Ações em Saúde Indígena Amazônica
Transcrição
Ações em Saúde Indígena Amazônica
AÇÕES EM SAÚDE INDÍGENA AMAZÔNICA O modelo do alto rio Negro Oscar Espellet Soares Organizador AÇÕES EM SAÚDE INDÍGENA AMAZÔNICA O Modelo do Alto Rio Negro São Gabriel da Cachoeira - Amazonas 2006 Copyright © 2006 • Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro – FOIRN Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro – FOIRN Diretor Executivo Domingos Sávio Barreto Coordenação de Saúde Indígena Hernane Guimarães dos Santos Júnior e Yessica Milagros Mundo Guerrero Revisão Eveline Espellet Projeto Gráfico e Editoração Eletrônica Áttema Design Editorial • www.attema.com.br Fotos da Capa Milton Schmidt de Castro Fotomontagem Fábio Sian Martins Apoio Fapesp Ficha Catalográfica Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro - FOIRN Avenida Álvaro Maia, nº 79 - Bairro da Fortaleza - CEP 69.750-000. Telefone: (0.. 97) 3471-2918 • E-mail: [email protected] Organizador Oscar Espellet Soares • Médico cirurgião-geral da Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro – FOIRN Co-autores: André Luiz Martins • Odontólogo do DSEI-RN/FOIRN, especialista em Saúde Pública Guilherme de Almeida Ciriani • Odontólogo Eduardo Assis Ottoni • Odontólogo, especialista em Endodontia Ana Maria Monteiro • Odontóloga, especialista em Saúde Coletiva Mítian Frossard • Odontóloga Gilberto Granato • Odontólogo Nacle Mourão Jr • Odontólogo Daniel Vasconcelos • Odontólogo, especialista em Saúde Bucal Coletiva Sandro Costa • Odontólogo Élida Lopes da Silva • Odontóloga, especialista em Endodontia Colaboradores Norma Helen Medina • Médica Oftalmologista – Diretora do Centro de Oftalmologia Sanitária do Centro de Vigilância epidemiológica da Secretaria de Estado da Saúde – São Paulo Dominique Buchillet • Antropóloga da Saúde Daniel Fernandes da Silva • Herpetólogo Acácio Siqueira • Médico Pediatra Fotografias André Luiz Martins Milton Schmidt de Castro Acervo DSEI/FOIRN Índice Prólogo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 9 Agradecimentos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 13 Introdução . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 15 Ações médicas 1 • Clínica médica em área indígena . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 19 2 • Cirurgia em área indígena . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 27 3 • Nutrição em área indígena . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 35 4 • Tracoma em área indígena . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 45 5 • Tuberculose em área indígena . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 60 6 • Parasitismo em área indígena . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 69 7 • Doença diarréica aguda em área indígena . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 83 8 • Infecção respiratória aguda em área indígena . . . . . . . . . . . . . . . . . . 93 9 • Ofidismo em área indígena . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 105 Ações odontológicas 10 • Introdução ao atendimento odontológico em área indígena . . . 11 • Promoção de saúde bucal em área indígena . . . . . . . . . . . . . . . . 12 • Atendimento clínico odontológico em área indígena . . . . . . . . 13 • Agentes indígenas de saúde e a saúde bucal coletiva . . . . . . . 14 • ART em comunidades indígenas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 15 • Educação e prevenção em saúde bucal . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 16 • Odontologia para gestantes e bebês em área indígena . . . . . 17 • A Odontologia e o alto rio Negro: uma nova perspectiva . . 123 127 137 149 155 163 171 177 Ações em saúde indígena amazônica 8 Prólogo Houve uma semana na Comarca de Cruzeiro do Sul, Alto Juruá, Acre, na primeira semana do mês último, dos anos 2000, passados seis. No Acre, li um livro de mais de 3.000 páginas, sem ter que virar uma folha sequer! Os brasileiros daquele recanto mágico me apresentaram tudo, se expuseram sem medo, aqueles medos que a civilização do sudeste–sul cultua e propaga. Lá se comunica com a segurança de que os conhecimentos seguem, perpetuam-se através dos outros, dos filhos, dos que vem, dos que virão; tem-se a sensação de que os conhecimentos essenciais são bens comuns e não há o espírito deletério da competição que cresce no cone– sul influenciada pelo capitalismo do cubo-norte que fomenta a desigualdade, a desilusão e infelicidade. Quando lá nas terras do Rio Akiry onde tudo soa autêntico, ficou evidenciado que, progressivamente, durante os últimos tempos, com as descobertas e desenvolvimento de vacinas, da soroterapia, dos antibióticos, dos métodos diagnósticos, das variadas tecnologias sedutoras [uma lista seria muito extensa e maçante], houve melhora na qualidade de vida para os que têm acesso aos bens... Por outro lado, porém, desde o Acre, clareou o que venho percebendo de há tempos: a qualidade do ser humano decresceu... O ser humano pior ou piorou ou!... Também progressivamente, especialmente a partir dos anos 1980. E para esse mal, para essa enfermidade crônica, não há cura, sequer atadura... Retornei com a certeza de que índios e seringueiros não vivem o desemprego mental, comum entre brancos, e fiz votos de que não cedam ao assédio intelectual que deformou os meios acadêmicos. Regressei com a sensação de que os brancos que para lá imigraram estão sendo catequizados pelos povos da floresta. Durante os poucos dias, não ouvi dizerem nada além daquilo que fazem. São relações honestas, cruas, onde visão e tato se confundem, olfato e audição são límpidos, nítidos, percebidos e exercitados... 9 Ações em saúde indígena amazônica E lá no Alto do Rio Juruá, vez por vezes imaginei o Alto Rio Negro! Relembrei o vivido há 30-40 anos atrás, tempos de uma cidade mais calma, dos paralelepípedos, do urbano mais limpo, do silêncio noturno precoce. Percorri São Paulo dentro e nos contornos dos bairros da Mooca [onde nasci], Perdizes [Rua Apinagés, onde cresci], Butantan [aonde vim trabalhar]. Na cidade de São Paulo, índios não há, mas o Tupi-Guarani segue inscrito: Mooca – é o construir, o pouso; Apinagés – uma das várias tribos extintas no Brasil; Butantan – é a terra firme, dura... Visitei novamente a São Paulo do avô Augusto Esteves [1891-1966] desenhista, que ilustrou várias obras científicas que, até os anos 1950 escrevia, surpreendam-se, poesia caipira com o pseudônimo de Mané Coivara...; cidade do avô Oswaldo Sant´Anna [19011976], bancário, que consertava tudo, que, pasmem, esculpia madeira e criava brinquedos...; terra adotiva do meu bisavô Mineiro da Campanha, o cientista Vital Brazil [1865-1950] que no Instituto Butantan descreveu pela primeira vez a especificidade dos sistemas biológicos através dos estudos que conduziram à obtenção dos soros anti-ofídicos. Dessa São Paulo, há exatos 80 anos, partiu para a Amazônia o paulistano Mário de Andrade [1893-1945] intelectual genial que anunciou Macunaíma, entidade divina para os indígenas do Alto Rio Branco, e que descreveria sua Viagem Etnográfica pelo país, como... Viagem pelo Amazonas até o Peru, pelo Madeira até a Bolívia, e pelo Marajó até dizer chega. Como Mário, o filósofo-antropólogo belga Claude Lévi–Strauss quando professor da Universidade de São Paulo viajou pela Amazônia em fins da década de 30. Ambos embebedaram-se da floresta tropical, apaixonaramse pelos povos honestos de sinceridade assustadora. Imagino que essas características foram determinantes de sua vulnerabilidade ante o homem branco. Como cientista, algumas vezes me pergunto como meu bisavô agiria e procuro a pergunta mais adequada para um estudo que se inicia. Minha aproximação com o Alto Rio Negro deu-se através do Dr. Oscar Soares, que numa conversa no pólo oposto, em Cruz Alta, Rio Grande do Sul, em julho de 2005, contagiou-me com sua narrativa entusiasmada e emocionante. Foi esse jovem senhor destemido e cidadão incomum quem me descreveu em detalhes e clareou as idéias que vínhamos tendo no Instituto Butantan sobre as ações do veneno da Bothrops atrox, a Jararaca do Amazonas. Pouco tempo antes, sabendo dos casos de envenenamento com essa Jararaca, junto com a Dra. Denise Vilarinho Tambourgi, cientista maior, parceira de estudos e de sentido de vida, havia esboçado o estudo: 10 Reatividade Cruzada e Imunogenicidade dos V enenos de Serpentes Venenos Bothr ops do alto rio Negr o, Extremo Nor oeste da Região Amazônica Bothrops Negro, Noroeste Amazônica.. Contrariamente a outras regiões do Brasil, as espécies Bothrops atrox, em especial, e outras duas, B. brazili e B. taeniata, são responsáveis por 100% dos acidentes humanos no Alto Rio Negro. Após o encontro com Oscar, preparamos o Projeto contando com outros pesquisadores do Instituto Butantan: Maria de Fátima Furtado, Fan Hui Wen, Giuseppe Puorto, Silvia Travaglia Cardoso, com Daniel S. Fernandes