As Mais Antigas Evidências Conhecidas do Emprego de
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As Mais Antigas Evidências Conhecidas do Emprego de
CO 37: As Mais Antigas Evidências Conhecidas do Emprego de Talhas Numéricas Associadas a Processos de Contagem Manoel de Campos Almeida Pontifícia Universidade Católica do Paraná – PUCPR [email protected] RESUMO Talhas numéricas (tally sticks) pré-históricas, artefatos onde se associa o objeto a ser contado a uma incisão em uma talha, mediante uma correspondência um-a-um, constituem as mais antigas evidências subsistentes de processos de contagem empregados pelo Homo Sapiens. O emprego de correspondências um-a-um pode ser feito igualmente por meio de associações com seixos, contas, cocos, calculi diversos, partes do corpo, etc., contudo, com essas mídias materiais ocorre que: ou seu conjunto é dispersado, ou não podem ser vinculadas com processos de contagem, ou não sobrevivem arqueologicamente. Na pré-história processos de contagem eram necessariamente orais, os numerais somente surgiram no fim do Neolítico, com a invenção da escrita (c.3.400-3.000 a.C.), a qual permitiu registrar concretamente os seus resultados. A Etnografia mostra que o emprego de talhas numéricas como processo de contagem foi, e ainda é, recurso material amplamente usado por povos primitivos ao redor do globo. Talhas inscritas em ossos, ocres, pedras, ou outros substratos materiais podem resistir à ação do tempo, restando como praticamente os únicos testemunhos concretos de processos primitivos de contagem passíveis de descobertas arqueológicas. A importância do estudo das talhas numéricas pré-históricas reside no fato de que constatam o emprego do mais rudimmentar conceito de número de objetos pelo homem, visando a distinção entre um, mais de um e muitos, provavelmente antes mesmo do surgimento da associação com nomes de números, evidenciando a mais antiga concepção simbólica de quantidade. No presente trabalho serão apresentadas e discutidas algumas das mais antigas evidências conhecidas de seu emprego. Serão abordadas e analisadas, do ponto de vista histórico-matemático, descobertas arqueológicas recentes efetuadas na Border Cave (África do Sul) e no abrigo rochoso Apolo 11, as quais, como será mostrado, nos permitem recuar a data do surgimento desses artefatos em c. 20/30.000 anos, indicando que a espécie humana provavelmente intuiu o conceito de número antes do que se supunha pelos implementos até então conhecidos. Palavras-chave: Talhas numéricas; Contagem; Número. Numerosidades A capacidade de espécies animais, notadamente do Homo Sapiens Sapiens, de distinguir ordem, números (quantidades), formas e tamanhos constituem os rudimentos fundamentais de um sentido matemático. Ideias centrais da Matemática são as noções de quantidade e de forma. Elas originam as duas principais correntes da Matemática primitiva: a aritmética, que trata dos números, denominadores de quantidades e de suas propriedades operacionais, e a geometria, que se ocupa com as formas. As origens de conceitos matemáticos básicos como quantidades (números) e formas (linhas retas, curvas, superfícies, etc.) estão intimamente entretecidas com as origens do simbolismo, do emprego de símbolos pelo homem. Discute-se se outras espécies de animais empregam consciente e intencionalmente símbolos. Símbolo é algo que, por convenção arbitrária, designa ou representa uma realidade complexa. Um número é uma quantidade expressa simbolicamente. Alerta JUNG, porém, para a importante diferença existente entre sinal (signo) e símbolo: o sinal é sempre menos do que o conceito que ele representa, enquanto que o símbolo sempre representa mais do que o seu significado imediato e óbvio. Exemplos disso encontramos na balança, símbolo da justiça, e na cruz, símbolo da cristandade. Através da simples observação de seu aspecto material, ou da mera constatação da sua utilidade, somos incapazes de intuir a complexidade de seu conteúdo simbólico. É geralmente aceito que o comportamento moderno do homem se iniciou quando começou a pensar abstratamente, ou seja, a empregar, consciente e intencionalmente, símbolos. Vamos considerar como numeral qualquer signo capaz de representar um número. Se este signo é sinal gráfico, temos então os numerais no sentido habitual, como normalmente os estudantes aprendem: 1,2,3,4,[...]; I,II,III,IV,[...]