NOTA PRÉVIA

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NOTA PRÉVIA
NOTA PRÉVIA
Neste volume procurei reunir o que me parece mais essencial dos
trabalhos que tenho produzido e publicado sobre este tema, ao longo
de cerca de vinte e cinco anos. Assim, aqui se reúnem, modificam ou
ampliam textos que integraram várias obras, nomeadamente O Livro e
a Leitura em Portugal — Subsídios para a sua História (Lisboa, 1987),
Os Livreiros Franceses em Portugal no Século XVIII (Lisboa, 1998), Os
Livreiros em Portugal e as suas Associações (Lisboa, 1993, 2.ª edição
2005) e Duas Viagens ao Delfinado (Lisboa, 2002), acrescidos, naturalmente, de outros textos inéditos e originais.
Com a publicação deste livro quero dar por terminados os meus trabalhos sobre um tema que me fascinou, que ocupou muito do meu tempo mas que, creio, não terá sido desperdiçado, tanto mais que outros
investigadores e historiadores aqui encontrarão pistas (e bibliografia)
que os auxiliarão a prosseguir o caminho que deixo apenas desbravado
ou iniciado.
Durante este quarto de século fui auxiliado por inúmeros e competentes amigos, alguns no próprio Delfinado, a quem devo muito do que
consegui produzir. Não repito agora os sinceros agradecimentos que em
cada um dos volumes citados lhes fiz, por me parecer pleonástico, mas
todos sabem o quanto lhes estou grato.
Lisboa, Janeiro de 2012.
Fernando Guedes
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As ilustrações a traço foram retiradas da obra Le Briançonnais au temps de
la Révolution. O mapa da região de Briançon foi reproduzido do volume Briançon atravers l’Histoire. O fragmento do mapa da cidade de Lisboa foi reproduzido de Júlio de Castilho, Lisboa Antiga, Bairros Orientais, Vol. VIII, 2.ª edição,
Lisboa, 1937.
DUAS VIAGENS AO DELFINADO
para servir de
Prefácio
Penso que foi a consulta, acidental, das Impressões Deslandesianas, de Xavier da Cunha, que começou a suscitar em
mim, primeiro curiosidade e depois interesse, pelos franceses
que, durante, principalmente, a primeira metade do século xviii, vieram instalar-se em Portugal e abrir as suas tendas
como mercadores de livros, prevalecendo-se do privilégio que
os eximia, como estrangeiros, não só dos exames da Corporação mas os isentava também da apertada regulamentação que o
Regimento dos Livreiros impunha a todos os nacionais.
A minha primeira incursão nesse terreno, que viria a revelar-se, a um tempo, tão promissor mas tão cheio de surpresas e
de ciladas, constituiu-a um estudo dedicado aos Bertrand, que
aqui terão chegado cerca de 1735, e que publiquei em 1987 no
volume intitulado O Livro e a Leitura em Portugal — Subsídios para a sua História. Ao estudar esta família, fui topando com outros franceses, igualmente mercadores de livros, e
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Fernando Guedes
foi-se-me revelando uma particularidade que a quase todos
unia: eram naturais do Delfinado, da região briançonesa, e a
maioria de uma aldeia que então se chamava Monestier de
Briançon e, actualmente, Monêtier-les-Bains, ou simplesmente Monêtier.
A região pertence hoje ao departamento dos Altos Alpes,
que tem a cidade de Gap por capital.
Aproveitando uma viagem a Paris em 1985, tomei o avião
para Gap e aí propunha-me alugar um carro para subir os Alpes
até Monêtier. Ingenuidade a minha: estávamos em Novembro e
o recepcionista do hotel desencorajou-me totalmente. Não era
possível fazer o trajecto sem correntes nas rodas e... tinha eu
alguma vez guiado um automóvel nessas circunstâncias? Tive
de confessar que não e aceitar que a viagem fora em vão. Para
passar o tempo dirigi-me aos Arquivos Departamentais, com a
esperança vaga de que aí pudesse encontrar algum documento
de interesse para o meu trabalho. Pois bem, atendido por uma
jovem arquivista a quem narrei a minha desilusão e a provável
inutilidade da minha viagem desde Paris, diz-me ela, com o seu
melhor sorriso, que, pura coincidência!, todos os livros de baptismos, casamentos e óbitos de Monêtier do século xvi ao xviii,
estavam acidentalmente nos Arquivos para lhes ser restaurada
a encadernação, e eu poderia consultá-los à mon aise!
