do PDF

Transcrição

do PDF
Publicação do Curso de
Comunicação Social da UNISC
Santa Cruz do Sul
ano
5 – nº 5
1
sumário
<
14
4
5
16
17
24
28
36
40
48
52
9
18
20
30
5
UMA REPORTAGEM NA ENCHENTE
10
O dia em que uma enchente rendeu uma pauta e quase levou uma vida
SABÃO EM PÓ E CERVEJA A R$ 1,00
VIDAS REGIDAS PELO BPM 2
AS IRMÃS FISS E A ARTE DA FOTOGRAFIA
14
>
DOIS COMPANHEIROS E UM AMOR EM COMUM
“SÓ TEM O DIREITO DE FALAR DE MIM QUEM ME CONHECE” 28
Depoimentos dos repórteres
sobre as suas matérias
e muito mais em
HISTÓRIA DE SUPERAÇÃO36
O TRISTE FIM DE UM AVESTRUZ 40
O que a morte reserva para os avestruzes
18
OSVALDO DECIDE SER DIFERENTE
44
Uma mudança movida pela crença na liberdade
20
Irmãs fotógrafas que registraram a história – e que agora fazem parte dela
Amizades duradouras e sinceras conquistadas em cima de duas rodas
44
http://hipermidia.unisc.br/excecao
Uma pessoa que trouxe consigo a cultura de seu país
Eles não vão ao banco na quinta-feira
A promessa de uma vida diferente como
combatente na Legião Estrangeira
>
O cotidiano de um terapeuta holístico
Um jogo de Loto inusitado cujo prêmio não é dinheiro
UM CONTERRÂNEO
NA LEGIÃO
ENTREVISTA 54
>
54
A chegada da primeira geladeira de Santa Cruz do Sul
Histórias e lembranças de uma vida nos rios
23
34
43
A GELADEIRA QUE FEZ A HISTÓRIA DE UMA RUA
ÁGUAS PASSADAS 30
10
UMA CADEIA DIFERENTE48
Recomeço marca a vida dos presos em Cachoeira do Sul
24
A VIDA DE QUEM TROCA O DIA PELA NOITE
52
VEJA TAMBÉM
4
editorial
9
ensaio
16 resenha
17 osvaldo
23 crônica
34 humor
43 crônica
58 expediente
Como é o “dia a dia” dos santa-cruzenses que trabalham à noite
3
editorial
memória
A GELADEIRA
QUE FEZ A HISTÓRIA
DE UMA RUA
s luana backes
A Rua Gaspar Silveira Martins, no Centro de Santa
Cruz do Sul, já foi chamada de Rua da Gelada,
por ter recebido a primeira geladeira da região.
Poucos conhecem a história que inspirou uma
marca de referência na cidade
reportagem s
Pedro Garcia
Dois motivos levavam o jovem agricultor
Pedro Kirst a se deslocar a cavalo todas as semanas de Linha Áustria, localidade onde vivia, até a zona urbana de Santa Cruz do Sul,
naquela terceira década do século passado. Um
deles era ensaiar junto ao Coro Santa Cecília.
O outro, provavelmente o principal, era encontrar Olinda, namorada e logo depois, esposa.
Em 1928, ano em que o casal abriu as portas do empreendimento que os sustentaria
por toda a vida, Santa Cruz do Sul ainda não
tinha um cartão postal. A imponente Catedral São João Batista, por meio da qual a cidade firmou-se simbolicamente como uma das
mais importantes do Sul do Brasil, só começaria a ser erguida no ano seguinte. À época,
era tão pequena que até seu nome era menor.
Chamava-se simplesmente Santa Cruz e comemorava pouco mais de duas décadas desde
que fora efetivamente elevada à categoria de
“cidade”, livrando-se da incômoda posição de
“vila” anexa à hoje vizinha Rio Pardo. A zona
urbana era quase um quintal, ocupado por
seis mil pessoas, todas conhecidas de todas. A
esmagadora maioria da população, constituída principalmente por ruralistas, vivia nas
localidades periféricas.
Depois de deixar o interior e a vida no campo, Pedro e Olinda escolheram, para iniciar
o novo negócio, a casa de número 1332, na
rua Gaspar Silveira Martins, que atravessa a
região central da cidade de ponta a ponta e
atualmente é uma das mais movimentadas.
Sem calçamento, a rua era então ocupada
por cavalos e carroças, além dos grupos de
4
fotografia s
Luana Backes
crianças que ali brincavam despreocupadas
em meio à poeira. Aparentemente pequena,
mas bastante espaçosa, a casa serviu também
como residência do casal e dos três filhos que
nasceriam na sequência, Elyta, Gladys e Telmo. A família vivia nos fundos e o empório
foi montado na parte da frente.
Embora nunca tenha recebido um letreiro que o identificasse como tal, o local foi
batizado Secos e Molhados, bem como são
conhecidos os estabelecimentos comerciais
que oferecem uma grande variedade de itens
– também chamados de bazares ou armazéns. A vizinhança que passou a frequentar
o lugar encontrava o que ao mesmo tempo
era mercado e bodega. Ao fundo, ficavam as
prateleiras com vidros de schimmier e outros
produtos. Em um canto, estavam os armários
com embutidos. No chão, ficavam as sacas
com arroz, feijão, café e ervas. Na parte de
baixo e atrás do balcão de mármore, as bebidas. Em cima dele, uma balança e um pote de
balas com tampa redonda.
Ao centro, uma mesa grande ao redor da
qual os homens da redondeza sentavam,
principalmente antes do meio-dia e à tardinha, para conversar, jogar carpeta e beber
uísque, conhaque, cachaça e cerveja. Nos finais de semana, a movimentação se estendia
até a madrugada. “Quando chegavam para
beber, meu pai pedia que as crianças se recolhessem”, lembra Gladys, a filha do meio, que,
junto da irmã mais velha e do caçula, que
nasceria alguns anos depois, passava os dias
circulando pelo local e ajudando os pais.
5
s acervo pessoal
s acervo pessoal
Acima: Pedro Kirst, o empreendedor
da Gaspar Silveira Martins
Esquerda: Nestor Schütz, que transformou Gelada em Gellada
Direita: À frente do antigo empório, a
família Kirst – o casal Telmo e Olinda
e as filhas Elyta (janela) e Gladys
Direita (topo): A casa, hoje,
transformada em comitê eleitoral
Foi por volta de 1940 que Pedro e Olinda
fizeram um investimento que não apenas expandiria o negócio como tornaria folclórica
aquela rua por vários anos. Compraram da
loja Becker Irmãos, alocada em espaço onde
atualmente funciona um grande supermercado na Tenente Coronel Brito, uma moderníssima geladeira comercial a querosene da
extinta marca Steigleder (do tipo que hoje só
se encontra em leilões e mercados de pulgas).
Logo, a geladeira se tornou atração naquela
6
parte do bairro onde aparelhos como aquele
ainda não existiam – em toda a cidade, eram
poucas as casas e lojas que já contavam com
uma. No dia em que a geringonça foi entregue, as crianças da rua mal conseguiam esconder a euforia.
Toda branca, com quase dois metros de
altura, puxadores niquelados e oito portas,
quatro em cima e quatro em baixo, a geladeira
tornou o Secos e Molhados ainda mais popular. Os pequenos arranjaram mais um motivo
para rondar a loja o tempo inteiro: queriam picolés. Pedro, que era conhecido pela boa vontade com que tratava os clientes (acostumado,
inclusive, a vender fiado para todos), não se
incomodava de emprestar espaço para que os
vizinhos pudessem deixar nela suas coisas a
gelar. A não ser quando enchia a tal ponto que
faltava espaço para os utensílios da própria
casa. “Daí ele reclamava, mas mesmo assim,
não sabia dizer não”, conta Gladys. “Era uma
pessoa muito bondosa.”
Porém, o grande diferencial que o investimento concedeu ao local foi a possibilidade
de servir aos clientes, bebidas de fato geladas. Até então, o mais perto que se conseguia
chegar era colocando as garrafas no gelo em
tachos improvisados com tijolos, deixando-as no chão dos porões das casas, ou dentro de
baldes suspensos no fundo de poços d’água,
sem muito sucesso. “É claro que não gelava,
só saía sem o rótulo”, ri Gladys. Com a geladeira, a bodega e a rua viraram referência
para toda a região, inclusive para as crianças
que faziam de tudo por uma Gasosa Limão
ou outros refrescos da época.
anos a rotina dos jogadores. “Quando acabavam os treinos, eles diziam ‘vamos tomar
uma gelada’ e corriam para lá”, conta.
O título não-oficial de Rua da Gelada perduraria por algumas décadas, bem como a
fama do local. Arlindo Agnes mudou-se para
a Gaspar em 1967, quando foi contratado
como auxiliar de serviços gerais no estádio
do Futebol Clube Santa Cruz, distante apenas
alguns metros da casa. Instalado ali mesmo
com a esposa Iracema, acompanhou por 30
De trás do balcão do Secos e Molhados,
Pedro e Olinda assistiram ao crescimento
de Santa Cruz do Sul. Em fins dos anos 70, a
população da cidade já chegava aos 50 mil, e
pela primeira vez era maior do que a da zona
rural. As ruas já tinham calçamento e o número de estabelecimentos semelhantes – e,
consequentemente, de geladeiras – era bem
7
ensaio
De 60 a 90: terror e suspense
do jeito que a gente gosta
texto s
maior. Por isso que em 1976, Pedro decidiu
largar o negócio e se aposentar.
O empório foi vendido e seguiu funcionando como tal até 2004, exatos vinte anos
depois de Pedro ter falecido, vítima de um
derrame. A casa, então, retornou à família e
segue hoje alugada pelo filho mais novo, Telmo, que já foi deputado e atualmente dirige
uma grande empresa controlada pelo governo gaúcho. Repaginada, com nova pintura,
passa a maior parte do tempo com as portas
fechadas, quando não é utilizada como comitê de campanhas eleitorais. Da geladeira,
nenhum deles tem notícias. “Ainda esses dias
perguntei para a minha irmã ‘onde andará a
geladeira?’”, diz Gladys.
gelada, gellada, geladinha
A maior parte das milhares de pessoas que
transitam diariamente pela Gaspar Silveira
Martins não imagina que a rua já foi conhecida em toda a cidade como Rua da Gelada – e
muito menos o por quê. Uma pista, no entanto, está escondida no letreiro de um frequentadíssimo supermercado que funciona quase
em frente à antiga casa dos Kirst. O Super
Gellada não se chama assim por acaso.
Em 1994, quando Nestor Schütz abandonou o ofício de cabeleireiro, após 25 anos, e
mudou-se de Linha Nova para Santa Cruz
com a esposa e o filho, decidido a empreender,
descobriu a velha alcunha da rua onde se instalou e sua história. Imediatamente, decidiu
que o seu negócio levaria aquele nome – o “l”
foi duplicado por orientação de um numerologista. A marca tornou-se tão conhecida que
nem adiantou batizar de Schütz o restaurante anexo que a família abriu há cinco anos:
os clientes insistem em chamá-lo de Gellada.
“Meu filho não gostou quando decidi colocar
o nome do mercado assim”, conta Nestor. “Ele
achava feio e a história boba, mas hoje todo
mundo chama ele de Gelada e a mulher dele
de Geladinha.”
8
quando surgiram as coisas
em santa cruz do sul
1853
1854
Primeira
escola
particular
1868
Primeira
escola
pública
1875
Primeira
cancha
de bolão
Primeira
cervejaria
1896
1905
Primeira
linha
telefônica
Primeiro
hotel
1905
1911
Primeiro
trem
Primeiro
automóvel
fonte s Recortes do Passado de Santa Cruz,
Letícia Pereira
Ninguém resiste a cenas de suspense.
Gritos, perseguições, sangue. Ruídos ou
silêncio absoluto. Tensão. Medo. A história do terror no cinema começou quando
se percebeu o poder de trabalhar as emoções dos espectadores de forma segura. Que outra forma de arte poderia dar
vazão às coisas sinistras que habitavam o
imaginário popular desde séculos atrás?
A TV influenciou diretamente a produção
de filmes de terror. O telespectador, já
acostumado a ver imagens em movimento, aprendeu a gostar de emoções fortes
(merten , 2007). O terror e o suspense
são a montanha russa do cinema, onde o
público grita, mas no fim, sabe que sairá
inteiro. Afinal, é apenas um filme.
Foi a partir da década de 60 que a indústria de filmes do gênero se consolidou.
A cena em que Janet Leigh é esfaqueada
enquanto toma banho, no filme Psicose,
dirigido por Alfred Hitchcock, é uma das
mais famosas de toda a história do cinema. Na década seguinte, a menina de 12
anos possuída pelo demônio, roteiro de O
Exorcista, arrepiou os cabelinhos da nuca
de muitas pessoas em 1973 e até hoje é citado como um grande clássico. ”Quando a
morte de Marion Crane (Psicose) encontra
o terror mais explicito de O Exorcista a (r)
evolução se completa” (merten , 2007). No
ano seguinte, O Massacre da Serra Elétrica atingiu inacreditável sucesso ao chocar
o público com um realismo cruel, baseado
em fatos reais. Foi o primeiro filme de uma
nova tendência que adquiriu centenas de
fãs: a violência explícita. O assassino, o
maníaco Leatherface, que usava uma máscara feita com pele humana, é um modelo
para outras personagens de filmes de terror (ba zin , 1989).
A década de 80 é a era do terror explícito e de efeitos especiais. O psicopata
Jason Voorhees aparece pela primeira vez
no Lago Crystal para amedrontar uma colônia de férias no longa Sexta-Feira 13. A
história faz tanto sucesso que ganha uma
sequência de doze filmes, o último lançado no ano passado, com o mesmo título
do original, totalizando 285 vítimas mortas
pelo maníaco da máscara de hóquei, que
levou em torno de 435 tiros ao longo dos
anos e... sobreviveu.
Em 1982, chega às telas Poltergeist,
explorando recursos cinematográficos,
escrito e produzido por Steven Spielberg,
indicado para os Oscars® de melhores
efeitos visuais, melhor trilha sonora e melhor som. Já em 88, Brinquedo Assassino
reina absoluto. Um serial killer é morto em
um tiroteio com a polícia e antes de morrer
utiliza o vodu para transferir sua alma para
um boneco. Claro que você se lembra do
“adorável” Chucky. O enredo sangrento e
cruel repete o sucesso de Jason e ganha
quatro sequências.
O medo e o
suspense são a
montanha russa
do cinema
Na década de 90 surge o “terror teen”.
A mistura de hormônios adolescentes, violência e sangue, muito sangue, logo vira
febre mundial. Pânico (1996) e Eu Sei o
que Vocês Fizeram no Verão Passado
(1997) foram os primeiros de grandes sucessos. A história dos jovens que recebem
ligações de um maníaco e os quatro adolescentes que atropelam e supostamente matam um desconhecido são roteiros
pobres, mas sucessos de bilheteria, formando um padrão nos filmes do gênero.
Encerrando a década, O Sexto Sentido se
consolida como um dos melhores filmes
de terror de todos os tempos. Lançado em
1999, é um dos exemplos de “suspense inteligente”. No Brasil, foi líder absoluto de
público, tendo liderado o ranking semanal
por mais de 2 meses, assistido por 4 milhões de pessoas, tornando-se o filme que
mais espectadores teve em 1999. Ao longo
destas décadas, a categoria terror/suspense amadureceu, e atualmente é o mais procurado entre os gêneros cinematográficos.
Referências
MERTEN, Luiz Carlos. Cinema: entra a realidade e o artifício. 2ª ed. Porto Alegre: Artes e
Ofícios, 2007.
BAZIN, Andre. O cinema da crueldade: de
Buñuel a Hitchcock. 1ª ed. Nova York: Martins Fontes, 1982.
de Hardy Elmiro Martin
9
testemunho
Uma reportagem
na enchente
Em busca da notícia, três repórteres de uma
rádio comunitária vivenciaram momentos de
tensão ao enfrentarem as águas do rio Pardo
durante a cheia que assolou Candelária
reportagem s
Tiago Mairo Garcia
Candelária, 4 de janeiro de 2010. Após o
feriadão de Ano Novo com sol e alegria, o
primeiro dia útil do ano amanheceu com
uma chuva fraca, que, na ótica de todos, seria
mais uma simples chuva de verão. Naquele
dia, acordei por volta das 10h da manhã, era
o meu primeiro dia de férias. Parecia ser mais
um dia normal, de chuva, bom para ficar descansando e assistindo televisão.
s acervo pessoal
Mas só parecia. Por volta de meio-dia, o
meu celular tocou. Era meu colega de rádio
Paulo César Severo. Ligou dizendo que havia enchente no rio Pardo, e que era para nós
nos deslocarmos até a Prainha para fazer a
cobertura para a Rádio Comunitária Vida
Nova FM, pois a água estava começando a
chegar nas casas. Almocei rápido e, em seguida, Paulo me pegou de carro para irmos até
o balneário Carlos Larger, a popular Prainha
de Candelária. Primeiro passamos na rádio e
apanhamos o nosso outro colega, Lindomar
Mundstock. Como eu também trabalho no
jornal Folha de Candelária, passamos na redação, onde peguei uma máquina fotográfica.
Fomos primeiro até uma madeireira localizada no bairro Esmeralda, zona leste da cidade.
Neste local, pudemos perceber que o rio Pardo estava enchendo rapidamente. Até aquele
momento, eu não acreditava que a enchente
poderia ter uma dimensão maior, mas estava
desconfiado. Após, fomos para a zona norte
da cidade, até a Escola Estadual Gastão Bragatti Lepage. No local, vimos que a água já
havia tomado conta de toda a Prainha, com a
água avançando até próximo da escola. Eram
pessoas desesperadas ao ver a violência das
águas levando tudo. Vimos a gravidade do
fato e passamos a realizar a cobertura para a
rádio comunitária no local, relatando a situação que ali ocorria.
linha do rio
Naquele momento, muitas informações
desencontradas chegavam a nós sobre a situação do interior e, principalmente, sobre
a Linha do Rio, localidade que fica situada
às margens do rio Pardo. Como ninguém saA Ipanema no local da enchente
bia como estava a enchente naquela região,
Paulo, eu e Lindomar decidimos nos deslocar até a localidade para verificar a situação
e informar as pessoas por meio da rádio.
Fomos com a Ipanema, dirigida pelo Paulo
Severo. Ao cruzar pela ponte da RSC-287
sobre o rio Pardo, vimos que o nível do rio
estava subindo. Mesmo assim, decidimos
seguir. Entramos na VRS-408, que dá acesso
à Linha do Rio e, quando estávamos na reta,
situada no km 3, observamos que a água já
cruzava o asfalto a uma distância de aproximadamente 1000 metros de onde estávamos. Paramos o carro, Lindomar saiu para
fora e deu um flash ao vivo para a rádio, por
telefone, situando como estava a enchente
na localidade.
No momento que ele falava, em menos de
30 segundos, como se fosse uma onda de tsunami, a água do rio veio ao nosso encontro.
Ao ver a situação, o Lindomar gritou ao vivo
“olha a água” e começou a correr no asfalto.
Eu e o Paulo ficamos dentro do carro. O Paulo
tentou dar a ré, mas a água veio muito rápido
e nos jogou para dentro de uma lavoura de
soja. Por sorte, e com a mão de Deus, não capotamos, e conseguimos abrir as portas para
sair. Com a água pela cintura, desesperados,
passamos a gritar por socorro.
desespero
O momento mais crítico foi quando o
Paulo me disse que não sabia nadar. Saímos
caminhando pela lavoura com a água subindo, já na altura da barriga, tentando chegar
ao asfalto novamente. Quando eu cheguei
no barranco da rodovia, ao tentar subir para
o asfalto, caí e fiquei somente com a cabeça
para fora da água e sem forças para subir. A
morte parecia iminente, mas Paulo chegou
rápido ao meu lado e me puxou para cima. Parecia que eu havia renascido, mas ainda estávamos no meio do perigo. A água subia cada
vez mais rápido. Eu e Paulo começamos a caminhar e andamos cerca de 500 metros com a
água pelos joelhos no asfalto. Tínhamos que
passar por uma ponte sobre um arroio onde
11
Cansados, saímos correndo em terra firme,
desesperados. Olhávamos para as lavouras e
víamos que estava enchendo cada vez mais.
