Sentimento do mundo

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Sentimento do mundo
Análise de obras literárias
Sentimento do mundo
CArlos DruMmond
de andrade
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CEP 14095-270 – Lagoinha – Ribeirão Preto-SP
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SumÁrio
1.
Contexto SOCIAL e Histórico..................................................... 7
2.Estilo literário da época............................................................ 9
3.O AUTOR.................................................................................................. 12
4.a Obra..................................................................................................... 15
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5.Exercícios............................................................................................ 39
Sentimento do mundo
CArlos DruMmond
de andrade
Sentimento do mundo
1. Contexto SOCIAL e Histórico
Na história do Brasil, o período compreendido entre os anos de 1894 e
1930, aproximadamente, é chamado de República Velha, “a política do café com
leite”, porque ocupava a Presidência da República ora um governo mineiro,
ora um paulista, o que revela a importância dada à lavoura cafeeira somada à
pecuária. A manutenção desse regime dependia, sobretudo, do equilíbrio entre
a produção e a exportação de café. A elite agropecuária brasileira delegava ao
Estado o papel de comprador dos excedentes para garantir o preço em face das
oscilações do mercado. Exemplo típico dessa política foi o chamado acordo de
Taubaté, em 1906, segundo o qual São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais se
comprometiam a retirar do mercado os excedentes da produção cafeeira para
garantir o nível dos preços.
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A sociedade brasileira, no início do século XX, sofreu transformações graças ao processo de urbanização e à vinda dos imigrantes europeus para a região
Centro-Sul do país. Entretanto, ao mesmo tempo em que principiou o processo de
industrialização na região Sudeste, a mão de obra desqualificada dos ex-escravos
foi marginalizada, deslocando-se para a periferia e para os morros; a cultura
canavieira do Nordeste entrou em declínio, pois ela não tinha como competir
com o apoio dado pelo governo federal à “política do café com leite”.
No final do século XIX e início do século XX, duas realidades coexistiam
no Brasil: de um lado, a urbanização da região Centro-Sul, com sua consequente
industrialização e, de outro, o atraso das regiões Norte e Nordeste. E um terceiro fator, ainda mais grave, somava-se a esse quadro: as oligarquias rurais, com
seus arranjos políticos, não representavam os novos estratos socioeconômicos.
O resultado disso foi o surgimento de um quadro caótico, que teria seu término
com a chamada Revolução de 1930 e o Estado Novo, de Getúlio Vargas.
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Carlos Drummond de Andrade
Na Bahia, ocorreu a chamada Guerra de Canudos; em Juazeiro, no Ceará,
o fenômeno do jagunço e a política do padre Cícero; os movimentos operários,
em São Paulo; a criação do Partido Comunista; o tenentismo, que teve seu ápice
na Coluna Prestes, combatida por Arthur Bernardes e Washington Luís. É claro
que esses conflitos ocorreram em tempos e locais diversos, entre 1894 e 1930,
parecendo exprimir, às vezes, problemas bem localizados. Entretanto, no conjunto, revelaram a realidade de um país que se desenvolvia à custa de graves
desequilíbrios. A queda da Bolsa de Nova York em 1929 e o movimento tenentista
colocaram fim à República Velha, com a vitória na chamada Revolução de 1930,
dando início ao chamado Estado Novo ou Era Vargas.
Os intelectuais brasileiros da década de 1920 não ficaram alheios a todas
essas transformações. Em São Paulo e no Rio de Janeiro, sobretudo, artistas e intelectuais, em contato com as novas tendências do pensamento europeu, como o
futurismo, o surrealismo, o dadaísmo, o expressionismo e o cubismo, preparam
um evento, a chamada Semana de Arte Moderna, com o intuito de romper com a
mentalidade conservadora, representada, na literatura, pelos poetas parnasianos
e, na política, pelas oligarquias rurais.
De um modo geral, a maneira encontrada pelos artistas da década de 1920
para combater o formalismo parnasiano e a mentalidade acadêmica foi a valorização do irracionalismo. Mário de Andrade, com a sua poética do “desvairismo”,
publicada no “Prefácio Interessantíssimo” de Pauliceia desvairada, e Manuel Bandeira, com sua teoria do “alumbramento”, a poesia como uma revelação, isto é,
como epifania, e toda a obra de Oswald de Andrade são três bons exemplos da
atitude artística e intelectual que procurou subverter a ordem existente.
Manuel Bandeira publica em 1930 seu quarto livro de poesia, cujo título
revela o intuito de romper definitivamente com a norma poética: Libertinagem.
A década de 1930 marcou a ascensão dos grandes ditadores da primeira
metade do século: Hitler na Alemanha, Mussolini na Itália e, no Brasil, o governo
de Getúlio Vargas.
Em literatura, o período entre 1930 e 1945 foi o momento do posicionamento ideológico, político e social dos intelectuais brasileiros. A rebeldia estética da
primeira fase modernista cedeu lugar à literatura socialmente comprometida,
sobretudo no que diz respeito à prosa de ficção. Foi o momento do romance
regionalista de Graciliano Ramos, José Lins do Rego, Jorge Amado e da poesia
que se ergueu para defender a dignidade humana, como é o caso de A rosa do
povo, de Carlos Drummond de Andrade, publicada em 1945.
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2.Estilo literário da época
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Carlos Drummond de Andrade
O Modernismo brasileiro
O movimento modernista brasileiro teve como marco inicial a Semana de
Arte Moderna de 1922. Em fevereiro desse ano, por sugestão do pintor Di Cavalcanti, um grupo paulista, formado por Mário de Andrade, Oswald de Andrade,
Paulo Prado, Guilherme de Almeida, Menotti del Picchia e outros, juntamente
com escritores mais jovens do Rio de Janeiro, como Ronald de Carvalho, Renato
de Almeida e alguns mais, promoveram, no Teatro Municipal de São Paulo, a
chamada Semana de Arte Moderna, com exposição de pintura e escultura, concertos, conferências e declamações.
O Modernismo brasileiro começou pelas artes plásticas. Em janeiro de 1917,
a pintora paulista Anita Malfatti realizou em São Paulo uma exposição de pintura,
na qual, além dos seus quadros, marcados por influências do expressionismo
alemão, apresentava também alguns quadros cubistas de pintores estrangeiros.
A exposição criou polêmica, ganhando a simpatia de uns e a antipatia de outros.
Monteiro Lobato escreveu um artigo cujo título era ”Paranoia ou mistificação?“,
negando valor artístico aos quadros. A exposição agradou, entretanto, a Mário
de Andrade e a Oswald de Andrade.
De um modo geral, a literatura dos modernistas, na chamada fase heroica do movimento ou Primeira Fase Modernista, entre 1922 e 1930, provocou a
subversão dos gêneros literários. A poesia aproximou-se da prosa e esta adotou
processos de elaboração da linguagem poética. Houve uma aproximação dos diversos “ismos” europeus, os movimentos de vanguarda que procuravam romper
com as normas acadêmicas, como o expressionismo, o cubismo, o dadaísmo, o
futurismo, e o surrealismo.
A poesia abandonou as formas poéticas consagradas, como o verso metrificado e rimado, exageradamente praticado pelos poetas parnasianos. Aderiu à
linguagem coloquial, ao verso livre, aos temas do cotidiano, ao humor e à ironia.
Os modernistas desejavam provar que a poesia estava na essência do que é dito
e na sugestão ou no choque das palavras escolhidas, não nos recursos formais.
Na fase mais combativa do Modernismo brasileiro, de 1922 a 1930, a prosa
sofreu transformações significativas. Os períodos tornaram-se curtos, fragmentados, com espaços brancos na composição tipográfica e na própria sequência do
discurso, apresentando a realidade dividida em blocos sugestivos, cuja unificação
exige do leitor uma adequação aos novos processos construtivos, uma vez que
dispensa a concatenação lógica. A aliteração (repetição dos sons das consoantes)
e a criação de neologismos passaram a integrar a linguagem da prosa. O melhor
exemplo dessa técnica encontra-se em Memórias sentimentais de João Miramar, de
Oswald de Andrade.
