Commedia dell`arte e a explosão do popular nos palcos
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Commedia dell`arte e a explosão do popular nos palcos
LABORATÓRIO – PORTAL TEATRO SEM CORTINAS HISTÓRIA DO TEATRO MUNDIAL – COMMEDIA DELL’ARTE Título: Commedia dell’arte e a explosão do popular nos palcos Autor: Alexandre Mate Revisão: Diego Cardoso Arquivo: 03.HTM.0010 1 Laboratório-Portal Teatro Sem Cortinas Commedia dell’arte e a explosão do popular nos palcos 03.HTM.0010 Commedia dell’arte e a explosão do popular nos palcos O fato é que a peça é um tumulto. (...) A obra que se apresenta ao público, qualquer que seja ela, é o resultado de duas derrotas: a primeira, porque o artista jamais conseguirá se equiparar à mobilidade, à vida, à riqueza, à contínua invenção da realidade; a segunda, porque depois de inventar sua obra – que não é senão uma tentativa de resposta domada, clarificada e ordenada ao que o mundo contém de feroz, de disperso e selvagem – nunca consegue ele imprimir na obra tudo o que desejou e entreviu no momento de criação. Introdução ao Santo e a porca. Ariano SUASSUNA. Ao estudar e analisar a obra de pesquisadores sérios e preparados (...) constatei que o desdém devotado à Commedia dell’Arte deve-se em grande parte à ignorância generalizada. É fato notório a presunção de muitos profissionais de teatro ao emitir juízos e argumentar a respeito dos mais diversos assuntos por ter ouvido falar, vomitando lugares-comuns de modo arrogante sem verificar, investigar, mastigar e digerir por meio da prática. Emitem ininterruptamente sentenças definitivas sobre qualquer argumento teatral. É um comportamento estúpido como é estúpido o fato de desconhecer as próprias raízes históricas, étnicas, antropológicas. Manual mínimo do ator. Dario FO. Poucas vezes, ao longo do chamado processo civilizador, a comédia constitui-se em paradigma e em forma hegemônica nos palcos (principalmente pelo fato de produções populares não terem, desde priscas eras – seus registros figurando dos compêndios de história). Um desses raros momentos – pelo menos a partir da Idade Moderna – pode ser tributado aos commedianti dell’arte (também conhecida com o nome de commedia popolare) que – de modo diferenciado a tudo que até então havia sido feito, já no início do século XVI – organizaram-se em companhias teatrais, com registro em cartório.1 Tal atitude 1 De acordo com a documentação histórica existente, a primeira companhia de Commedia dell’arte 2 Laboratório-Portal Teatro Sem Cortinas Commedia dell’arte e a explosão do popular nos palcos 03.HTM.0010 imprime às companhias e a seus detentores e/ou sujeitos a condição de profissionais: ou seja, direito de cobrar pelos seus espetáculos. Dessa forma, ou a partir dessa caracterização, tem-se uma das conotações a partir da qual pode-se entender o sentido etimológico do nome de ‘batismo’ desses artistas. Outros nomes com os quais são conhecidos ou foram designados são: commedia all’improviso, commedia all’soggetto, commedia italiana, commedia di maschere, commedia di zanni. Desse modo, e a partir da adoção desses nomes, podem ser tiradas as principais particularidades desses artistas, isto é: - dell’arte – dos que sabem, dos que conhecem, do ofício por extensão: dos profissionais. - all’improviso – oposição contextualizada à commedia sostenuta ou regolare, desenvolvida na Itália, do século XVI. - all’soggeto – comédias fundamentadas na improvisação, a partir de um roteiro básico (também chamado de canovaccio: palavra originada, provavelmente, do francês caneva). - di maschere – comédias fundamentadas em tipos fixos (tipi fissi), derivada dos espetáculos ligados à comédia ou fábula Atelana. - di zanni - por tratar-se de uma das ‘máscaras’ mais tradicionais e importantes desse tipo de comédia.2 Para além das observações apresentadas acima – em processo de confirmação às da epígrafe de M. BERTHOLD – pode-se dizer que a commedia dell’arte constituiu-se na teve seu registro em 1522, por um ator chamado Francesco dei Nobili e cujo apelido era Cherea. Um outro contrato registrado em Pádua, a 25 de fevereiro de 1545, por oito atores, especifica que o chefe do grupo é o sr. Maphio e que o dinheiro arrecadado deveria ser dividido em partes iguais. De todos os grupos registrados depois desta data, parece que o mais importante foi o dos Gelosi (Ciumentos), cuja atividade é documentada desde 1568. 