De repente, avistamos um automóvel Gol
vindo em nossa direção. Começamos a gritar
para eles pararem e voltarem, pois a água estava vindo atrás de nós. Imediatamente o motorista fez o retorno e rapidamente nos deu
uma carona e saiu em disparada. Um pouco
antes do trevo de acesso à Linha do Rio, a
água que cortava as lavouras invadia o asfalto. Por sorte, Márcio, motorista do carro, acelerou e conseguimos sair no momento certo,
pois menos de cinco minutos depois, todo o
asfalto e parte da RSC-287 estava tomada pela
água, tamanha era a enchente.
Chegamos à rádio e parecíamos não acreditar no que havia acontecido. Nossa colega
Aline Schultz estava preocupada e nos contava que tentava contato conosco e não conseguia. Preocupado com o carro, o Paulo queria
a todo custo voltar ao local para salvar o automóvel. Por sorte, os vidros do veículo ficaram
abertos e, devido ao barro, a Ipanema ficou
presa dentro da lavoura de soja. Após a água
diminuir, no dia seguinte a enchente, várias
emissoras de televisão foram até a localidade
e realizaram imagens do veículo, que ficou
conhecido em nível nacional.
“é muito maior do que
a gente imaginava”
O locutor e repórter da Rádio Vida Nova
FM Lindomar Mundstock lembra com detalhes a grande enchente que surpreendeu
Candelária e quase vitimou a equipe de re-
12
Durante a cobertura, ao caminhar em
meio à água que já devastava as casas localizadas na Rua da Praia, o locutor se surpreendeu com a dimensão da enchente. “Eu
comentei com o Paulo e disse que era muito
maior do que a gente imaginava. Eram pessoas sendo resgatadas de barco no meio da rua
e outras tentando salvar o que tinham. Era
uma luta, os próprios moradores estavam se
ajudando, uns aos outros”, conta.
Na Linha do Rio, em um local aparentemente seguro, ele se recorda que desceu do
carro e passou a fazer outro flash ao vivo
onde mencionava como estava a situação
naquela localidade, quando foi surpreendido pelas águas. “Eu estava falando ao vivo
e senti os meus pés na água. Em questão de
10, 15 segundos, a água já estava no meu joelho. Interrompi a transmissão e vi que o
Paulo e o Tiago tentavam sair com o carro
de ré. A água subiu tão rápido que derrubou
o carro com eles para a lavoura. Me assustei e vi que a situação era grave, achei que a
água fosse cobri-los.”
De acordo com o relato da locutora da Vida
Nova, Aline Schultz, que apresentava o programa Na Medida Certa, o último flash feito
por Lindomar assustou ela e os ouvintes. “O
Lindomar estava falando ao vivo, quando de
repente, ele deu um grito – ‘olha a água’ – e
a transmissão foi interrompida.” Ela lembra
que tentou o contato com os três colegas e
todos os celulares estavam desligados. Cerca
de uma hora depois, os três, completamente
molhados e assustados, chegaram até a rádio
e contaram à história que havia ocorrido.
O empresário e comentarista esportivo
Paulo César Severo foi um guerreiro durante a enchente. Ele lembra que, pela manhã,
estava trabalhando na loja Construmak, da
qual era sócio-proprietário, e, ao sintonizar
uma emissora de rádio concorrente, passou a
ouvir as notícias sobre a enchente que estava
ocorrendo no município. “Senti a obrigação
de também realizar a cobertura jornalística
daquele fato, pois também tínhamos os nossos ouvintes que estavam preocupados com a
enchente.” Devido à gravidade, ele se recorda
de ter ligado para mim e Lindomar Mundstock e convidado ambos para juntos realizarmos a cobertura para a Rádio Comunitária
Vida Nova FM.
Na Linha do Rio, o comentarista lembra
dos momentos de angústia vivenciados
pela equipe. Severo lembra de meu desespero na lavoura. “Quando o Tiago chegou
no barranco, próximo ao asfalto, ele caiu
e não tinha forças para levantar. Naquele
momento achei que ele fosse morrer, pois
a água estava no seu pescoço. Comecei a rezar e fiz uma promessa para um santo em
que pedi a ele para nos abençoar naquele
momento. Consegui chegar até ele e o puxei para cima. Parecia que ele havia tomado um choque e só conseguiu se equilibrar
no asfalto”, lembra.
Cerca de meio ano após a enchente, o empresário conta que nós cumprimos a promessa
feita ao santo em meio a enchente. Segundo
Paulo, este santo não tem nome e está enterrado em um túmulo solitário existente no meio
de um campo, na localidade de Capão do Valo.
“Há décadas, várias pessoas que moram naquela região vão até o túmulo do indigente agradecer a ele pelos mais diversos milagres. No dia
da enchente pedi para aquele santo do campo
nos abençoar e graças a Deus e a ele, conseguimos sair”. Para agradecer ao “santo do campo”,
Paulo e eu caminhamos 23 km durante mais
de cinco horas, a pé, de Candelária até o túmulo, no Capão do Valo, onde rezamos e agradecemos por estarmos vivos.
Duas pessoas anônimas foram os verdadeiros heróis ao salvar no momento certo
os três repórteres da Rádio Vida Nova FM
na Linha do Rio. Márcio Luís Lintner e Alcemar da Silva Friedrich estavam indo para a
Linha do Rio realizar algumas fotos e filmagens da enchente quando se depararam com
os repórteres fugindo da água. Márcio se recorda que algumas horas antes ele havia ido
até a Linha do Rio levar uma colega de trabalho até a localidade e, ao ver a água vindo,
retornou até a cidade e convidou Alcemar
para ir novamente até a localidade bater algumas fotos e realizar alguns vídeos da região por curiosidade. “Vimos que estavam
quase a ponto de interromper a ponte, mas
mesmo assim passamos”, lembra Alcemar.
Quando estavam chegando até a Linha do
Rio, os dois viram a equipe de reportagem.
“Quando passamos, o Tiago Garcia gritou
‘vocês estão loucos, saiam daí’. Paramos e
fizemos algumas fotos. Logo entendemos
porque ele havia dito que estávamos loucos,
pois a água estava vindo pelas lavouras. Fizemos o retorno e demos uma carona para
eles”, lembra Márcio.
O motorista se recorda ainda que achou
que não iria conseguir cruzar a 287 após a
água começar a cruzar o asfalto próximo ao
trevo da Linha do Rio. “Ali me bateu o desespero de não conseguir passar na ponte sobre
o rio Pardo”, conta o motorista. Já Alcemar
salientou que jamais tinha visto uma enchente daquelas. “Por detalhes a gente não
ficou preso também. Desesperei-me com
aquela situação”, disse. Márcio lembra de
uma moto que estava no local e que, devido
à força da água, ele acredita que os repórteres não iriam sair a tempo da Linha do Rio
se tivessem que fugir a pé.
s nairo orlandi
socorro
portagem da emissora. Ele se recorda que
ao chegar para apresentar o seu programa
diário pela manhã, já ouvia rumores sobre
o início da enchente e começou a passar as
primeiras informações do fato no estúdio
da rádio. Somente próximo ao meio-dia,
quando a situação começou a se agravar, ele
entrou em contato comigo e com Paulo Severo para que fosse feita a cobertura.
Tiago (acima), ao lado da Ipanema; Márcio e Alcemar (abaixo), os heróis do dia
Sobre a experiência de ver a enchente
de perto, eles salientaram que nunca mais
querem vivenciar esta situação. “Não dá
para brincar, não é brincadeira. É sério, é
apavorante ver a água daquele jeito”, finalizou Márcio.
s tiago garcia
a água já estava por cima e com uma forte
correnteza. Nosso colega Lindomar ficou nos
esperando e, quando conseguimos chegar,
juntos, nós três, nos agarramos pelas mãos.
Conseguimos atravessar a correnteza. Andamos mais uns 10 metros e conseguimos chegar
a uma parte do asfalto onde a água ainda não
havia chegado.
13
passatempo
SABÃO EM PÓ
E CERVEJA
A R$ 1,00
Santa-cruzenses se reúnem três vezes por
semana para jogar Loto, às vezes, voltam
para casa com um rancho na sacola
reportagem s
Luana Rodrigues
Quem caminha por aquela calçada, nas
terças e quintas-feiras ou, quem sabe, aos domingos, escuta de longe o som grave de uma
voz masculina que pronuncia números. 2,
10, 37, 64, 51, dois patinhos na lagoa... Quanto mais se aproxima, mais claro fica o ruído,
que dá conta de dezenas e mais dezenas. A
porta permanece sempre aberta, quase como
um convite ao pedestre, que, curioso, muitas
vezes apenas passa e espia para o interior
do local, a fim de entender o que acontece lá
dentro. O lugar é simples, uma casa pintada
de rosa claro, na beira de uma rua tranquila,
janelas gradeadas e um letreiro azul, que denuncia a que se propõe o local: Ponto da Amizade. Lá, pessoas reúnem-se para jogar Loto,
uma espécie de bingo, mas cujo prêmio não
se parece em nada com dinheiro.
14
ilustração s
Mariana Pellegrini
las. Já elas, arrecadam o dinheiro e repõem os
prêmios. Tudo foi pensando nos mínimos detalhes, principalmente a escolha do melhor
local para investir no empreendimento.
A construção, que antes servia como casa,
foi adaptada para a nova função. O quarto virou despensa e comporta um grande estoque
de produtos. A garagem foi fechada e serve
como sala de jogos auxiliar, quando o espaço
principal fica lotado. Dois cômodos foram
ligados e servem para abrigar os jogadores,
que se distribuem em mesas compridas e em
bancos de madeira. A cozinha ainda existe e é
nela que se esquenta a água para o chimarrão
que é ofertado aos clientes.
O primeiro sortudo a completar uma linha da cartela pode escolher entre produtos
alimentícios ou de limpeza. E os clientes são
exigentes. Não querem saber de arroz ou refrigerante de baixa qualidade. As marcas
preferidas já são de conhecimento dos donos
do local, que procuram disponibilizar entre
os prêmios apenas o melhor. Cerveja é artigo
de luxo entre os brindes. Desaparece da mesa
com a mesma rapidez que chega. Mas só a
Skol. Se for Kaiser a cerveja fica lá por mais
tempo, meio que rejeitada, quase como o patinho feio da história.
Quem joga Loto no Ponto da Amizade de
uma coisa não pode reclamar: a hospitalidade. Diversos “agrados” são oferecidos nas
tardes ou noites de lazer. O mate é sempre
acompanhado por balas, cucas ou bolachas.
Se o dia for de azar no jogo, pelo menos não
será para o estômago. Além disso, sempre que
compra uma cartela, recebe-se outra, sem
custo. Serve como um estímulo para continuar na disputa e, ao mesmo tempo, é uma
chance a mais de se dar bem na aposta. “Nós
pensamos em várias estratégias para sermos
diferentes e agradarmos o nosso público. Não
podemos perder ninguém para a concorrência”, afirma Tânia.
O lugar existe desde junho de 2010 e serve como fonte extra de dinheiro para Tânia
Heck, seu esposo Nestor Hister, a irmã dela
Lurdes Henkes e o marido Aércio Bartoldi.
A primeira é monitora de creche. Ele, comerciante. A outra é doceira, casada com um
professor aposentado, que voltou a dar aulas.
Juntos, eles administram nas horas vagas o
Ponto da Amizade. Para os homens, fica a tarefa de sortear os números e conferir as carte-
No espaço reservado para a jogatina cabem
apenas cerca de 30 pessoas, mas a maioria
permanece por lá pelo tempo máximo, ou
seja, cerca de quatro horas. Uma das clientes
fiéis é a florista Aneli Assmann. Ela vai para o
Ponto da Amizade acompanhada da família.
Tanto ela, quanto a mãe, irmã e a cunhada,
não abrem mão de jogar Loto nas horas livres. “É um momento de descontração e, ao
mesmo tempo, de convivência”, comenta.
Já para a aposentada Frida Bröening o motivo do jogo é outro. Ela avalia como anda a
despensa e vai jogar em busca dos produtos
que faltam em casa. “Aqui tem tudo que a
gente precisa e com sorte dá pra conseguir
prêmios excelentes”, revela. Ela gosta de sentar próxima ao local onde são sorteados os
números e tem uma espécie de ritual. Deixa o
celular em cima da mesa, ao lado dos prêmios
adquiridos, e joga sempre com cinco cartelas.
“Assim tenho mais chances de ganhar”, argumenta. Mas a colega de jogo sentada a sua
frente não deixa por menos e faz uma brincadeira. “É porque ela tem mais dinheiro. Pode
gastar mais”, alfineta.
Além da cerveja, há outros itens que são
bastante disputados no jogo: os de limpeza.
O amaciante, que no mercado custa em torno
de R$ 7,00, lá sai apenas por R$ 1,00. Mas, assim como a Skol, os produtos não podem ser
de qualquer marca. Os queridinhos das jogadoras são Comfort e Omo. Nesta lista seleta
também entram erva-mate, arroz, barra de
chocolate, massa, carvão, óleo e refrigerante.
Aliás, Pepsi nem pensar. Só vale Coca-Cola. Para
divulgar os doces que Lurdes, uma das donas
do local faz, eles arranjaram uma estratégia:
colocam pedaços de torta entre os prêmios e
comentam que são produzidos por ela. O capricho na decoração da guloseima e a aparência apetitosa deixam as jogadoras com
água na boca. Após ter seus números sorteados, uma delas vai até a mesa e rapidamente
dá de mão em um pedaço de torta. Já de volta
ao seu assento, ela faz um comentário com a
amiga. “No mercado, uma fatia dessas custa uns R$ 10,00. Lucrei e ainda vou adoçar a
vida”, avalia.
barulhos e regras
Jogo de Loto é uma coisa curiosa de se observar. De um lado, um homem sorteando
números e os pronunciando em voz alta e
grossa. Aliás, boa dicção é fator fundamental para assumir o posto. Do outro, pessoas
atentas, em silêncio, apenas movimentando
as peças que marcam as dezenas já sorteadas.
Não se escuta nenhuma outra palavra. Dá
quase para ouvir a respiração dos jogadores
que não desgrudam os olhos das cartelas
nem por um segundo.
Quem sempre frequenta o Ponto da Amizade já tem algumas preferências. A principal é com relação às peças para marcar os
números. O local disponibiliza algumas em
acrílico e outras em EVA, uma espécie de borracha. Mas estas são leves demais e não fazem
muito sucesso entre os clientes, pois se movimentam com qualquer vento. Por isso, tem
gente que traz de casa as peças. “Mas estes são
nossos clientes fixos, que têm o hábito de vir
sempre e gostam de usar seu próprio material”, explica Tânia.
sim, jogo de loto dá lucro
Como o movimento aumentou bastante,
eles resolveram criar uma espécie de bolão.
Neste caso, a recompensa é maior. “Estamos
com uma cafeteira, sanduicheira, lençol e edredom acumulados”, disse. Foram sorteados 40
números e ninguém fechou a cartela. A cada
dia o número aumenta, até sair um ganhador.
Assim, os prêmios acumulam e a quantidade
de dezenas sorteadas cresce, até que um dia alguém consiga arrebatar todos de uma vez.
Por semana, são gastos cerca de R$ 1.000,00
em prêmios e sorteados trezentos produtos.
O lucro em um domingo de movimento é de
mais ou menos R$ 800,00 e nos dias de semana de R$ 350,00. Também existem despesas
como aluguel e luz. O que ajuda a economizar é que os dois casais, que são os donos, também são os funcionários.
Aos poucos, o empreendimento está dando retorno financeiro. E, quase sempre aos
domingos, o espaço fica apertado. Conforme Aércio Bartoldi, que comanda os jogos,
o mais interessante do ramo é que na maioria das vezes as pessoas saem de lá com
prêmios, por mais singelos que eles sejam.
“Isso aqui não tem nada a ver com bingo. Eu
já vi muita gente destruir a vida perdendo
dinheiro com jogos. No nosso caso, nós proporcionamos lazer, divertimento e produtos úteis para o dia a dia. Não tem como dar
errado. Basta fazer certo”.
Eventualmente alguém se confunde e precisa pedir para repetir o número. Quem está
do lado responde, mas não dá muita conversa
para não perder a concentração. Mas quando
alguém grita “linha” pode saber que vem reclamação, pois um apostador teve seus cinco
números sorteados, fechou uma linha, e pode
retirar um prêmio. O silêncio dá espaço para
lamentos, comentários e frustrações. “Faltava só um”. “Quase cheguei lá”. “Mas de novo?”
Estas são apenas algumas das lamúrias ditas
diariamente no local.
15
mistério
Caso Kliemann:
para urubus e cientistas
Pedro Garcia
Dizem que o grande público das narrativas, ficcionais ou não, jamais resiste a tragédias. É a face meio sádica, meio urubu,
de boa parte das pessoas, dizem, sentir-se
excitado diante de histórias que envolvam
infortúnios, sofrimentos e sangue. De
fato, seja na literatura policial, nos filmes
de crime ou no jornalismo investigativo,
consolidou-se, em especial no decorrer
do século passado, uma tradição que faz
bem-suceder os “contos de desventuras”.
Não é à toa que figuras como Agatha
Christie e Alfred Hitchcock firmaram-se
definitivamente no imaginário popular.
Envolvente em nível de não dever em
nada a Convite para um Homicídio ou Festim Diabólico, para ficar apenas em exemplos, Caso Kliemann – A História de uma
Tragédia é um relato doloroso, sangrento,
e, como se não bastasse, verídico. São dois
homicídios, um trio de órfãs, uma sequência de conturbações políticas respingando
nas investigações oficiais, e uma imprensa inescrupulosa fartando-se de causos e
personagens. Mas não se trata de um “espreme que sai sangue” qualquer.
O valor da “verdade” ali colocada é certamente duplicado aos nossos olhos gaúchos. Todos os episódios sucederam-se
neste território, mais precisamente entre a
então provinciana Santa Cruz do Sul e a
modernosa capital Porto Alegre, nos idos
de cinquenta e meados de sessenta. Diz-se
que a verdade tem peso maior, pois nesta
trama os elementos não nos são estranhos.
Nas linhas e entrelinhas, captamos personagens que são hoje ruas e avenidas, ou
figuras vivas e reverenciadas, além de clubes, escolas e residências ainda impostos
na urbanidade. Um passado que segue se
acusando.
Celito de Grandi, medalhão do jornalismo rio-grandense, tomou para si a corajosa
missão de resgatar a atualidade do caso
que começou com a morte de Margit Kliemann, esposa do deputado estadual santacruzense Euclydes Kliemann, e culminou
com a do próprio, um ano depois – ambos
16
em circunstâncias embebidas de mistério.
O resultado é fruto de um inesgotável e
admirável exercício de pesquisa, por meio
de documentos, jornais e entrevistas.
A meio caminho entre o fazer jornalístico e o fazer história (e História), organizou
o relato de forma sedutora. Embaralhou
os pontos de maior impacto com os imprescindíveis dados que fazem os personagens e fatos – basta citar que o texto
abre com o assassinato da esposa, para
depois voltar às origens: os antepassados e a história do casal, o nascimento das filhas, a ascensão política
de Euclydes. Compõe o perfil dos
protagonistas com a mesma maestria
que traça o cenário político do estado na época, e chega a postar-se
em vários momentos nas condições
dos próprios personagens, descrevendo seus sentimentos os mais
profundos. Em dado momento, por
exemplo, quando relata a situação
em que Euclydes anunciou à família sua candidatura a Assembléia,
diz que Margit hesitou, pensando se havia feito a escolha certa
ao casar-se com homem tão pretensioso. É notável a decisão de
incluir tal elemento, sem dúvida
imaginado, mas com a segurança de quem conhece a fundo
aquilo do qual fala.
Dessa forma, com narração elegante, que visita a cinematografia
sem parar, o autor vai e vem sem medo
na linha do tempo da trama, constituindo
um quadro que ao mesmo tempo em que
é completo e rigoroso, é também gostoso
e plenamente acessível. Ameniza as ganas
geradas por nossos instintos menos sensíveis, e oferece um trabalho jornalístico, literário e científico da mais alta categoria.
