a comunidade negra do Buieié
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a comunidade negra do Buieié
FAMÍLIA, IDENTIDADE E VÍNCULOS NO MEIO RURAL: A COMUNIDADE NEGRA DO BUIEIÉ, MG1 Neide Maria de Almeida Pinto2 Ana Louise Carvalho Fiúza3 Lucas Magno4 Maria Cristina Cupertino5 Aline Guizardi Delesposte6 Vanessa de Cássia Tavares Andrade7 RESUMO Nessa pesquisa buscamos compreender os processos identitários relacionados à construção da identidade territorial de uma comunidade negra do meio rural de Viçosa, MG. As análises revelaram um contexto híbrido na comunidade, indicando tradicionalismos e processos de mudança social em curso. Os vínculos de parentesco e de amizade na comunidade constituíram-se em fortes elementos explicativos para se compreender as estratégias de reprodução social das famílias e para compreender o forte apego ao lugar. As formas de pertencimento do grupo ao lugar corroboraram para a estruturação de uma identidade territorial, a partir das relações e sentimentos construídos ao longo do tempo. Nesse sentido, o território para a comunidade pode ser tomado como um mito de origem, erguido através da imagem das terras por eles herdadas, as quais lhes permitem se reconhecer como parte de um todo, de uma “grande família”. PALAVRAS-CHAVE: Identidade. Território. Cultura 1 INTRODUÇÃO Essa pesquisa procurou compreender o contexto em que se fundamentam a consolidação e manutenção de identidades em uma dada localidade, cuja população, acreditamos, tem como marco de seu processo de constituição identitário, a valorização das origens, mediante as quais constrói sua história. Para o desenvolvimento do trabalho, tomamos como objeto de estudo a comunidade rural do Buieié, localizada nas imediações da cidade de Viçosa, MG. Há quase cem anos atrás, as terras pertencentes ao Buieié foram partes 1 Este trabalho faz parte dos resultados de umaa pesquisa financiada pela FAPEMIG e pelo CNPq: “TERRITÓRIO E CULTURA: a construção de identidades negras em uma comunidade rural da Zona da Mata Mineira”. Os autores agradecem a essas duas instituições de fomento à pesquisa – à FAPEMIG e ao CNPq – pelo apoio financeiro que viabilizaram o desenvolvimento da pesquisa e a participação nesse evento. 2 Professora do Departamento de Economia Doméstica da Universidade Federal de Viçosa, MG. Doutora em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, PUC/SP. [email protected] 3 Professora do Departamento de Economia Rural da Universidade Federal de Viçosa, MG. P.H.D. em Desenvolvimento Agricultura e Sociedade pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, UFRRJ/RJ [email protected] 4 Mestrando do curso de Extensão Rural na Universidade Federal de Viçosa, MG. [email protected] 5 Graduanda do curso de Economia Doméstica na Universidade Federal de Viçosa, MG [email protected] 6 Graduada do curso de Geografia na Universidade Federal de Viçosa, MG [email protected] 7 Graduada do curso de Geografia na Universidade Federal de Viçosa, MG [email protected] integrantes de uma antiga fazenda de engenho de açúcar. Com o declínio do escravismo, a antiga proprietária repassara duas grandes áreas de terras a seus escravos forros que àquela época haviam constituído um pequeno aglomerado de casas nos arredores da propriedade. Com a aquisição de terras foi que se instaurou um processo que poderia ser denominado de reterritorialização, visto que o mesmo diz respeito à possibilidade de reconstituição de uma cultura tradicional em terras já antes habitada por aquela população. A partir daí, aquele espaço passou a ser objeto de um novo processo de construção das relações sociais, das relações de trabalho e das relações com a natureza. Esse contexto foi objeto de estudo dessa pesquisa que buscou analisar as características sociais e culturais dessa comunidade rural, especificamente, a partir da análise da reprodução social e material do grupo, dos seus processos de construção de identidade e do fundamento das territorialidades e/ou formas de pertencimento ao território. 