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De 1930, data da publicação de Alguma poesia, de Carlos Drummond de
Andrade, a 1945, ano da morte de Mário de Andrade, tivemos o que se convencionou chamar de a segunda fase do Modernismo. As grandes experiências técnicas
com a linguagem cederam importância aos temas sociais. Surgiu uma literatura
que procurava denunciar certos aspectos da realidade brasileira, sobretudo na
prosa. Aí encontram-se os romances de Graciliano Ramos, como Vidas secas (1938)
e São Bernardo (1934), e de Jorge Amado, como Capitães da areia (1937), Terras do
sem-fim (1942), entre outros.
De 1945 em diante, tivemos a chamada terceira fase modernista. Alguns estudiosos delimitam esta fase entre 1945, ano da morte de Mário de Andrade, e 1964,
ano do Golpe Militar. Nela a linguagem é empregada como instrumento da busca
do ser, sobretudo em João Guimarães Rosa, na obra Sagarana (1946) e em Clarice Lispector, nos romances Perto do coração selvagem (1944), A paixão segundo G.H. (1964) e
A hora da estrela (1977).
É importante ressaltar que a obra poética de Carlos Drummond de Andrade
atravessa as três fases do modernismo.
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Carlos Drummond de Andrade
3.O AUTOR
Carlos Drummond de Andrade
Quando nasci, um anjo torto
Desses que vivem na sombra
Disse: Vai, Carlos, ser gauche na vida.
Gauche – pronuncia-se gôch, palavra francesa cujo significado literal é
esquerdo; no poema significa inapto, desajeitado.
Carlos Drummond de Andrade era mineiro de Itabira do Mato Dentro, nascido em 1902, nono filho de Carlos de Paula Andrade, fazendeiro, e de D. Julieta
Augusta Drummond de Andrade. Expulso do colégio ao findar o ano letivo de
1919, em consequência de um incidente com o professor de português, passou a
residir em Belo Horizonte, onde fez estudos de farmácia. Dedicou-se ao jornalismo
e entrou em contato com o Modernismo paulista, integrando o grupo fundador de
A Revista, órgão que divulgava as ideias modernistas em Minas Gerais.
Em 1926, sem interesse pela profissão de farmacêutico e sem aptidão para
a vida de fazendeiro, lecionou geografia e português no Ginásio Sul-Americano
de Itabira. Ainda em 1926, retornou a Belo Horizonte, como redator e depois
redator-chefe do Diário de Minas. Em 1928, a Revista de Antropofagia publicou seu poema No meio do caminho, provocando escândalo nos meios mais conservadores.
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Sentimento do mundo
Em 1934, deixou Belo Horizonte e foi para o Rio de Janeiro (onde viveu até
o fim da vida, em 1987), como chefe de gabinete do ministro Gustavo Capanema,
Ministro da Educação e da Saúde Pública.
Poeta, contista, cronista e ensaísta, Carlos Drummond soube usar com precisão a linguagem, sempre de forma elegante e correta, com riqueza vocabular.
Os temas e os motivos de sua obra são sempre cotidianos, observando de perto
os homens e as sutilezas e brutalidades da vida.
Em 1962, em sua Antologia poética, o poeta dividiu sua poesia em nove
áreas temáticas:
1)O indivíduo: “um eu todo retorcido”
2) A terra natal: “uma província: esta”
3) A família: “a família que me dei”
4) Amigos: “cantar de amigos”
5) Choque social: “na praça de convites”
6)O conhecimento amoroso: “amar-amaro”
7) A própria poesia: “poesia contemplada”
8)Exercícios lúdicos: “uma, duas argolinhas”
9)Uma visão, ou tentativa da existência: “tentativa de exploração e de interpretação do estar-no-mundo”
Obra
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Poesia
1930 – Alguma poesia
1934 – Brejo das almas
1940 – Sentimento do mundo
1942 – Poesias
1945 – Rosa do povo
1948 – Poesia até agora
1951 – Claro enigma
1952 – Viola de bolso
1954 – Fazendeiro do ar & Poesia até agora
1955 – Viola de bolso novamente encordoada
1959 – Poemas
1959 – A vida passada a limpo
1962 – Lição das coisas
1967 – Versiprosa
1968 – Boitempo & A falta que ama
1973 – Menino antigo Boitempo II
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Carlos Drummond de Andrade
1973 – As impurezas do branco
1975 – Amor, amores
1977 – A visita
1978 – O marginal colorindo gato
1978 – Discurso da primavera & Algumas sombras
1979 – Esquecer para lembrar – Boitempo III
1980 – A paixão medida
1982 – Carmina drummondiana
1984 – Corpo
1985 – Amar, sinal estranho
1985 – Amar se aprende amando
1988 – Poesia errante
1992 – O amor natural
1996 – Farewell
Prosa
1944 – Confissões de minas
1951 – Contos de aprendiz
1952 – Passeios na ilha
1957 – Fala, amendoeira
1962 – A bolsa e a vida (crônicas e poemas)
1970 – Cadeira de balanço (crônicas e poemas)
1970 – Caminhos de João Brandão
1978 – O poder ultrajovem e mais 79 textos em prosa e verso
1978 – Os dias lindos
1979 – De notícias e não-notícias faz-se a crônica
1979 – Historinhas
1981 – Contos plausíveis
1984 – Boca de luar
1985 – O observatório escritório
1986 – Tempo vida poesia
1987 – O avesso das coisas
1987 – Moça deitada na grama
1983 – O elefante
1985 – História de dois amores (com ilustrações de Ziraldo)
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Sentimento do mundo
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4.a Obra
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Carlos Drummond de Andrade
A obra Sentimento do mundo é composta pelos 28 poemas seguintes:
Sentimento do mundo
Confidência do itabirano
Poema da necessidade
Canção da moça-fantasma de Belo Horizonte
Tristeza do império
Operário no mar (prosa)
Menino chorando na noite
Morro da Babilônia
Congresso internacional do medo
Os mortos de sobrecasaca
Privilégio do mar
Inocentes do Leblon
Canção do berço
Indecisão do Méier
Bolero de Ravel
La possession du monde
Ode no cinquentenário do poeta brasileiro
Os ombros suportam o mundo
Mãos dadas
Dentaduras duplas
Revelação do subúrbio
A noite dissolve os homens
Madrigal lúgubre
Lembrança do mundo antigo
Elegia 1938
Mundo grande
Noturno à janela do apartamento
Análise da obra
O livro Sentimento do mundo foi publicado em 1940, num momento de
absoluta censura (vivíamos a época de ascensão dos grandes ditadores, como
Getúlio Vargas no Brasil, Hitler na Alemanha, Franco na Espanha, Mussolini
na Itália, Salazar em Portugal, Perón na Argentina, Stalin na União Soviética), o
que explica a sua publicação fora do comércio, com uma tiragem de apenas 150
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Sentimento do mundo
exemplares. O livro mostrou a adesão explícita do poeta aos temas sociais, aos
problemas de um mundo marcado pelas injustiças sociais (o “mundo caduco”),
mundo que marchava em direção aos campos de concentração da Alemanha e
à explosão da bomba de Hiroshima.
Escrito dentro dos princípios preconizados pelo Modernismo, os 28 poemas do livro apresentam linguagem coloquial, com versos predominantemente
livres, mas para compreendê-los melhor, é preciso retroceder aos dois primeiros
livros do autor.
Em Alguma poesia, de 1930, primeiro livro de Carlos Drummond de Andrade, o poeta escreve no poema de abertura:
Quando nasci, um anjo torto
desses que vivem na sombra
disse: Vai, Carlos, ser gauche na vida.
O “anjo torto” anuncia, já no primeiro poema, o destino do poeta: “ser
gauche na vida”, o que significa não ter jeito ou aptidão para a vida. O tema do
“eu todo retorcido” que o poeta assinalou na Antologia poética de 1962 estava na
raiz de sua poesia. A imagem que o poeta tem de si é sempre a de um ser torto,
retorcido sobre si mesmo, incapaz de se ajustar às normas e às transgressões do
mundo.
Em Brejo das almas, de 1934, no poema Segredo, o poeta dirá:
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A poesia é incomunicável.
Fique torto no seu canto.
Não ame.
O destino “torto” previsto pelo anjo no primeiro livro parece não ser apenas o destino do eu poético, mas de todos os homens. Cada ser humano parece
carregar em seu interior uma carga pesada capaz de deformá-lo, tornando-o
inapto para as coisas da vida. A deformidade interior parece impossibilitar uma
correspondência satisfatória do eu com o mundo. Este, aliás, será precisamente
o tema do Sentimento do mundo.