Para ler
GRANDI, Celito de. Caso Kliemann – A história de uma tragédia. 1ª ed. Porto Alegre:
Literalis/Edunisc, 2010.
s divulgação/valdomiro soares/agência rbs
texto s
s Pepe Fontanari
17
na balada
Vidas regidas pelo
reportagem s Nairo Orlandi
Normal é uma palavra que não se aplica à rotina profissional e à vida de Cíntia
Knak, 31 anos, e Tiago Allgayer, 28, DJs
residentes da casa de festas Spirit de Santa
Cruz do Sul, onde tocam todas as quartas
e sábados. Nas quartas, os dois já se preparam porque sabem que a quinta-feira será
mais longa do que os outros dias da semana. Tudo isso porque, além de tocarem até
as cinco da manhã, trabalham normalmente no outro dia.
Por volta das sete e meia de quinta, Cíntia
acorda de um sono sobressaltado de apenas
duas horas. Cansada, sonolenta, com zumbido nos ouvidos por causa da música alta
da noite anterior e o cheiro de cigarro da
festa impregnado no nariz, ela levanta para
começar o dia. Toma um café mais forte do
que o normal para aguentar a jornada e vai
para o trabalho.
A DJ diz que nesses dias sua presença na
Escola de Educação Infantil Vovô Albino,
onde é diretora, é apenas corporal, pois tem
a impressão que sua mente ficou dormindo.
Como recurso para esquecer o sono, passa o
dia comendo. Mesmo assim, a ardência nos
olhos é a lembrança constante da noite passada em claro, e o que ela mais deseja é o fim
das suas atividades para poder ir para casa
dormir e descansar.
Já Tiago tem o privilégio de dormir meia
hora a mais. Mas, apesar disso, o sono, o zum-
18
bido nos ouvidos, e tudo mais é igual ao de
Cíntia. Segundo ele, aguentar as oito horas
de trabalho que se seguem na empresa de
seu pai é complicado. Por isso, prepara e realiza todo o serviço mais pesado e difícil um
dia antes, para que nos dias de muito sono
as atividades não sejam tão desgastantes. O
problema mesmo é quando chega perto das
14 horas, quando o cansaço aperta mais e
a ardência nos olhos também. No horário
do almoço aproveita para tirar um cochilo
quando pode, mas, mesmo assim, o resto do
dia caminha em passos lentos.
Para Cíntia, já é assim há seis anos. Professora especializada em educação infantil
há 13, ela também trabalhava em 2004 no
bar de uma casa de festas de Santa Cruz do
Sul chamada Life. O proprietário do estabelecimento resolveu realizar uma festa
fechada para mulheres até determinada
hora, e precisava de uma mulher como DJ.
Como Cíntia namorava (e ainda namora)
o Tiago, que na época já tocava nas noites,
o dono perguntou se ela não topava tocar.
Ela, sem nenhuma noção de como
mexer nos equipamentos, aceitou.
“Bem metida”, como ela
mesma coloca. Então, seu
namorado gravou quatro
CDs para ela e mostrou onde
era o play, que dá a “partida” na
música. E, desse jeito, ela encarou
o desafio.
Cíntia não só tocou nessa festa como agradou. Com isso, surgiram mais convites para
tocar em outros lugares, e o que começou
como uma brincadeira acabou virando sua
segunda profissão. Cerca de três noites por
semana ataca como DJ. Segundo Cíntia, hoje
não é tão complicado conciliar os dois trabalhos, pois sua jornada na escola é de segunda
a sexta, e evita tocar durante a semana com
exceção da quarta, quando toca na Spirit.
“Nas quintas me preparo para um dia puxado. Mas já toquei quarta e quinta, aí fica
complicado para recuperar o sono. Tento fazer tudo o que eu faço da melhor forma. Mesmo cansada, em qualquer das situações, me
preocupo, pois é meu nome como DJ e como
professora que está ali”, afirma.
Diferente de Cíntia, desde pequeno Tiago
gostava de música e estava inserido no meio.
Seu pai era DJ nos anos 80 e continua tocando
em algumas festas particulares até hoje. Alguns de seus amigos possuíam equipamentos de som e, junto com eles, Tiago começou
a tocar em algumas festas particulares. Até
que, em 1999, surgiu a oportunidade de tocar
em uma renomada casa de festas da época, a
Mansão. Era o que faltava para as portas de
outras festas se abrirem.
Na época, Tiago não trabalhava, então começou a investir na carreira de DJ.
Chegou a tocar como residente em uma
balada na cidade de Santiago durante
um ano e meio em 2001. Há cinco anos
BPM
começou a trabalhar na empresa de seu pai.
Apesar de ser uma empresa familiar, não
tem privilégios. Trabalha normalmente nas
quintas e se diz já acostumado com a rotina.
Até dois anos atrás ele tocava de quinta a
sábado, mas, pela dificuldade de conciliar as
duas jornadas, hoje só toca nos finais de semana e na quarta. Como todo bom DJ, procura estar sempre se atualizando nos horários
livres, pois todo dia surgem novas músicas
eletrônicas, estilo que Tiago toca. Ainda
arranja tempo para ouvir todas e escolher
as melhores. Mas isso nos outros dias da semana que não a quinta-feira, quando só quer
chegar em casa e dormir.
Já Cíntia, que segue uma linha de som
mais pop, atualiza-se trocando música com
outros DJs e pesquisando na internet. Segundo ela, muitas vezes as pessoas que estão
na festa pedem músicas novas, que acabam
sendo boas dicas. Ressalta a importância de
estar sempre atualizada nesse sentido, e por
isso tira algumas horas por semana para esse
trabalho. Aos domingos, o casal aproveita
para descansar.
Os dois adoram o que fazem. O único sentimento de frustração está em não poder
participar de festas como formaturas, aniversários e casamentos realizados nos sábados. Pior ainda quando é da família. Mas não
podem faltar a uma festa que irão tocar. Mesmo doentes comparecem, pois diferente do
Conheça um pouco mais da rotina de dois DJs que,
além de tocarem cerca de cinco horas por noite,
encontram forças para encarar uma jornada de
trabalho durante o dia posterior
trabalho do dia a dia, na noite não há alguém
para substitui-los. “É um compromisso que
assumimos principalmente com a Spirit,
onde tocamos duas vezes por semana. Só no
verão tiramos 15 dias de férias para descansar e viajar”, afirma Tiago.
O único sentimento
de frustração está em
não poder participar de
festas de formaturas,
aniversários e
casamentos
Namoram há oito anos e atualmente moram juntos. Conheceram-se por meio de
amigos em comum. Segundo Tiago, quando
Cíntia começou a tocar foi um pouco complicado, pois cada um tinha que tocar em
um lugar diferente na mesma noite. Mas
agora que são residentes da mesma casa ficou mais fácil, e quando algum deles vai
tocar em uma festa de fora, o outro sempre
acompanha.
Quanto à convivência, Cíntia diz que é
legal os dois tocarem porque é mais fácil de
um entender o outro. “Porque noite é noite,
é mulherada dando em cima, ‘fãs’. Mas faz
parte. Fica mais fácil a relação.” Tiago concorda e diz que quando Cíntia o conheceu
ele já tocava na noite, e com o tempo ela entendeu que era um trabalho.
Sobre o que acontece nas festas, Tiago
fala que não pode dizer que já viu de tudo
porque toda noite acontece algo novo. Cíntia concorda e diz que o mais comum é ver
homem dando em cima de mulher, mulher
dando em cima de homem e casais brigando, geralmente por causa de uma olhada a
mais para outra pessoa.
Quando questionados sobre se um dia
pretendem parar de trabalhar como DJs e
seguir outras carreiras, os dois mostram
que não pretendem fazer algo diferente tão
cedo. “É claro que é puxado trabalhar e ainda tocar a noite, mas eu gosto do que eu faço.
Enquanto as pessoas quiserem, e enquanto
gostarem do meu som, eu vou seguir tocando”, afirma Cíntia.
E assim o casal segue toda quarta e sábado, mais alguns dias extras do mês, fazendo
a trilha sonora da balada de centenas de pessoas. Na quinta, continuam com a rotina semanal de seus compromissos profissionais,
cansados e esgotados, mas ao mesmo tempo
felizes por terem cumprido mais uma noite
de trabalho.
19
recordações
AS IRMÃS FISS
E A ARTE DA
FOTOGRAFIA
Irmãs foram fotógrafas ambulantes na época
em que álbum de família era artigo de luxo
reportagem e fotografia s
Durante 20 anos, as irmãs Alzira Anilda
Fiss, 83, e Elma Silena Fiss, 79, de São Miguel, em Restinga Seca, cidade próxima à
Santa Maria, foram as fotógrafas oficiais da
região. Elas registraram casamentos, aniversários, momentos festivos, de alegria e
até mesmo de tristezas. As facilidades proporcionadas atualmente com as novas tecnologias, principalmente por meio das máquinas digitais, permite a qualquer pessoa
captar imagens e montar o álbum fotográfico de sua família. Naquela época, há mais
de 60 anos, fotografar era muito diferente.
“Pegava a charrete e o cavalo, com nossos
equipamentos, íamos aos locais das fotos,
não importava se era de dia ou de noite.
Muitas pessoas também vinham até nossa
casa, pois tínhamos um estúdio, onde hoje
é nossa sala, e as fotos eram feitas”, relatou
Alzira. Tudo começou em 1950, quando foi
adquirida a primeira máquina, uma Kodak,
durante viagem a Ijuí. O equipamento foi
utilizado até 1955, com no máximo 12 fotos
tiradas por vez, e todas em tamanho pequeno, formato 3x4. Na época, as irmãs apenas
tiravam as fotos. O processo de revelação
era realizado em Agudo, com a prima Almida Klüsener. Segundo Alzira, a fotografia
surgiu na vida das irmãs, além de alternativa de renda, também pelo prazer de captar
as imagens. “Gostávamos do que fazíamos,
20
Patrícia Parreira
sempre trabalhamos muito. De dia cuidávamos da criação e da plantação de milho junto
com a família. A irmã Irma Fiss, falecida há
19 anos, era quem costurava e, de noite, eu e
Elma cuidávamos das fotos”, relatou Alzira.
Em 1955, foi adquirido um novo equipamento, uma máquina fotográfica que possibilitou então fazer imagens maiores, de
vários tamanhos, até 13x18, tudo em preto e
branco. A nova máquina, grande, com equipamentos pesados, possibilitava tirar uma
“chapa” de cada vez. Conforme Dona Alzira,
muita paciência era necessária na hora de
fotografar. “Nas festas tirávamos uma foto,
aí íamos até um quarto escuro, trocávamos
a chapa, enquanto isso, as pessoas da foto seguinte já iam se posicionando. Tudo era um
processo lento, mas no final todos adoravam
ver as fotos prontas, já em tamanhos maiores.”
Naquele tempo, Alzira e Elma já realizavam também o processo de revelação, o que
na época dava muito trabalho. De Porto Alegre vinham os produtos químicos usados
na revelação das fotos. Tudo era feito em
casa, em um quarto com apenas a iluminação de uma lâmpada vermelha, com auxílio
de uma bacia de inox. Depois era necessário colocar o material em água corrente, e
como na época não existia água encanada, o
recurso utilizado era a sanga de São Miguel,
que ficava a um quilômetro da casa. “De
madrugada levávamos o material na sanga, ele precisava ficar lá de 10 a 12 horas, na
sombra, em água fria e corrente, para tirar
os produtos químicos usados na revelação.
Várias vezes, durante a noite, tínhamos que
sair correndo para buscar o material, porque o tempo estava se preparando para dar
temporal, imagina a responsabilidade”, ri
Dona Alzira. Depois que as imagens passavam pelo processo de lavagem, elas eram secadas em um quadro de vidro e metal, com a
ajuda de um pano seco e macio. Uma cortadeira era utilizada para recortar as imagens
do tamanho solicitado pelo cliente. Segundo as irmãs, as fotos demoravam em torno
de um mês para serem entregues às pessoas.
A última máquina, um pouco mais moderna, foi comprada em 1960. Na época já
existia luz elétrica, o equipamento era de
filme, e já podiam ser tiradas 30 fotos em
apenas uma vez. Neste período, os clientes
que desejavam ter fotos coloridas já podiam
pedir. As irmãs enviavam as fotos em preto
e branco para Santa Maria, e uma profissional pintava a mão. “Lindos quadros de
famílias pintados a mão foram feitos nessa
época, nós até chegamos a aprender a pintar, mas não colocamos em prática, porque
logo depois nossos pais começaram a ter
problemas de saúde, e fomos parando de
fotografar”, contou Dona Alzira.
Além de Santa Maria, os municípios que
solicitavam o trabalho de fotografia eram:
Restinga Seca, Agudo, Paraíso do Sul, Dona
Francisca, Faxinal do Soturno e São João do
Polêsine. Durante o trabalho de fotógrafas
ambulantes, foram registrados momentos
festivos de casamentos, eucaristias, festas,
e principalmente fotos que reuniam toda a
família. “Quando os clientes sabiam que a
família estaria reunida, nos chamavam, e
nós, com a nossa charrete íamos até a casa
e tirávamos as fotos. Assim como tinham
pessoas que vinham até nossa residência
para registrar o momento”, conta Alzira.
Até mesmo quando alguém concluía uma
construção, como uma casa nova ou estabelecimento comercial, as irmãs fotógrafas eram solicitadas para registrar as arquiteturas. Muitas obras que hoje não existem
mais, ou foram substituídas por prédios e
casas modernas, estão registradas em imagens antigas captadas pelas Fiss.
Além do português, Dona Alzira e Elma
falam fluentemente e também leem em alemão. Diversas fotografias, cartas em alemão
e cartões postais da Alemanha e outros países, enviados por familiares e amigos, são
lembranças de uma época desconhecida ou
esquecida por muitos, mas que podem ser
resgatadas através dos registros e belas histórias contadas pelas irmãs Fiss.
“Começamos com a Kodak, que comprei
em Ijuí, na viagem com Armando e sua esposa, Anida, tia Leopoldina, Alzira Fiss, Geraldo e esposa Eli e a filhinha do casal. Isso
aconteceu em 1950, quando fomos para Três
Passos, Herval Novo, onde o irmão Wili Fiss
morava. Meu irmão era comerciante, negociava porcos, soja, galinhas e arroz, tinha de
tudo em seu estabelecimento, além de trabalhar com um caminhão.”
“Pegava a charrete e
o cavalo, com nossos
equipamentos, e íamos
aos locais das fotos,
não importava se era
de dia ou de noite”
“Ficamos uns dias pela cidade, depois
fomos para Santo Ângelo, passamos no
Hotel de Flora Henschke. De lá, fomos
para Três de Maio e Horizontina, no primo Armindo Gehm e esposa Eda, e a filha
Iraci, e por lá ficamos uns dias. Armando
e a esposa Anida foram para a Argentina
e quando voltaram, fomos todos para Ijuí,
passamos no hotel e visitamos os segundos primos que estudaram no colégio da
cidade: Lidaci, Oraci, Darli Gehm, filhos
do primo Armindo Gehm. Saímos de Ijuí
às 10 horas e chegamos em casa ao anoitecer, na Várzea do Meio. Esta foi a viagem
que comprei nossa primeira máquina, a
Kodak, aquela que começamos a fotografar em 1950.”
“Na época tínhamos muito serviço, muita
coisa aprendemos com a prima Almida Klüsener. Em 1955 compramos outra máquina
fotográfica, que se cobria a cabeça com um
pano preto, como foi difícil de trabalhar. Então em 1960 já tínhamos luz elétrica e compramos outra máquina, mais moderna e um
ampliador, que trabalhava com filme.”
“Sempre tínhamos muito serviço, mas
paramos de fotografar em 1970, porque tínhamos o compromisso com nossos pais.
Eles estavam cada vez mais doentes, o pai
com bronquite e asma, o que causava muita
falta de ar, que era apenas aliviada com um
cachimbo com gás. Já a mãe tinha pressão
alta e problemas no coração. Cuidamos dos
pais, nunca faltou remédio pra eles, ele faleceu aos 88 anos no dia 9 de julho e ela faleceu com 85 anos, dia 24 de julho. Ambos no
mesmo ano, em 1975.”
21
crônica
CONTEÚDO
DE QUALIDADE.
NÓS CHAMAMOS
DE EXCEÇÃO.
Elucubrações
texto s
Letícia Pereira
Sempre gostei de palavras. De sentir as
palavras. Cada sílaba, cada acento, cada respiração entre uma e outra. Mas é a definição
que realmente me seduz. Aquelas filhas do
latim deveriam ser pronunciadas com especial respeito. São senhoras mortas (coisa
muito triste uma língua morrer).
Usar bem as palavras é um dom, um charme concedido a poucos. Não me refiro a seres
que exigem ser chamados de “doutores”, que
fazem escorrer expressões desconhecidas de
suas bocas, usadas para disfarçar a sua (pouca) inteligência. Respeito os que têm o dom
do discurso, conhecem o alfabeto. Que acariciam nossos ouvidos com belas palavras, todas perfeitamente alinhadas dentro da frase.
O resultado soa quase musical, harmônico.
Foi da minha mãe que herdei essa paixão.
Há alguns anos, folheava encantada o maior
livro da pequena biblioteca que ela mantém
em casa. Não entendia o título: Novo Aurélio.
“Novo”? Mas o livro era tão velho...
Folhear as páginas era pura magia. O repuxo daquele mar de verbetes me levava
cada vez mais, e eu adorava exibir meus conhecimentos linguísticos. “Professora, não
pude vir a aula ontem porque tive deutergia;
gosto de ler livros históricos para não cometer anacronismos; queria ter a pele lioderme
como a sua.”
Era especialista também em xingamentos:
ximbute, mentecapto, energúmeno, primata... Só parava quando as ameaças de defenestração da sala de aula começavam a se
tornar sérias. Então, antes que minhas tão
amadas palavras se tornem um colóquio sonolento para gado bovino repousar, encerro
minhas elucubrações, torcendo para não ter
sido prolixa.
A Revista Exceção é feita por gente que
não tem medo de experimentar e ousar
na hora de contar as melhores histórias.
22
23
duas rodas
DOIS COM PANHEIROS
E UM AMOR EM COMUM
Um grupo de amigos reunidos por uma causa.
Sem diferença de raça, religião ou classe social,
o que os une é a dedicação pelo esporte
reportagem s
Ana Gabriela Vaz
Giovane Faccin e Miguel Lawisch se conheceram por meio da paixão pelo esporte. O
amor de Giovane pelas bicicletas foi herdado
do pai. Seu Danilo era borracheiro. Consertava pneus de carros e caminhões. Logo depois
começaram as buscas pelo conserto de pneus
de bicicletas. Os irmãos, Luiz e Giovane Faccin, eram crianças, mas já assistiam ao trabalho do pai com admiração. A procura pelo
conserto das bikes foi tanta que Seu Danilo
trocou a borracharia por uma loja de bicicletas. Hoje, o ponto de encontro do grupo. Mais
tarde, Seu Faccin fez uma longa viagem de
bicicleta, “uns duzentos e poucos quilômetros...”, lembra Giovane.
Para os filhos, na época, era um desafio que
o pai tinha conquistado e que eles desejavam
também superar. “Hoje, a gente faz esse percurso em um dia”, ri Giovane das lembranças.
Com os irmãos Lawisch foi diferente. As
condições financeiras nunca foram boas.
Miguel tinha apenas dez anos quando o pai
morreu e, junto com o irmão, tiveram que
assumir as funções da casa. Nunca tiveram
carro, e a primeira bicicleta, devido à baixa
renda da família, demorou para chegar. “A
gente sempre queria passear, conhecer lugares [...]”. O meio de transporte dos irmãos foi
adquirido só quando Chaco, José Lawisch,
entrou para o quartel. Na época, tinha apenas
uma marcha.