2 REVISÃO DE LITERATURA 2.1. Território, Identidade e Modernidade O pilar de sustentação desse trabalho se deu a partir da articulação das categorias território, identidade e modernidade. Buscamos nessas três categorias, a construção da discussão que está em pauta e que são constitutivos dos processos que envolvem os sujeitos e suas relações nos espaços onde vivem. Categorias que são apresentadas de forma distinta, mas que são, entre elas, interdependentes. O território abrange o contexto físico-social; identidade relacionada com as formações sócio-culturais e a modernidade buscando analisar as mudanças externas e internas ligadas à localidade. Para construir o referencial teórico referente a essas categorias nos pautaremos, inicialmente, em alguns autores clássicos dentro do estudo dessas temáticas, a saber, Castells (2003), Haesbaert (2002; 2003), Giddens (2003), dentre outros. As noções de identidade e território de pertencimento procuram tematizar um mundo cultural e rural nas sociedades contemporâneas demonstrando um processo de desconstrução e construção (desterritorialização e reterritorialização), erguida pela antiga dialética das sociedades tradicionais e modernas, que também estão associadas aos processos de globalização. Sem esse instrumento de análise não poderíamos compreender a relação da especificidade do rural e cultural na produção material da vida e na vivencia social com suas subjetividades. 2 Esta é a principal diferença entre as sociedades tradicionais e as modernas, segundo a perspectiva de Anthony Giddens (2003). Esse autor argumenta que: (...) nas sociedades tradicionais, o passado é venerado e os símbolos são valorizados porque contém e perpetuam a experiência de gerações. A tradição é um meio de lidar com o tempo e o espaço, inserindo qualquer atividade ou experiência particular na comunidade do passado, presente e futuro, os quais, por sua vez, são estruturados por práticas sociais recorrente (GUIDENS, 2003 p.37). Stuart Hall (2004) argumenta que pessoas que moram em aldeias pequenas, aparentemente remotas, em países pobres de “Terceiro Mundo”, podem receber, na privacidade de suas casas, as mensagens e imagens das culturas ricas, consumistas do ocidente, fornecidas através de aparelhos de TV ou rádios portáteis, que as prendem à “aldeia global” das novas redes de comunicação. A presente pesquisa deverá tentar compreender se os elementos relacionados à modernidade presentes na comunidade em questão como energia elétrica, TV, rádio que as integram ao mundo globalizado, fazem emergir valores próprios da modernidade como o consumismo, o individualismo, dentre outros ou. A pesquisa deverá confirmar (ou não) o pressuposto que as primeiras observações participantes sobre os modos de vida da comunidade e o seu cotidiano nos levaram a ter: o de que está presente na praxis dos moradores da localidade uma lógica diferente, que está pautada no que é mais simbólico e não no que é mais econômico. Acreditamos que no bairro em questão a vida social parece não ser mediada pelo mercado global de estilos, lugares e imagens. As sociedades periféricas, seguindo os pressupostos de Hall, têm estado sempre abertas às influências culturais ocidentais e, agora, mais do que nunca. A idéia de que esses são lugares “fechados” - etnicamente puros, culturalmente tradicionais e intocados até ontem pelas rupturas da modernidade-é uma fantasia ocidental sobre a alteridade, e uma fantasia colonial sobre a periferia, mantida pelo ocidente, que tende a gostar de seus lugares exóticos apenas como “intocados”. Entretanto, as evidencias sugerem que a globalização está tendo efeitos em toda parte, incluindo o Ocidente, e a “periferia” também está vivendo seu efeito pluralizador, embora num ritmo mais lento e desigual. (CANCLINI, 1998, p.80). Ao lado da tendência em direção à homogeneização global, ainda segundo Hall (2004), há também uma fascinação pela diferença com a mercantilização da etnia e da alteridade. Há juntamente com o impacto do global, um novo interesse pelo “local” – em que se explora a diferenciação local. O que há, é uma nova articulação do global com o local. Assim, parece improvável que a globalização vá simplesmente destruir as identidades nacionais. É provável que ela vá produzir, simultaneamente, novas identificações “globais” e 3 novas identificações “locais”. Não há uma homogeneização global das identidades, como muitos pensavam que iria existir. A globalização é muito desigualmente distribuída ao redor do globo, entre regiões e entre diferentes estratos da população dentro das regiões. Nesse sentido, o consumismo global, os fluxos culturais criam possibilidades de “identidades partilhadas” como “consumidores” para os mesmos bens, clientes para os mesmos serviços, públicos para as mesmas mensagens e imagens – entre pessoas que estão bastantes distantes umas das outras no espaço e no tempo. 