Desde o início, pois, é perceptível na poesia do autor a noção de conflito
entre o que chamamos Eu e o que chamamos Mundo. O “eu” poético na poesia
drummondiana, embora tenha nítidos traços autobiográficos, transcende a esfera
da singularidade e estabelece um parentesco com todos os seres exteriores, de
tal maneira que, ao falar de si, o poeta fala também de cada um de nós. O “eu”
poético carrega consigo toda a carga que lhe foi atribuída desde o seu nascimento,
em primeira instância pelas regras do grupo familiar e, posteriormente, pelas
regras do mundo social. Regras de conduta moral, social, profissional, religiosa,
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Carlos Drummond de Andrade
enfim, todo o peso da civilização em suas nuanças que o ser humano acaba por
absorver, quase sempre contra a sua vontade, e que acaba por sufocá-lo, deformálo e isolá-lo num labirinto de solidão e incomunicabilidade.
Em Sentimento do mundo, o poeta deliberadamente procura estabelecer
um vínculo entre o “eu” e o “mundo” através da linguagem poética. A poesia
expressa, pois, os problemas do mundo, do mundo exterior e do mundo interior.
A poesia é o veículo que torna possível a construção de uma ponte entre esses
dois mundos.
No universo interior, o homem é marcado pelos fantasmas do passado, já
que todos nós somos feitos daquilo que fomos, o que significa que as nossas raízes,
a nossa família, a cidade em que nascemos e vivemos durante certo tempo, a nossa formação (ou deformação) moral atravessam o tempo e chegam ao momento
presente como parte integrante e indissociável da nossa existência. A família é
a primeira instituição a impor ao indivíduo o princípio da realidade, isto é, ela
procura despertar na criança a capacidade de restringir as próprias vontades,
tendo em vista a dos outros, e a adiar ou moderar a satisfação de determinados
prazeres imediatos em nome de uma satisfação posterior. O problema maior
desse “princípio de realidade” é que dele provém o medo. O medo é a primeira
reação do indivíduo ao encarar suas limitações.
No universo exterior, a política ditatorial, a corrupção, a violência, a ganância e a luta pelo poder revelam que o mundo é um lugar mal feito, torto,
deformado, capaz de amesquinhar a vida e reduzi-la à impossibilidade, fazendo
com que todos nós tenhamos medo da realidade. Medo que nos paralisa e nos
impossibilita de lutar contra o que nos oprime. Assim como existem os fantasmas
interiores, existem, no mundo exterior, as injustiças sociais e os fantasmas do
autoritarismo de uma política repressora.
A poesia de Carlos Drummond de Andrade surge, portanto, como uma
possibilidade de libertar o “eu” de seus fantasmas interiores e, simultaneamente,
como possibilidade de libertar a consciência do medo e da culpa em relação à realidade exterior. Dessa forma, em Sentimento do mundo, a poesia é um instrumento
de libertação e de participação social, porque permite ao poeta compreender o
medo despertado na infância pela autoridade familiar e amadurecer e raciocinar a partir desse medo, conferindo-lhe pouco a pouco a coragem necessária
para enfrentar os medos e terrores de uma realidade marcada pelos rigores de
uma política autoritária. Assim, o poeta substitui os problemas interiores pelos
problemas exteriores, atingindo a confluência entre o Eu e o Mundo, o que faz
surgir o sentimento do mundo.
A partir, sobretudo, de Sentimento do mundo, percebemos que o Eu e o
Mundo estão intimamente relacionados e que muitas vezes, ao falar de si, o poeta
está falando do mundo e, ao abordar os problemas do mundo, ele está, de fato,
procurando compreender seu próprio universo interior.
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Sentimento do mundo
No poema de abertura, intitulado Sentimento do mundo, lemos:
Tenho apenas duas mãos
e o sentimento do mundo,
mas estou cheio de escravos,
minhas lembranças escorrem
e o corpo transige
na confluência do amor.
Quando me levantar, o céu
estará morto e saqueado,
eu mesmo estarei morto,
morto meu desejo, morto
o pântano sem acordes.
Os camaradas não disseram
que havia uma guerra
e era necessário
trazer fogo e alimento.
Sinto-me disperso,
anterior a fronteiras,
humildemente vos peço
que me perdoeis.
Quando os corpos passarem,
eu ficarei sozinho
desfiando a recordação
do sineiro, da viúva e do microcopista
que habitavam a barraca
e não foram encontrados
ao amanhecer
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Esse amanhecer
mais noite que a noite.
O poeta estende a mão para o seu semelhante, abre a mão para a humanidade. A mão representa aqui a consciência, o desejo de aproximar-se do outro;
por isso o eu poético afirma ter duas mãos e o “sentimento do mundo”, a mão é a
consciência que lhe permite sentir o mundo. Mas, embora seja capaz de senti-lo,
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Carlos Drummond de Andrade
o eu lírico afirma estar “cheio de escravos”, isto é, ele sente-se preso e incapaz
de vivenciar a vida e a humanidade. Assim como percebe as forças que interiormente o prendem e o privam da liberdade (“mas estou cheio de escravos”), ele
percebe também as forças sociais que escravizam e impossibilitam os homens
de se humanizarem, como sugerem os versos “Os camaradas não disseram / que
havia uma guerra / e que era necessário / trazer fogo e alimento”. Por isso, ainda
na terceira estrofe, pede perdão aos seus semelhantes, pois se sente despreparado
para ajudá-los: “Sinto-me disperso, / anterior a fronteiras / humildemente vos peço
/ que me perdoeis.” O que ele constata no final do poema é que o “amanhecer”,
ou seja, o ingresso consciente no mundo exterior, está marcado pela “noite”, pela
privação da luz, pela supressão da clareza, maneira sutil de dizer que o homem
está privado da liberdade: “esse amanhecer / mais noite que a noite”.
Como o eu poético traz consigo os problemas que também pertencem a
todos nós, a ausência de liberdade de um representa a ausência de liberdade
do outro, o que significa que as tradições que oprimem o indivíduo oprimem
também a sociedade.
Em seguida, vem o famoso poema Confidência do itabirano:
Alguns anos vivi em Itabira.
Principalmente nasci em Itabira.
Por isso sou triste, orgulhoso: de ferro.
Noventa por cento de ferro nas calçadas.
Oitenta por cento de ferro nas almas.
E esse alheamento do que na vida é porosidade e comunicação.
A vontade de amar, que me paralisa o trabalho,
vem de Itabira, de suas noites brancas, sem mulheres e sem horizontes.
E o hábito de sofrer, que tanto me diverte,
é doce herança itabirana.
De Itabira trouxe prendas diversas que ora te ofereço:
este São Benedito do velho santeiro Alfredo Duval;
esta pedra de ferro, futuro aço do Brasil;
este couro de anta, estendido no sofá da sala de visitas;
este orgulho, esta cabeça baixa...
Tive ouro, tive gado, tive fazendas.
hoje sou funcionário público
Itabira é apenas uma fotografia na parede.
Mas como dói!
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Sentimento do mundo
Repare que as heranças oriundas do passado sobrecarregam o ser, enrigecendo a sua sensibilidade, chegando o poeta a afirmar: “por isso sou triste,
orgulhoso: de ferro”. Por mais que o passado esteja distante e a cidade natal seja
apenas uma fotografia na parede, o eu lírico sofre. Daí vem a necessidade de
estabelecer um vínculo com o que está fora.
Poema da necessidade
É preciso casar João,
é preciso suportar Antônio,
é preciso odiar Melquíades,
é preciso substituir nós todos.
É preciso salvar o país,
é preciso crer em Deus,
é preciso pagar as dívidas,
É preciso comprar um rádio,
É preciso esquecer fulana.
É preciso estudar volapuque1,
é preciso estar sempre bêbedo,
é preciso ler Baudelaire2 ,
é preciso colher as flores
de que rezam velhos autores.
É preciso viver com os homens,
É preciso não assassiná-los,
é preciso ter mãos pálidas
e anunciar o FIM DO MUNDO.
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Volapuque = língua artificial criada pelo padre alemão Martin Schleyer, no final do século XIX, com a finalidade de ser uma
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língua universal.
2
Baudelaire = poeta francês do século XIX.