do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro, e o próprio Oscar Espellet Soares. Esse estudo integra o Sub-Programa Toxinas e Imunidades do Centro de Toxinologia Aplicada [CAT] da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo [FAPESP]; iniciou-se com resultados surpreendentes... Resumidamente: os resultados preliminares indicam que o veneno das B. atrox do Alto Rio Negro possuem toxinas diferentes das B atrox do Maranhão; a preparação do soro produzido pelo Instituto Butantan deverá ser modificada para atender ao tratamento das vítimas picadas por essas serpentes e o veneno dessa Jararaca deverá compor o grupo de peçonhas atualmente utilizadas para obtenção de soro terapêutico anti-Botrópico. Os envenenamentos causados por serpentes representam um dos problemas críticos de saúde pública em regiões subdesenvolvidas e, para a cura, o único meio seguro conhecido é o tratamento com soro anti-ofídico. Daí a necessidade de seguir os estudos sobre as toxinas de venenos. E há tantos outros males, causas distintas para os mesmos males, enfermidades agudas ou crônicas que acompanham as populações mundo afora, e tanto por se conhecer. Mas vale lembrar que o sentido da sobrevivência de uma espécie também se aplica ao homem. Não devem ser subestimadas as capacidades que os povos possuem de enfrentar dificuldades em todos os níveis, inclusive em relação à saúde. O verbo ajudar deveria ser banido; substituí-lo por compartilhar parece razoável; afinal, não somos seres superiores e na minha caminhada não tive o prazer de conhecer alguém com tais características! De Cruz Alta, do Alto Rio Negro, do Alto Juruá, donde quer que a vista ou outro sentido alcance, certamente haverá uma história sendo contada no futuro! Osvaldo Augusto Sant’Anna Instituto Butantan – Laboratório de Imunoquímica Diretor Científico do Centro de Toxinologia Aplicada 11 Ações em saúde indígena amazônica 12 Agradecimentos Gostaríamos de agradecer às seguintes referências pelo incansável apoio e incentivo à realização deste livro: À Federação das Organizações Indígenas do Alto Rio Negro - FOIRN e todos os seus funcionários que representam esta ONG de inegável contribuição à causa indígena como um todo, desde demarcação de terras, educação, projetos de auto-sustentabilidade, afirmação cultural e saúde, que ao longo dos anos não deixou de cumprir o seu papel mesmo diante das maiores adversidades; um agradecimento especial à sua diretoria e secretariado. Ao Distrito Sanitário Especial Indígena do Alto Rio Negro - DSEI-RN, com seu espetacular corpo de funcionários apaixonados pelo ofício de levar a saúde aos povos indígenas aldeados com o devido cuidado e respeito à sua diferença étnica e sociocultural; entre eles, médicos, enfermeiros, odontólogos, técnicos de enfermagem, auxiliares de odontologia, agentes indígenas de saúde, barqueiros, logísticos, assistentes sociais, administradores, farmacêuticos, auxiliares de administração e todos os demais que mantém a pedra rolando sem jamais criar musgo. Agradecimento em especial ao Professor Doutor Osvaldo Augusto Sant´anna, por ter garimpado este grupo de doidos apaixonados por um país melhor e levado adiante o espírito do novo. À Doutora Norma Helen Medina, oftalmologista e possivelmente a maior autoridade nacional em Tracoma, responsável por propagar o conhecimento e capacitação de jovens profissionais da saúde para o controle e redução dos números desta terrível endemia. À Doutora Dominique Buchillet, antropóloga, grande nome de destaque na antropologia da saúde, por sua gigantesca generosidade ao repartir 13 Ações em saúde indígena amazônica conhecimento, através da crítica sincera e construtiva pois, sem ela, o equívoco e a omissão seriam consumados. Ao Instituto Socioambiental (ISA), pelo inegável apoio de seu grupo multidisciplinar de demógrafos, sociólogos, antropólogos e educadores, por auxiliar-nos na compreensão e aceitação dos valores distintos. Ao professor Daniel Fernandes da Silva, Herpetólogo do Museu Nacional de História Natural, por sua bravura em aceitar o convite de ir para a densa floresta, vasculhar os paus e coletar as mais variadas serpentes venenosas para que se melhore a terapia dos acidentes desta natureza. Aos povos indígenas do alto rio Negro que tiveram paciência em nos receber e ensinar, tolerar e educar até que pessoas mais simples nos tornássemos; também a todos os pacientes que curamos e melhoramos, pelo seu voto de confiança e a todos os pacientes que infelizmente perdemos, na intransponível barreira da morte, por terem nos dado suas vidas como lições. Gostaríamos de agradecer aos pajés e benzedores por tolerarem tamanha e desrespeitosa invasão. Às nossas famílias, maridos, esposas, filhos, que compreendem e sofrem com nossa longa ausência, por extensos períodos, até que retornemos com mais uma pedra na construção de nossas vidas. “Demorei a vida inteira para pintar como criança.” Pablo Ruyz Picasso 14 Introdução O Brasil mudou! As festividades de 500 anos de Brasil tornaram mister reparar toda uma história de desconsideração com os povos indígenas brasileiros, porém ao discursar sobre esta tese quase raspamos no idealismo romântico que colore, mas não move a nação. Vejamos os fatos por um escopo mais técnico. A sociedade contemporânea pós industrial gera novos filhos com a visão e desejo de um crescimento abstrato mais duradouro que a mera conquista material. A competição por consumo é atraente, porém, superficial demais; não alimenta sequer a conversa de uma mesa de bar. Há uma profunda necessidade de conteúdo dentro de nós mesmos; procuramos uma história que nos inclua no roteiro não apenas como mais um, mas como aquele que luta por fazer alguma diferença, remodelando a sociedade que nos engole com uma volúpia animal. É fundamental o interesse pelo novo, esta é a mola impulsora das descobertas e assim o conhecimento se faz; num mundo tomado por informação excessiva, a banalização do cotidiano uniformiza o homem mediano, nós mesmos, em um moto contínuo de nascer, reproduzir e morrer... precisamos narrar a trajetória, desvelar à si próprio. À quem interessa é preciso reiniciar, postar-se nu e beber a tudo que nos cerca. Um interesse cultural, então, por fim, se anuncia e a cultura dos povos indígenas é um prato e tanto, uma vez que nos oferece penetrar num mundo de conceitos e valores distintos dos dogmas vigentes na sociedade ocidental. Um universo que não utiliza a matemática exata como pedra fundamental no seu dia a dia e procura valores de aproximação mais condizentes 15 Ações em saúde indígena amazônica com a harmonia de seu meio. Na vida indígena os números existem porém não regem o mundo, como fazemos cada segundo e instante de nosso cotidiano ocidental, desde os primeiros anos de nossas vidas. Realmente esta observação é preocupante e nos alerta para revermos nossa comunicação. Negociamos com povos que se apoiam na mitologia para explicar o mundo e, assim a utilizam como modelo de ciência, justificando o inexplicável, dando sentido ao o que de outra forma não se explica. Como justificar a menstruação, a gestação, a febre, os satélites e os meteoros que giram sobre suas cabeças? Através da inserção dos mitos, um modelo explicativo se mostra lógico. Mas a comunicação de duas esferas distintas de valores pode levar à ruptura e ao distanciamento. “Para o mundo indígena, não há choque de culturas, nem conflito entre a ciência ocidental e a medicina tradicional indígena. O conflito está dentro da cabeça do branco (nome genérico para todo aquele proveniente do mundo cristão ocidental) e, principalmente, dos médicos, enfermeiros e odontólogos, mas não está na cabeça dos índios, os quais, até agora, mostraram que a sua medicina é extremamente dinâmica e criativa e não estática e fadada a desaparecer ou a morrer frente à alegada superioridade da medicina ocidental. A medicina indígena é capaz de mudar e absorver coisas estranhas aos seus valores. Os indígenas através de seus itinerários terapêuticos se mostram extremamente abertos a experiências e eles usam a medicina ocidental de modo complementar às suas práticas médicas sem que isso represente para eles, um conflito ou um confronto. Os dois tipos de modelos médicos não atuam/agem no mesmo nível. Não é a medicina ocidental que é capaz de responder à pergunta fundamental para os indígenas: Porque eu estou doente agora? Para eles, a medicina ocidental age no nível dos sintomas e não no nível da causa da doença” (D. Buchillet, comunicação pessoal, dezembro de 2004). Desta forma, as doenças e curas assumem outra dinâmica que jamais será a mesma da ocidental e neste modelo repousa então a concepção do ser, o nascimento, a reprodução e a morte... e todo um conjunto de valores distintos daqueles do mundo cristão. 