24
fotografia s
Luís Habekost
Em 1981, os irmãos conseguiram comprar
uma nova bike, com 10 marchas. “A partir daí
comecei a pedalar mais longe e a vontade foi
só crescendo”. Foi através da aquisição dos
irmãos e da loja de bicicletas do Seu Faccin
que tudo começou. O ano era 1984. Miguel
precisou do serviço e, ao visitar a bicicletaria
dos Faccin, contou que iria até Santa Maria de
bicicleta. Seu Danilo chamou os filhos para
ouvir a ousadia do novo amigo. A partir daí,
uma grande amizade estava por vir.
as competições
Em meados dos anos 80, o ciclismo ganhou
força com os campeonatos de bicicross. Por
meio de alguns atletas, entre eles Giovane
Faccin, o esporte começou a ganhar destaque
regional. Giovane foi um dos primeiros campeões gaúchos na modalidade. Nessa época,
os irmãos José e Miguel Lawisch começavam
a pedalar pela região, depois Porto Alegre e
Santa Maria.
Em 1988, os irmãos Lawisch, Giovane
Faccin e mais um amigo de pedaladas, Luis
Eduardo Schuk, juntaram-se ao ciclista Paulo Lopes, hoje falecido. “Paulo Loco foi nosso
pioneiro, inspirador [...]”, lembra Miguel. Estava formado o primeiro grupo de ciclistas
santa-cruzense. “Como a gente gostou sempre de bicicleta, a gente reconhecia no Paulo
um ponto de referência pra formar um grupo, foi o que aconteceu”, completa Giovane.
25
A oportunidade surgiu por meio do Grêmio Foot-Ball Porto Alegrense. A equipe
Grêmio Mercur-Metalplas participou de diversos campeonatos. “Esse é um detalhe bem
legal, o que a gente faz pela bicicleta, pelo
ciclismo. É porque a gente gosta, porque ele
como colorado não precisava vestir a camisa,
né?”, pergunta Miguel, rindo do amigo.
Com a vontade de buscar uma experiência
maior, Miguel começa a fazer viagens mais longas. Pedala com o irmão até o Rio de Janeiro, em
1990. Um ano depois, resolvem atravessar o continente, de Tramandaí/RS a Viña del Mar/Chile.
Miguel queria muito ser reconhecido no
que fazia. “A imprensa só destaca notícias de
bicicleta se alguém se jogar da Catedral ou
se fizer uma viagem longa”, diz o ciclista. E o
amigo Giovane ainda completa rindo: “Ou se
pedalar pelado em São Paulo”.
Então, Miguel Lawisch começa seu primeiro grande projeto: EUA. “O mais difícil foi eu
fechar o portão de casa”, diz Miguel, lembrando do medo que tinha de não voltar. Durante
o trajeto Miguel passou por muita coisa. Sem
muito dinheiro, pedia comida em casas de família e, em troca, se oferecia para lavar a louça.
Em 1992, depois de um ano e 25 dias, com
18.250 km rodados, percorrendo toda a costa brasileira, passando por vários países da
América Latina, enfim Miguel chega ao seu
destino final. “O que eu queria era chegar lá,
participar de algumas competições, pegar
uma experiência e voltar [...]. Lá tu és apenas
mais um e o que adianta eu ir lá se a minha
história funciona aqui? Não adianta eu ficar
lá ganhando uma grana, que seria o ideal, se o
esporte precisa de ajuda aqui, se eu sou daqui”.
pedaladas informais
Em 1993, a necessidade de formar um clube para os ciclistas da cidade fez com que os
amigos, em 19 de junho, fundassem o Santa
Cruz Bikers Club. “Na época existia um departamento de bicicross, mas a partir daí
passou a ser um clube oficial somente de ciclistas”, conta Giovane. O clube passou a funcionar na empresa dos Faccin. Miguel conta
que a ideia dos amigos foi inédita: “Na época
só se ouvia falar em mercado de carros e nós
de bicicleta fazendo competições na Avenida
do Imigrante e passeios organizados”.
Aos poucos foi surgindo a necessidade de fazer pedaladas informais, não só
competições. “Eu ligava para o Miguel
Lawisch e para o Chaco (José Lawisch)
convidando-os para pedalar. Daqui a
pouco o nosso amigo Beto começou a
pedalar e o meu irmão também. Logo
começamos a formalizar grupos de pedaladas de ciclistas que gostam de lazer
e esportes, não tanto para competição”,
relata Giovane. Assim é que começaram
os grupos de pedaladas.
O grupo Quatrilha só aumentou com
o passar dos anos. Giovane ainda lembra
que “o pessoal que saía para namorar, hoje
pedala com as namoradas”. “Eu era um
dos perdidos na quarta-feira, aqueles sem
namorada. Hoje eu conto que fui até os
EUA procurando uma, mas nenhuma foi
louca de pedalar comigo e, quando vi, foi
na Quatrilha que eu encontrei minha namorada que é ciclista e morava aqui bem
pertinho, em Rio Pardo”, descreve Miguel.
“O Beto traz a confiança de
que qualquer ciclista, mesmo
mal preparado, pode ir que
nunca ficará para trás”
Em 1998, a maior parte dos amigos está
namorando. Então, os solteiros do grupo
resolveram que na quarta-feira, “dia internacional do sofá (dia de namorar)”, segundo
os amigos, é o dia da semana para pedalar.
“Daqui a pouco havia uns ciclistas que não
podiam pedalar porque estavam namorando, aí nós dizíamos: ‘Não tem problema, não
podem ir? Nós vamos’”, conta Giovane, rindo.
Forma-se, então, o grupo Perdidos na Quarta-Feira. Na época, eram 14 companheiros. Os
encontros eram alternados na pizzaria de
um amigo e na Faccin Bicicletas. Os trajetos
eram variados; uma quarta-feira a saída era
para o norte da cidade e, na outra, para o sul.
O grupo precisava se comunicar. Surge a
ideia de fazer um grupo de conversação na
internet. Como o nome do grupo era grande
demais, os amigos resolveram mudar para
Santa Ciclismo: “Santa” de “Santa Cruz” e
“Ciclismo” de “ciclistas”. Conseguiram um
patrocinador para fazer a camisa oficial do
grupo (hoje mais de 280 espalhadas pelo
mundo): as cores azul e laranja significam
amizade.
No ano de 2006, uma pedalada por semana era muito pouco para o grupo. É então
que resolvem pedalar também nos finais
de semana, aos sábados. “Como existia o
Primeiro Comando da Capital, o PCC, com
atividades na contramão do que nós queríamos, o pessoal, ironizando, fez um PCS, Primeiro Comando Sabadista”, relata Giovane.
Foi nessa mesma data que resolvem mudar o
nome das pedaladas de quarta-feira. “Como
tínhamos o PCS, ‘Quatrilha’ ficaria melhor.
‘Quarta-Feira na Trilha’ também seria uma
ironia a quadrilha”, conta Giovane.
o anjo
Adalberto Kuhn é um homem tímido e
não quis falar para nossa reportagem, mas
os amigos Miguel e Giovane contaram um
pouco sobre sua função. Beto é o anjo da
guarda da Quatrilha. Ele sempre está na retaguarda. Beto é o último que sai e o último
que chega. “Se o Beto não chegar, a gente
não segue adiante”, conta Miguel. Tudo
começou com a tranquilidade de Beto.
Sempre disposto a ajudar os colegas, acompanhava todos os que ficavam para trás.
Também por ser mecânico de bicicletas, se
der algum problema, Beto é quem arruma.
“O Beto traz a confiança de que qualquer
ciclista, mesmo mal preparado, pode ir que
ele nunca ficará para trás”, diz Giovane,
com carinho.
Beto só acompanha o grupo nos passeios
à noite, pois, durante o dia, a segurança é
maior. “As pedaladas de quarta-feira possuem tantos adeptos, na verdade, é por causa
do Beto. Existem ciclistas que, às vezes, não
vão pedalar, mas, ao saber que o Beto vai,
eles decidem ir também”, conclui Giovane.
“É fundamental que já se tenha um mecânico e, lógico, um mecânico que pedala,
e mais, com todo esse requisito que o Beto
tem...”, completa Miguel.
O grupo Santa Ciclismo possui, atualmente, em torno de 200 participantes e pedala, em média, 1.600 km ao ano, contando
que alguns passeios não são cumpridos devido ao mau tempo. “Nós amamos o ciclismo, mas prezamos, acima de tudo, pela nossa saúde e segurança. Por isso não saímos
em dias de chuva”, diz Miguel. Segundo Gio-
vane, o que agregra pessoas ao grupo não
são as competições, mas as pedaladas informais. “Eu acho que muitos participantes
surgiram por causa da Quatrilha, porque ali
a gente vai conversando, não é uma prova,
é um passeio. Ali não existe cor, nem raça,
nem classe social. Ali todos ajudam todos”,
conta Miguel. A credibilidade do grupo, em
grande parte, foi conquistada por causa de
um homem. Beto, o Anjo.
“O pessoal que
saía para namorar,
hoje pedala com
as namoradas”
Há três anos, o grupo Santa Ciclismo trabalha em escolas com oficinas de trânsito. Eles
levam até os jovens a conscientização do bom
ciclista. Como andar nas ruas, equipamentos
de segurança, o código de trânsito, entre outros assuntos são debatidos com os adolescentes. “Tentamos passar aos jovens que, se o ciclista está usando capacete, não é porque ele
tem dinheiro, mas por questão de segurança”,
diz Giovane. Miguel ainda completa dizendo
que não vão até a escola só falar de leis, mas
também os relatos de anos de experiência.
“As nossas pedaladas de quarta-feira também
servem de base para as oficinas”.
o que você precisa
para começar
Durante o dia
Avaliação do médico
Bicicleta
s acervo pessoal
A equipe queria muito participar do campeonato estadual, mas sem apoio financeiro
e sem um clube não dava. Nessa época, com
muita dificuldade, Miguel estudava Engenharia em Porto Alegre. Mesmo cursando
uma faculdade, o que realmente lhe chamava
a atenção era o esporte. “Lá em Porto Alegre
eu ouvia muito falar em competições e pensava ‘puxa, nós temos que dar um jeito de participar disso aí’”, recorda Miguel.
Capacete
Durante a noite
Avaliação do médico
Bicicleta
Capacete
Sinalização noturna
Farol
quanto custa
Bicicleta
A partir de R$ 300,00 você consegue
comprar uma bike nova. Outra alternativa
é comprar usada, mas sempre cuide a procedência. Tente comprar de algum ciclista.
Capacete
Custa em torno de R$ 30,00
Refletivos (sinalização noturna)
A partir de R$ 29,00
Farol
Em torno de R$ 75,00
26
27
diário
“SÓ TEM O DIREITO
DE FALAR DE MIM
QUEM ME CONHECE”
A vida pode ser mais normal do que se imagina,
mas energia é o que não falta no dia a dia
de um terapeuta holístico
reportagem s
Vanessa Kannenberg
Camisa polo azul alegre, calça jeans tradicional e um jovial sapatênis é a combinação
de um dos figurinos de Luis Valdir Soares.
Nem vestes nem nome além do normal, apesar de mexer com coisas do além. Nem mesmo o apelido, Balaio, que poderia sugerir relações com macumba ou pai de santo, tem algo
fora do comum. Ele era gordo na infância e
o apelido fazia todo o sentido. “Se na época
existisse bullying, eu poderia ter aberto vários
processos”, brinca.
Hoje, depois de 16 anos trabalhando como
terapeuta holístico, lidando com energias
cósmicas, reiki e magnified healing, com uma
parede que certifica seus aprendizados ainda
sobre cromoterapia, reflexoterapia, massagem, numerologia, ioga e tarô, Balaio exibe
um sorriso constante no rosto, falas expressivas e conversa solta.
Fora do seu consultório, que inclui uma
sala de consultas espirituais com uma maca
para o reiki e outro recinto comprido para as
aulas de ioga, seu cotidiano também é tradicional. Supermercado, festas, chimarrão,
viagens. Até mesmo brincadeiras sarcásticas
trocadas com a sogra, mas jura que é tudo
brincadeira. Um homem espirituoso.
Marido de Marta Regina há 26 anos, é pai
de Gregori Luis, de 26 anos, e Luã, de 18. Além
dos cachorros, claro, que são os “bebês” da
28
fotografia s
Luana Rodrigues
casa – Nina, Kaká, Emy e Jack. Casa esta que
fica grudada ao seu local de trabalho. Tudo
isso em Candelária. Aos 52 anos de idade,
descreve a data de aniversário com detalhes
além do tradicional. “Nasci dia 10 de junho de
1959, signo de gêmeos, numa quarta-feira, às
11h30 da manhã.” Simples assim.
Não é fácil trabalhar com energia. Se descuidar, até o cachorro fica doente e pode
dar briga entre o casal ou com os filhos. Seu
trabalho exige uma vigilância constante,
pois até durante o sono sua energia pode ser
sugada por meio dos “vampiros de energia”.
Durante o dia, uma série de rituais evitam
que as cargas negativas tomem conta. Energizações no ambiente, orações, meditações, banho de sal grosso, de sete ervas e com água da
cachoeira, “meditação no verde” (em contato
com a natureza), andar descalço, ir à praia
(“porque o mar e o sol recarregam”), defumação, projeção de símbolos e sinais sagrados,
entre outros.
Para os céticos, tudo parece simples avariações. Mas faz sentido para dezenas de pessoas
que visitam Balaio com regularidade, sem
um perfil definido. É gente querendo ajuda.
Criança, idoso, homem, mulher. Preconceito? Não dá bola. “Só tem direito de falar de
mim quem me conhece”, enfatiza, acrescentando um sorriso.
Diário do Balaio
Domingo – 19/09/2010
10h – Acordei às 9h30 com um ótimo dia de sol.
11h – Caminhada na praia com a Laura. Ótimo.
Muita felicidade interior.
12h – Preparação do almoço. Toda a família
reunida, muita alegria e descontração.
14h – Hora de descanso (sesta), afinal, preciso
recarregar as baterias e estou na praia.
16h – Meditação na praia. Fiz também caminhada e toda a família foi oferecer flores e velas
a Iemanjá.
17h30 – Todos fomos ao centro de Capão da
Canoa comprar presentinhos para revelação
do amigo secreto. Ah, os cachorros de estimação Nina, Kaká, Emy e Jack também fizeram
parte do amigo secreto entre eles, então, não
dá para esquecer dos presentes.
20h – Revelação do amigo secreto. Primeiro
entre os animais e segundo entre a família.
Muitas gargalhadas.
21h – Janta e descontração total.
23h30 – Hora de deitar. O dia de hoje foi ótimo, excelente…
Segunda-feira – 20/09/2010
10h – Café da manhã. Logo após fui ao super
com meu cunhado, afinal preparar o churrasco
do domingo também faz parte. Muita alegria,
piadas, cantorias e risos.
14h – Hora da sesta.
16h – Caminhada à beira-mar. Muita alegria e
contentamento. Sol ótimo, muitos pássaros à
beira-mar. Meditação à beira-mar.
17h – Retornando da caminhada, um bom chimarrão e uma bela roda de conversa em casa.
19h – Confraternização em família do aniversário do Pedro Henrique (sobrinho). Muitas
fotos, doces, salgados e ceva.
21h – Uma bela mesa de “jogo do burro”. Muita
alegria e disputa.
22h – Arrumando as malas.
23h – Hora de ir para casa. Mesmo o dia estando ótimo, o corpo precisa relaxar, afinal foi
um dia intenso de alegria, mas amanhã cedinho
retorna o calendário.
Terça-feira – 20/09/2010
6h30 – Hora de acordar, carregar as malas e
partir. Agradecer pelo ótimo descanso. Muito
merecido, pois estava precisando.
8h30 – Chegada. Ótima viagem de retorno
com uma paradinha no Restaurante Palhoça para o café. Todos felizes, muito feliz e
agradecido.
12h – Almoço com comentários sobre o descanso.
13h – Começando novamente o trabalho.
Limpeza física da sala de ioga. Harmonização
energética da sala.
15h30 – Início da aula de ioga. Primeira parte:
aula. Segunda parte: entoações para proteção,
abundância, saúde, elevação espiritual, calma
mental e relaxamento (6 alunos).
17h30 – Início da aula de ioga com o mesmo
conteúdo da anterior (7 alunos).
19h - Início da aula de ioga. Idem à anterior
(11 alunos).
21h – Primeiro dia do ritual do Mestre Kuan Yin
(saúde, prosperidade e elevação espiritual)
21h30 – Chimarrão com Luã (filho) e Marta
(esposa).
23h – Hora de ir dormir. Antes, oração de agradecimento por este dia de hoje. Um excelente dia.
Quarta-feira – 21/09/2010
8h – Acordei.
8h30 – Meditação da manhã.
8h45 – Chimarrão e café da manhã. Vários telefonemas de agendamento de horários e solicitação de energia.
10h – Compromisso bancário.
11h – Preparação do almoço.
12h – Almoço.
13h – Relaxamento, soneca e harmonização física, mental e espiritual, pois tenho
atendimento a realizar e dar aulas de ioga
à tardinha.
14h – Aplicação de reiki. Cliente bastante angustiado. Sistema nervoso abalado. Bastante
insônia e muita ansiedade.
15h – Revisão de consulta. Cliente retorna pela
segunda vez depois de sete dias com muita
alegria, relatando fatos importantes que aconteceram em sua vida durante esses dias. Muito
agradecido.
16h – Consulta de tarô. Cliente muito desanimado, magoado e muito sentimento de
frustração. Autoestima baixíssima. Indiquei
caminhada, academia, terapia do riso, mudança no hábito de se vestir, preferindo cores
vivas, muita alegria e uma alimentação mais
rica em frutas, verduras e coisas naturais.
17h – Limpeza física da sala de ioga.
18h30 – Aula de ioga. Primeira parte: aula com
alongamento e posturas. Segunda parte: entoação de mantras.
20h30 – Segundo dia do Ritual Kuan Yin.
22h – Lanche com chimarrão. Aconselhamento
para um cliente de Buenos Aires, via telefone.
23h – Oração e meditação de agradecimento
por mais um dia.
23h30 – Hora de dormir, pois o dia foi bastante intenso, mas estou feliz com os resultados alcançados.
Quinta-feira – 22/09/2010
7h45 – Acordei bastante relaxado e de bem comigo. Uma paz interior bastante boa.
8h – Meditação e orações solicitando amparo,
proteção, força e sabedoria de orientação para
as pessoas que solicitarem minha ajuda.
9h – Consulta da tarô de Marselha. Ótimo. O
cliente bastante agoniado, pois há 45 dias atrás
estava bastante pra baixo. Depois das indicações da primeira consulta, sentiu-se 90% melhor. Mais feliz, ativo, alegre, de bem com ele
mesmo.
10h – Fui ao supermercado, encontrei um
amigo que fazia muito tempo que não via. Foi
muito legal.
11h – Comecei a fazer o almoço e bem feliz.
12h – Almoço em família, muita alegria, pois
já fazia um bom tempo que não almoçávamos
todos no mesmo horário.
13h – Descanso (sesta). Preparação e harmonização física, mental e espiritual para realizar
atendimentos.
14h – Revisão de cliente (terceira energização).
Muito agradecido com a transformação durante os 21 dias de tratamento espiritual.
15h – Atendimento de tarô. Cliente muito perturbado. Desgostosa com o marido e os filhos.
Emocional totalmente fragilizado. Depois da
energização com energia cósmica e reiki, sentiu-se mais aliviada e mais tranquila. Em sete
dias retorna para segunda revisão.
16h – Massagem terapêutica, cliente com torcicolo muito forte.
17h – Revisão pela terceira vez. Até ontem estava bem, muito bem, mas o namorado aprontou e a energia caiu. Teve uma péssima noite e
um dia bastante triste. Saiu um pouco melhor.
18h – Massagem relaxante. Cliente bastante
tenso. Quer carregar o mundo e a família sobre
os ombros. Após a massagem, sentiu-se leve,
harmonizado e com fome.
19h – Chimarrão em família. Visita do meu
cunhado, cunhada e afilhada. Rimos bastante,
recordando os dias passados juntos na praia.
21h – Ritual da abundância (Kuan Yin).
21h30 – Lanche.