. Se este signo é palavra, temos então o que é conhecido como “nome” dos números, ou palavras para números: um, dois, três, quatro,[...]. A primeira percepção de quantidades por mentes primitivas envolve a diferenciação entre um, mais de um e muitos. A forma mais primitiva de animais efetuarem essa diferenciação está no que é conhecido como senso numérico, ou, modernamente, como percepção de numerosidades. 2 Tobias Dantzig, em seu livro “Número, a linguagem da ciência”, credita aos homens algo como uma intuição direta do que número significa, isso já na década de1930: O Homem, mesmo nas mais baixas etapas do desenvolvimento, possui uma faculdade que, por falta de um nome melhor, chamarei de Senso Numérico. Essa faculdade permite-lhe reconhecer que alguma coisa mudou em uma pequena coleção quando, sem seu conhecimento direto, um objeto foi retirado ou adicionado à coleção. O Senso numérico não deve ser confundido com contagem, que provavelmente é muito posterior, e que envolve um processo mental bastante intrincado (1970, p.15). Estudos em diversas culturas apontam que essa intuição de número é comum a todos os humanos, independentemente de língua, educação, cultura, distância geográfica ou grau de instrução matemática. Ainda hoje há culturas com um reduzido léxico de palavras para número, tão limitado que incluem apenas palavras para “um”, “dois” e “muitos”, mas mesmo assim possuem uma notável competência não verbal para aritmética elementar, sublinhando, contudo, que esse conhecimento é mais aproximado que exato. Os Pirahãs, índios de uma tribo do Amazonas, que falam uma língua que não tem relação com nenhuma outra existente e cujo léxico de palavras para número acaba em “dois”, podem comparar aproximadamente duas numerosidades. Os Mundurucus, habitantes do Pará, do Amazonas e do Mato Grosso, tanto adultos como crianças, possuem uma excelente capacidade para discriminar dois conjuntos baseados em seu número de elementos, apesar de terem palavras para números somente até cinco. O senso numérico é, portanto, uma propriedade de um estímulo perceptivo, que é definida pelo número de elementos discrimináveis que um conjunto contém. O senso numérico, portanto, envolve o conceito de número cardinal de um conjunto. Faz parte do que denominamos de matemática animal (Almeida, 2011, 2013), ou seja, de rudimentos de conceitos matemáticos comuns a algumas espécies do reino animal. Entre essas, que compartilham o senso numérico com o homem, citamos os insetos (vespas); aves (pombos, corvos, papagaios, periquitos, gralhas); primatas, como os prossímios (lêmures) e antropoides (rhesus, chipanzé); ratos; peixes, golfinhos e mesmo salamandras. O senso numérico é, consequentemente, inato, independente da linguagem, transmitido 3 filogeneticamente e possui uma longa história evolucionária, pois é importante em situações envolvendo sobrevivência, como comparação entre conjuntos de inimigos, ou na repartição ou escolha de alimentos.1 Contagem, como usualmente conhecemos, consiste em, quando se quer precisar a quantidade de objetos de um dado conjunto, estabelecer uma correspondência um-a-um entre cada elemento deste conjunto com os elementos de outro conjunto, habitualmente o conjunto de nomes de números, embora este último também possa ser composto de elementos materiais, como seixos, grãos, partes do corpo, entalhes, cortes no corpo, etc. Dai a noção habitual de que contar é recitar os nomes dos números em uma dada ordem. Talhas numéricas Quando essa correspondência é registrada materialmente através de entalhes em ossos, madeiras, pedras, etc., surgem as denominadas talhas numéricas (tally sticks, bastões numéricos entalhados). Seu emprego, mostra a Etnologia, foi e ainda é amplamente difundido entre povos primitivos sendo utilizadas para inúmeras finalidades: registro de transações ou obrigações, cômputo de dias de viagem, registro de períodos de