Nos Alvores da Obra Diocesana - Obra Diocesana de Promoção

Transcrição

Nos Alvores da Obra Diocesana - Obra Diocesana de Promoção
Américo Ribeiro
Nos Alvores da Obra Diocesana
Depois desta interessante e importante viagem no tempo, remontando à década de sessenta, em que a expectação e o interesse
pela descoberta, pelo conhecimento de uma causa geradora de vantajoso fruto, fortalecido há meio século, são alimentados, de forma sistemática, cabe finalizar a narrativa com algumas considerações.
“Nos Alvores da Obra Diocesana” assume publicação de marcante valor histórico, social, cultural e afetivo. Mostra como a força da
realização e o poder do empreendedorismo social, materializados na
ajuda ao próximo, se tornam exequíveis, ainda que os requisitos se afigurem complexos e desmotivadores.
Salienta-se em todo o relato a vontade, individual e grupal, consistente e coesa, de seguir em frente, com perseverança e confiança, em
busca do grande objetivo: a solidariedade social, a promoção social e a
quebra das desigualdades, num semear de distintas oportunidades aos
mais desamparados, em sítios fulcrais da cidade do Porto.
Sente-se em toda a descrição o palpitar do acreditar, com fé e
oração, para encontrar a solução, as soluções, não obstante as contrariedades, as vicissitudes, as divergências…
Como se trata de um livro elaborado sob a luz do testemunho
vivo do seu autor, que acompanhou e experienciou, bem de perto e
com muita alma, os multifacetados trâmites da criação da Obra Diocesana de Promoção Social, oferece a apetecida autenticidade dos
factos, acontecimentos, vivências ímpares, curiosidades estimulantes,
alusões às realidades da época… numa composição, harmoniosa e feliz,
que conta com a beleza e a profundidade de algumas citações bíblicas,
encontradas com desvelo e perfeição, proporcionando, no seu conjunto, espaço para reflexão e introspeção.
Este livro, que termina aqui, traz consigo a intencionalidade de
dar a saber, com ênfase e pormenor, como nasceu a ODPS, a instituição
que escreve, com alegria, abonada história na vida das populações.
Observando a contemporaneidade e colocando o pensamento
há cinquenta anos atrás, tudo era diferente… porém, um ponto comum
ressalta, com agrado – o desejo de fazer o bem, de construir pontes e
edificar a paz. O valor social conseguido até hoje faz sorrir e deleita o
coração.
“Nos Alvores da Obra Diocesana” cumpre bem a sua parte.
Aos homens compete fazer o restante numa continuidade de propósitos sempre prontos a servir e a amar com inteligência e sabedoria.
João Alves Dias
EPÍLOGO
João Alves Dias
João Alves Dias, presbítero casado, licenciado em filosofia e professor aposentado.
Colaborou na criação da Obra Diocesana
de Promoção Social como “sacerdote responsável”, esteve na génese da paróquia
de Nossa Senhora do Calvário no Porto e
fez parte do primeiro Conselho Presbiteral da diocese do Porto. Presidiu aos conselhos diretivo e pedagógico da Escola
EB2,3 de Rio Tinto, foi diretor pedagógico
do Colégio D. Duarte e pertenceu à direção da AEPP. Foi membro da Assembleia
de Freguesia de Campanhã e da Comissão
de Ética do Hospital Joaquim Urbano, primeiro presidente da assembleia geral da
Comissão de Moradores do Bairro do Falcão e fez parte do conselho fiscal da CERPORTO e do Internato Juvenil de Campanhã. Participou nas obras “Manuel Álvaro
de Madureira in memoriam”, “Repensar a
Teoloxia, Recuperar o Cristianismo”, “Cancro, Vidas em Reconstrução”. É coautor
dos manuais escolares ”Conhecer Portugal- Estudos Sociais”, “Pela História Fora…”,
”Descobrir Portugal…”, “Grande Viagem”.
Escreve na “Voz Portucalense”, semanário
da diocese do Porto, e no “espaço solidário”, revista da Obra Diocesana. Faz parte
das direções da Fundação Voz Portucalense, do Coro Gregoriano do Porto e do
“Grupo Boa Memória”.
Nos
Alvores
e
da
Obra Diocesana
Ficha Técnica
Título: Nos Alvores da Obra Diocesana
Autor: João Alves Dias
Edição: Obra Diocesana de Promoção Social,
Rua D. Manuel II, 14 - 4050-342 Porto
Revisão: Ana da Conceição Pinheiro de Magalhães Alves Dias
Fotografias: do autor
Dep. Legal: 367968/13
Execução gráfica: Lusoimpress - Artes Gráficas, S.A.
Tiragem: 2000 ex.
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DEDICATÓRIA
A minha esposa, minha sogra, nossos filhos, nora e neto Francisco, “sacramento da presença viva de Deus”.
A quantos, no passado e no presente, deram e dão vida a este sonho que,
há já cinquenta anos, anima a Igreja do Porto.
A todos os utentes da Obra Diocesana, razão primeira da sua existência.
Ao amigo P. Lino Maia, presidente da Confederação Nacional das Instituições Particulares de Solidariedade (CNIS), por tudo o que tem feito ao serviço da
missão socio-caritativa da Igreja. E pelas palavras que abrem este meu peregrinar
pela memória.
AGRADECIMENTO
Aos meus pais, à “mestra Maruja” e a todos os mestres a quem muito devo.
A D. Florentino de Andrade e Silva e D. António Ferreira Gomes que me
confiaram a missão de “sacerdote responsável” da Obra.
Aos que comigo trabalharam na Obra, desde a sua fundação até 1975.
Ao Conselho de Administração da Obra Diocesana, na pessoa do seu Presidente, Américo Ribeiro, que me desafiou para este “mergulho” na memória. E pelas
palavras com que se dignou encerrar esta romagem às origens.
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ÍNDICE
Prólogo - Pe. Lino Maia..................................................................................................................................................
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..........................................................................................................................................
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Abertura ........................................................................................................................................................................................
13
Retalhos de memória
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15
Nos bastidores da Obra ............................................................................................................................................
17
A génese .......................................................................................................................................................................................
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A Obra e o Secretariado
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23
O caráter inovador da Obra .................................................................................................................................
25
Dois Bispos – Dois Carismas ................................................................................................................................
31
- D. Florentino de Andrade e Silva ...................................................................................................................
31
- D. António Ferreira Gomes ...................................................................................................................................
33
- “Fruto de um único Espírito” ...............................................................................................................................
38
A Obra e a Câmara Municipal do Porto
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39
Em jeito de testemunho
Instituto de Serviço Social do Porto .........................................................................................................
45
O papel dos leigos ...........................................................................................................................................................
47
- Dr. Francisco Sá Carneiro
........................................................................................................................................
47
- Arquiteto Fernando Távora ..................................................................................................................................
52
Conselho Técnico Consultivo ............................................................................................................................
55
Primeiros passos .................................................................................................................................................................
57
Uma filha da Obra
............................................................................................................................................................
63
- Primeira Missa no bairro do Cerco do Porto ....................................................................................
65
- Início do trabalho pastoral em S. Roque da Lameira
............................................................
67
- A capela de Nossa Senhora do Calvário ...............................................................................................
68
- A ereção canónica da paróquia de Nossa Senhora do Calvário ..............................
71
- “Aqueles que passam por nós…”
.................................................................................................................
72
- Clube de Pesca do bairro do Cerco do Porto ................................................................................................
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Notas de Imprensa ..........................................................................................................................................................
81
1.ª - Uma Obra de vasta projeção futura
81
.................................................................................................
2.ª - Obras Sociais no bairro do Cerco do Porto
..............................................................................
83
3.ª - Obra Diocesana de Promoção Social ..............................................................................................
83
4.ª - A nova capela do bairro do Cerco do Porto ............................................................................
84
5.ª - Ereção canónica da paróquia de Nossa Senhora do Calvário
...........................
85
6.ª - O bairro do Cerco do Porto .........................................................................................................................
86
7.ª - Bloco 12 – Entrada 160 – Casa 11 ..........................................................................................................
87
8.ª - Em memória de Manuel Joaquim Alves de Oliveira
.....................................................
88
9.ª - Um teólogo com coração .............................................................................................................................
89
10.ª - A lembrar João XXIII ..........................................................................................................................................
90
Uma Palavra Final
93
.............................................................................................................................................................
Epílogo - Américo Ribeiro
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PRÓLOGO
Nos alvores da Odps
Contemplamos hoje a ODPS na sua expressiva dimensão: pelos vários
bairros sociais da cidade, com múltiplos serviços em favor das famílias e desenvolvendo muita ação com muito dinamismo... Diariamente, entre voluntários, colaboradores e utentes (crianças, jovens e idosos) são perto de cinco mil as pessoas
que “respiram” Odps. Maioritariamente, dos próprios bairros. Direta ou indiretamente, muitas e muitas outras se dessedentam a partir da Odps.
Reconhecidamente, a Odps é uma das mais nobres instituições da cidade.
Sendo o Porto uma das cidades europeias com maior população em bairros sociais (cerca de 20%), simultaneamente, é uma das cidades em que se acalenta melhor harmonização social. Certamente, a Odps é uma das instituições da cidade a
contribuir mais intensamente para uma cidade boa para as pessoas.
Pesquisamos o seu passado e vemos que a Odps foi inspiradora de diagnósticos, metodologias, estilos e respostas... Continua a ser. São várias as ações
sociais que ali foram ensaiadas para, posteriormente, serem replicadas pelo país
fora. São muitos os técnicos e, sobretudo, as técnicas, que por ali estagiaram para,
aí, saborearem um estilo e uma marca de ações mais humanas, mais próximas e
mais envolventes das pessoas.
No passado e no hoje, vemos a Odps na sua capilaridade, na sua gratuidade, na sua opção preferencial pelos mais carenciados, na sua proximidade, nos
seus envolvimentos. Apreciamo-la na sua forma de estar e de agir, de saber crer e
saber querer. Reconhecemo-la na sua matriz cristã. Marcas que vai “exportando”
para todas as outras instituições de solidariedade congéneres.
E tudo começou com poucos que tinham um grande coração a bater ao
ritmo de uma grande alma. Entre “esses”, destaca-se o Padre João Alves Dias, referência para outros, da diocese do Porto ou de outras dioceses, que vieram a ser
ordenados para o exercício do presbiterado e mesmo do episcopado.
Recentemente, o Papa Francisco mostrava a sua preferência pelos pastores que “cheiram às suas ovelhas”. Há cinquenta anos, João Alves Dias foi o eleito
para ensaiar um processo para o qual o Papa usou agora uma imagem bem
feliz. Neste seu livro/testemunho, mostra-nos um pouco do muito que ele foi
nos alvores de uma Obra que, indelevelmente, transportará a sua marca pelos
tempos fora.
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Ainda muito jovem, quando dava os primeiros passos na sua experiência pastoral, ele foi “atirado” para ser pastor numa comunidade que ainda não
o era. Eram pessoas que para ali iam e que vinham de desenraizamentos nem
sempre desejados mas vistos como necessários para um presente e um futuro
algo melhores. Pessoas de proveniências várias e bem difíceis para um devir
comum e preferível. O Padre já o sabia mas, ali, experimentou vivencialmente
que o homem só o pode ser quando começa a apreciar o espaço em que está
e as pessoas com quem vive ou com quem se encontra. Para fazer comunidade
ele intuía ser necessário conhecer e amar aqueles a quem queria servir sem ser
imposto. Ali, num bairro em que a pressa de o fazer contrariara o aconselhamento da insuficiência de dar uma casa sem proporcionar a sociabilidade e ensinar a
sua operacionalidade, ele logo viu que se impunha fazer algo para que o ser do
homem e a sua circunstância humana se harmonizassem visando um devir mais
plenamente humano. Era necessário estar no meio das pessoas, das “ovelhas”.
“Cheirá-las”.
Sem muitas presciências técnicas nem sequer rigores doutrinais, de coração aberto, um padre apareceu num meio pobre como criador de sonhos, como
alimentador de esperanças. Fez-se próximo e humano. Ouvindo e envolvendo.
Não tendo receitas previamente prescritas nem espiritualidades à mão ou de
mãos erguidas para todos os problemas, mas simplesmente saboreando a certeza
de que “a vida é geradora de vida” percebendo que “o pouco feito com muitos
vale mais que o muito feito com poucos”. E assim, num contexto pobre, envolvendo os pobres como agentes do seu devir, a Obra dos Bairros marcava a sua
ação. Com a consciência de que “das coisas simples e pequenas nascem grandes
coisas”. Acompanhando as pessoas ora no silêncio a que o sofrimento obriga ou
na palavra que urge quando se torna incómoda, ora na ação que envolve e abre
caminho. Partilhando alegrias que lhe são contadas e deixando-se comungar nos
sorrisos. Foi para o meio das “ovelhas”, amou-as, caminhou com elas, serviu-as e
ficou a “cheirar o seu cheiro”. Elas cresceram com ele e ele cresceu com elas. E a
“Obra dos Bairros” assim nasceu e assim se fez Grande Obra. Com ele, com elas e
com “muitos outros eles e com muitas outras elas”. Mas com o Padre João Alves
Dias nos seus alvores e a marcá-la. Com ele, tanto a Obra dos Bairros como a sua
maior expressão - a Obra Diocesana de Promoção Social - não impôs, não impõem e jamais poderão impor caminho: ele amou e a Obra ama para seduzir os
caminhantes, para serem, eles próprios, a abrirem caminhos.
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Na parábola do bom samaritano (Lc 10, 25-37), não são nem o sacerdote
nem o levita judaico os apresentados como modelos do discípulo de Cristo. Mas
aquele que desceu do seu cavalo para «cheirar» o homem maltratado na berma
da estrada, tratá-lo num primeiro e necessário socorro e conduzi-lo depois à estalagem para aí completar a recuperação e dali poder sair para plena integração
e vivência entre os irmãos.
Percorrendo este belo “livro/testemunho” e conhecendo o Padre João
Alves Dias e a Obra Diocesana de Promoção Social que começou simplesmente
como “Obra dos Bairros”, vemos aquelas que devem ser as marcas de uma ação
social da Igreja. Precisa de padres e cristãos-leigos que façam da diaconia da caridade um anúncio e um culto. Sentir-se enviado só “com as sandálias nos pés”,
estar no meio de todos e trazer para o seu colo os mais carenciados, “acariciá-los”
com ternura, “falar-lhes” com simplicidade e envolvê-los no seu devir. “Aproximando” também os companheiros e envolvendo-os numa construção comum. É desafio permanente para uma Igreja que faz do homem o seu caminho e de Cristo
o seu Mestre..
Desde os seus alvores - e excelentemente - foi vivência ensaiada pelo Padre João Alves Dias e pela Obra dos Bairros.
É a marca que se quer indelével e perpétua da Obra Diocesana de Promoção Social...
Lino Maia
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EM JEITO DE TESTEMUNHO
“Aqueles que passam por nós não vão sós, não nos deixam sós. Deixam um
pouco de si, levam um pouco de nós.” (Antoine de Saint-Exupéry – O Principezinho)
“Não se pense por isso que sou de temperamento conservador e tradicionalista. Sou um homem que ama verdadeiramente o passado. Os tradicionalistas,
ao contrário, não o amam; querem que não seja passado, mas presente. Amar o
passado é congratular-se com que efetivamente tenha passado, e que as coisas,
perdendo essa rudeza com que ao achar-se no presente arranham os nossos olhos,
os nossos ouvidos e as nossas mãos, ascendam à vida mais pura e essencial que têm
na reminiscência. O valor que damos a muitas das realidades presentes não o merecem estas por si mesmas; se nos ocupamos delas é porque existem, porque estão
aí, diante de nós, ofendendo-nos ou servindo-nos. A sua existência, não elas, tem
valor. Ao contrário, naquilo que foi, interessa-nos a sua qualidade íntima e própria.
De modo que as coisas, ao penetrarem no âmbito do pretérito, ficam despojadas
de toda a adesão utilitária, de toda a hierarquia fundada nos serviços que como
existentes nos prestaram, e assim, em puras carnes, é quando começam a viver o
seu vigor essencial.” (Ortega y Gasset- Andar e Viver)
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ABERTURA
Quando, em 23 de maio de 2013, no final do ”Jantar de Beneficência”
organizado pela Liga dos Amigos e pelo Conselho de Administração da Obra
Diocesana de Promoção Social, o senhor Américo Ribeiro, presidente deste Conselho, me lançou o desafio de escrever um testemunho pessoal sobre a génese
da Obra, a minha adesão não foi imediata. Lembrei-me do que D. António Ferreira Gomes me dissera quando, um dia, lhe perguntei se estava a redigir as suas
memórias: “ainda não estou em tempo de viver do passado” e do que escrevera
nas suas Cartas ao Papa, “Evidentemente não vou escrever “memórias”, como
tais. Não teria já tempo, mas também considero inútil falar, por falar, de si, dos
seus feitos e defeitos, enfim compor a sua imagem para a história, que talvez
não venha a interessar a muitos”. Mais ainda, dada a intensidade com que vivi
esses tempos, não me é possível destrinçar a minha vida da vida da obra. Falar
da Obra obrigar-me-ia a falar de mim. E, também, não sabia se arranjaria tempo
para o fazer porque meu neto Francisco quando me vê ao computador, sempre
me diz “outa vez aí, avô!” e logo me sobe para os joelhos a fim de ver os “comboios e barcos a vapor” no filme “O pintor e a cidade” de Manoel de Oliveira,
rodado em 1956 que, por coincidência, nos mostra como era a cidade do Porto
quando a Obra estava a germinar. Foi, nesse ano, que D. António Ferreira Gomes
fundou o Instituto de Serviço Social do Porto, um dos grandes pilares em que
D. Florentino se apoiou ao criar o Secretariado Diocesano e a Obra dos Bairros.
Mas, quando assim hesitava, o acaso pôs na minha frente dois pensamentos: “Aqueles que passam por nós não vão sós, não nos deixam sós. Deixam
um pouco de si, levam um pouco de nós” (Antoine de Saint-Exupéry); “Sempre
que um homem sonha o mundo pula e avança como bola colorida nas mãos de
uma criança” (António Gedeão). Acresce, ainda, que, nas “comemorações dos 50
anos da Missa Nova do P. Manuel Correia Fernandes”, diretor da “Voz Portucalense”, jornal oficial da diocese do Porto, ouvi a sua irmã mais nova citar um texto
do filósofo espanhol Ortega y Gasset com que me identifico e que transcrevi, no
início deste texto. Como disse Theophile Gauther (1811/1872), “o acaso é, talvez,
o pseudónimo de Deus, quando não quer assinar”. Por tudo isto, quebrou-se
a minha indecisão e aceitei o desafio. Não sem, primeiro, pedir desculpa por
alguma imprecisão ou confusão que o nevoeiro do tempo poderá levar-me a
cometer.
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Falar da génese é falar de um sonho que acalentou a vida de muita gente e me influenciou para sempre. É prestar homenagem a todos esses que, ao
passarem por mim, deixaram um pouco de si. Muitos já partiram para a “Casa do
Pai”, onde, espero, terão recebido a sua recompensa. Como Ortega e Gasset, “sou
um homem que ama verdadeiramente o passado” porque as coisas, libertas das
pressões do presente, ascendem “à vida mais pura e essencial que têm na reminiscência”. Lembro o passado como passado e não anseio que ele se faça presente.
O passado nunca é um modelo. Quando muito poderá fornecer exemplos. É que
o modelo direciona-nos para o futuro. Indica a meta a atingir, convoca-nos para
a utopia que, como a linha do horizonte, quanto mais avançamos, mais de nós
se afasta. Nunca se alcança mas ajuda-nos a caminhar. Abre-nos à esperança. O
exemplo, pelo contrário, é o modo como cada pessoa e instituição, à sua maneira
e dentro da “sua circunstância”, procura realizar esse modelo. O exemplo funciona
sempre como um incentivo. Se este e aquele, por que não eu? Interrogava-se Santo
Agostinho. A Obra Diocesana, porque de e da Igreja, tem por modelo Cristo e por
lema dois dos seus mandamentos: no acolhimento aos outros – Amai-vos uns aos
outros como eu vos amei (Jo 15,12); na qualidade do serviço – Sede perfeitos como
vosso pai celeste é perfeito (Mt 5,48).
A evocação dos primórdios poderá ajudar-nos a ver como, nas limitações
dos seus agentes e instrumentos, a Obra procurou realizar o sonho que lhe deu
origem.
Foi este o espírito que me levou a revisitar uma memória que se vai esbatendo nas lonjuras do tempo. Mais não é que um testemunho pessoal.
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RETALHOS DA MEMÓRIA
Ao abrir a arca das recordações, logo me surgiu a parábola evangélica que
fala de um tesouro donde se tira “coisas novas e velhas” (Mt 13,52). Um tesouro
que me faz reviver tempos de juventude animada pelo desejo de transformar o
mundo. Coisas velhas porque se esbatem em horizontes longínquos com cerca
de cinquenta anos; novas porque nos chegam envoltas em cambiantes sempre
renovados de afetividade. A memória, faculdade de reter e evocar, seleciona os
acontecimentos em função do colorido emocional com que foram vividos e da
influência que tiveram no porvir. A vida é um continente que o tempo transforma
em arquipélago. Num continente, montanhas e vales, planícies e planaltos sucedem-se sem quebras ou interrupções. Assim, a vida é um contínuo em que os
“tempos fortes” das emoções se intercalam com os “tempos fracos” da monotonia
quotidiana. A passagem dos anos vai submergindo as planuras da vida, deixando
que apenas aflorem à superfície da consciência os momentos cuja vivência foi
mais intensa. E é com esses picos do passado que a memória pontilha a renda
que vai tecendo. E nem sempre terão sido os mais significativos. Se a esta subjetividade se acrescentar o facto de terem sido vividos com paixão – e um ser
apaixonado é sempre exagerado – então este meu texto não pode ser encarado
como história mas como uma vivência revisitada, após longos anos de ausência.
Acresce a tudo isto o facto de, por temperamento ou caráter, do passado só recordar aquilo que me deu felicidade, esquecendo o que, na ocasião, me possa ter
causado dissabores e aborrecimentos. É nesta perspetiva que deverão ser lidos
estes meus retalhos que assumem caráter autobiográfico. Para conhecer a história
da Obra Diocesana, aconselho a leitura de Obra Diocesana 40 Anos de Promoção
Social de Bernardino Chamusca. Para conhecer a pessoa e obra do fundador da
Obra, sugiro Para a História da Diocese do Porto Dom Florentino de Andrade e Silva de
António Teixeira Fernandes de que destaco o Capitulo I “Secretariado Diocesano
de Acção Social” e capítulo II “Obra Diocesana de Promoção Social nos Bairros
Camarários do Porto”. Já para conhecer D. António e o seu pensamento, aconselho Dom António Ferreira Gomes – Bispo do Porto ao serviço da liberdade e, muito
especialmente, as suas Cartas ao Papa.
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NOS BASTIDORES DA OBRA
Ao abrir os caboucos desse tesouro, vejo que eles remontam aos primeiros
anos da década de sessenta quando um grupo de seminaristas, com o incentivo
do seu reitor, Monsenhor Miguel Sampaio, abriu a igreja de S. Lourenço (dos Grilos)
aos moradores do bairro da Sé, um viveiro de gente pobre e desprezada que lhe
ficava à ilharga. Para além da catequese, dos cursos para jovens e da sala de convívio
para adultos, criaram, num espaço adjacente à igreja, cedido pela Câmara Municipal do Porto (hoje, um belo miradouro sobre a Ribeira), um parque infantil onde
as muitas crianças das redondezas brincavam sob a vigilância duma moradora a
quem chamavam “madrinha”. Esta experiência socio-pastoral despertou a atenção
de D. Maria José Novais, uma católica muito sensível aos problemas sociais e então
vereadora da Câmara Municipal do Porto (1960 – 1967). D. Florentino de Andrade
e Silva, Administrador Apostólico
da Diocese do Porto durante o
exílio (1959 -1969) do seu bispo
titular, D. António Ferreira Gomes,
sempre acarinhou este trabalho
dos seminaristas.