2 Segundo as diversas fontes bibliográficas consultadas, o nome Zanni parecia corresponder a uma espécie de corruptela dos nomes Gianni ou Giovanni, bastante populares no século XV. Dario FO (1999,p.74) e ss. apresenta a genealogia plausível da personagem, afirmando, dentre outras coisas: “É preciso lembrar, em primeiro lugar, a origem histórica e social do Zanni. No século XV, Zanni era o apelido dado pelos venezianos aos camponeses do vale do rio Pó e, particularmente, àqueles dos vales da região de Bérgamo. (...) o Zanni está ligado a um momento fundamental da história de Veneza. Foi aí que nos primeiros anos do século XVI, (...)Eram vinte mil pessoas invadindo Veneza, então uma cidade com uma população pouco superior a cem mil almas. Obviamente, esses desesperados tornaram-se personagens marcantes, modificando todo o ambiente reinante. Fazem explodir uma onda de ressentimento e desprezo, transformando-se em alvo de ironias e gozações, ou até mais do que isso. Viram os bodes expiatórios de todo mau humor, como acontece com todas as minorias indefesas em evidência: falam mal a língua da cidade; praticam toda sorte de disparates; possuem uma fome descomunal e morrem literalmente de fome; suas mulheres aceitam os trabalhos mais humildes e humilhantes, praticando até mesmo a prostituição (o mercado de trabalho de servas já estava saturado)”. 3 Laboratório-Portal Teatro Sem Cortinas Commedia dell’arte e a explosão do popular nos palcos 03.HTM.0010 produção apresentada por atores profissionais, retomando e recuperando as tradições cômico-populares desenvolvidas desde a Antigüidade clássica greco-romana: fundamentalmente àquelas desenvolvidas nas atelanas e nas pantomimas e cujas características fundamentais foram a organização do conjunto em torno do conceito de personagem fixa e a ação parcialmente improvisada. Nesse particular, vale destacar que a aludida improvisação dos comediantes alicerçava-se em repertório já dominado, conhecido e largamente experimentado: mas apresentado de tal modo e a partir de um dinamismo tão intenso transparecendo ao público que os atores criavam sempre no aqui-agora. Atores (homens de arte) capazes de desenvolver seu trabalho em qualquer tipo de gênero, tendo em vista seu esmero, empenho e trabalho com o ofício do teatro desde a mais tenra idade (por conta do lastro familiar), os ‘comediantes de arte’ escolheram o trabalho com a farsa. Dessa forma, enquanto característica mais específica dessa produção, pode-se dizer que as "commedias" eram espetáculos montados através do processo de criação coletiva, com base num soggetto (argumento), elaborado no scenario (sequência de cenas) ou canovaccio (roteiro básico ou entrecho), repleto de lazzi e cujo objetivo maior constituíase no virtuosismo do trabalho interpretativo, enfatizando a teatralidade. Desse modo, o lazzo constituía-se numa espécie de aparte, fundamentado em um certo ornamento gestual ou vocal. Os lazzi eram apresentados quase que exclusivamente pelos criados ou Zanni. Com relação aos canovacci, Ruggero Jacobbi (Revista Dionysos. Rio de Janeiro: MEC/SNT, p.25) afirma: Os cenários – os canovacci – da commedia dell’arte, não são textos. A peça no cenário não é representada senão por um catálogo, mais ou menos árido de ações, que não contém nenhuma expressão de sentimento, e sim apenas, uma seqüência de situações, que deverão, depois, no palco, inspirar ao ator as relativas expressões da alma. Os canovacci não chegam a ser nem a fachada do edifício, pois eles constituem apenas os alicerces. (...) Por isso a leitura dos cenários requer mais do que qualquer outra, a colaboração mental do leitor, estou tentado a dizer, do espectador. Para esta colaboração é preciso uma base, um guia, que o homem moderno pode encontrar na observação de certos atores da atualidade: atores de circo ou de revista, ou mesmo grandes comediantes, fiéis à técnica da improvisação. Assim, a aludida improvisação constituía-se, fundamentalmente no início dessa produção, na percepção do ator mais experiente em captar os rumores no