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Carlos Drummond de Andrade
A consciência impele o poeta a procurar o que está fora dele, a estabelecer
um vínculo com elementos do mundo exterior. O poeta faz uso da anáfora, da
repetição de uma palavra ou expressão no início do verso para intensificar a ideia
de necessidade. O último verso “E anunciar o FIM DO MUNDO” evidencia a
necessidade de anunciar o fim de um mundo que aprisiona, que impõe sofrimentos e privações. Desta maneira, o fim do mundo desejado é o fim de todas
as tradições que (nos) aprisionam, sejam elas os recalques interiores ou a política
autoritária que rege o mundo exterior.
Ao anunciar o fim do mundo, o poeta recusa o convencionalismo da linguagem e anuncia um mundo novo, num poema em prosa intitulado O operário
no mar. Nesse mundo fabuloso de contradições extintas que então se anunciava
( “...mensagens que contam da Rússia, do Araguaia, dos Estados Unidos”), é
possível ao operário caminhar sobre as águas. Mas a consciência de culpa do
poeta o leva a findar o texto com uma interrogação, pois ele se considera parte
integrante da antiga ordem opressora (é importante lembrar aqui a origem latifundiária de Drummond e o seu trabalho no gabinete de um ministro durante
o governo de Getúlio Vargas) e, por isso, tem dúvidas sobre sua capacidade de
compreender um operário.
O operário no mar
Na rua passa um operário. Como vai firme! Não tem blusa. No conto, no drama,
no discurso político, a dor do operário está na sua blusa azul, de pano grosso, nas mãos
grossas, nos pés enormes, nos desconfortos enormes. Esse é um homem comum, apenas
mais escuro que os outros, e com uma significação estranha no corpo, que carrega desígnios
e segredos. Para onde vai ele, pisando assim tão firme? Não sei. A fábrica ficou lá atrás.
Adiante é só campo, com algumas árvores, o grande anúncio de gasolina americana e os
fios, os fios, os fios. O operário não lhe sobra tempo de perceber que eles levam e trazem
mensagens, que contam da Rússia, do Araguaia, dos Estados Unidos. Não ouve, na
Câmara dos Deputados, o líder oposicionista vociferando. Caminha no campo e apenas
repara que ali corre água, que mais adiante faz calor. Para onde vai o operário? Teria
vergonha de chamá-lo meu irmão. Ele sabe que não é, nunca foi meu irmão, que não nos
entenderemos nunca. E me despreza...Ou talvez seja eu próprio que me despreze a seus
olhos. Tenho vergonha e vontade de encará-lo: uma fascinação quase me obriga a pular
a janela, a cair em frente dele, sustar-lhe a marcha, pelo menos implorar-lhe que suste a
marcha. Agora está caminhando no mar. Eu pensava que isso fosse privilégio de alguns
santos e de navios. Mas não há nenhuma santidade no operário, e não vejo rodas e nem
hélices no seu corpo, aparentemente banal. Sinto que o mar se acovardou e deixou-o
passar. Onde estão nossos exércitos que não impediram o milagre? Mas agora vejo que o
operário está cansado e que se molhou, não muito, mas se molhou, e peixes escorrem de
suas mãos. Vejo-o que se volta e me dirige um sorriso úmido. A palidez e a confusão do
seu rosto são a própria tarde que se decompõe. Daqui a um minuto será noite e estaremos
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Sentimento do mundo
irremediavelmente separados pelas circunstâncias atmosféricas, eu em terra firme, ele no
meio do mar. Único e precário agente de ligação entre nós, seu sorriso cada vez mais frio
atravessa as grandes massas líquidas, choca-se contra as formações salinas, as fortalezas
da costa, as medusas, atravessa tudo e vem beijar-me o rosto, trazer-me uma esperança
de compreensão. Sim, quem sabe se um dia o compreenderei?
No poema Menino chorando na noite, ocorre uma comparação sutil entre o
remédio ministrado a uma criança e a situação política do mundo. Assim como
o remédio, muitas vezes amargo, se faz necessário, as políticas autoritárias da
época justificavam as suas arbitrariedades comparando-as ao remédio necessário
para curar os males que afligiam o mundo. Por isso, o “fio oleoso que escorre
pelo queixo do menino, / escorre pela rua, escorre pela cidade...”. A dor, embora
seja de todos, parece ser apenas de um: “E não há ninguém mais no mundo a
não ser esse menino chorando.” Mais uma vez surge a relação entre o individual
e o coletivo.
Na noite lenta e morna, morta noite sem ruído, um menino chora.
O choro atrás da parede, a luz atrás da vidraça
perdem-se na sombra dos passos abafados, das vozes extenuadas.
E no entanto se ouve até o rumor da gota de remédio caindo na colher.
Um menino chora na noite, atrás da parede, atrás da rua,
longe um menino chora, em outra cidade talvez,
talvez em outro mundo.
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E vejo a mão que levanta a colher, enquanto a outra sustenta a cabeça
e vejo o fio oleoso que escorre pelo queixo do mendigo,
escorre pela rua, escorre pela cidade (um fio apenas).
E não há ninguém mais no mundo a não ser esse menino chorando.
Em Congresso internacional do medo, o sentimento de medo se alastra pelo
mundo e paralisa os homens impedindo-os de se rebelarem contra a ordem
estabelecida. O medo se faz presente em todos os lugares, em todas as pessoas
e em todos os níveis, impedindo as ações e culminando na paralisia geral da
morte. Na própria forma do poema, a palavra “medo” vai se espalhando por
todos os versos e o som da sibilante contínuo /s/ no último verso do poema
Sobre nossos túmulos nascerão flores amarelas e medrosas parece sugerir que os efeitos
do medo prolongam-se para além do ponto final. Ou seja, o medo não encontra
obstáculos que o interrompa.
23
Carlos Drummond de Andrade
Congresso internacional do medo
Provisoriamente não cantaremos o amor,
que se refugiou mais abaixo dos subterrâneos.
cantaremos o medo, que esteriliza os abraços,
não cantaremos o ódio porque esse não existe,
existe apenas o medo, nosso pai e nosso companheiro,
o medo grande dos sertões, dos mares, dos desertos,
o medo dos soldados, o medo das mães, o medo das igrejas,
cantaremos o medo dos ditadores, o medo dos democratas,
cantaremos o medo da morte e o medo de depois da morte,
depois morreremos de medo
e sobre os nossos túmulos nascerão flores amarelas e medrosas.
No poema Os mortos de sobrecasaca, o tema da família, ou melhor, o tema
das heranças que trazemos do passado ressurge, não numa fotografia de Itabira,
terra natal do poeta, mas através de um álbum de fotografia dos familiares.
Os mortos de sobrecasaca
Havia a um canto da sala um álbum de fotografias intoleráveis,
alto de muitos metros e velho de infinitos minutos,
em que todos se debruçavam
na alegria de zombar dos mortos de sobrecasaca.
Um verme principiou a roer as sobrecasacas indiferentes
e roeu as páginas, as dedicatórias e mesmo a poeira dos retratos.
Só não roeu o imortal soluço de vida que rebentava
que rebentava daquelas páginas.
Repare que o álbum também pode ser um jazigo, um túmulo, o que está
sugerido na hipérbole (exagero) do segundo verso “alto de muitos metros e
velho de infinitos minutos”. Perceba também que a ideia de jazigo ganha mais
sentido na segunda estrofe, pois os vermes roem as sobrecasacas dos mortos.
Mas, embora estejam todos mortos e sepultados, apesar da destruição física, os
sentimentos de vida permanecem vivos, estão presentes, por exemplo, no eu
lírico. Por mais que este possa “zombar dos mortos de sobrecasaca”, as regras e
valores do núcleo familiar do passado integram a sua vida.
24
Sentimento do mundo
Brinde no juízo final
Poetas de camiseiro, chegou vossa hora,
poetas de elixir de inhame e de tonofosfã,
chegou vossa hora, poetas do bonde e do rádio,
poetas jamais acadêmicos, último ouro do Brasil.
Em vão assassinaram a poesia nos livros,
em vão houve putschs, tropas de assalto, depurações.
Os sobreviventes aqui estão, poetas honrados,
poetas diretos da Rua Larga.
(As outras ruas são muito estreitas,
só nesta cabem a poeira,
o amor
e a Light.)