Em 1961, dois desses seminaristas realizaram, durante 15
dias, em Albergaria das Cabras
(agora, da Serra), no alto da Serra
da Freita, em Arouca, uma colónia de férias com 19 meninos da D. Florentino no parque infantil do Seminário Maior
Sé, dos 6 aos 13 anos. A acompanhá-los, como representante do Seminário, esteve, no primeiro dia, o Dr. Ângelo
Alves, agora monsenhor e cónego da Sé do Porto, e, nos restantes, o Dr. Armindo
Lopes Coelho, que, já bispo do Porto, como me informou o seu secretário, gostava
de recordar peripécias dessa sua experiência numa terra sem eletricidade e onde,
para se barbear, tinha de servir-se da água que passava no rego junto da escola. Isso
mesmo pude confirmar quando, com a direção da Fundação Voz Portucalense, o
fui visitar, pouco tempo antes da sua morte, na Quinta da Senhora da Mão Poderosa, em Ermesinde. A evocação dessa “colónia de férias” deu-lhe felicidade, como
escreveu, já com mão trémula, no cartão de agradecimento que me enviou: “Grato
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pela visita que serviu para matar
saudades” e assinou: “Dr. Armindo
Lopes Coelho”. Mais que o bispo
era o meu “velho professor” que
agradecia a visita.
Nesse tempo, não havia
estrada para Albergaria das Cabras. A única que a ligava à vila
terminava no local onde, ainda
Cartão de D. Armindo Lopes Coelho
hoje, se situa o radar. Todo o resto do percurso era feito a pé por
caminhos íngremes e fragosos. Mas, apesar destas dificuldades, D. Florentino foi
visitá-los e almoçou com as crianças na escola primária. Como pastor da diocese,
aproveitou esta subida à serra para visitar alguns doentes da aldeia. Foi bonito ver o
contraste entre a sua simplicidade com as crianças e a solenidade reverencial com
que entrava nos humildes casebres que, por graça, dizia “tinham aquecimento central” porque ”de um lado fica a cozinha, do outro, o quarto de dormir e, no meio, a
corte das ovelhas que a ambos aquece”.
Evoco estes factos porque indiciam preocupações que muito irão ajudar a
ação da Igreja nos bairros camarários. A partilha de interesse gerou “cumplicidades”
que marcaram o futuro. D. Maria José assistiu à “Missa Nova” de um desses seminaristas que, por sua vez, foi assistente espiritual do “Abrigo de Nossa Senhora da
Esperança” que ela criara, na Rua
de Santa Catarina, para acolher
mulheres idosas doentes incuráveis. D. Florentino irá poder contar com uma aliada no interior da
direção da Câmara Municipal. E
foram precisamente esses dois
seminaristas, já presbíteros, que,
por nomeação de D. Florentino
foram, em 1964, morar em bairros
camarários: um foi viver no bloco
Albergaria das Cabras- crianças com alguns pais que as
17 do bairro da Pasteleira onde,
foram visitar.
para além duma intensa ativida-
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de socio-pastoral, lançou os alicerces da paróquia da Senhora da Ajuda, enquanto
o outro assumiu a responsabilidade pela Obra dos Bairros e foi morar no bloco 15
do bairro do Cerco do Porto onde preparou e acompanhou a criação da paróquia
de Nª Senhora do Calvário. Acrescem ainda as palavras enigmáticas de D. Florentino
quando, no início da década de sessenta, lhe fui pedir autorização para abandonar
o seminário do Porto e ingressar no “Regnum Dei”, um instituto vocacionado para a
evangelização do Alentejo: “Autorizo, mas, se quiser trabalhar com pobres, não lhe
vai faltar lugar na diocese”. A que propósito me falou em “trabalhar com pobres na
diocese” se eu apenas lhe referi a missionação no Alentejo? Agora, julgo adivinhar o
pensamento que lhe ocupava o espírito.
Estes factos fazem-me crer que a ideia da criação da Obra dos Bairros teve
uma longa gestação no coração e na mente de um bispo para quem os pobres
eram prioritários na sua ação episcopal. Preocupava-o a presença da Igreja nos novos aglomerados populacionais que iam surgindo na cidade e muito especialmente
o apoio às populações desenraizadas das “ilhas do Porto” acantonadas nos grandes
bairros que a Câmara Municipal estava a construir. Esta prioridade irá levá-lo à criação da “Obra dos Bairros” e, também, a uma reorganização paroquial da cidade com
o projeto de oito novas paróquias, seis das quais nas periferias onde se localizava a
grande maioria desses bairros: Senhora do Porto, com os bairros do Viso e Ramalde
do Meio; Senhora da Ajuda, com os bairros da Pasteleira e Rainha D. Leonor; Senhora
do Calvário com os bairros do Cerco do Porto e S. Roque da Lameira; Azevedo de
Campanhã com o bairro do Lagarteiro; Senhora do Amial com os bairros do Regado
e do Carriçal e Senhora da Areosa com o bairro Pio XII e S. João de Deus.
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A GÉNESE
Ao falar do nascimento da Obra Diocesana, logo me vem à mente aquele
professor de geografia que, ao lecionar os rios portugueses, começava por motivar
os seus alunos, dizendo que um dia bebeu o rio Mondego. Perante a incredulidade
dos ouvintes, explicava: não foi em Coimbra e muito menos na Figueira da Foz. Foi,
sim, no cimo da serra da Estrela,
no lugar do Mondeguinho onde
a sua nascente brota de um fontenário. Ao beber na bica dessa
fonte, estanquei toda a sua água.
Os alunos diziam: assim não vale,
até nós fazíamos. O professor
sorria porque tinha captado a
atenção de toda a sala. E concluía: “ as coisas grandes nascem
sempre pequeninas. Assim o
vosso futuro”.
Lembro-me ainda da parábola que Cristo conta no Evan- O Mondeguinho na Serra da Estrela.
gelho de São Mateus, 13,31-32:
“O reino dos céus é comparado a um grão de mostarda que um homem toma e
semeia em seu campo. É esta a menor de todas as sementes, mas quando cresce,
torna-se um arbusto maior que todas as hortaliças, de sorte que os pássaros vêm
aninhar-se em seus ramos”.
Assim, também a Obra nasceu pequenina. Ainda ressoavam as palavras do
bom Papa João XXIII na abertura do Concílio Vaticano II: “A Igreja (…) abre a fonte da
sua doutrina vivificante, que permite aos homens, iluminados pela luz de Cristo, compreender bem aquilo que eles são na realidade; a sua excelsa dignidade e o seu fim; por
meio dos seus filhos, estende ainda a toda a parte a plenitude da caridade cristã, que é
o melhor auxílio para eliminar as sementes da discórdia.” E que ganhariam corpo na
Gaudium et Spes: “As alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos homens
de hoje, sobretudo dos pobres e de todos aqueles que sofrem, são também as alegrias e
as esperanças, as tristezas e as angústias dos discípulos de Cristo. (…) Por esse motivo, a
Igreja sente-se real e intimamente ligada ao género humano e à sua história”.
21
A Obra Diocesana traz consigo a marca da sua época: os “anos sessenta” das
grandes utopias, em tempos de Vaticano II. É uma Obra de e da, mas não para a Igreja;
uma obra eclesial mas não eclesiástica e, muito menos, clerical. Ao serviço de todos sem
distinção de género, idade, cultura, classe ou credo, é de leigos e dirigida por leigos.
Porém “não é laica, mas assente nos princípios francamente cristãos e acompanhada da
acção espiritual (sem a qual toda a promoção humana resulta mutilada) ”, como, em 17
de Outubro de 1964, dizia “A Voz do Pastor”, o jornal oficial da Diocese do Porto.
Gerada no coração de
um bispo, acalentada pelo humanismo de um presidente da
Câmara Municipal do Porto, ganhou vida na dedicação e saber
de uma mulher. O bispo foi D.
Florentino, preocupado com as
gentes pobres compactadas em
bairros camarários; o presidente foi dr. Nuno Pinheiro Torres,
apoiado pela vereadora D. MaCerco do Porto - D. Florentino e o Presidente da Câmara,
ria José Novais, para quem não
Dr. Nuno Pinheiro Torres
bastava dar casa às pessoas, era
preciso dar alma; a mulher cha-
mava-se D. Julieta Cardoso, diretora do Instituto de Serviço Social do Porto que foi
o berço inicial da Obra. Este é o tripé em que assenta a origem da Obra Diocesana.
Se D. Florentino foi a sua “alma-mater” e Nuno Pinheiro Torres o patrocinador, já D.
Julieta Cardoso foi a “abelha-mestra”.
22
A OBRA E O SECRETARIADO
A Obra deu os seus primeiros passos no seio do Secretariado Diocesano
de Ação Social, criado, em 1963, por D. Florentino e cuja direção era formada pelo
Pe. Teixeira Fernandes, dr. Pedro Cunha e a já referida D. Julieta Cardoso. Quando se
verificou que a ação junto dos bairros camarários exigia uma obra vocacionada exclusivamente para esse efeito, foi criada a “Obra dos Bairros” que, pouco a pouco, se
autonomizou do Secretariado. Foi em fevereiro de 1964 – o dia não posso precisar
- que D. Florentino me chamou para falar do Secretariado Diocesano e do trabalho
que iria desenvolver. Explicou-me que, de acordo com o seu projeto, eu, embora continuasse coadjutor em Santo Ildefonso, iria colaborar com o Secretariado no
trabalho que estava para ser lançado no bairro do Cerco do Porto. Queria que assumisse, como seu representante, a responsabilidade da Obra dos Bairros que estava
a ser criada. Disse-me, ainda, que era sua intenção erigir uma nova paróquia nessa
zona oriental da cidade onde se implantaram vários bairros com um extraordinário
aumento da população. Por isso, eu começaria pela ação social e pastoral no bairro
do Cerco e, progressivamente, deveria alargar a ação social da Obra a outros bairros
camarários ao mesmo tempo que a minha ação pastoral se estenderia a todo o
território da futura paróquia.
No início, a ligação entre Secretariado e Obra foi total. A Obra era o Secretariado em ação. Era a linha da frente na concretização do seu objetivo que visava
contribuir para a promoção das populações dos bairros do Porto. Enquanto permaneci como coadjutor de Santo Ildefonso, e embora já participasse na direção da
Obra, o meu trabalho quase se limitava ao bairro do Cerco e a conexão com a direção do Secretariado era feita através do P. Teixeira Fernandes e de D. Julieta Cardoso.
Só, quando em novembro de 1964, fiquei a tempo inteiro ao serviço da Obra é que,
verdadeiramente, assumi responsabilidades de direção. Mas a relação umbilical da
Obra com o Secretariado apenas terminou, no plano jurídico, com a aprovação dos
seus Estatutos em 1967, o que motivou alguma confusão na Câmara Municipal que,
nos documentos, se referia sempre ao Secretariado Diocesano mas, na ação, todo o
diálogo era feito com a Obra e seus responsáveis.
Entretanto, a distinção entre Secretariado Diocesano de Ação Social e Obra
Diocesana de Promoção Social na Cidade do Porto foi-se tornando notória não só
nos seus objetivos mas também no que concerne ao âmbito do seu trabalho: Ação/
Promoção; Diocese/Cidade. No meu caso, nunca pertenci à direção do Secretaria23
do nem, desde que assumi a responsabilidade pela Obra, senti qualquer desejo de
interferência sua, bem pelo contrário, sempre houve um respeito total pela nossa
autonomia. Tudo se fez com muita tranquilidade. Unia-nos o mesmo espírito, animava-nos o mesmo sonho. Servíamos a mesma Igreja.
Direção da Obra em 1967: dr. Vitor Capucho, presidente (3º da direita), eng. Pinto Resende, tesoureiro,
e dr. Rocha Leite, vogal. (“Notas de Imprensa” n. 3)
24
O CARÁCTER INOVADOR DA OBRA
Para realçar o carácter inovador da Obra, refiro o nome, o âmbito de ação e
seus objetivos.
O seu nome foi mudando. Começou por ser a “Obra dos Bairros” (Um dia
recebi uma carta enviada por um sacerdote de Vila Real com o único endereço “ Rev.
Senhor Padre João dos Bairros - Porto” e a verdade é que a carta me foi entregue
na casa onde já morava no bairro do Cerco do Porto). Depois, foi “Obra Diocesana
de Acção Social nos Bairros da Cidade do Porto” e “Obra Diocesana de Acção Social”. Com a aprovação dos seus estatutos e o reconhecimento da sua personalidade
jurídica por despacho de S. Exa o Ministro da Saúde e Assistência, de 17 de Abril
de 1967, consagrou-se como “Obra Diocesana de Promoção Social na Cidade do
Porto”. Em novembro de 1998, com a alteração dos estatutos, e numa época em
que o Secretariado Diocesano de Acção Social já não existia (fora extinto em 1970
por D. António Ferreira Gomes) passou a ter o seu nome atual: “Obra Diocesana de
Promoção Social”.
Apesar destas alterações, a sua designação sempre incorporou o termo
“diocesana” (com exceção do primeiro quando ainda era apenas um ramo do Secretariado Diocesano). A pertença à diocese é uma das suas notas constitutivas. E,
contrariamente, nunca incluiu o termo “assistência” que era a palavra mais comum
na época para designar obras de solidariedade social. E, isso, como veremos, não foi
por acaso. Era a sua marca distintiva. A palavra “promoção” que acabou por ser consagrada no diploma da sua constituição jurídica era aquela que mais correspondia
aos objetivos da Obra mas que mais colidia com a linha ideológica do Governo e
com a mentalidade dominante de alguma da dita alta burguesia do Porto.
Desde o início, a Obra perseguia os seguintes objetivos: “Promover a valorização social dos grupos humanos em que exerce a sua actividade, consciencializando-os das suas potencialidades e levando-os a desenvolvê-las no sentido de dar resposta a
algumas das necessidades sentidas na comunidade em que estão integrados, por exº.
os bairros. Este trabalho é orientado por técnicos, em especial assistentes sociais,
e realizado por elementos do próprio meio” (A Voz do Pastor, 25 de Novembro de
1967).
A “Obra dos Bairros” – “Obra Diocesana de Promoção Social na Cidade do
Porto” queria promover o desenvolvimento integral do homem como agente da
sua própria história, fazer dos habitantes dos bairros “cidadãos de primeira” e aju25
dá-los a criar novas comunidades quando tinham perdido as antigas referências de
vizinhança. Muitos eram os que se sentiam escorraçados das “ilhas” onde nasceram
e emprateleirados, como objetos anónimos, em grandes bairros da periferia urbana.
Hoje, ao reler todo este articulado, relembro as constantes deslocações a
Lisboa e compreendo as dificuldades por que passámos. Como foi difícil (e pergunto-me como foi possível?) conseguir que o Senhor Ministro da Saúde e Assistência
aprovasse um Obra de “Promoção Social “. No próprio documento da sua constituição, verifica-se alguma ambiguidade. Chama-lhe “instituição de assistência”. Não
havia lugar para a “promoção social”. Como foi possível o Governo de Salazar dar
personalidade jurídica a uma Obra que tinha por objetivo “ Promover a valorização
social dos grupos humanos… consciencializando-os das suas potencialidades…”? A
Obra Diocesana era caso único no País. Desenvolvia uma atividade comunitária em
que eram os próprios cidadãos os fautores do seu desenvolvimento o que os tornaria incómodos para os poderes instituídos, porque, conscientes das suas necessidades, reclamavam os seus direitos. Os “pobres” eram, agora, agentes da sua própria
transformação, do seu engrandecimento como comunidade. Esta aprovação, penso, só foi possível porque a dra. Manuela Silva, nossa interlocutora, compreendeu
os nossos objetivos e nos apoiou junto do Diretor-Geral de Assistência, dr. Carvalho
da Fonseca. E deve-se também à extraordinária capacidade argumentativa de D.
Julieta Cardoso que, numa figura
discreta, escondia uma inteligência brilhante e uma cultura fora
de série.
Não foram encontros fáceis… Foram negociações duras
e longas. O nome foi um triunfo
e “é um trunfo”, como realçou D.
Manuel Clemente no primeiro
“A Voz do Pastor”, 17 de Outubro de 1964
jantar beneficente da “Liga dos
Amigos” em que participou no
ano de 2007.
Este objetivo esteve presente logo no início da Obra. “A Voz do Pastor”,
em 17 de setembro de 1964 (“Notas de Imprensa n.º 1), anunciou-o com o título
profético “Uma obra de vasta projecção futura: a Acção Social nos novos Bairros”: Todo o trabalho é feito pela própria população e da sua responsabilidade, com
26
a devida ajuda de animadores (dos Cursos de Cristandade) e a coordenação duma
assistente social.
Foram convidadas todas as famílias a assistirem a reuniões preparatórias e
a exporem os problemas da comunidade. À medida que se apuravam as necessidades mais importantes, assim se criaram comissões para cada grupo de necessidades semelhantes.
Não foi só por ser uma obra de “Promoção Social” que tivemos dificuldades. Também o seu âmbito foi motivo de discussão junto do Governo e, especialmente, da Câmara do Porto: nasceu como sendo “Obra dos Bairros”. Mas…
Sempre quisemos que a população do bairro se integrasse no conjunto habitacional onde se inseria. Por isso, a Obra não podia limitar-se aos bairros camarários. Razão tinha a Voz do Pastor ao falar em “ aglomerados populacionais”
e “zonas” e não em bairros. Mas não era isto que pensava uma das fações dirigentes da Câmara. Que a Obra procurasse manter os “pobrezinhos” tranquilos e
sem sobressaltos, bem acantonados nos seus espaços, ainda bem, mas, mais do
que isso… e, especialmente, envolvê-los nas comunidades circundantes onde
viviam pessoas de outro nível social, isso é que não. E tudo fez para que a intenção da Obra nunca se realizasse e a sua ação se confinasse ao interior de cada
um dos bairros. Mas o objetivo da Obra sempre foi o de promover a valorização
social e humana dos bairros de modo que a sua integração nas comunidades
envolventes fosse bem aceite por ambas as partes. Não era tarefa fácil. Neste
trabalho, a ação social da Obra precisava de ser apoiada pela ação pastoral de
uma Igreja que, na linha do Vaticano II, se conhecia como povo de Deus que
peregrinava no tempo e na sociedade dos homens. Quando esta colaboração
se deu, a integração foi feita com serenidade e mútuo proveito. Quando não…
Para realçar esta vertente de “cidade”, a Obra incluía a “cidade do Porto” na
sua denominação. E fê-lo intencionalmente para definir que o seu campo de
atuação, se não era coincidente com o do Secretariado que abrangia toda a
diocese, também não se confinava aos bairros camarários. Os bairros também
eram “cidade do Porto”. Hoje, os candidatos autárquicos não os esquecem, especialmente, em tempos eleitorais…
O antagonismo de posições ficou bem expresso quando a Câmara pediu à Obra para ajudar na preparação da transferência das famílias ciganas que
viviam nas barracas que se concentravam ao fundo da Avenida de Fernão Magalhães, junto da Areosa. Verificámos que a Câmara, no acantonamento dos ci27
ganos, prosseguia uma política diferente da que tinha seguido com as “ilhas do
Porto”, habitadas por gente, na maioria vinda do interior, que, havia muitas gerações, conquistara o direito de viver no centro do Porto. Eram tempos diferentes
dos de hoje. As comunidades ciganas não indiciavam qualquer perigo para os
poderes constituídos. Este residia, sim, nas “ilhas operárias” numa época em que
o Partido Comunista tinha grande implantação numa cidade ainda muito industrial. Não podemos esquecer que as eleições com Humberto Delgado, que fizeram estremecer o “Estado Novo”, tinham acontecido poucos anos antes (1958).
Importava desfazer estas comunidades bem antigas e unidas por laços de forte
afetividade em que os moradores se queriam como família. É interessante que,
no dia 6 de agosto de 2013, numa reportagem do Jornal de Notícias, um morador duma das ilhas que ainda restam confessava “Se alguém está doente, toda
a gente deita uma mão. Somos uma comunidade e preocupamo-nos com os
vizinhos. Se alguém não é visto mais do que dois dias, vamos bater à porta. Se
não abrir, telefonamos-lhe para saber se tudo está bem”. E, por isso, a Câmara
dispersou-os por diversos bairros que acabavam povoados por pessoas que, em
grande parte, se desconheciam. Como era diferente o ambiente que se vivia nos
bairros em relação às antigas ilhas! Apenas três apontamentos que o revelam. O
primeiro é tirado da minha experiência pessoal. Como já disse, antes de vir trabalhar nos bairros, fui coadjutor em Santo Ildefonso onde havia muitas ilhas de
que recordo as de “S. Vitor”. Quando ia a essas ilhas visitar um pobre, os vizinhos,
ao saber quem ia visitar, logo me diziam: “coitadinho, bem precisa de que o ajudem” e nunca ninguém me disse “eu preciso mais do que ele”. Já no bairro do
Cerco, nos meus primeiros tempos, quando ia visitar doentes, nunca ninguém
me repetiu o que ouvira nas “ilhas” e sempre alguém aproveitava para se queixar
das suas dificuldades e até dizer “eu preciso mais do que ele”. Outro facto tem
a ver com as festas de S. João. Um hábito profundamente tripeiro e bem enraizado nas tradições das ilhas. Cada uma empenhava-se em organizar, o melhor
possível, a sua festa em despique com as outras ilhas numa espécie de concurso
em que os juízes eram os próprios moradores e, por isso, a sua festa era sempre
a melhor de todas. Esta tradição perdeu-se nos bairros e, só a pouco e pouco,
é que foi sendo retomada mas sem o envolvimento comunitário e sem o bairrismo que animava as ilhas. O terceiro também faz parte da minha experiência.
Para sabermos donde provinham os moradores do bairro, bastava ouvir as suas
conversas sobre as mercearias donde gastavam, os sapateiros onde mandavam
28
“deitar as meias-solas”, o barbeiro onde cortavam o cabelo, as
costureiras ou os alfaiates onde
mandavam fazer ou reparar a
sua roupa. É que, durante muito
tempo, continuavam a usar os
locais das suas antigas zonas de
residência. Só muito lentamente é que começaram a frequentar o comércio e os serviços da
nova residência.
Com os ciganos a Câ- Equipa dos “Unidos ao Porto F. C” – oferecida em 20 de
mara, em vez desta política de junho de 1965 aquando da nossa primeira visita ao bairro
dispersão, concentrou-os no de S. João de Deus
mesmo bairro, construído em
local bem isolado que os afastava dos lugares onde a sua presença denegria a
imagem da cidade e emprateleirou-os em blocos de vários pisos. A Obra, pelo
contrário, pensava que as antigas comunidades das “ilhas” deveriam manter-se
nos novos bairros, e, que, no caso das famílias ciganas, deveria encontrar-se um
modelo diferente de habitações, que respeitasse a sua cultura de matriz nómada e patriarcal, em pequenos núcleos residenciais que evitassem a formação de
guetos e favorecessem a sua integração no meio circundante. Recordo-me de,
ao ver uma das habitações do bairro de S. João de Deus, perguntar a um engenheiro da Câmara que me acompanhava: “Onde está a corte para o burro? E as
arrecadações para as suas mercadorias? Têm de as transportar para o 3ª e 4º andar? Como, às costas?” É que muitas dessas famílias ciganas viviam do pequeno
negócio das feiras e eram os animais que transportavam os seus produtos. Não
havia elevadores nos blocos e o automóvel ainda era luxo de gente rica. Mas,
mais uma vez, a Obra, colocada perante factos consumados, não foi ouvida.
Nunca quis que os bairros fossem tratados como guetos e muito menos como
“reservas” onde os Estados Unidos juntaram os índios que não exterminaram.
Nem guetos nem “reservas” para onde se mandavam os “pobrezinhos”… Não,
os bairros camarários nunca deveriam ser “bairros dos índios” e muito menos
“Tarrafal” como era conhecido o bairro de S. João de Deus. Eram bairros de pessoas, de gente de bem, de cidadãos de corpo inteiro.
29
30
DOIS BISPOS – DOIS CARISMAS
Dois bispos, duas personalidades, dois carismas, em dois momentos diferentes da Obra. Um fundou-a, outro consolidou-a. Um a gerou e embalou nos tempos da
sua meninice, outro a amparou nos momentos conturbados da adolescência.
