência, inclusive, podiam ser programados para disparar as seringas a intervalos pré-determinados, mesmo que o indivíduo estivesse dormindo. A implementação desse sistema podia ser considerada recente, tendo pouco mais de uma década desde os primeiros experimentos, e no início muitos morreram por não se adaptar à mudança biológica tão drástica. Os mais brilhantes cientistas continuavam trabalhando incansavelmente para aprimorar a técnica, de modo a amenizar alguns efeitos colaterais que persistiam, principalmente o desenvolvimento de doenças mentais e a queda de fertilidade. Rodes mal se recordava da sensação de como era alimentar-se da maneira tradicional. Ele ainda tinha o hábito de mastigar alguns materiais sintéticos desenvolvidos para esse fim, apenas pelo prazer de morder alguma coisa. A Governadora Ayla o encarava, tentando ler os seus pensamentos. “Acredito que a expedição possa ter tido problemas.”, ela disse. “Perdemos contato cerca de duas horas atrás.” “Onde eles estavam, ou deveriam estar? Com que objetivo deixaram a Estação?”, perguntou Rodes, voltando ao presente. “Trata-se de uma história um pouco mais complicada do que um simples passeio. Dias atrás eu recebi uma mensagem do Governador Yusuf, da Estação Netuno. Ele estava bastante alarmado, e tive que acalmá-lo diversas vezes durante a conversa. Um meteoro caiu a alguns quilômetros da Estação. Afora o fato de que a queda do meteoro causou uma série de estragos na instalação, algo mais o perturbava.” Rodes ouviu uma das seringas de Ayla sendo disparada, e ela contorceu o rosto enquanto o composto era injetado. Mesmo com toda a tecnologia envolvida na fabricação das seringas, algumas pessoas, principalmente as mais magras, sentiam grande desconforto ao se alimentarem daquela maneira. “Imagino o susto deles. Certamente ocorreram abalos sísmicos e muito pânico no momento da queda. Causa-me espanto que não tenhamos ouvido nada sobre esse episódio aqui em Urano...”, continuou Rodes. “De fato, segundo o que me contou o Governador, o pânico foi grande. Assim que os ânimos se acalmaram, uma equipe foi enviada ao local para realizar uma investigação. Eles informaram que encontraram água em grande quantidade, e logo depois perderam contato.” “Água? O governo de Sol já soube disso? Por isso a notícia não foi divulgada...”, divagou Rodes, passando a mão sobre o queixo quadrado. Ayla pigarreou. “Sim, exatamente por isso a notícia não foi divulgada. O Governador Yusuf teve problemas enormes no momento em que essa informação chegou aos ouvidos da população de Netuno. Uma pequena revolta teve início. Parece que, ao descobrir a novidade, um frenesi tomou conta dos que ainda se recordavam da sensação do que é beber um gole de água.” Rodes se recordava daquela sensação, e de fato era incrível. “Ok. Houve um levante em Netuno e Bashira foi enviada para auxiliar a controlar os ânimos.” “Quase isso. Aparentemente, todos em Netuno estão mortos, segundo o relato de Bashira. O Governo Solar já está enviando ao local grande quantidade de pessoal da Agência de Segurança e cientistas, mas eles levarão semanas para atravessar os quilômetros de deserto. Bashira foi enviada em missão de reconhecimento e isolamento da área, até que o pessoal de Sol chegue, em duas ou três semanas.” Rodes pulou da cadeira. “O quê? Ela ficou lá? Quantos policiais estão com ela?” “Não se exalte, Rodes. Não o chamei aqui para isso. Fique tranquilo em saber que ela está acompanhada por trinta policiais armados. Eles montaram uma base em uma subestação abandonada, localizada quinze quilômetros ao Norte de Netuno, e de lá iniciaram as missões de reconhecimento.” O Sol estava a pino no deserto. Os picos da montanha ao nordeste de Urano mal podiam ser vistos através da cortina de areia e poeira em suspensão. Rodes olhava através das frestas das persianas enquanto Ayla falava, imaginando Bashira enfrentando sozinha uma multidão enfurecida em busca de água. Provavelmente ela estava adorando tudo aquilo. “Ao longo de dois dias, pudemos definir o seguinte cenário: Netuno está abandonada. Os poucos habitantes encontrados estão mortos, vítimas de tiros e violência física, mas a equipe de Bashira não adentrou muito na Estação. Cerca de outras duzentas e cinquenta pessoas, incluindo o Governador Yusuf, estão desaparecidas ou mortas em algum outro lugar. A equipe de Bashira aproximou-se a cerca de um quilômetro do meteoro, nos comunicou sobre o ocorrido e então perdemos contato, cerca de duas horas atrás. E é por isso que você está aqui.” “O que eu posso fazer que uma equipe de trinta Agentes de Segurança não possa, numa situação dessas?”, perguntou Rodes, desconfiado. Ayla levantou-se, passou por trás da cadeira de Rodes e, ao mesmo tempo em que acionava um painel em sua mesa, sussurrou em seu ouvido: “Talvez o senhor possa me dizer o que é isso.” Uma imagem foi projetada na parede. Era azulada e tremida, cheia de interferência, mas nítida o suficiente para que muito pudesse ser decifrado. E ouvido. A pessoa que gravara o filme acabara de chegar ao topo de uma elevação, a câmera tremia acompanhando seus passos. No horizonte viam-se algumas montanhas baixas, e ao pé delas uma enorme cratera. A cena foi interrompida por alguns segundos, e retornou logo em seguida. Muita poeira pairava no ar. A cratera parecia preenchida por algum líquido. Ondas se afastavam em círculos lentos em direção às extremidades do buraco, do centro do qual brotava um enorme fragmento de rocha acinzentada. O fragmento apresentava uma forma razoavelmente bulbosa, lembrando um dente canino com a superfície toda acidentada, a parte mais volumosa estava submersa. A voz de Bashira soou na sala. “... horas do dia 127 do ano 31.” Interferência por dez segundos. “...cratera apresenta diâmetro estimado de três quilômetros. Ela está completamente preenchida por algum líquido, aparentemente ág... rocha de aproximadamente quarenta metros de altura...” Nova interferência, por dois longos minutos. Rodes lançou um olhar questionador na direção de Ayla, que continuava pendurada em seu ombro. Ela apenas disse: “Espere.” A voz de Bashira continuou: “... cristais de gelo na superfície do meteoro. Temperatura inalterada em torno dos cinquenta graus Celsius. Interferência parece ter origem n...” Fim da transmissão. A imagem congelou com aquela barbatana rochosa brotando do lago. “Então?”, perguntou Ayla. Rodes estava abalado. Não o interessava nem um pouco aquele meteoro ou o que quer que fosse aquilo. “Você tem que mandar um grupo de resgate. Eles podem estar em perigo!” “Não posso fazer isso enquanto não tiver certeza do que estamos enfrentando. Pergunto novamente: o que é isso?” Poucos no planeta tinham o conhecimento em geologia que Rodes possuía. Desde que iniciou os estudos, ele sempre teve fascínio pela maneira como o planeta se construiu e reconstruiu com o passar de bilhões de anos. Imaginar a lava resfriando ao longo de gerações, as pressões das profundezas fundindo diferentes substâncias, as erosões moldando paisagens, os movimentos tectônicos, na cabeça dele era quase como se o corpo celeste tivesse vida própria, respirasse até. Rodes respondeu sem pensar duas vezes. “É um fragmento da Lua.” *** Não era a primeira vez que Rodes era preso. Mas era a primeira vez que era enjaulado injustamente, e aquilo o enfurecia. Quando ele era mais jovem, era muito comum se envolver em brigas desnecessárias, de modo que quando acabava preso, achava até merecido. Mas a Governadora Ayla, após coletar as informações de que precisava, acionou um botão de emergência e convocou três brutamontes com ordens de prendê-lo, alegando “medidas preventivas de segurança”. O fato dela ter ordenado que Rodes não fosse ferido foi a deixa para ele pelo menos quebrar com um direto de direita o nariz de um dos policiais, antes de ser levado. O pior da prisão era a monotonia. Meditar olhando para a parede, imaginando cada camada e substância que a compunha, adiantava por algumas horas, e a partir dali passava a ser intolerável. Trocar ofensas