Nesse poema, de modo sutil, o que, aliás, é típico do autor, o poeta tece
uma crítica aos autores acadêmicos que se afastavam dos problemas sociais, enquanto, ao mesmo tempo, tece um elogio aos poetas populares que empregavam
a linguagem poética para anunciar desde medicamentos, como “elixir de inhame
e de tonofosfã”, à luz da Light, empresa de energia elétrica.
Em Privilégio do mar, o poeta condena a alienação dos que desconhecem ou
fingem desconhecer a existência dos horrores de um conflito mundial, bebendo,
tranquilamente, no alto de um edifício, suas cervejas.
Privilégio do mar
Neste terraço mediocremente confortável,
bebemos cerveja e olhamos o mar.
Sabemos que nada nos acontecerá.
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O edifício é sólido e o mundo também.
Sabemos que cada edifício abriga mil corpos
labutando em mil compartimentos iguais.
Às vezes, alguns se inserem fatigados no elevador
e vêm cá em cima respirar a brisa do oceano,
o que é privilégio dos edifícios.
O mundo é mesmo de cimento armado.
25
Carlos Drummond de Andrade
Certamente, se houvesse um cruzador louco,
fundeado na baía em frente da cidade,
a vida seria incerta... improvável...
Mas nas águas tranquilas só há marinheiros fiéis.
Como a esquadra é cordial!
Podemos beber honradamente nossa cerveja.
No poema Inocentes do Leblon, o poeta repete sua crítica à alienação e chama
de inocentes aqueles que ignoram a realidade nociva que rodeia a todos, aqueles
que, mergulhados no universo pessoal, acabam por ignorar os problemas exteriores, os problemas sociais:
Inocentes do Leblon
Os inocentes do Leblon
não viram o navio entrar.
Trouxe bailarinas?
trouxe imigrantes?
trouxe um grama de rádio?
Os inocentes, definitivamente inocentes, tudo ignoram,
Mas a areia é quente, e há óleo suave
Que eles passam nas costas, e esquecem.
No poema intitulado Os ombros suportam o mundo, encontramos o ponto de
confluência entre o sentimento individual e o sentimento do mundo: as limitações
e imperfeições interiores levam o poeta a substituir os problemas pessoais pelos
problemas coletivos. O sentimento interior de insuficiência faz com que o poeta
deseje atingir a completude através do próximo. O irremediável da condição
humana é percebido na condição pessoal e a desarmonia entre os homens e seus
atos revela a inevitável condição solitária do ser humano.
Os ombros suportam o mundo
Chega um tempo em que não se diz mais: meu Deus.
Tempo de absoluta depuração.
Tempo em que não se diz mais: meu amor.
Porque o amor resultou inútil.
E os olhos não choram.
E as mãos tecem apenas o rude trabalho.
E o coração está seco.
26
Sentimento do mundo
Em vão as mulheres batem à porta, não abrirás.
Ficaste sozinho, a luz apagou-se,
mas na sombra teus olhos resplandecem enormes.
És todo certeza, já não sabes sofrer.
E nada esperas de teus amigos.
Pouco importa venha a velhice, que é a velhice?
Teus ombros suportam o mundo
e ele não pesa mais que a mão de uma criança.
As guerras, as fomes, as discussões dentro dos edifícios
provam apenas que a vida prossegue
e nem todos se libertaram ainda.
Alguns, achando bárbaro o espetáculo,
preferiram (os delicados) morrer.
Chegou um tempo em que não adianta morrer.
Chegou um tempo em que a vida é uma ordem.
A vida apenas, sem mistificação.
No primeiro verso do poema, a experiência de vida não permite ao homem
que ele se surpreenda com coisa alguma, por isso não se diz mais “meu Deus”. A
experiência, aliás, parece revelar ao homem que todo sentimento é inútil, como
sugere o restante da primeira estrofe.
Na segunda estrofe, as ações e situações do mundo cotidiano revelam que
o homem atinge uma fiel indiferença com a vida, aceitando-a mecanicamente.
Isso lhe permite viver sem sofrer, sem temer a morte e aceitar a existência sem
nenhuma esperança.
Mas, desse modo, o mundo parece caduco, e por isso não merece ser cantado. É preciso, então, agarrar-se ao presente e tentar construir um mundo mais
solidário. É preciso que caminhemos de Mãos dadas:
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Mãos dadas
Não serei o poeta de um mundo caduco.
Também não cantarei o mundo futuro.
Estou preso à vida e olho meus companheiros.
Estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças.
Ente eles, considero a enorme realidade.
O presente é tão grande, não nos afastemos.
Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas.
27
Carlos Drummond de Andrade
Não serei o cantor de uma mulher, de uma história,
não direi os suspiros ao anoitecer, a paisagem vista da janela,
não distribuirei entorpecentes ou cartas de suicida,
não fugirei para as ilhas nem serei raptado por serafins.
O tempo é a minha matéria, o tempo presente, os homens presentes,
a vida presente.
O poeta afirma sua consciência dos problemas sociais, afirma que não será
o poeta de um mundo caduco, de um mundo que celebra a indiferença e o ódio, já
que se vivia na época o clima de repressão política e de preparação para a Segunda
Guerra Mundial. Afirma estar preso à vida e a seus companheiros, com os quais
busca união. Daí a renúncia, na segunda estrofe, dos temas pessoais, pois agora o
seu interesse maior é o outro e a realidade, o “tempo presente”, que afeta a todos.
Mas o “eu” do poeta sofre também pelas mutilações que lhe são impostas
pela ação do tempo, como aparece em Dentaduras duplas:
Dentaduras duplas
A Onestaldo de Pennafort
Dentaduras duplas!
Inda não sou bem velho
para merecer-vos...
Há que contentar-me
com uma ponte móvel
e esparsas coroas.
(Coroas sem reino
os reinos protéticos
de onde proviestes
quando produzirão
a tripla dentadura,
dentadura múltipla,
a serra mecânica,
sempre desejada,
jamais possuída
que acabará
com o tédio da boca,
a boca que beija,
a boca romântica?...)
28
Sentimento do mundo
Resolvin! Hecolite!
Nomes de países?
Fantasmas femininos?
Nunca: dentaduras,
engenhos modernos,
práticos, higiênicos,
a vida habitável:
a boca mordendo,
os delirantes lábios
apenas entreabertos
num sorriso técnico,
e a língua especiosa
através dos dentes
buscando outra língua,
afinal sossegada...
A serra mecânica
Não tritura amor.
E todos os dentes
extraídos sem dor.
E boca liberta
Das funções poético-sofístico-dramáticas
de que rezam filmes
e velhos autores.
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Dentaduras duplas:
dai-me enfim a calma
que Bilac não teve
para envelhecer.
Desfibrarei convosco
doces alimentos,
serei casto, sóbrio,
não vos aplicando
na deleitação convulsa
de uma carne triste
em que tantas vezes
me eu perdi.
29
Carlos Drummond de Andrade
Largas dentaduras,
vosso riso largo
me consolará
não sei quantas fomes
ferozes, secretas
no fundo de mim.
Não sei quantas fomes
jamais compensadas.
Dentaduras alvas,
antes amarelas
e por que não de âmbar?
e por que não de âmbar?
de âmbar! de âmbar!
feéricas dentaduras,
admiráveis presas
mastigando lestas
e indiferentes
a carne da vida!
Embora o poema contenha certa dose de humor, a visão predominante é
melancólica. O desejo humano não cede à ação do tempo, mas o corpo, mutilado e
despojado de suas forças, não pode conseguir mais a satisfação desejada. Por isso,
a substituição da dentição natural pela artificial funciona como um consolo ante a
tomada de consciência da impossibilidade das realizações desejadas. O “eu” do poeta
procura aceitar com alguma serenidade o peso negativo das etapas vencidas, mas está
ciente de que certa dose de indiferença para com as coisas da vida é necessária.
No poema seguinte, intitulado Revelação do subúrbio, o poeta, recolhido ao
espaço interior de um trem, durante uma viagem para Minas Gerais, observa,
através da janela, a realidade externa. O interior do veículo parece representar
no poema o interior do poeta, enquanto o subúrbio mineiro parece ser uma metonímia do Brasil pobre e esforçado.
Revelação do subúrbio
Quando vou para Minas, gosto de ficar de pé, contra a vidraça do carro,
vendo o subúrbio passar.
O subúrbio todo se condensa para ser visto depressa,
com medo de não repararmos suficientemente
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Sentimento do mundo
em suas luzes que mal têm tempo de brilhar.