público, nos momentos certos, e apresentar um lazzo certeiro. Este tipo de ‘tirada’ obrigava os outros atores a improvisar com o ‘dono’ da primeira ‘deixa’ ou ‘tirada cômica’. Nessa perspectiva, os espetáculos propunham-se a oferecer aos atores uma determinada situação dramática 4 Laboratório-Portal Teatro Sem Cortinas Commedia dell’arte e a explosão do popular nos palcos 03.HTM.0010 para colocar em relevo a inventividade (invenzione) e o já citado virtuosismo (altamente especializado) do ator. A respeito desta última observação: Via-se a gradual tomada de posição profissional por parte dos cômicos, que declararam prescindir das comédias escritas. O tempo ideal de teatro, pensavam os cômicos, não corresponde ao tempo criado pelo autor e o retomado pelos atores para comunicá-lo à platéia, mas é um tempo que corresponde ao acontecimento cênico, ao desenvolvimento concreto de um fato que não tem passado e tem um futuro ligado apenas a sua suposta repetição – nunca a mesma – atribuída àqueles que, unicamente, têm a possibilidade de renovação: os atores. (1965) Ao comentar sobre este assunto, Dario FO (1999, p.17-8), afirma: Os cômicos possuíam uma bagagem incalculável de situações, diálogos, gags, lengalengas, ladainhas, todas arquivadas na memória, as quais utilizavam no momento certo, com grande sentido de timing, dando a impressão de estar improvisando a cada instante. Era uma bagagem construída e assimilada com a prática de infinitas réplicas, de diferentes espetáculos, situações acontecidas também no contato direto com o público, mas a grande maioria era, certamente, fruto de exercício e estudo. Os cômicos aprendiam dezenas de ‘tiradas’ sobre os vários temas relacionados com o papel ou a máscara que interpretavam. (...) Todas essas ‘tiradas’ poderiam ser adaptadas a situações diversas, inclusive sendo deslocadas ou recitadas em seqüência em um diálogo. (...) A partir de uma seqüência (...) é possível fazer no mínimo dez variações deslocando os tempos e a progressão. E os cômicos eram realmente mestres nesse gênero de montagens. Assim, o jogo dos encaixes dessas reviravoltas podia ser executado ao longo de todo um argumento”. As companhias de commedianti, normalmente familiares, eram constituídas por um diretor – capo comico ou concertatore e um conjunto de sete a dez atores. Esse número referia-se ao que se necessitava para atuação dos chamados tipos fixos exigidos pelas peças. O grande sucesso dessas companhias se deve fundamentalmente à tese segundo a qual o teatro erudito – produzido por grupos de dilettanti durante o Renascimento italiano – teria sido um movimento essencialmente desvinculado das raízes populares: assim, as companhias de commedia dell’arte escolhiam seu repertório com cuidado e a partir do critério básico de agradar ao povo. Tipi fissi: caraterísticas e genealogia 5 Laboratório-Portal Teatro Sem Cortinas Commedia dell’arte e a explosão do popular nos palcos 03.HTM.0010 Esta minha pobre vida, só encontrou fundamento na Commedia dell’Arte, Pois é nela que reconheço velhos companheiros Lambuzo meus beiços na criança de Arlecchino Cobiço a gostosa Franceschina Me apaixono por Flaminia Desfruto o prazeroso tilintar de moedas no ‘saquinho’ de Pantalone Me transformo num gigante, nas asas da imaginação de Capitano Spavento Discurso e rediscurso minha vida na verborréia de Dottore Gratiano Sou safado, preguiçoso e poeta na boca de Pulcinella Sou um Clown Sou um Louco, um Fool, um Bobo da Corte Descubro princípios. Crio meus princípios Sou o princípio, o início, o instinto harmonizado Gestos leves, fluentes e definidos Errou? Improvisa! Não errou? Improvisa também! É nela, na Commedia dell’Arte, que recrio minha vida E é através dela que retorno ao ‘teatro de garagem’ de meus tempos de infância Alegria, prazer, tesão de fazer teatro A Commedia dell’Arte é o próprio espírito encarnado nestes pobres corpos de carne e osso. Mauro ZANATTA. (sem identificação de fonte bibliográfica). As personagens da commedia dell’arte – durante toda sua longa existência, que atingiu mais de dois séculos – eram as mesmas, espécies de arquétipos, cujos nomes poderiam mudar, mas sempre divididas em três categorias: Vecchi (velhos) - Pantalone (Pantaleão) – avarento