verbais com os policiais e com os outros presos perdia a graça rapidamente também. Restavam os exercícios físicos, intermináveis flexões e abdominais. Depois disso, apenas o sono para trazer algum alívio, mas como dormir numa situação daquelas? Disseram a ele que permaneceria trancado até que a situação na Estação Netuno ficasse clara, o que na prática queria dizer que ele ficaria preso por tempo indeterminado. Bashira provavelmente corria perigo. Não que ele soubesse ao certo o que de fato estava ocorrendo. O cenário mais provável é que alguma facção com ideias egoístas com relação à água trazida junto do meteoro havia tomado a Estação Netuno. A perda de contato até não o preocupava tanto, com a quantidade ínfima de satélites circundando o planeta, era uma situação mais do que comum e que poderia levar horas ou dias para ser resolvida. Após quatro horas na prisão, Rodes finalmente adormeceu. Ele precisava estar descansado para agir quando fosse possível. *** O dia terminara fazia poucos minutos. Rodes e sua equipe perderam a noção de tempo coletando amostras de solo. Por sorte estavam próximos da Estação, e não teriam problema algum com a tempestade corrosiva. De fato, chegaram com duas horas de antecedência. Eles adentraram a “Cúpula”, Rodes por último, trocando piadas com alguns funcionários dos portões. Ainda na entrada ele foi abordado por uma policial. Reconheceu Bashira imediatamente. “Senhor Engenheiro. Você está sendo detido, sob a suspeita de me evitar durante dois meses.”, ela disse, séria. De fato, Rodes não a vira desde o dia em ela havia desbaratado a revolta na mina. “Isso claramente é um abuso de poder. Tenho o direito de evitar ex-namoradas o quanto eu quiser.”, ele respondeu, aceitando o jogo. “Não, não tem. Mas, caso aceite compartilhar comigo um passeio pelo deserto, talvez eu o perdoe por essa grosseria.” “Seremos trucidados pelo vento corrosivo, você sabe disso, não?”, ele acrescentou inocentemente. Ela fez um muxoxo e disse: “Não chegaremos a esse ponto, posso te garantir isso.” Resignado, Rodes aceitou o convite para o passeio. Eles conversaram com os policiais do portão, avisando que voltariam dentro de uma hora, no máximo. Os dois caminharam pelo deserto, os últimos raios de sol sumiam rapidamente através de uma enorme fenda entre os oito picos do Monte Olimpo. O vento nunca era muito forte nos arredores da Estação, dada a proteção do gigante rochoso que se erguia a até três quilômetros acima dela. Eles subiram uma encosta, zombando dos tropeços um do outro. As luzes amarelas e azuis da Estação podiam ser vistas muitos metros abaixo. O Sol sumiu por completo. Relâmpagos esverdeados começaram a castigar os picos Mytikas e Trono de Zeus. “Você acredita que os Deuses de fato viveram nessa montanha?”, perguntou Bashira logo que eles se sentaram. “Ao presenciar um espetáculo como esse, acredito que eles ainda estejam por lá.”, respondeu ele. Eles permaneceram em silêncio por alguns minutos, até que Bashira perguntou. “Por que você me deixou, Rodes?” Eles encararam-se por trás dos capacetes dos trajes de sobrevivência. Os relâmpagos esmeralda refletiam nas cúpulas de vidro e seus rostos sérios mal podiam ser vistos. “Eu fugi da nossa ultraviolência. Mais da minha do que da sua.”, ele respondeu. “Entendo.”, disse ela, ficando pensativa por alguns segundos. “Lembra-se de quando assistimos Laranja Mecânica? Senhor e Senhora Alex DeLarge, era o que éramos.” Rodes riu dos apelidos. Claro que eles nunca chegaram aos níveis de violência gratuita do personagem Alex DeLarge, mas a vida na Agência de Segurança deixava qualquer um no limite da moralidade. E Rodes, quando chegou a esse limite, recuou antes que o atravessasse. Ao contrário de Bashira, ele não teve a perseverança necessária para levar aquilo adiante. Infelizmente, o relacionamento deles também estacou, a maior parte da afinidade que tinham dependia do objetivo comum dentro da Agência. O fato é que ele nunca havia explicado isso a ela, tendo simplesmente decidido ir embora, largando tudo. Resolveu dar a explicação que devia na meia hora seguinte. Por fim, acrescentou: “Peço desculpas por não ter sido sincero com você.” “Rodes. Já fazia semanas que eu havia percebido que você estava bastante infeliz com tudo o que estávamos passando. Se não tivesse ido embora, eu mesma ia dar um fim no nosso relacionamento.”, disse ela, dando uma cutucada em suas costelas. “Não queria ver você infeliz.” “Obrigado por tirar esse peso da minha consciência.”, ele disse. Os dois continuavam tendo um entendimento mútuo que ultrapassava a barreira das palavras proferidas, o que deixou ambos felizes. *** “Acorde, Rodes!” Rodes arregalou os olhos, como se tivesse recebido um choque. Ele precisava ajudar Bashira, e para isso tinha que sair daquela prisão. A cela havia sido aberta, a iluminação externa demarcava a silhueta de alguém junto à porta. Um surto de adrenalina começou a percorrer o seu corpo. “Ultraviolência!”, ele pensou consigo mesmo. O Agente aproximou-se para cutucá-lo com o cassetete, mas não teve essa oportunidade. Rodes, que estava deitado de costas para a porta, girou sobre seu corpo e chutou violentamente as pernas do policial, que foi literalmente arrancado do chão, vindo a cair de costas, acompanhado de um grande estalo. No instante seguinte Rodes estava sobre ele, com as grandes mãos em volta do seu pescoço, pronto para estrangulá-lo. “Seu idiota, o que você está fazendo?”, perguntou o Agente, tentando respirar. Rodes reconheceu o rosto redondo do seu amigo Henry “Mandíbula” Kaito, e imediatamente aliviou a pressão no pescoço dele. “Mandíbula? O que você está fazendo aqui?”, perguntou ele, caindo sentado para trás, o surto de adrenalina passando rapidamente. Henry Kaito também se sentou, afagando o pescoço machucado. Ele ergueu o rosto e respondeu: “Eu vim aqui para libertá-lo, mas acho que mudei de ideia. Você bem que merece ficar enjaulado. No que estava pensando quando pulou dessa maneira sobre o meu pescoço?” “Bem...”, disse Rodes, “...imagino que após matar você eu roubaria o seu traje de sobrevivência e lutaria até a morte para fugir da Estação.” “Desculpe a sinceridade, mas que plano imbecil.”, acrescentou Henry. Ambos começaram a rir da situação. Para Rodes era um alívio rever Henry. Ele havia sido o seu braço direito durante todo o período em que Rodes colaborou com a Agência de Segurança em Netuno, anos antes. Mais do que um colega, Henry era seu amigo. O “Mandíbula”, como era conhecido Henry Kaito, não era tão alto quanto Rodes, e era muito mais magro. Tinha olhos ovais e escuros. Ele raspava a cabeça com lâmina, para evitar os piolhos e disfarçar a calvície avançada, e estava com a barba sempre por fazer em seu proeminente maxilar, que era a origem do seu apelido e sua característica mais marcante. “Uma parte do pessoal ficou revoltada com o tratamento que deram a você, e resolvemos ajudar. Tem algo de podre acontecendo, certo?”, perguntou o oriental. “Pode apostar nisso, Mandíbula. Você consegue me tirar daqui?”, disse Rodes. “Já deixei tudo preparado para a sua fuga. Alguns Agentes estão nos ajudando nesse momento. Aqueles que não gostaram muito da ideia foram mandados para casa antes que as coisas esquentassem. Muitos estão preocupados com a Oficial Bashira e com os outros policiais que estão com ela.” Rodes levantou-se e ajudou o seu colega a fazer o mesmo. Henry Kaito sinalizou para dois outros policiais ao final do corredor. Ele virou-se novamente para Rodes e disse: “Temos uma hora até o dia raiar, hora em que ocorrerá a troca de turno. Você tem que ir embora de Urano, ou ficará nessa prisão por um bom tempo, Rodes.” “Eu sei. Pretendo partir em busca de Bashira. Mas antes, preciso voltar ao escritório da Governadora Ayla.” “Você está tendo algumas ideias suicidas ultimamente...”, disse Henry, irônico. “Verdade. Mas desconfio que a Governadora Ayla esteja escondendo algo muito mais grave do que o que foi revelado até o momento. Quando estive em sua sala, ontem, ela me mostrou um