A noite come o subúrbio e logo o devolve,
ele reage, luta, se esforça,
até que vem o campo onde pela manhã repontam laranjais
e à noite só existe a tristeza do Brasil.
Os 42 versos, divididos em três estrofes, do poema A noite dissolve os homens
podem ser divididos em dois segmentos: o primeiro apresenta uma imagem da
noite, do universo da guerra, da tristeza e da desesperança, enquanto o segundo
apresenta uma imagem da aurora associada à ideia de esperança, de crença numa
vida melhor do que a proposta pelos ideais nazifascistas.
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A noite dissolve os homens
A noite desceu. Que noite!
Já não enxergo meus irmãos.
E nem tampouco os rumores
que outrora me perturbavam.
A noite desceu. Nas casas,
nas ruas onde se combate,
nos campos desfalecidos,
a noite espalhou o medo
e a total incompreensão.
A noite caiu. Tremenda,
sem esperança... Os suspiros
acusam a presença negra
que paralisa os guerreiros.
E o amor não abre caminho
Na noite. A noite é mortal,
completa, sem reticências,
a noite dissolve os homens,
diz que é inútil sofrer,
a noite dissolve as pátrias,
apagou os almirantes
cintilantes! nas suas fardas.
A noite anoiteceu tudo...
O mundo não tem remédio...
Os suicidas tinham razão.
31
Carlos Drummond de Andrade
Aurora,
entretanto eu te diviso, ainda tímida,
inexperiente das luzes que vais acender
e dos bens que repartirás com os homens.
Sob o úmido véu de raivas, queixas e humilhações,
adivinho-te que sobes, vapor róseo, expulsando a treva noturna.
O triste mundo fascista se decompõe ao contato de teus dedos,
teus dedos frios, que ainda se não modelaram
mas que avançam na escuridão como um sinal verde e peremptório.
Minha fadiga encontrará em ti o seu ermo,
Minha carne estremece na certeza de tua vinda.
O suor é um óleo suave, as mãos dos sobreviventes se enlaçam,
Os corpos hirtos adquirem uma fluidez,
uma inocência, um perdão simples e macio...
Havemos de amanhecer. O mundo
se tinge com tintas da antemanhã
e o sangue que escorre é doce, de tão necessário
para cobrir tuas pálidas faces, aurora.
Repare que a última estrofe revela uma crença nos valores da liberdade: o
novo dia surge em função dos esforços de todos aqueles que lutaram contra as
forças das trevas e da opressão. O novo dia surgirá para revelar que os esforços
dos homens não foram inúteis, pois o dia triunfará sobre a noite.
Observe, também, que o desejo de transformar o mundo exterior pode
representar também o desejo de modificação do mundo interior.
No poema “Lembrança do mundo antigo” ocorre uma oposição entre
presente e passado:
Lembrança do mundo antigo
Clara passeava no jardim com as crianças.
O céu era verde sobre o gramado,
a água era dourada sob as pontes,
outros elementos eram azuis, róseos, alaranjados,
o guarda-civil sorria, passavam bicicletas,
a menina pisou a relva para pegar um pássaro,
o mundo inteiro, a Alemanha, a China, tudo era tranquilo em redor de Clara
32
Sentimento do mundo
As crianças olhavam para o céu: não era proibido.
A boca, o nariz, os olhos estavam abertos. Não havia perigo.
Os perigos que Clara temia eram a gripe, o calor, os insetos.
Clara tinha medo de perder o bonde das 11 horas,
esperava cartas que custavam a chegar,
nem sempre podia usar vestido novo. Mas passeava no jardim, pela manhã!!!
Havia jardins, havia manhãs naquele tempo!!!
O poeta resgata, através da memória (daí o título “Lembrança do mundo
antigo”), as qualidades do mundo anteriores à guerra: um mundo sem perigo,
tranquilo, com crianças passeando pelos jardins. Ao passado de tranquilidade,
entretanto, se contrapõe o presente ameaçador, capaz de tolher toda liberdade
“As crianças olhavam para o céu: não era proibido.”
Mais uma vez, a censura externa da política ditatorial aparece ligada, na
consciência do poeta, à ideia de censura interior. O tempo passado pode ser
percebido como o tempo anterior à formação da consciência, e por isso seria
um tempo sem culpa. Já o tempo presente, o tempo da consciência, cerceia a
liberdade e impede o sujeito de realizar-se.
Elegia 1938
Trabalhas sem alegria para um mundo caduco,
onde as formas e as ações não encerram nenhum exemplo.
Praticas laboriosamente os gestos universais,
sentes calor e frio, falta de dinheiro, fome e desejo sexual.
Heróis enchem os parques da cidade em que te arrastas,
e preconizam a virtude, a renúncia, o sangue-frio, a concepção.
À noite, se neblina, abrem guarda-chuvas de bronze
ou se recolhem aos volumes de sinistras bibliotecas.
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Amas a noite pelo poder de aniquilamento que encerra
e sabes que, dormindo, os problemas te dispensam de morrer.
Mas o terrível despertar prova a existência da Grande Máquina
e te repões, pequenino, em face de indecifráveis palmeiras.
Caminhas entre mortos e com eles conversas
sobre coisas do tempo futuro e negócios do espírito.
A literatura estragou tuas melhores horas de amor.
Ao telefone perdeste muito, muitíssimo tempo de semear.
33
Carlos Drummond de Andrade
Coração orgulhoso, tens pressa de confessar tua derrota
e adiar para outro século a felicidade coletiva.
Aceitas a chuva, a guerra, o desemprego e a injusta distribuição
porque não podes, sozinho, dinamitar a ilha de Manhattan.
Elegia é o nome atribuído a uma forma de composição poética em que se
desenvolve um tema triste. 1938 é o ano que antecede à deflagração da Segunda
Guerra Mundial e é também o ano do primeiro aniversário do Estado Novo.
Portanto, nada havia para ser louvado; pelo contrário, a época é de tristeza.
Nesse poema, como é comum a outros do autor, o eu lírico dirige-se a si
mesmo como se fosse outro, empregando a segunda pessoa do discurso, como
artifício para expor o conflito entre a atitude de consciência e desejo de mudar o
mundo e o sentimento de impotência para realizá-lo. Tal procedimento é esclarecido na última estrofe, no início do primeiro verso: “Coração orgulhoso, tens
pressa de confessar a tua derrota”. Como a identificação só ocorre no fim do
poema, durante todo o texto o “tu” pode estar se referindo a qualquer pessoa
que se encontre presa à alienação e ao conformismo.
Na primeira estrofe, o poeta refere-se ao operário que, sem nenhuma alegria,
contribui para a manutenção de um mundo caduco, sendo capaz, o operário,
de apenas sentir aquilo que é comum a todos os seres, como calor, frio, carência
(provocada pela falta de dinheiro e, portanto, privando-o dos bens necessários
à sobrevivência), fome e desejo sexual.
Na segunda estrofe, como contraste às atitudes do operário, surgem os
“heróis”, que por serem heróis, estão livres dos flagelos do operário. Entretanto, os “heróis”, ante qualquer mudança da natureza, como a neblina, abrem
seus guarda-chuvas de bronze, símbolo de proteção e de luxo, porque são
guarda-chuvas de bronze. Assim, tanto os operários como os heróis parecem
não ter nenhum preparo para enfrentar a realidade.
Na terceira estrofe, a ausência de total consciência aparece representada
pela noite e pelo sono (“e sabes que, dormindo, os problemas te dispensam de
morrer.”). Ainda na segunda estrofe, o “despertar” surge como algo terrível,
porque ele é obrigado a despertar para a Grande Máquina, ou seja, ele desperta
para o mundo capitalista, símbolo do que aprisiona e aliena o sujeito.
Na quarta estrofe, o operário se perde entre os “mortos”, ou seja, entre o que é
incapaz de provocar mudanças, representado por meio de discursos estéreis, como
“o tempo futuro” e “os negócios do espírito”, e pela própria literatura alienante.
Na última estrofe, o amargo sentimento de frustração é devido à incapacidade do Eu de dinamitar a ilha de Manhattan, símbolo do mundo
capitalista.
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Sentimento do mundo
No penúltimo poema do livro, o poeta expõe, em 53 versos e nove estrofes,
a sua percepção do mundo:
Mundo grande
Não, meu coração não é maior que o mundo.