D. Florentino de Andrade e Silva
“A memória guarda o que foi bom daqueles que nos morrem”. E eu, de D. Florentino, recordo a sua índole mística e a preocupação pelas populações mais desfavorecidas. Os tempos eram propícios para a criação da Obra. D. Florentino sabia
que podia contar com os novos padres saídos do Seminário onde, imbuídos pela
espiritualidade de Charles de Foucauld, se tinham aberto à pastoral socio-caritativa
junto dos pobres do bairro da Sé. Sabia que podia socorrer-se do entusiasmo dos
“cursistas” dos Cursos de Cristandade e dos militantes da Ação Católica, conscientes
do seu “ser-Igreja”. Sabia que podia apoiar-se no saber do Instituto de Serviço Social
vocacionado para o trabalho em favor do homem integral como agente da sua
promoção pessoal e comunitária. Sabia que tinha consigo o humanismo cristão do
presidente da Câmara, dr. Nuno Pinheiro Torres, que era apoiado pelo empenho
apostólico da vereadora da ação social, D. Maria José Novais.
Desde a sua criação, a “Obra” era a menina bonita de D. Florentino que, sem
interferir na sua autonomia, a acarinhava e acompanhava com particular desvelo.
Recordo a missa campal que celebrou no dia 15 de agosto de 1964, no bairro do
Cerco, em frente do bloco 19 (a primeira missa celebrada naquela que viria ser a
futura Paróquia de Nossa Senhora do Calvário).
Também foi a sua primeira visita ao bairro onde a Obra se iniciara. Nela,
realizou o primeiro contacto local com todos os habitantes empenhados nas diversas comissões de trabalho já em curso. Em maio de 1965, voltou ao bairro para
visitar, nas caves do bloco 2, a exposição organizada pelas comissões que quiseram
assinalar o primeiro aniversário do seu início, mostrando o trabalho já realizado e
perspetivado (“Notas da Imprensa” n.º 2). No dia 7 de março de 1966, celebrou missa
na capela da Senhora da Paz, mesmo no coração do bairro de S. Roque da Lameira.
Também aí tomou contacto com os habitantes empenhados nas diversas iniciativas
sociais que decorriam nesse bairro.
No dia 1 de novembro de 1966, voltou ao bairro do Cerco onde benzeu
a capela de Nossa Senhora do Calvário (“Notas da Imprensa” n.º 3). Mais uma vez
31
recebeu os elementos das comissões que animavam a vida social
do bairro.
No dia 31 de dezembro
desse ano, foi celebrar a missa
com que os cristãos costumavam
festejar a passagem de ano: de
ação de graças pelo que findaD. Florentino no dia da bênção da capela de Nossa
va e de oração pelo que nascia.
Senhora do Calvário
A partir dessa data, D, Florentino,
quando podia, aparecia e presi-
dia à Eucaristia dominical. Não havia preparações especiais. Presidia e fazia a homilia
e eu concelebrava. Sentia-se em casa. Os moradores habituaram-se a vê-lo como
seu pastor. As crianças tratavam-no com o mesmo carinho que dedicavam ao seu
padre e, como não sabiam o nome, saudavam-no simplesmente como ”Senhor Padre Bispo”, o que sempre fazia aparecer um sorriso na palidez ascética do seu rosto.
Para elas, bispo não era título de alguém importante mas nome próprio duma pessoa que as acarinhava. Este tratamento muito familiar terá surpreendido, como me
contou o P. Silva Martins, pároco da Madalena, D. António, na sua primeira visita ao
bairro, quando um pequenito se abeirou dele, estendeu-lhe a mão e disse: “como
está, senhor Padre Bispo?”
Das conversas semanais que procurou manter comigo, gostaria de evocar
duas porque representaram dois momentos de algum confronto de opiniões que
ajudaram a clarificar o estatuto e o trabalho da Obra.
A primeira aconteceu quando foi necessário estabelecer o primeiro ordenado para a assistente social que passara a trabalhar na obra a tempo inteiro. Até
aí, toda a atividade fora realizada em regime de puro voluntariado. Após uma longa
troca de ideias, concluímos que a Obra deveria pugnar para que os seus trabalhadores estivessem imbuídos pelo mesmo espírito de apostolado que animava os voluntários. Mas não poderíamos querer praticar a caridade à custa da justiça. Aquele
era o seu “ganha-pão”. E não era com “espírito de apostolado” que as funcionárias
podiam pagar as despesas da mercearia no final do mês. O espírito de apostolado
é imprescindível, mas não suficiente. E até foi lembrado que “não pagar o salário a
quem trabalha” é um dos “pecados que bradam aos Céus”. E, por, isso, dentro dos
seus condicionalismos económicos, a Obra deveria pagar o justo salário aos seus
32
trabalhadores. Ao dar trabalho a quem precisa, a Obra está também a praticar uma
obra de caridade. E aprovou a proposta de ordenado por mim apresentada que
passou a servir de referência para todas as contratações posteriores.
A outra aconteceu quando, embora reconhecendo a validade do seu trabalho, muitos lhe diziam que a Obra não aparecia como sendo da Igreja. Eu sabia
donde vinha este lamento. O problema não estava na vontade de servir mas na afirmação de poder. Foi sempre este o grande mal da Igreja que o atual Papa Francisco
muito quer extirpar. Vivíamos tempos em que ainda prevalecia forte a mentalidade
clerical. A Igreja como “povo de Deus” ainda não tinha entrado em muitas cabeças
para quem, se a obra era da Diocese, as assistentes sociais locais deveriam estar
subordinadas às orientações paroquiais. Como a Obra era autónoma e coordenada por leigos, a situação complicava-se. Ainda por cima, as assistentes sociais, impregnadas das novas ideias conciliares que salvaguardavam a autonomia dos leigos
em campos que lhes eram específicos, tornaram-se muito sensíveis a tudo quanto
pudesse representar ameaça de uma intromissão ou lhes cheirasse a clericalismo.
Depois de uma longa conversa, ficou claro que a Obra gozava de liberdade para
trabalhar em qualquer bairro da cidade sem dependência da respetiva paróquia e
que as assistentes sociais locais não prestavam obediência às estruturas paroquiais.
No entanto, deveria haver colaboração de parte-a-parte mas sem dependências.
Embora fosse de fomentar um diálogo próximo da assistente social local com as
estruturas paroquiais, a ligação entre as assistentes sociais e as paróquias deveria
ser coordenada pela direção da Obra e, muito especialmente, pelo seu sacerdote.
Havia que harmonizar trabalhos que se completavam mas sem nunca se digladiar.
Eram faces da mesma Igreja. Mais ainda, a Obra deveria promover nos habitantes a
autonomia e a autoestima e não um sentimento de gratidão subserviente à Igreja.
E até nos sorrimos ao lembrar o mealheiro para as missões que estava, então, numa
farmácia da rua de Sá da Bandeira, onde havia a imagem de um “pretinho” que,
quando alguém dava uma esmola, ficava, vários segundos, a abanar a cabeça como
que a dizer “muito obrigadinho pela esmola”…
D. António Ferreira Gomes
Durante o seu longo e penoso exílio de dez anos, imposto pelo governo
de Salazar, D. António sempre seguiu de perto a vida da Diocese e, muito cedo, se
interessou por esta obra que D. Florentino criara. Nas duas visitas que lhe fiz antes
do seu regresso à diocese – uma em Alba de Tormes (Espanha) e outra em Fátima
33
– quando soube quem eu era, quis falar comigo sobre a Obra, seus objetivos e realizações. Falámos longo tempo. Estava particularmente interessado em saber qual
o papel que, nela, desempenhava o Instituto de Serviço Social que ele havia criado
em 1956.
No nosso primeiro encontro após o seu regresso à diocese, as primeiras palavras que me disse foram:
-Por que é que sendo o senhor conhecido na Câmara como “o Padre Comunista”
ainda não foi preso?
- Porque não sou comunista, porque me limito a ser sacerdote, e porque não
sou ingénuo…
- Explique-me a terceira, pediu D. António.
E eu, sem demorar, comecei por explicitar a origem possível desse epíteto
numa sociedade onde trabalhar, defender e valorizar os pobres era ser comunista.
(Que pena que os cristãos tenham deixado fugir para outros os valores que estão
na sua matriz fundadora. Cristo sempre privilegiou os mais pobres. O mesmo já
acontecera aquando da Revolução Francesa em que “Igualdade, Liberdade e Fraternidade” foram assumidos como novos valores revolucionários contra a Igreja quando eles são de origem claramente cristã.) E confidenciei-lhe os estratagemas que
usava para evitar cair nas malhas da PIDE. Disse-lhe: “critico muitas vezes a política
da Câmara, estou do lado dos moradores dos bairros. E isso faço-o abertamente. Já
quanto ao Governo, sempre que discordo da sua política, faço-o num enquadramento litúrgico. Nunca fora da igreja. Quando quero distribuir um documento ao
povo, convido quem quiser a procurá-lo na sacristia. Assim não posso ser acusado
de estar a espalhar, na rua, panfletos subversivos. Mais, com outros colegas, conheço vários livreiros que, quando recebem um livro que pensam irá ser retirado pela
PIDE, avisam-nos e um de nós vai logo comprá-lo. Muitas vezes, aproveito esse livro
para o citar nas homilias, mas tendo sempre o cuidado de acrescentar: Estou a citar
o livro… que comprei na livraria… no dia… Nunca me podem acusar de me apoiar
em literatura clandestina porque não tenho obrigação de saber que o livro, quando o citava, já fora retirado de circulação pela PIDE nem esta o queria confessar”.
Disse-lhe, ainda, que muitos dos meus acólitos e leitores eram polícias do bairro da
PSP. Quando vou fazer uma homilia que poderá ter leitura de ordem sociopolítica,
digo-lhes que não os quero a servir o altar, para não os comprometer. Em contrapartida, eles, quando veem algum agente da Pide na capela, avisam-me. Recordo
o dia em que a homilia ia ser sobre um tema que poderia ter incidências políticas.
34
Avisaram-me da presença da Pide e eu falei muito bem do céu… Uma desilusão
para os agentes… “ Depois de me ouvir, disse: “tenha cuidado e continue. Eu antes
quero um padre a trabalhar junto das populações que um herói na prisão”.
Não foram tempos fáceis os de D. António. A Obra passava novamente por
um período em que era preciso clarificar funções e poderes. E, agora, era bem mais
complicado que no tempo de D. Florentino. O conflito de poderes dava-se no interior da própria Obra, entre algumas assistentes sociais e a direção. De que grau de
liberdade gozavam as assistentes sociais, nos seus locais de trabalho? Qual o papel
da Direção? Não foi tarefa fácil. Só
a autoridade e prestígio de D. António foi capaz de evitar uma rotura que poderia ter ditado o fim
da Obra. Mesmo assim, algumas
feridas perduraram. Mas ficou
claramente dito que a política da
Obra era definida pela Direção,
embora respeitando a autonomia do trabalho das Assistentes
Sociais locais sob a orientação da
Assistente Social Coordenadora D. António junto da capela da Paz no bairro de S. Roque
que trabalhava com a direção.
da Lameira
Um sinal que me indicou
o quanto D. António estimava a Obra e a desejava engrandecer foi-me dado, logo
nos primeiros tempos, quando me mostrou vontade de convidar o dr. Francisco Sá
Carneiro, já então deputado da Assembleia Nacional, para seu presidente. Entendi-o, então, como uma forma implícita de mostrar o seu reconhecimento a um político que, devido ao seu prestígio junto de Marcelo Caetano, muito contribuíra para o
seu regresso à sua diocese do Porto. E, escolher para esta homenagem a direção de
uma instituição diocesana de que nem sequer fora criador, revelava-me a elevada
consideração que tinha pela Obra Diocesana. Este apreço saiu reforçado ao nomear
a nova direção em 1971 com a participação do dr. Sá Carneiro e arquiteto Fernando
Távora, diretor da Escola de Belas Artes, que, à época, já gozava de reconhecidos
méritos. O seu empenho na Obra ficou claramente expresso no jantar com que quis
agradecer e homenagear a direção, no Paço Episcopal, em 1971.
35
A sua confiança na direção foi reafirmada quando houve necessidade de
nomear uma nova coordenadora da Obra. Depois de pedir conselho a D. Julieta
Cardoso e ouvir toda a direção, apresentei a D. António o nome duma assistente
social muito ligada ao Instituto de Serviço Social. Disse-me que a sua nomeação
ficava ao nosso critério. Entretanto, algum cuidadoso “curador da moral pública”,
daqueles que são mais “papistas que o papa” e pululam em muitas instituições,
deu-lhe informações que eu não prestara. Quando, passados oito dias, voltamos a
reunir, perguntou-me se a coordenadora, de que lhe falara, era noiva de um presbítero que havia pedido dispensa do exercício sacerdotal. Respondi-lhe que sim
e, se isso não lhe referira, foi porque considerava tratar-se de um assunto pessoal
que não interferia com a sua competência profissional nem com a sua dignidade
moral e cristã. “Mas há algum problema?” Perguntei. – “Não”, respondeu-me. – “Eles
podem viver em Famalicão e ela trabalhar aqui”. É que a concessão da “dispensa das
obrigações inerentes ao estado sacerdotal” impunha a quem a solicitava o dever de
“residir onde a sua condição de sacerdote não for conhecida”. E D. António cumpria,
apesar de não concordar com a expressão “redução ao estado laical” e de admitir
que a lei do celibato eclesiástico não era uma exigência evangélica e, como tal, iria
ser revista. A coordenadora continuou o seu serviço na Obra e D. António nunca
mais me falou no assunto.
Gostava de deixar aqui alguns registos que ajudam a compreender a personalidade do “famoso bispo do Porto”, como lhe chamou o papa João Paulo II, quando ele lhe apresentava cumprimentos de despedida no Regimento de Artilharia da
Serra do Pilar. (Cartas ao Papa, página 15)
Recordo, como se hoje fora, o dia do funeral de Salazar. Quando, após o
almoço, caminhávamos da sala de jantar para a sala de audiências, passámos num
pequeno gabinete onde um televisor transmitia o final do funeral de Salazar no
cemitério de Santa Comba Dão. Parece que estou a vê-lo. Surpreendido, parou. Ficou imóvel. Benzeu-se. E em total recolhimento assistiu ao baixar do caixão à cova.
Pareceu-me balbuciar uma oração. No final, voltou a benzer-se e, em jeito de desabafo, disse para si mesmo: “este já não faz mais mal a ninguém”. E continuou o seu
trabalho como se nada tivesse ocorrido.
Num momento de grande tensão entre a Obra e o Governo, D. António
falava-me dos bispos do Porto que sempre pugnaram pela afirmação da liberdade
da Igreja face ao Poder Político, com grande destaque para D. António Barroso. E
quando lhe perguntei a razão para esta independência dos bispos do Porto, res36
pondeu-me, de modo muito simples: É que nós não casamos as filhas dos Senhores
Ministros nem lhes batizamos os netos…
Quando monsenhor Alves de Oliveira, diplomata da Santa Sé (Nota de Imprensa n.º 8) pediu dispensa do exercício sacerdotal, D. António, que era seu íntimo
amigo, comentou comigo: a grande maioria dos que pedem dispensa são homens de
muito valor, eu espero que formem a retaguarda teológica da Igreja.
Num dia de inverno, estávamos a falar sobre sinais de pobreza na Igreja.
Então, D. António disse: é preciso ter cuidado com a autenticidade desses sinais.
Este paço episcopal, com grossas paredes de granito e tetos muito altos, é muito
frio e desconfortável no inverno. Eu podia ir viver para um apartamento muito mais
confortável. Há quem mo aconselhe. Essa atitude seria vista como um gesto de
pobreza e todos louvariam a minha coragem. Seria um sinal de pobreza mas eu é
que ficava beneficiado...
Na 2.ª feira de Páscoa de 1970, vários sacerdotes galegos, que eu conhecera
no Colóquio Europeu de Paróquias, em Turim, no ano anterior, vieram visitar-me e
mostraram grande desejo de cumprimentar D. António, recentemente regressado à
diocese. Informado, no Paço Episcopal, que se encontrava na sua casa de família em
S. Martinho de Milhundos, para lá nos dirigimos sem qualquer aviso ou marcação prévia. Quando lá cheguei e o informei de quem trazia comigo, logo os mandou subir
e, depois de saudar pessoalmente
cada um, disse com um sorriso
muito acolhedor: “então, falemos
um pouco em português arcaico”. Ao aperceber-se que, entre
esses presbíteros, se encontrava
um jovem professor de Teologia
no Seminário Maior de Santiago
de Compostela, de nome Andrés
Torres Queiruga, já então um especialista da “teologia da encar- D. António no Cerco do Porto
nação”, entabulou com ele um
profundo e longo diálogo sobre o contributo do cristianismo na afirmação da “nação
galega” e a “alma luso-galaica” tão apregoada pelo “Grupo Nós” de Castelao e Teixeira
de Pascoes. “Nasceu aí uma admiração mútua” (“Notas de Imprensa” n.º 9). Torres
Queiruga nunca mais esqueceu “aquel obispo valiente desterrado por Salazar”.
37
“Fruto do único Espírito”
Disse Bento XVI, “graças aos carismas, a Igreja apresenta-se como um organismo
rico e vital, não uniforme, fruto do único Espírito que conduz a todos à unidade profunda, assumindo a diversidade sem aboli-la e realizando um conjunto harmonioso”.
D. António, em 1956, patrocinou a criação da Associação de Cultura e Serviço
Social do Porto que dará suporte ao Curso de Serviço Social do Porto. Ao fazê-lo – é uma
mera hipótese- poderá ter pensado na fundação de uma instituição onde os alunos pudessem aplicar os seus conhecimentos. E é de acreditar que poderia ter partilhado estas
realizações e intenções com o seu bispo auxiliar que, à data, era D. Florentino, sagrado
em 27 de março de 1955. Estou no campo das suposições pois, de facto, nunca nenhum
falou comigo sobre este assunto. Mas parece-me que são hipóteses verosímeis… A verdade é que, como disse, D. António prestou a máxima atenção à Obra. Seja como for,
podemos concluir que, fruto do único Espírito, a Obra Diocesana tem, na sua génese, a
intuição intelectual de D. António Ferreira Gomes que o levou a fundar o Instituto de
Serviço Social e o coração de D. Florentino de Andrade e Silva que criou a Obra e aproveitou, inteligentemente, o saber e a disponibilidade desse Instituto.
Como eram diferentes estes dois bispos!... Estas diferenças estão bem patentes
na citação bíblica que cada um inscreveu nas suas “Armas de Fé”. D. Florentino escolheu
“Clarifica nomen tuum” Jo 12,28. (Pai, glorifica o teu nome). Um contemplativo, fazia da ação
um hino de louvor a Deus. Na Obra, valorizava a proteção e a dignificação do pobre que
via como sacramento de Cristo. Já D. António optou por “In lumine tuo videmus lumen Ps
35,10. (É na vossa luz que vemos a luz). Mais que um bispo edificante, D. António sempre se
viu como um bispo edificador, um educador, com a divisa “de joelhos diante de Deus, de
pé diante dos homens”. Privilegiava a “pastoral da inteligência” assente “na trilogia da Liberdade, Igualdade, e Fraternidade” (Cartas ao Papa). Na Obra, agradava-lhe, sobremaneira,
a promoção dos valores humanos que considerava essencial na missão da Igreja. Em D.
Florentino, sobressaía a dimensão pastoral, em D. António, a profética. E como era diferente
a minha atitude na sua presença. Com D. Florentino eu conversava e ele ouvia-me; com
D. António, eu ficava extasiado a ouvi-lo, tal era a riqueza dos seus conhecimentos. Não
esqueço a lição de história que um dia me deu ao falar do “Cerco do Porto”. Parecia que
tinha participado nele, tal a riqueza de pormenores da sua narrativa histórica. Na diferença,
se complementavam. Esta é a riqueza da Igreja que é Católica na diversidade das pessoas,
dos lugares e dos tempos. Como disse o Papa Francisco, na muito significativa entrevista
que concedeu ao diretor da “Civiltà Cattolica”, “Devemos caminhar unidos nas diferenças:
não há outro caminho para nos unirmos. Este é o caminho de Jesus”.
38
A OBRA E A CÂMARA MUNICIPAL DO PORTO
Desde o início, pressentia-se que na Câmara se confrontavam dois projetos
diferentes para a Obra dos Bairros. O primeiro, que esteve na sua origem, via-a como
um serviço às populações desalojadas das ilhas. Era seu mentor o presidente, dr. Nuno
Pinheiro Torres, que contava com o apoio de D. Maria José Novais, vereadora da Ação
Social, dr. Carlos Lobo, diretor dos Serviços Centrais e Culturais em quem o Presidente
delegara competências para dialogar com a Obra e o engenheiro Amendoeira dos
Santos com interferências nos bairros. Esta visão humanista e cristã foi-me claramente
expressa numa conversa que tive com o senhor Presidente nas seguintes palavras:
a Câmara procura dar casas às pessoas. Mas isso não basta. É preciso dar-lhes alma. E
essa tarefa nós não sabemos nem podemos fazer. Vós, sim. Por isso, vos apoiamos. Esta
era também a perspetiva de D. Maria José Novais que, na reunião camarária de 25
de novembro de 1966, após assistir à bênção da capela do Cerco do Porto, afirmou:
temos de dar alma a esses corpos (os bairros camarários) que bem precisam de se realizar
plenamente. Em contraposição, foi-se afirmando uma outra conceção que via na Obra
um instrumento ao serviço da política camarária e visava a pacificação dos bairros,
cujos moradores tinham sido obrigados, na sua grande maioria, a abandonar as antigas casas nas “ilhas” situadas no centro do Porto e ir viver para bairros periféricos sem
qualquer possibilidade de escolha.
A primeira conceção esteve na origem de todo o apoio dado pessoalmente
pelo senhor presidente que sempre respeitou a autonomia da obra e via a presença
dos sacerdotes nos bairros como um bem precioso. Não foi por acaso que pediu a D.
Florentino um padre para o bairro da Pasteleira e, no dia 15 de agosto de 1964, no fim
da primeira missa celebrada no bairro do Cerco a que assistiu, pediu a D. Florentino
que me deixasse ficar a tempo inteiro no bairro. Não foi por acaso que a Câmara patrocinou a construção da capela da Pasteleira assim como a do Cerco do Porto a cuja
bênção, no dia 1 de novembro de 1966, por D. Florentino, assistiu. Não foi por acaso
que cedeu as instalações ocupadas pelos serviços de jardins e limpeza no bairro de S.
Roque da Lameira que deram origem à capela da Senhora da Paz, a cuja bênção, dada
por D. Florentino, assistiu, em representação da Câmara, D. Maria José Novais. Não foi
por acaso que concedeu e mandou preparar casas nos bairros da Pasteleira e do Cerco
do Porto para habitação dos sacerdotes que aí foram trabalhar. Não foi também, por
acaso que, para além do subsídio à Obra, deu seguimento a todos os pedidos que esta
lhe apresentava. O seu gabinete e telefone estavam sempre disponíveis para atender a
39
sua direção. Para ele, os padres que trabalhavam nos bairros eram uns amigos e a Obra
a sua grande colaboradora na humanização dos novos espaços habitacionais.
A segunda conceção tornou-se dominante, a partir de 6 de março de 1969,
quando um brutal acidente de viação, na zona da Branca em Abergaria-a-Velha,
roubou a vida ao dr. Nuno Pinheiro Torres.