22h – Meditação, oração e agradecimento de
mais um dia vivido.
23h – Hora de dormir, um pouco cansado mentalmente, pois os atendimentos agendados foram bastante exaustivos, mas agradecido por
ter podido ajudar as pessoas que procuraram
aconselhamento. Foi um bom dia.
29
histórias
águas passadas
Até meados dos anos 70, o transporte
era feito em grande parte pelos rios.
Em Rio Pardo não era diferente
reportagem e fotografia s
Marília Nascimento
31
Houve uma época em que todos os mantimentos da cidade chegavam pelo rio. Desse
tempo só restaram histórias, lembranças e
poucos marinheiros para contar. Esses remanescentes, hoje, se encontram entre paredes
de concreto e longe das águas do rio Jacuí.
Em uma casa distante do centro da cidade, onde a vista se perde no campo é possível
achar um marinheiro. Simpático, receptivo,
de passos lentos e olhar atento. Edo Prado, 83
anos de idade e mais de 30 anos nos barcos.
Natural de Santo Amaro, hoje município de
General Câmara, saiu de casa aos 13 anos, depois de um desentendimento com a mãe. Não
foi preciso mandar duas vezes, na primeira o
menino que nunca havia saído do pequeno
município juntou o pouco que tinha, amarrou em uma toalha e foi embora.
De carona, parou na capital do estado,
passou dias no porto esperando que o emprego aparecesse se alimentando de acordo
com a boa vontade dos marinheiros. Até que
o convite surgiu, não foi preciso insistir, na
primeira chamada o moleque aceitou. Ali
começava uma vida em cima das águas doces do Rio Grande do Sul, na Ita, um barco
de passageiros, onde ele era ajudante de cozinheiro. Foi este barco que trouxe o menino para Rio Pardo.
Na cidade construiu a vida, conheceu a esposa, criou os nove filhos, dos quais alguns
não viu nascer. Nas águas, enfrentou enchentes, secas, facilidades e dificuldades. Quanto
mais água o rio tiver, melhor para trabalhar,
desse modo a descida fica mais fácil. Ao contrário disso, em épocas de seca, quando o rio
chegava a ficar só com três palmos de água
as viagens demoravam mais. Barcos grandes
precisavam ser descarregados a cada banco
de areia, a carga era divida em caíques, barcos
s acervo pessoal
Os barcos tinham nomes próprios,
mas também eram chamados de gasolinas
pelas cargas de combustíveis que carregavam
pequenos, para que o grande ficasse leve e pudesse ser conduzido por meio dos caminhos
que os próprios marinheiros abriam no rio,
com a ajuda de tonéis. Em um destes episódios de seca, uma viagem de Cachoeira do Sul
a Porto Alegre durou exatos 30 dias. Um mês
carregando e descarregando o barco, para
que o gigante passasse pela pouca água que
restava. Hoje o trecho de aproximadamente
210 km de rodovia entre as duas cidades é feito em pouco mais de duas horas.
Recém chegado a Rio Grande e já uma marinheiro experiente foi nadar e ganhou a companhia de um animal. No susto do pulo do bicho
nem titubeou em voltar para o barco, quando
chegou falou que tinha visto um tubarão. Os
colegas riram e contaram que aquilo não era
tubarão nada, era boto, e que não precisava ter
medo. Esse não pegava ninguém. Depois desse episódio e pelo porte grande e a facilidade
do nado o apelido se consolidou. Edo virou o
boto. “Eu nadava demais, barbaridade.”
O marinheiro conta com orgulho que se
aposentou aos 40 anos de idade, tendo trabalhado em apenas três firmas. E em uma delas
pediu as contas, coisa que marinheiro não
faz da forma comum. Manda a tradição que
o trabalhador que quer sair do emprego vira
o boné para trás, de forma que o patrão saiba
que ele quer sair. Mas, nem por isso para de
trabalhar, o dia corre normal.
Saber nadar era mais do que imprescindível naquela época, os aparatos de segurança
no barco eram nulos. Ou sabia nadar, ou não
sobreviveria caso acontecesse alguma coisa.
Quando fala em nadar, Edo lembra do dia em
que tirou a filha de um amigo do rio, a menina tinha dois anos. E o jovem marinheiro
pulou no rio para salvá-la. Não que a mocinha não soubesse nadar, afinal ela estava na
água desde os primeiro meses de vida. Isso
tudo porque era filha de marinheiro, e praticamente nasceu dentro do barco.
Foram 26 anos de
casamento e muitas
histórias pelas águas
do rio Jacuí
Seu Edo conta que fez diferente, “pedi as
contas, quase 15 anos na Princesa do Jacuí,
não agüentava mais andar para cima e para
baixo. Nem dei bola para tempo de serviço.”
Nesse momento decidiu trabalhar em terra,
e foi na cooperativa agrícola de Rio Pardo que
descobriu que essa vida parada não era para
ele. Foram somente 15 dias em terra, a paixão
pela vida nas águas falou mais forte e de lá só
saiu quando se viu obrigado pela saúde.
esposa de marinheiro
A menina que Edo salvou nos anos 50 era
filha de um dos marinheiros da Navegação
Nascimento, Alexandrino Manoel. Hoje lembrado pela esposa, Ledi Nascimento, uma senhora com 81 anos, viúva há mais de 30 anos.
Na sala do pequeno apartamento, com fotos
dos 17 netos, quatro bisnetos e dos nove filhos espalhadas pelas paredes, ela conta que
esposa de marinheiro também trabalhava no
barco. Ou seja, era marinheira.
Natural de Venâncio Aires, Ledi conheceu
Dico, como Alexandrino era chamado, ainda
criança. Ele morava em uma margem do rio e
ela em outro, um em Taquari e outro em Mariante. Mas a escola era a mesma, e ela que já
não gostava de estudar, incomodava-se mais
ainda porque um certo moleque, dois anos
mais velhos a incomodava no colégio. Esse
moleque que aos 15 anos virou seu namorado
e aos 19, esposo. Foram 26 anos de casamento,
e muitas histórias pelas águas do rio Jacuí.
Antes que os filhos nascessem Dona
Ledi já estava navegando, acompanhando
o marido. Cumpria o papel de cozinheira,
mas isso não impedia que tivesse outras
funções. Quando foi necessário até mesmo fez força, virando o motor para levar
o barco. A primeira filha nasceu um ano
após o casamento, dois anos, dois filhos. A
menina ficava presa em uma “caixinha” e o
bebê, na maior parte do tempo, dormindo
no camarote do barco. Até o terceiro filho
a rotina das crianças foi na maioria dentro
do barco, quando a mãe não podia cuidar o
pai levava para perto dele, no leme, colocava-os nos beliches da cabine e ali ficava de
olho neles. Quando a mais velha já tinha
cinco anos ela mesmo tomava conta dos
outros dois.
A família tinha casa em terra firme, mas
Dona Ledi preferia estar no barco. Só que o
número de filhos foi aumentando e ficou mais
difícil. Assim como Seu Edo, Dico também
não viu o nascimento de todos os filhos, a profissão nem sempre permitia. Em muitos momentos só largava dinheiro para a esposa em
um armazém perto do rio e seguia viagem.
as cargas de arroz
Tanto o Seu Edo quanto a Dona Ledi citam
o arroz como o principal produto que os barcos levavam para Porto Alegre. Havia barcos
que chegavam a levar 800 sacos de arroz. E
também havia aqueles, menores, que por
meio dos arroios iam até as fazendas pegar o
produto para depois carregar os maiores.
A Maria Luisa, que era a menor embarcação da Navegação Nascimento, fazia estas
travessias, cortava arroios e carregava a Brasileira e a Alagoas. Estas seguiam viagem até
a capital. Na volta, os barcos traziam todos os
tipos de produtos. Açúcar, óleo diesel, gasolina, madeira, ferro, tudo que os armazéns da
cidade estivessem precisando. Estas cargas,
de gasolina, que deram o nome aos barcos.
Chamados de gasolinas. E foi numa destas
que aconteceu um incêndio. Nas viagens era
necessário observar se não estava entrando
água no barco, um dia mandaram um marinheiro novato para conferir e ele ao invés
de colocar o pé, como era de praxe, resolveu
acender um palito de fósforo. Estava feito o
estrago, foram marinheiros na água e um
barco desmanchado pelo fogo.
A vida em terra não era para ele: Seu Edo passou mais de 30 anos nos barcos
Acidentes aconteciam nestes descuidos
e pela falta de aparatos de segurança, como
lembra Dona Ledi, em uma vez que a Maria
Luisa foi ao fundo. Em uma noite, Seu Dico
não viu o barco que vinha e bateu, desta vez
estava carregando madeira. Maria Luisa era
de madeira e o barco maior de ferro, isso fez
com que a menor levasse a pior na batida. Os
marinheiros passaram para o outro barco e
o chefe ficou ali, até que ela afundasse e ele
não tivesse mais opção. Este não foi o fim da
pequena embarcação. Ela pode ter ido ao fundo, mas depois foi retirada e reformada. Do
acidente se perderam roupas, entre elas um
terno, que tinha um relógio de ouro no bolso. Armários, panelas, chaleiras, tudo ficou
intacto, só sujo de areia. Dona Ledi, na época
noiva do Seu Dico, lembra que precisaram
limpar tudo que a areia tinha tomado conta.
O barco foi para um estaleiro em Triunfo, os
dois jovens já casados, foram junto com o barco e por lá passaram um mês.
festa de navegantes
Mesmo com os perigos que as águas guardam, era preciso navegar. Para se sentirem
mais seguros os marinheiros contavam e
contam até hoje, com a proteção de Nossa
Senhora dos Navegantes. Essa proteção é
tradição que vem desde os portugueses do
século XV e aqui no Rio Grande do Sul tem
fortes manifestações como em Pelotas e Porto Alegre, da qual a Santa é padroeira e tem
uma Igreja em sua homenagem. Foram lá al-
gumas festas que Dona Ledi participou, uma
em especial ela lembra.
Nos anos 50, já com cinco filhos, ela e o
marido, foram comemorar a data do dia 2 de
fevereiro na capital. Levaram a Brasileira,
pintada, embandeirada, pronta para a festa e
para a procissão. No dia que o barco levaria
dezenas de fiéis o marinheiro responsável
pelo motor não apareceu, quem precisou
cumprir esta função foi ela.
A esposa do marinheiro que ia no leme.
As crianças foram com o pai pro leme, e ela
ficou no motor atenta a cada toque da sineta,
direcionando ele de acordo com que o mestre pedia. “Fiquei com medo, mas, no fim
deu tudo certo.” Nas lembranças da senhora
dos cabelos brancos está claro a beleza que
tinha aquele leme, de madeira e com detalhes em dourado.
Lembranças também têm Seu Edo, sobre
as festas de Navegantes em Rio Pardo. “Naquele tempo era uma maravilha, nem dá pra
falar”, as festas eram na Praça da Matriz e
depois passaram para a beira do rio. Hoje já
se perdeu esta tradição, da época boa ficaram
as lembranças, poucos registros concretos.
As fotos em má qualidade não guardavam o
colorido das bandeirinhas de papel, que enfeitavam os barcos. Para saber, do longínquo
tempo em que tudo chegava pelo rio Jacuí só
conversando. E pelos relatos, imaginando, colorindo, montando cenas.
33
JOSÉ ALENCAR TRANSFERE
GABINETE PARA HOSPITAL
A SESSÃO FAKE E TROLLEIRA DA EXCEÇÃO
textos s
Pedro Garcia & Joel Haas
Alencar se mostrou simpático à ideia, uma
vez que desde o primeiro ano de governo, tem
passado cerca de 76% do tempo no local. Segundo relato de pessoas próximas, ele já deu
indícios de que sequer se recorda de como é
sua sala no Palácio do Planalto. Na esteira do
pacote, o governo abriu edital para concurso
de assessores diretos para Alencar. O pré-requisito é a graduação em curso de Enfermagem. “Gosto do Sírio-Libanês, é um ambiente
leve onde me sinto bem”, disse, assim que recebeu a oitava alta do mês.
EM SANTA CRUZ
CAP. NASCIMENTO
PEDE PRA
MENORES
SAÍREM DO
CINEMA
s antônio cruz/abr
Considerado um dos 183 milhões brasileiros mais influentes de 2009 pela revista da
Turma da Mônica, o presidente do STF Gilmar Mendes formalizou essa semana o pedido de seis meses de recesso como ministro,
para dedicar-se a sua empresa Triturator. Isso
porque, segundo ele, a organização está encabeçando uma revolução no mercado com o
RAPIDINHAS DO CURSO DE
COMUNICAÇÃO DA UNISC
Turbulência na Seacom. O jornalista Augusto Nunes recusou-se a palestrar na segunda
noite do evento. Segundo informações, ele
teria se irritado com o tratamento recebido
ao chegar ao campus, em função da greve
das RPs da Agência A4, que se arrasta há um
mês. As monitoras se recusaram a servir cafezinho e balas ao palestrante.
s divulgação
Ainda segundo relato de testemunhas,
Nascimento teria ameaçado o jovem com
um saco de pipocas, do tipo longa-metragem, que comprou antes da invasão – as
pipocas teriam sido ingeridas em um
momento de distração, quando ele viu a
si mesmo na telona. Concluído o trabalho, o Major adquiriu ingresso para a préestreia de Harry Potter.
34
O Governo estima uma economia de 2,5
milhões de reais ao ano, uma vez que o transporte de Alencar, do Distrito Federal a São
Paulo, em função das internações semanais,
não será mais necessário. Questionado sobre
o assunto durante viagem ao Sudão, no continente africano, o presidente Lula disse não
saber de nada.
Empresa de Gilmar Mendes
lança triturador de diplomas
O esquadrão do Batalhão de Operações
Especiais invadiu duas salas de cinema
de Santa Cruz do Sul essa semana. O
BOPE foi chamado do Rio de Janeiro pelo
Ministério Público da cidade a fim de retirar os menores de 16 anos das sessões
do filme Tropa de Elite 2, respeitando a lei
da censura. Num dos diálogos travados
com um adolescente de 14 anos, que havia entrado pela tubulação do ar condicionado, o agora Major Nascimento, que
liderava a operação, teria se irritado com
a resistência do garoto. “O senhor é um
fanfarrão”, repetia.
As “invasões do bem”, como são chamadas estas operações, fazem parte do
projeto Evitando as Sementinhas do
Mal, no qual o BOPE visita escolas e entidades para conscientizar os jovens dos
malefícios de se burlar a lei.
Pela quantidade de sessões de radioterapia
a qual Alencar já foi submetido, os visitantes
e transeuntes têm de usar capacete e roupa
resistente a radiação para entrar no quarto.
“Não me importo mais com as roupas especiais. Acho que ajudam na higiene, inclusive”, revelou. “Me sinto um super-homem!
Porém sou resistente a radiação. Já ele, qualquer pepita de criptonita já causa um enorme
estrago”, finalizou o vice-presidente.
s ricardo stuckert/abr
Pressionado pela oposição, o Governo Federal
anunciou hoje um pacote de medidas para cortar
gastos correntes. Uma das propostas foi a transferência definitiva do gabinete do vice-presidente José Alencar para o quarto 287, do terceiro
andar do Hospital Sírio-Libanês, em São Paulo.
O motivo da greve é a demora na entrega
do açucareiro prometido pelos atuais coordenadores ainda durante a campanha do
ano passado. Segundo relato da secretaria
Inês Regina, que escondeu-se nos galhos
de uma das árvores entre os blocos 14 e 15,
durante o incidente, Nunes teria deixado
o campus gritando às monitoras grevistas:
“Jornalista que é jornalista não faz nada
sem salgadinho e café!”. O alvoroço foi tão
grande que um casal de alunos que dormia tranquilamente na Agência de Jornalismo acabou despertando.
***
A Polícia divulgou hoje a causa da morte
de um professor de Jornalismo Impresso
da Unisc, ocorrida na semana passada.
Ele teria sido esmagado pelos incontáveis
troféus conquistados pelo Curso de Comunicação no prêmio SET Universitário.
O incidente teria acontecido no momento
em que o docente tentava carregar todos
os troféus sozinho para o seu carro no estacionamento do bloco 20. Emocionada, a
esposa, que também é professora, relatou
que não presenciou o momento da morte
pois estava fazendo chimarrão enquanto
dirigia pelo centro.
lançamento do primeiro Triturador de Diplomas Automático. O produto é destinado a todos os profissionais de áreas desimportantes
da sociedade, como costureiros, cozinheiros,
professores de educação física e jornalistas.
“Será um ótimo presente para se dar em formaturas”, sorriu Mendes.
O sócio de Gilmar Mendes na empresa
Triturator, Daniel Dantas, se mostrou muito
contente com o novo empreendimento: “É
uma opportunity e tanto!”.
Mendes disse ter a intenção de acabar com
todos os diplomas do País até o final de 2011.
Porém, a engenhoca não ficaria obsoleta. Sobre as utilizações futuras de sua invenção,
ele se mostra otimista. “Depois dos diplomas
vamos nos dedicar à trituração de todas as
folhas de abaixo-assinado do Ficha Limpa do
Brasil”, explicou. “Afinal, o povo não é soberano nas democracias constitucionais”, finalizou o jurista.
Na mesma sessão em que anunciou o recesso, Mendes revelou que William Bonner será
a estrela dos comerciais do produto na televisão. Ele aparecerá segurando seu diploma de
graduação em Publicidade e Propaganda na
USP e repetindo a frase: “Esse produto é especial para quem deveria ter cursado Direito
ou Medicina”. A notícia foi dada em primeira
mão pelo Jornal Hoje de ontem. Sandra Annenberg e Evaristo Costa não pararam de sorrir um segundo.
35
multiculturalismo
Ela veio de longe, trazendo bagagem pesada, toda sua vida nas malas. Com vestimentas diferentes, hábitos e costumes diferenciados. Deixou para trás seus parentes, amigos
e trabalho. Atravessou mundos. Passou pelo
Mediterrâneo, Europa e sobrevoou o Atlântico, viajando 18 horas de avião na primeira
vez que saiu de seu país natal. Desembarcou
no Aeroporto Internacional de Guarulhos
sem saber falar uma palavra em português e
acabou se instalando em uma pequena cidade do interior do Rio Grande do Sul.
Aposentada, imigrante, muçulmana que
cultiva as tradições árabes, Salwa Abdel Jamil, 60 anos, nascida na cidade de Salfit, no
Território Palestino, é viúva, foi casada com
o comerciante Mustafá Hasan e mora no Brasil há mais de 32 anos. Inicialmente morou
em Santana do Livramento. Dois anos depois instalou-se em São Luiz Gonzaga, onde
permaneceu por cinco anos. Após mudou-se
para São Borja, onde passou mais três anos.
Salwa conta que, como eram comerciantes,
mudavam-se em busca de um lugar com
mais movimento e que estivesse localizado
na fronteira. Depois de São Borja foi a vez de
brasileiros. Alguns acham que, em seu país,
as mulheres não podem trabalhar, o que não
é verdade, pois ela mesmo era costureira, e
depois de casada trabalhou no comércio de
roupas com seu marido. Hoje, suas irmãs que
vivem na Palestina também trabalham, duas
como professora e outra no comércio. “A falta
de informação sobre outras culturas leva as
pessoas ao preconceito”, afirma com sabedoria.
Sentada na sala de estar, em um sofá, fumando uma narguilé sabor de hortelã, ao lado
de seu filho, revela que seu marido também
era natural de Salfit e que saiu de sua cidade
para o Brasil em busca de uma vida melhor.
Logo após fazer sua vida como comerciante,
voltou ao seu país para casar-se com ela. Entre o noivado e o casamento, passou apenas
uma semana. A festa começou um dia antes
da cerimônia, em sua casa, com comes e bebes, onde pintaram com henna vermelha suas
mãos – é tradição dos árabes pintar as mãos
da noiva antes do casamento para embelezar e dar sorte. As responsáveis em aplicar a
pintura na noiva são as mulheres convidadas
para a cerimônia. Em Salfit, cidade com aproximadamente 13 mil habitantes, acontecem
[Ela estava] sentada na sala de estar,
em um sofá, fumando um narguilé
sabor de hortelã ao lado de seu filho
Porto Xavier. Este caminho lhe trouxe até
Santa Cruz do Sul, onde mora há aproximadamente meio ano. Com lágrimas nos olhos,
relembra algumas das experiências.