e teimoso; mulherengo e ‘fissurado por traseiros’ de jovens moças; viúvo, normalmente pai do mocinho com o qual disputava o amor da mocinha; falava o dialeto3 de Veneza. Usava uma máscara com o nariz adunco e bastante 3 Com relação aos diferentes dialetos usados pelas personagens, parece que tal expediente deve-se ao surgimento das formas populares de teatro: mariazi (cenas campesinas, do século XVI) e à commediolla buffa, que eram apresentadas nas ruas e praças de Florença. Ainda com relação ao assunto, Dario FO (1999, p.97) e ss. afirma que os diferentes dialetos usados pelos comediantes pautavam-se no Grammelot. “é uma palavra de origem francesa, inventada pelos cômicos dell’arte e italianizada pelos venezianos, que pronunciavam gramlotto. Apesar de não possuir um significado intrínseco, sua mistura de sons consegue sugerir o sentido do discurso. Tratava-se, portanto, de um jogo onomatopéico, articulado com arbitrariedade, mas capaz de transmitir, com o acréscimo de gestos, ritmos e sonoridade particulares, um discurso completo. 6 Laboratório-Portal Teatro Sem Cortinas Commedia dell’arte e a explosão do popular nos palcos 03.HTM.0010 fálico, barba grisalha, calça de malha e meias vermelhas, chinelos e casaco preto (até a altura do tornozelo) e pequena bolsa na cintura. Duas das etimologias possíveis para a personagem são: (hipotética) Pantalone: como patrono de Veneza e como um tipo de calça, usada pelos mercadores (etimologia mais segura). A corruptela de Pantalone, devese, provavelmente, por efeito cômico. Trata-se da máscara mais antiga e bastante conhecida em Veneza, onde nasceu, cujo nome era messer Pantalone dei Bisognosi (senhor Pantaleão dos Necessitados). Também conhecido como: Pancrazio, Bernardone, il Barone, Magnifico4 etc. Tipos próximos a ele – Pandolfo, Bartolo, Gerontio. Descendentes – Gaultier, Gargille, Orgonte, Gorgibus, Harpagon (de Molière). Bartholo (de Beaumarchais). - Dottore (Doutor) – viúvo; quando nasceu não chorou: disse uma frase em latim e continuou falando um latim ‘macarrônico’ ao longo da vida (falso saber); pedante. Usa uma roupa severa em branco e preto: o que contrastava com seus erros, daí o cômico. Sempre conseguia ser enganado pelos criados e, normalmente, era o pai da mocinha. Falava o dialeto de Bolonha, na medida em que, historicamente, era a cidade da Itália a ter criado a primeira universidade. A máscara dessa personagem cobria testa e nariz (origem provável Dessa maneira, é possível improvisar – ou melhor, articular – inúmeros tipos de grammelots, referentes a diversas estruturas vernaculares. Para contar um história em grammelot é necessário possuir uma bagagem dos estereótipos sonoros e tonais mais evidentes de um idioma, além de uma clara consciência de seus ritmos e cadências”. Com relação à gênese e ao desenvolvimento histórico do grammelot e o fato de os cômicos dell’arte começarem a farfalhar e a tagarelar em outras línguas, Dario FO afirma a ‘diáspora’ deles: “O grande êxodo dos cômicos dell ‘arte aconteceu no século da Contra-Reforma, momento em que se decretou o desmantelamento de todos os espaços teatrais. Em 1697, o papa Inocêncio XII, pressionado pelos setores mais retrógrados da burguesia e dos expoentes máximos do clero, ordenou a destruição do teatro de Tordinona, cujo palco, segundo os moralistas, tinha registrado o maior número de apresentações consideradas obscenas. (...) Durante a Contra-Reforma, o cardeal Carlo Borromeo (...) dedicou-se a uma prolífica ação de redenção (...) fazendo, por exemplo, uma nítida distinção entre arte – força máxima de educação espiritual – e teatro – manifestação do profano e da vaidade. (...) ‘Preocupados em extirpar a erva daninha, fomos pródigos em mandar à fogueira os textos com discursos infames para arrancá-los da memória dos homens, assim como não hesitamos em perseguir os autores desses textos divulgados por meio das imprensas. Porém, enquanto dormíamos, evidentemente, o demônio agia com astúcia renovada. Penetra muito mais na alma o que nos olhos podem ver do que aquilo que se pode ler nos livros do gênero infame! Fere de modo muito mais grave a mente dos jovens a palavra dita com a voz e o gesto apropriados do que a palavra morta impressa nos livros! Por intermédio dos cômicos, o demônio espalha o seu veneno”. Completando a informação, em estilo característico, complementa o autor: “Fora da Itália, a hipérbole fantástica do gênero se enriqueceu incrivelmente. Paradoxalmente, precisamos admitir que graças à Contra-Reforma desenvolveu-se um teatro novo e revolucionário”. 