16 Introdução Ainda lembro, quando recém-chegado no alto rio Negro, minha preocupação em entender como os indígenas aceitavam a morte, pois ela seria minha companheira em algumas ocasiões e então com eles aprendi a compreender o desfecho final com muito mais dignidade e aceitação, como simples conseqüência da vida, sem desespero ou rejeição. No entanto, fui ensinado a negar esta possibilidade, com drogas e transplantes, cateteres e silicone, UTI e respiradores. Não que tenhamos de desistir diante da morte, mas que tenhamos de perceber mais nossa fragilidade em estarmos vivos... morrer é apenas conseqüência da vida e nosso desespero, assim, será menor. A questão indígena preenche facilmente nossa demanda de conceber o mundo com menos sofrimento, ofertando um universo cultural que desafia o “status quo” do século 21. Com uma maneira inovadora de explorar e entender a vida por um prisma inesperado, mesmo nos mais refinados cantos da cultura dominante do ocidente, o mundo ameríndio atrai aqueles que questionam as normas mestras da cultura cristã... não por simples postura inconseqüente, mas por urgente necessidade de tornarmo-nos velhos espetaculares, com imensa responsabilidade de repartir, em algum momento, um pedaço da história, com plena realização social. E como se estas colocações não bastassem para definir estes loucos maravilhosos, que mergulham na questão, há ainda a necessidade pessoal de se exercer uma profissão e ser dignamente remunerado pela mesma, fato que parece distante numa sociedade em crise, de um país de terceiro mundo, como o Brasil. Por simples saturação de mercados nos grandes centros populacionais, que não mais admitem os números crescentes ofertados de novos profissionais de saúde, estes agora se engajam nas frentes de ações de saúde aos povos indígenas. No entanto, a questão é um assunto vasto e complexo, requer conhecimento sócio-antropológico e uma base de preparo para se iniciar no tópico inovador. Não obstante, torna-se fundamental desenvolver modelos diagnósticos e terapêuticos aplicáveis ao meio em que se exercem as ações de saúde ocidental ofertadas aos indígenas em seu habitat. Como diagnosticar e resolver, por exemplo, uma pneumonia, a cárie dentária, uma pio-miosite, o tracoma ou como tratar a vítima de um aciden17 Ações em saúde indígena amazônica te ofídico, longe dos recursos laboratoriais e hospitalares, mostrou-se nossa prioridade nestes anos de convívio com os povos do alto rio Negro. É de suma importância adaptarmos os modelos do “como faço” ao ambiente indígena amazônico. Cada vez mais, o tema se anuncia como uma especialidade e, para tal, é preciso literatura disponível, que prepare todo aquele que chega e, invariavelmente, sofre a incomunicabilidade de dois mundos tão distintos. A Universidade não prepara seus jovens profissionais de saúde para atuar em tão peculiar cenário. Pensou-se, assim, em fazer um livro que tratasse das ações em saúde indígena, isto é, que narrasse o real cenário de atuação de equipes de atenção básica primária em odontologia e medicina, expondo suas dificuldades e estabelecendo soluções em uma realidade tão distinta do nosso mundo contemporâneo. Até então, somente as visões técnicas abstratas de gabinetes e teses acadêmicas, com uma abordagem distante da aplicabilidade, haviam sido escritas, assinadas e publicadas, tornando-se assim, o único recurso literário disponível para consulta daqueles que se interessam nestas ações. Para nós, mostrou-se imperativo escrever e publicar nossa experiência com os povos indígenas do alto rio Negro, Amazonas... um recanto do planeta que abriga 30 mil índios de 3 famílias lingüísticas (Aruak, Tukano Oriental e Maku) representados em 22 distintas etnias. O ensinamento foi prolífico e o aprendizado, imenso. Estamos dando os primeiros passos e esperamos que muitos sintamse estimulados a se engajarem ao momento e sigam escavando a pedra até que a escultura esteja feita. Nossos filhos se orgulharão disto. Que os futuros profissionais de saúde, apareçam no horizonte com o verdadeiro intento de um Brasil melhor. Nossas equipes estarão lá, nas matas, aguardando tão nobre reforço. Enquanto isto...mãos à obra! Oscar Espellet Soares Médico- Cirurgião Geral 18 1 Ações em Saúde Indígena Amazônica: O Modelo do Alto Rio Negro FOIRN • São Gabriel da Cachoeira • 2006 Capítulo 1, pp. 15 - 22 Clínica médica em área indígena Oscar Espellet Soares Médico cirurgião-geral da Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro – FOIRN Introdução Foto: acervo DSEI/FOIRN O confronto cultural entre o mundo indígena ameríndio e a medicina do universo ocidental corre o risco de gerar graves rupturas de comunicação e aceitabilidade de propostas de tratamento se não forem respeitadas premissas básicas fortemente embasadas na antropologia. ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ FIGURA 1 ○ ○ Atendimento clínico-pediátrico ○ 19 Ações em saúde indígena amazônica A falta de recursos diagnósticos e a grande distância do apoio hospitalar levam forçosamente ao exercício pleno da clínica médica, vindo a ressurgir o valor de antigas manobras semiológicas, há muito esquecidas no mundo ocidental (como a simples análise macroscópica da urina, por exemplo). A clínica médica em área indígena é resumida como o exercício da medicina no século 19 com terapêutica do século 21 (graças ao avanço significativo na indústria farmacêutica contemporânea). Aspectos antropológicos A experiência no exercício médico junto aos povos indígenas do alto rio Negro, nos aponta um confronto gigantesco de semântica e, talvez, o maior obstáculo na comunicação adequada entre a medicina ocidental e o mundo indígena que é a valorização de um elemento cotidiano quase imperceptível: a matemática exata! O cotidiano da vida na floresta gerou culturas milenares de quantificações aproximadas, onde o elemento numérico exato não alimenta valores práticos; nunca precisou-se pesar os peixes com medição exata, medir as distâncias, estabelecer cronogramas, contar as horas, minutos, segundos ou mesmo idades. Muito pelo contrário, a observação da natureza e seu ambiente harmônico estabeleceram conceitos práticos de aproximação como o perto, o longe, o mais ou menos, o pesado, o leve, o pouco e o muito. A vida no universo indígena nunca foi monetarizada, as trocas nunca envolveram crédito ou débito, ao contrário, a vida sempre foi prática e harmônica com o seu meio, o qual valorizava apenas a produção de alimentos, o nascer, o reproduzir e o morrer (e a vasta mitologia e todo um universo de valores). Observa-se que, segundo a epistemiologia, há elementos exatos no universo indígena, como a contagem dos dedos das mãos e seus múltiplos, inclusive o ensinamento e o aprendizado do mundo matemático ocidental são muito proveitosos e de ganho idêntico, senão maior, comparados à cultura ocidental dominante; no entanto, enfatizamos, não há aplicação prática cotidiana, não há “valorização” deste modelo! Por outro lado, em rumo de colisão, o mundo ocidental introduz seus filhos precocemente na matemática exata; muito cedo estabelece o contato com números e seus significados; há uma profunda valorização do tempo, relógios, calendários, somas, subtrações, dinheiro, kilogramas, miligramas etc.... 20 Clínica médica em área indígena O modelo renascentista, aprimorado no iluminismo francês, ainda guia a ciência do século 21, com sua postura dualista. Hoje, a astrofísica e a cosmologia, o refino da física contemporânea, percebem as falhas deste modelo de pensamento dominante no mundo cristão atual. Como agravante, em contraposição à cultura dos povos indígenas do rio Negro, a cultura ocidental cristã rejeita profundamente a idéia da morte; a medicina atual desenvolve transplantes, cria CTI´s, aprimora máquinas que prometem arrastar o ciclo vital até seu derradeiro e último suspiro, enquanto que no meio indígena há uma dignidade expressiva no entendimento do ciclo vital e sua aceitação do momento final; o sofrimento da morte existe, porém com maior resignação e preparo. Ainda neste contexto, reforçando os contrastes que acompanham dois mundos tão distintos, alguns elementos de linguagem, de conceitos excessivamente abstratos, como as palavras “saúde” e “doença” que, nem sequer, são adequadamente definidas em dicionários consagrados de língua portuguesa e inglesa, como o Aurélio e o Webster´s, também muito menos encontram um significado comum no mundo indígena. Assim, agora, parece esclarecer o grave conflito entre o método ocidental e o indígena. A medicina ocidental, mesmo não sendo ciência exata, está embasada em valores excessivamente exatos, como posologias, tempo de evolução das doenças, medição de sinais vitais; portanto, facilmente o conflito se estabelecerá caso não atentarmos para métodos alternativos de adequação das propostas semióticas e terapêuticas. No mundo indígena, os convidados somos nós e precisamos respeitar as regras da casa, uma vez que esta integração permitirá ganhos futuros nos resultados da saúde indígena como um todo. Propedêutica O primeiro elemento da propedêutica em área indígena é a observação do meio: o asseio geral, o estado nutricional da comunidade como um todo, a presença de alguma evidência explícita de epidemia, atentar para o som dos tossidores, observar se há neonatos ou velhos e se estes estão sendo trazidos ao encontro do visitante. É importante que a demanda do serviço médico não seja apenas espontânea, porém, também, induzida. 