Na Palestina, trabalhava em uma pequena
indústria de costura, com oito amigas. Seu
marido, Mustafá, viajou do Brasil para se
casar com ela. Conheceu-a em um vídeo de
casamento trazido por um amigo de Salfit, e
pediu que os pais mandassem uma foto por
correio. Chegaram a se comunicar por cartas.
Atualmente, em nosso país, percebemos a existência
de várias culturas. Em Santa Cruz do Sul, a cultura
predominante é alemã. Entretanto, a cultura árabe se
faz presente através de uma pessoa especial
reportagem e fotografia s
36
Fátima Hadi
de três a quatro casamentos por semana, entre maio e agosto de cada ano.
Assistindo ao jogo do Grêmio na televisão
com seu filho, recorda que, antes de vir, lá na
sua terra se falava muito em futebol e principalmente em Pelé, que lá também é um ídolo.
E no mesmo ano em que veio para o Brasil,
Pelé se despediu dos campos.
Logo após o casamento, vieram passar a
lua de mel e morar definitivamente no Brasil. Ao embarcar e deixar seu lar, seus familiares e amigos, chorou muito. Não queria ir
embora, mas, como estava casada, teve que
acompanhar o marido. Sem ter noção do seu
futuro confiou no companheiro e veio desbravar um universo totalmente estranho aos
seus olhos.
Vaidosa, com as unhas pintadas, usando
um vestido típico bordado a mão, trazido da
última vez em que esteve na terra natal, há
dois meses, relembrou os primeiros momentos no Brasil. As dificuldades em se comunicar e se relacionar eram muitas. Costumava
pedir as coisas através de mímica, mas aprendeu rápido a conviver com todos estes obstáculos e superá-los. Aprendeu a falar o português com as funcionárias da loja e assistindo
televisão. Começou a conhecer o dinheiro
brasileiro no ofício do comércio.
Sofreu na pele o preconceito em relação
às mulheres de origem árabe por parte dos
Sobre as vestimentas, informou que no
cotidiano usa sempre trajes longos, vestidos,
37
calças e blusas de manga comprida, sempre com lenço na cabeça, tanto no inverno
quanto no verão.
Mãe de quatro filhos e avó, gosta muito de
receber bem suas visitas, oferecendo um cafezinho árabe. Este é feito de uma maneira diferente do normal, em uma caçarola especial.
Na caçarola vai a água, pó de café e açúcar,
e é levado ao fogo. Deve-se mexer até o café
começar a ferver. É servido em xícaras bem
decoradas. Para quem quiser, Salwa ainda lê a
sorte através da borra do café. A pessoa que tomou deve movimentar circularmente a xícara e o pires para que a borra também se mova.
Finalizados os movimentos, a pessoa gira a
xícara, deixando-a de cabeça para baixo no
pires. A pessoa que irá interpretar o resultado
deve abri-la. Abrir, nesse caso, significa retirá-la do pires e começar a ler a sorte. Se a xícara
grudar um pouco, isso quer dizer que vem
boa sorte e fortuna. A minha não grudou.
Quando perguntada sobre como rezava,
retira-se ao seu quarto, abre uma gaveta e
puxa um tapete dobrado, além de suas roupas especiais para oração. Para rezar, ela usa
um lenço comprido diferente do costumeiro e um vestido de algodão longo, que pode
ser estampado ou liso. Estende o tapete no
chão para o leste, que é a direção da Meca, e
começa a rezar.
Os muçulmanos consideram a Caaba, ao
centro da grande mesquita de Meca, o lugar
mais sagrado da Terra. A religião muçulmana entende que os patriarcas Abraão e Ismael construíram o santuário sobre os primeiros alicerces postos por Adão. Todos os
muçulmanos do mundo rezam nesta direção e, todos os que não tiverem um sério impedimento, deverão peregrinar à Meca, pelo
menos uma vez na vida. Os fiéis permanecem
neste lugar vários dias, celebrando rituais.
De pés descalços e roupas adequadas ela
começa a rezar. Inicia de pé e logo após se
abaixa em frente ao tapete e logo em seguida de joelhos e assim vai intercalando.
“Rezo cinco vezes ao dia, todos os dias e
sempre no horário correto.” A oração dura
de cinco a seis minutos.
38
Salwa relata que durante o Ramadã, o
jejum é rigoroso e tem duração de mais ou
menos 30 dias. Não se pode comer e beber
durante o dia e as refeições noturnas são
fartas. No dia que acaba o Ramadã é comemorado o Eid, uma das maiores festas do
mundo árabe, em que são servidos doces e
as pessoas se presenteiam. O Ramadã não
possui data certa para começar, depende da
lua. Este ano começou no início de agosto e
terminou trinta dias depois.
A religião muçulmana acredita que Alá
(Deus) revelou os primeiros ensinamentos
do Alcorão ao profeta Maomé em um mês,
o nono do calendário muçulmano, período
especial e sagrado para os adeptos de todo
o mundo. Pode ser considerado um período
para reflexão e devoção a Alá. Durante 30
dias, do nascer ao pôr do sol, ficam em jejum, e também sem bebida, fumo e sexo. A
tradição também proíbe calúnias e fofocas,
perfumes e até mesmo sentimentos como
ira, ou olhar para alguma coisa ilegal. Salwa
diz que jejuar durante o Ramadã traz o perdão de pecados.
A brasileira naturalizada estranhou os
hábitos alimentares quando chegou, como o
churrasco e o feijão preto, que fazem parte da
tradição e cultura gaúcha e que não existem
em seu país de origem. Hoje, o seu prato preferido é o churrasco.
O que ela mais tem prazer em fazer é cozinhar. Ela prepara a comida todos os dias
para seus três filhos e sua nora que moram
com ela. Gosta de preparar pratos típicos
da culinária árabe, apesar de alguns serem
bem trabalhosos. Suas receitas árabes preferidas são kibe frito, esfiha, malfuf, kafta no
espeto e macluba.
As marcas de expressão em seu rosto
mostram a força de vontade e a luta por todos esses anos no Brasil, longe de sua terra natal e de seus parentes que vê de sete
em sete anos. Esse é o tempo que leva para
se programar e visitar a família. Quando
volta ao berço, carrega consigo um pouquinho do que não existe lá: sagu, leite
condensado e feijão.
na cozinha
de salwa
Esfiha
Ingredientes
Massa: 1 kg de farinha, 1 colher de fermento, 1
colher de sal, 2 ovos, 2 xícaras de leite, 2 xícaras de água morna, 1 colher de açúcar, 1 colher
de nata e 2 colheres de azeite
Recheio: 800 g de carne moída, 2 tomates, 2
cebolas e tempero verde
Modo de Preparo
Misture os ingredientes da massa e deixe descansar
para que ela cresça. Após corte em pedaços pequenos e abra com a mão. Fritar a carne e depois
acrescentar o tomate, a cebola e o tempero verde.
Fechar cada pedaço de massa com uma colher do
recheio. Colocar para assar no formo pré-aquecido
por 10 minutos na temperatura 150 graus.
Kibe Frito
Ingredientes
Massa: 500 g de trigo e 800 g de carne
Recheio: 800 g de carne moída, 2 tomates, 2
cebolas e tempero verde
Modo de Preparo
Moer a carne com o trigo da massa. Depois,
fritar os ingredientes do recheio. Pegar a massa e modelar com as mãos. Fazer um buraco
no meio e rechear. Fechar em formato de
cone. Fritar com azeite bem quente. Servir
com limão, pimenta e mostarda.
Malfuf
(charuto de folhas de reponho recheadas)
Ingredientes
1 cabeça de repolho, 500 g de carne, 2 xícaras de
arroz, 2 tomates, 2 dentes de alho e tempero verde
Modo de Preparo
Cozinhar as folhas de repolho em uma panela
com água fervente. Tirar da água e reservar. Misturar a carne moída ou picada, tomate, tempero
verde, alho e arroz. Logo após pegar uma folha de
cada vez e enrolar com o recheio como se fossem
panquecas. Quando estiverem todas enroladas
colocar em ma panela com água e cozinhar por 40
minutos. Retire da água e sirva em uma bandeja.
39
mundo animal
O TRISTE FIM DE UM
AVE STRUZ
Para uma ave exótica como o
o abate acontece aos doze
O avestruz é um bicho exótico de origem
africana. O que o difere de outras aves é o
tamanho. Ele pode chegar a até 2,5 metros
e pesar 150 kg. Mas quem pensa que vida de
avestruz é moleza está enganado. A pequena
ave que nasce daquele grande ovo nem imagina o triste fim que vai ter pela frente quando virar adulta. Se a única certeza que temos
é a morte, o pobre avestruz nem faz ideia por
tudo que vai passar para concluir seu ciclo ou
destino, pois afinal, foi para isso que ele veio
ao mundo. Na propriedade da criadora Dirce
Eulean, 36 anos, em Rio Pardinho, interior de
Santa Cruz, a realidade não é diferente. O sol
ainda está nascendo quando chega o caminhão junto às terras. Um a um, os avestruzes
começam a embarcar. E a viagem é só de ida.
Os trinta minutos por tortuosas estradas de
chão levam até o Frigorífico Gassen, em Linha Nova. O abatedouro é especializado em
bois e porcos mas cede a estrutura para o abate dos avestruzes.
Rosibel Fagundes
fotografia s Luana Backes
reportagem s
40
Ao descer do enorme caminhão boiadeiro,
a ave arredia e territorialista – como o avestruz é conhecido – torna-se frágil nas mãos
da criadora que agora usa trajes brancos. É
ela, com o auxílio de outros funcionários,
que vai por fim à vida dos animais. E a cena
é chocante. Aliás, é uma descarga elétrica
a responsável por dar fim aqueles doze breves meses de vida – tempo que leva para o
avestruz, a morte chega cedo:
meses de vida
animal atingir os 90 kg e ficar pronto para
o abate. Já sem vida, o avestruz é pendurado
com os pés para cima e perde a cabeça. A degola serve para retirar todo o sangue da ave.
E não adianta ter pena, pois as penas são as
próximas a deixar o corpo. O bicho então,
que perdeu a cabeça, deu sangue e não teve
pena, agora perde o couro que, em breve, vai
se transformar em caras bolsas de madame.
Agora, o roteiro lembra Jack, o Estripador, já
que vamos por partes. E as partes do avestruz
são separadas de acordo com os cortes exigidos
pelo mercado. Cada pedaço é embalado e leva
o selo da BRASTRUZ Comércio de Carnes. Antes de seguir para a venda, a carne precisa permanecer refrigerada de 24 até 48 horas para
congelar. Após o processo, as embalagens são
enfim encaminhadas para a comercialização
no Supermercado Miller ou vão diretamente
para os restaurantes, onde viram pratos exóticos e suculentos.
Aos poucos, o produto começa a ganhar a
preferência de muitos consumidores. A carne
é rica em ômega 3, além de possuir menos colesterol e baixo teor de gordura, se comparada com os cortes de gado ou de suíno. O preço
do quilo do avestruz varia entre 22 e 32 reais
nos supermercados de Santa Cruz. O mercado só não é maior por algumas dificuldades.
“Falta uma liberação especial dos rótulos nos
produtos para que a venda ocorra para fora
do município e não temos um abatedouro
especial, sem contar os custos altos com funcionários para manter as aves”, comenta a
produtora Dirce Eulean.
De volta ao frigorífico, outro caminhão
começa a ser carregado. Não de carne, mas
sim da pele do avestruz. A viagem desta vez
é até Estância Velha, onde o material vai ser
curtido e tingido em um curtume da cidade.
Pronto, o couro vai servir de matéria-prima
para a confecção de diversos itens como sapatos, cintos, carteiras e roupas. Para se ter uma
ideia, somente uma bolsa feita com a pele do
avestruz pode ser encontrada no mercado por
preços que variam de R$ 650,00 a R$ 5.000,00.
Uma das entidades que reaproveitam partes
da ave é a Associação de Criadores de Avestruzes dos Vales (Acav). Sérgio Klasener, que reside em Porto Alegre e é associado da entidade,
utiliza o couro da ave para produzir sapatos.
Cada par pode custar R$ 250,00. Já as botas
saem por R$ 500,00. A venda ocorre desde 2005
na região. “O produto é diferenciado e possui
um alto valor agregado. Só quem conhece a
qualidade sabe dar valor às peças”, comenta.
Um dos diferenciais do avestruz é que praticamente todo o corpo pode ser usado para
alguma finalidade. Os cílios viram pincéis, os
ossos da canela se transformam em cabos de
facas e a gordura é usada na fabricação de cos-
méticos, enquanto a casca do ovo abastece o
artesanato e ajuda na criação de obras de arte.
O período de reprodução do avestruz é de
março a setembro. A postura ocorre apenas
em períodos em que não há chuva, uma vez
que os ovos são colocados em buracos coletivos feitos na terra, de onde são retirados e
levados para uma sala especial. A gestação
é de 42 dias, sendo 39 de incubação e 3 no
nascedouro. O processo inicia com a armazenagem dos ovos em uma temperatura de
18° graus, na primeira fase. Em seguida, eles
vão para o nascedouro, antes de irem para a
chamada “maternidade”. Neste local, existe
uma adaptação em forma de círculo para que
o filhote aprenda a andar somente nesta forma e também para não esmagar os demais.
O aquecimento é de 30° no primeiro dia e 28°
no segundo. Após três semanas, os filhotes
seguem para um local chamado de “cria”,
onde permanecem até os três meses de vida.
O período de engorda segue até que a ave
complete um ano e tenha 90 kg. Isto indica
que ela está pronta para o abate. Os animais
reprodutores são colocados em cercados diferentes. O valor de um casal de avestruzes
reprodutores pode chegar a R$ 10.000,00.
Já o custo mensal de um animal atinge R$
250,00, sem levar em conta a ração e a mão
de obra de um funcionário, pois as aves são
alimentadas três vezes por dia.
41
crônica
NÓS CHAMAMOS
DE EXCEÇÃO.
texto s
Carolina Biscaglia
Tenho uma mania. Não sei se pode ser
considerada um defeito ou uma virtude,
se bem que não vejo nenhuma vantagem
em ter esse costume. Toda vez é a mesma coisa, meus olhos já estão treinados:
quando vejo uma pessoa, meu primeiro
olhar é direcionado.
Observo rapidamente e logo em seguida fico tímida pela indiscrição, mas já é
um costume. E se, por algum motivo, eu
não consiga ver, fico desesperada. Faço
de tudo: me abaixo, vou um pouco para o
lado, chego mais perto, mas por nenhuma
circunstância posso deixar de observar.
s carine immig
UMA REVISTA
QUE CONTINUA
NA INTERNET.
Manias minhas,
minhas manias
Minha mania já faz parte da minha vida,
virou um hábito. Enquanto obser vo, faço
o máximo para que a pessoa note que eu
não estou olhando, então disfarço. Mexo
nos cabelos, ato meus cadarços, roo as
unhas, tudo para parecer normal.
Ver o que as pessoas usam nos pés faz
parte da minha vida. Não deixo passar
um. Cruzou meu caminho, passou na
minha frente, lá estão meus olhos direcionados para os pés do cidadão. Observo todos, desde chinelos a botas. Aliás,
acho que o calçado é capaz de definir a
personalidade da pessoa.
Sei que o dono do tênis branco é caprichoso ou não. E sem ao menos conhecer
a pessoa, fico sabendo se ela é clássica ou moderna. O tamanho do salto, o
formato do sapato, a cor dos cadarços,
o material do calçado. Tudo conta para
que eu possa julgar a pessoa.
Para ver o que só o repórter viu, fotos e vídeos
exclusivos e redescobrir suas histórias favoritas
desta e das edições anteriores, acesse:
s hipermidia.unisc.br/excecao
42
Não sou louca, nem podólatra. Apenas
gosto de ficar pensando por qual motivo
a pessoa escolheu aquele sapato, naquele dia. E brincando de adivinhar personalidades pelo calçado, quando conheço
a pessoa realmente, acabo acertando na
maioria das vezes. De agora em diante,
você já sabe: cruzou por mim, certamente olharei seus pés.
43
vida religiosa
OSVALDO DECIDE
SER DIFERENTE
Viver em Cuba não é algo simples.
Em uma cidade pequena de certo país tropical,
um homem realiza a sua missão e se torna padre
reportagem e fotografia s
Esmeralda é um município daqueles bem
típicos do interior gaúcho. Um lugar onde os
ponteiros dos relógios são preguiçosos e o silêncio faz parte do cotidiano. Onde é possível
diminuir os passos alguns instantes para ver
o arrebol. Mas também é um reduto onde a
natureza espreguiça seus albores logo cedo.
A pressa pega um atalho e não passa por lá.
Os homens cuidam de criações e plantam lavouras. As mulheres têm suas lides caseiras
de todo dia. É lugar de povo católico, que não
dispensa as missas na Igreja Matriz e nas festas de santo.
Neste cenário vive o padre Osvaldo Carballosa Gonzáles, 41 anos, que se tornou
padre muito recentemente. A ordenação diaconal aconteceu em janeiro de 2010. Desta
data, foram mais seis meses de trabalho pastoral até a ordenação sacerdotal, em julho de
2010, o que possibilita o exercício da função
de pároco. E entrou para a história. Esta foi a
primeira ordenação feita na Matriz São João
Batista, em Esmeralda. Através do bispo da
diocese de Vacaria, Dom Irineu Gassen, Padre
Osvaldo chegou à pequena cidade.
Para os fiéis, a mudança foi súbita. O principal detalhe era o sotaque carregado. Nas
celebrações, a fala em português emitida
com jeito cubano. Trocar o Caribe pelo interior do Rio Grande do Sul não é das tarefas
mais fáceis. A adaptação é progressiva. “No
Brasil, poucas pessoas têm domínio do espanhol e aprender o português se transformou
em obrigação”, diz ele. Na chegada ao Brasil,
passou por um momento curioso. Estava
acompanhado de um frei chamado Afonso
44
João Caramez
Costera, atual pároco em Vila Flores, que era
brasileiro, mas estava há muito tempo fora do
país. Por isso, Osvaldo acreditou que estava
seguro quanto ao idioma. Quando desceram
no aeroporto, “frei Afonso não conseguia falar nenhuma palavra em português. Depois,
nas primeiras missas, rezava um pouco em
espanhol e um pouco em português. Era muito engraçado”.
Em uma visita que fez a uma devota, o
idioma trapaceou novamente. A dona da casa
disse a ele: “Já vai? Mas ainda é cedo!”. Ele não
sabia o que era “cedo”. Apenas quando procurou no dicionário, mais tarde, é que descobriu
que significa “temprano”. Outra palavra que
rendeu história foi “esquisito”, quando se tratava de comida. Só depois de um tempo é que
descobriu que era algo ruim. Hoje o problema
foi superado. Osvaldo fez estudos que possibilitaram o domínio do idioma. Nos Campos
de Cima da Serra, o inverno rigoroso é outra
dificuldade que precisou ser superada.
Além disso, o positivo é a culinária. “Em
países como a Espanha e o México, o cardápio é muito variado, com muito tempero e
são comidas mais fortes. Aqui foi fácil de se
adaptar. A alimentação é muito boa, com destaque para o churrasco e a farofa que são deliciosos.” Sobre o povo de Esmeralda, Osvaldo
destaca o jeito peculiar das pessoas. São muito identificados com sua cultura e enraizados
em suas tradições. “É pitoresca, existe a mística da lida com o gado, os rodeios. A mistura
de raças é grande: tem italianos, caboclos,
alemães, luso-brasileiros. Gosto muito de
estar neste lugar. A cultura da bota e bomba-
cha. Estou recebendo com muita curiosidade
e carinho. É o que define as pessoas daqui.”
Ainda não aprendeu a fazer chimarrão, mas
sempre sorve o amargo quando lhe oferecem. “A simbologia dele é especial, quando se
passa de mão em mão, criando um ambiente
de conversa”, diz ele. O vinho, característico
da região serrana, só na missa por seu valor
teológico. “Em Cuba, o clima não é propício
para plantar uva. O vinho por lá é importado
e custa caro.” O que gosta mesmo é de café.