É muito menor.
Nele não cabem nem as minhas dores.
Por isso gosto tanto de me contar.
Por isso me dispo,
por isso me grito,
por isso frequento os jornais, me exponho cruamente nas livrarias:
preciso de todos.
Sim, meu coração é muito pequeno.
Só agora vejo que nele não cabem os homens.
Os homens estão cá fora, estão na rua.
A rua é enorme. Maior, muito maior do que eu esperava.
Mas também a rua não cabe todos os homens.
A rua é menor que o mundo.
O mundo é grande.
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Tu sabes como é grande o mundo.
Conheces os navios que levam petróleo e livros, carne e algodão.
Viste as diferentes cores dos homens,
as diferentes dores dos homens,
sabes como é difícil sofrer tudo isso, amontoar tudo isso
num só peito de homem... sem que ele estale.
Fecha os olhos e esquece.
Escuta a água nos vidros,
Tão calma. Não anuncia nada.
Entretanto escorre nas mãos
tão calma! Vai inundando tudo...
Renascerão as cidades submersas?
Os homens submersos – voltarão?
Meu coração não sabe.
35
Carlos Drummond de Andrade
Estúpido, ridículo e frágil é meu coração.
Só agora descubro
Como é triste ignorar certas coisas.
(Na solidão de indivíduo
desaprendi a linguagem
com que os homens se comunicam.)
Outrora escutei os anjos,
as sonatas, os poemas, as confissões patéticas.
Nunca escutei voz de gente.
Em verdade sou muito pobre.
Outrora viajei
países imaginários, fáceis de habitar,
ilhas sem problemas, não obstante exaustivas e convocando ao suicídio.
Meus amigos foram às ilhas.
Ilhas perdem o homem.
Entretanto alguns se salvaram e
trouxeram a notícia
de que o mundo, o grande mundo está crescendo todos os dias,
entre o fogo e o amor.
Então meu coração também pode crescer.
Entre o amor e o fogo,
entre a vida e o fogo,
meu coração cresce dez metros e explode
– Ó vida futura! nós te criaremos.
Inicialmente, o eu lírico expõe as certezas de suas limitações, afirmando
que o seu coração não é maior do que o mundo. O conflito entre Eu e o Mundo
aparece de forma explícita e o poeta se reconhece incapaz de sentir as dores
do mundo. As próprias dores ultrapassam o limite de sua subjetividade e, por
isso, ele necessita do outro (“preciso de todos”) para dividir a sua dor.
O contraste entre o mundo grande e o coração pequeno revela a dificuldade de relacionamento entre eles. A difícil relação é produto de um Eu
enclausurado, fechado e que, por isso, desaprendeu a linguagem dos homens:
36
Sentimento do mundo
“(Na solidão de indivíduo / desaprendi a linguagem / com que os homens
se comunicam.)”. Mas também é produto de mundo desordenado, “torto”,
“caduco”, que cresce com as injustiças, o que faz com seja difícil “...amontoar
tudo isso / num só peito de homem...”.
As desordens do mundo se ampliam e o sentimento do mundo do poeta
também; dessa contradição nasce, então, o desejo de refazer o mundo exterior e
o mundo interior: “meu coração cresce dez metros e explode. / – Ó vida futura!
nós te criaremos”. A destruição do mundo “caduco” leva também à destruição
de uma consciência marcada pela culpa e pelo sentimento de impotência ante a
realidade exterior. A vida futura torna-se uma projeção do desejo de uma vida
sem culpa e sem injustiças; nessa vida futura utópica, o Eu e o Mundo viveriam
uma fase gloriosa de contradições extintas.
Em Noturno à janela do apartamento, o poeta contempla, à noite, “um
mundo enorme e parado”. O conflito do Eu com o Mundo aparece na metáfora “silencioso cubo de treva”, que representa tanto o apartamento como o
interior do poeta; daí o conflito, pois ao pequeno e “silencioso cubo de treva”
contrapõe-se um “mundo enorme e parado”. Fechado em seu apartamento e
em seu silêncio (“A alma severa se interroga / e logo se cala.”), o poeta não se
envolve com o mundo, apenas recolhe-se ao sentimento de tristeza, pois não
tem “Nenhum pensamento de infância, / nem saudade nem vão propósito.”
Entre o Eu e o Mundo há apenas a noite que os envolve. O poeta sente o mundo
como algo enorme e parado.
Noturno à janela do apartamento
Silencioso cubo de treva:
um salto, e seria a morte.
Mas é apenas, sob o vento,
a integração da noite.
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Nenhum pensamento de infância,
nem saudade nem vão propósito.
Somente a contemplação
de um mundo enorme e parado.
A soma da vida é nula.
Mas a vida tem tal poder:
na escuridão absoluta,
com líquido, circula.
37
Carlos Drummond de Andrade
Suicídio, riqueza, ciência...
A alma severa se interroga
e logo se cala. E não sabe
se é noite, mar ou distância.
Triste farol da Ilha Rasa
COMENTÁRIO CRÍTICO
Sentimento do mundo é um livro que oferece ao leitor a possibilidade de
uma tomada de consciência sobre as ligações entre o que chamamos EU e o que
chamamos MUNDO. Um e outro não se isolam. O sujeito traz consigo, como
heranças, quer ele goste, quer ele não goste, quer ele saiba, quer ele não saiba,
os reflexos do seu mundo de origem: seu jeito de falar, seus valores morais, seu
silêncio, seus medos, sua esperança, seu jeito de querer bem. Tudo isso o compõe
e tudo isso o faz sentir a realidade, o mundo em que está inserido. Dito de outra
maneira, ele tem a sua forma pessoal de sentir o mundo.
Carlos Drummond de Andrade expõe ao leitor a forma como ele construiu
sua percepção do mundo, daquilo que está fora dele próprio. Ao mesmo tempo,
deixa transparecer ao leitor que o que está fora também está dentro, porque
cada ser humano que compõe o mundo possui problemas semelhantes. Cada
ser humano é obrigado, pouco a pouco, a desprender-se de seu mundo interior
para descobrir o mundo exterior. Nesse processo, mais cedo ou mais tarde, as
pessoas acabam por descobrir que a esperança de melhorar o mundo é também
a esperança de promover uma melhora de si próprio.
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Sentimento do mundo
5.Exercícios
1.
Sobre Sentimento do mundo, de Carlos Drummond
de Andrade, é correto afirmar:
a)Trata-se de uma obra exclusivamente subjetiva, apresentando uma visão idealizada do
Brasil.
b)“O sentimento de insuficiência do eu, entregue a si mesmo, leva-o a querer completar-se
pela adesão ao próximo, substituindo os problemas pessoais pelos problemas
de todos.”
c)A obra não apresenta o problema da incomunicabilidade, tanto no plano da
existência quanto no plano da criação artística.
d)Trata-se do primeiro livro do poeta escrito em conformidade com as novas
técnicas modernistas.
e)No livro, o universo interior do poeta não se relaciona com o mundo exterior,
pois o livro focaliza apenas os problemas sociais.
Texto para as questões 2 e 3.
Mãos dadas
Não serei o poeta de um mundo caduco.
Também não cantarei o mundo futuro.
Estou preso à vida e olho meus companheiros.
Estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças.
Entre eles, considero a enorme realidade.
O presente é tão grande, não nos afastemos.
Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas.
Não serei o cantor de uma mulher, de uma história,
não direi os suspiros ao anoitecer, a paisagem vista da janela,
não distribuirei entorpecentes ou cartas de suicida,
não fugirei para as ilhas nem serei raptado por serafins.
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O tempo é a minha matéria, o tempo presente, os homens presentes,
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a vida presente.
Carlos Drummond de Andrade
2. No primeiro verso do poema, o adjetivo “caduco” significa, no contexto, que o
mundo:
a)é feito de justiças e estas estão se perdendo.
b)está deixando de ser um lugar tranquilo.
c)é um lugar velho e sem finalidade.
d)é um lugar onde as normas não têm mais razão de ser.
e)é um lugar que deve manter as normas para adquirir sentido.
3.