vídeo gravado por Bashira no local da queda do meteoro. Ela só se esqueceu de ocultar o contador do programa. Pude ver que aquele era o quinto de um total de cinco arquivos. Tenho que descobrir o que os outros quatro arquivos contêm.” Henry coçou o enorme maxilar, pensativo. “Ok. Você vai ao escritório, enquanto eu termino os preparativos para a nossa fuga.” “Nossa fuga? Quem disse que você irá junto?”, perguntou Rodes. “Meu amigo, a verdade é que muitos Agentes estão comprometendo as suas carreiras ao ajudá-lo dessa maneira. O que você acha que acontecerá conosco quando descobrirem que você fugiu? Indo com você, eu me torno o único responsável pela sua fuga. Já deixei tudo acertado.”, disse Henry, enfatizando o argumento com uma piscadela. Rodes se resignou e desistiu de discutir. Além do que, se ele ia desbravar o deserto em busca de Bashira, melhor que fosse ao lado do Mandíbula. “Temos menos de quarenta e cinco minutos para partir. Os dois policiais ao final do corredor nos levarão ao depósito de armas. Não temos um minuto a perder!” Os quatro dispararam pelos corredores mal iluminados da prisão, suas botas pesadas ecoando nas profundezas da Estação. Eles chegaram a uma porta blindada, que um dos Agentes que os acompanhavam abriu após digitar um código num painel. Revelou-se diante deles um grande depósito tomado por prateleiras abarrotadas dos mais diversos itens, e iluminado por lâmpadas vermelhas. Rodes e Henry entraram rapidamente e pegaram o que iriam precisar. Rodes vestiu um traje de sobrevivência negro quase sem energia. Como ele iria estar exposto aos raios solares em poucos minutos, isso não o preocupou. Armou-se com dois cassetetes de plastômero, que prendeu cruzados às suas costas e colocou num bolso localizado em sua perna um computador portátil. Em seguida, ele pegou duas pistolas semiautomáticas Sig Sauer P-2022 9 mm, que instalou em coldres amarrados ao seu torso de barril. Em uma mala plástica, o ex-agente jogou diversas cintas com seringas do composto alimentar, munição, ferramentas diversas e seu capacete, que ele não iria vestir naquele momento. Henry Kaito acrescentou um fuzil de assalto FAMAS 5.56 mm ao cassetete de plastômero que ele já levava. Ele tinha deixado tudo preparado para uma possível fuga, de modo que o fuzil era mais do que suficiente. Passados cinco minutos, eles testaram os seus comunicadores pessoais e se despediram. “Estarei no portão. Não demore!”, gritou Henry, tomando um caminho diferente. Com dois fortes apertos de mão, Rodes despediu-se dos Agentes que os ajudaram e rumou em direção aos níveis superiores da “Cúpula”. Ele passou despercebido pelas poucas pessoas com quem cruzou, visto que parecia apenas um Agente com pressa de chegar a algum lugar. O elevador apitou quando ele alcançou o último andar. Rodes terminou de ajustar suas manoplas e adentrou o corredor que levava ao escritório. Ele pôde ver através da grande janela que o Sol já ameaçava despontar sobre os picos do Monte Olimpo. A porta do escritório encontrava-se fechada. Entre Rodes e ela estavam postados os dois brutamontes que o haviam prendido no dia anterior. O maior deles exibia um grande curativo segurando o nariz quebrado no lugar. Ao reconhecerem Rodes, empunharam seus cassetetes de plastômero e assumiram uma postura agressiva. Rodes e Bashira eram mestres em Krav Maga, técnica de luta voltada basicamente a neutralizar seus oponentes, não importa quantos, da maneira mais rápida e eficiente possível. No Krav Maga não existiam regras. Além disso, Rodes e Bashira eram especialistas na luta com cassetetes. Os dois policiais não tiveram chance. Em um piscar de olhos Rodes armou-se com os dois cassetetes que estavam presos às suas costas e percorreu os cinco metros que o separavam dos policiais. Ele bloqueou com a mão esquerda o ataque do menor deles, tomou impulso para um salto e com um golpe violentíssimo terminou de destruir, sob uma chuva de ossos quebrados e sangue, o nariz do maior dos seus adversários, que foi ao chão aos berros e em extrema agonia. Rodes virou-se para o policial que restava, bloqueando mais um golpe com a mão esquerda e desviando uma tentativa de atingi-lo com uma cabeçada. No contra-ataque, Rodes atingiu-o com uma poderosa joelhada na genital e um golpe seco com o cabo do cassetete na garganta. Distribuiu mais algumas pancadas em ambos, para certificar-se de que eles não levantariam tão cedo, e adentrou o escritório. A vontade de Rodes era assistir aos outros vídeos naquele mesmo instante, mas restavam menos de quinze minutos para o dia raiar e sua fuga ser descoberta, de modo que ele se contentou apenas em copiar os arquivos para o seu computador portátil. Em seguida, ele saltou sobre os policiais desacordados e disparou em direção ao portão. O Sol brilhava por entre as cortinas de areia do deserto. Henry o esperava junto ao portão, conforme prometido. Ele estava em pé ao lado de um enorme caminhão negro, modelo KAMAZ-4911; um caixote blindado, com pneus aro vinte e um e tração nas quatro rodas. Se algum veículo podia atravessar o deserto em grande velocidade, era aquele caminhão. “Estava começando a achar que você havia desistido.”, disse Henry. “Não me provoque, Mandíbula. Temos que partir.”, respondeu Rodes, enquanto saltava no banco do passageiro e afivelava o cinto. Henry acenou para o policial do portão, ligou o veículo e acelerou. Em instantes eles estavam percorrendo a paisagem marciana do Deserto de Ferrugem, rasgando o terreno montanhoso a mais de cento e trinta quilômetros por hora. “O GPS está sem sinal.”, verificou Rodes. “Não tem problema.”, disse Henry, acrescentando: “Conhecemos bem a estrada, certo? Acredito que seja possível chegar à subestação Vólos ainda hoje. São menos de duzentos quilômetros.” “Ok. Tente não chacoalhar tanto.”, disse Rodes, mal humorado. Henry apenas lançou-lhe um olhar indagador, ao que Rodes rapidamente acrescentou. “Estou brincando. Acelere o máximo que você puder.” A primeira hora foi gasta atravessando o Monte Olimpo. Quando a majestosa montanha ficou para trás, Henry tomou a direção sul e pôde desenvolver melhor o potencial do caminhão. Mas, enquanto o terreno plano por um lado facilitava a direção, por outro trazia consigo a armadilha dos poderosos e traiçoeiros ventos do deserto, que surgiam sem aviso algum e podiam chegar a cem quilômetros por hora, obrigando-os a buscar abrigo e tomar precauções para evitar o tombamento do veículo. Rodes chegou a ligar o computador portátil, mas achou que seria melhor analisar o material confiscado do escritório da Governadora Ayla quando estivesse mais tranquilo. O dia transcorreu sem grandes sustos. A planície arenosa, com suas intermináveis dunas de cor escarlate, pouco havia a oferecer ao viajante em termos de paisagens. Esporadicamente eles topavam com algum resquício de alguma caravana mal sucedida durante a travessia do deserto. Veículos e habitações abandonados eram bastante comuns. Quando eles avistaram a subestação Vólos, uma pequena cúpula de placas de captação de energia solar perdida entre colinas e montanhas de médio porte, os trajes de sobrevivência tinham dado o sinal de uma hora para o anoitecer. Atrás da subestação surgiu o antigo Golfo de Pagasitikos, agora nada mais do que uma grande cratera coberta pela areia avermelhada. Aqui e ali despontavam os destroços de veleiros e pequenos barcos, seus mastros partidos uma triste recordação do tipo de vida que existiu naquele lugar em algum dia perdido no passado. Henry conversou com alguns policiais que se encontravam por ali, e guardou o caminhão numa garagem subterrânea, enquanto Rodes, já com as bagagens, foi até a subestação procurar acomodações. Ele passou pela porta automática e deparou-se com um espaço de dez metros de altura. As próprias placas de captação de energia solar formavam o forro da construção sem janelas e com iluminação amarela insuficiente. Várias mesas de negócios, algumas sendo utilizadas por grupos soturnos, estavam distribuídas em círculo ao redor da escada que