21 Ações em saúde indígena amazônica Explicitar que o propósito da visita é procurar doenças específicas, com o cuidado de que no universo de conceitos indígenas, muitas doenças, em particular naquelas atribuídas à feitiçaria, o exame físico nada detecta (D. Buchillet, communicação pessoal, dezembro de 2004); portanto, é fundamental dar nome às doenças que se procura, definir precisamente o objetivo de se estar ali. É importante lembrar que a palavra “saúde” é um conceito abstrato de difícil definição e de mesma forma a palavra “doença”. Evitam-se estas generalizações dando, preferentemente, espaço para definições mais precisas como gripe, dor de cabeça, diarréia, febre, ferimentos etc.... Este modelo permite a separação grosseira do “joio do trigo”, e tem se demonstrado eficiente, principalmente quando a visita se demora e aqueles que não se anunciaram como enfermos têm a chance de se manifestar, em momento oportuno. Saúde indígena e pressa não são um bom dueto... é fundamental a paciência. Anamnese A anamnese deve, sempre que possível, ser feita na língua-mãe com a participação de um tradutor, preferentemente de elo familiar direto com o cuidado para não usar “tradutores” de outros povos que conhecem a língua, uma vez que poderá haver conflitos entre eles que o examinador ignora e conseqüentemente o doente e sua família poderão sentir-se constrangidos em falar de sua doença. Estas colocações são válidas principalmente quando o paciente é mulher adulta que culturalmente, deve reportar a queixa ao seu marido e este processará a informação ao profissional de saúde. Outra ressalva importante é o fato de que a língua-mãe tem conceitos e abstrações nem sempre similares aos conceitos ocidentais. Se a informação for colhida exclusivamente em língua portuguesa, apresentará falhas de definições, enquanto que, na língua-mãe, encontrará apoio nos demais elementos sociais que auxiliam na tradução. Reforçamos, mais uma vez, que conceitos exatos de tempo de evolução, intensidades e outras medições não costumam ser atendidos com precisão e frustram o modelo ocidental de anamnese médica, levando este impasse a ser resolvido quase que exclusivamente no exame físico. Há uma premissa básica e fundamental que direciona o método de saúde indígena aplicada: a primeira hipótese diagnóstica é infecto-contagi22 Clínica médica em área indígena osa, a segunda hipótese diagnóstica também é infecto-contagiosa e assim a terceira, a quarta, e todas as demais. As patologias crônico-degenerativas existem, porém não são o carro chefe da morbidade e da mortalidade indígenas no alto rio Negro. Este modelo nos permite abordar uma epigastralgia, por exemplo, como sintoma de duodenite por giardíase ou estrongiloidíase, uma cefaléia crônica como sintoma de meningite por fungos, uma desnutrição como sinal de tuberculose ou uma dor muscular intensa como quadro sindrômico de uma piomiosite tropical. De mesma forma as queixas de fundo conversivo e psico-somáticas pouco são reportadas aos profissionais de assistência médica ocidental e, possivelmente, poderão ser reportadas aos pajés e benzedores uma vez que muitas doenças indígenas são decorrentes de elementos atribuídas à feitiçaria; no entanto, a distinção entre doença física e psico-somática não faz sentido no universo indígena da região. O modelo acima resumido, apesar de grosseiro, é um método extremamente eficaz, diante das circunstâncias até aqui abordadas. Exame físico O exame físico é, talvez, a pedra fundamental de apoio ao profissional de saúde em áreas remotas da floresta. Todo o agente que executa ações de saúde em populações indígenas isoladas é um semiota... ou, pelo menos, deveria ser e esta postura, infelizmente, está em desuso no mundo ocidental, com tantas facilidades de recursos laboratoriais diagnósticos; portanto, é compreensível que todo o profissional iniciante no mundo médico indígena sinta um certo desamparo quando apenas sua intuição diagnóstica (o olho clínico) é seu guia. O exame físico deve ser exemplar e metódico, crâneocaudal, principalmente quando facilitado pelo perfil epidemiológico da região, que nos indica quais as patologias mais freqüentes e suas respectivas faixas etárias de incidência, apontando assim para o traçado da curva de Gauss da morbi-mortalidade da população assistida. Não podemos abordar todo o universo possível de doenças que justificam um sinal ou um sintoma, porém podemos formatar um padrão de quais patologias mais freqüentes, em determinada região, explicam aquelas queixas... Se pensarmos num método diferente, mais elegante, cairemos na inevitável exigência de recursos laboratoriais, não disponíveis. 23 Foto: Acervo DSEI/FOIRN Ações em saúde indígena amazônica ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ FIGURA 2 ○ ○ Exame físico em área indígena. A clínica médica ocidental em área indígena, para ser funcional, não pode ser ortodoxa. Romper com a ética não está no “fazer” e sim, no “não fazer”. Está na omissão! Métodos semiológicos há muito em desuso no mundo ocidental demonstram profundo valor no mundo indígena, como a manobra de Mauriceau, na obstetrícia do parto pélvico, até mesmo, manobras de rotação externa de feto transverso, ou, ainda, o sopro tubário apical pulmonar na tuberculose ou o especterolóquio sussurrante nas consolidações pulmonares; o mesmo vale para a transmissão púbica da percussão patelar na fratura do colo do fêmur e a punção aspirativa nas miosites estafilocóccicas superficiais ou mesmo a simples verificação da hipotensão postural (correlação pulso-TA ortostático e supino) nas perdas volêmicas. Repousam na clínica e no exame físico muitas respostas para o diagnóstico em recantos isolados do planeta. A observação é elemento crucial da propedêuta indígena e as soluções de inúmeros impasses diagnósticos apoiam-se nas coisas simples. 24 Clínica médica em área indígena Obviamente, quando o modelo se esgota, só resta o encaminhamento do paciente para um centro diagnóstico competente, porém esta alternativa é a exceção e não devemos esquecer que a referência é o sistema SUS, há muito tido e sabido como falho e semi-operante, sem capacidade de resolução da grande massa de excluídos da sociedade brasileira. Considerações finais A medicina ocidental no meio indígena é deselegante aos olhos de um mundo voltado para a tecnologia de ponta. O contexto social das populações indígenas do alto rio Negro não permite a aplicação da medicina desenvolvida para ações no mundo ocidental dominante norte-americano ou europeu (grandes guias de referência da competência e elegância), profusamente ensinado e respeitado nos meios acadêmicos do Brasil. Precisamos formar novos profissionais que se adaptem à triste realidade da nação, e nesta se incluem os povos indígenas. Precisamos resgatar a medicina de nossos avós, se esta se mostra aplicável e resoluta. O simples uso dos 5 sentidos e uma mente perspicaz, bem informada e culta em princípios de medicina básica primária é o que torna a máxima “a clínica é soberana” uma realidade. É fundamental criar e desenvolver modelos de ações possíveis nos pontos remotos do planeta e talvez esta ponderação tenha aplicação, também, à população brasileira como um todo. Hoje, talvez, o maior inimigo do exercício médico junto aos povos indígenas seja a desinformação, o preconceito e a rejeição, por parte de jovens profissionais, de uma medicina mais simples e aplicada às massas de excluídos. É fundamental o compromisso social. É possível mover uma montanha quando se tem muita vontade. Também é possível escrever um capítulo melhor, na triste história destes 500 anos que abandonou ao extermínio os povos ameríndios que aqui reinaram, criaram e construíram... porém, a formula do sucesso não se importa com esta gente! 25 Ações em saúde indígena amazônica Referências bibliográficas BARROS, E.; ALBUQUERQUE,G.; PINHEIRO,C.; CZEPIELEWSKI, M. Exame Clínico. Consulta rápida,1ª ed. Artes Médicas, Porto Alegre, 1999. CLINE, D.M.; M.A.; OJ. Emergências médicas, 5ª ed., Mc Grae Hill, Espanha. 2001. FEDERAÇÃO DAS ORGANIZAÇÕES INDÍGENAS DO RIO NEGRO; INSTITUTO SOCIOAMBIENTAL. Povos indígenas do alto e médio rio Negro, 1ª ed. Ministério da Educação e Cultura, Secretaria de Ensino Fundamental, v.1, 1998. GOLDMAN,L.; BENNETT, J.C. Cecil textbook of medicine, 21ª ed., WB Saunders Company, Philadelphia, 2001. RIBEIRO, D. O. Problema indígena. Doença, fome e desangano. In: RIBEIRO Os índios e a civilização, 1ª ed., Brasília, Ed. Vozes, v.1, p. 207-214, 1980. ROMEIRO, VIEIRA. Semiologia médica. - Rio de Janeiro: Ed. Científica, 9ª ed., 1954. 