No contexto da obra Sentimento do mundo, o poema “Mãos dadas” representa:
a) a impossibilidade de contato do poeta com os seus semelhantes.
b) a normalidade do mundo e a solidariedade entre os homens.
c) uma reação do poeta à ideia de um mundo “caduco” e o desejo de sair do seu
universo interior para se completar com o próximo.
d)a ausência de consciência do poeta dos problemas sociais, uma vez que ele
deseja apenas falar sobre a sua solidão.
e) a ausência de desejo de transformar o mundo, já que isso implicaria numa
transformação do “eu” do poeta.
Texto para as questões 4 e 5.
Tenho apenas duas mãos
e o sentimento do mundo,
mas estou cheio de escravos,
minhas lembranças escorrem
e o corpo transige
na confluência do amor.
Quando me levantar, o céu
estará morto e saqueado,
eu mesmo estarei morto,
morto meu desejo, morto
o pântano sem acordes.
Os camaradas não disseram
que havia uma guerra
40
Sentimento do mundo
e era necessário
trazer fogo e alimento.
Sinto-me disperso,
anterior a fronteiras,
humildemente vos peço
que me perdoeis.
Quando os corpos passarem,
eu ficarei sozinho
desfiando a recordação
do sineiro, da viúva e do microcopista
que habitavam a barraca
e não foram encontrados
ao amanhecer.
Esse amanhecer
mais noite que a noite.
4.
Na primeira estrofe do poema, as duas mãos simbolizam:
a) a incapacidade do poeta de sentir o mundo.
b) a consciência do poeta que se estende em direção ao outro, no intuito de sentir
o mundo.
c) a própria poesia e o mecanismo da criação poética.
d)o sentimento de culpa do poeta, devido à sua incapacidade de compreender
seu semelhante.
e) o desejo do poeta de afastar-se do seu semelhante.
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5. Sobre o poema, pode-se afirmar que o eu lírico:
a)sente-se preparado para auxiliar os homens.
b)pede perdão ao seus semelhantes porque não trouxe armas para o combate.
c)pede perdão aos seus semelhantes porque não se sente capacitado para auxiliá-los.
d)acredita na construção de um mundo melhor, o que pode ser confirmado
pelos dois versos finais do poema.
e)sente que os homens não estão preparados para auxiliá-lo.
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Carlos Drummond de Andrade
Texto para a questão 6
A noite dissolve os homens
A noite desceu. Que noite!
Já não enxergo meus irmãos.
E nem tampouco os rumores
que outrora me perturbavam.
A noite desceu. Nas casas,
nas ruas onde se combate,
nos campos desfalecidos,
a noite espalhou o medo
e a total incompreensão.
A noite caiu. Tremenda,
sem esperança... Os suspiros
acusam a presença negra
que paralisa os guerreiros.
E o amor não abre caminho
Na noite. A noite é mortal,
completa, sem reticências,
a noite dissolve os homens,
diz que é inútil sofrer,
a noite dissolve as pátrias,
apagou os almirantes
cintilantes! nas suas fardas.
A noite anoiteceu tudo...
O mundo não tem remédio...
Os suicidas tinham razão.
Aurora,
entretanto eu te diviso, ainda tímida,
inexperiente das luzes que vais acender
e dos bens que repartirás com os homens.
Sob o úmido véu de raivas, queixas e humilhações,
adivinho-te que sobes, vapor róseo, expulsando a treva noturna.
O triste mundo fascista se decompõe ao contato de teus dedos,
42
Sentimento do mundo
teus dedos frios, que ainda se não modelaram
mas que avançam na escuridão como um sinal verde e peremptório.
Minha fadiga encontrará em ti o seu ermo,
Minha carne estremece na certeza de tua vinda.
O suor é um óleo suave, as mãos dos sobreviventes se enlaçam,
Os corpos hirtos adquirem uma fluidez,
uma inocência, um perdão simples e macio...
Havemos de amanhecer. O mundo
se tinge com tintas da antemanhã
e o sangue que escorre é doce, de tão necessário
para cobrir tuas pálidas faces, aurora.
6. O poema “A noite dissolve os homens” pode ser dividido em dois segmentos.
a) Quais são os dois segmentos? Indique o verso que os inicia.
b) Qual a visão do poeta em cada segmento?
Texto para as questões 7 e 8.
Poema da necessidade
É preciso casar João,
é preciso suportar Antônio,
é preciso odiar Melquíades,
é preciso substituir nós todos.
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É preciso salvar o país,
é preciso crer em Deus,
é preciso pagar as dívidas,
É preciso comprar um rádio,
É preciso esquecer fulana.
É preciso estudar volapuque,
é preciso estar sempre bêbedo,
é preciso ler Baudelaire,
é preciso colher as flores
43
Carlos Drummond de Andrade
de que rezam velhos autores.
É preciso viver com os homens,
É preciso não assassiná-los,
é preciso ter mãos pálidas
e anunciar o FIM DO MUNDO.
7.
No poema anterior, que nome recebe a figura de linguagem que repete a mesma
palavra ou expressão no início de cada verso?
a) Anáfora
b) Metáfora
c) Metonímia
d)Pleonasmo
e)Hipérbole
8.
Tomando como referência a leitura da obra Sentimento do mundo, qual a explicação
cabível ao último verso do “Poema da necessidade”?
Texto para as questões 9 e 10.
Os ombros suportam o mundo
Chega um tempo em que não se diz mais: meu Deus.
Tempo de absoluta depuração.
Tempo em que não se diz mais: meu amor.
Porque o amor resultou inútil.
E os olhos não choram.
E as mãos tecem apenas o rude trabalho.
E o coração está seco.
Em vão as mulheres batem à porta, não abrirás.
Ficaste sozinho, a luz apagou-se,
mas na sombra teus olhos resplandecem enormes.
És todo certeza, já não sabes sofrer.
E nada esperas de teus inimigos.
Pouco importa venha a velhice, que é a velhice?
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Sentimento do mundo
Teus ombros suportam o mundo
e ele não pesa mais que a mão de uma criança.
As guerras, as fomes, as discussões dentro dos edifícios
provam apenas que a vida prossegue
e nem todos se libertaram ainda.
Alguns, achando bárbaro o espetáculo,
preferiram (os delicados) morrer.
Chegou um tempo em que não adianta morrer.
Chegou um tempo em que a vida é uma ordem.
A vida apenas, sem mistificação.
9. Que relação pode ser estabelecida entre o primeiro e o último verso do poema?
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10.
Dê uma explicação para o título do poema.
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Carlos Drummond de Andrade
gabarito
1. B
2. D
4. B
5. B
3. C
8. Em “e anunciar o FIM DO MUNDO”, último
verso do “Poema da necessidade”, o mundo
que o poeta deseja anunciar o fim é o mundo
das guerras e das injustiças sociais, o mundo
do isolamento e da privação. Não se trata,
portanto, de uma visão pessimista, mas de
um desejo de mudar as regras que tornam
o mundo “caduco”, como dirá o poeta em
“Mãos dadas”, outro poema do livro.
9. Pode-se estabelecer uma relação de afinidade, pois o primeiro verso “Chega um tempo
em que não se diz mais: Meu Deus” revela
que nada mais surpreende o poeta, nada
mais pode motivá-lo ou desmotivá-lo, e o
último verso “A vida apenas, sem mistificação” apresenta a ideia da vida como algo
mecânico, artificial e sem encantos, sem
surpresas e sem motivação.
10. Assim como na mitologia grega Atlas foi
condenado por Zeus a carregar o mundo
nas costas, o poeta sente-se condenado a
carregar o mundo nos seus ombros. A vida,
sendo mecânica e despojada de prazeres,
torna-se apenas uma obrigação, um fardo
que o ser humano está condenado a carregar
sobre seus ombros.
6.
a) O dois segmentos são compostos pela contraposição entre a noite e a aurora.
O primeiro segmento começa com o primeiro verso da primeira estrofe: “A Noite
desceu! Que noite!”, enquanto o segundo
segmento começa com o primeiro verso da
segunda estrofe: “Aurora”
b) No primeiro segmento, o poeta manifesta
uma visão pessimista, já que a “noite”,
ou seja, a guerra, a política totalitária do
fascismo e sua repressão impossibilitam a
liberdade do homem. A “noite” pode ser
vista como a privação da luz, como metáfora
da ausência de lucidez e de liberdade.
No segundo segmento, o poeta manifesta
uma visão esperançosa em um mundo
melhor, mundo que virá com a “aurora”,
com a queda dos regimes totalitários e com
o resgate da liberdade
7. A
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