levava aos níveis inferiores. Sob olhares desconfiados, Rodes passou por algumas dessas mesas para aproximar-se do único policial que pôde ver, uma mulher encostada no corrimão da escada. “Olá.”, disse ele ao chegar próximo à policial. “Olá, colega. Em que posso ajudá-lo?”, perguntou ela. “Ótimo.”, pensou Rodes. “Pelo visto, a notícia sobre a minha fuga não chegou até aqui. Os satélites devem continuar sem sinal.” Ele saiu dos seus devaneios e respondeu à policial: “Gostaria de alojamentos. Sabe me indicar com quem devo falar?” Meia hora depois, com a noite já cobrindo a subestação, Henry e Rodes estavam instalados em seus respectivos quartos subterrâneos. Eles combinaram de partir no dia seguinte, tão logo o dia raiasse. Após limpar-se com os produtos antissépticos disponibilizados, Rodes sentou-se em sua cama com o computador ligado. Ele encarou pensativo, por cerca de cinco minutos, o ícone do primeiro vídeo, criado quinze dias antes e copiado do computador pessoal da Governadora Ayla. Ele clicou no ícone e aproximou o rosto da tela para enxergar melhor. Do lado de fora o vento corrosivo fazia toda a subestação tremer. *** Surgiu na tela o rosto de um homem de meia idade, com pele escura e cavanhaque grisalho. Rodes imediatamente reconheceu o Governador Yusuf, da Estação Netuno. “Ayla. Trouxemos os quatro sobreviventes para a Estação. Mas o mais incrível de tudo é isso.” Ele apresentou à tela um recipiente cheio de um líquido transparente. O Governador bebeu tudo num só gole e exibiu um sorriso enorme de satisfação. “É água, Ayla!” Fim da primeira transmissão. Que sobreviventes eram aqueles a que Yusuf estava se referindo? Mais uma pergunta que permanecia sem resposta. Rodes abriu o segundo arquivo, gravado dois dias depois do primeiro. Reconheceu, apesar da péssima qualidade do vídeo, a “Cúpula” de Netuno, observada a partir do lado de dentro da instalação. Uma centena de pessoas, possivelmente toda a população de Netuno, se aglomerava em volta de uma dúzia de caminhões-tanque que adentravam em fila a Estação, como se fosse o desfile de vitória numa guerra. Yusuf podia ser visto num balcão, discursando de forma inflamada. Em questão de minutos, as pessoas estavam se esbaldando com a água recém-trazida do local da queda do meteoro. Crianças tomavam banho e brincavam, enquanto seus pais brindavam e sorviam o líquido límpido e puro. Fim da segunda transmissão. Um grande ponto de interrogação podia ser visto na fronte de Rodes. Ele abriu imediatamente o terceiro arquivo, gravado sete dias antes. O rosto de Yusuf surgiu novamente na tela. Era óbvia a sua preocupação, o que acentuava ainda mais as diversas rugas em seu rosto, principalmente na testa e ao redor dos olhos fundos. “Ayla! Você transmitiu o nosso pedido de socorro à Estação Sol? Continuamos sem sinal de longo alcance, maldito seja esse meteoro e sua misteriosa interferência. Há mortos espalhados por todos os cantos da Estação. Os quatro sobreviventes estão liderando um levante. Você tem que me ajudar, Ayla!” Fim da terceira transmissão. Rodes abriu o quarto arquivo, de dois dias antes, imediatamente. Novamente, a imagem tremida mostrava os enormes portões de entrada de Netuno, mas vistos a partir do lado de fora. Bashira avançava pelo deserto, acompanhada de outros quatro policiais, todos empunhando fuzis FAMAS com lanternas acopladas. Eles atravessaram com passos lentos os portões entreabertos. A voz insólita de Bashira soou no quarto de Rodes. “O local parece deserto, Governadora. Espere. Há corpos espalhados pelo chão!” Os cinco avançaram alguns metros para dentro da escuridão, deixando a luz do sol para trás. Uma dúzia de corpos, incluindo crianças, podia ser vista até aonde a luz das lanternas alcançava. Bashira ajoelhou-se ao lado de um dos mortos, uma mulher de meia idade. Parecia queimada, a pele apresentando aspecto de papel incendiado. Bashira falou novamente. “O corpo não aparenta sinais de violência, apenas o estrago típico de alguém exposto ao vento corrosivo. Há grande quantidade de areia aqui dentro. O local parece abandonado e está exposto aos elementos.” Subitamente os cinco Agentes se levantaram, procurando algo na escuridão, a luz das suas lanternas tateando as trevas desesperadamente. A respiração de Bashira deixava transparecer sua apreensão. “O que foi esse grito?”, ela perguntou. Fim da quarta transmissão. Rodes não conseguiu ouvir nada no volume em que estava assistindo ao vídeo. Ele colocou um fone de ouvido e aumentou o volume ao máximo. Aquilo poderia lhe render um problema auditivo no futuro, mas ele precisava descobrir o que havia alarmado Bashira daquela maneira. Ele contorceu o rosto quando reiniciou o filme a partir do ponto em que Bashira terminava suas conclusões sobre o corpo da mulher. “... o local foi abandonado e está exposto aos elementos.” Silêncio por cinco segundos. Algo é derrubado ao longe e seu ruído ecoa nas profundezas da Estação. A respiração de Bashira se acelera. Silêncio por três segundos. Um homem grita por mais oito segundos, um grito rouco e agonizante. Ele não disse nada, apenas gritou com toda a força dos seus pulmões e silenciou-se aos poucos. O sangue de Rodes gelou, e um calafrio percorreu a sua espinha. Ele permaneceu um minuto paralisado. Em seguida, tentou discernir mais alguma coisa na gravação, mas não conseguiu. Ele diminuiu o volume e iniciou o quinto vídeo, que era o mesmo que a Governadora havia apresentado a ele no dia anterior. Tudo o levava a crer que Bashira havia fugido da Estação e rumado para o local da queda do meteoro algum tempo depois. Rodes já havia analisado razoavelmente bem toda a cena, e estava para desligar o computador quando algo chamou a sua atenção. Ele congelou a imagem do meteoro, e notou um detalhe que havia passado despercebido quando assistiu ao vídeo no escritório da Governadora Ayla. Apesar da péssima qualidade da imagem, não havia dúvidas de que a luz do Sol refletia em algumas partes metálicas, já bastante corroídas, acopladas na extremidade exposta do meteoro. Ele conseguiu discernir pelo menos um, talvez dois desses apêndices. Com um pouco de imaginação, podia-se dizer que eram turbinas, por mais insano que isso soasse. “Pena a qualidade da imagem ser tão ruim!”, pensou Rodes. Exausto, Rodes fechou o computador e deitou-se para dormir, com a certeza de que não teria um sono nada tranquilo naquela noite. *** No dia seguinte, enquanto eles preparavam o KAMAZ4911 para a continuação da jornada, Rodes deixou o Mandíbula a par das suas descobertas. Henry não parava de coçar o queixo. “O que significa tudo isso, Rodes? Pelo o que você está me dizendo, a Governadora Ayla está escondendo informações da Estação Sol, colocando em risco a vida de centenas de pessoas na Estação Netuno, e sabe-se lá mais o quê.”, disse Henry. “O pior é que tudo indica que ela enviou Bashira e os outros Agentes numa missão de extremo risco sem passar as informações mínimas de que eles precisavam.”, respondeu Rodes, complementando: “Bashira não sabia do levante ocorrido em Netuno, provavelmente apenas disseram a ela que a Estação estava incomunicável após a queda de um meteoro.” “Tudo isso por uma porcaria de uma poça de água?”, indignou-se Henry. “É o que parece.”, respondeu Rodes, pensativo. “Não temos tempo a perder. Parece-me óbvio que a Governadora não irá medir esforços no sentido de continuar os seus planos, sejam lá quais forem. Não podemos confiar em ninguém, Mandíbula.” “Certo. Se esse é o caso, teremos que evitar as subestações habitadas.” Henry verificou o computador de bordo. “Ótimo, o GPS voltou a ter sinal. O mais lógico e seguro seria irmos até a subestação Tarnagra, mas se não tivermos problemas, podemos chegar à subestação Acharnes, a trezentos quilômetros daqui, que está desabitada.” “Perfeito.”, disse Rodes, enquanto subia no caminhão. “Acelere o máximo que você puder.” Quando o dia raiou, o caminhão disparou para fora da garagem, em direção ao deserto. A policial da subestação Vólos, com quem Rodes havia conversado na