Costume que vem de família, não toma menos do que oito vezes ao dia. Preto e bem forte.
Como de costume, nos lugares pequenos
a relação com a Igreja é muito forte. Osvaldo
aponta que “as pessoas acreditam realmente
em Deus, têm mais crença do que em outros
lugares que já passei. É difícil quando trabalhamos com pessoas que acreditam em muitas coisas”. Além disso, outra característica
que ele pode verificar é que os devotos têm
entendimento do sagrado e possuem muita
fé. Uma coisa bonita são as festas religiosas
que movimentam as capelas do interior. Estar longe da família é mais um desafio. Ainda
mais quando se trata de distâncias intercontinentais. Osvaldo supera “com alegria e coração aberto. O trabalho nas 28 comunidades
que sou responsável me conforta por estar no
exercício da missão para qual fui destinado”.
Ele pode ir a Cuba, mas apenas de visita, já
que agora pertence à diocese de Vacaria. Apenas sairá da região se a igreja destiná-lo a uma
missão, por exemplo.
vida em cuba
Cuba vive sob ditadura militar há 51 anos,
desde a Revolução Cubana, em 1959. A partir
desta data, Fidel Castro governou o país até
2008, quando o seu irmão, Raúl Castro, assumiu o cargo em uma eleição com candidato
46
único. É o regime mais antigo da América
Latina e hoje é o único país socialista do Ocidente. Osvaldo Carballosa González nasceu
na cidade de Holguín e viveu até a adolescência na região, que fica a 760 quilômetros da
capital Havana. Filho de artesãos, o pai ainda
era taxista (empresa de táxi estatal) para incrementar a renda da família. Hoje são aposentados. Seu único irmão vive em Cuba.
Na infância, os jogos de beisebol com os
amigos eram comuns. Não era muito apegado ao esporte, mas na escola era obrigado.
Brincava na rua de peão e de bola também.
Sempre gostou muito de desenhar. Até hoje,
o gosto pela arquitetura se manifesta nas
horas vagas. Plantas que contém paróquias,
altares e outros motivos religiosos ganham
forma na ponta do lápis. É uma forma de
descarregar a carga de estresse. Em algumas
ocasiões, chega a realizar cinco missas em
um único dia.
Osvaldo tinha vontade de ser arquiteto,
entrar em alguma faculdade para ser profissional da área. Mas não conseguiu e começou
a trabalhar como operário. Com o amadurecimento, percebeu as dificuldades de ter um
estilo de vida condicionado. Foi aos 22 anos
que ingressou na vida religiosa. A liberdade
é o desejo maior dos que vivem nas condições
impostas pela soberania absoluta. O elemento de contestação do regime é a fé.
a saída de cuba
Nessa época, entrou no Convento dos Padres Carmelitas Descalços, onde foi seminarista durante um ano e meio. Depois, transferiu-se para Valência, na Espanha, onde ficou
mais um ano. Então, o próximo destino foi
um Convento de Padres Carmelitas em Santo Domingo, na República Dominicana, por
mais dois anos. Neste período, passou a ser do
Clero Diocesano e concluiu os seus estudos
nas áreas de teologia e filosofia. A formação
foi feita no Centro Diocesano dos Padres Dominicanos, uma sucursal da Faculdade de
Salamanca, na Espanha, que é uma das mais
conceituadas da América Latina. A amizade
com os irmãos de hábito da época do seminário
segue até hoje. Ganharam o mundo alguns
deles. São padres em vários países. Outros
não chegaram a ser ordenados.
Os padres capuchinhos, brasileiros do
Rio Grande do Sul, estiveram na República
Dominicana como missionários. E Osvaldo
teve um contato muito grande através das
missões, nas quais recebeu acompanhamento espiritual. A partir desta aproximação, houve o convite: “Se não der certo em
Cuba, serás muito bem recebido pela ordem
no Brasil”.
A Confederação dos Bispos Católicos de
Cuba decidiu que os seminaristas que estavam estudando fora do país não teriam o
direito de regressar para serem ordenados e
exercerem o sacerdócio em Cuba. O regime
limita a liberdade. A justificativa é de que viriam com outra mentalidade, seriam contestadores do regime. A vontade era ir de encontro ao regime, questionar as ações.
a chegada ao brasil
Com isso, Osvaldo decidiu que a proposta
dos capuchinhos brasileiros era a melhor saída
para que pudesse seguir sua caminhada religiosa. Após conversar com os membros da ordem
no Brasil, encaminharam a sua ida para a paróquia São Paulo Apóstolo, de Lagoa Vermelha.
Pela carta de um bispo, foi recebido por Dom
Orlando Dotti. Depois de sua chegada, em janeiro de 2008, foram dois anos de estágio pastoral.
Padre Osvaldo surge na porta da igreja
com sua batina verde, rodeado de coroinhas, mas a razão da cor não é uma escolha sua. Dentro do catolicismo, há muitos
séculos existem cinco cores litúrgicas que
compõem a vestimenta do sacerdote. Verde
é para o tempo comum. O preto se usa no
luto, o branco para festas religiosas e com
detalhes azuis quando se refere à Virgem
Maria. O roxo é para confissões, quaresma
e advento. Nas referências ao Espírito Santo, Paixão de Cristo e santos mártires se
usa vermelho.
Um terço é objeto de sua adoração. Recebeu de Madre Lúcia, uma das três videntes
de Nossa Senhora de Fátima, em uma visita
à Coimbra, Portugal. Isso foi quando esteve
uma temporada na Espanha e teve o privilégio de vê-la antes do seu falecimento. E teve
por regalo aprender uma música que ela
cantava antes de dormir para a santa. Padre
Osvaldo garante que “daqui alguns anos,
este terço terá enorme valor, pois acredito
que a Madre Lúcia será canonizada”. Outros
momentos são marcantes para ele, como a
visita a Fátima e Ávila, na Espanha, local
onde nasceu Santa Teresa de Jesus.
Osvaldo segue em sua incumbência de
ser o principal representante da Igreja em
Esmeralda. “Cidade hospitaleira”, como ele
diz. Agora vive com a liberdade que não tinha. Continua firme em sua sina de levar
os primeiros ensinamentos aos que ainda
estão no catecismo, a bênção nos batismos e
casamentos da paróquia e a extrema-unção
aos que chegam ao fim da vida. Fora isso,
todos os dias, às dezoito horas na Matriz, Padre Osvaldo estará lá trazendo a palavra de
Deus a todos os que quiserem ouvir.
47
prisão
UMA CADEIA
DIFERENTE
Nas quatro vezes em que estive na cadeia de Cachoeira
do Sul, o que mais me surpreendeu foi o respeito mútuo
entre as pessoas que lá estão e trabalham
reportagem e fotografia s
48
Emilin Grings
Quem entra no presídio de Cachoeira do
Sul logo nota que o local é diferente. Bastou eu dizer que já havia conversado com o
administrador que as portas se abriram, ou
melhor, as grades. Logo na recepção se vê um
longo corredor, ou galeria, como é conhecido
no presídio. É ali que ficam os mais de cem
homens e aproximadamente oito mulheres
do regime fechado. São cerca de 10 celas. Apenas uma é composta por mulheres.
Ninguém pode ficar em frente a esse
corredor, que possui dois grandes portões
gradeados. O agente penitenciário precisa
vigiar os presos. Somente descobri que ali
era a galeria porque perguntei na terceira
vez em que estive lá. Não há como notar.
Quando chegam de alguma atividade, os
apenados até conversam com os funcionários do presídio. Lá dentro há uma relação
de respeito mútuo.
O presídio tem boas instalações. Nada
que compare a um hotel cinco estrelas. Mas
é limpo. A pintura por fora é uniforme, já a
interna possui algumas imperfeições. Logo
na recepção há uma bancada. Computador,
jornais do dia, telefone fazem a composição
do local. Também há um quadro onde são
escritos o número de presos dos regimes fechado, semiaberto e aberto. Esses números
sempre variam. Além disso, a divisão é feita
por sexos.
O que chama a atenção lá é o cheiro. Não
é bom nem ruim, é forte. Parece cigarro. É
uma mistura de tipos diferentes de cigarro.
Esse cheiro marca, mas não é insuportável.
Há vezes em que o odor se dilui com o delicioso aroma da comida, feita pelos próprios
presidiários.
tava ansiosa, com medo. Mas medo de quê?
Não sabia. E para a minha surpresa, a maioria
deles parecia ser normal, vestiam-se assim
como todo mundo. Sim, eles eram normais.
Mas por que não seriam? Preconceitos e mais
preconceitos derrubados. Agora sei qual era o
meu receio. O medo era de encará-los.
Em minhas visitas me ofereceram café,
almoço e até janta. Os funcionários queriam
agradar. Mostravam interesse pela minha
reportagem. Puxavam assunto. Nem parecia
que eu estava em um presídio.
A celebração começa com a participação de
16 apenados. Destes, quatro eram mulheres.
O início é marcado com canções religiosas
contidas em um livro trazido por Seu Arbelo.
Escolhidos pelos apenados, os cantos são entoados de maneira forte e bem afinada, o que
denota que os presos já os conhecem.
momentos de reflexão
Luiz Carlos Arbelo, ou simplesmente, Seu
Arbelo, há mais de 45 anos vai toda a semana ao presídio. Diácono da Igreja Católica,
ele passa toda a quinta-feira de cela em cela
chamando os detentos para participar das
atividades da Pastoral Carcerária. Ele é o único que pode entrar na galeria. Ninguém mais.
Bate de porta em porta, dizendo que Jesus
está chamando eles.
Os presos vão chegando aos poucos na sala
onde ocorrem as atividades religiosas. Todos
cumprimentam Seu Arbelo com sorrisos e
apertos de mãos. Logo depois chegam mais duas
voluntárias que ajudam o diácono: Dona Maria
Tereza Carvalho e Dona Alzira Vieira da Cunha.
Esse foi o primeiro contato direto que tive
com os presos. Minhas pernas tremiam. Es-
Além dos livros de canto, Seu Arbelo também disponibiliza aos participantes uma
folha usada na igreja para que os fiéis acompanhem a missa. No presídio ocorre a Celebração da Palavra – atividade da Igreja Católica semelhante a uma missa, todavia sem a
consagração do pão e do vinho – que começa
com a leitura da acolhida aos presentes.
Quem lê é uma presa. Seu modo de pronunciar as palavras impressiona. A leitura é clara, a entonação correta, digna de alguém que
tem estudo. Sim, ela tem. Débora, condenada
por assalto a banco, é formada em Enfermagem. A detenta participa ativamente de toda
a celebração. “É bom para refletir o que fizemos de errado. Assim a gente não se sente tão
excluído da sociedade. Somos valorizados.”
Assim como Débora, todos os presidiários
confirmam ser de grande importância atividades como aquela. Contam-me da Semana da Espiritualidade, que ocorre todo o ano. Semana
ecumênica em que se realizam palestras, grupos de reflexão, celebrações. Além disso, os apenados recebem mensagens da família. “Nem
parece que a gente está aqui. É muito bom.”
No decorrer da celebração, eles pedem perdão a Deus pelos pecados com muita fé e se
mostram atentos às palavras de Seu Arbelo e
das voluntárias Maria Tereza e Alzira. Como
nos cantos, eles rezam a orações do Pai Nosso
e Ave Maria em tom forte. Percebe-se que há
fé e confiança em cada palavra pronunciada.
uma oportunidade de
voltar aos estudos
Biblioteca. Três computadores. Duas salas
de aula. Paredes bem pintadas. Classes revestidas de tecido verde e plástico transparente.
Embaixo do plástico, mensagens e desenhos.
A estrutura é modesta, mas incentiva os
alunos a estudar. Não estou falando de uma
pequena escola municipal, e sim do Neeja
(Núcleo Estadual de Educação de Jovens e
Adultos) Julieta Villamil Balestro, situado
dentro do presídio. O colégio tem Ensino
Fundamental e Médio, desde a sua fundação,
em 2002. Ali, os apenados podem concluir os
estudos, se assim desejarem.
Sete homens estão na aula da professora
Ana Lúcia. Ela trabalha conteúdos relativos à
quarta série. Nota-se no rosto deles a dificuldade em aprender a calcular contas de multiplicação e divisão e a alegria a cada acerto
confirmado pela professora. Tudo é consequência de uma dificuldade quase infantil.
Nos olhares deles se vê que o aprender é tão
complicado quanto enfrentar a situação em
que se encontram. Homens com média de
idade entre 18 e 29 anos parecem crianças
que há pouco ingressaram na escola.
Já a aula do Ensino Médio ocorre dentro da
biblioteca. Ali, professora e estudantes estão
rodeados de livros didáticos e de literatura,
além de três computadores usados para as
aulas de informática. Não tem parede disponível para pôr o quadro. Este, então, fica escorado na janela em posição vertical.
“A nossa escola está bem melhor do que era
no início. A gente dava aula na cozinha. Não
tinha uma sala especial para o colégio”, lembra a professora de português Kátia Souza.
Apesar das dificuldades, ter o contato com os
presos é muito importante para o aprendizado. “Isso mostra que temos confiança neles.”
A fala da professora é proferida com um sorriso nos lábios. Sorriso de quem ama o que faz.
Nesse momento um apenado interrompe a professora e diz que a casa prisional de
Cachoeira é bem melhor do que as outras em
que já esteve. “Na maioria dos presídios, o
professor é separado dos alunos por uma grade. Isso afasta muito. Aqui o presídio é mais
humano.”
E assim, dia após dia, as professoras cumprem o seu papel de educadoras. Sem medos
e preconceitos, elas levam aos presos o conhecimento que a vida não teve condições de
proporcionar.
o presídio de cachoeira do sul
Fundado em 1959, a cadeia possui, atualmente, diversos projetos que favorecem
uma melhor adaptação dos apenados na
sociedade. Um deles é o PAC (Protocolo
de Ação Conjunta) convênio da prefeitura com a Susepe em que os presos do regime semi-aberto têm a possibilidade de
trabalhar em empresas da cidade.
A cadeia é apontada como uma dos melhores presídios do estado em termos de
ressocialização. “Tudo isso é fruto de um
trabalho em conjunto com o juiz, promotor, administração e funcionários do
presídio e a comunidade.” Orgulhoso,
Rubens Barbosa, administrador substituto do local, me conta que não adianta
ter projetos sociais e o juiz não liberar a
realização deles. Além disso, o presídio
tem que estar aberto aos voluntários.
Outro fator importante para justificar o
destaque do presídio é o respeito que
50
os funcionários procuram ter com os
apenados. “Tratamos eles como gente.”
Rubens afirma que se dependesse de recursos do governo, o presídio seria igual
aos demais. “Sofremos com a superlotação aqui. Por isso temos que fazer de
tudo para que os presos não se revoltem
com essa situação. Temos que proporcioná-los um ambiente agradável.”
No presídio de Cachoeira o Conselho
da Comunidade também tem muitos
projetos. Presidido por Maria Eneida
Neves, fornece materiais de higiene,
cesta básica às famílias dos presos e novos eletrodomésticos, como a geladeira
doada à cozinha recentemente. Para
Maria Eneida, o trabalho realizado por
eles, é preventivo. “Hoje eles estão aqui.
Mas amanhã eles estarão na sociedade
novamente. Se saírem ainda mais revoltados, será pior para a sociedade.”
Além das ações do conselho, o presídio
ainda conta com atendimento médico e
odontológico semanalmente. Também
tem um psicólogo que trabalha lá dentro desenvolvendo diversas atividades
como grupos de autoajuda. Já a assistente social, Eliane Roggia, faz todo o
contato com os familiares do apenados.
“Eles são muito carentes. O que mais os
incomoda é a falta de visita dos familiares. Se há faltas frequentes, sempre procuramos saber o que ocorreu.”
“O presídio daqui é bem calmo. Trabalhei
muitos anos em Júlio de Castilhos. Lá,
apesar de ser menor, os detentos são revoltados.” Assim conta Tiago Tischler, psicólogo. Para ele esse fato se justifica pelos
diversos projetos de ressocialização realizados. “Eu gosto de trabalhar aqui. Demanda
bastante energia, pois a carga emocional
deles é bastante carregada e nós precisamos devolver algo bom para eles.”
“Daqui para frente tenho que ter
uma vida no mínimo correta”
Alexandre Centa até hoje não se conforma
com o crime que cometeu há quase nove anos.
O homem de estatura mediana e boa aparência traz no rosto marcas de uma idade que não
condiz aos seus 31 anos. Condenado a 24 de
prisão por assalto seguido de morte, ele cumpre
a pena em regime aberto, ou seja, trabalha durante todo o dia e vai dormir na prisão. O sobradinhense hoje está casado à espera do primeiro
filho homem. Em entrevista à revista Exceção,
Alexandre se mostrou arrependido do crime que
cometeu e disposto a mudar de vida.
Como vieste parar aqui?
Na época meu pai tinha falecido havia
pouco. Eu trabalhava como caminhoneiro e
roubaram meu caminhão. Estava desesperado e resolvi roubar outro caminhão. Como
não tinha experiência com arma de fogo, acabei matando o caminhoneiro, porque ele reagiu ao assalto. Até hoje não entendo o que fiz.
Tu foste condenado a 24 anos de reclusão.
Mas hoje já está no regime aberto. Como é
que funciona essa progressão de pena?
Eu cumpri 4 anos e 19 dias de regime fechado. Depois que se cumpre um terço da pena,
temos o direito de solicitar, junto ao juiz, a
progressão. Como sempre tive bom comportamento, consegui. Aliás, a minha pena já
não é mais de 24 anos porque a cada três dias
trabalhados aqui, diminui um na pena.
No que tu trabalhaste?
No regime fechado fui chefe de cozinha e
chaveiro. Fiz todo o Ensino Médio de novo
como ouvinte e participei de todos os projetos e oficinas que ocorreram: artesanato,
tear, pintura. Quando progredi para o regime
semi-aberto, trabalhei na prefeitura como
mecânico. Hoje, continuo trabalhado como
mecânico em um areial aqui perto. Também
faço entrega de areia na cidade.
Como foi o tempo que tu passaste no
regime fechado?
É difícil, mas a gente tem a possibilidade de
fazer coisas interessantes para passar o tempo.
Temos tempo para refletir sobre o que fizemos.
Pensar em como fazer diferente para não voltar
para cá. Quem está aqui tem que fazer de tudo
para não querer voltar para cá. Viver diferente.
O presídio de Cachoeira possui algum
diferencial?
Sim. Aqui é feito de tudo para que a gente
saia daqui melhor do que entrou. Há muita
gente para nos ajudar a ser pessoas melhores.
Tu te sentes preparado para retornar à
sociedade?
Sim. Por isso estou tentando a liberdade
condicional. Sei que cometi um erro grave,
mas eu não posso jogar a minha vida fora por
causa deste erro.
51
trabalho noturno
A VIDA DE QUEM TROCA
O DIA PELA NOITE
Acordar à noite e dormir pela manhã. Eles fazem o caminho inverso
da maioria, mas encaram o dia a dia com naturalidade. Descubra a
rotina de quem trabalha nas madrugadas de Santa Cruz do Sul
reportagem e fotografia s
Não é apenas o tom negro da escuridão que
separa a noite do dia. Enquanto a maioria das
pessoas apaga as luzes de suas casas, preparase para dormir e fica na cama, atormentada
com as tarefas do dia seguinte, outras estão
deixando seus lares rumo ao trabalho. Na
noite, um novo dia começa. E acredite: ele
dura mais do que uma simples madrugada.
O sol ainda está se pondo quando Robson
Ebert liga o carro e percorre oito quilômetros do
distrito de Capão da Cruz até a Avenida do Imigrante. O empresário, de 26 anos, jogou-se numa
aventura em junho de 2010: junto do amigo, e
agora sócio, Dionatan Fagundes, inauguraram
um bar 24 horas em Santa Cruz do Sul.