tempo, calendários, repartição de bens, etc. (cf. Menninger, 1992; Lagerkrantz, 1973; Ifrah,2000, 1981;...). A importância do estudo das origens talhas numéricas pré-históricas reside no fato de que documentam materialmente o emprego pelo homem do mais rudimentar conceito de número de objetos, visando distinguir entre um, mais de um e muitos, provavelmente antes mesmo do surgimento da associação com nomes de números, evidenciando assim a mais antiga concepção simbólica de quantidade. Seu estudo é relevante porque constituem importantes indícios de quando o homem começou a se preocupar com números, com a avaliação de quantidades. Constituem praticamente as únicas pistas materiais, os únicos vestígios arqueológicos sobreviventes que registram essas preocupações. 1 O estudo da forma que o cérebro processa numerosidades é objeto de estudo da Neurofisiologia da Matemática, importante campo de estudo atual sobre como a mente processa a Matemática. Para uma introdução mais detalhada sobre o assunto, consultar Almeida (2013). 4 Vejamos inicialmente alguns exemplos de talhas numéricas do Paleolítico Superior Europeu (c. 45-10 ka = mil anos [atrás]). Até recentemente, o mais antigo exemplo de talha numérica registrado nos textos de História da Matemática era um rádio de lobo (Fig.1 a), inscrito com 55 incisões, encontrado por Karel Absolon em 1937 no importante sítio arqueológico de Dolní Vestonicě, situado na República Tcheca, com uma idade de aproximadamente 30 ka. Absolon tem o mérito de ser o primeiro a reconhecer que este artefato representava uma notação numérica, pois até então artefatos deste tipo eram classificados sob a vaga denominação de “arte geométrica”. 2 O “adorador” é uma figurinha em marfim de mamute, comprimento 30 mm, altura 14mm, espessura 4,5 mm (Fig. 1 c). Pode representar uma criatura híbrida em atitude de adoração. As filas de pontos no verso podem representar observações astronômicas ou calendáricas. Os ~ 3 49 pontos no verso estão arranjados em 4 filas de 13, 10, 12 e 13 pontos; nos lados há um total de ~ 30 incisões em grupos de 6, 13,7 e 13. Traços de ocre foram encontrados no verso. Foi escavado em 1979 e é datado do Aurignaciano: c. 35-32 ka). Em 1927 foram escavados no Abri Cellier (Dordonha, França) ossos com entalhes com uma idade estimada em 24 ka. Á direita (Fig.1 b) tem-se um osso de ave, gravado com duas séries de incisões, outro osso, à esquerda, apresenta uma série de incisões. Alexander Marshack foi o pioneiro em interpretar algumas talhas pré-históricas como registros de períodos de tempo, principalmente calendários lunares (Marshack, 1972.). 2 Embora muitos livros de História da Matemática indiquem que as incisões estão agrupadas em grupos de 5, vestígio do emprego da base 5, tivemos oportunidade de mostrar (Almeida 2003, 2009) que isto não é verdade, este artefato não constitui prova do emprego desta base no Paleolítico, mas sim que apenas correspondências um-a-um eram utilizadas. 3 c. = ~ = cerca de, aproximadamente 5 a b c d e f h g Fig.1 a) rádio de lobo de Dolni Vestonicě; b) ossos, Abri Cellier; c) Adorador; d) placa, Abri Lartet; e) ossos de águia de Le Placard; f) bastão de Isturitz; g) ossos de mamute, Mezin; h) Cylcon. Fontes: a: Absolon,1958; d, e,f: Marshack, 1972; b,c,g,h: Almeida, 2009, 2013. Para mencionarmos apenas algumas interpretações de talhas como calendários lunares assinalaremos:1) Fig.1 d: placa óssea de Abri Lartet (Dordonha), contendo na face 6 118 marcas e no verso 90, correspondendo a um registro de onze meses; 2) Fig. 1 f: bastão de Isturitz, registrando provavelmente em uma das faces 4 e na outra 5 meses lunares; 3) Fig.1 e: osso de águia de Le Placard (Dordonha), contendo cada lado aparentemente seis meses lunares, totalizando um ano lunar (cf. Marshack, 1972; Almeida 2009, 2013). A técnica de entalhes não se limitou ao continente europeu. Na Ásia, entre outros exemplos, no sítio de Mezin (Ucrânia) foram encontrados em 1908 ossos de mamute com incisões (Fig.1 g), datando de 29-15,1 ka. Na Austrália encontramos objetos de pedra denominados de cylcon (Fig.1, h), contendo entalhes paralelos, provavelmente empregados para