noite anterior, acompanhou o veículo se afastando, até que ele se tornasse uma pequena nuvem de poeira no horizonte. Ela então rumou diretamente para a sala do comunicador. Em menos de uma hora eles haviam cruzado as colinas que protegiam Vólos, e avistaram o extinto Golfo Evoikos, que não passava de um assombroso abismo escuro e sem fim à esquerda do caminho que eles seguiam. A partir daí a jornada seguia na direção Sul pelo traçado de uma antiga estrada litorânea, com colinas de coloração avermelhada à direita deles. Rodes monitorava os sensores do veículo em busca de tempestades de areia que pudessem atrapalhar a jornada. Era a metade do dia quando eles desviaram o caminho para evitar aproximar-se demasiadamente da subestação Tarnagra. Não fosse a tração nas quatro rodas do KAMAZ-4911, eles certamente não teriam conseguido atravessar a ravina onde caíram, e teriam que pedir ajuda na subestação. Por sorte e competência de Henry na direção, eles conseguiram transpor o terreno rochoso sem grande perda de tempo. “Meus parabéns, Mandíbula! Não sei se eu teria conseguido atravessar aquele trecho.”, disse Rodes. “Você certamente não teria conseguido.”, zombou Henry. “Ótimo! Vai começar a ladainha egocên...” Rodes não conseguiu terminar a frase. Numa fração de segundo ouviu-se uma forte explosão e a traseira do caminhão foi lançada para o alto. Rodes e Henry prenderam a respiração durante a breve viagem, que pareceu uma eternidade, até que o veículo completasse o giro no ar e caísse com as rodas viradas para cima, acompanhado de um grande estrondo e uma chuva de areia. Uma nuvem de fumaça negra formou-se rapidamente a partir das rodas traseiras do KAMAZ-4911. “Isso foi uma mina terrestre?”, gritou Henry, pendurado de ponta-cabeça pelo cinto de segurança. Passados alguns segundos eles puderam ouvir o barulho de veículos se aproximando em alta velocidade. “Estamos sob ataque, Mandíbula. Temos que nos mexer!”, gritou Rodes. Rápido como um felino, Henry saltou para fora do caminhão. Mais um segundo e Rodes o perdeu de vista, ao mesmo tempo em que lutava contra seu cinto, tentando libertar-se. Ele olhou para frente e viu, através do para-brisa empoeirado, dois quadriciclos pilotados por homens nas cores da Agência de Segurança aproximando-se em alta velocidade. Em poucos segundos estariam sobre ele. Um dos policiais parou a cerca de trinta metros do caminhão e começou a disparar um fuzil em sua direção. Rodes chegou a colocar as mãos diante do rosto, numa reação natural aos tiros disparados contra ele, mas felizmente o veículo era blindado. O policial que não havia parado seguiu pelo lado por onde Henry saíra poucos segundos antes, e começou a circundar o caminhão procurando por ele, com uma pistola empunhada. Rodes ouviu duas rajadas curtas de fuzil FAMAS sendo disparadas de cima do caminhão. Não houve resposta do policial. Ao perceber que Henry havia se escondido no meio da fumaça que se acumulara no alto do veículo tombado, o agressor restante disparou o seu fuzil naquela direção. Rodes ouviu uma correria sobre si, enquanto Henry buscava abrigo ao nível do chão, atrás do veículo. O policial largou o quadriciclo e partiu em direção ao veículo tombado, disparando rajadas curtas e controladas, de modo a prender Henry atrás do caminhão. Rodes finalmente conseguiu soltar o cinto. Quando o policial chegou a cerca de dez metros do veículo, passou a segurar o fuzil com uma mão, atirando a esmo e sem precisão alguma, apenas para garantir que manteria Henry encurralado. Ele buscou algo em um compartimento em seu tórax. Rodes o viu pegar uma granada. O policial largou o fuzil, puxou o pino e levantou a granada sobre a cabeça para arremessá-la. Um surto de adrenalina pôs Rodes um movimento. Ele chutou a porta e rolou para fora do veículo, suas duas Sig Sauer P2022 surgiram em suas mãos. Ele disparou diversas vezes, atingindo as pernas e o braço que empunhava a granada. O policial caiu de joelhos com o impacto dos tiros, e derrubou a granada sobre si. Após a nuvem de areia causada pela explosão baixar, restou no lugar onde ele se encontrava apenas um pequeno buraco e farrapos. Henry saiu de trás do caminhão empunhando o fuzil, baixando-o quando viu Rodes em pé e os restos do segundo atacante mais além. Eles cumprimentaram-se com um aceno de cabeça. Rodes foi o primeiro a falar. “Está ferido, Henry?” “Não.”, respondeu ele, zombeteiro. “Meu traje desviou os dois tiros que me atingiram, vou ganhar apenas alguns hematomas. E você?” Rodes caminhou em direção ao outro quadriciclo, caído próximo ao caminhão. “Eu estou bem. Esse aqui está morto?” “Se eu não estou muito enganado, já estava morto antes de chegar ao chão.”, disse Henry. Rodes chutou a pistola para longe do corpo. De fato, o policial estava morto, com uma dezena de tiros no abdome. Eles rapidamente se apossaram dos equipamentos que ainda tinham utilidade e se puseram a tentar virar o caminhão, para que pudessem continuar a jornada. Por sorte, as motos ainda funcionavam, de modo que bastou amarrar correntes feitas de resina nelas e no caminhão tombado para colocá-lo de pé novamente. Ainda assim, toda a operação tomoulhes quase uma hora. Henry verificou o estado do KAMAZ-4911. Rodes acompanhou os testes apreensivamente. “Então?”, perguntou ele. “Eu amo esses caminhões. Isso aqui é um tanque de guerra!”, disse ele, dando um tapinha no veículo. “Perdemos algumas placas de captação de energia solar, e vou precisar fazer pequenos reparos no eixo traseiro e no assoalho, mas por hora ele está em plenas condições de continuar.”, respondeu Henry, com um sorriso de orelha a orelha quase do tamanho do seu maxilar. “Henry, temos uma decisão a tomar. Conseguiremos chegar à subestação Acharnes após esse atraso? Não tenho dúvidas de que esses dois policiais vieram de Tarnagra, de modo que se formos buscar abrigo por lá, teremos mais problemas.”, disse Rodes. “Só saberemos tentando.”, respondeu ele, saltando no banco do motorista e dando a partida. O motor do caminhão roncou forte quando Henry Kaito pisou no acelerador. Tarnagra foi deixada para trás. O restante do dia transcorreu num piscar de olhos. O Sol começou a ser pôr no horizonte. Cada minuto que passava fazia as sombras das montanhas se alongarem em direção a eles, como se buscassem alcançar o caminhão em alta velocidade. Henry dirigia a mais de cento e trinta quilômetros por hora, mas mesmo assim o alarme em seus trajes soou na cabine do caminhão. Eles ainda tinham pelo menos uma hora e meia pela frente até chegar a Acharnes. Rodes foi o primeiro a admitir que não conseguiriam. “Temos que achar um local para nos protegermos, Mandíbula. Valeu a tentativa.”, ele disse, em meio a um sorriso amargo. Henry ficou claramente decepcionado. “Ok. Vamos tentar essas colinas que estou vendo à nossa direita.” Ele fez uma grande curva para mudar de direção e acelerou em direção às colinas. A falta de luminosidade obrigou-os a acender os faróis e diminuir drasticamente a velocidade. O silêncio e a tensão imperavam na cabine. A poeira flutuava diante dos faróis. Henry guiou lentamente o carro em direção a um barranco, o que os levou ao leito seco de um rio. Passaram a andar sobre rochas. O caminhão chacoalhava absurdamente. “Temos quinze minutos.”, disse Rodes. “Ali!”, disse Henry, apontando para duas enormes rochas apoiadas umas sobre as outras, como se fossem um pequeno castelo de cartas. Elas estavam próximas o suficiente das colinas para oferecer alguma proteção. Rodes saltou para o compartimento de cargas do caminhão e começou a revirar as bagagens. “Vamos ter que complementar o abrigo, estacione de uma vez e vamos trabalhar, Mandíbula!” Henry acionou a tração nas quatro rodas e forçou o motor do caminhão para ultrapassar as últimas rochas que levavam ao abrigo. Eles colocaram os capacetes e abriram a porta traseira com alguma dificuldade. A velocidade do vento começou a aumentar rapidamente. Rodes pegou um disparador para pregar pinos de escalada e uma das três barracas que eles traziam. Ele escalou