26 2 Ações em Saúde Indígena Amazônica: O Modelo do Alto Rio Negro FOIRN • São Gabriel da Cachoeira • 2006 Capítulo 2, pp. 23 - 29 Cirurgia em área indígena Oscar Espellet Soares Médico cirurgião-geral da Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro – FOIRN Introdução Foto: Milton Schimidt de Castro O procedimento cirúrgico ambulatorial, fora do ambiente hospitalar, demonstra ser viável e seguro se seguidos alguns preceitos básicos da disciplina. O ambiente indígena, à grande distância de um centro de referência, oferece uma grande demanda reprimida de pacientes candidatos à ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ FIGURA 1 ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ Cirurgia ambulatorial em área indígena. 27 Ações em saúde indígena amazônica cirurgia ambulatorial que deixam de receber atenção médica adequada seja por barreiras de comunicação, seja por inoperância do sistema de saúde pública ofertado pelo sistema SUS. Não obstante, importantes aspectos antropológicos graduam a questão em um complexo universo de valores que prontamente demanda análise e estudo para a adequada abordagem da proposta. A finalidade deste capítulo é demonstrar a metodologia empregada numa proposta de oferta cirúrgica ambulatorial em população indígena no alto rio Negro, Amazonas, que demonstra resultados técnicos e sociais de profundo impacto. Aspectos antropológicos As populações indígenas amazônicas, pré-colombianas, não desenvolveram uma ciência cirúrgica expressiva no seu arsenal médico. Apesar de serem culturas com importantes elementos médicos xamânicos e fitoterápicos, a agressão do ato operatório e seus rápidos resultados, aparentemente, não encontram espaço nos métodos tradicionais de cura ou melhora. Os elementos de proposta de cura tradicionais envolvem, quase que invariavelmente, elementos metafísicos, uso de ervas e infusões, por via oral, e emplastros variados aplicados sobre áreas de lesões ou representativas de doença. É importante salientar que a agressão física ao corpo, provocando dor e sangramento, é vista socialmente como elemento extremamente negativo e condenável, algo preditivo de morte e sofrimento, sem qualquer valor de cura ou melhora em contraste ao que a cirurgia se propõe a ser. Mesmo na obstetrícia, área de profundo interesse e domínio técnico indígena, não evidenciamos abordagem cirúrgica indígena expressiva, sendo que alguns elementos de vital importância são omitidos nas narrativas orais, como a extricação do feto morto transverso, por exemplo. Assim parece de fácil conclusão o confronto da proposta cirúrgica ocidental em populações de formação cultural mais conservadora em sua medicina milenar. No entanto a evolução da ciência cirúrgica no mundo ocidental a torna procedimento seguro e sem dor significativa, mesmo no período pós28 Cirurgia em área indígena operatório, com a grande vantagem do emprego do pensamento mágico, o qual é aquele que traduz súbita mudança de qualidade de vida, deixando o estado de enfermo para a transformação em estado sano, através de uma ação rápida e de profundo impacto em curto prazo. A abordagem do tratamento cirúrgico quando realizado em área indígena sob testemunho dos demais circundantes, representa profundo impacto através do emprego da rápida mudança para um estado de melhora, desmistificando a agressão cirúrgica. Em síntese, o modelo cirúrgico enfrenta resistências iniciais para sua aceitação uma vez que é temido; no entanto, após instituído, oferece importantes elementos de confiança, sendo considerado um poderoso componente de cura e/ou melhora sem grande sofrimento instituído . Se estes elementos não forem considerados com uma oferta clara de suas vantagens e desvantagens, dificilmente ocorrerá aceitação ou complacência aos cuidados pós-operatórios, fato que, invariavelmente, levará à ruptura da relação médico-paciente (principalmente, quando o paciente é referenciado a um centro hospitalar, do sistema SUS, sem preparo antropológico para lidar com a questão). Metodologia Nas bases da ciência cirúrgica contemporânea encontramos elementos de definição fundamentais para a justificativa do ato operatório à grande distância de um centro hospitalar de referência. Os ferimentos cirúrgicos são qualificados conforme a quantidade de bactérias por centímetro cúbico de tecido humano na área abordada e isto, obviamente, dependerá da patologia e sua respectiva área anatômica: “limpas”- aquelas com menor quantia possível de • F eridas “limpas” microorganismos por centímetro cúbico de tecido. Por exemplo: uma herniorrafia eletiva. • Feridas “potencialmente contaminadas” contaminadas”- aquelas em que a população de microorganismos existe, porém é inexpressiva (até 100.000 bactérias por centímetro cúbico de tecido). Por exemplo: exerese de um cisto sebáceo eletiva. • Feridas “contaminadas” “contaminadas”- aquelas com expressiva população de microorganismos, acima de 100.000 microorganismos por centímetro 29 Ações em saúde indígena amazônica cúbico de tecido humano; no entanto, sem traduzir infecção-doença. Por exemplo: extração dentária eletiva. • Feridas “infectadas” - aquelas com grande quantia de microorganismos por centímetro cúbico de tecido, sob condições flogísticas. Por exemplo: a drenagem de um abcesso. Os procedimentos cirúrgicos ambulatoriais, fora de ambiente hospitalar, se darão, por preferência, na ordem inversa da acima descrita; primeiro os “infectados” (em regime de urgência) e por último, os “limpos” (em regime eletivo). De óbvia conclusão, lembramos que o procedimento cirúrgico ambulatorial eletivo será aquele que oferece melhores condições de assepsia, menor aspersão de microorganismos no meio e melhor controle da dor transe pós-operatória sem necessidade de estrutura hospitalar nas proximidades da área de trabalho; porém, em situações de urgência-emergência todos estes elementos serão considerados em segundo plano elevando ao prioritário a ação médica cirúrgica imediata, se os benefícios superarem os riscos. O teatro cirúrgico deve ser toda e qualquer estrutura abrigada do vento e poeira; a mesa cirúrgica se faz com maca dobrável e recomendamos o uso de lona plástica limpa, de uso exclusivo, para acobertar o chão (de extrema valia), idém o uso de telas de proteção contra insetos tipo “mosquiteiro”. O foco cirúrgico deve ser aquele de lanterna frontal, com fonte de pilhas tradicionais, para cirurgião e auxiliar. Todo o material cirúrgico deve ser direcionado para o descartável, sob embalagem de fábrica lacrada, devidamente acondicionado e protegido da umidade (muito intensa em área amazônica) em sacos plásticos. Aquele material metálico e de algodão de re-uso deve ser submetido à esterilização sob autoclavagem tradicional; para tal sugerimos o uso do método de panela de pressão, com uma grade interna para separar o material do fundo com água. O modelo utiliza uma panela de pressão de 10-12 litros, com uma grade tipo “cuscuzeira” no seu interior, que servirá para apoio do material cirúrgico devidamente embalado e acondicionado em campos de algodão tipo “brim” duplo. Adiciona-se 400-500ml de água limpa e espera-se iniciar a pressão de vapor que deve ser mantida por, no mínimo, 30 minutos. Após estabelecido o tempo total de esterilização, destapa-se a panela e deixa-se o material secar espontaneamente, sem qualquer manipulação do invólucro (para evitar pontes de contaminação com o algodão úmido). 30 Foto: M.S. de Castro Cirurgia em área indígena ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ FIGURA 2 ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ Auto-clave. Este método é extremamente confiável e eficiente com a desvantagem de reduzir, em muito, a vida útil do material esterilizado, uma vez que não há controle sobre a temperatura e pressão “excedentes” aos métodos tradicionais. Analgesia O paciente candidato à cirurgia ambulatorial, preferentemente, não deve apresentar patologia de base importante; a epidemiologia do alto rio Negro aponta para população aldeada de baixo risco cardio-vascular e elevado risco respiratório; no entanto, a população indígena urbana já apresenta perfil de risco cirúrgico de todo e qualquer paciente sedentário. A patologia de base mais freqüente ainda é a desnutrição protéicocalórica; fato que infelizmente justifica o retardo da formação de matriz cicatricial confiável; o que, para tanto, requer o dobro do tempo médio usual de restrição de tensão na ferida operatória. A grande maioria dos procedimentos cirúrgicos ambulatoriais se resumem àqueles sob anestesia local com lidocaína à 1-2% (4-5mg/kg, sem vaso; 7mg/kg, com vaso). No entanto, o uso de sedação trans-operatória está cada vez mais seguro com a oferta de drogas novas de mercado. O midazolam na dose de 0,1-0,3mg/kg IV ou IM é droga segura e eficiente para procedimentos