3 METODOLOGIA O universo da nossa pesquisa abrangeu a população residente na comunidade do Buieié, bairro rural do município de Viçosa, MG composto por um conjunto de sessenta famílias. A comunidade se divide, espacialmente, em dois núcleos: a parte mais alta, o Joãozinho, e a parte mais baixa. Na composição da amostra, tomamos trinta e sete famílias residentes nas partes baixa e alta da comunidade, o equivalente a 60% das famílias da localidade. A partir daí, foram compostos dois grupos representativos dos moradores do Buieié: “os nascidos e criados” na comunidade e “os de fora”. Essa subdivisão se justificou com base no pressuposto de que haveria uma diferenciação dos processos relacionados à construção identitária dos dois grupos. Nesse sentido, buscamos analisar os possíveis fatores intervenientes nos processos de formação e de reconfiguração de suas identidades. Foram utilizados como métodos de pesquisa, visitas e observação não-participante junto às famílias, anotações de campo com base na descrição de seus hábitos, rotinas, atitudes, visando o entendimento da lógica de comportamento dos sujeitos. 4 RESULTADOS 4.1 O Buieié: o passado e o presente A comunidade do Buieié está localizada na região da Zona da Mata Mineira, microrregião de Viçosa (Zona rural), no estado de Minas Gerais. As terras pertencentes à comunidade foram, há quase cem anos atrás, faziam parte de uma antiga fazenda de engenho de açúcar, de propriedade de uma rica senhora de nome Nhanhá do Paraíso. Os depoimentos dos moradores associaram a comunidade a uma população de ex-escravos que se constituiu, a partir da sua libertação, momento em que se deu a aquisição por compra ou doação das terras, 4 formando-se um pequeno aglomerado de casas nos arredores da antiga propriedade de engenho de açúcar. A partir daí, as terras foram sendo repassadas de pais para filhos, depois para os netos e, de geração em geração, a comunidade foi permanecendo ao longo dos anos. Neste processo de fixação dos ex-escravos, doravante homens e mulheres livres, se instaurou um processo denominado territorialização, que pode ser entendido como a reconstituição de uma cultura tradicional em terras já antes habitada em outras condições. No Buieié pode-se dizer que houve uma desterritorialização parcial das pessoas moradoras da antiga fazenda e, logo após, uma re-territorialização também parcial, mas com uma configuração distinta, já que a partir desse último processo, as pessoas tornaram-se proprietárias dos seus espaços de vivências. No que diz respeito às atuais conformações sócio-espaciais da comunidade subsistem hoje no Buieié dois núcleos: uma parte alta, o Joãozinho, que está localizada no relevo mais alto das terras e uma parte mais rebaixada, o Buieié de Baixo. Nos arredores das casas, no terreiro das habitações constatou-se um mesmo arranjo físico-funcional: a casa, o quintal, o paiol, o terreiro para a horta e uma pequena área para cultivo de gêneros básicos ao consumo da família, basicamente: milho, feijão e mandioca. Atualmente a comunidade computa cerca de sessenta casas. Mais do que uma redução significativa do número de casas, o que houve foi uma diminuição do número de habitantes por casa. Este dado nos sugere um indício da importância na manutenção do vínculo com o lugar, com a perspectiva dos que saíram de volta. Outro dado que reforça este indício de vínculo com o lugar é a melhoria das casas. No passado, elas já foram construídas através do sistema de mutirão, utilizando como técnica construtiva, o pau-a-pique (Pereira, 2000). Com o passar do tempo essa prática construtiva foi sendo abandonada e substituída pela alvenaria. Assim, só restaram duas casas no Joãozinho que ainda mantiveram o pau-a-pique. Na parte mais baixa da comunidade, o “Buieié de baixo” há uma maior aglomeração populacional (aproximadamente 45 casas) e a paisagem é, marcadamente, bem diferente quando comparada ao “Buieié de Cima”. No “Buieié de Baixo” há uma melhor infraestrutura em relação às edificações. Todas as casas são em alvenaria e o estilo revela a influência das moradias urbanas, com modelos mais diversificados. Nessa parte da comunidade os lotes são menores, fato justificado na evidência de que grande parte das famílias divide a sua porção de terra com outros parentes. Além disso, as moradias são mais próximas umas das outras, obedecendo a um alinhamento que acompanha o traçado das ruas. Apesar de muito incipiente e rústico, alguns serviços estão presentes nessa parte do bairro: um pequeno comércio, e um bar onde os moradores, principalmente os mais jovens, se reúnem 5 para conversas e diversão. Existe, também, um telefone público, uma igreja católica, uma evangélica e o campo de futebol. Já na parte alta do bairro, no Joãozinho, se concentra um número de, aproximadamente, quinze casas. No Joãozinho, as casas ocupam uma área maior de terras que no Buieié de Baixo, demonstrando que nesta parte da localidade as casas não são apenas local de morada, mas também de produção de alimentos, sendo utilizada para o cultivo de produtos de subsistência da família. 