a maior das rochas, que formava o teto do seu castelo de cartas, e prendeu a lona da barraca em diversos pontos, utilizando-se dos pinos. Henry teve dificuldades para conseguir agarrar a outra extremidade da lona, devido à ventania, mas após alguns segundos conseguiu prender a barraca no chão. Eles repetiram o procedimento do outro lado, fechando as duas entradas do castelo de cartas com as lonas. “As barracas devem aguentar.”, disse Rodes. “Espero que sim.”, respondeu Henry. Eles voltaram para dentro do caminhão e removeram os capacetes. A hora seguinte foi marcada por muita angústia e apreensão. O vento corrosivo empenava as lonas, como se quisesse a todo custo arrancá-los de dentro do seu abrigo. As rochas chegaram a tremer, derrubando poeira no para-brisa do caminhão. Mas, depois de um tempo, como que desistindo de romper as barreiras de lona, os ventos diminuíram, permanecendo apenas o seu silvo do lado de fora. “Tenho que arrumar os estragos no caminhão.”, disse Henry. “Vou ajudá-lo.”, respondeu Rodes. Ambos desceram e passaram metade da noite soldando com resina do tipo elastímero as partes danificadas do veículo. Terminado o serviço, puderam dormir por algumas horas. Rodes foi despertado por um raio de sol que passava por uma fresta na lona e veio cair caprichosamente sobre o seu rosto. Ele levantou num salto, gritando: “Acorde, Mandíbula! Perdemos a hora!” Henry saiu se arrastando do compartimento de cargas. Seus olhos estavam menores do que o normal, quase fechados. “Bom dia para você também, chefe.”, disse ele, assumindo o volante. Rodes desceu do caminhão e arrancou as lonas, guardando-as no bagageiro em seguida. Eles retomaram a jornada com meia hora de atraso. “Chegaremos à Estação Netuno ao final do dia, não se preocupe.”, disse Henry. “Não vamos até Netuno, meu amigo.”, respondeu ele. “Bashira e os outros Agentes se instalaram na subestação Bassae. É para lá que iremos primeiro.” *** Eles não tinham tempo a perder. Bassae se encontrava a quase trezentos quilômetros do local onde eles haviam se protegido durante a noite. Henry acelerou o veículo. Eles cruzaram o Istmo de Corinto e adentraram o Peloponeso. A partir dali o terreno passava a ser muito mais dobrado, com grandes cadeias de montanhas de calcário e dolomita de coloração pálida entrecortadas por altiplanos, vales, ravinas e penhascos. Eles só conseguiram cruzar certas barreiras por caminhos estreitos entre as montanhas. Horas depois, quando o Sol ameaçava se retirar, jogando o deserto na mais profunda vermelhidão possível, eles avistaram a subestação Bassae ao longe, enfiada entre montanhas e protegida por suas escarpas. Uma cortina de areia pairava sobre ela. Eles se aproximaram lentamente, a rotação baixa do motor do KAMAZ era o único ruído audível na cabine. Após alguns minutos eles puderam perceber os detalhes da subestação abandonada. Sua cúpula baixa estava partida no topo, deixando a areia entrar à vontade. Os portões certamente haviam sido arrancados pelos ventos implacáveis e jaziam tombados no chão. Nos últimos metros de aproximação, a cortina de areia foi ficando menos espessa e revelando algo maravilhoso. Atrás da cúpula da subestação, no alto de um pequeno platô, surgiram umas após as outras enormes colunas de arquitetura clássica construídas em calcário cinza. O tempo havia corroído boa parte da construção, mas ainda assim as quarenta e duas colunas dispostas em forma retangular insistiam em permanecer de pé, desafiando o inevitável fim. Henry parou o caminhão para eles admirarem aquela majestosa construção. “Rodes, o que é isso?”, perguntou Henry. “Esse é o Templo de Apolo Epicuro, meu amigo. Foi a única razão para a subestação Bassae ter sido construída, quase dez anos atrás. Alguém pensou que seria possível salvar esse legado da humanidade.”, respondeu Rodes, acrescentando: “Infelizmente, mal conseguimos salvar a nós mesmos. A subestação acabou abandonada alguns anos depois, e o Templo foi deixado a sós para continuar resistindo até quando conseguir.” “Você já havia estado aqui?”, perguntou Henry, ainda maravilhado. “Eu nasci em Trípoli, na região central do Peloponeso. Tive a oportunidade de visitar este lugar algumas vezes. Na verdade, estava aqui naquele dia fatídico que mudou a História da humanidade, trinta e um anos atrás. Eu tinha nove anos de idade, na época.”, disse Rodes, soturno. *** Aquele estava sendo um dia inesquecível. A família Sotiris havia se espalhado ao redor de três toalhas de piquenique, comendo, bebendo e conversando. O vento carregado por aquele aroma típico do Mediterrâneo trouxe até Rodes um cheiro ainda mais familiar, o perfume de jasmim da sua mãe. Ele olhou ao redor e viu-a ao lado do seu pai, ambos envolvidos em uma animada conversa com alguns tios. Ao perceber que estava sendo observada, ela virou-se, olhando diretamente em seus olhos, e lançou-lhe uma piscadela e um sorriso lindo, incentivando-o a continuar brincando. Rodes disparou correndo e gritando atrás das outras crianças, brandindo um graveto como se fosse uma espada. Passadas algumas árvores, ele deparou-se com o Templo de Apolo Epicuro. Uma tenda havia sido instalada sobre a construção, para protegê-la das intempéries do tempo. O sol brilhava, o céu era de um azul digno de uma pintura; turistas vindos de todos os cantos do mundo se aglomeravam em volta do monumento, conversando em diversas línguas diferentes, batendo fotos e rindo maravilhados com aquele impressionante patrimônio da humanidade. Rodes esgueirou-se e passou despercebido por todos. Ele subiu os degraus que levavam ao interior do Templo. O menino apoiou-se numa das enormes colunas e virou-se, buscando a aprovação de sua mãe lá ao longe, antes de continuar a sua travessa aventura. O céu escureceu num piscar de olhos. Uma ventania repentina arrastou folhas para longe e chegou a derrubar diversas pessoas. Rodes agarrou-se à coluna para não ir ao chão. Muitos gritaram alarmados. Ele viu sua mãe o procurando ao longe. Uma colossal bola de fogo surgiu no céu. Rios incandescentes percorreram a superfície da Lua. E então, ela explodiu. *** Rodes despertou dos seus devaneios com Henry falando alguma coisa sobre ter que ver de perto o Templo. Eles ainda tinham algum tempo antes do anoitecer, de modo que Rodes concordou com um resmungo. Eles vestiram seus capacetes e deixaram o KAMAZ-4911 em frente à subestação. Caminharam algumas centenas de metros e chegaram aos primeiros degraus destruídos. Chamou a atenção de Rodes o estado deplorável em que a construção se encontrava. O calcário havia sido corroído, chegando a apresentar bolhas em alguns pontos. O templo tornara-se um espantalho do que fora no passado. Rodes deixou Henry entrar e preferiu esperar do lado de fora. Onde estava a equipe de Bashira? Estava claro que não havia ninguém ali no momento. Talvez houvesse alguma pista ou indício do que pudesse ter acontecido. Ele deveria ter entrado na subestação de uma vez ao invés de ficar fazendo turismo com Henry. Essa jornada começava a pesar mais do que ele podia suportar. Rodes sentou-se em um degrau, perdido nesses pensamentos sombrios. Ele permaneceu olhando em direção à subestação, muitos metros abaixo de onde eles se encontravam, e se preparava para levantar e ir ver o que Henry estava aprontando quando algo chamou a sua atenção. Uma figura encurvada lutava contra o vento e aproximava-se furtivamente do caminhão, vindo da direção do deserto. Com um salto desastrado, Rodes levantou-se e disparou colina abaixo. “Mandíbula, tem alguém no caminhão! Estou indo averiguar, venha rápido!”, ele gritou no comunicador. “Estou logo atrás de você!”, respondeu Henry. Ambos despencaram colina abaixo, armas empunhadas. Chegando ao caminhão se separaram, indo cada um por um lado. Rodes foi o primeiro a ver o corpo caído a cerca de cinco metros da porta do motorista. Ele reconheceu Bashira instantaneamente. “É a Bashira, Henry!”, gritou ele. “Ela está viva?”, perguntou o Mandíbula. Bashira estava caída de lado. Ela trajava apenas o grosso macacão