rápidos (flumazenil 0.2mg IV é seu antagonista). É fundamental ter oxigênio e drogas de emergência próximos e prontos para uso. 31 Ações em saúde indígena amazônica Para procedimentos maiores sugerimos o uso da cetamina na dose de 4mg/kg IM ou 1mg/kg IV; no entanto, o efeito alucinógeno é importante limitante do uso da droga e melhor manuseado com midazolam IV, lento; é esquema de droga extremamente eficaz para analgesia em procedimentos ambulatoriais extensos sob risco de intoxicação com largas doses de lidocaína; no entanto, podem ocorrer discrepâncias de margem de dose segura para pacientes indígenas. A melhor analgesia pós-operatória para procedimentos ambulatoriais em área indígena é o tenoxicam 20mg IV, acompanhado ou não de meperidina 0.5mg/kg IV, seguidos de analgésicos leves e de potencialização dos anteriores, como o paracetamol 1g, 6/6hs, VO, se necessário. Antibioticoterapia profilática pode ser instituída, se julgada necessária, com cefalexina 1g VO 12/12 horas por 48 horas, iniciada 3 horas antes do procedimento, com o cuidado de explicitar o motivo desta conduta para que ocorra adesão posológica. Considerações finais Todo e qualquer procedimento cirúrgico ambulatorial limitado em sua complexidade e rigidamente embasado na disciplina aqui proposta, se mostra seguro e viável em área indígena; no entanto, requer profissional qualificado e com larga experiência nos fundamentos cirúrgicos gerais. O mesmo é válido para os fundamentos da odontologia intervencionista em área indígena, uma vez tratar-se de disciplina cirúrgica ambulatorial. A base do sucesso e ganho de laços de confiança com as populações indígenas do alto rio Negro, para este tipo de proposta e resolução, requer profundo embasamento antropológico para que pequenas concessões de confiança se ampliem e se tornem extensivas a todos os demais necessitados. Os índices de complicação existem e se demonstram aceitáveis conforme literatura médica especializada; complicações infecciosas incidem em menos de 3% para as cirurgias “limpas”, menos de 10% para as “potencialmente contaminadas” e menos de 30% para as “contaminadas”, conforme reportam os índices do alto rio Negro, Amazonas. Ainda afirmamos a máxima dos antigos cirurgiões que ressurgem nas bases de uma medicina de guerra, nos confins das matas e no esforço dos românticos que crêem num Brasil melhor: 32 Cirurgia em área indígena “Ferir a ética não está em fazer; porém, em não fazer... em esconder-se na omissão!” Referências bibliográficas BARROS, E., ALBUQUERQUE,G., PINHEIRO,C., CZEPIELEWSKI, M. Exame Clínico. Consulta rápida,1ª ed., Artes Médicas, Porto Alegre, 1999. CLINE, D.M., M.A., O.J. Emergências Médicas, 5ª ed., Mc Grae hill, Espanha, 2001. GOLDMAN, L.; BENNETT, J.C. Cecil textbook of medicine, 21ª ed., WB Saunders Company, Philadelphia, 2001. SABISTON, D. C. Sabiston Essentials of Surgery. 2ª ed. WB Saunders, EUA, 1987. SHUBHADA,N. A.; KELLIE F. & SUBRAMANIAN P. The Washington Manual of Medical Therapeutics, 30ª ed. Saint Louis, Missouri, USA, 2001. SILVERWOOD-COPE P.L. Cosmologia. Morte e vida nas plantas, monstros, caça e homens. In: Silverwood-Cope PL. Os Maku, povo caçador do noroeste da Amazônia, 1ª ed., Brasília, Ed.Unb, v.1, p.173-176, 1990. WAY, L.W. & DOHERTY, G.M. Current surgical diagnosis and treatment. 11ª ed., Lange Medical Books, EUA, pp. 100-142, 2003. 33 Ações em saúde indígena amazônica 34 3 Ações em Saúde Indígena Amazônica: O Modelo do Alto Rio Negro FOIRN • São Gabriel da Cachoeira • 2006 Capítulo 3, pp. 30 - 39 Nutrição em área indígena Oscar Espellet Soares Médico cirurgião-geral da Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro – FOIRN Introdução Toda a fonte alimentar kilo-calórica tem origem viva. Como explicar a fome, mesmo que em caráter sazonal, em uma região onde abundam seres vivos?! Segundo dados da FUNASA, a desnutrição esta presente como cofator da mortalidade infantil em 75% das crianças de 0-5 anos. Para as diferentes etnias do alto rio Negro, o cenário de oferta de alimentos não é igual; no entanto predomina uma frágil estrutura de obtenção de recursos nutritivos. A floresta amazônica abriga a maior biodiversidade do planeta seja no reino animal, seja no vegetal; no entanto a desnutrição em alguns povos indígenas do alto rio Negro é fato grosseiro e evidente. Para explicar isto precisamos nos remeter a um passado não muito distante. Aspectos antropológicos No extremo noroeste do Brasil, localiza-se a “Cabeça do Cachorro”, uma região que abriga aproximadamente 30 mil indígenas de 22 distintas etnias num território de floresta ainda preservado, no qual o meio ambiente é muito diversificado e irregular, isto é os recursos são altamente dispersos e não distribuídos de maneira uniforme na região. Por exemplo, não há terra firme em toda a região. No entanto, a terra firme é imprescindível para abrir as plantações de mandioca. As palmeiras, tão importantes na cultura indígena, na vida ritual e na alimentação dos índios, somente crescem em certos lugares; há muita caatinga onde nada cresce! Além do mais, 35 Ações em saúde indígena amazônica os índios precisam de espaço para seus deslocamentos, suas mudanças de sítios (antigamente os povos Tukano e Aruak mudavam as suas malocas de lugar a cada 10 anos) e de lugares onde abrir as roças para permitir a regeneração da floresta que, no caso do rio Negro, um ambiente por natureza bastante frágil e estéril, demanda mais de vinte anos. E no caso dos povos ribeirinhos devido à sedentarização imposta pela organização dos povoados (no lugar das antigas malocas) e o adensamento populacional em certos lugares, os indígenas reabrem as suas plantações antes do processo de regeneração natural da floresta ser completado. A estruturação do sistema produtivo entre estas várias etnias remonta a tempos seculares com uma grande finalidade primordial: obter comida e sobreviver! A vida nas matas impõe um elevado tributo àqueles que nela habitam e a organização comunitária sempre utilizou técnicas “milenares” para a obtenção de recursos alimentares e outros (tecnológicos, medicinais). Todos esses povos são agricultores, em maior ou menor grau, assim como são pescadores ou caçadores em maior ou menor grau, conforme o tipo de ecossistema em que vivem. Por exemplo, boa parte dos Desana vive na beira de igarapés e, por isso, ao menos no passado, caçavam mais do que pescavam; por sua vez, o grupo Tukano, que mora na beira dos grandes rios é mais pescador do que caçador, o que não quer dizer que ele não saiba caçar ou que ele nunca caça! Essa “preferência” é também marcada no mito e constitui o fundamento dos dabucuri (festas de trocas de alimentos e outros bens): por exemplo, os Tukano sempre irão oferecer peixes para os Desana (e nunca carne de caça) ao passo que os Desana sempre irão oferecer carne de caça para os Tukano (e nunca peixe). Por fim, cada um desses povos é considerado como o melhor artesão, isto é, aquele que sabe melhor fabricar desde certos artefatos como as canoas para os Tuyuka, os artigos de cestaria para o processamento da mandioca para os Desana, os bancos para os Tukano etc. No entanto, produzir estes itens envolve um “know-how” que tem apenas a transmissão oral do conhecimento para se manter, já que o sistema da escrita não foi desenvolvido. Porém, ao longo da história, novas personagens se anunciaram com a colonização das Américas. A chegada dos missionários católicos trazia um objetivo prioritário, salvar os ímpios já que uma bula papal do século 16, após muitas discus36 Nutrição em área indígena sões, concluiu que também o indígena tem alma e que alguém deveria trazer a mensagem da Santa Igreja ao Novo Mundo para salvá-lo da perdição. O método de impregnação cristã, então utilizado entre os povos ameríndios, já havia sido testado e aprovado na idade média européia e nas grandes cruzadas, demonstrando grande eficiência. Primeiro, ensinou-se o demônio e seus mecanismos de sofrimento, penúria e castigo. Depois ensinaram onde se escondia o diabo: na nudez, na dança, na língua, na poligamia, nas festas, nas malocas comunitárias e nos dabucuri . Por fim, ensinaram a salvação: Cristo. O mecanismo de transmissão oral assim foi minado. O sistema tradicional de troca começou a ser ameaçado e iniciouse então uma era de dependência em relação aos de recursos ocidentais que se estende e agrava até os dias de hoje, sem sinais de contenção ou moderação (não esquecer também que a chegada dos brancos nos territórios indígenas sempre é acompanhada por uma redução do território tradicional dos indios e a conseqüente limitação dos seus territórios de caça, de pesca, além da introdução de alimentos e técnicas etc.). Por fim, a redução dos territórios tradicionais e a conseqüente diminuição dos recursos tradicionais impõe aos indígena uma dependência crescente em relação aos produtos dos brancos. A pesca passou, ao longo do tempo, a ser