contar emus, guerreiros mortos, etc. A mais antiga pedra cylcon encontrada em um contexto arqueológico datável tem uma idade de 20 ka. b c e a d Fig.2: a) Osso de Ishango; b) Osso de Lebombo; c ) Border Cave, estrato 1WA; d) Border f Cave, estrato 2WA; e) Apolo 11 Cave ; f) Segundo Osso de Ishango. Fontes: a) Institut Royal des Sciences Naturelles de Belgique, Bruxelles; b,c,d : Beaumont, 2013; e) Vogelsang, 2010; f) http://ishango.naturalsciences.be/Flash/flash_local/Ishango-02EN.html As Mais Antigas Talhas Numéricas Africanas Conhecidas A primeira, que recebeu maior atenção do mundo acadêmico, foi a conhecida como o “Osso de Ishango” (Fig. 2, a), descoberta por Jean de Heinzelin de Braucourt em 1950, na área de Ishango, perto do Lago Edwards, no antigo Congo Belga. Sua idade foi inicialmente estimada entre 6,5-9 ka, contudo, reavaliações recentes da idade deste sítio apontam que pode ter c. 20 ka (Brooks,1987). Contém um conjunto de entalhes, objeto de interpretações diversas: seis meses de um calendário lunar (Marshack, 1972); um sistema 7 numeral. Um segundo osso (Fig.2, f), igualmente desenterrado em Ishango, permaneceu desconhecido por muito tempo. Foi descoberto em 1959; Heinzelin contou nele 90 entalhes que cobrem seis lados do osso, possivelmente humano. A segunda, em importância, é conhecida como o “Osso de Lebombo” (Fig.2, b), hoje amplamente denominada como “o mais antigo artefato matemático”. É uma fíbula de babuíno com 29 entalhes, descoberta na Border Cave, um abrigo rochoso das montanhas Lebombo, entre a África do Sul e a Swazilândia. Sua idade é estimada em 41-43 ka. No mesmo estrato em que foi encontrada, achou-se dois fragmentos de ossos (costelas) com entalhes, um com 4,3 cm e outro com 1,2 cm, este último calcinado e com sete entalhes (Fig. 2, c), com uma idade avaliada em 43 ka (Beaumont, 2013). A coincidência da descoberta no mesmo local de três artefatos de idades próximas portando entalhes nos permite supor existir uma convenção de seu uso, provavelmente de caráter numérico. Contudo, de maior interesse é a descoberta no mesmo local de um fragmento de costela com 3,8 cm de comprimento gravado com 12 entalhes (Fig.2, d), todos produzidos em uma única sessão mediante a mesma ferramenta, com uma idade de 60 ka (Beaumont, 2013). Como foram produzidos em uma única sessão, se esse artefato realmente conter um registro numérico, provavelmente não deve ser de tempo, de calendário, mas sim de um rudimento de contagem. Observe-se que, pelo menos na Border Cave, provavelmente ocorreu uma tradição de produção desses artefatos que durou cerca de vinte mil anos. Outros ossos entalhados foram encontrados na Sibudu Cave, um abrigo rochoso situado em KwaZulu-Natal, África do Sul, com uma idade de ~ 60 ka. Todavia, ainda mais surpreendentes são as descobertas realizadas no abrigo rochoso Apolo 11, situado perto do Rio Nuob, na Namíbia. Esse abrigo é reputado por nele terem sido descobertas as mais antigas pinturas figurativas da África; todavia, os nossos interesses se concentram nos três artefatos entalhados ali encontrados. O maior deles, um fragmento de costela com 7,2 cm (Fig. 2, e), conta com 23 entalhes regulares finamente executados ao longo de seu eixo longitudinal; outro, com 6,2 cm de comprimento, tem 12 entalhes menos esmerados; existe ainda a possibilidade de que uma terceira peça com entalhes pertença ao mesmo estrato das duas primeiras (Vogelsang, 2010). 8 A idade estimada para esses artefatos, que pertencem ao nível estratigráfico conhecido como Still Bay, é de 71 ± 3 ka (Vogelsang, 2010). Considerações A função correta dos artefatos aqui apresentados, sob o peso das dezenas de milhares de anos transcorridos desde a sua confecção, pode nunca ser exatamente determinada, pois seus artífices e sua cultura se desvaneceram nas fímbrias do tempo. Sua utilidade, se empregados em registros numéricos ou de tempo, ou em rituais há muito esquecidos, ou ainda com finalidades puramente estéticas, meramente decorativos, sem propósitos funcionais, não poderá em momento algum ser determinada com absoluta exatidão. Em se tratando da pré-história, o máximo que podemos