Imagine-se qual seria a minha desilusão se o recepcionista
do hotel não me tivesse dado tão avisado conselho, eu tivesse
corrido o risco daqueles cento e tal quilómetros de estrada com
neve e gelo e, admitindo que conseguia alcançar o destino, ser
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Livreiros Franceses do Delfinado
informado, ao chegar, de que os documentos que eu pretendia
consultar estavam no local de onde eu partira!
Enfim, acabei por passar dois dias nos Arquivos, decifrando
latim em caligrafia dos séculos xvii e xviii e por vezes em folhas
de papel que deixavam transparecer textos de uma página para
a outra. No fim, a jovem arquivista — Catherine Briotet —, contra uma modesta retribuição, prontificou-se a copiar todos os
documentos que me interessavam e a fazer a sua tradução correcta para francês, encargo do qual se desempenhou com perfeição e remeteu o resultado do seu trabalho para Lisboa ao fim
de poucas semanas.
Eu, pelo meu lado, antes de tomar o avião de regresso a Paris,
ainda fui a uma estação de correios e consultei a lista telefónica
de Briançon e seus arredores, tendo aí achado, quer na cidade
quer na vila de Monêtier, uma quantidade apreciável de cidadãos ainda com apelidos que eu já sabia terem sido os livreiros
instalados no século xviii em Portugal: ao todo oito Bertrands,
dezasseis Bonnardels, oito Borels, quarenta e dois Faures, dois
Gendrons, três Reys, dois Orcels, seis Rollands, entre outros.
Com o material assim recolhido e com o que resultou de
investigações em Lisboa, nomeadamente na Torre do Tombo e
no Cartório da Igreja de S. Luís dos Franceses, compus então o
trabalho sobre os Bertrand. Pude aí desfazer alguns erros, muitos dos quais originados na obra de Xavier da Cunha mas que
vinham sendo repetidos, quando não acrescentados, pelos dois
ou três investigadores que já se haviam ocupado do tema; infelizmente, acrescentei então ao rol alguns da minha lavra que só
posteriormente pude corrigir.
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Fernando Guedes
Publicado 0 Livro e a Leitura em Portugal em 1987, comecei
a estudar os livreiros portugueses e as suas associações desde o
longínquo século xv, em particular a Confraria de Santa Catarina do Monte Sinai, confiada a livreiros desde o século xvi e cuja
história e vissicitudes deram origem a um pequeno trabalho
que veio a ser publicado em 2003 pela Associação Portuguesa
de Editores e Livreiros. Dessas investigações e estudos resultou
um outro livro — Os Livreiros em Portugal e as suas Associações — que publiquei em 1993 quando se completavam 70 anos
sobre a fundação da antepassada recente da actual APEL.
Passados mais uns meses em que, quase por dever de ofício,
estudei, principalmente em Genebra, o nascimento e desenvolvimento da União Internacional de Editores, da qual era eu
então Presidente e comemorava, em 1996, o seu primeiro centenário [Union Internacionale des Editeurs: le Prémier Siècle
(Barcelona, 1996)], voltei de novo — ansioso que estava! — a
preocupar-me com os livreiros franceses que haviam demandado Portugal há duzentos e cinquenta ou ainda mais anos.
O tempo em que estivera afastado do seu estudo, quase diria
do seu convívio, permitira-me ir reflectindo sobre aquele interessante — e importante — fenómeno migratório que, no decurso de poucos lustros, trouxera até nós mais de duas dezenas de
indivíduos, quase todos saídos de uma pequena aldeia ou vila
cuja população actual não atingia, segundo o Grand Larousse,
o milhar de habitantes. E fui-me firmando na convicção de que
a chave do mistério — se chave havia — tinha de ser procurada
no local de origem e não no de destino, quer dizer, impunha-se
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uma visita a Monêtier, a Briançon e a outras localidades próximas, como Les Guilbertes e Vallouise, e aí procurar falar com
as pessoas, procurar documentação, numa palavra, procurar
informar-me para procurar entender.