4.2 A reprodução social das famílias A maioria das famílias do Buieié não ultrapassou a margem dos dois salários mínimos nos seus rendimentos. Um percentual significativo (48,64%) dependia de programas de transferência de renda do governo federal, como o programa Bolsa-Família ou de cestas básicas vindas da igreja católica ou evangélica ou de entidades assistenciais de caridade. Para um número expressivo delas, essas transferências representavam a única fonte de ajuda para a sua manutenção. Em relação aos níveis de escolaridade dos entrevistados, os maiores percentuais estiveram nos níveis dos “Sem instrução Formal” (50%) e “Ensino Fundamental Incompleto” (40%). A maioria trabalha no setor informal da economia, como assalariado agrícola ou na prestação de serviços. Apesar do expressivo percentual de trabalhadores assalariados agrícolas (46%), o vínculo empregatício com a agricultura a partir do assalariamento não os levou a se identificarem como agricultores, com indícios de relação com o fato de exercerem suas atividades em terras “dos outros”. Nesse contexto de precariedade havia a necessidade premente de desenvolvimento de atividades complementares ao orçamento familiar. Para fazer frente às suas necessidades muitas famílias tinham um trabalho secundário ou um ‘bico’. O desemprego era grande na comunidade. Excetuando o período da colheita do café, era muito comum na comunidade, durante os dias de semana, encontrar muitos jovens e adultos em idade produtiva, vagando pelas ruas ou no Bar do Zé de Nega, sem trabalho. As atividades de lazer mais citadas, sobretudo pelos moradores mais jovens do Buieié, foram, em ordem decrescente: a participação no projeto social “Tambores do Buieié 8”, o jogo de bola na pracinha da igreja, a participação na igreja e a freqüência ao bar de “Zé de Nega” onde acontecem os forrós, as visitas a amigos e parentes, a participação nas festas na cidade de Viçosa e o nado no rio em épocas de calor. Esse contexto nos permite afirmar que a 8 Trata-se de um projeto social desenvolvido pela organização não governamental Núcleo de Arte e Cultura da Violeira (NAVI) que desenvolve atividades artísticas na comunidade com o objetivo de resgate da cultura negra. 6 comunidade cria nela própria, as possibilidades de satisfazer suas necessidades de lazer, sendo as mesmas compatíveis com a sua condição econômica. A prática do Congado foi outra referência na fala dos moradores, especialmente entre os mais antigos, em relação à religiosidade do grupo, muito embora atualmente ela já não ocorra mais no Buieié. Tal fato traz indícios de um desencontro inter-geracional entre os mais jovens e os mais velhos e de enfraquecimento da identidade territorial entre os mais jovens já que os mais velhos participam dessa festa em outro bairro e querem retomar essa tradição no Buieié. 4.3. Os vínculos de parentesco e a formação das redes Dentre todas as famílias entrevistadas apenas duas não tinham nenhum parente residindo na comunidade. Nas falas dos entrevistados ficou evidente a importância do vínculo de parentesco e de amizades na formação de uma rede de através da qual as pessoas encontravam ajuda e sentido para permanecer no bairro. Como no caso do uso-fruto coletivo de uma mesma fração de terra que costumava agregar de duas até seis casas, ocupadas por pessoas de uma mesma família: irmãos, filhos, cunhados, pais dentre outros. Conforme atestaram os estudos de Sarti (1996), entre os pobres, a possibilidade de reprodução social está fortemente relacionada à formação das redes sociais. São nas redes familiares, de amizade e de vizinhança, que as pessoas do Buieié encontravam ajuda e, grande parte das vezes, possibilidades de manutenção do grupo familiar. Assim, o fato de estar próximo dos parentes trazia grande tranqüilidade aos moradores, pois, como relataram não precisavam pagar aluguel e se sentiam seguras no “seu cantinho” junto com a família e os amigos. Ter a família por perto, significava a possibilidade de recorrer aos parentes em situação de necessidade. Eram comuns situações em que a mulher deixava seus filhos ao encargo da mãe, sogra ou outros parentes. Pudemos observar que estes laços afetivos