feita com anzóis, linhas de nylon, redes, malhadeiras; a caça, com pólvora, lanternas; a artesania de poteria de barro, com finalidade refrigeradora dos alimentos, começou à ser substituída por outros materiais como plástico, alumínio; as roupas de material fabril cobriram a nudez e trouxeram doenças; povos anteriormente altamente moveis passaram à se sedentarizar à força ou por vontade própria em um curto espaço de tempo perdendo, assim, a harmonia sanitária com o seu meio; as verminoses se instalaram; as epidemias se tornaram freqüentes... enfim, ao orgulho indígena os missionários tentaram impor a vergonha e negação de seus valores. O que se vê no rio Negro é mais um sistema missionário de denigramento da cultura indígena e de seus valores; isto é, eles passaram com um buldozer em cima da cultura indigena e ninguém pode escapar sadio das conseqüências desse processo. Mas não só os missionários fizeram isso, os militares, os colonos, com seus preconceitos em relação aos indígenas e à sua cultura, e também muito pessoal de saúde quando consi37 Ações em saúde indígena amazônica dera que os índios não têm a minima noção de higiene ou vive de maneira promíscua etc. (o que é totalmente errado). É muito comum a expressão de descontentamento dos indígenas contemporâneos frente a este quadro, e agora se estabelece um processo de resgate da cultura ameaçada. Epidemiologia Foto: M.S. de Castro A medição do estado nutricional requer treinamento adequado e utilização de tabelas para referência do perfil de normalidade e conseqüentes desvios. A medicina ocidental utiliza parâmetros de normalidade pouco aplicáveis ao universo indígena amazônico. Os dados antropométricos medidos como índice de massa corporal (peso dividido pelo quadrado da altura), circunferência braquial, prega triciptal e prega sub-escapular (medidos com calíper ou adipômetro) são bons referenciais e sugerem quantificações de reservas protéicas (musculatura) e de gorduras (pregas); no entanto, sua aplicação requer treinamento, envolve materiais sensíveis e metodologia estatística para estabelecer referenciais. As curvas de plotagem de normalidade ainda não são confiáveis e requerem uma coleta de dados mais extensa e abrangente, ainda não disponível em literatura, porém algumas conclusões já podem se estabelecer, principalmente, frente àqueles casos de desnutrição moderada e grave, uma vez que os casos leves podem ser confundidos como limites inferiores da normalidade, na ausência de um padrão ouro referencial. ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ FIGURA 1 ○ ○ ○ 38 ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ Desnutrição pronunciada . Foto: M.S. de Castro Nutrição em área indígena ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ FIGURA 2 ○ ○ Desnutrição pronunciada. No que tange às fontes de alimento é característica marcante dos povos do alto rio Negro terem o perfil de “alimentação de risco”, isto é, pouco armazenamento de reservas alimentares, uma vez que a conservação de alimentos no clima equatorial úmido é tarefa muito difícil e requer uma metodologia peculiar, hoje, cada vez menos aplicada. A dieta indígena básica, nesta região, se resume à derivados variados da mandioca, caça, pesca, frutas e insetos sazonais. Progressivamente estão sendo incorporados, na dieta regular, elementos da cultura ocidental industrial como farinha de trigo, sal e açúcar, arroz, massas, carne de lata, sardinhas de lata, café etc. A utilização do processo de defumação é um recurso corrente para o pequeno armazenamento temporário de alimentos de origem animal, porém nem sempre há fartura de caça ou pesca para enfrentar longos períodos sem reposição do pequeno estoque. A mandioca amarga (Manihot esculenta Cranz), cultivada pelo sistema da coivara é forte componente da dieta indígena, sendo consumida na forma de farinha, beiju etc... no entanto, traduz fonte apenas de amido e fibras e necessita complementação dietética com outras fontes alimentares como proteína animal e vegetal, vitaminas lipo e hidrossolúveis e fontes de gorduras. 39 Ações em saúde indígena amazônica Convém lembrar que algumas etnias não dominam bem a agricultura. Como exemplo, os Maku, povo de grande deslocamento no alto rio Negro, sabem plantar e sempre tiveram e têm pequenas roças mas a sua alta mobilidade impede-os de manter roças grandes e bem cuidadas, sendo eles mais caçadores-coletores do que agricultores. Neste sentido o erro etnocidiário dos salesianos foi de tentar transformar grupos de caçadorescoletores altamente movéis em grupos de agricultores sedentários; portanto, agora, dependem do frágil comércio inter-étnico para complementação dietética. Hoje são estes que estão em pior situação nutricional, uma vez que os laços de troca estão comprometidos de forma mais intensa com a cultura ocidental . Um estudo recente do Instituto Socioambiental – ISA, em uma amostragem na área do alto rio Tiquié, sub-região do alto rio Negro, aponta para desnutrição proteico-calórica de caráter crônico nas populações indígenas, decorrente de múltipla infestação parasitária intestinal e baixo aporte nutricional por pouca disponibilidade sazonal de alimentos. Do ponto de vista clínico este cenário se expressa por um alto índice de doenças diarréicas e respiratórias graves, refratárias ao tratamento, com elevada mortalidade infantil e de idosos uma vez que a reserva imunológica está diretamente vinculada ao estado nutricional. Neste contexto repousa também a explicação do alto índice de miositepiomiosite tropical nestas populações, uma vez que é doença estafilocóccica que se expressa em população de imuno-deprimidos (AIDS, desnutrição, câncer), já que o tecido muscular é altamente resistente à infecção, sob condições de normalidade consensual. Como recurso vigente implantado o tratamento do parasitismo intestinal sem um adequado saneamento do meio, mesmo com tratamentos de massa programados ao longo do ano (sugerimos Albendazol 400mg VO, dose única, duas vezes ao ano), é tarefa pouco resolutiva, apesar de algum impacto transitório e imediato pois reduz significativamente a “carga parasitária”. Apenas a remodelação sanitária produz efeitos duradouros, porém poucas são as ações reais de saneamento do meio ambiente indígena brasileiro (oferta de fonte de água potável para o consumo). Muito se resume à propostas de projetos para implantação futura, no entanto, não há seriedade política nestas idéias. 40 Nutrição em área indígena O desarranjo sócio-ambiental requer esforços multi-disciplinares para melhoria da qualidade de vida e, desta forma para reverter as condições propícias para as mais diferentes entidades nosológicas. Diante deste cenário de difícil resolução é válida a conclusão de que a pior doença existente em área indígena é a imuno-deficiência nutricional, daí que neonatos de baixo peso expressam a população de maior risco e forte possibilidade de não atingirem o segundo ano de vida. Os métodos assistenciais precisam ser dirigidos para estas prioridades, uma vez que os desnutridos morrem prematuramente e de causas banais. Ações paternalisantes de prover alimentos agravam o problema; no entanto, diante de um caso isolado de desnutrição severa indicamos remoção para um centro diagnóstico para excluir patologia de base (principalmente tuberculose) e indicamos o complemento nutricional o mais rápido possível. Quando o quadro é extensivo a todos os elementos da população, como na maioria dos povos caçadores-coletores, sedentarizados à força, precisamos nos preocupar em desenvolver projetos auto-sustentáveis para erradicação da fome. Tarefa extremamente difícil. Mas isto requer profundo empenho de ações de governo, ainda não existentes na amazônia brasileira. Considerações finais Não há cultura isolada e estática, todas são dinâmicas e interativas. A realidade sócio-ambiental indígena se traduz em desarranjo dos meios de auto-sustentação, principalmente no que tange à busca de alimentos. A única maneira encontrada até o momento para amenizar a pouca oferta de recursos alimentares é a monetarização do indígena, através de empregos de baixa renda, aposentadorias e pequenas vendas de artesanato e produtos extraídos da floresta. Cabe a ressalva de alguns projetos pilotos de produção extensiva de alimentos (como a piscicultura, por exemplo), em implantação em algumas regiões do alto rio Negro em parceria estreita entre a Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro – FOIRN, associações indígenas filhadas e o Instituto Socioambiental – ISA. No entanto há dúvidas se realmente são auto-sustentáveis... somente o tempo dirá e todos torcemos para que isto realmente aconteça. 