Foi assim que, na sequência de uma viagem a Genebra em
Junho de 1996, tomei o TGV para Grenoble e daí, alugando um
automóvel, meti-me à belíssima estrada de montanha que,
em cerca de 100 quilómetros, conduz a Monêtier-les-Bains e,
mais uns dez andados, a Briançon. Sendo embora praticamente Verão, ia avistando, numa sequência impressionante, de um
lado e do outro da estrada, majestosos picos nevados aos quais
a minha ignorância do local não sabia dar nome. Assim cheguei
finalmente a Monêtier, num encantador fim de tarde e parei
junto do primeiro (e afinal único) café-restaurante-bar que um
letreiro de madeira esculpida me anunciava.
A vila era pequena. Umas poucas centenas de metros da
própria estrada constituíam a rua principal, onde sobressaía, à
esquerda, a Igreja paroquial e, à direita, o tal café-restaurante
e algumas casas com melhor aspecto. Da rua-estrada partiam
umas quantas ruazinhas perpendiculares a esta ou oblíquas e,
quando um transeunte mal se precatava, estava de novo na estrada a caminho de Briançon. Jantei no restaurante, mais ou menos
rodeado por barris vazios de cerveja, mas consegui um bom prato de sopa e uma omeleta de presunto, ementa a que geralmente
recorro quando o local não me inspira grande confiança.
Terminado o modesto repasto iniciei o indispensável interrogatório ao empregado que me servira. Algum professor,
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Fernando Guedes
alguém reformado que tivesse estado ligado a uma Universidade... que não, não havia por ali ninguém. O pároco... — esse
sim, claro que havia, a residência era mesmo ali em frente, pessoa doente, porém, e que estava na terra há poucos anos; mas
que eu podia tentar, era mesmo em frente. O que talvez, contudo, me conviesse mais, era falar com dois irmãos, já idosos,
ela até escrevia livros... todavia, il s’agit d’une dame un peu
bizarre... Morava com o irmão numa moradia a uns 200 metros
do restaurante, numa vereda que descia para o rio. Chamava-se
Gabriele Sentis.
Na residência paroquial ninguém atendeu; pedi ao meu
informador o número do telefone, para tentar mais tarde do
hotel em Briançon, e meti-me ao caminho, em busca de Madame Sentis. Começava então a anoitecer. Com alguma dificuldade encontrei o local, uma propriedade murada mas na mais
extrema degradação. Ao aproximar-me da casa saiu ao meu
encontro um homem corpulento, dos seus sessenta e muitos
anos, vestindo umas calças velhíssimas e uma camisa que também já conhecera, há muito tempo, melhores dias. Entrei com
ele numa divisão que podia ser cozinha, que podia ser sala de
comer, mas onde a sujidade era tanta e tanta a desorganização que dificilmente consegui onde me sentar. Monsieur André
Sentis, dele se tratava, parecia estar perfeitamente à vontade
naquele ambiente, pois nem sequer me disse que desculpasse,
que não reparasse na sujidade e na desorganização. Quanto à
irmã, tinha nessa manhã partido para Grenoble, onde ambos
possuíam um apartamento e para onde ele seguia também
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Paisagens alpinas nas proximidades de Monêtier-les-Bains.
Fernando Guedes
na tarde do dia seguinte! E da história local, só ela sabia; ele,
conhecia palmo a palmo todos os picos, vertentes, desfiladeiros ou precipícios da região, mas História não era com ele.