eram constitutivos das formas de reprodução e manutenção das famílias. O modo coletivo de utilização das terras nos lotes das famílias evidenciou, assim, formas de solidariedade entre os parentes. Era comum encontrar espaços nas propriedades usados em comum pelas famílias moradoras como a roça, o lugar das criações, os pomares de frutas, o lago, enquanto os espaços da casa eram utilizados por cada núcleo familiar, principalmente no Joãozinho. Talvez por isso, a referência constante dos moradores à comunidade como uma “família bem grande”, onde até mesmo a terra que dentro da sociedade capitalista tem valor de troca, para eles tem, sobretudo, valor de uso. 7 Ou seja, num quadro de quase ausência do Estado na comunidade, evidenciado pela ausência e/ou precariedade dos serviços e de infra-estrutura, a reciprocidade supre necessidades de creches, abrigos, asilos, assistência médica etc. No entanto, mesmo importante para a reprodução material e social do grupo, a pobreza e os parcos recursos impõem limites às redes sociais. Ao mesmo tempo em que os moradores ressaltam as qualidades de uma “vizinhança muito boa”, eles ressaltam as dificuldades que enfrentam diariamente na luta pela sobrevivência. Nessas ocasiões, a referência à vizinhança se coloca como sendo “cada um por si e Deus por todos”; “hoje não existe mais ajuda mútua como já tivera no passado”. Atualmente, “toda ajuda é paga em dinheiro mesmo”. Nesse contexto, a reciprocidade existe para aqueles que ainda têm como retribuir. Para esses, ainda existe ajuda entre os vizinhos desde que impere o princípio da dádiva: dar, receber e retribuir. Se essa lógica não se coloca, aí valerá a lógica mercantil, do pagamento em troca de uma ação. Neste cenário, a convivência é demarcada pela ambigüidade que ora se define pela partilha, pela comunhão, e em outros momentos, pelos conflitos, grande parte das vezes, relacionados à proximidade das famílias nos espaços e à divisão da intimidade e da privacidade. 4.4 O vínculo com a terra e com o lugar Entre os “nascidos e criados na comunidade” as terras foram repassadas de geração em geração até chegarem às mãos dos atuais proprietários, pela via hereditária. Especialmente entre os nascidos na comunidade, o desejo de dela não sair esteve relacionado à valorização e identificação daquelas terras como uma forma de continuidade da própria família, através da herança. Sobretudo, entre os mais velhos, a terra conta a história de suas vidas, que é também a história de seus antepassados. Quando falavam desse passado, a memória os remetia às raízes histórias de um período de luta e de sofrimento relacionado aos seus antepassados. Nesse sentido, a terra era vista como um lugar a ser preservado, mais do que unicamente um meio de produção. Trata-se, pois, não de qualquer terra, mas a terra na qual mantiveram uma relativa autonomia cultural, social e histórica. Conforme afirma Bombardi (2004), a identidade de grupos rurais se constrói sempre numa correlação profunda com o seu território e é precisamente esta relação que cria e informa o seu direito a terra. O casamento com as pessoas do Buieié estabelece os vínculos de parentesco, possibilitando a entrada e a inserção do novo membro à comunidade, tornando-o um “de dentro”. O tempo de inserção na comunidade foi considerado um fator interveniente na aceitação do novo morador ao grupo. Assim, à época de sua chegada, grande parte dos 8 moradores de fora teve sua vida mapeada pelos nativos, especialmente em relação a dados sobre sua terra natal, lugar de procedência ou com quem vieram. À medida que o “de fora” passa a ser considerado como alguém que tem as mesmas condições sociais do grupo (estilo de vida e status social e econômico), e, nesse contexto, “um igual”, torna-se possível sua aceitação pelo grupo. A valorização do lugar se deu, para 78% dos respondentes, com base na justificativa de que a roça representava um lugar de tranqüilidade, sem violência, sem a confusão relacionada à vida da cidade. Muitos deles, idosos na sua maioria, iam à cidade apenas nos dias de receberem seus benefícios sociais (aposentadoria e/ou programas sociais), ocasião que aproveitavam para fazer as compras dos produtos que faltavam em casa. Entre os jovens, foi significativo o número daqueles que queriam permanecer na comunidade, mas mantendo vínculos, especialmente os trabalhistas, na cidade. A maior parte gosta da vida tranqüila na comunidade e se sentem vinculados a ela pelos laços de amizades e de parentesco que têm na comunidade e, por causa desses vínculos gostariam de continuar morando aí. Gostariam de contar com o melhor dos dois mundos, como afirma Carneiro (1998), ou seja, poder manter uma casa no Buieié e um trabalho na cidade, lugar das oportunidades. 