almejar é esperar comprovações indiretas, parciais, baseadas principalmente no que sabemos sobre a cultura de povos primitivos, estudados por ciências como a Antropologia, a Etnografia e a Etnologia, entre muitas outras. Para nos aventurarmos na pré-história primeiro precisamos aprender a caminhar sobre pisos movediços e pantanosos. Contudo, no concernente às talhas numéricas pré-históricas aqui tratadas, essas ciências nos proporcionam inúmeros exemplos de artefatos semelhantes (Ifrah, 1981, 2000; Menninger, 1992; Lagerkrantz, 1973, Halpike, 1979, etc.), o que nos permite supor, com razoável grau de certeza, que pelo menos algumas delas, senão a maioria, foram confeccionadas com propósitos funcionais, assinalando registros numéricos rudimentares. Lagerkrantz (1973), por exemplo, registra numerosos exemplos de seu emprego entre tribos modernas da África. Vejamos alguns. Há evidências do seu uso como auxílio na contagem entre os Vei, Ho, Bonny, Tiv, Duala, "King" Qua Ben's Town, Baja, Kuku, Ganda, Sania, Embu, Chuka, Kikuyu, Sonyo, Kindiga, Djaga e Shambala. Os Vei usamnas para contar semanas, seis dias marcados por entalhes pequenos, um sétimo por um entalhe maior. Os Matse as empregam para contar dias, bem como no cálculo de dotes (também os Baja). Os Sundi e os Ngala entalham marcas para indicar o número de elefantes e hipopótamos que caçaram. Entre os Ndasa e os Songe os dias de viagem são 9 marcados por entalhes. Entre os Ngoyi uma talha numérica é empregada como um calendário de festas. Entre os Dembo e os Bong, serviam para registrar o número de inimigos mortos pelo dono da talha. Os Sania, Kikuyu, Embu, Chuka, e Kuku usavam-nas para contar dias de trabalho ou de viagem. Os chefes Djaga nelas registravam o número de seus antecessores. Lagerkrantz anota ainda muitos outros usos para essas talhas. As descobertas recentes retromencionadas demonstram uma tradição de emprego de talhas numéricas na África de uma antiguidade insuspeitada, pois até apouco tempo, o Osso de Lebombo, com seus 41 ka de idade, era considerado o mais antigo artefato da espécie descoberto. Os achados da Border Cave e do abrigo Apolo 11 nos permitem recuar essa idade em c. 20/30.000 anos. Isso significa que os primeiros rudimentos do conceito de número, do emprego de correspondências um-a-um em processos de contagem, podem ter ao menos c.70 mil anos de idade. Contudo, um caveat. Pouco se sabe sobre o que aconteceu na África do Sul entre 40 e 20 ka, se essa tradição de emprego de talhas numéricas teve ou não interrupção de continuidade na África, bem como se realmente ocorreu uma sua possível transmissão para a Europa em torno de 40/50 ka. Essas são questões intrigantes, sobre as quais as ciências devem se debruçar. Conclusões Tendo em vista o exposto, podemos intuir, com razoável grau de certeza, a existência de uma antiga tradição de emprego de talhas numéricas na África, ou seja, de processos de contagem mediante correspondências um-a-um, com uma idade mínima de c.70 ka. Isso nos permite supor que o homem já auferia rudimentos do conceito de número ao menos nessas priscas eras. Também nos autoriza a transferir o título de “o mais antigo artefato matemático” numérico já encontrado para o(s) achado(s) no abrigo rochoso Apolo 11 (Fig. 2 e). Referências Bibliográficas ABSOLON, K. Der Fähigkeiten des Fossilen Menschen zu Zählen im Mährischen Paläolithikum. Ascona: Artibus Asiae Publishers, 1958. 10 ALMEIDA, Manoel de Campos. Origens dos Numerais. In: IV Seminário de História da Matemática – Anais. S.P: SBHMat, 2001. p. 119-130. Talhas Numéricas e o Antigo Testamento. In: Revista Brasileira de História da Matemática. Vol.2 nº4 (Outubro/2002-Março/2003). S.P.:SBHMat, 2002. p. 119-139. Um Mito da História da Matemática Revisitado. In: V Seminário de História da Matemática – Anais. São Paulo: SBHMat-UNESP, 2003. p. 341-351. Uma interpretação de um episódio bíblico (Tb5, 1-3) sob a ótica da História da Matemática. In: Revista Educação em Movimento. Vol. II. nº 5 – Maio-Agosto 2.003. Curitiba, Champagnat, 2002-3. p. 43-52. Sensos Numérico & Geométrico. 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