Propus-lhe então — era a minha última chance — levá-lo no
dia seguinte, no meu carro, até Grenoble e ele me levaria até à
sua irmã. A boleia agradou-lhe, só que não podia garantir que
encontrássemos a irmã em casa. Sugeri-lhe um telefonema,
mas não tinham telefone, nem em Monêtier nem em Grenoble. Solução, confiar na sorte e, se necessário, ficar dois ou três
dias em Grenoble e haveria de a encontrar. Marcámos a partida
para o meio-dia e trinta do dia seguinte, junto do restaurante,
e rumei a Briançon, onde reservara quarto num hotel. De lá,
consegui finalmente falar com o Prior que acedeu a receber-me
às dez da manhã do dia seguinte.
Levantei-me muito cedo, dei uma volta pela cidade, especialmente para admirar as enormes muralhas reforçadas por
Vauban, e às nove estava numa livraria onde o dono, muito
prestável, me ajudou a escolher a bibliografia que lhe e me pareceu útil, aquele tipo de obras que não chega jamais aos grandes
circuitos livreiros, aqueles livros que, num país como a França,
são escritos e publicados por historiadores, investigadores ou
simples curiosos locais, mas que se revelam do maior interesse
para quem quer estudar uma região, a sua gente, os seus costumes, a sua história, a sua pequena história, por vezes, simplesmente, a história de uma família.
Ao deixar Briançon a caminho de Monêtier, para me encontrar com o padre cura, passei numa ainda mais pequena aldeia,
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Les Guibertes, terra natal de um dos primeiros livreiros a vir
para Portugal, Jean Joseph Guibert. Aí procurei saber se lá havia
ainda alguma família com esse apelido, mas em vão. Existiria
um Guibert, homem solteiro, proprietário de uma casa e uns
campos, mas residindo noutro local, cujo nome não recordo.
Poucos minutos depois das dez horas estava na residência paroquial. O pároco foi amabilíssimo, mas realmente sabia
muito pouco. Nem sequer era oriundo da região. Mas da relação de nomes que lhe fui dizendo, conhecia alguns e propôs-se acompanhar-me numa digressão pela vila, confirmando,
porém, que Madame Gabriele Sentis, embora trop bizarre
(agora já não era un peu, como a classificara o empregado do
restaurante, mas trop), era a pessoa com quem eu tinha indiscutivelmente de falar.
Antes de visitarmos a vila, mantivemos durante mais de
meia hora uma interessante e útil conversa. O padre cura, se
não sabia coisa alguma da história de Monêtier, sabia, evidentemente, da vida quotidiana do seu rebanho. Dos cerca de
1300 hectares de superfície da comuna mais de 80 por cento
eram terrenos colectivos de pastagem ou simplesmente rochas.
A administração das Águas e Florestas possuía perto de 600 hectares, restando menos de 200 para terrenos aráveis, pertença
de mais de 2000 proprietários, muitos deles ausentes pois que
a população residente não atinge actualmente os mil habitantes, reduzida a menos de metade da que existia em meados do
século xix. A agricultura, pobre como sempre, já ocupa apenas
cerca de 15 por cento da população e, de entre os proprietários
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Monêtier-les-Bains, igreja paroquial.
em cima: a rua principal.
em baixo: Monêtier-les-Bains, boucherie e charcuterie Bonnardel.
Fernando Guedes
agrícolas a trabalhar os seus magros campos, apenas um tinha
menos de 40 anos. A verdadeira ocupação é o turismo. Turismo de Inverno mas igualmente turismo de Verão, que os Alpes
são tão encantadores e atraentes cobertos pelo seu fabuloso
manto de neve — o ouro branco, como o designam por vezes os
guias montanheses — como em pleno Verão, oferecendo então
ao alpinista a maravilhosa riqueza da sua flora multicolor. E
embora os hotéis e hospedarias não abundem, a verdade é que
Monêtier consegue oferecer, em casas particulares, um número suficiente de camas aos turistas, ansiosos por tentar o Pic des
Agneaux ou o Col du Lautaret. Longe iam, pois, os tempos de
emigração maciça por motivos económicos durante os longos
invernos, a quase vagabundagem de jovens mestres-escola e
colporteurs que faziam parte da vida quotidiana daquelas gentes em pleno século xviii.