Mas já antes disso, estes dois conceitos se confrontaram embora de modo
discreto. Aconteceu a propósito do centro social do Cerco do Porto, inaugurado em
26 de outubro de 1968, e que passou a servir de modelo para os outros centros sociais. Eis como tudo aconteceu. Quando iniciámos o trabalho no Cerco, começámos a
ocupar várias caves dos blocos que a Câmara nos cedia gratuitamente. Porém, havia
necessidade de juntar as diversas atividades num único local até porque essas casas
eram precisas para novos desalojados. Ao analisarmos o projeto do centro social que a
Câmara tencionava construir, vimos que não satisfazia as necessidades. Entabulámos
negociações. A situação era complicada porque implicava um investimento muito superior ao previsto. Decorriam ainda as negociações, quando o vice-presidente, aproveitando umas férias do presidente, enviou para o Ministério da Saúde e Assistência
o projeto em discussão. O dr. Pinheiro Torres, ao regressar, deparou-se com um facto
consumado e, não querendo entrar em conflito com o seu vice-presidente, informounos que já nada havia a fazer…
Mas, por vezes, acontecem imprevistos e felizes coincidências…
Passados uns dias, a direção da Obra recebeu um convite do Diretor-Geral da
Assistência que queria ouvir a opinião de diversas instituições do país a propósito de
um assunto que tinha entre mãos. Já não me lembro qual. Eu e D. Julieta logo pensámos aproveitar esse encontro em Lisboa para falarmos com o Diretor-Geral sobre o
que se passava com o centro social do Cerco. Munimo-nos de estatísticas sobre o número de crianças e jovens que tínhamos no bairro, fizemos uma pequena resenha dos
serviços que já estavam em funcionamento e dos que projetávamos incrementar. A
reunião seguiu os seus trâmites. No fim, o Diretor-Geral pediu-nos para ficar mais um
bocadinho porque gostaria de ouvir a nossa opinião sobre um assunto do Porto que
o Senhor Ministro lhe confiara. Aguardámos e qual não foi o nosso espanto quando
desdobrou na nossa frente o projeto do centro social do Cerco, pedindo-nos opinião.
Ignorava ele que o centro, embora construído pela Câmara, era para nosso serviço.
Depois de lhe explicar a finalidade do centro social, perguntámos: Senhor Doutor, a
creche que aí está prevista é para quantas crianças? E ele respondia (já não sei ao certo):
vinte. E nós informávamos: pelo inquérito feito, há no bairro cerca de duzentas (os nú40
meros não são exatos…). E a sala de estudo? E o Centro de Convívio? E onde vai funcionar
o centro de jovens? E o Posto de Enfermagem? E?... Ao ouvir-nos, concluiu - Então isto não
chega para nada. – Não chega, não. Para fazer isto, é melhor deixar-nos nos atuais espaços,
respondemos - Vai ser um problema. Eu não posso indeferir… Por isso, vou deslocar-me ao
Porto para ter uma reunião na Câmara e com a vossa presença. E vocês apresentam estes
números. Está certo? Concordámos imediatamente.
Uns dias mais tarde, recebemos a esperada convocatória. O Diretor-Geral
começou por explicar os motivos daquela reunião, não fazendo qualquer alusão ao
nosso encontro em Lisboa. Depois de descrever todo o projeto, perguntou a nossa
opinião. Apresentámos os dados que já lhe havíamos exposto. E todos concluíram
que o centro social projetado não satisfazia as necessidades do Bairro nem da nossa
atividade. Logo ali, o Presidente da Câmara se comprometeu a mandar elaborar um
outro projeto. Assim foi feito. E de um orçamento previsto de 400 contos, o novo
centro passou, penso, para mais de 2.000 contos. (Não tenho a certeza da exatidão
destes números.) Houve, no entanto, um caso em que a “linha dura” da Câmara não
cedeu com o argumento de que não havia terreno disponível noutro local. Queríamos
que o centro fosse instalado na periferia do bairro para favorecer a interação com a
zona habitacional antiga e permitir um convívio entre as populações. Considerávamos isso muito importante para se evitar a formação de “guetos”, mas não conseguimos. Sinal de que a Câmara não gostou deste nosso procedimento é que a Obra, por
lapso ou intenção, não foi convidada para estar presente na cerimónia da sua inauguração, em 26 de Outubro de 1968, pelo Presidente da República, Américo Tomás. E foi
simplesmente como pároco da já então paróquia experimental de Nossa Senhora do
Calvário que fui convidado para proceder à sua bênção. A inauguração foi feita quase
à socapa e a população do bairro nem se apercebeu da presença do Presidente da
República. Bem diferente foi o que aconteceu aquando da inauguração do Centro de
Formação Profissional do Cerco do Porto. O Professor Marcelo Caetano, que presidiu à
inauguração, tinha assumido o cargo de Presidente do Conselho havia pouco tempo.
No final da cerimónia, a população do bairro rompeu a barreira da segurança e, com
muita insistência, pediu-lhe que visitasse a sua capela “ que era muito bonita”. E de tal
modo o fez, que ele, quebrando todas as regras do protocolo, mandou-me chamar
e disse-me: - estão a convidar-me a visitar a sua capela. O senhor padre autoriza-me?
Face à minha resposta, pediu-me que seguisse na sua frente para lhe indicar onde
devia mandar parar o carro que o transportava. Quando parei, o seu carro estacionou
atrás do meu. E gerou-se enorme confusão.
41
Na comitiva, ninguém se
apercebera da nossa conversa. Os
condutores dos outros carros ficaram aflitos quando viram parar o
carro presidencial; os seguranças,
em pânico, rodearam logo o meu
Professor Marcelo Caetano ao chegar à capela da
carro. Toda a gente corria: corria o
Senhora do Calvário
Presidente da Câmara para acompanhar o senhor Presidente; cor-
riam os seguranças para proteger o Presidente; corriam as pessoas para falar com ele,
e, então para as crianças, era uma festa, eram as que mais corriam... Ele saiu do carro,
sendo imediatamente rodeado pelos seguranças e pela multidão que o esperava. Seguiu-me até à capela, mandou os seguranças esperar à porta e entrou sozinho comigo e com umas crianças que corriam atrás de nós. O Presidente da Câmara, esbaforido,
lá conseguiu abeirar-se da capela, mas não entrou.
Os dois, com algumas crianças a saltar pelos bancos, percorremos a capela
toda. Admirou especialmente a imagem da Senhora do Calvário, cuja significação
lhe expliquei: -” mas que linda imagem!”
Depois da visita, organizei um álbum com as fotografias e enviei-o com um
cartão meu que dizia simplesmente: “ Que Vossa Excelência consiga realizar as esperanças que o Povo Português deposita em si, neste momento”. Passados uns dias,
recebi um cartão da Presidência
do Conselho, escrito por ele, agradecendo o acolhimento de que
foi alvo e o álbum que lhe enviara.
A população ficou feliz. Eram os
primeiros tempos da “primavera
marcelista”…
Como estávamos dizendo… Foram vários os momentos
em que a Obra e o seu sacerdote
se tornaram suspeitos para esta
fação camarária.
Marcelo Caetano, dentro da Capela da Senhora do
Calvário
42
Penso que a desconfiança
terá começado na “Comunhão
Pascal” de 1965 a que presidi por convite dos seus organizadores. Os funcionários
camarários, com os elementos da Presidência e da Vereação nos bancos da frente,
enchiam por completo a majestosa igreja da Trindade. Na homilia, por estas ou outras
palavras de similar conteúdo semântico, disse:
“Hoje é dia de festa. Mais uma vez a Câmara se reúne para celebrar a sua Comunhão Pascal. Estão todos de parabéns. Mas este gesto só será autêntico e fará sentido, se for um sinal. Um sinal de que, na vida de cada dia na Câmara, sabeis acolher o
Cristo que vos visita na pessoa dos mais abandonados. Ele que disse “ o que fizerdes
aos mais pequeninos é a mim que o fazeis”. Não basta comungar Cristo na Eucaristia,
isso é o mais fácil; é preciso comungá-Lo na Vida, e isso é o mais difícil. Quando atendeis com carinho o morador do bairro que, a chorar, vos diz que não tem dinheiro para
pagar a renda, é a Cristo que estais a acolher, mas quando o recebeis com desprezo
ou arrogância é a Cristo que estais a maltratar…Quando prestais atenção aos seus
problemas e os procurais resolver é a Cristo que estais a ajudar, mas se o mandais
embora sem uma atenção, é a Cristo que estais a escorraçar”. Possivelmente, não era
deste tipo de homilia que a maioria dos presentes estava à espera. Só sei que não
voltei a ser convidado…
Outros episódios houve onde o confronto de opiniões gerou desconfianças
e desconforto.
O primeiro aconteceu em data que não posso precisar mas sei que foi anterior
a 1967 pois ainda vivia no bairro do Cerco do Porto. O engenheiro Távora, com quem
sempre mantive relações cordiais e de respeito mútuo, telefonou-me a propósito de
assunto que não me lembro e no fim perguntou: “Senhor Padre, isso por aí está tudo
sossegado?” Ao que respondi. “Está e só não está melhor por causa dos “castigados”
que vocês para cá mandam. Vêm revoltados porque foram obrigados a deixar o seu
bairro onde tinham toda a sua vida organizada. Que culpa tem o marido e os filhos
que a mulher se tenha pegado e andado à pancada com uma vizinha? Que culpa têm
porque o fiscal do bairro não gosta deles? A maior parte das vezes são razões ridículas
que estão na origem destes castigos. Por outro lado, a população do bairro recebe-os
de pé atrás porque só sabem que eles vieram por castigo. E assim surgem conflitos
que não tinham razão de existir. Com esta política de castigos nunca terão os bairros
sossegados. Já viram bem que género de fiscais têm no bairro?” Ouviu em silêncio e,
no fim, despediu-se com um seco “boa tarde”. Não gostou. Num simples telefonema
eu, e comigo a Obra, tinha posto em causa dois dos pilares da política camarária: as
transferências por castigo e os fiscais dos bairros. Estes eram, a fazer lembrar “os olhos
43
e ouvidos dos reis” com que o Imperador Persa controlava as suas satrapias, os olhos
e ouvidos da Câmara sempre prontos a entrar na privacidade dos moradores. Alguns
deles estavam imbuídos de “espírito pidesco” e representavam uma ameaça constante para os moradores. Piores que o tirano, são os seus tiranetes… Eram odiados
e tinham atitudes execráveis. No entanto, eram o poder máximo da Câmara dentro
do bairro. Ai de quem ousasse enfrentá-los! Ai de quem não caísse nas suas graças…
Muitas vezes, bastava uma “penada” dum fiscal e a vida de uma família ficava estragada para sempre. Sem pôr em causa a sua dignidade, nem fazer qualquer juízo de valor
sobre a sua moralidade pessoal, eram, devido às funções que exerciam e às pressões
que recebiam, desgraçados a desgraçar desgraçados. Certamente que haveria fiscais
que não se enquadram nesta descrição pouco abonatória. A esses peço desculpa
pela dureza desta narrativa. Mas como diz o povo “quem não se sente não é filho de
boa gente”. E eu vi muita gente a chorar...
Uns tempos mais tarde, a conversa foi também ao telefone mas, desta vez,
com o dr. Abel Monteiro. Sempre evitavam o frente a frente. A Pasteleira estava a viver
uma grande agitação por causa duma intervenção da Câmara. O caso foi o seguinte. De acordo com os regulamentos dos bairros camarários, um chefe de família que
iniciasse mancebia (agora diz-se “união de facto”), vivendo já no bairro, era expulso
e nunca mais poderia concorrer para qualquer bairro da Câmara. Aconteceu que, na
Pasteleira, uma mulher abandonou a casa, deixando o marido com três filhas, tendo
a mais velha quatro anos e a mais nova, menos de um ano. Depois disso, o marido/
pai “meteu em casa” uma colega da fábrica onde trabalhava. Passaram-se três anos e,
quando as crianças já chamavam mãe a esta senhora (a mais nova nunca conhecera
outra), alguém os denunciou à Câmara e esta pôs o seu inquilino perante o seguinte dilema: ou mandava a mulher embora ou era expulso. Soubemos do caso e, em
reunião de Direção, já tínhamos decidido intervir a favor daquela família, quando o
dr. Abel Monteiro, chefe da divisão dos bairros camarários, me telefonou para saber
a minha opinião como sacerdote da Obra Diocesana. Não era uma opinião o que
ele buscava, o que verdadeiramente procurava era o apoio de uma Obra da Igreja, já
então com prestígio, que apadrinhasse a atitude da Câmara, dando-lhe a necessária
cobertura moral. Foi uma conversa longa e dura. Disse-lhe que a Obra discordava
totalmente da atuação da Câmara não só porque a lei era injusta, como, naquele caso,
ia retirar a “mãe” a três crianças. Era uma violência. Já não lhes bastava ter sido abandonadas pela verdadeira mãe… O dr. Abel não quis ouvir mais e desligou, não sem antes
se despedir, como homem educado que sempre foi.
44
INSTITUTO DE SERVIÇO SOCIAL DO PORTO
Quando mencionei D. Julieta Cardoso como um dos tripés em que assentou a Obra, quis, nela, homenagear a ação de todo o Instituto de que era diretora.
Se ela, como disse, foi a verdadeira “abelha-mestra” da Obra, poderá dizer-se que o
Instituto foi o berço que a acolheu e acalentou. Muitas vezes me interrogo: o que
seria da Obra Diocesana se não houvesse o Instituto de Serviço Social? Foi nele que
ela nasceu. No seu edifício, na Avenida Rodrigues de Freitas, nº 202, funcionou a sua
sede até que se transferiu para o Paço Episcopal. Partilhou os seus serviços administrativos. No início, Obra e Instituto quase não se distinguiam. Foi o alfobre de todas
as estagiárias e assistentes sociais que deram vida à Obra. Na impossibilidade de
mencionar todos os seus nomes – e foram muitos – quero destacar a sua diretora,
D. Julieta Cardoso que não só participou no seu nascimento como a amparou nos
primeiros anos de vida e sempre me acompanhou. Era grande a confiança que D.
Florentino nela depositava. Licenciada em letras pela Universidade de Lisboa e assistente social, pertencia à Sociedade das Filhas de Maria. Aliava, assim, uma grande
preparação teórica e técnica, a uma profunda vivência espiritual como pude comprovar na semana que, a seu convite, passei na casa da Sociedade em S. Cosme do
Vale, Famalicão, onde, por sugestão sua, li o livro “Como estudar uma paróquia” que
muito ajudou a minha ação pastoral. Também não posso esquecer D. Maria Augusta
Negreiros, a primeira assistente social a trabalhar na Obra e sua primeira assistente
coordenadora que só deixou quando, por razões familiares e académicas, foi viver
para Lisboa. Como foram trabalhosos aqueles primeiros tempos no bairro do Cerco
do Porto! Quantas noites e fins-de-semana não passou ela a trabalhar com as muitas
comissões que então se formaram! Não havia horários. E, inicialmente, fazia-o em
total voluntariado. Nunca lhe ouvi um queixume. E ainda havia tempo para alguma
descontração. A primeira vez que foi falar comigo à igreja de Santo Ildefonso, o
“Senhor Abade”, P. Adriano Martins, ao vê-la, avisou-me: “está ali uma bruxa de saia
vermelha (sic) que quer falar consigo”. Ela também ouviu e, nos momentos de maior
tensão no trabalho, o epíteto “bruxa de saia vermelha” era motivo para comentários
jocosos. Animava-a sempre um grande entusiasmo e disponibilidade que aliava a
um perfeito domínio dos assuntos que tratava. Quanto a admirava e como sempre
respeitei a autonomia do seu trabalho! Não quero também esquecer a D. Maria Elisa
Acciaiuoli Barbosa que acompanhou a Obra e assumiu a sua direção durante a atribulada década de setenta. As assistentes sociais foram, no seu conjunto, uma lufada
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de ar fresco que ajudaram a arejar as minhas ideias de tipo assistencialista, fruto de
uma educação muito conservadora e de matriz machista. Nem elas imaginam o
quanto me ajudaram a construir uma nova visão do homem e da sociedade! Para
elas a minha gratidão e homenagem.
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O PAPEL DOS LEIGOS
Como já disse, o nascimento e a caracterização da Obra Diocesana traz consigo a marca da sua época. Como o Vaticano II defendia, havia que privilegiar a
função dos leigos num campo especificamente seu. No início, a Obra esteve assente
no trabalho de total voluntariado de leigos. E ainda hoje a direção depende desse
voluntariado laical assim como a Liga dos Amigos da Obra. Lembro a dificuldade
que tivemos em enquadrar nos estatutos a presença de um sacerdote. Não queríamos que fosse um assistente religioso - que não era- também não queríamos que
fosse um diretor e muito menos o presidente. Era uma Obra da Igreja que nascia por
iniciativa do Prelado da Diocese. E, por isso, D. Florentino queria ter um presbítero
que o mantivesse informado e o representasse junto da direção da Obra. E o que
ficou nos estatutos foi uma expressão um tanto ambígua: “ haverá um sacerdote
responsável”.
Muitos foram os voluntários leigos que trabalharam na Obra. Não posso
enumerá-los a todos até porque de muitos já esqueci os nomes. O que lamento.
Por isso, limito-me a referir aqueles de que me lembro e comigo colaboraram na
direção: dr. Vitor Capucho, o primeiro presidente da Obra após o reconhecimento
da sua personalidade jurídica (“Notas da Imprensa” – n.º 3); D. Maria Elisa Acciaiuoli
Barbosa que assumiu o cargo de presidente da direção por nomeação de D. António e o desempenhou ao longo de vários anos; engenheiro Pinto Resende que
acompanhou o nascimento da Obra desde o seu início no Cerco do Porto (era ele
que fazia o favor de me ir buscar e levar à igreja de Santo Ildefonso, nas noites em
que se realizaram os primeiros encontros com os moradores do bairro) e, depois, foi
integrado na sua direção, engenheiro Francisco Alvelos, dr. Silva Carneiro, dr. Rocha
Leite, dr. Silva Ramos e D. Maria do Carmo Ramos - todos participaram, durante mais
ou menos tempo na direção da Obra. Se algum esqueci, as minhas desculpas.
Quero, no entanto, demorar-me um pouco a falar do dr. Francisco Sá Carneiro, para retificar uma informação e colmatar uma lacuna documental e do arquiteto
Fernando Távora para me associar a uma homenagem.
Dr. Francisco de Sá Carneiro - No livro “Obra Diocesana 40 anos de Promoção Social”, depois de, na página 66 dizer “Em reunião da Direção da ODPS realizada em 31 de agosto de 1970, o Padre João Alves Dias comunica as diligências
que tem levado a cabo para constituir uma nova direção, tendo já contactado três
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elementos: dr. Francisco Sá Carneiro…”. Na página seguinte, escreve ”Quanto ao dr.
Francisco Sá Carneiro, o seu nome, ventilado para a Direção, em 1970, apenas passou a fazer parte da Direcção, como vogal, no ano de 1975”. E, na página 136, ao
referir os membros da direção de 1971 a 1974, apenas indica o nome de D. Maria Elisa
Acciaiuoli Barbosa. Independentemente das opções ideológicas de cada um, certamente, estaremos de acordo que Francisco Sá Carneiro foi o cidadão do Porto de
maior relevo na história política portuguesa do século XX. Porém, não é o estadista
que me interessa neste momento, mas o humanista e cristão que muito contribuiu
para o regresso de D. António Ferreira Gomes do seu longo exílio e de que a Obra
Diocesana se pode honrar de ter tido como membro da sua direção.
Vamos aos factos. Como já disse, D. António Ferreira Gomes, após o seu
regresso à diocese, logo me falou sobre o dr. Sá Carneiro. Quando, em 1970, foi
necessário proceder à nomeação de nova direção, mandatou-me para, em seu
nome, ir convidar o dr. Sá Carneiro para a sua presidência. E eu, não posso precisar
a data mas sei que era uma 4ª feira, fui falar como dr. Sá Carneiro ao seu escritório
de advogado na rua da Picaria, no Porto. Quando lhe explicitei o motivo daquele
encontro, agradeceu a confiança de D. António mas invocou dois motivos para
declinar o convite: não estava “muito enfronhado nesses temas” e, muito especialmente, não queria criar situações difíceis a D. António. Explicou-me então que ia
apresentar na Assembleia Nacional uma proposta de alteração à lei que impedia o
divórcio civil a quem casasse catolicamente. Sabia que essa proposta iria provocar
forte reação nos meios mais conservadores da Igreja e seria mal vista por grande
parte do episcopado português. Teve mesmo a amabilidade de ler parte do texto
que tinha preparado. Depois de o ouvir, disse-lhe: “compreendo que não possa
assumir o lugar de presidente dado o seu trabalho de deputado. Pelo que ouvi, o
senhor D. António, estará de acordo com a sua proposta e não se preocupará com
possíveis reações negativas por parte dos seus colegas no episcopado. Por isso,
altero o convite de D. António, e peço-lhe para ser vogal da direção. Se aceitar esta
minha proposta, vou já falar com D. António, e logo lhe comunico a sua posição”.
Ele sorriu e disse: “fico a aguardar a resposta de D. António”. Como eu previra, o senhor Bispo esteve de acordo com a minha sugestão. Por telefone, comuniquei-lhe
a posição de D. António e ele imediatamente aceitou. Por isso, a direção da Obra
de 1971 a 1974 foi constituída por D. Maria Elisa Acciaiuoli Barbosa, presidente;
dr. Silva Ramos, secretário, dr. Silva Carneiro, tesoureiro, dr. Sá Carneiro e arquiteto Fernando Távora, vogais. Se alguma dúvida o tempo me levanta é no que
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respeita aos cargos exercidos
pelos drs Silva Ramos e Silva Carneiro. Quanto ao dr. Sá Carneiro
e arquiteto Távora não tenho
qualquer dúvida: eram vogais. E
que eram assíduos nas reuniões
semanais, também não. Com
uma diferença: se o arquiteto
Távora nunca faltava, o dr. Sá
Carneiro, enquanto foi deputado da Assembleia Nacional, nem
sempre estava no Porto. Após a
sua resignação de deputado em
27 de janeiro de 1973, tornou-se
assíduo às reuniões semanais
em que sempre se mostrou empenhado. Após o 25 de Abril de
1974, com a formação do Partido
Popular Democrata e a participação no 1º Governo Provisório,
deixou de aparecer. Por isso, foi
por simpatia que o seu nome foi
mantido na direção de 1975.
Normalmente, antes de
iniciar a reunião, ele relatava os
acontecimentos mais relevantes
da política portuguesa por ele
vividos nessa semana.
Certo dia, vinha desa- Dedicatória e capa dos livros oferecidos pelo Dr. Sá
pontado com o rumo que a Carneiro
“primavera marcelista”, em que
acreditara, estava a seguir. Tinha ido com uma comissão de deputados da Assembleia Nacional falar sobre a situação dos “presos políticos” com o Ministro do Interior,
creio, Gonçalves Rapazote que, como ele, era advogado. Ao iniciar a conversa, começara por dizer-lhe: “O senhor Ministro como homem do direito…” Mas este logo
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o interrompeu dizendo: “senhor deputado, o senhor está a falar com o Ministro, o
“homem do direito” ficou lá fora…”
Em abril de 1973, ofereceu-me o livro “Ser ou não ser DEPUTADO”, coordenado por Silva Pinto, que continha todas as peças do processo do pedido de suspensão que apresentara na Assembleia Nacional em 25 de janeiro desse ano. E, em
9 de janeiro de 1974, ofereceu-me, com dedicatória pessoal, o livro “Vale a pena ser
deputado?”, publicado pelo jornal do Fundão, com entrevistas a Sá Carneiro, Miller
Guerra e Oliveira Dias. Na entrevista, revela-se a grandeza de caráter e a coerência
deste portuense considerado como “ovelha ronhosa” da burguesia do Porto e que
alguns setores da Igreja ostracizaram.
Noutra ocasião, vinha satisfeito porque, disse ele “isto está a mudar por dentro. Um filho do ministro Rebelo de Sousa, afilhado de Marcelo Caetano, está do
nosso lado. Também se chama Marcelo. É um jovem muito inteligente e de bom
caráter”. Só muito mais tarde identifiquei este jovem como sendo o dr. Marcelo Rebelo de Sousa que, e nisto Sá Carneiro estaria enganado, penso não ser afilhado de
Marcelo Caetano, embora tenha o seu nome próprio.
Em 1973, creio que já após a renúncia de deputado, apareceu com um ar
muito cansado. Interrogado sobre o porquê daquela aparência, explicou que, nessa
tarde, dera uma entrevista a um jornalista do “República”, um jovem açoriano muito
perspicaz. Disse que tinha ficado muito esgotado porque as perguntas eram muito
inteligentes e, por vezes capciosas, o que o obrigava a um cuidado redobrado nas
respostas para não dizer mais do que aquilo que queria dizer. Mais tarde, vim a descobrir que esse jovem jornalista era dr. Jaime Gama.