4 Dario FO (1999, p.112-16). 7 Laboratório-Portal Teatro Sem Cortinas Commedia dell’arte e a explosão do popular nos palcos 03.HTM.0010 em personagens que existiam), além disso tinha, também, uma mancha de vinho no rosto (máscara). Outros dos nomes com os quais era chamado, foram: Graziano, Balanzone (que vem de balança) etc. Innamorati (casal de enamorados/amorosos – jovens) Talvez tenha sido a última categoria de personagens a aparecer, cabendo ao par a função de acrescentar ao espetáculo o elemento romanesco, herdado da Idade Média. Não usavam máscaras, cantavam e dançavam bem e falavam no dialeto da Toscana. Os principais nomes foram: Lelio, Florindo, Ottavio, Fabrizio, para os jovens; e, para as jovens: Rosaura, Clelia, Angelica, Flaminia etc. Zanni (criados) Etimologicamente, parece vir de Gianni ou de Giovanni, que eram os nomes dados aos criados em Veneza, durante o Renascimento) - Arlechino (Arlequim) – possuidor de uma incrível destreza corporal; representava o lado menos esperto dos criados; motivado pela fome; disputava com outro criado o amor da criada; nasceu em Bérgamo baixa (cidade antiga); usava roupa constituída por losangos verdes, vermelhos e azuis; cabeça raspada e coberta por chapéu preto; usava meia máscara preta. Descendentes de Arlequim – Trufaldino e Trivelino. O termo Arlecchino nasce de um personagem medieval: Hellequin ou Helleken, que se torna, posteriormente, Harlek-Arlekin. Um mesmo demônio também citado por Dante: Ellechino. Na tradição popular francesa dos séculos XIII e XIV, esse personagem é descrito como um endemoninhado torpe, arrogante – como deve ser todo diabo que se preza – e, principalmente, zombeteiro, exímio elaborador de troças e trapaças. O personagem cruza-se também com o homo selvaticus ou sebasticus, um gênero de mammuttones recoberto de pêlos ou folhas, segundo a região ou estação. É em geral tosco, ingênuo e desprovido de recursos, mas outras vezes é esperto como um 8 Laboratório-Portal Teatro Sem Cortinas Commedia dell’arte e a explosão do popular nos palcos 03.HTM.0010 macaco, ágil como um gato, violento como um urso enfurecido. Juntando e encaixando todos esses elementos, obtemos o Arlecchino de Tristano Martinelli, um tipo de fauno tagarela, exprimindo-se na língua da Lombardia do Zanni, permeada por expressões do argot francês. O primeiro Arlecchino não usa máscara, mas tem o rosto pintado de preto com garatujas avermelhadas. Somente em uma época posterior, surgirá em público com uma máscara de couro marrom, apresentando a caratonha de um macaco antropomorfo, com sombrancelhas vistosas e uma grande protuberância na testa. O primeiro figurino foi confeccionado em tela rústica com fundo branco, salpicado de silhuetas cortadas em forma de folhas de diversas cores: verde, ocre, vermelho e marrom. É evidente a referência ao homo selvaticus. Os losangos e os remendos multicoloridos vão aparecer somente sessenta anos depois. (Dario FO,1999, p.80-1) - Brighella (Brighela – etm. briga, querela, disputa) é a mais inquieta de todas as personagens da commedia dell’arte; nascido em Bérgamo alta (cidade nova): disputava com Arlequim, e normalmente conseguia, o amor da criada; mais esperto dos criados, com grande argúcia e inteligência; gostava muito dos portos; as mulheres tinham medo dele; muita destreza corporal, sendo que sua agilidade aproximava-o ao gato ou a raposa; tinha olhos espertos; nas brigas provocava ao extremo e na hora “H” sempre fugia da raia, se acuado matava; usava roupa verde e branca, com capa presa ao ombro esquerdo. A máscara era de cor verde, olhos cínicos, nariz pontudo, lábios grossos e sensuais; às vezes tinha um bigodinho fino virado nas pontas. Seus ascendentes Mezzetino, Scapino, Bagatino; descendentes – Turlupino, Sganarello, Frontino, Mascarillo, Figaro. - Pulchinella (Polichinelo) – muito lento na movimentação; não tem deformação social; camponês, nascido