negro utilizado por debaixo dos trajes de sobrevivência, que oferecia proteção mínima com relação ao calor, ao frio e à radiação. Havia um cobertor jogado a poucos metros dela. Rodes caiu de joelhos ao seu lado e girou-a lentamente, de modo que pudesse ouvir a sua respiração. “Sim, ela está viva! Vamos levá-la para dentro do caminhão.”, ele disse. Rodes pegou-a pelos ombros e pela cabeça, enquanto Henry erguia os pés. Por sorte estavam em dois, do contrário teriam sérias dificuldades para erguê-la, dada toda a musculatura dela. Deitaram-na no compartimento de bagagens do caminhão. Apesar de viva, ela necessitava de cuidados médicos imediatos. Partes da sua mão e rosto apresentavam sinais de oxidação causada pelo vento corrosivo. O piercing que ela usava no nariz estava completamente enferrujado. Para evitar infecções, Rodes e Henry tiveram que limpar e extrair os locais oxidados, antes que a pele em volta começasse a gangrenar. Tiveram que remover o piercing também, levando uma pequena parte de pele junto. Após os curativos e alguns pontos, Henry foi até a subestação procurar um abrigo mais apropriado, e entrou em contato com Rodes poucos minutos depois. “Toda a instalação da equipe da Bashira continua aqui. Há veículos, armamento e tudo mais que precisarmos. Vou abrir a garagem, recolha o nosso caminhão.”, disse ele. “Certo.”, respondeu Rodes. Ele olhou mais uma vez para Bashira, que continuava adormecida. “Garota forte.”, pensou. Meia hora depois eles estavam instalados adequadamente num grande quarto comunitário no subterrâneo. A equipe de Bashira havia feito um bom trabalho ao tentar religar a energia da subestação abandonada, mas mesmo assim as condições continuavam bastante precárias. A energia acumulada pelas placas danificadas do lado de fora era pouca, o que os obrigou a ficar praticamente no escuro, contando apenas com a iluminação dos seus trajes e lanternas. Também não era nada animador imaginar que havia abaixo deles diversas salas e instalações abandonadas. Aparentemente, Bashira e sua equipe haviam ocupado apenas o primeiro andar logo abaixo da superfície. Mesmo no subterrâneo, a ventania do lado de fora era totalmente audível. Poucos minutos após adormecer eles foram acordados com algumas placas da “Cúpula” da subestação sendo arrancadas e arremessadas longe pelo vento. Rodes apontou a sua lanterna na direção de Bashira, para verificar o seu estado. Ela colocou instantaneamente as mãos sobre os olhos para bloquear a luz. Estava acordada. “Você poderia virar essa lanterna para outro lugar?”, resmungou ela, com uma voz quase imperceptível. Rodes virou-a para seu rosto e fez uma careta. Os dois riram. Henry sentou-se junto a eles. “Você teve muita sorte, Bash. Mais algumas horas exposta ao deserto e você não estaria aqui conosco.”, disse ele. Rodes ficou sério e disse: “Verdade. Nós quase a perdemos.” Ela revirou os olhos, como se eles estivessem exagerando, e sentou-se. Pôs a mão no rosto, sentindo os curativos.“Vocês me deram algum coquetel para combater a radiação?” “Sim.”, disse Henry. “Três doses, pra dizer a verdade. Pelo seu estado, calculamos que você já estava perambulando por aí a pelo menos doze horas.”, complementou Rodes. “Que horas eram quando vocês me encontraram?”, perguntou ela. “Eram oito e meia, estava pra anoitecer.”, disse Henry. “Então já faziam quase quinze horas que eu estava exposta. Mas estou me sentindo ótima, as três doses foram suficientes. Qual era o meu estado?”, ela perguntou, enquanto arrancava os curativos. Rodes respondeu: “Havia dois sinais de oxidação na sua mão esquerda, um no nariz e mais dois próximos ao olho direito. Tratamos essas feridas e posso dizer que você vai sobreviver.” Ela verificou o furo em seu nariz, onde antes havia o piercing, o que a deixou claramente irritada. “E então, o que está acontecendo aqui?”, perguntou Henry. Ela disparou uma seringa de composto alimentar, sentouse e começou a explicar os estranhos acontecimentos dos últimos dias. Partes da história Rodes e Henry já conheciam, mas mesmo assim deixaram que ela expusesse a sua versão. Oito dias atrás, ela e mais trinta Agentes de Segurança partiram de Urano com a missão de averiguar os estranhos acontecimentos ocorridos em Netuno. Aparentemente Netuno havia enviado um pedido de socorro à Governadora Ayla, de Urano, após a queda de um meteoro nos arredores da Estação. Bashira e seu grupo foram orientados a instalar-se em segredo na subestação Bassae, e a partir dela deveriam investigar o estado das coisas em Netuno e no tal meteoro, se possível. Eles agiram conforme o solicitado. Montaram uma base de operações em Bassae, foram a Netuno, e descobriram que ela havia sido saqueada. Neste ponto ela explicou em detalhes os acontecimentos que Rodes havia assistido numa das gravações surrupiadas do computador da Governadora Ayla. De Netuno eles partiram para investigar o meteoro. Passaram diversas informações à Governadora e a partir dali as coisas começaram a dar errado. “O que aconteceu?”, perguntou Rodes. “Minha equipe estava dividida em três frentes. Um grupo de quinze pessoas ficou aqui em Bassae, como apoio. Outros dez estavam distribuídos próximos a Netuno, garantindo o perímetro. Eu e mais cinco Agentes estávamos encarregados de investigar a Estação e o meteoro.” Rodes e Henry concordaram. Ela continuou: “Logo após a visita ao meteoro, fomos abordados por um grande grupo de Agentes que não faziam parte da nossa equipe. Eles apontavam armas para as cabeças dos homens que haviam ficado encarregados de garantir o perímetro. Cercaram-nos nas montanhas e nos renderam.” “Homens de Netuno?”, perguntou Henry. “Sim, certamente. Todos menos um. Eles eram liderados por um homem enorme, vestido com um traje branco de astronauta, muito parecido com aqueles de décadas atrás. Estava de capacete, de modo que não pude ver o seu rosto, apenas o vidro refletindo o deserto e a mim mesma.” “Você tinha razão, Rodes!”, exclamou Henry. “O meteoro é um tipo de meio de transporte...”, ele disse estapeando a própria testa. Rodes encarou Bashira. “Esse homem disse alguma coisa? De onde ele veio, qual o seu nome?”, perguntou ele. “Ele falava com um dos Agentes apenas, numa língua que não pude entender. Pareceu-me russo.”, ela disse. “Certo, continue.”, disse Rodes, antes que Henry a interrompesse novamente. “Alguns foram levados de volta a Netuno, na presença do homem de branco, enquanto os outros, incluindo eu mesma, foram arrastados até o deserto. Eles tiraram quase todo o nosso equipamento, incluindo os trajes de sobrevivência, e nos obrigaram a sair caminhando. Um dos meus homens tentou voltar e argumentar que morreríamos, e foi alvejado no mesmo instante. Restou a mim e aos outros tentar voltar à subestação Bassae.”, disse ela, olhando para o chão, como se revivesse a cena. “Estávamos em cinco. Apenas eu e mais um chegamos às montanhas para tentar sobreviver à noite. Entre as poucas coisas que restaram conosco, estavam algumas seringas de composto alimentar que eu havia escondido em minhas botas e um cobertor. Quando a noite caiu, nós cavamos um buraco na areia e nos soterramos, jogando o cobertor sobre nós para evitar que a areia nos sufocasse. Apenas eu sobrevivi para ver o amanhecer. Utilizei todas as forças que restavam para tentar chegar até aqui, e a última coisa de que me recordo é de ter visto um caminhão. Achei que era um dos veículos da minha equipe, mas pelo jeito não há mais ninguém aqui além de nós.”, ela concluiu. Rodes e Henry trocaram olhares preocupados. Desde o momento em que eles chegaram, lhes pareceu óbvio que a subestação estava deserta. Mas onde estariam os outros quinze policiais que acompanhavam Bashira? Eles se levantaram, vestiram seus trajes de sobrevivência e armaram-se. Bashira ergueu-se e se alongou. Rodes virou-se para ela e disse: “Não encontramos nenhum sinal dos seus homens. Vamos descer aos níveis inferiores para nos certificarmos de que não há mais ninguém aqui além de nós.” “Eu vou junto.”, ela disse. Antes que eles pudessem