450: comemoração em plástico

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450: comemoração em plástico
450: COMEMORAÇÃO EM PLÁSTICO
450: COMEMORAÇÃO EM PLÁSTICO
TOM ZÉ
Quem primeiro comemora é a cara do dia. Quem é que conta para ele que é domingo, por
exemplo? E, num feriado maior, o amanhecer tem ainda mais cara de feriado. Veja no quadro
de Edward Hopper, "Domingo de Manhã", essa epifania anterior à presença humana. Então,
nesse final da semana, já acordamos quatrocentos-cinqüentados.
Outro mistério visível no rosto das pessoas que compravam pão de manhã cedo: não dá para
explicar, mas existe uma maquiagem espírito-de-feriado, natural, um júbilo do coração que
transparece no semblante. Destaco porque é um aspecto muito importante da comemoração,
essa festa interior, esse olhar estrelado. A padaria é um meu termômetro: como todos me
olhavam com mais carinho do que o normal, concluí que eu estava em alguma chamada de
televisão. Aqueles anúncios em que você aparece prometido para cantar. Confirmei quando tia
Wanda ligou da Bahia perguntando a que horas eu cantaria.
No jardim em que sou jardineiro as rosas não conseguiam disfarçar o jeito de feriado. E os
índios de Anchieta estavam presentes quando alguém falava de show no Anhangabaú, de
fonte no Ibirapuera, da decisão da Taça São Paulo no Pacaembu, ou pronunciava, ocasional,
palavras como Anhembi, Morumbi, Tatuapé, Tamanduateí. Nomes com que os nossos índios
sonoramente bem-humorados viviam em permanente feriado na São Paulo primal e em
obsessivo estudo de fonética, com Itaquaquecetubas e Urubupungás, sempre dispostos a se
pintar e se distrair. Por falar em se pintar, até Marta Suplicy, toda de branco, não etérea por ter
forte presença concreta, mas com as tintas de solenidade traduzidas em feminino e renda,
inaugurava logo de manhã o Banespinha, sede nova da prefeitura.
Quem comemorou mais ainda foi o vendedor de capas de chuva, que embrulhou uma
população em plástico
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Nas emissoras de rádio e televisão, programas históricos, programas de discursos, programas
de declarações de amor, amor, amor, amor. Nunca vi tanto amor. Em contraponto à alegria, o
inventor da bicicleta, Leônidas da Silva, morreu na noite da véspera; por ter sido uma glória de
São Paulo, sua atitude lembrou a de um general grego incorporando-se, pela morte, à alegria
da comemoração. Fez-se um minuto de silêncio antes de todos os jogos, e o general Leônidas
foi aplaudido.
De manhã, quando eu e minha mulher fomos de carro ver a cara da festa no Ibirapuera, o local
já estava entupido de carros e de gente caminhando, principalmente de pessoas da periferia,
que acordam cedo e estavam lá pela mesma razão que nós: para ver uns aos outros.
Como as famílias da periferia são grandes e vivem acrescentadas de tios, vizinhos e crianças,
era simpático ver tantas bermudas almoçando na mesa improvisada no porta-malas do carro,
de onde saíam refrigerantes, sanduíches, pedaços de bolo. Caras alegres, com a bliss do
feriado.
No show de que participei no Ibirapuera lotado havia uma hipersensibilidade popular para
qualquer frase que contivesse as palavras "São Paulo". Eu, baiano, cantei "São São Paulo Meu
Amor" com Jorge Vercilo, carioca, Sandra de Sá, carioca, e Tato do "Fala Mansa" -esse: "Nasci
em São Paulo" (aplausos e gritos).
Parte boa da festa, microcomemoração, foi estar com os colegas que conseguiram, com sua
solidariedade, dar nó na tecnologia. Vercilo estudou a canção "São São Paulo Meu Amor" com
eficiência, sugeriu a divisão do texto a ser cantado, me propôs trechos de outras canções que
enxertaria na música. No show, meu retorno de som falhou, eu fiquei surdo, e quando Sérgio
Groismann me chamou ao palco não reagi; fui empurrado da coxia pelo contra-regra. Entrei em
cena tropeçando, arriscando um tombo público. Tecnologia, quando falha, leva ao ponto zero
da comédia.
Mais microcomemoração: conhecer Gabriel, o Pensador, estar com Elza Soares, que se
autodenominou "Tom Zé de saias", ver o número de Sidney Magal e Marisa Orth, com jeito
dramático, um número de televisão bonito. Ainda no camarim, pedi ao técnico que mudasse
para o SBT para ver um pouco do show de Caetano, e ele retrucou: "Esse aparelho não tem
esse canal".
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Mas acabei vendo que no show de Caetano na esquina havia a novidade inesperada da
presença de Jair Oliveira com Zé Miguel, Jair Rodrigues, Rappin" Hood, esse uma anti-síntese,
interessante, "yang": esses meninos querem ocupar espaço e começam pelo verbo caudaloso,
em cima do palco. Na platéia, Eduardo Suplicy, Marta Suplicy, Fernanda Torres, gente do
mundo cultural, autoridades várias, somando as 30 mil pessoas calculadas pela PM.
No domingo, vi alguma coisa do show de Rita Lee, a rainha do charme -que sempre foi uma
mina de ouro em simpatia e agora é uma mina de Sampa. E chuva. Com toró e tudo ela estava
ótima, e os Titãs fizeram números lindos. Nossa, como os caras são fortes! Multidão e chuva.
Trio elétrico espalhado por todo o canto da cidade. Multidão e chuva.
O rádio entrevistava personalidades do passado e do presente. Oberdam Catani, goleiro do
Palmeiras e da seleção paulista dos anos 30, foi entrevistado na Jovem Pan. Júlio Medalha
deu uma entrevista brilhante, na TV Assembléia, com sua verve mediterrânea de agitador
cultural.
Nas cenas de rua, quem comemorou mais ainda foi o vendedor de capas de chuva, que
embrulhou uma população em plástico.
Tom Zé, cantor e compositor, é autor do livro "Tropicalista Lenta Luta" (Publifolha, 2003).
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