em Nápolis; parece tolo, mas é sagaz; corcunda e o mais vulgar dos criados. Às vezes aparece como pequeno proprietário, dono de taberna usa um grande capuz e tem a máscara com nariz bastante adunco. Ele tem dois pais: Maccus (da comédia Atelana) cuja especialidade eram os pássaros e os galináceos, com o apelido de Pullus (galinacius) e Buccus menos grosseiro ao falar. Ascendente: provavelmente os Dossenus; Correlatos: Cucurucu, Sitonno, Meia Pataca, Birrichino; Descendentes: Punch, Jack e Pudding (na Inglaterra); Hanswurst (Alemanha); 9 Laboratório-Portal Teatro Sem Cortinas Commedia dell’arte e a explosão do popular nos palcos 03.HTM.0010 Tonellgay (na Holanda); Don Cristobal (na Espanha) Segundo Dario FO (1999, p.86), Pulcinella: “o corcunda branco” veio à luz entre os séculos XIII e XIV, tese sustentada por diversos autores. Outros garantem que sua origem é muito anterior, remontando ao teatro cômico romano, isto é, às farsas atelanas e fesceninas. (...) Pulcinella, porém, é também a máscara da qual encontramos fac-símiles em todo o Mediterrâneo: o Karakochis (datado do século III d.C.) é uma máscara turco-grega, que possui o mesmo semblante do Pulcinella, com a mesma corcunda, mesma agressividade, mesmo gosto pela mentira e pelo paradoxo. Sem dúvida, a arte de se virar para sobreviver foi inventada por Pulcinella. (...) Freqüentemente, Pulcinella tem uma ligação com Arlecchino. Esses dois galhofeiros, muitas vezes, estão ocupados em roubar o papel um do outro. Em uma mesma cena, o mesmo papel é interpretado ora por uma ora por outra máscara, com os mesmos gracejos, as mesmas soluções... a única diferença é o estilo, além da linguagem. Movendo-se como que esmagado por um saco, Pulcinella, com sua cabeça encaixada entre os ombros, suas costas na qual impera a corcova, alarga os seus braços e agita-os como asas, como se quisesse encontrar um equilíbrio e volatilidade. E, realmente, o consegue. O surpreendente nesse desajeitado palhaço em forma de esse, com o ventre inchado característico do eterno famélico contrabalançado pela corcunda, o pescoço com o crânio negro projetado para fora da carcaça como a cabeça de uma tartaruga, o surpreendente, como dizia, é a leveza obtida ao mover-se, a suspensão alcançada ao executar pequenos pulos, piruetas, giros, etc. (...) Porém, (...) aquilo que o diferencia de qualquer outra máscara, é o cinismo. (...) O Pulcinella dos primeiros argumentos odeia e escapa do pateticismo e das retóricas... Sendo um grande patife, joga, manipula, disfarça, interpreta, finge estar apaixonado, desesperado, mostra o coração palpitante na palma de sua mão... jura que para ele, em último lugar, está o interesse do ventre e da algibeira... Naturalmente, pensa e age sempre e somente para sua própria vantagem, mas, no final, como verdadeiro cínico, mesmo quando alcançou o sucesso, com um gesto imprevisível – por uma questão de coerência, digamos estética – desfaz-se do sucesso, do privilégio e do poder, valores que o deixam aborrecido, incomodado, mortificado... Resumidamente: a autonomia do espírito vale até mesmo um trono de rei! Pulcinella sabe ser duro e impiedoso como só uma outra máscara sabe ser. Refiro-me ao Puck inglês, filho direto do Pulcinella”. - Zerbinetta, Zagne, Fantesche ou Servetta – personagem feminina da categoria dos criados. Era conhecida por vários nomes, normalmente, Esmeraldina, Colombina, Corallina, Rosetta etc, sendo que suas características mais comuns eram: alcoviteira, 10 Laboratório-Portal Teatro Sem Cortinas Commedia dell’arte e a explosão do popular nos palcos 03.HTM.0010 interesseira, sensual, desbocada, gostava de ser disputada pelos homens (fundamentalmente pelos parceiros e zanni Briguela e Arlequim), não usava máscaras. Capitano (Capitão) Segundo muitas fontes bibliográficas, a personagem não existe nos primórdios do gênero; assim, afirmam alguns historiadores, que a personagem teria surgido a partir de rivalidades entre a Itália e a Espanha (durante a ocupação dos mouros). Estruturalmente, o Capitão e sempre a última personagem a aparecer nas encenações (peças). Trata-se de uma figura fanfarrona e ‘bravateira’, de olhos brilhantes, com máscara de nariz adunco, chapéu de plumas, colete, camisa