dizer qualquer coisa, ela acrescentou: “Estou informando que irei junto. Não estou pedindo, ok?” Bashira vestiu um dos trajes de sobrevivência que jaziam largados pela grande sala e armou-se com um cassetete de plastômero e um fuzil FAMAS. Além dos fachos de luzes azuis emitidas do alto dos seus capacetes, eles instalaram lanternas nas duas pistolas de Rodes e nos fuzis carregados por Henry e Bashira. Rodes e Henry removeram a barricada improvisada que haviam feito na porta e a abriram. Eles adentraram um aposento circular, com paredes recobertas de material sintético do tipo plastmest de coloração cinzenta. Ao centro, uma escada em espiral feita do mesmo material levava ao andar superior e também aos níveis inferiores. Rodes foi o primeiro a descer, os braços estendidos empunhando as duas Sig Sauer P-2022. Henry e Bashira vieram logo atrás, seus passos pesados ecoando a cada degrau ultrapassado. Ao final da escada eles se depararam com um longo corredor escavado na pedra bruta. As paredes avermelhadas e irregulares criavam pequenos nichos que ocultavam sombras. Uma dezena de portas corroídas pela ferrugem se distribuía ao longo do corredor, que terminava em uma grande passagem parcialmente bloqueada por entulhos. Henry imaginou caminhar em direção a uma boca aberta cheia de dentes quebrados e afiados. Lentamente, um passo de cada vez, eles avançaram corredor adentro. Uma leve brisa vinha da bocarra, silvando por entre os entulhos. Eles chegaram às primeiras portas do corredor. A da direita encontrava-se aberta, e era uma pequena sala abandonada, provavelmente um depósito. A da esquerda estava fechada. Henry tentou abri-la à força, mas estava emperrada. Uma gota de suor escorreu por sua careca e veio terminar em seu grande queixo, mas ele não tinha como enxugá-la, já que estava de capacete. O trio continuou avançando. Bashira havia acabado de passar pela porta fechada quando um ruído surdo vindo de trás dela chegou os seus ouvidos. Os três apontaram suas armas para a porta, mas não houve mais barulho algum, apenas aquela única pancada no metal e depois o silêncio. Henry tentou abrir a porta novamente, sem sucesso. Bashira foi a primeira a perceber que a porta estava soldada a partir do lado de fora. “Rodes, Mandíbula, vejam!”, ela apontou sua iluminação ao longo de todo o perímetro da porta. “A porta foi soldada!” Henry correu a mão direita sobre todos os pontos de solda e disse: “A solda é recente.” “Traga o maçarico, rápido. Não temos um segundo a perder.”, disse Rodes. Enquanto Henry subia em busca do maçarico, Rodes e Bashira tentaram em vão abrir a porta. Um minuto depois os três trabalhavam removendo os pontos soldados, fazendo com que uma chuva de fagulhas voasse sobre as cúpulas dos seus capacetes. Levaram cerca de dez minutos para abrir a porta. Henry a puxou de lado, e desta vez ela cedeu. A luz das lanternas revelou quinze corpos nus caídos no chão de um pequeno depósito semelhante ao da porta aberta do outro lado do corredor. Tudo indicava que os policiais que acompanhavam Bashira foram rendidos e aprisionados dentro do pequeno recinto sem ventilação, onde morreram asfixiados. Um deles encontrava-se caído próximo à porta, e ao ouvir a movimentação do lado de fora havia batido nela, num último esforço para tentar salvar a sua vida. Rodes e Henry ainda tentaram reanimá-lo, mas o homem já estava morto. Bashira desabou no chão. “Não pode ser. Co... Como fomos dominados tão facilmente? O homem de branco. Maldito. Ele... ele tem que pagar por isso, Rodes!”, ela gritou, socando o chão. Rodes e Henry a levantaram pelos braços. “Levante, Bashira. Vamos voltar ao nosso refúgio. Precisamos decidir os nossos próximos passos. Você ainda não sabe toda a história.”, disse Rodes. Eles retornaram ao andar superior e refizeram a barricada na porta. Não tiraram os trajes, e permaneceram com suas armas ao alcance. Rodes entregou o computador portátil à Bashira e passou a hora seguinte explicando tudo o que ele sabia. Ao término da última gravação, Rodes foi o primeiro a falar. “Vamos aos fatos. Vinte e um dias atrás um meteoro caiu próximo a Netuno. Sabemos que o meteoro é na verdade um tipo de transporte, e que trouxe, segundo as gravações que acabamos de ver, quatro tripulantes, além de uma quantidade razoável de água. O homem de branco que fala russo possivelmente é um dos tripulantes.”, disse ele. “Certo.”, concordaram Henry e Bashira. “Pois bem. O pessoal de Netuno foi até o local da queda e retornou com diversos caminhões carregados de água, além dos tais tripulantes. Dias depois, várias pessoas morreram de forma misteriosa, e um levante teve início.”, continuou Rodes. “A Governadora Ayla sabia de tudo o que estava ocorrendo. Netuno apresentou problemas de transmissão.” Bashira o interrompeu, dizendo: “Que ainda persistem. Acredito que a fonte de interferência seja o meteoro, ou nave, ou seja lá o que for aquilo. Nossas transmissões também foram muito prejudicadas.” Rodes concordou e continuou. “O pedido de ajuda chegou apenas até Urano. Nossa Governadora, percebendo algum tipo de oportunidade, decidiu manter tudo em segredo, e enviou uma equipe de reconhecimento para coletar mais informações. Não tinha intenção alguma de ajudar a população de Netuno. No entanto, as informações coletadas por Bashira e sua equipe a intrigaram ainda mais, de modo que ela teve que pedir a minha opinião para avançar em suas investigações. Infelizmente para ela, o Mandíbula me tirou da prisão, e agora nos encontramos os três aqui, sozinhos e sem saber como agir.”, concluiu Rodes. “Temos que voltar a Netuno. Pode ser que algum dos meus homens ainda esteja vivo. Não posso deixá-los ter o mesmo destino dos outros. Preciso ter certeza...”, disse Bashira, desanimada. “Concordo com a Bash. Não podemos dar as costas aos nossos colegas.”, disse Henry. Rodes encontrava-se num dilema. Por um lado, ele concordava com Bashira e Henry. Aqueles homens eram seus colegas de profissão. Mas, no fundo, ele acreditava que eles estavam mortos. O comportamento do homem de branco e seus seguidores até aquele momento era um forte indício de que os policiais não seriam poupados. Mas ele achava que tinha uma obrigação ainda maior a cumprir. Independente do que ocorria naquele exato instante em Netuno, os crimes cometidos pela Governadora Ayla não podiam passar de forma impune. Rodes precisava de qualquer maneira levar suas denúncias até o Conselho na Estação Sol. Ele expôs suas dúvidas aos dois. Bashira foi irredutível em sua decisão. “Concordo que a Governadora mereça pagar por tudo o que fez até agora. Mas ela está a três dias de distância dos meus punhos, enquanto que aquele desgraçado do homem de branco está a poucos quilômetros de distância!” Ela era assim, dura como uma pedra. Rodes sabia disso muito bem. “Senhora Alex DeLarge.”, pensou. “Eu proponho o seguinte...”, disse Henry. “Vamos até Netuno para descobrir mais sobre o que está acontecendo. Temos a vantagem deles não saberem que estamos aqui, o elemento surpresa está a nosso favor. Se ainda for possível fazer algo pelos Agentes capturados, faremos o que estiver ao nosso alcance. Mas, antes de irmos, sugiro deixarmos aqui na subestação Bassae uma gravação contando tudo o que sabemos. Caso não consigamos sair dessa enrascada com vida, ainda existe a possibilidade de alguém algum dia descobrir o nosso depoimento, e quem sabe a justiça acabe sendo feita.” Contrariado, Rodes aceitou a proposta de Henry. Claro que a chance de alguém achar os seus depoimentos era praticamente nula, mas era melhor do que nada. Utilizaram o computador portátil de Rodes para realizar a gravação. Os três participaram, detalhando o que haviam feito e sabiam da melhor maneira possível. Deixaram o computador em um lugar protegido, mas que ainda assim chamasse a atenção de algum andarilho que porventura viesse a visitar a subestação Bassae. Em seguida, eles se deitaram para dormir aquelas que poderiam ser as suas últimas horas de sono. Saiba mais em: www.facebook.com/pequenosdelirios