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS Os resultados da pesquisa demonstram duas tendências principais no Buieié: a persistência no território e as alterações nas esferas sociais e culturais. A idéia de permanência embora tenha se constituído no passado da comunidade, ainda perdura no presente. Essas comunidades não podem ser percebidas como grupos intocados, incólumes às influências da dinâmica da sociedade e da modernidade. Antes, revelam certo dinamismo, sofrendo, assim, pressões do meio social circundante. Podemos dizer que no Buieié não ocorre a substituição completa dos padrões anteriores, mas uma redefinição dos seus sentidos na atualidade, um ajuste dos velhos padrões a um novo contexto. Nesse contexto, a comunidade se apresenta muito mais como estando num estágio inicial de um processo lento de mudança social e essas se colocariam especialmente em relação ao grupo dos moradores mais jovens da comunidade. A comunidade apresenta elementos que a associam a uma comunidade tradicional e a processos de mudança social em curso, expresso em uma inclusão precarizada, nos termos de Martins (1997), em virtude do fato de um grupo social poder estar submetido a determinadas 9 formas de privação material e simbólica e, ainda assim, ter outras formas de inclusão na sociedade, inclusive aquelas derivadas do mundo do trabalho flexível. Apesar de a etnia ser um fator interveniente na sociabilidade dos moradores, uma vez que os negros eram mais bem vistos e aceitos, este não foi um fator interveniente na construção da identidade do grupo. O traço étnico não esteve relacionado à construção de uma identidade negra no sentido político, construída a partir da consciência do seu passado histórico como herdeiro dos escravos africanos, de sua situação como membro de um grupo estigmatizado, racializado e excluído das posições de comando na sociedade, como membros de um grupo étnico-racial que teve sua humanidade negada e a cultura inferiorizada. Essa identidade que se constrói a partir da cor, ou seja, pela recuperação de sua negritude, física e cultural, não marcou os processos identitários deste grupo mineiro. No Buieié não se percebeu a tomada dessa consciência política. Ao contrário, ainda perpassa uma imagem inferiorizada e estigmatizada que impede a tomada de consciência do “direito a ter direito”. Apesar da prevalência negra, o grupo não se caracteriza como um grupo étnico que, confrontado por uma situação histórica peculiar, faz realçar seus traços culturais no contexto atual. Os dados empíricos indicaram que a identidade na comunidade foi construída a partir da permanência no território ao longo das décadas, com base na história e nas redes familiares, mas não na história da negritude daquelas pessoas. Uma história que se firmou como estratégia de sobrevivência do grupo numa localidade negligenciada pelas instituições. Por fim, é possível compreender como as diferentes visões de mundo e de conduta de um determinado conjunto de pessoas podem constituir uma identidade ancorada numa base concreta: o território. A relação de pertencimento de um grupo e o espaço apropriado corroborou visto como um valor foi construída a partir das relações e sentimentos construídos ao longo do tempo. Finalmente, pode-se afirmar em relação à comunidade do Buieié que o território pode ser tomado como um mito de origem, erguido através da imagem das terras herdadas por eles, as quais lhes permitiram se reconhecer como parte de um todo, de uma grande família. REFERÊNCIAS CANCLINI, N. G. Culturas Híbridas: estratégias para entrar e sair da modernidade. (Ensaios Latino-americano). São Paulo: Edusp,1998. 10 CASTELLS, M. A sociedade em rede. V. 1: A era da informação: economia, sociedade e cultura. São Paulo : Paz e Terra, 2003. GIDDENS, A. As Conseqüências da Modernidade. Oeiras, Celta Editora,2003. HALL, S. A Identidade Pós-modernidade. Tradução: Tomaz Tadeu da Silva e Garaciara Lopez Louro.9º ed.Rio de Janeiro: DP&A,2004. MARTINS, J. S. Exclusão Social e a nova desigualdade. São Paulo: Paulus, 1997. PEREIRA, G. P. P. B. Homens, Mulheres e Masculinidade no Buieié. 2000. 284 f. Dissertação (Mestrado em Extensão Rural) – Universidade Federal de Viçosa, Viçosa. SARTI, C. A. A Família como Espelho: Um Estudo sobre a Moral dos Pobres. Campinas: Editora Autores Associados. 1996. 11