Não mais esqueci uma afirmação que ele fez na presença do arquiteto Távora quando eu lamentava a falta de moralidade que campeava na sociedade portuense. Disse-me: “e quanto mais se sobe na escala social maior é a podridão”. E o
arquiteto Távora esteve de acordo.
A presença nas reuniões da direção era prestimosa, não só pela sua visão
humanista da vida com forte influência personalista e a correspondente defesa dos
valores humanos, mas também pelo rigor lógico das suas análises. Mas era particularmente importante nas reuniões que a direção tinha com os responsáveis camarários onde sobressaía a sua força argumentativa. Não era por acaso que sempre as
marcávamos para dias em que pudesse estar presente. Mesmo quando não falava
por causa da presença da mãe, a sua participação fazia com que os representantes
camarários, por respeito ou timidez, repensassem melhor os argumentos da Obra.
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Antes de entrar para a sala de reuniões, sempre dizia: “se a mãe estiver, eu não falo”.
E era vê-lo “entrar mudo e sair calado”, como sói dizer-se, quando sua mãe, D. Maria
Francisca Lumbrales Sá Carneiro, vereadora da Ação Social, estava presente. Literalmente, não abria a boca. Não foram tempos fáceis…Numa figura franzina e apequenada, escondia-se a robustez de um caráter que não recuava perante nada nem
ninguém. “Homem de antes quebrar que torcer”, defendia até à exaustão aquilo em
que acreditava. De trato cortês mas reservado, mantinha um perfeito domínio sobre
as suas emoções. Era fácil ver nele um sorriso. Mas a única vez que o ouvi soltar uma
gargalhada foi, em 1980, na inauguração do centro social de S. Roque da Lameira.
A direção da Obra de então teve a amabilidade de convidar para essa cerimónia
os antigos colegas do dr. Sá Carneiro na direção da Obra. Ao ver-nos, ficou muito
surpreendido e foi com alegria que a todos saudou. Ao cumprimentar-me, hesitou
um bocadinho e não disse o meu nome. Já não nos víamos desde a Páscoa de
1974 e, entretanto, a minha vida e a minha aparência física tinham sofrido grandes
alterações. Perante esta hesitação, o arquiteto Távora, com aquela descontração encantadora que todos lhe conhecíamos, disse: “O doutor não está a reconhecer?” Ao
que ele respondeu: “conheço a voz, mas…” Então, o arquiteto Távora pergunta: “e se
eu lhe disser que é o nosso padre João?” – “Ah, pois é! ” Diz ele. E eu, com um sorriso,
acrescentei: “só que agora sou também “pai João” e apresentei-lhe o meu filho de
três anos que quisera acompanhar-me. Ficou surpreendido e, ao dar-me um abraço,
disse: “tem de me contar o que se passou”. E, assim, depois da cerimónia de inauguração e enquanto visitava as novas instalações, fomos a conversar longamente.
Entretanto, meu filho, agarrado à minha mão, de vez em quando puxava-me pelas
calças e dizia-me: “pai, eu quero fazer uma pergunta”. Fui ignorando o seu pedido
porque agora era com o Primeiro-Ministro que ia a falar. Já não era apenas o dr. Sá
Carneiro e muito menos o Chico, como familiarmente, por vezes, era tratado. O àvontade não era o mesmo de antigamente. Mas, perante a insistência, acabei por
dizer: “Doutor, desculpe, mas aqui o meu filho queria fazer-lhe uma pergunta”. Ele,
com um sorriso, baixou-se e disse-lhe: “então qual é a pergunta que me queres fazer?” E o João Miguel, assim se chama o meu filho, muito senhor de si, pergunta: “Eu
ontem vi-o na televisão de nossa casa e agora o senhor está aqui. Como é que saiu
de lá para fora?”. Surpreendido, o Dr. Sá Carneiro dá uma gargalhada e, em vez de
responder, pega nele ao colo e dá-lhe um grande abraço. Toda a comitiva que nos
seguia ficou muito admirada com este gesto que não lhe era habitual e ele sentiu-se
na obrigação de explicar a razão daquele seu inusitado comportamento. Todos se
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riram, mas a dúvida do menino permaneceu… Depois disto, meu filho sempre que
o via na televisão, logo dizia: “olha ali o meu amigo”. E, por isso, quando, passados
uns meses, o dr. Sá Carneiro morreu, procurámos que ele não se apercebesse: “a
televisão tinha avariado”.
Com todos estes dados, espero que tenha ficado claro e não restem dúvidas
a ninguém que a Obra Diocesana se pode honrar de ter tido na sua direção, a partir
de 1971, como elemento interventivo, e durante vários anos, este grande vulto da
democracia portuguesa.
O Porto honra-se de ter estado em todos os grandes momentos que marcaram a história de Portugal: esteve nas raízes da nacionalidade dando-lhe nome e
contribuindo para a conquista de Lisboa; nas lutas pela independência com o apoio
ao Mestre de Avis; na empresa dos Descobrimentos com o Infante D. Henrique, na
monarquia liberal com a revolução de 24 de agosto de1820 e o Cerco do Porto; na
implantação da República com a revolta de 31 de janeiro de 1891. No derrube do
Estado Novo e na implantação do regime democrático, o Porto pode orgulhar-se de
ter Sá Carneiro como seu grande representante.
Arquiteto Fernando Távora - Quando começava a escrever estas linhas,
fiquei agradavelmente surpreendido com uma notícia publicada em 5 de junho de
2013 na “Voz Portucalense” que dizia “A Universidade do Porto assinalou os 90 anos
do nascimento do histórico arquiteto Fernando Távora, designando-o a “Figura Eminente da Universidade do Porto 2013”.
Esta homenagem fez-me recordar um documentário exibido na RTP2, em
2006 sob o título “ Fernando Távora, um Homem de Cultura” e um texto publicado
no jornal Público nessa mesma data (18 de outubro de 2006) onde se afirmava
que ao arquiteto Távora, professor durante 50 anos na Escola de Arquitetura do
Porto, “ se deve grande parte das transformações que levaram a escola a ser uma das
mais importantes do país, onde se formaram, por exemplo, Siza Vieira e Souto Moura”.
Quero associar-me a esta homenagem ao “ homem de bem” que não esgotou a sua atividade como arquiteto e professor. O seu humanismo transbordou
pelas comunidades mais pobres do Porto como o Barredo e os Bairros Camarários. É
desse homem bom, de riso franco, de humor desconcertante, de emoção à flor da
pele, de humanismo encantador, que quero falar.
Quando, em 1970, D. António Ferreira Gomes, recém-regressado à sua
diocese do Porto, quis renovar a Direção da Obra Diocesana, já o Arquiteto Távora,
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como sempre foi conhecido, afirmara a sua componente de “homem do povo
e com o povo” no Centro Social do Barredo que se construiu no largo sob o tabuleiro inferior da Ponte de D. Luís. As assistentes da Obra tinham dele a melhor
das impressões e mostraram desejo de o ver na sua direção. D. António também
o desejava mas admitia que ele não pudesse aceitar mais um compromisso de
voluntariado social. No entanto, encarregou-me, como sacerdote responsável
pela Obra, de o contactar. Assim fiz. Telefonei-lhe, solicitando uma audiência, não
explicitando o que pretendia e apresentando-me apenas como P. João, representante de D. António. No dia e à hora combinada, compareci no seu atelier de arquitetura. Recebeu-me cordialmente e, após uma descontraída conversa, acabou
por aceitar. Mais tarde, no já referido jantar no Paço, acabou por, com humor, esclarecer D. António que foi a juventude e o ar descontraído do emissário episcopal
que o levaram a aceitar o convite.
Da convivência que mantivemos semanalmente nas reuniões da Direção a
que sempre comparecia, apesar de já ser o diretor da Escola de Belas Artes do Porto
na Avenida Rodrigues de Freitas, realçarei apenas alguns momentos.
* O Diretor da Habitação da Câmara do Porto era, à época, o Engenheiro D.
Luís de Távora com quem, como já disse, nem sempre as relações da Obra foram
fáceis, atravessando mesmo certos momentos de conflito aberto. Quando, nós,
em tom de brincadeira, dizíamos “ aqui o Arquiteto é que podia ajudar, falava com
o primo Engenheiro e tudo se resolvia”, ele logo atalhava, “não, não somos primos, eu
não tenho títulos e o único brasão que possuo é o do meu trabalho”. Nunca apurei a
verdade desta afirmação. Que tinha o “brasão do trabalho” não duvido, mas se
tinha outros de caráter familiar não o revelou nem eu lhe perguntei.
O seu humor desconcertante também se fez sentir num momento (1973),
em que discutíamos as dificuldades que estávamos a ter com o Ministério de Saúde e Assistência que, a somar aos conflitos com a Câmara Municipal, faziam a Obra
passar por tempos muito difíceis. No silêncio da reflexão, ouviu-se o Arquiteto
dizer com ar convicto: estamos nós aqui cheios de dificuldades quando daqui a uns
tempos tudo irá mudar. Surpreendidos, todos nos virámos para ele e perguntámos:
mas porquê? E ele, muito sério, olhou para o dr. Sá Carneiro que, como costume,
estava a seu lado, e disse: “porque daqui a algum tempo quem vai mandar nisto tudo
é aqui o doutor”. Todos sorrimos e desejámos que a sua profecia se concretizasse.
E a verdade é que se cumpriu, como recordámos em 5 de Julho de 1980, em S.
Roque da Lameira.
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O Arquiteto Távora era sempre uma presença que trazia paz nos momentos de intranquilidade; humor nas horas mais sombrias e a defesa intransigente
das populações mais desfavorecidas quando alguém as punha em causa. Quando
hoje vejo o reconhecimento internacional dos seus projetos de arquitetura, quando
vejo os nossos dois “Prémios Pritzker” (Siza Vieira e Souto Moura) reconhecerem-no
como seu mestre; quando vejo a Universidade do Porto curvar-se perante a grandeza da sua obra e pessoa, eu interrogo-me: como lhe foi possível arranjar tempo para
estar em todas as reuniões semanais da direção da Obra, para participar nos muitos
encontros com a Câmara Municipal e outras instituições, para, quando preciso, ir
falar aos bairros? Só a sua vontade de servir e o amor pela Obra poderão explicar
este “milagre”.
Se, como diz Saint-Exupéry, todos “Aqueles que passam por nós não nos
deixam sós. Deixam um pouco de si”, o Arquiteto Fernando Távora e D. Julieta Cardoso, sem qualquer desprimor para os restantes, foram, possivelmente, aqueles que
mais marcaram a minha passagem pela Obra.
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CONSELHO TÉCNICO CONSULTIVO
Este conselho era formado pelos representantes das principais instituições
da cidade do Porto. Nos inícios da Obra, teve a vantagem de criar uma relação de
pertença que muito facilitava o diálogo com essas instituições. Recordo que um
dia o dr. Domingos Braga da Cruz, provedor da Santa Casa da Misericórdia do Porto
e membro deste conselho, quando lhe agradecia o apoio que nos tinha dado na
criação de alguns “centros de enfermagem”, me ter respondido: “não fiz nada de
mais, a Obra também é nossa”. Recordo, ainda, como o diretor escolar do distrito
do Porto, de cujo nome não me lembro, facilitou a cedência das escolas dos bairros
para as reuniões da Obra e não só. No Cerco do Porto, foi na escola masculina que se
realizaram todas as reuniões com a população. O mesmo edifício funcionou como
capela dominical desde 15 de agosto de 1964 até ao fim de outubro de 1966. Mais,
a partir de outubro de 1964, foi-nos cedido um gabinete que foi transformado em
capela permanente. Também na Pasteleira a escola primária serviu para a realização
dos atos litúrgicos até ser construída a nova capela. E, no bairro de S. Roque da
Lameira, foi na escola masculina que decorreram todas as reuniões iniciais com os
elementos da população. Para não falar na cedência de escolas no distrito onde se
realizavam colónias de férias da Obra, como a escola do Calvário em Valongo e a
escola primária de Baltar. Também a pertença a este conselho de D. Maria do Carmo
Nunes, diretora do Instituto de Assistência à Família no Porto ajudou a sanar contendas e a resolver incompreensões quando as competências da Obra e do Instituto
poderiam conflituar.
Além do seu conselho sábio e experimentado, teve o mérito de nos abrir as
portas de muitas das instituições representativas da cidade e de favorecer a divulgação da Obra.
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56
PRIMEIROS PASSOS
O primeiro contacto com a população do bairro do Cerco fez-se no domingo de Páscoa de 1964, 29 de março, com o “compasso”. Como eu estava ocupado
na “visita pascal” em Santo Ildefonso, foi o Pe. Teixeira Fernandes, do Secretariado
Diocesano, que, com autorização do Pároco de Campanhã, Pe.
Tavares Martins, “tirou o compasso” no bairro do Cerco. Ao visitar
as casas, falava sobre o trabalho
que iríamos iniciar e, como sinal
de novos caminhos, agradecia
mas não recebia o dinheiro que,
como era hábito, iam oferecendo.
Logo na 2.ª feira seguinte,
começaram os encontros com os
chefes de família dos blocos 1 e
2, na escola masculina do bairro.
Na primeira reunião, como nessa
noite continuava ocupado em
Santo Ildefonso, fui substituído
pelo P. António Teixeira Coelho,
do bairro da Pasteleira. A partir Convívio com Jorge Amado e Fernando Noronha
dessa data, participei nos restantes encontros. Havia uma equipa de leigos dos Cursos de Cristandade que, na
véspera do respetivo encontro, passava pelos blocos, convidando os “chefes de
família” para a reunião a realizar-se às 21 horas do dia seguinte. Como havia 32 blocos e, em cada noite, reuníamos apenas com dois, as reuniões prolongaram-se por
mais de três semanas. Eram orientadas pela D. Julieta Cardoso, dr. Pedro Cunha, por
mim, e ainda pela assistente social, D. Maria Augusta Negreiros que secretariava.
Também participavam os voluntários que tinham feito os convites e iriam ser os
animadores das comissões que fossem constituídas. Pedindo desculpa àqueles, e
foram vários, de que me esqueci o nome, recordo perfeitamente o engenheiro Pinto Resende que apoiou a comissão do Centro de Convívio até ser substituído pelo
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engenheiro José Costa; Jorge Amado que animou a Comissão de Sala de Estudo
até que foi substituído pelo Manuel Silva morador no bairro; o Fernando Noronha
que muito contribuiu para a criação do Posto de Enfermagem; o José Moura que
esteve com a Comissão Missa e Catequese até ser criada a paróquia experimental
da Senhora do Calvário.
A Obra visava a promoção social das populações e, por isso, nada faria que
não resultasse da vontade expressa dos moradores e em que não contasse com a
sua colaboração. Nada seria sugerido ou imposto. Assim, no decorrer das reuniões,
os participantes eram incentivados a expor as necessidades do bairro. Depois de
inventariadas as carências, eram convidados a dar o seu nome para se constituírem
comissões que, com a ajuda da assistente social, de um leigo de fora do bairro e do
sacerdote da Obra, procurariam colmatar as necessidades sentidas. E foram muitas
as carências referenciadas: falta de telefone no bairro, de um marco de correio, de
um posto de enfermagem, de um mercado de levante, de transportes, de limpeza,
de um centro de convívio, de salas de estudo para as crianças, de dinheiro para
pagar as rendas, de policiamento, e… de missa e catequese no bairro E assim, entre
outras, formaram-se as comissões de “Sala de Estudo”, “ Centro de Convívio”, “Posto
de Enfermagem”, “Correio e Telefone”, “Higiene e Limpeza”, “Segurança”, “Transportes”, “Mercado”, “ Auxílio Mútuo”, “Missa e Catequese” (“Notas da Imprensa” n.º 1).
Enquanto eu me encarregava diretamente da “Missa e Catequese”, a D. Maria Augusta Negreiros, com o meu apoio, trabalhava com as restantes.
Como afirmou “A Voz do Pastor”, em 17 de outubro de 1964, o bairro do
Cerco do Porto apresentava-se como um paradigma. A Obra rapidamente se expandiu. Em 15 de maio de 1965,
“A Voz do Pastor” escrevia que “A
Obra Diocesana de Acção Social
dos Bairros do Porto continua a
desenvolver extraordinária actividade junto dos aglomerados
populacionais, designadamente
no Cerco, Fonte da Moura, Amial
e S. Roque da Lameira”.
Quando foi reconhecida
pelo Estado, em 1967, já exercia
Festa no Cerco com o “Pintarolas” morador no bairro
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“a sua acção, nas seguintes zo-
nas: Cerco do Porto, S. Roque,
Fonte da Moura, Pasteleira, Rainha D. Leonor, Amial, S. João de
Deus e nos sectores de Educação Infantil, Cultura e tempos
livres”. (“A Voz do Pastor”, 25 de Equipa responsável pelo Centro de Convívio de S. Roque
Novembro de 1967)
O processo de lançamento foi variando, de acordo com as circunstâncias
de cada bairro, mas havia uma ideia que presidia a todo o trabalho: envolver a
população local na deteção e na resolução dos seus problemas. Assim aconteceu,
também no bairro de S. Roque da Lameira. Iniciámos reuniões com os moradores do bairro camarário, na escola masculina de S. Roque, na Rua da Senhora de
Campanhã, com o apoio de uma assistente social e a colaboração de elementos
das comissões do Cerco, de que lembro o Manuel Silva, da “Salas de Estudo” e o
Armando Santos, do “Centro de Convívio”, e outras pessoas da vizinhança de que
destaco dois jovens muito interventivos: o Jorge Costa e Silva e o Carlos Sousa.
E assim, à semelhança do Cerco, foram constituídas várias comissões que
criaram designadamente o Centro de Convívio, inaugurado em 2 de abril, o Posto
de Enfermagem inaugurado em 28 de maio no bloco 15, e Salas de Estudo no bloco 14 inauguradas em 26 de novembro, todos no ano de 1966.
Aproveito para referenciar a Casa 11 – Entrada 160 - Bloco 12. Nela, a Obra
acolheu um jovem, num momento muito difícil da sua vida, que, quando faleceu,
mereceu as seguintes palavras do padre Tolentino de Mendonça: “Um dia, quando se fizer a história do catolicismo português que
nos é agora contemporânea, há-de ver-se, em toda
a clareza, que um dos seus actores magistrais foi,
afinal, um frade e poeta, quase clandestino. Chamava-se José Augusto Mourão”. A seu respeito, escreveu António Marujo - “Foi músico, poeta, professor,
tradutor, investigador. E, além de tudo, frade dominicano. Homem despojado, olhava para a estética
como central na experiência cristã contemporânea.
Vivia entre dois mundos, este homem discreto, tímido: Estou entre o mundo de Deus e o mundo dos
homens – que não há outro”. E também António Capa de um livro de Frei Mourão
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Teixeira: “José Augusto Mourão fazia da subtileza um adorno da competência e
uma espécie de amortecimento da profundidade. Homem de enormes recursos,
foi padre, professor, poeta, ensaísta. Tem um lugar na história da cultura contemporânea”.
”Quando muita comunicação social se compraz em denegrir os bairros sociais, é bom saber que houve uma casa camarária no caminho do P. Mourão. E ele
nunca mais o esqueceu” (“Notas de Imprensa” n.º 7).
No bairro da PSP do Cerco do Porto, a ação da Obra foi bem diferente. Propriedade da Polícia de Segurança Pública, nele viviam exclusivamente agentes da
PSP e suas famílias que provinham, na sua quase totalidade, das aldeias do norte
de Portugal. Era constituído por 152 habitações. Quando a Obra começou a trabalhar no bairro camarário que lhe fica junto, logo os seus moradores se sentiram
atraídos por esta ação da Igreja. Mas havia que ter muito cuidado. Naquele tempo,
os polícias viviam num clima de terror sempre com medo dos castigos que lhes
manchavam a caderneta e a folha de serviço tão importante para a subida na
carreira. O comandante de então da PSP do Porto, coronel Santos Júnior, não era,
como diziam, “flor que se cheirasse”. Para não serem acusados de se meter em política, o que lhes podia dar origem a um processo condenatório, nunca pertenceram formalmente a nenhuma das comissões, a não ser à de “ Missa e Catequese”.
No entanto, os seus filhos frequentavam a “Casa dos Rapazes” do bairro do Cerco
e as filhas participavam nos cursos para raparigas que a Obra promovia. Lembro
que D. Amélia, moradora desse bairro, ministrou um dos cursos de “rendas e bordados”. As suas crianças começaram a frequentar as salas de estudo e o jardim
infantil. As primeiras funcionárias que a Obra admitiu para trabalhar no centro
social do Cerco eram, em grande parte, do bairro da Polícia.
Este trabalho pôs em contacto dois bairros que, embora próximos, até
aí se ignoravam, se olhavam de soslaio e mesmo temiam. Esbateram-se fronteiras. Fez-se comunidade. Foi então que os elementos das comissões do Cerco
se aperceberam duma situação que consideraram injusta. É que, segundo o regulamento, as casas só podiam ser ocupadas por polícias enquanto estivessem
ao serviço. Quando, por reforma, doença ou morte, deixavam de pertencer aos
corpos ativos, tinham de abandonar as casas. No momento em que mais precisavam de ajuda, eles e suas famílias eram expulsos. Neste caso, não podiam ser
os moradores do bairro a lutar pelas suas reivindicações, pois, ao fazê-lo, poderiam meter-se sobre a alçada da lei que os puniria ou, no mínimo, cairiam em
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desgraça junto do seu comandante, com consequências imprevisíveis. Foram os
moradores do Cerco que, apoiados pela assistente social e pelo sacerdote da
Obra, com o conhecimento da sua direção, formaram uma comissão e foram falar
com o coronel Santos Júnior que lhes disse nada poder fazer porque se tratava
duma lei geral da polícia. Por isso, o sacerdote da Obra aproveitou uma peregrinação anual da polícia a Fátima para falar do assunto ao comandante geral da
PSP que, na presença do comandante do Porto, confirmou o que este dissera à
comissão do Cerco. Face a isto, fez-se uma exposição que o deputado, engenheiro Armando Magalhães, antigo presidente da Câmara Municipal de Valongo, se
comprometeu a apresentar na Assembleia Nacional. O comandante do Porto era
informado de todas estas diligências que muito o contrariavam. Estávamos neste
processo quando ocorreu um episódio que a todos perturbou. Nesse bairro, havia uma senhora, D. Maria Augusta, que, já antes da chegada da Obra, ensinava
catequese em sua casa às crianças da vizinhança. Quando, em setembro de 1964,
se organizou a catequese para toda a zona, incluindo o bairro camarário, assumiu
a função de secretária da “equipa da catequese”. Estas atividades e o seu modo
de estar tornaram-na muito estimada. O seu marido, o subchefe José Ribeiro da
Rocha, fazia parte da “Comissão de Missa e Catequese”. (“Notas da Imprensa” n.º
4). Era um casal sem filhos cujo tempo dedicavam ao serviço dos outros. Aconteceu que o dito subchefe, em data que não sei precisar, mas posterior a novembro de 1966, foi mobilizado para uma “comissão de serviço” em Angola, tendo
a esposa permanecido no bairro. O subchefe acabou por morrer no Ultramar. A
primeira ação da PSP foi dar ordens à esposa para abandonar a casa. Houve uma
revolta que só foi silenciosa porque o contrário seria muito perigoso para os seus
moradores. Foi com lágrimas que muitas das suas mulheres me manifestaram a
sua revolta. D. Augusta teve de ir viver para Penafiel sua terra natal donde, já havia
muitos anos, havia saído. Passado uns tempos, o corpo do subchefe foi trazido
de Angola e levado para o cemitério de Penafiel. Teve honras militares, com a
bandeira nacional a cobrir o féretro e a presença de muitos polícias, incluindo o
coronel Santos Júnior. Após as últimas preces, quando a guarda de honra realizava a derradeira cerimónia e soaram as salvas de homenagem, o sacerdote da
Obra, ainda paramentado e com lágrimas nos olhos, denunciou, em voz alta e
com palavras fortes, a desumanidade e hipocrisia duma Pátria que, agora, honra
um dos seus mártires com salvas e bandeiras e, antes, expulsou de sua casa a
esposa que ele muito amava e que, certamente, lhe ocupava a mente na hora
61
da sua morte. E retirou-se em silêncio. Em silêncio ficaram todos os presentes,
incluindo o comandante que estava na sua frente. O regulamento que esteve na
base desta desumanidade só foi alterado após o “25 de Abril”.