com mangas bufantes, espada, calça apertada e capa. Apesar de ser um homem alto é um grande covarde. Foi chamado pelo nome de Matamoros, Spazzaferro, Scamonte, Spazzavento (peido), Scaramuccia, Cucurucu, Meoscovaqueria (diarréia). Os tipos arquetípicos das personagens ou, se se quiser, máscaras, segundo Dario FO (1999, p. 38-9), e à guisa de exemplo: Há uma máscara resultante do casamento entre um cão perdigueiro, um mastim napolitano e o rosto de um homem. É a máscara do Capitano. Um entre tantos: Matamori, Spaventa, Draguignazzo, Crocodillo... Assim como torna-se galo, peru ou galinha, a máscara de Pantalone ou do Magnifico: em conseqüência, o andar e a movimentação do ator que a usa precisará imitar os gestos mecânicos e esquisóides de um galo. Outra muito famosa é a clássica máscara do Arlecchino, junção de gato e macaco. Em certos casos, por suas evidentes características, é chamado de Arlecchino-gato. O ator que vestia essa máscara dava saltos e pulinhos, articulando braços e pernas com suavidade e, de tempos em tempos, desfechava um grande e enérgico salto. Pois bem, a maioria das máscaras, inclusive as da Commedia dell’Arte, remetem ao mundo animal, ou seja, são zoomórficas. Aludem, particularmente, aos animais de quintal, domésticos ou domesticados. (...) Há um significado social nessa ligação com os animais de quintal que se refere à baixa corte daquele tempo – servos e todos os demais que viviam precariamente. O motivo dominante da decadência dessa forma teatral tem sido atribuído ao fato de os commedianti terem saído das praças e ido aos palácios dos nobres, atendendo aos convites destes. Com a perda de contato com o povo, e tendo em vista o ‘padrão’ de gosto característico da nobreza (somando-se ao constante cuidado e preocupação em não 11 Laboratório-Portal Teatro Sem Cortinas Commedia dell’arte e a explosão do popular nos palcos 03.HTM.0010 desagradar esse novo público), além de uma perda de referências mais populares (pelo contato com platéias das ruas) houve, também, uma nova seleção bastante sintomática quanto aos temas a partir dos quais as cenas seriam apresentadas. Desse modo, e repetidamente, a perda do contato com o povo, o não enfrentamento dos assuntos da atualidade, o medo (e os cuidados daí advindos) quanto a não provocar contrariedades nos novos espectadores... caracterizaram-se em fatores que redimensionaram os espetáculos e a própria ‘forma’ do gênero; assim, os comediantes transformaram suas comédias, a partir de um simulacro de gosto e de maneiras ‘grã-finas’ em detrimentos de saberes, fazeres e modos de ser. Na ‘nova’ commedia dell’arte, e ao gosto dos nobres, houve um aumento substancial, nos espetáculos, dos números dançados e cantados, sobretudo pelos innamorati; luxo da mise en scène; excessivo e ampliado número das piadas; excesso dos truques de carpintaria e maquinaria em detrimento da teatralidade do ator dando lugar aos efeitos de encenação; desnudamento das atrizes, para atender aos desejos dos espectadores ‘mais afoitos’; e, determinantemente pela ‘morte da improvisação’, uma constante repetição dos números aprovados pelos nobres. Dessa forma, pode-se dizer que a commedia dell’arte, durante a primeira metade do século XVII já se encontrava em decadência: caracterizando-se em forma degradada. No fim do século XVI, a situação apresenta-se clara: fracasso do teatro literário e a afirmação definitiva do teatro de improvisação. No século XVII a censura da Igreja cai sobre o teatro das Cortes como o golpe de graça: a comédia desaparece e a tragédia continua na sua esterilidade. A aristocracia começa a convidar os comediantes improvisadores para representarem dentro dos palácios e das cortes. Os comediantes triunfam em França, Alemanha e Rússia. É o momento do triunfo e, ao mesmo tempo, o começo da decadência. (JACOBBI, 1956) Todavia, sem a luz da filosofia não teria podido empreender a arte das Comédias, nem escabichar as paixões, nem argumentar sobre a conduta dos homens, nem sequer penetrar no coração humano. Qual pois, a Filosofia de que me servi? Daquela que temos na alma, a que nos é ensinada pela razão, a que com a leitura e através das observações se aperfeiçoa; enfim, aquela que deriva da