Como o tempo, infelizmente, escasseava, saímos da residência para a prometida digressão pela vila. A primeira visita
que fizemos foi à Boucherie et Charcuterie do Sr. Bonnardel,
simpático carniceiro que achou muita graça a eu ter vindo de tão
longe à procura de vestígios de algum seu parente de duzentos
e tal anos atrás; falámos depois com uma senhora Dubeux que
me disse ter uma filha (ausente, infelizmente) que teria preparado uma árvore geneológica da família: deixei-lhe um cartão
de visita, pedi ao padre que insistisse com a rapariga para que
me escrevesse, mas nada aconteceu. Procurámos em seguida um Bertrand, senhor viúvo habitando numa casa de muito boa aparência, mas ninguém nos atendeu. Fui ver a Igreja,
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edifício sem interesse, todo refeito no século xix e o simpático
cura ainda me levou ao extremo da vila, a visitar a capela de
St.° André, junto do cemitério, também sem qualquer interesse
arquitectónico ou histórico.
Chegava entretanto a hora combinada com o Sr. Sentis e ele
pontualmente apareceu, um pouco menos descomposto do que
na noite anterior. André Sentis não sabia História, mas conhecia, de facto, os seus Alpes palmo a palmo, pico por pico. Fiz
com ele uma das mais deliciosas viagens da minha vida. Além
de me enumerar, um por um, todos os locais de interesse que
íamos atravessando, de me fazer parar num ou noutro de maior
importância, a sua conversação, as suas reminiscências, ora de
difíceis subidas ao Pic des Agneux ou a La Meige, com os seus
4000 metros; ora de árduas travessias do Col du Lautaret ou do
Col du Galibier em pleno Inverno; ora até de tremendas avalanchas de neve que sepultaram, aqui e ali, os alpinistas que
por lá se encontravam, toda a viagem constituiu um encanto,
que regámos com bom vinho e um excelente almoço em Vilars
des Arenes, a meio caminho de Grenoble. Chegámos durante a tarde e André Sentis, antes de me levar a sua casa, passou
ainda pela Librairie des Alpes, especializada, como o próprio
nome indica, em obras sobre a região e onde me forneci de mais
bibliografia específica.
A casa dos irmãos Sentis, como a que eu visitara na noite
anterior em Monêtier, também já tinha conhecido melhores
dias. Dir-se-ia que a vida ali tinha parado há 40 ou 50 anos; sob
certos aspectos, há 70 ou 80 anos. Bons móveis que há muito
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Les Guibertes, igreja paroquial e vista geral.
Livreiros Franceses do Delfinado
deveriam ter sido tratados, encerados, restaurados; velhos
reposteiros de veludo que o tempo há muito desbotara; livros
do fim do século xix ou dos começos do xx com magníficas
encadernações em marrocain; rendas, bordados, bibelots —
quase se diria que nenhuma peça teria menos de 50 anos naquela casa. Dominando a sala, o retrato de um oficial superior, com
uma farda provavelmente em desuso desde a Primeira Guerra
Mundial, o pai dos meus anfitriões. E no chão, aqui ou além,
um prato de alumínio com restos de comida, repasto de algum
bichano que não cheguei a conhecer.
Gabriele Sentis chegou meia hora mais tarde, vinda de
corrigir provas numa tipografia, de um novo livro seu. Condizia com a casa; condizia também com a ideia que eu tenho
de Miss Marple, aquela deliciosa criação de Agatha Christie,
mas em menos apurados trajos, em menos cuidados cabelos,
mãos e unhas. Baixa e gordinha, um casaco e um chapéu que
teriam sido modernos há uns bons 25 anos, uns olhos pequeninos mas prescrutadores, inteligentes. Conversámos durante
algumas horas, trocámos impressões, confrontámos o que eu
sabia dos seus compatriotas em Portugal e o que ela deles sabia
na sua aldeia de origem. Ofereceu-me três dos seus livros, os
que poderiam ser-me úteis — e foram-no. Deu-me indicações
sobre bibliografia que eu deveria, no dia seguinte, consultar na
Biblioteca Municipal e o que deveria procurar nos Arquivos do
Departamento do Isêre. Valeu a pena.
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