62
UMA FILHA DA OBRA
A paróquia de Nossa Senhora do Calvário nasceu da Obra Diocesana. Em
primeiro lugar, porque teve como célula embrionária a “Comissão de Missa e Catequese” que se formou, como já referi, na sequência das primeiras reuniões que
a Obra dos Bairros realizou na escola primária. Em segundo lugar,
foi a Obra que me deu disponibilidade para cavar os alicerces da
futura “Paróquia Experimental de
Nossa Senhora do Calvário”, criada por D. Florentino” no dia 1 de
janeiro de 1967.
Como já disse, quando
em fevereiro de 1964, comecei a
colaborar com a Obra, era coadjutor de Santo Ildefonso, função O Vigário da Vara, P. Joaquim Carvalho de Sousa, lê o
que desempenhei, em acumula- documento de ereção canónica da Paróquia de Nossa
ção com o trabalho na Obra, até Senhora do Calvário, na Eucaristia presidida por D.
final de outubro desse ano. No António Ferreira Gomes, no dia 31 de dezembro de 1972,
início de novembro, D. Floren- no Centro de Formação Profissional do Cerco do Porto
tino desvinculou-me de Santo
Ildefonso e nomeou-me a tempo
inteiro para a Obra com a obrigação de ir viver para o bairro do
Cerco do Porto a fim de, ao mesmo tempo que trabalhava na direção da Obra e na sua expansão,
ir lançando as bases da paróquia
que queria criar na zona do Cerco
do Porto e S. Roque da Lameira.
E foi assim que, no dia 3 de novembro de 1964, passei a residir
no Bairro do Cerco do Porto, Bloco 15, Entrada 442, Casa12. Aí vivi D. António descerra a lápide da sala que lhe foi dedicada
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até 1967 data em que me desloquei para a rua de S. Roque da Lameira por ser mais
central em relação ao território paroquial. A casa no bairro do Cerco, depois de dar
morada a vários seminaristas e diáconos, foi sede do Agrupamento nº 300 do Corpo
Nacional de Escutas, entretanto fundado, que nela criou a Sala D. António Ferreira
Gomes em 1972.
No período que medeia a saída de Santo Ildefonso e a criação da paróquia
experimental, foi a Obra que me subsidiou a subsistência, possibilitando-me a formação da paróquia sem qualquer custo para os seus moradores. Enquanto estive
em Santo Ildefonso e depois da fundação da paróquia experimental, o meu trabalho foi de total voluntariado e sem qualquer encargo para a Obra.
Como filha, a comunidade cristã foi-se tornando autónoma mas manteve
sempre com a “mãe” um relacionamento de complementaridade e apoio mútuo.
Como as instalações da Obra estavam disponíveis ao fim de semana, a comunidade
cristã utilizava-as para dar catequese às muitas crianças do bairro e das redondezas.
Era uma forma de ir dando conhecimento aos pais das zonas envolventes da ação
que a Obra desenvolvia no Cerco do Porto. Quando a Comissão de Salas de Estudo
quis organizar colónias de férias, a comunidade foi convidada a participar nas suas
despesas. Para isso, o sacerdote, na quaresma anterior, pediu aos cristãos que comessem apenas sopa no jantar de sexta-feira e o dinheiro que poupassem nessas
refeições, bem como noutras privações, como cigarros, cafés, bebidas, chocolates,
cinemas, seria entregue no ofertório de Domingo de Ramos para a colónia. Esta
“penitência quaresmal” manteve-se enquanto foram organizadas colónias de férias
que implicassem uma permanência das crianças longe das suas famílias. Mais, para
que a comunidade envolvente enviasse as suas crianças para o centro social que,
por imposição da Câmara, se localizava no centro do bairro, a assistente social ia
falar à comunidade nas missas dominicais sobre os serviços da Obra. Ainda recordo
como D. Dulce, então assistente social do Cerco, estava nervosa na primeira vez que
o fez. Ainda há dias, o diácono Freitas Soares, cujos filhos foram as primeiras crianças
de fora do bairro do Cerco a frequentar o seu centro social, me recordou esse dia.
Desde o início, a ação espiritual caminhou lado a lado com a promoção
social mas nunca conflituaram no poder e sempre se apoiaram no serviço. Era esta
a orientação da Obra que, embora dirigida por leigos, “não é laica, mas assente nos
princípios francamente cristãos e acompanhada da acção espiritual - sem a qual
toda a promoção humana resulta mutilada ”, como dizia “A Voz do Pastor” de 17 de
Outubro de 1964 (“Notas da Imprensa” n.º 1).
64
Primeira Missa no Bairro do Cerco
O plano de trabalho que traçámos projetava para o dia 15 de agosto – Festa
de Nossa Senhora da Assunção - a primeira missa a celebrar no bairro, ao ar livre, por
D. Florentino com a presença do dr. Nuno Pinheiro Torres. Após essa data, haveria
missa dominical no átrio da Escola Masculina e a catequese deveria iniciar-se em
outubro.
Formámos um coro de rapazes e homens do bairro para cantar nas missas.
Encarreguei-me dos ensaios que decorriam, à noite, numa sala da escola masculina.
Desde a primeira hora, contámos com a inestimável colaboração do senhor Diretor
Escolar do Distrito do Porto e a ajuda da diretora da Escola Masculina que, com autorização daquele, nos entregou uma chave. Assim a Escola Masculina foi o nosso
primeiro local de trabalho e a nossa primeira capela. Pouco a pouco, começaram a
aparecer rapazes e homens (inicialmente, o coro era só masculino) do bairro da PSP,
de Pego Negro e do bairro da Maceda.
A comissão preparou tudo para a primeira missa (altar, altifalante, coro,
leitores, acólitos…) que, conforme o planeado, foi celebrada por D. Florentino no
largo em frente do bloco 19, no dia 15 de Agosto de 1964. E a rapaziada saiu-se
bem na sua cantoria ao ponto de
merecer elogios de D. Florentino
e do Presidente da Câmara que
também esteve presente. Foi
uma alegria.
A partir dessa data, a
missa começou a ser celebrada
todos os domingos no átrio da
referida escola, às 11 horas da manhã. Como eu continuava vinculado a Santo Ildefonso, foi o meu
primo, P. Manuel Joaquim Alves
de Oliveira (“Notas de Imprensa”
n.º 8), que celebrou essa missa
dominical durante todo o verão.
A Comissão, com a orientação
do José Moura, de Gondomar, e
a ajuda do senhor Marta, do Bon- Convívio com José Moura e P. Alves de Oliveira
65
fim, que deu a madeira, fez um estrado e um altar que montava e desmontava
todos os domingos.
As senhoras e raparigas limpavam o átrio de modo a tudo ficar impecável
para as aulas de segunda-feira. Nunca houve qualquer problema. A catequese iniciou-se em outubro desse ano e era dada na escola e nas instalações da Obra.
Com o início das celebrações dominicais, foi enorme a adesão dos moradores do bairro da Polícia bem como de toda a área envolvente. Ainda me lembro que,
nas primeiras missas que celebrei
na escola, usei uns paramentos
velhos que o Paço Episcopal me
dera. Então as pessoas da rua de
S. Roque da Lameira fizeram uma
subscrição e ofereceram-me uns
paramentos novos: foi uma festa.
Os paramentos estiveram em exposição numa casa comercial na
rua de S. Roque da Lameira. Eu
era, para a zona residencial envolvente, o padre pobre, o padre
dos pobres. Que belo título!
Casamento de dois catequistas, moradores no bairro do
No início de novembro,
Cerco, acompanhados por outros catequistas, em 19 de
como já disse, passei a viver no
junho de 1966
bairro do Cerco. Quem me mobilou a casa foram as senhoras da
Obra de Nossa Senhora das Candeias (de que recordo as dras Carolina, Rogélia e
Angélica) a quem muito devo pelo testemunho de serviço aos pobres, pela simplicidade de vida e, até porque, nos meus primeiros tempos do Cerco, era numa das
suas casas que almoçava. A pobreza evangélica foi a marca que deixaram presente
na minha casa e na minha vida sacerdotal. Estava em “terra de missão”. E só uma
Igreja pobre poderia ser verdadeiramente missionária. Só ela poderia evangelizar
pelo exemplo.
A partir dessa data, coloquei um altar e um sacrário no gabinete no piso superior da escola masculina. Foi a nossa primeira capela com o Santíssimo Sacramento e onde celebrava todas as manhãs às 8 horas. As missas dominicais continuavam
a ser no átrio da escola.
66
Início do trabalho pastoral em S. Roque da Lameira
Numa das noites em que reuni com moradores do bairro camarário de S.
Roque da Lameira, apareceu-me um grupo de habitantes do Bairro das Corporações, que lhe fica junto, falando-me da velha aspiração de construir uma capela
naquela zona.
Num dos dias subsequentes, ao passar em frente do bloco 9 do bairro camarário, reparei num pequeno edifício, isolado, destinado aos serviços
de “Jardinagem e Limpeza da Câmara”. Acompanhado por dois representantes
da equipa, fui falar com o Presidente da Câmara, dr. Nuno Pinheiro Torres, que
transferiu esses serviços para a cave do bloco 1 e nos cedeu o edifício que estava divido em duas secções: numa fizemos a capela; a outra servia para catequese, sala de reuniões e exposições. A comunidade encarregou-se do mobiliário
e do sino. Era verdadeiramente uma igreja pobre entre os pobres. O espaço era
pequeno, apenas coberto por telhas sem qualquer espécie de forro e o pavimento era de cimento. Esta pobreza esteve na origem de muitas conversões.
Era a encarnação da “Igreja Peregrina” de que falara o Concílio. Em data que
não posso precisar, a capela foi
remodelada pelo arquiteto Fabião, da Câmara Municipal, que
eliminou a divisória central e
colocou um forro sob o telhado
e soalho no pavimento.
Entretanto,
a
equipa
promotora da criação da capela,
constituiu-se em “Comissão Administrativa”.
Comecei a celebrar na
nova capela, em 7 de março de Colaboradores da capela da Senhora da Paz
1965, que, por sugestão de D.
Florentino, logo recebeu a denominação de “Capela da Senhora da Paz”. No ano
seguinte, nesse dia, D. Florentino veio celebrar à capela. Participou, nessa Missa, D.
Maria José Novais como vereadora da Câmara Municipal do Porto que, em 15 de
Novembro de 1966, numa reunião da Câmara falava da Capela no Bairro de S. Roque
que funcionava “ numa dependência cedida pela Câmara, sob a invocação de Nossa
Senhora da Paz”.
67
No dia 2 de abril de 1966,
o bairro de S. Roque da Lameira
esteve em festa. Inaugurou-se o
Centro de Convívio, o primeiro
fruto do trabalho social, e, na capela, celebrava-se o primeiro casamento que o Jornal de Notícias
do dia 4 noticiou: “ Mais tarde, na
capelinha do bairro foi celebrado
um casamento o que deu motivo a grande regozijo entre os seus
moradores que ali compareceram
em grande número” Era assim. As
duas dimensões, social e pastoral, embora com coordenações
e obediências diferentes, sempre
se completavam e, mutuamente,
se apoiavam. Eram duas faces da
mesma Igreja.
“Os Pastorinhos” na primeira procissão de velas
No dia 31 de maio de
1965, realizou-se a primeira pro-
cissão de velas a unir os dois centros de culto (capela da Senhora da Paz e a escola do Cerco) e foi a imagem de Nossa Senhora da Paz (a única que possuíamos
– a da Senhora do Calvário virá mais tarde) que foi transportada no andor. A sua
organização esteve a cargo das equipas de Liturgia do Cerco e de S. Roque (Paz).
Foi mais uma forma de unir duas comunidades que se desconheciam.
A Capela de Nossa Senhora do Calvário
Entretanto, ia sendo construída uma capela junto do bairro do Cerco. O projeto, acompanhado pelo arquiteto Paixão, da Câmara do Porto, deu origem a duas
capelas: no bairro da Pasteleira e no bairro do Cerco. Foi construída num terreno camarário e com a participação da Câmara. Como ainda não tínhamos personalidade
jurídica, ficou propriedade da diocese.
No dia 1 de novembro de 1966, a capela foi sagrada por D. Florentino com a
presença do dr. Nuno Pinheiro Torres (“Notas da Imprensa” n.º 4).
68
Para evitar situações de
conflito entre as populações de
S. Roque e do Cerco, a capela recebeu a denominação de Nossa
Senhora do Calvário. Assim, os do
Cerco ficavam com a capela que
daria nome à futura paróquia; os
de S. Roque sabiam que o nome
da nova paróquia tinha a origem
num calvário que existira na sua
zona, ao cimo da rua da Senhora Capela de Nossa Senhora do Calvário
de Campanhã.
A capela da Senhora do
Calvário, como a da Paz, tornouse num polo aglutinador de identidade e fazedor de comunidade
e muito contribuiu para abrir o
bairro ao meio envolvente. Mereceu o apreço de crentes e não
crentes que viam nela o sinal de
uma “Igreja mestra em humanidade”. Conto apenas três casos. Quando a capela estava em
construção, encomendei o sacrá- Equipa paroquial de Liturgia
rio a um serralheiro, irmão de um
morador do bairro, que tinha uma oficina metalúrgica em Rio Tinto. Quando o veio
colocar, perguntei-lhe quanto devia. Ao que ele me respondeu:- “Nada. É o meu
contributo para a capela”. E assim, o objeto mais sagrado da capela foi feito e oferecido por um homem que, na vizinhança, era conhecido como alguém que “não
queria nada com a Igreja” e que ”quando via um padre mudava de passeio”. Eu dizia
que ele não ia à Missa mas ia aos “concursos de pesca”; não frequentava a Capela
mas era assíduo no ”clube de pesca” que era, como gostava de dizer, um outro tipo
de “capela”. Um dos meus lemas em pastoral era “em terra de missão, não são as
pessoas que vão à igreja, é a Igreja que vai às pessoas”. Sempre considerei que, numa
paróquia, o importante não é a territorialidade mas as relações de vizinhança e de
69
identidade. Por isso, a minha ação
desdobrava-se por muitos espaços, desde o “Centro de Formação Profissional do Cerco”, casas
particulares, clubes recreativos,
desportivos, tertúlias de amigos,
cafés, mercearias e outros locais
que funcionavam como outras
“capelas”. A geografia da salvação
passava ainda pela rua e por outros locais pastoralmente estratégicos como o cruzeiro de Vila
Cova e as carvalheiras de Pego
Negro. A Igreja era missionária
mas sem proselitismos.
Numa pastoral de proximidade, nunca me faltaram
lugares de encontro. Sagradas
são as pessoas e não os locais.
A sacralidade está nas pessoas e
D. António junto do “cruzeiro de Vila Cova”
não nos objetos. São elas quem
faz a Igreja e não as pedras. Os
templos são lugares de reunião da Igreja que fomentam e perpetuam memórias. A Igreja é o povo de Deus que, pelos caminhos dos homens, peregrina para
o Pai. Sem triunfalismos nem subserviências. Só há anticlericalismo onde houver
clericalismo. O mal está no clericalismo que gera o seu contrário. O anticlericalismo é a “mão esquerda” com que Deus acorda a Igreja quando ela adormece
na arrogância do poder e esquece a sua missão de servir. Se o clericalismo se
esbater, o anticlericalismo atenua-se ou até desaparece. É ver o que está acontecer com a simplicidade do Papa Francisco. Todos, independentemente da sua
crença, se curvam perante a sua bondade. Todos? Talvez não. Na sociedade, há
forças ideológicas que se arrogam o monopólio da defesa dos pobres e, portanto, a Igreja do Papa Francisco não lhes convém. E na Igreja há forças poderosas
que não gostam de ver afrontados os seus privilégios. E tudo farão para fazer
calar a sua voz incómoda...
70
Um outro episódio bem ilustrativo do carinho que os moradores do bairro
do Cerco tinham pela sua capela, sucedeu, como já contei, aquando da inauguração do Centro de Formação Profissional do Cerco do Porto pelo Professor Marcelo Caetano, que tinha assumido o cargo de Presidente do Conselho havia pouco
tempo. O terceiro episódio aconteceu com o 25 de Abril. Quando este se deu, eu
não estava no Porto. No sábado seguinte, ao dirigir-me para a capela, vi que todos
os muros da rua do Cerco do Porto tinham sido “pichados” com mensagens revolucionárias e interroguei-me: como estará a capela? E qual não foi o meu espanto
ao verificar que a sua grande parede lateral continuava limpa e sem qualquer risco.
Passados uns tempos, ao comentar o sucedido com um jovem da rua do Cerco,
aluno na Faculdade de Economia e que pertencia a esses grupos revolucionários,
ele disse-me: “nem imagina o que aconteceu naquela noite. Os de fora, ao ver a
parede branca da capela, ficaram todos contentes e já se preparavam para escrever, quando os de cá se opuseram com tal veemência que o grupo se desfez e
acabaram as pichagens. Ia dando porrada. Os de fora, zangados, foram-se embora,
mas nós, com medo que eles regressassem, ficamos a vigiar”. E este jovem não era
dos que frequentavam a capela…
A ereção canónica da Paróquia de Nª Sª do Calvário
O nome da paróquia resultou da vontade expressa de D. Florentino que,
nessa data, queria criar várias paróquias na cidade do Porto, dedicadas a Nossa Senhora (do Porto, do Amial, da Ajuda, da Boavista, da Areosa, do Calvário), para assinalar a consagração de Nossa Senhora como padroeira da cidade do Porto (Decreto
Pontifício da Proclamação da Padroeira Portucalense. Sagrada Congregação dos
Ritos . Prot. N.P. 28/962 de 3 de Fevereiro de 1964). Como, no monte sobranceiro ao
local onde hoje sobe a rua da Senhora de Campanhã, existira um calvário de que já
não restavam vestígios mas que ainda perdurava na memória do povo, D. Florentino
resolveu dedicar a nova paróquia a Nossa Senhora do Calvário, a Senhora que, de
pé, aguentava firme o sofrimento junto da cruz de seu filho - “Stabal Mater dolorosa
juxta crucem lacrimosa dum pendebat Filius”. (O pároco atual, cónego Fernando Milheiro, com a preocupação de explicitar esta mensagem, mandou gravar as palavras
”Stabat Mater” na base da imagem da igreja paroquial, réplica da original da capela
do Calvário, que encomendou ao mesmo escultor. Bem haja!) E assim, em 31 de
janeiro de 1966, nascia a “Paróquia Experimental de Nossa Senhora do Calvário” com
todos os direitos inerentes a uma paróquia que podiam ser exercidos, indiferente71
mente, em cada uma das capelas
que passaram a funcionar como
“igreja paroquial”.
Quando, em 1971, se deu
início ao processo de ereção da
paróquia definitiva, D. António
Ferreira Gomes, que retornara à
sua Diocese em 1969, sugeriu o
nome de Nossa Senhora de Cartes,
porque “Cartes”, uma zona antiga da paróquia onde hoje passa
a “Avenida de Cartes” fazia lemD. António observa o mapa da nova paróquia
brar “Chartres-Caritas-Caridade”.
Coloquei a questão aos elementos do Conselho Paroquial que,
depois de perscrutarem o sentir
da comunidade, optaram pela
continuação do nome inicial.
Na missa de ereção da Paróquia,
no dia 31 de dezembro de 1972,
no salão de festas do Centro de
Formação Profissional, D. António
Ferreira Gomes manteve o nome
inicial da paróquia e confirmou a
Eucaristia da ereção da Paróquia
função de igreja paroquial às capelas de Nossa Senhora do Cal-
vário e de Nossa Senhora da Paz (“Notas da Imprensa” n.º 5).
“Aqueles que passam por nós (…) deixam um pouco de
si, levam um pouco de nós.”
Se este pensamento de Antoine de Saint-Exupéry esteve subjacente a todo
o meu testemunho de gratidão a quantos comigo conviveram na Obra Diocesana,
não posso terminar sem uma palavra a quem comigo partilhou o sonho de uma
pastoral em favor de uma Igreja que se apresenta como “pobre” sacramento de
salvação para todos e cada um dos homens. Sendo um dos meus lemas “em Igreja
72
mais vale pouco feito por muitos que muito feito por poucos”, o que fazia com
que ninguém ocupasse mais que um cargo ou exercesse mais que um ministério,
é impossível individualizar os muitos leigos que deram o melhor de si ao serviço
desta Igreja.
Não podendo nomear toda essa “multidão incontável”, limitar-me-ei a referir aqueles que, vindos de fora da paróquia, nos ajudaram a construí-la e, através
dela, contactaram com a Obra Diocesana.
Vários seminaristas do Seminário Maior começaram a vir ajudar-me ao fim
de semana. E muitos foram os que comigo colaboraram nas celebrações da Páscoa.
Destes, entre muitos outros, lembro-me do Serafim Assunção, hoje responsável pelos “Companheiros de Emaús”, do Albino…
Éramos uma espécie de sucursal do Seminário desde o tempo em que era
reitor o dr. Albino Carvalho Moreira e, depois, o dr. Armindo Lopes Coelho. O pri-
Visita Pascal junto da capela da Senhora da Paz
meiro seminarista a vir trabalhar foi o António Taipa - atual bispo auxiliar do Porto.
Também o António Marto (bispo de Leiria-Fátima) colaborou ao fim de semana quando, embora sendo de Vila Real, frequentava o Seminário do Porto
Em 1965/66, o Martins de Almeida viveu na casa do Cerco, enquanto fazia
estágio profissional e colaborava no trabalho da Obra com os jovens na “Casa dos
Rapazes”.
Em 1967/68, vinham ensaiar o nosso coro dois seminaristas: o Pedroso, hoje
pároco de Santo Ildefonso e membro do Secretariado Diocesano de Liturgia, e o
Gaspar que foi padre operário e já faleceu.
73
Em 67/68, quando já
morava na rua de S. Roque, viveram na referida casa do bloco
15 quatro seminaristas que estavam em estágio profissional e
colaboravam na ação pastoral:
o Bento, o Azuil, o Castro e o
Coelho.
Junto da Capela da Senhora do Calvário - Estagiários e
Em 1968/69, veio fazer
suas famílias acompanhados pelo reitor do Seminário
estágio na paróquia o diácono
Maior, P. Albino, e pelo diretor espiritual, P. Marcelino
Joaquim Soares que partilhava
a referida casa do bairro do Cer-
co com mais três diáconos que estagiavam nas paróquias das Antas, Pedrouços,
Azevedo.
Em 1971, fez estágio diaconal o José Domingues Moreira que, depois de
ordenado presbítero, ficou a trabalhar na paróquia até ir para o Ultramar como
capelão militar. Em 1975, D. António, a meu pedido, nomeou-o meu substituto. O
último foi o Norberto Martins que vivia em minha casa enquanto realizava estágio
profissional.
Se algum lapso de memória possa haver no que respeita aos anos, já o mesmo não acontece quanto aos nomes.
Apenas
uma
palavra
para o primeiro seminarista que
colaborou comigo no Cerco do
Porto. Para além de participar
na preparação e dinamização
da Missa dominical na escola,
dava, no final, um curso de formação moral e religiosa a jovens
e adultos. Esse aluno brilhante
que todos os domingos se deslocava ao bairro, pondo o saber
e entusiasmo apostólico ao serConvívio Paroquial - P. José Domingues e Norberto
viço da comunidade, chamava-
Martins.
se António Maria Bessa Taipa.
74
De tal modo foi acolhido que, quando se ordenou diácono, aquele núcleo de
cristãos, semente da futura paróquia de Nossa Senhora do Calvário, encheu a
Sé Catedral, festejando a sua ordenação como se de um familiar se tratasse. Na
Missa do domingo seguinte, todos os comungantes quiseram ter o privilégio de
receber Cristo das suas mãos jovens que tremiam de emoção. Foi uma festa!...