verdadeira Poesia, não da baixa Poesia. Carlo GOLDONI. Filosofia e teatro. Carlo Goldoni (1707-1793) é um comediógrafo normalmente apresentado como um dos neófitos da commedia dell’arte e segundo vários estudiosos (dentre eles Miroel 12 Laboratório-Portal Teatro Sem Cortinas Commedia dell’arte e a explosão do popular nos palcos 03.HTM.0010 SILVEIRA5) pode ser identificado com o ideário da burguesia. Nascido na Itália e percebendo a importância da forma desenvolvida pelos comediantes dell‘arte e conseqüente decadência pela qual passava o gênero, iniciou-se no trabalho dramatúrgico, adotando os roteiros da commedia como ponto de partida para ‘melhorar a qualidade dos textos’. Ou seja, segundo os objetivos expressos pelo próprio comediógrafo, seria preciso desenvolver um intenso trabalho dramatúrgico para retirar do ‘limbo e do estado de degradação’ em que se encontrava tão importante contribuição da cultura cômica. À luz, portanto, de tal constatação e tendo em vista a descaracterização do gênero (nos aspectos anteriormente citados) e os excessos de pornografia, ao gosto da aristocracia, Goldoni iniciou seu trabalho reescrevendo alguns dos velhos scenari para a improvisação dos cômicos; depois uma ou duas cenas para cada scenario, evoluindo até a escritura quase toda da peça e, finalmente, a peça toda. Mudando todo o esquema tradicional – antes fundamentado no soggeto, Goldoni oficializa aquilo que já acontecia na prática pela constante improvisação, ou seja a transformação da comédia improvisacional em commedia sostenuta. A partir dessa modificação, o texto, para ser montado, pressuporia o trabalho de decoração e aos expedientes característico da comédia erudita (sostenuta). Fixada a nova ‘commedia dell’arte sostenuta’, e reiterando a identificação do comediógrafo com os interesses e ideários burgueses, Goldoni retrabalha alguns dos antigos traços das personagens-tipo, imprimindo-lhes características mais realistas, humanas, pessoais (e para alguns teóricos algo próximo do psicológico), plausíveis ao controle social e à nova ordem política que se aproximava. Concordando e discordando de alguns desses pontos de vista, Ruggero JACOBBI (1965) afirma: o realismo goldoniano já é, antes de qualquer suspeita da possível chegada de um fenômeno como o realismo, antinaturalista por definição, graças ao seu respeito pela forma humana e civil dos sentimentos (...) determinam o colorido, o simples e o límpido (...) um realismo antipsicológico, isto é, anti-analítico pois visa rigorosamente a síntese (...) O antigo é clássico na medida em que olha para o mundo como se fosse Deus, na medida em que o vê com os olhos da História (...) Goldoni vem antes do romantismo, e contém igual, por força de antecipação, aquela parte de contribuição insuprimível de contribuição romântica, que nos outros realistas está presente por 6 força de experiência, convivência e influência. Sua obra, O teatro cômico, de 1749, em tradução para o português de Olga Navarro 5 Miroel SILVEIRA. Goldoni na França: do canovaccio à comédia escrita e desta novamente à commedia dell’arte. São Paulo: Instituto de Cultura Ítalo-Brasileiro, 1981. 6 Ruggero JACOBBI. Goldoni, fundador do Realismo teatral, In: O Tablado, 32. Rio de Janeiro, 12/65. 13 Laboratório-Portal Teatro Sem Cortinas Commedia dell’arte e a explosão do popular nos palcos 03.HTM.0010 (e, até onde foi possível chegar, não publicada em forma de livro) representa uma verdadeira revolução na transformação da forma, posto que o teatro, e todas as suas implicações, é tomado como assunto. Dentre todos os textos escritos pelo autor, é considerado como o mais importante ou sua obra-prima: Arlequim, servidor de dois patrões, de 1745. Referências bibliográficas FO, Dario. Manual mínimo do ator. São Paulo: SENAC, 1999. JACOBBI, Ruggero. A expressão dramática. Rio de Janeiro: MEC/INL, 1956 ________, Ruggero. Goldoni, fundador do Realismo teatral. Cadernos de Teatro, Rio de Janeiro, n. 32, dez, 1965. Matéria não assinada. A commedia dell’arte. Cadernos de Teatro, Rio de Janeiro, n. 32, dez, 1965. 14 Laboratório-Portal Teatro Sem Cortinas Commedia dell’arte e a explosão do popular nos palcos 03.HTM.0010
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