Coisa de louco, pensaram os amigos deles
no início. Mas o movimento noturno, nem
sempre suficiente para deixar as vinte mesas
do bar lotadas, é bom o suficiente para fazê-
Willian Ceolin
los comemorar o sucesso do negócio. Hoje, o
toque pueril das folhas caindo das árvores,
na calçada da Avenida do Imigrante, foi substituído pelo som da televisão ligada nas madrugadas do Bar e Conveniência Abba.
Próximo dali, noite sim e noite não, a corretora de imóveis Alessandra Quoos deixa o
emprego diurno para assumir outra função:
recepcionista no Pronto-Atendimento do
Hospital Santa Cruz. De carro, ela passa quase todo fim da tarde pela frente do bar Abba
rumo ao emprego que equilibra a sua rotina,
como ela mesma diz.
Apesar de não ter formação hospitalar,
a vida de Alessandra é tão agitada quanto a
de um médico ou enfermeiro. É na recepção
que toda história começa dentro do hospital
e cada noite é imprevisível. Pode iniciar com
um senhor que tira o sapato surrado e coloca
sobre a mesa para mostrar algum ferimento
e terminar com o peso de informar o óbito a
uma família que ainda respira o ar da dúvida.
São doze horas assim, das seis da tarde às
seis da manhã. Há duas horas de intervalo
durante a madrugada para cochilar, tomar
café e recuperar as energias. Depois, tudo
começa novamente. Alessandra pega o carro, cochila em casa e retorna para o emprego
vespertino.
histórias da noite
Alessandra gosta da vida noturna no hospital. No tlec-tlec do teclado onde registra as
consultas dos pacientes, a noite passa rápido
para ela e a colega de turno, Patrícia Berle.
Alessandra, 35 anos, e Patrícia, 31, possuem
em comum o fato de se envolverem realmente na profissão que acolheram.
Às vezes, elas sequer precisam perguntar
o nome dos pacientes. Já sabem até a data de
nascimento. Alguns se pegam com tanta
intimidade que logo na entrada começam a
tirar a roupa. Missão para as recepcionistas:
avisar que elas apenas preenchem a ficha
cadastral.
Sono, aliás, que pode ser controlável de
forma doce. Que o digam os quindins degustados pela farmacêutica Mênia Brandenburg
nas madrugadas da Drogaria Santa Cruz. Aos
26 anos, Mênia leva a rotina noturna com
tranquilidade. A única coisa que não pode
faltar são as boas horas de sono à tarde.
Mas nem todas as noites são calmas para
Alessandra e Patrícia. Como personagens de
ficção já passaram por Sherlock Holmes e Dr.
House. Já “prenderam” assaltante ferido quando esse fingiu ser o irmão inocente e também
precisaram lidar com casos graves onde o desfecho foi o inevitável caminho da morte.
Sozinha na drogaria, a farmacêutica já teve
medo de trabalhar durante o turno da noite,
mas o sentimento de proteção do lugar a deixou mais tranquila. Os clientes da madrugada
são quase sempre os mesmos e Mênia os atende apenas pela janela. De bom humor, ela ainda brinca com situação: “Eles baixam a grade
não para quem está fora entrar, é para eu não
sair correndo e deixar a farmácia sozinha”.
O dia delas é a noite sem rotina, a mesma
que o taxista Jordani Hermany percorre todas as madrugadas há um ano.
Na noite, regada por café e chimarrão, ele
apaga o cigarro e parte para uma corrida. Do
banco da frente do táxi compartilhado com
o tio, Jordani é o personagem de várias histórias. Leva cantada das velhinhas animadas
pelo som dos bailões e já ofereceu corrida gratuita em troca de beijo. Episódio, garante ele,
antes de começar o atual namoro. “Cada corrida é uma história diferente”, conta o rapaz.
sem medo, com sono
O medo não incomoda Jordani. Porém, ele
não dispensa alguns cuidados. Na madrugada santa-cruzense, o lema dele é como do
personagem Sancho Pança, de Cervantes: “No
creo en las brujas, pero que las hay, las hay”.
Jordani não tem medo de assalto, mas toma
as precauções necessárias para evitá-los.
Quando desconfia de alguém, sequer para o
carro. Se o faz, enche o suspeito de perguntas.
O fato de jamais ter sido assaltado mostra o
sucesso da receita. O maior problema, para
ele, é mesmo o sono. “É trabalhar e dormir”,
conta com jeito tímido, enquanto se prepara
para outra corrida.
da noite para o dia
Todo mundo teve o mesmo problema
quando trocou a noite pelo dia: adaptar-se à
nova rotina. Embora eles tenham conseguido (e hoje prefiram esse horário) é uma tarefa
que exigiu muito esforço mental. E ainda exige para Gerson Gonçalves. Aos 23 anos, o zelador fez o caminho inverso: voltou a dormir
à noite para trabalhar durante o dia.
O problema de Gerson é que, após três anos
invertendo os papéis, a readaptação foi ainda
mais difícil. Na casa dele, o celular toca. Passam das seis e meia da manhã. O barulho não
é do despertador, é do colega avisando que
Gerson está atrasado.
Ele, que se habituou a chegar em casa às
seis horas, agora precisa levantar nesse horário. Porém, engana-se quem pensa que Gerson reclama. Ele pula da cama, toma um café
rápido e vai para o trabalho. “Nada como o
sono da noite”, conta.
Para ele, o dia voltou a iniciar pela manhã
e acabar à noite. Já para Robson, Alessandra,
Patrícia, Jordani, Mênia e tantas outras pessoas, o pôr do sol é apenas o sinal de que mais
um dia vem aí.
rotina noturna
Robson,
empresário*
20h – Chega ao bar
8h – Deixa o bar
12h – Vai para casa
13h – Hora de dormir
19h – Acorda
* Reveza com o sócio as noites. Trabalha
uma noite sim, outra não. Nos domingos,
um deles trabalha 24 horas diretas.
Mênia,
farmacêutica
0h – Chega à drogaria
7h – Deixa a drogaria, come algo
8h – Chega à drogaria
13h – Almoço
14h – Hora de dormir
20h – Acorda
Alessandra,
corretora e recepcionista*
18h30 – Chega ao hospital
6h30 – Vai para casa, hora de dormir
12h – Acorda
13h30 – Chega à imobiliária
18h – Deixa a imobiliária
* Trabalha uma noite sim, outra não.
Jordani,
taxista
16h30 – Chega ao ponto de táxi
6h – Vai para casa, hora de dormir
14h – Acorda
53
entrevista
Paulo*, ex-soldado do Exército Brasileiro,
viajou rumo à França em busca de aventura
e estabilidade financeira. Deixou para trás
os amigos e a família, incluindo uma filha
reportagem s
“Quer romper com o seu passado, começar
uma vida nova? A Legião Estrangeira lhe oferece uma oportunidade única. Sejam quais
forem as suas origens, religião, nacionalidade, os seus diplomas e nível escolar, sua
situação familiar ou profissional, a Legião
Estrangeira lhe oferece uma nova oportunidade para uma vida nova...” Este é o texto
de abertura do site Légion Recrute, referência
para quem quer saber um pouco mais sobre o
assunto. O site é indicado pela Embaixada da
França no Brasil.
Em 1831, o rei Luís Filipe fundou a legião
para defender os interesses da França. Apesar
de ter ligação com o exército do país, a legião
aceita alistamento de pessoas do mundo
todo. Desde que foi criada, a corporação mantém o costume de permitir que os soldados se
alistem com um nome falso – é a chamada
“identidade declarada”.
Aos 25 anos, Paulo é um legionário. Em
2009, entrou na França como turista. Quando chegou ao quartel, entregou roupa, documentos e passaporte. Após seleções preliminares, testes psicotécnicos, médicos e físicos,
Paulo assinou um contrato e recebeu sua
nova identidade. Hoje, fala francês fluentemente, mas precisou aprender com os colegas
oriundos de países colonizados pela França.
Em entrevista à Exceção, contou um pouco
de sua nova vida.
O que você faz na legião?
Sou paraquedista. Faço parte da equipe especializada em montanha.
Depois de entrar, depois dos treinamentos,
o que se faz?
Os treinamentos nunca acabam.
Qual foi sua primeira missão?
s acervo pessoal
Foi no Afeganistão. Parti no dia 2 de janeiro de 2009. No dia 5 estava instalado. Antes,
recebemos instruções do exército dos EUA
de como proceder com bombas, explosivos,
principalmente os encontrados na rua. No
dia 5, fomos para uma base comandada apenas pela França. Cada país da OTAN tem
uma base, e cada país trabalha sozinho, com
54
* nome fictício
Luana Backes
apoio dos EUA. O apoio dos EUA, geralmente,
é aéreo para as operações terrestres.
Como foi no Afeganistão?
Foi bem interessante. Um país primitivo,
baseado no Alcorão. A força bélica que vem
do Talibã, para o Afeganistão, vem do Paquistão. O armamento é, geralmente, de origem
russa. AK-47 e todos da família Kalashnikov.
Qual a parte mais difícil?
O mais difícil foi o combate, pois se corre
risco constantemente.
Como é o combate?
Atiramos neles, eles atiram em nós (risos).
É só assistir um filme de guerra, é a mesma
coisa. Gente morre, gente mata.
Você já matou?
É difícil saber. Você atira, daqui a pouco
eles param de atirar. Não dá para saber se
aconteceu alguma coisa. E dificilmente você
vai lá pra conferir, porque o combate se dava
em 300 a 400 metros de distância, poucas vezes se deram abaixo disso. Avançar 300 metros em uma vila, não é bem assim, tu tem
que avançar devagar, com apoio. Não vale
a pena, quando você chega lá não encontra
mais nada. No outro dia, o pessoal da inteligência vê os enterros que acontecem na vila,
sabem quem morreu e quem não morreu,
quem está ferido. Você acaba sabendo, até por
ter informantes em ambos os lados.
Já perdeu amigos?
Sim. No Afeganistão morreram três. E 22
ficaram feridos. Da nossa base não teve nenhum morto, mas vários feridos.
O que acontece com os feridos?
Depende do grau do ferimento. Geralmente vão para o hospital em Cabul. O ferido
ganha medalha, cidadania francesa e é promovido.
Durante o combate, quando você dorme?
Isso é normal, pois o Talibã não ataca à
noite, mas no primeiro raiar do sol começam a atirar.
55
s acervo pessoal
Você tem medo de morrer?
Isso a gente sempre tem.
Existe apoio psicológico?
No caso de ter algum trauma, logo se tenta
a inserção do soldado, para evitar que o trauma seja maior. É rápido para chegar ao hospital, no máximo 45 min, pois tem apoio aéreo.
Quanto tempo você ficou no Afeganistão?
Sete meses. 202 dias e algumas horas.
E depois?
Fomos para o Chipre, onde passamos por
uma readaptação para vida social. Lá temos
apoio psicológico, mas não funciona, pois
quando o psicólogo pergunta se tem algo a
dizer, ninguém diz nada. Aí vamos para a piscina ou para a praia relaxar. Um trauma você
não tem como ver dois dias depois de uma
guerra. O psicólogo deu vários exemplos, entre eles: de soldados, que ao retornarem, não
conseguem se adaptar à família, de cinco em
cinco minutos procuram seu fuzil. Isso deve
acontecer, pois ficamos 24 horas armados.
Ouço um barulho parecido com tiro e já fico
alerta, procuro a origem do disparo, e imediatamente me abaixo.
E com barulho de helicóptero?
Não tem problema, porque no Afeganistão
a força aérea era aliada.
Como são as regras?
As regras seguem o padrão de um quartel normal, mas com um nível mais elevado. Quando
estamos em combate não somos importunados.
Como é a rotina de um soldado?
Ir para o combate, voltar, tomar uma cerveja e se preparar para a próxima, que nunca se
sabe quando vai ser.
56
O que vocês comiam?
Comida normal da França, mas quando estava em combate comia ração de combate. Na
base era comida normal.
Como é esta ração?
É uma comida preparada para comer rápido. Se dá tempo pode esquentar. É leve, tem
a nutrição básica para 24h de combate. 3.200
calorias, se eu não me engano. Teve um dia
que saímos para ficar um dia e ficamos sete.
Você está preparado para um dia, não leva
roupa, nada. Tudo o que se pode reduzir do
peso é reduzido.
“A rotina é ir para
o combate, voltar,
tomar uma cerveja
e se preparar para a
próxima, que nunca se
sabe quando vai ser”
Você já carrega 50 kg nas costas. Para água,
por exemplo, você conta com apoio logístico. Tem um suboficial que é responsável
pela alimentação de tropa. A única coisa que
um soldado deve se preocupar é com o peso.
Desculpe a minha fala, mas me fogem as palavras em português. Lá somos proibidos de
falar português.
Vocês são proibidos de falar português?
Sim. Quando estamos no quarto, entre
amigos, falamos português. Fora do expediente falamos um pouquinho. Não tem porque falar francês toda hora.
Quando vocês estão em missão, vocês têm
algum tipo de vida social?
Não muito. Saímos na ilha, moramos na
ilha de Córsega, no sul da França. Lá temos
que sair fardados, temos uma farda de sair.
Legionário não é bem visto pelos nativos da
ilha, devido a brigas.
Por que vocês não estão servindo o Brasil?
Eu servi aqui até dois anos atrás, eu era sargento. Agora estou lá, mas não sirvo a França,
não presto continência à bandeira da França,
nem canto hino. Sirvo a legião. A legião é a elite da França, nosso quartel é a elite da legião
e nossa companhia é a elite do quartel. Somos
separados por patentes. Lá somos soldados
antigos. Até o fim do ano acho que viro cabo.
Qual a parte ruim?
Essa que contei é a parte ruim (risos). Parte
ruim, parte boa.
Qual é a parte ruim e qual a boa?
A parte ruim é que tu não tem vida social,
praticamente não existe. Não tem contato
com a família, fica isolado de tudo. Guerra,
combate, não é bom. A parte boa é o reconhecimento que temos na França. Somos
muito respeitados. A legião tem quase 200
anos e nela já morreram 35 mil homens pela
França. Eles têm um respeito muito bom
pela gente. E quando vamos ao Brasil temos
o reconhecimento dos amigos e familiares,
além do nosso próprio reconhecimento. É
para poucos.
Tem alguma história pra contar?
Tem várias, mas... (risos)
Conta alguma.
Não sei se é o caso. Temos uma espécie de
ética de conduta, de trabalho. Eles passam
o mesmo que subir uma altura de seis a oito
metros e pular. O impacto é o mesmo.
pra gente lá, e normalmente a gente segue.
Até porque são coisas que não devem ser divulgadas. Já estou errado de estar falando
com você. Então, é melhor deixarmos de lado.
Você tem alguma ligação com o exército
brasileiro?
Nem uma historia mais leve?
Eles sabem que tem gente lá, mas aqui somos civis.
Já está bom para você.
Está bem. Há quanto tempo está de férias?
Duas semanas. Tenho quatro semanas de férias.
Já tem alguma missão prevista para o retorno?
Vamos para a África em fevereiro de 2011.
Acho que é para o Gabão. Até lá, fazemos alguns estágios, preparação para a missão. Tem
mais umas duas semanas de férias antes de ir.
Essa é nossa rotina. São sete ou oito países que
a gente vai, vai rodando. Tal ano vamos para
um país, ano que vem para outro.
O que vocês devem fazer, especificamente?
Normalmente são ex-colônias da França,
ou ainda são colônias. Em alguns fazemos
guerra, como no Afeganistão. Em outros fazemos treinamento. Em outros fazemos segurança do país.
Qual é o perfil das pessoas que estão na legião?
Tem muitos brasileiros que estão na Europa sem emprego, que procuram a legião. Lá
tem muita gente do norte e nordeste do Brasil.
Existe algum tipo de contrato? Ou vocês
podem sair no momento que quiserem?
São cinco anos de contrato. E é renovável.
Você vai renovar?
Ainda não sei. A princípio, sim. Tenho
tempo pra decidir.
Como é o salto de paraquedas?
O chão é complicado. É um paraquedas
militar, é muito rápido. O impacto no chão é
código de honra
do legionário
artigo 1 | Legionário, tu és um voluntário servindo a França com honra e lealdade.
artigo 2 | Cada legionário é o teu irmão de
arma seja qual for a sua nacionalidade, a sua
raça, a sua religião. Tu manifestarás sempre a
estreita solidariedade que une os membros de
uma mesma família.
artigo 3 | Respeitador das tradições, fiel aos
teus chefes, a disciplina e camaradagem são
a tua força, o valor e a lealdade tuas virtudes.
artigo 4 | Fiel do seu estado de legionário, tu
o mostrarás na tua farda sempre elegante, teu
comportamento sempre digno mas modesto,
teu aquartelamento sempre limpo.
artigo 5 | Soldado de elite, tu treinas com rigor,
cuida da tua arma como teu bem mais valioso,
cuida permanentemente da tua forma física.
artigo 6 | A missão é sagrada. Tu a executas
até o fim, no respeito das leis, dos costumes
da guerra, das convenções internacionais e se
for necessário, ao perigo da tua vida.
artigo 7 | No combate, tu ages sem paixão
e sem ódio, tu respeitas os inimigos vencidos,
nunca abandonas nem os teus mortos, nem os
teus feridos, nem as tuas armas.
fonte s www.legion-recrute.com
Já tem cidadania francesa?
Ainda não. Daqui um tempo eu consigo.
Normalmente você renova o contrato e ganha a cidadania. Primeiro vem o processo
para retomar a identidade verdadeira, depois
o de naturalização. Pra ter uma ideia do que
acontece lá é só assistir o filme O Legionário,
com Jean-Claude Van Damme. O filme é uma
porcaria, mas mostra direitinho.
Você continua morando no quartel? Quando você pode ter uma casa?
Depois de cinco anos pode morar fora do
quartel.
Lá na França, o que vale é a identidade declarada?
Sim, lá sou o militar com o nome que está
escrito na nova identidade. Este é um dos motivos de não podermos viajar.
E a família? Vocês podem casar?
Podemos. Depois de ter a identidade antiga
de volta. Mas, ninguém casa, só vão morar
junto. Tem um problema, para arrumar namorada é muito difícil. Você gostaria de ficar
com alguém que viaja de seis em seis meses e
não sabe se vai voltar vivo?
Confira mais imagens exclusivas
no site da Exceção:
http://hipermidia.unisc.br/excecao
57
expediente
ANA GABRIELA VAZ · Repórter
PROF. DEMÉTRIO SOSTER · Editor-Chefe
EMILIN GRINGS · Produtora e Repórter
MICHELLI JULICH · Repórter
NAIRO ORLANDI · Produtor e Repórter
PATRÍCIA PARREIRA · Revisora e Repórter
FÁTIMA HADI · Repórter
HENRIQUE SCHERER
Editor de Arte e Projeto Gráfico
JOÃO CARAMEZ · Repórter
PEDRO GARCIA · Subeditor e Repórter
ROSIBEL FAGUNDES
Produtora e Repórter
TIAGO GARCIA · Repórter
Capa
Baseada na primeira
edição de O Cruzeiro
Modelo: Jéssica Kessler
Maquiagem: Júlio
César (Studio Pelux)
Fotografia: Luana
Backes
Fotografia da
contracapa: Luana
Rodrigues
Fotos de expediente:
Carine Immig
LUANA BACKES
Editora de Fotografia e Repórter
58
LUANA RODRIGUES
Chefe de Reportagem e Repórter
MARÍLIA NASCIMENTO
Editora e Repórter
VANESSA KANNENBERG
Projeto Gráfico e Repórter
WILLIAN CEOLIN
Editor Multimídia e Repórter
Revista desenvolvida
na disciplina de
Jornalismo de Revista,
ministrada pelo
professor Demétrio
Soster, no segundo
semestre de 2010.
UNISC –
Universidade de
Santa Cruz do Sul
Av. Independência, 2293
Bairro Universitário
Santa Cruz do Sul, RS
CEP 96815-900
Curso de
Comunicação Social
Bloco 15 – Sala 1506
Fone: (51) 3717-7383
Coord. do curso:
Fabiana Piccinin
Impressão: Grafocem
Tiragem: 500 exemp.
Ano 5
Dezembro de 2010
59
Distribuição Gratuita
60