Esta comunhão de sentimentos foi ainda mais longe. Quando, no dia 15 de
agosto de 1966, foi ordenado presbítero, a comunidade apresentou-se em
peso na Sé para participar na ordenação sacerdotal de alguém a quem muito
queria. Num gesto de amizade e gratidão, o novo sacerdote convidou vários
jovens para partilhar do almoço da sua “Missa Nova” na sua terra de Freamunde e escolheu para pregar nessa sua “Primeira Missa”, não um pregador afamado como era costume, mas sim o jovem sacerdote responsável pela Obra Diocesana com quem trabalhara e que fora seu colega nos tempos do seminário.
Em síntese, atrevo-me a dizer que a escola/capela do bairro do Cerco, o primeiro
local de cultura e de culto da “Obra dos Bairros”, terá sido a primeira “cátedra” onde
o futuro professor deu as suas primeiras lições, assim como a primeira “catedral”
onde, como diácono, o futuro bispo, pela primeira vez, proclamou a Palavra e
distribuiu a Sagrada Comunhão.
Quero lembrar também o P. João Miranda, que, à época, era o reitor do Seminário do Bom Pastor e hoje é bispo, e o dr. Marcelino da Cunha Ferreira, então
diretor espiritual do Seminário Maior e hoje cónego da Sé do Porto. Foram os responsáveis pela celebração da missa do meio-dia na capela da Senhora da Paz no
bairro de S. Roque
Relembro, ainda, o dr. Justiniano Santos e o dr. Gabriel Costa Maia, professores do Seminário Maior, que vieram dar cursos de formação bíblica e litúrgica,
na casa do senhor Pereira na rua de S. Roque da Lameira. Parecia que estávamos
nos tempos da Igreja primitiva quando a “assembleia” se reunia nas casas particulares dos cristãos. Não poderei esquecer o Jesuíta, dr. José Maria Cabral Ferreira e
o Pe. António Costa Mota que, em anos seguidos, durante uma semana, dinamizaram conferências/debates como preparação para a Páscoa. Apenas uma referência para diversos sacerdotes franceses (de Brest, de Paris, de Annecy, de Havre,
Ruão) que passavam o mês de julho em minha casa, aproveitando para aprender
a língua portuguesa de modo a melhor trabalharem com os emigrantes nas suas
dioceses e a alguns sacerdotes brasileiros que estudavam pastoral em Madrid e
vinham colaborar na celebração pascal.
75
Pelo Cerco também passaram vários amigos sacerdotes
que conheci no Colóquio Europeu de Paróquias, entre os quais,
para além dos galegos Paco, Xao
do Rego, António Vilasó, recordo o Guy, pároco de S. Jean de
Montmartre em Paris, que nos
ajudaram a experienciar a catolicidade da Igreja.
Também Andrés Torres
O P. Celso da diocese de Petrópolis no Brasil
Queiruga, professor da Universidade de Santiago de Compostela - “o maior teólogo católico vivo”, assim o apresentou o P. Anselmo Borges, professor da Universidade de Coimbra, no dia 13 de outubro
passado, no Colóquio “Deus ainda tem futuro?” - conheceu a paróquia a partir de
1969, tendo sido recebido, como já referi, por D. António Ferreira Gomes, na Páscoa
de 1970. No livro “Repensar a Teoloxia, Recuperar o Cristianismo - Homenaxe a Andrés
Torres Queiruga”, evoca esse encontro. Escreveu: “Quiero resaltar afanes comunes en su recuerdo de los Coloquios Europeus de Parroquias y nuestra visita de amigos
a António Ferreira, aquelo bispo valiente desterrado por
Salazar y a quien, por cierto, el cardenal Quiroga acogió
por tiempo en Santiago”.
Recordo, ainda, a colaboração do meu primo,
Pe. Oliveira, de que já falei. Quando já era monsenhor
e diplomata da Santa Sé em Jerusalém, veio falar sobre
as relações entre “Os Palestinianos e os Judeus” num
encontro para o qual convidei, de modo especial, os
A temática do mal é nuclear na
paroquianos menos frequentadores da Igreja e com
teologia de Queiruga.
elevado grau de formação académica. Foi um sucesso.
Ainda me lembro de, no fim, o senhor José Rodrigues,
da rua do Cerco do Porto, vir falar comigo, dizendo: “ eu sou dos “cristãos periféricos”
mas conte comigo para tudo o que precisar.”
Dos leigos que me ajudaram na fase inicial, para além dos muitos que colaboraram no lançamento da Obra, quero destacar o médico Luís Pereira Leite, profes76
sor catedrático da Faculdade de Medicina, infelizmente já falecido. Tendo-o conhecido num Curso de Cristandade, tornou-se no médico a que recorríamos sempre
que havia um pobre a precisar de ajuda (ainda lembro o senhor “António Varredor”
do bairro do Cerco do Porto).
Ao terminar esta evocação, gostaria de realçar alguém em cuja vinda para a
paróquia sempre vi o dedo de Deus. Trata-se do “diácono Freitas Soares” que, como
noticiou o “espaço solidário”, de setembro de 2012, “ foi homenageado pelo Conselho de Administração da Obra com a oferta de uma imagem de Nossa Senhora em
cristal – ex-libris da Instituição – num gesto de reconhecimento por toda a dedicação, gratuidade e empenho demonstrado na preparação do Grupo Coral”. A sua
ligação à Obra começou lá bem longe no tempo.
Em Maio de 1968, realizou-se a reunião anual do meu curso teológico. Foi na
Aguda. Na grande maioria, éramos presbíteros. O colega Freitas Soares, que terminara connosco o Curso de Teologia em 1963 mas não se ordenara, estava a contar
que residia na Ramada Alta no Porto num andar que não satisfazia as suas necessidades. Para além dele, da esposa, de três filhas e da sogra, queria trazer para junto de
si o pai que vivia sozinho em Tabuado, Marco de Canaveses. E o grande problema
era que ele não queria abandonar o tear com que sempre trabalhara. Precisava,
por isso, de uma casa grande em que o tear coubesse e, se possível, com quintal
onde o pai e a sogra se pudessem ocupar no cultivo de flores e de alguns produtos
hortícolas muito úteis para uma família numerosa. Perguntei-lhe se iria viver para a
minha paróquia e ensaiaria os seus grupos corais, caso lhe arranjasse uma casa que
satisfizesse as suas necessidades ao que ele, imediatamente, anuiu.
Fiquei feliz com a esperança de passar a ter a colaboração de um companheiro que, desde o exame de admissão ao seminário, em Trancoso junto do colégio de Gaia, sempre fora meu colega de carteira ao longo dos doze anos do nosso
percurso académico.
Por acaso (?), nessa mesma tarde, soube que iria ficar vaga uma casa na rua
Matias de Albuquerque que satisfazia plenamente as suas necessidades. Por outra
feliz coincidência, o seu proprietário era José Pereira, um grande amigo que muito
apoiava as nossas atividades paroquiais e que já referi. Quando lhe falei da casa, ele
ficou feliz por poder prestar mais este serviço e comprometeu-se a alugá-la logo
que estivesse disponível. Passado pouco tempo, já o meu amigo e a família estavam
na sua nova casa e o seu pai pôde vir viver com ele, trazendo consigo o seu velho
tear, companheiro de toda a vida. Os seus seis filhos, como também já disse, foram
77
Convívio paroquial – Também se fazia Igreja num jogo de futebol entre casados e solteiros
capitaneados (?), respetivamente, pelo Freitas Soares e pelo pároco. “Um santo triste é um triste
santo” já dizia S. Francisco de Sales.
das primeiras crianças que, vivendo fora do bairro, frequentaram o novo centro social do Cerco do Porto. Sempre considerei que a vinda do Freitas Soares foi uma
graça de Deus que ajudou a perdurar o espírito que presidiu à criação da paróquia.
“Clube de Pesca do Cerco do Porto”
Quando, nos meus primeiros tempos do Cerco, me deslocava a pé, nas manhãs de domingo, da escola do bairro, onde celebrava às 8 horas, para a Missa das
9,30 horas na capela da Senhora da Paz, sempre me cruzava com homens que, de
cana às costas, iam pescar para o rio Douro. Um dia, em conversa com o senhor
Adelino Costa, morador no bairro do Cerco e grande entusiasta desse desporto, perguntei-lhe se nunca tinham pensado em fundar um clube de pesca que agregasse
todos aqueles pescadores. Respondeu-me: - pensar, pensamos, o pior é arranjar uma
sede. – Então, vamos procurar essa sede, disse eu. Acontece que, nessa data, ainda estavam na minha mão as chaves das duas caves do bloco 2 do bairro do Cerco onde
tínhamos realizado a exposição de que já falei. Quando fomos à Câmara entregar as
chaves, aproveitámos a oportunidade para pedir ao dr. Nuno Pinheiro Torres uma
das caves para sede do clube de pesca que queríamos criar. E ele, como sempre que
a Obra lhe pedia, cedeu. Assim o clube, com o lema “Pesca - só pesca - tudo pela
pesca”, foi criado oficialmente em 15 de agosto de 1966 (no segundo aniversário da
78
Clube de Pesca do Cerco do Porto
primeira Missa no bairro) e, passados estes anos todos, ainda lá funciona. É autónomo. Não depende nem da Paróquia nem da Obra, mas sempre foi um local onde
a minha presença era bem-vinda. Até tiveram a amabilidade de atribuir o título de
sócio honorário a quem nunca pegou numa cana de pesca…. Em 1986, no seu 20º
aniversário, fui convidado para presidir à cerimónia de distribuição de prémios do
“II Grande Concurso Nacional de Pesca Desportiva de Rio” que o clube organizara.
Também ele deve a sua existência ao patrocínio da Obra Diocesana.
79
80
NOTAS DA IMPRENSA
Das referências que a imprensa foi fazendo ao longo dos tempos, muitas das
quais constam nos livros mencionados (“Para a História da Diocese do Porto – Dom
Florentino de Andrade e Silva” e “Obra Diocesana 40 anos de Promoção Social”), destacarei apenas algumas das que respeitam ao período de que venho tratando.
1ª - UMA OBRA DE VASTA PROJECÇÃO FUTURA: A ACÇÃO
SOCIAL NOS NOVOS BAIRROS
É já conhecida dos nossos leitores que está a desenvolver-se um importante
movimento de acção social, educativa e religiosa na zona dos novos blocos camarários desta cidade. A iniciativa, por agora, vive ainda o seu período de organização
e experiência, mas os primeiros resultados deixam entrever uma vasta projecção
futura. Não se trata de prestar auxílio material às famílias necessitadas (tarefa das
Conferências Vicentinas e de outros organismos): o que se pretende é ajudar essas
populações, desenraizadas e heterogéneas, a resolver os seus próprios problemas –
sustento, emprego, habitação, doenças, promoção educativa, cultural e social, etc.
Um pouco segundo o estilo da FAO, que procura levar os povos subdesenvolvidos
a elevarem-se através do seu próprio esforço, embora mediante a colaboração (não
“substituição”, “esmola”, ou “paternalismos”) dos países mais afortunados e sob a
orientação de organismos específicos. Com a diferença de que a “assistência social” nos nossos Bairros não é laica, mas assente nos princípios francamente cristãos
e acompanhada da acção espiritual (sem a qual toda a promoção humana resulta mutilada). Para esse efeito, criou-se o Secretariado Diocesano de Acção Social,
patrocinado com o mais vivo entusiasmo pelo Senhor D. Florentino de Andrade e
Silva. Nele trabalham Assistentes Sociais especializadas, elementos dos Cursos de
Cristandade, da A.C. e de outros organismos. É obra de leigos católicos, embora sob
a orientação de sacerdotes competentes, incumbidos da parte religiosa e moral.
Por enquanto, o Secretariado ainda dispõe somente da Obra dos Bairros (e já não é
pouco!), mas novas secções surgirão oportunamente. Devemos acrescentar que a
Exmª Câmara facilita e auxilia a prestantíssima tarefa.
UM PARADIGMA: O BAIRRO DO CERCO DO PORTO – Por motivos vários,
sobretudo por causa da distância que o separa dos centros religiosos, o Bairro do
Cerco do Porto foi o primeiro a beneficiar mais amplamente da benemérita Obra.
Eis como a Assistente Social D. Maria Augusta, em serviço na equipa daquela zona,
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expôs no jornalzinho “Vontade” (já existe um porta-voz do Bairro!) o modo de funcionamento da instituição local. Note-se que, em outras zonas residenciais estão a
esboçar-se iniciativas mais ou menos análogas à que passamos a descrever. Todo o
trabalho está coordenado por uma equipa de acção, constituída por um sacerdote,
Rev. Pe. João, uma assistente social e leigos.
Conforme se auscultavam as necessidades das populações, assim se criavam várias comissões de trabalho, como as que seguem:
- Comissão para a instalação de telefone e marco de correio.
- Comissão de Missa e Catequese.
- Comissão para a instalação de um mercado.
- Comissão para um posto de enfermagem e creche.
- Comissão para o estudo e obtenção de transportes, e ainda uma comissão
de fundo de auxílio, esta com características inovadoras e com o objectivo de subvencionar as famílias que por um equilíbrio orçamental não culpável e aprovado,
não puderem pagar o aluguer da casa que habitam. Esta comissão funciona com
um carácter mutualista em que os interessados neste benefício devem contribuir
mensalmente com uma certa quantia, reservando-se-lhes o direito de ser subvencionado nos casos em que o auxílio deva ser dado. Assim o benefício é-o por um
direito e não por um acto de caridade, o que é muito mais deprimente.
Todo este desenvolvimento comunitário tem como características primordiais as seguintes:
- Todo o trabalho é feito pela própria população e da sua responsabilidade,
com a devida ajuda de animadores estranhos ao bairro e a coordenação de um
sacerdote e duma assistente social.
- Todo o trabalho é baseado nas actividades da população e enquadrado
nas estruturas já existentes.
Como começaram os trabalhos das comissões e qual o seu futuro?
Foram convidadas todas as famílias a assistirem a reuniões preparatórias e a
exporem os problemas da comunidade. À medida que se apuravam as necessidades
mais importantes, assim se criaram comissões para cada grupo de necessidades semelhantes. Cada comissão é assistida dum animador, um leigo exterior à população e que
poderá mais tarde desligar-se dela por o seu trabalho ter sido concluído ou por autosuficiência da própria comissão. Surgiram assim as comissões que nós referimos atrás.
São estes os magníficos e fecundos trabalhos que actualmente decorrem
no populoso Bairro do Cerco do Porto. (A Voz do Pastor, 17 de Outubro de 1964)
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2ª. - OBRAS SOCIAIS NO BAIRRO DO CERCO DO PORTO
A Obra Diocesana de Acção Social nos Bairros do Porto continua a desenvolver extraordinária actividade junto dos aglomerados populacionais, designadamente no Cerco, Fonte da Moura, Amial e S. Roque da Lameira. As iniciativas sucedemse. Há dias, foi inaugurado um Posto de Enfermagem no Bairro do Cerco do Porto,
graças ao magnífico trabalho desenvolvido pelo Padre João. Montado nos rés-dochão de um dos blocos, este posto, embora modesto já que a obra não conta com
grandes auxílios, além de uma sala de espera tem outras duas, onde são tratados
os doentes. Em princípio, proceder-se-á à aplicação de injecções e pequenos curativos, estando os serviços de enfermagem a cargo das Irmãzinhas da Assunção. No
domingo, procedeu-se também à inauguração de uma exposição que documentará o trabalho já efectuado e projectado para o futuro pelo respectivo Centro Social.
Na montagem do certame trabalharam os moradores do Bairro sob a orientação do
Padre João e assistente social. Obra de extraordinário alcance a que está a ser promovida nos bairros populares desta cidade, ela bem merece o carinho e o auxílio de
todas as entidades. (A Voz do Pastor, 15 de maio de 1965)
3.ª - OBRA DIOCESANA DE PROMOÇÃO SOCIAL
O sr. D. Florentino de Andrade e Silva empossou a nova direcção da Obra
Diocesana de Promoção Social na cidade do Porto, composta da seguinte forma:
presidente dr. Vitor Manuel da Silva Capucho; tesoureiro, eng. Alberto Pinto de Resende; secretário dr. Joaquim da Silva Carneiro; vogais, assistente social Maria do
Carmo Matos Graça Bento e dr. Rui Rocha leite.
Esta Obra foi criada em fevereiro de 1964 e os seus estatutos foram aprovados por despacho ministerial de 17 de Abril de 1967, publicado no “Diário do Governo n.º 106, 3ª série de 4/5/67.
Os seus objectivos são os seguintes: promover a valorização social dos
grupos humanos em que exerce a sua actividade, consciencializando-os das suas
potencialidades e levando-os a desenvolvê-las no sentido de dar resposta a algumas das necessidades sentidas na comunidade em que estão integradas, por exº,
os bairros.
Este trabalho é orientado por técnicos, em especial assistentes sociais, e realizado por elementos do próprio meio.
Actualmente, a Obra exerce a sua acção, nas seguintes zonas: Cerco do Porto, S. Roque, Fonte da Moura, Pasteleira, Rainha D. Leonor, Amial, S. João de Deus
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e nos sectores de Educação Infantil, Cultura e tempos livres. (A Voz do Pastor, 25 de
Novembro de 1967)
4ª. - A NOVA CAPELA DO BAIRRO DO CERCO DO PORTO
FOI ONTEM ABERTA AO PÚBLICO PELO ADMINISTRADOR
APOSTÓLICO
Para os lados de S. Roque da Lameira, entre as freguesias do Bonfim e de
Campanhã, está a desenvolver-se um aglomerado populacional que reúne alguns
milhares de pessoas em sistemas comunitários de bairros.
Nela se integra a comunidade de Nossa Senhora do Calvário, com mais de
duas mil pessoas do Bairro do Cerco do Porto. Nesse ambiente se situa a nova capela ontem aberta ao culto pelo Administrador Apostólico da diocese.
A edificação é distinta de forma rectangular e predisposta já a abranger ainda futuras habitações da comunidade. Além da sua especificidade para meio milhar
de fiéis, o templo dispõe ainda do recinto apropriado a sacristia e de um salão para
reuniões catequéticas.
Na obra despenderam-se cerca de quatrocentos contos e nela comparticiparam além dos moradores, a Câmara Municipal e o Ministério das Obras Públicas.
O acto inaugural foi assim um motivo de festa, estando todo o Bairro do
Cerco do Porto engalanado e com tapetes de verdura no centro do ambiente populacional.
Quando o sr. D. Florentino de Andrade e Silva ali chegou, pelas 10 horas
de ontem, acompanhado do seu fámulo, rev. Cardoso, foi recebido com pétalas de
flores e estralejaram foguetes, dando conta do entusiasmo da população. No adro
da nova Igreja, o administrador apostólico foi recebido pelo respectivo capelão, rev.
João Alves Dias, e pela comissão delegada dos habitantes da comunidade, srs José
Ribeiro da Rocha, Guilherme Saraiva de Castro, Alexandre Augusto Feliciano e António Joaquim Relvas. Estavam também presentes o sr. Dr. Nuno Pinheiro Torres,
presidente da Câmara, os vereadores sr. Simões Carneiro e sr.ª D. Maria José Novais;
capitão Falcão, da P.S.P. ; o presidente da Junta da Freguesia de Campanhã, sr. João
Brochado; o rev. Francisco Ribeiro da Silva e os párocos do Bonfim e Campanhã.
Depois de se paramentar na sacristia o sr. D. Florentino de Andrade e Silva procedeu
à bênção da nova capela. O cerimonial foi demorado, começando pelo ritual da aspersão da água benta pelas paredes exteriores para culminar no próprio salão que
assim ficou transformado em igreja – templo.
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Entretanto um grupo coral misto entoou cânticos que eram transmitidos
para o exterior através de altifalantes.
Terminada a cerimónia da bênção, o rev. D. Florentino de Andrade e Silva celebrou missa solenizada, abrindo assim ao culto a capela da Comunidade de Nossa
Senhora do Calvário. Acolitaram o administrador apostólico o rev. Ribeiro da Silva e
o pároco do Bonfim. Os cânticos intercalares da cerimónia religiosa foram entoados
pelo coro misto da comunidade e foi ainda um dos seus habitantes que leu o trecho
da Epístola.
Depois do Evangelho de S. Mateus lido pelo rev. Ribeiro da Silva, o sr. D.
Florentino fez uma homilia, falando primeiramente sobre o significado do Dia de
Todos os Santos que considerou essencialmente Dia da Igreja, confrontando-o com
o significado do Dia de Fiéis para, depois, reunir ambos no pensamento da caridade
Cristã. Depois, o administrador apostólico expressou o seu reconhecimento ao presidente da Câmara Municipal do Porto e ao ministro das Obras Públicas que com a
sua colaboração auxiliaram a edificação daquele templo.
E concluiu felicitando os habitantes da comunidade e o capelão pelo êxito
dos esforços que tornaram possível a abertura ao culto da nova Igreja, caminho
aberto para uma nova paróquia, abrangendo também outros bairros daquele aglomerado de São Roque da Lameira. Será, então, precisa uma Igreja paroquial e ela
surgirá com tempo, para trazer mais luz, mais e maior sentido de caridade cristã.
A missa prosseguiu depois no ambiente solenizado, tendo, no momento
próprio, comungado dezenas de fiéis.
As cerimónias terminaram cerca do meio-dia. Quando o sr. D. Florentino de
Andrade e Silva se retirava do bairro, centenas de pessoas dispensaram-lhe calorosa
ovação e o administrador apostólico foi de novo envolvido numa apoteótica manifestação com milhares de pétalas de flores. (Jornal de Notícias, 2 de Novembro de 1966)
5.ª – ERECÇÃO CANÓNICA DA PARÓQUIA DE NOSSA SENHORA DO CALVÁRIO
No sector oriental da Cidade do Porto, nas zonas de S. Roque da Lameira
e Cerco do Porto, cresceu, da há uns anos a esta parte, um grande núcleo habitacional. Por essa razão, e para que a Igreja pudesse estar presente a essa população
nova, o então Administrador Apostólico da Diocese, D. Florentino de Andrade e
Silva, criou, em 1967, uma Paróquia experimental, englobando as duas supra-mencionadas zonas, com uma população de cerca de 12 000 pessoas.
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Após seis anos de vida paroquial, em regime experimental, o Senhor Bispo,
D. António Ferreira Gomes, ouvidos todos os interessados, julgou chegada a hora de
proceder à erecção canónica desta Paróquia da Senhora do Calvário. O dia marcado
é amanhã. O Senhor Bispo estará presente.
O programa que assinala o dia da erecção canónica é significativo da vivência eclesial daquela Comunidade: Às 10 horas – na Rua de S. Roque da Lameira,
perto do entroncamento com a Rua do Cerco do Porto, o Senhor Bispo será cumprimentado pelos elementos das Equipas Paroquiais; Às 10,30 horas – na Sala de
Actos do Centro de Formação Profissional Acelerada, ao Cerco do Porto, o Senhor
Bispo presidirá a uma Eucaristia, concelebrada por todos os Párocos vizinhos; Após
a Missa, o Senhor Bispo, sem qualquer formalidade, cumprimentará toda a Assembleia presente; findo este momento de convívio informal do Bispo da diocese com a
Comunidade paroquial, o Prelado visitará os locais de actuação paroquial, tais como:
Casa do Escutismo, Centro Social, Capelas Paroquiais, Secretaria Paroquial, etc, tomando contacto com todo o território paroquial. (Voz Portucalense, 30 de Dezembro
de 1972)
6.ª – O BAIRRO DO CERCO DO PORTO
O Bairro do Cerco do Porto foi inaugurado em 1963, meses antes da génese
da “Obra Diocesana de Acção Social nos Bairros da Cidade do Porto”.
Logo em Abril de 1964, a Obra iniciou a sua acção no Bairro do Cerco. D.
Florentino de Andrade e Silva havia entregue a responsabilidade pastoral da zona
do Cerco do Porto ao Padre João Alves Dias que, em meados de 1964, passa a fazer
parte do grupo directivo da Obra. Em 31-12-1966, o citado Prelado concedeu ao
Cerco do Porto o estatuto de “quasi-paróquia” e em 31 -12-1972, D. António Ferreira
Gomes criou formalmente a Paróquia da Senhora do Calvário, com sede na capela
construída no Bairro. Em 26 de Outubro de 1968, foi inaugurado o Centro Social
do Bairro do Cerco do Porto, “ primeiro e modelo duma série de Centros Sociais a
serem implantados nos Bairros Camarários”, por ocasião de uma visita ao Porto do
Presidente da República Almirante Américo Tomás. (Voz Portucalense, 31 de Janeiro
de 2007)
7.ª – BLOCO 12 – ENTRADA 160 – CASA 11
José Augusto Mourão fazia da subtileza um adorno da competência e uma
espécie de amortecimento da profundidade. Homem de enormes recursos, foi pa86
dre, professor, poeta, ensaísta. Tem um lugar na história da cultura contemporânea”.
(António Teixeira, JN, 12/05/11)
“Foi músico, poeta, professor, tradutor, investigador. E, além de tudo, frade
dominicano. Homem despojado, olhava para a estética como central na experiência cristã contemporânea. Vivia entre dois mundos, este homem discreto, tímido:
Estou entre o mundo de Deus e o mundo dos homens – que não há outro. (António
Marujo, Público, 10/5/11)
Que têm estes textos a ver com o título desta crónica?
É que, numa fase determinante da vida, o jovem Mourão viveu nesta casa
do bairro de S. Roque da Lameira, no Porto.
Foi na Páscoa de 1970. O Dr. Albino, de boa e saudosa memória, Reitor do
Seminário Maior do Porto, entrou, muito preocupado, na Obra Diocesana de Promoção Social. E contou que o Bispo de Vila Real, por causa de uma carta que lhe
escreveram a propósito da “procissão do enterro” de Sexta-Feira Santa na cidade de
Vila Real, acabava de expulsar dois excelentes seminaristas, o Domingos, do último,
e o Mourão, do penúltimo ano de Teologia. Só faltavam três meses para terminar o
ano lectivo. Não podiam continuar a viver no seminário, mas ele podia autorizá-los
a frequentar as aulas como alunos externos. A dificuldade era que, sendo de Vila
Real, não tinham, no Porto, onde morar. Só precisavam de uma casa para dormir. E
de uma família de confiança onde, à noite, pudessem ver um pouco de televisão.
Pedia um total sigilo porque não queria conflitos com o bispo de Vila Real e, muito
menos, queria causar problemas ao seu bispo, D. António Ferreira Gomes, recémchegado do exílio.
Como a Obra, nesse momento, tinha disponível aquela casa, nela foram viver. Quando muita comunicação social se compraz em denegrir os bairros sociais,
é bom saber que houve uma casa camarária no caminho de P. Mourão. E ele nunca
mais o esqueceu. Ainda no dia 24 de Setembro último, quarenta anos passados,
quando veio ao Porto fazer a conferência Um entre os outros (À escuta do Outro), o Frei
José Augusto Mourão e o Domingos foram visitar a família onde costumavam ver
televisão. É bem verdade que a gratidão embeleza a alma e espelha a sua nobreza.
Como são insondáveis os caminhos de Deus!...
O P. Tolentino Mendonça disse:Um dia, quando se fizer a história do catolicismo português que nos é agora contemporânea, há-de ver-se, em toda a clareza, que um
dos seus actores magistrais foi, afinal, um frade e poeta, quase clandestino. Chamava-se
José Augusto Mourão. (Voz Portucalense, 11 de maio de 2011)
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8.ª - EM MEMÓRIA DE MANUEL JOAQUIM ALVES DE OLIVEIRA
No dia 30 de junho, faleceu, em Roma, Manuel Joaquim Alves de Oliveira
que foi sepultado na capela-jazigo do Colégio Português onde, entre outros, jazem
os restos mortais de D. Custódio Alvim, Arcebispo de Lourenço Marques.
Natural de Campo, Valongo, foi aluno brilhante dos seminários do Porto. Ordenado presbítero em 1959, foi professor no Seminário de Vilar. Em 1960, a Diocese
enviou-o para Roma estudar Direito Canónico na Universidade Gregoriana, onde se
doutorou.
Ainda estudante, colaborou com o Protocolo do Concílio Vaticano II. Foi então que acompanhou de perto os primeiros tempos de exílio de D. António, como
recorda no livro “Dom António Ferreira Gomes – Bispo do Porto ao Serviço da Liberdade”, com o texto “Um Natal com D. António”. Findo o Concílio, a Santa Sé convidou-o para a “Academia dos Nobres” onde se formam os Núncios Apostólicos.
Já como diplomata em Taiwan, seguiu a par e passo a Revolução Cultural
Chinesa. Enviado pelo Vaticano para Jerusalém, lidou com a complexa questão palestiniana. Como secretário da Nunciatura no Peru deparou-se com a problemática
da nascente “Teologia da Libertação”.
Quando se avizinhava a promoção a Núncio Apostólico, Monsenhor Oliveira, após madura reflexão, renunciou a tão promissora carreira diplomática, pedindo
dispensa das “obrigações inerentes ao estado sacerdotal”. Constituiu família e iniciou, então, um novo caminho profissional de excelência como diretor da maior
empresa farmacêutica europeia.
Quando se aposentou, por convite de D. José Policarpo passou a colaborar
na administração do Colégio Português em Roma, onde fez amizade com a maioria
dos bispos portugueses. Como expressão de reconhecimento e amizade, o P. Cordeiro, antigo reitor, deu-lhe lugar de honra na sua sagração episcopal em Bragança
e o P. Caldas, atual reitor, visitou-o diariamente no hospital onde, a seu pedido, lhe
ministrou os últimos sacramentos. D. Manuel Clemente, no dia 29 de junho, depois
de ter recebido o pálio das mãos do Santo Padre como novo Arcebispo de Lisboa,
foi vê-lo ao hospital onde veio a falecer no dia seguinte.
Sempre transportou o Porto no seu coração e de tal modo o amava que os
filhos decidiram colocar dentro do seu caixão um símbolo desta sua cidade. Quando
as circunstâncias o permitiam, confessava a sua admiração pelos seus professores
do Porto. Fê-lo no ciclo de conferências com que o Colégio Português assinalou o
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”quinquagésimo aniversário da abertura do Concílio” em que, com o Cardeal Ravasi,
participou: “Ao preparar estas notas, recordei dois dos meus professores de Seminário
do Porto: o padre Luís Faria; o Dr. Xavier Coutinho”, publicado no livro “O Mundo no
Coração da Igreja”. O mesmo sucedeu quando, a pedido do Cardeal Patriarca, veio
falar ao clero de Lisboa.
Nas exéquias, D. Carlos Azevedo, em breves e sentidas palavras, realçou a
sua dedicação à Igreja com uma referência especial ao trabalho no Colégio Português e à amizade que o ligava a D. António Ferreira Gomes.
Por sua vez, o seu pároco enalteceu o colaborador, o pai de família, o homem discreto que “era grande na humildade, na bondade, na simplicidade, na serenidade e na profundidade com que abordava todas as situações”. A presença, entre
outros sacerdotes, do reitor da igreja de Santo António dos Portugueses foi uma
homenagem silenciosa ao homem de cultura que sempre se afirmava como cristão
e português.
A Voz Portucalense apresenta sentidas condolências aos seus familiares,
amigos e condiscípulos. (Voz Portucalense,10 de julho de 2013)
9.ª – UM TEÓLOGO COM CORAÇÃO
O texto “Andrés Torres Queiruga homenageado na Universidade e censurado pelo Episcopado espanhol”(VP 25/4/12) apresentava “a sua reflexão teológica,
não como dogmática nem irredutível mas dialógica e nunca agressiva”.
Sem me imiscuir em tensões dialéticas que sempre marcaram a convivência
entre Magistério e Ciência teológica, apresento algumas notas que fundamentam o
título que retirei do prefácio ao livro Creo en Deus Pai. O Deus de Xesús e a autonomía
humana, Vigo, 1986.
- Torres Queiruga nasceu em Aguiño, aldeia piscatória da “Costa da Morte”
galega onde o mar é berço e túmulo. Foi a fidelidade às raízes que o levou a escrever
todos os livros na sua língua materna.
- Em 1970, era ele ainda muito jovem, D. António Ferreira Gomes recebeu-o
em Milhundos. E foi longa a conversa sobre a encarnação do cristianismo na sociedade galega e os pontos de convergência com a cultura portuguesa. Nasceu aí uma
admiração mútua. Não foi por acaso que o Dr. Godinho, mais tarde, o convidou para
participar em “Jornadas Teológicas do Clero”.
- Num jantar no Porto, ao ouvir uma senhora dizer “eu só sei dizer que, em
Fátima, me sinto bem, gosto de lá rezar e meditar”, virou-se para o sacerdote que
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estava a pôr em causa as aparições de Fátima e disse-lhe: “Padre F., isto é que é importante, isto é que é preciso saber ouvir”.
- Quando o Coro Gregoriano do Porto foi cantar a “Misa do Peregrino” a
Santiago, foi ele quem falou com o Deão da Catedral e marcou o almoço no “campus universitário”. E ainda teve a amabilidade de o acompanhar na Eucaristia e na
refeição.
- Anos atrás, por convite dum movimento de jovens cristãos, deslocou-se,
no seu carro, a Gouveia para orientar um encontro ibérico. Quando, no final, alguém
lhe perguntou se tinham pago pelo menos a gasolina, limitou-se a responder: os
jovens não têm dinheiro para eles, como podem ter para estas coisas…
- Logo que soube da morte dum familiar dum casal amigo, veio visitá-lo ao
Porto. Regressado a casa, escreveu-lhes “ante todo, moitísmas grazas por ter podido
compartir con todos ese día tan intenso, tan humano, tan divino. (…) Espero que a dor
vai cedendo cada vez máis espazo á serneidade, á esperanza e á comuñón”. Na Páscoa
passada, enviou -lhes um email: “nestes días de pascua deséxovos que a luz da resurrección sexa facho quente e luminoso, pois sei ben que o precisades”.
- “Eu só quero ter a Fé de minha mãe”, respondeu quando lhe perguntaram
como conciliava a sua Fé com a investigação teológica. E os seus pais eram pessoas
simples como simples é o epitáfio que colocou no seu túmulo: xuntiños na terra
xuntiños no ceo.
Foi na “via-sacra” do seu povo e no aconchego cristão da sua família que
ele bebeu a Fé no Deus-Pai/Mãe, o “Abbá” de Jesus, que inspira todo o seu trabalho
teológico.
(Voz Portucalense, 6 de junho de 2012)
10.ª A LEMBRAR JOÃO XXIII
“Aconteceu que, inesperadamente, a coragem, o calor humano, o bom humor e
a bondade de João XXIII conquistaram o afeto de todo o mundo católico e a estima dos
não-católicos. (…) Tinha uma fé inabalável em Deus, na presença contínua do Espírito
Santo como guia da Igreja e uma abertura total ao diálogo com todos, sem dilações nem
condições”.
Estas palavras do nosso conterrâneo Manuel Oliveira na palestra inaugural
da “celebração do quinquagésimo aniversário da abertura do Concílio Vaticano II”,
no Colégio Português de Roma, referem-se ao bom Papa João, mas poderiam aplicar-se ao Papa Francisco. O novo papa tem gestos que me fazem recordar o que,
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na mesma comemoração do Colégio Português, disse monsenhor Crispino Valenziano: “vivemos então o novo Pentecostes”. Para o comprovar, contou dois episódios a
que chamou as “intuições” de João XXIII. O primeiro aconteceu em 11 de setembro
de 1962 em São João de Latrão. “Começou por dizer: daqui a um mês, reunir-nos-emos em Concílio e virão muitos… mas, repentinamente, num salto de pensamento
sem nexo algum, disse: Lumen Christi e todos cantam: Deo gratias. Mas não só Lumen Christi, também Deo gratias, lumen ecclesiae. Deo gratias, lumen gentium… O que
estava o papa a dizer? Não havia sintaxe. Tive a impressão clara de que estava a profetizar. Lumen Christi – lumen ecclesiae – lumen gentium. Depois retomou o discurso,
como se estivesse a sair dum transe”.
O segundo foi em 10 de outubro, na véspera da inauguração do Concílio.
“Monsenhor Capovilla, secretário de João XXIII, conta que, quando surgiu a procissão das velas, o papa estava lá e observava tranquilamente. Então, disse-lhe: “Santidade, veja o que está na praça” ao que ele respondeu: “Não, não, não. Acabei. Acabou-se.” Depois, levantou-se, foi olhar no outro lado do apartamento que não dava
para a Praça de S. Pedro, mas para o castelo de Sant’Angelo. De repente, abriu a
janela: ”Filhinhos, filhinhos!” E recomeçou novamente este discurso sem sintaxe, um
discurso sem sentido: Estamos. Nesta manhã. Irmão. Eu sou vosso irmão, mas um irmão que também se tornou pai. E verdadeiramente queiramos agradecer… devemos…
mas fraternidade, paternidade e tudo em conjunto. E olhai também para a Lua, nesta
noite, apressou-se… Entre estes dois sem-sentido, percebeu-se para onde o papa
queria levar a Igreja”.
O profeta anuncia novos horizontes de esperança mas nem sempre tem
consciência do alcance das suas palavras e gestos. O Papa João, ao convocar o Concílio, certamente não previu os seus caminhos e o Papa Francisco nunca imaginaria
a repercussão que iriam ter a sua apresentação e a saudação “Irmãos e irmãs, boa noite!”, após ser eleito. São intuições. Que os “ricos” da Igreja e do Mundo não impeçam
esta “passagem do Espírito”... (Voz Portucalense, 8 de maio de 2013)
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UMA PALAVRA FINAL
Ao revisitar o passado, a mente enche-se de nomes e o coração de
amizades e gratidão. E dou graças por todos aqueles que Deus pôs no meu
caminho e deixaram em mim um pouco de si. Estes retalhos de memória não
passam de pequenas centelhas que gravitam em torno da fogueira que muitos
ajudaram a atear.
A vida humana é como uma árvore. Quando é que a árvore é mais árvore? Despida no inverno, em flor na primavera, com frutos no verão? Não. Ela é
o “todo” que se torna presente em cada uma das determinações que vai assumindo ao longo do ano. Assim a nossa vida. Em cada “hoje” eu realizo a síntese
do “ontem” que fui e do “amanhã” que serei. Cada dia que nasce é um dom de
Deus – um Seu presente - onde o passado frutifica e germina o futuro. François
Jacob, prémio Nobel da Medicina em 1965, diz que, ao longo da vida, vamos
moldando uma estátua interior que dá unidade e sentido às nossas ações e que
nos identifica.
Se é verdade que não há vida humana sem passado, também não há vida
plenamente humana sem futuro. Razão tinha quem afirmou “eu sou o que persigo”. O homem busca sempre a realização de um sonho. Armando Matteo no seu
livro “A primeira geração incrédula” ao falar dos jovens atuais diz que eles “parece
ter-se detido no limiar de um presente suspenso”. E acrescenta que “É a ausência de
futuro que dá razão a tudo isto, ou seja o pensamento de não ter futuro, de não
poder apostar na fiabilidade do futuro que entrega os jovens aos braços niilistas
do presente”. Com um passado que não cultivam e um futuro que não os motiva,
os jovens, com muitas e felizes exceções, andam à deriva na fugacidade do presente, sem bússola nem norte.
Assim as instituições. Cada instituição tem uma história que alimenta e
segura as suas raízes. Mas também precisa de ser avivada pelo sonho de novos
projetos que se abram para outros horizontes. Celebrar os 50 anos de uma instituição, mais do que relembrar uma data e homenagear a sua história, é buscar,
no passado, linhas condutoras que a ajudem a modelar o presente com sentido
e esperança.
Ao celebrarmos as “bodas de ouro” da Obra Diocesana, gostaria de reafirmar o espírito que esteve na sua origem. E faço-o com as palavras do Papa
Francisco na sua primeira encíclica “A luz da Fé”. Na fé, dom de Deus e virtude sobre93
natural por Ele infundida, reconhecemos que um grande Amor nos foi oferecido, que
uma palavra estupenda nos foi dirigida: acolhendo esta Palavra que é Jesus Cristo – Palavra encarnada - , o Espírito Santo transforma-nos, ilumina o caminho do futuro e faz
crescer em nós as asas da esperança para o percorrermos com alegria. Fé, esperança e
caridade constituem, numa interligação admirável, o dinamismo da vida cristã rumo
à plena comunhão com Deus.
E um voto me assalta o pensamento: Que a Fé, onde a Obra mergulha as raízes, possa alimentar a Esperança de quantos nela trabalham e, com Amor, os ajude
a ver, em cada homem, um irmão. A nós, a memória, a vós o projeto. Que o Espírito
ilumine o futuro da Obra Diocesana! Há sempre caminhos novos por andar. Que
Deus seja louvado no e pelo homem, Sua imagem!
Seja-me permitido terminar esta minha romagem à memória, com uma homenagem a João XXIII que irá ser canonizado em 27 de abril - o “bom Papa João”
que encheu de esperança a nossa juventude. Dele se escreveu Aconteceu que, inesperadamente, a coragem, o calor humano, o bom humor e a bondade de João XXIII conquistaram o afeto de todo o mundo católico e a estima dos não-católicos. (…) Tinha
uma fé inabalável em Deus, na presença contínua do Espírito Santo como guia da Igreja
e uma abertura total ao diálogo com todos, sem dilações nem condições. Vivemos então
o novo Pentecostes (“Notas de Imprensa” n.º 10).
E faço-o com as palavras da sua magistral encíclica “Mater et Magistra”(15 de
maio de 1961) que dão sentido ao nosso agir em Igreja. “Somos membros de corpo
místico de Cristo, que é a sua Igreja: “Com efeito, o corpo é um e, não obstante,
tem muitos membros, mas todos os membros do corpo, apesar de serem muitos,
formam um só corpo: assim também acontece com Cristo (I Cor 12,12). Convidamos,
com paternal insistência, todos os nossos filhos, do clero e do laicado, a que tomem
profunda consciência de tão grande dignidade e grandeza, pois estão enxertados
em Cristo, como sarmentos: “Eu sou a videira e vós os ramos” (Jo 15,5) e, por esse
motivo, são chamados a viver a sua mesma vida. Todo o trabalho e todas as actividades, mesmo as de carácter temporal, que se exercem em união com Jesus, divino Redentor, se tornam um prolongamento do trabalho de Jesus e dele recebem
virtude redentora: “Aquele que permanece em mim e eu nele, produz muito fruto”
(Jo 15,5). É um trabalho, através do qual não só realizamos a nossa própria perfeição
sobrenatural, mas contribuímos para estender e difundir aos outros os frutos da redenção, levedando assim, com o fermento evangélico, a civilização em que vivemos
e trabalhamos”.
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A bondade do Papa João e a doutrina do “Corpo Místico” foram molas impulsionadoras da criação e da ação da Obra Diocesana.
O trabalho social em Igreja é a “escada de Jacob” (Gn 28,12) que, da beleza
do humano, nos eleva à transcendência do divino. E o Deus de Jesus é um mistério
de ternura. Acolhemo-Lo quando prestamos auxílio a quem precisa, como Ele próprio afirmou: Vinde, benditos de meu Pai, tomai posse do reino que vos está preparado
desde a criação do mundo, porque tive fome e me destes de comer. (…) Em verdade vos
declaro: todas as vezes que fizestes isto a um destes meus irmãos mais pequeninos, foi a
mim mesmo que o fizestes (Mt 25,31-40).
Já este texto-memória estava no prelo quando o Papa Francisco publicou a
sua primeira Exortação Apostólica “Evangelii gaudium” (24 de novembro de 2013).
Fiquei de tal modo encantado com a delicadeza humana e a vivência evangélica da
sua mensagem que não resisti a transcrever dois pequenos excertos. Começo com
um convite à alegria: A alegria do Evangelho enche o coração e a vida inteira daqueles
que se encontram com Jesus. Com Jesus Cristo, renasce sem cessar a alegria. E finalizo
com um apelo à ternura: A verdadeira fé no Filho de Deus feito carne é inseparável do
dom de si mesmo, da pertença à comunidade, do serviço, da reconciliação com a carne
dos outros. Na Sua encarnação, o Filho de Deus convida-nos à revolução da ternura.
Alegria no serviço e ternura no encontro... que bela chave! E que magnífica
síntese para o que foi, é e será o trabalho da Obra Diocesana.
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Américo Ribeiro
Nos Alvores da Obra Diocesana
Depois desta interessante e importante viagem no tempo, remontando à década de sessenta, em que a expectação e o interesse
pela descoberta, pelo conhecimento de uma causa geradora de vantajoso fruto, fortalecido há meio século, são alimentados, de forma sistemática, cabe finalizar a narrativa com algumas considerações.
“Nos Alvores da Obra Diocesana” assume publicação de marcante valor histórico, social, cultural e afetivo. Mostra como a força da
realização e o poder do empreendedorismo social, materializados na
ajuda ao próximo, se tornam exequíveis, ainda que os requisitos se afigurem complexos e desmotivadores.
Salienta-se em todo o relato a vontade, individual e grupal, consistente e coesa, de seguir em frente, com perseverança e confiança, em
busca do grande objetivo: a solidariedade social, a promoção social e a
quebra das desigualdades, num semear de distintas oportunidades aos
mais desamparados, em sítios fulcrais da cidade do Porto.
Sente-se em toda a descrição o palpitar do acreditar, com fé e
oração, para encontrar a solução, as soluções, não obstante as contrariedades, as vicissitudes, as divergências…
Como se trata de um livro elaborado sob a luz do testemunho
vivo do seu autor, que acompanhou e experienciou, bem de perto e
com muita alma, os multifacetados trâmites da criação da Obra Diocesana de Promoção Social, oferece a apetecida autenticidade dos
factos, acontecimentos, vivências ímpares, curiosidades estimulantes,
alusões às realidades da época… numa composição, harmoniosa e feliz,
que conta com a beleza e a profundidade de algumas citações bíblicas,
encontradas com desvelo e perfeição, proporcionando, no seu conjunto, espaço para reflexão e introspeção.
Este livro, que termina aqui, traz consigo a intencionalidade de
dar a saber, com ênfase e pormenor, como nasceu a ODPS, a instituição
que escreve, com alegria, abonada história na vida das populações.
Observando a contemporaneidade e colocando o pensamento
há cinquenta anos atrás, tudo era diferente… porém, um ponto comum
ressalta, com agrado – o desejo de fazer o bem, de construir pontes e
edificar a paz. O valor social conseguido até hoje faz sorrir e deleita o
coração.
“Nos Alvores da Obra Diocesana” cumpre bem a sua parte.
Aos homens compete fazer o restante numa continuidade de propósitos sempre prontos a servir e a amar com inteligência e sabedoria.
João Alves Dias
EPÍLOGO
Nos
Alvores
da
Obra Diocesana
João Alves Dias
João Alves Dias, presbítero casado, licenciado em filosofia e professor aposentado.
Colaborou na criação da Obra Diocesana
de Promoção Social como “sacerdote responsável”, esteve na génese da paróquia
de Nossa Senhora do Calvário no Porto e
fez parte do primeiro Conselho Presbiteral da diocese do Porto. Presidiu aos conselhos diretivo e pedagógico da Escola
EB2,3 de Rio Tinto, foi diretor pedagógico
do Colégio D. Duarte e pertenceu à direção da AEPP. Foi membro da Assembleia
de Freguesia de Campanhã e da Comissão
de Ética do Hospital Joaquim Urbano, primeiro presidente da assembleia geral da
Comissão de Moradores do Bairro do Falcão e fez parte do conselho fiscal da CERPORTO e do Internato Juvenil de Campanhã. Participou nas obras “Manuel Álvaro
de Madureira in memoriam”, “Repensar a
Teoloxia, Recuperar o Cristianismo”, “Cancro, Vidas em Reconstrução”. É coautor
dos manuais escolares ”Conhecer Portugal- Estudos Sociais”, “Pela História Fora…”,
”Descobrir Portugal…”, “Grande Viagem”.
Escreve na “Voz Portucalense”, semanário
da diocese do Porto, e no “espaço solidário”, revista da Obra Diocesana. Faz parte
das direções da Fundação Voz Portucalense, do Coro Gregoriano do Porto e do
“Grupo Boa Memória”.