41 Ações em saúde indígena amazônica Diante desta realidade todos os melhores esforços de assistência à saúde provavelmente não causarão maior impacto nos índices de morbimortalidade, principalmente em população infantil, uma vez que a patologia de base, a desnutrição, continua sem solução. Certos povos caçadores-coletores, originalmente com alto grau de mobilidade espacial, agora agregados e sedentarizados, seja por ações de missionários católicos, seja por delimitação territorial de áreas demarcadas, não conseguiram amenizar o impacto da perda cultural para obter os meios de subsistência na selva. Apresentam altíssimo índice de mortalidade infantil e são populações, sem dúvida alguma, em descenso populacional. Ações de organizações não governamentais sérias e tecnicamente preparadas são uma fonte de esperança, pois já enfrentam o desafio de reverter este quadro ameaçador. Notamos que, infelizmente, não há um órgão governamental que fiscalize a ética de atitudes de frentes missionárias cristãs na Amazônia brasileira. A penetração em território indígena de catequistas de nacionalidade externa ainda é grande e preocupante e exerce grave influência política local. O futuro é incerto. Para finalizar, saibamos todos que será tarefa extremamente difícil, e que tange o absurdo explicar para os nossos filhos que em nome de uma mensagem de amor e solidariedade, na figura de Cristo, extinguiram-se povos, arrasaram-se culturas e estabeleceram-se o etnocidio e o genocídio... guiados pela melhor das intenções! Referências bibliográficas ATHIAS R. Análise das representações de doenças contagiosas entre os HupdeMaku do alto rio Negro. 1997. Inédito BARROS, E.; ALBUQUERQUE,G.; PINHEIRO,C. & CZEPIELEWSKI, M. Exame Clínico. Consulta rápida,1ª ed., Artes Médicas, Porto Alegre, 1999. CLINE,D.M.; M.A.; O.J. Emergências médicas, 5ª ed., Mc Grae Hill, Espanha. 2001. FEDERAÇÃO DAS ORGANIZAÇÕES INDÍGENAS DO RIO NEGRO; INSTITUTO SOCIOAMBIENTAL. Povos indígenas do alto e médio rio Negro, 1ª ed., Ministério da Educação e Cultura, Secretaria de Ensino Fundamental, v.1, 1998. 42 Nutrição em área indígena FUNASA. Manual de Atenção à Saúde da Criança Indígena. MS, 2004, Brasília. GOLDMAN,L., BENNETT,J.C. Cecil textbook of medicine, 21ª ed., WB Saunders Company, Philadelphia, 2001 MARCONDES,E.,ISSLER,H.,LEONE,C., Pediatria na atenção básica primária. São Paulo: Sarvier. 2002. POZZOBON J., Maku. Museu Paraense Emilio Goeldi, Jan. 1999. RIBEIRO, B.G., Introdução. In: Ribeiro, BR. Os índios das águas pretas, 1ª ed., São Paulo, Edusp e Companhia das Letras, v.1, p.17-29, 1995. RIBEIRO, D., O problema indígena. Doença, fome e desengano. In: Ribeiro D. Os índios e a civilização, 1ª ed., Brasília, Ed. Vozes, v.1, p. 207-214, 1980. SILVERWOOD-COPE P.L., Cosmologia. Morte e vida nas plantas, monstros, caça e homens. In: Silverwood-Cope P.L., Os Maku, povo caçador do noroeste da Amazônia, 1ª ed., Brasília, Ed.Unb, v.1, p.173-176, 1990. WAY, LW, DOHERTY, GM. Current surgical diagnosis and treatment. 11ª ed., Lange Medical Books, EUA, pp. 156-191, 2003.4. 43 Ações em saúde indígena amazônica 44 4 Ações em Saúde Indígena Amazônica: O Modelo do Alto Rio Negro FOIRN • São Gabriel da Cachoeira • 2006 Capítulo 4, pp. 41 - 53 Tracoma em área indígena Oscar Espellet Soares Médico cirurgião-geral da Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro – FOIRN Colaboração: Norma Helen Medina Médica oftalmologista – Diretora do Centro de Oftalmologia Sanitária do Centro de Vigilância epidemiológica da Secretaria de Estado da Saúde – São Paulo Introdução O tracoma é uma conjuntivite crônica provocada pela bactéria Chlamydia trachomatis, sorotipos A, B e C. De acordo com a OMS o tracoma é uma importante causa de cegueira nos países emergentes, apresentando a peculiaridade de ser irreversível, refratária ao transplante de córnea. O ambiente propício para criação de bolsões endêmicos no planeta é aquele de desarranjo sócio-ambiental e, conseqüentemente, falta de saneamento do meio. A atual realidade indígena de alguns povos do alto rio Negro preenche todos os requisitos para a disseminação da doença como já foi provado e constatado, abrangendo de forma distinta as 3 famílias linguísticas e as 22 etnias filhadas. Nos povos das famílias lingüísticas Aruak e Tukano Oriental a prevalência da bactéria, acometendo a conjuntiva, é alta (20%) enquanto que as formas cegantes (sequelares) são raras. Já, entre as populações da família Maku, reportam-se taxas de prevalência acima de 50% de formas inflamatórias (aquelas que traduzem atividade da bactéria, na conjuntiva) e números acima de 10% para as formas cegantes. À título de comparação, no Kenya (considerado como região hiperendêmica), África, as mesmas taxas reportam números em torno de 20% e 5%, respectivamente. 45 Ações em saúde indígena amazônica Fisiopatologia A conjuntivite tracomatosa é infecto-contagiosa e seu meio de transmissão se dá por secreção ocular em contato direto ou indireto com o receptor; daí ser importante lembrar que roupas, lençóis, redes de dormir e até mesmo moscas e outros insetos podem transportar uma quantidade suficiente de Clamídias para se estabelecer o contágio. A simples higiene matinal como lavar a face, e o uso de sabão nas roupas e fômites e adequado saneamento do meio para diminuir o número de moscas e outros insetos, já são medidas suficientes para diminuir o contágio e, até mesmo, estabelecer a cura das formas ativas de doença; no entanto, com a fome e a miséria crescendo no planeta, estas medidas estão longe de serem implantadas, especialmente em certas áreas indígenas amazônicas. As primeiras formas da doença se estabelecem ainda na infância, em crises agudas de doença ativa com remissões espontâneas e novas agudizações. A maioria dos casos é pouco sintomática com referência, apenas, à sensação de corpo estranho ocular, e prurido (sintoma mais freqüente), como uma conjuntivite leve, acompanhada de secreção muco-purulenta discreta. Ao longo do tempo, após vários episódios acima reportados, se instalam as cicatrizes conjuntivais e tarsais, que poderão sofrer retração e, conseqüente deformidade tarsal, com inversão dos bordas das pálpebras para dentro (entrópio) e os cílios podem assumir posição anômala fazendoos tocar o globo ocular (triquíasis). Quando ocorre a inversão do bordo palpebral, a pele da pálpebra superior passa a fazer atrito sobre a córnea, idem os pêlos ciliares que, por entrópio ou por triquiasis, passam a roçar a córnea a cada abertura e fechamento dos olhos, causando profunda dor e fotofobia. Com o tempo, pode ocorrer neovascularização na córnea (pannus) e levando à proliferação de fibroblastos e depósito de colágeno, dando um aspecto branco-leitoso à transparência corneana, estabelecendo, assim, a cegueira de dificílima resolução (refratária ao transplante). Considerações antropológicas O rápido processo de cristianização e integração da sociedade indígena junto à ocidental favoreceu para que uma situação de desarranjo sócio-ambiental se estabelecesse, ameaçando os métodos de caça, pesca e 46 Tracoma em área indígena agricultura, tornando-se este impacto mais evidente junto aos povos de comportamento caçador-coletor da família lingüística Maku; no entanto, esta realidade não é a mesma das demais etnias que habitam os afluentes do alto rio Negro junto às quais adaptações ao novo cenário ocorreram, diminuindo as conseqüências deste desarranjo. Os indígenas não perderam as técnicas de pesca nem de caça e a falta de peixe ou de caça em certas sub-regiões do rio Negro, por exemplo, pode ser explicada por várias razões. No caso da pesca, por exemplo, além do ambiente naturalmente frágil e estéril por se tratar de um ecossistema de águas pretas, a sedentarização aliada ao aumento demográfico de certas comunidades que fazem com que as mesmas áreas estejam utilizadas, ou também o uso exagerado de timbó (veneno de origem vegetal utilizado em métodos de pesca artesanal) etc. são fatores que favoreceram a diminuição ou escassez de peixes. Entre os certos sub-grupos da família Maku, hoje sedentários, a situação de desarranjo sócio-ambiental levou ao acúmulo de resíduos humanos próximos às moradias, favorecendo a grande população de moscas e outros insetos. Estas populações são as que mais sentem os efeitos do tracoma devido ao profundo desarranjo social com o meio em curto espaço de tempo, sem adequado conhecimento para a vida comunitária sedentária; daí que o acúmulo de resíduos e dejetos é mais caótico (este comentário se estende para o entendimento da fome e suas conseqüências nosológicas). Nestes grupos o tracoma assume proporções monstruosas, bem piores que os mais negativos índices reportados, ao redor do globo, em literatura especializada. Tratando-se de culturas de transmissão “oral”, sem o desenvolvimento da escrita, grande parte do conhecimento para uma organização social mais harmônica com seu meio, corre o risco de desaparecer, fato que traduz um prognóstico muito sombrio para resolução de várias endemias. A perda rápida e progressiva da harmonia social com o meio é o fator de maior responsabilidade no surgimento de endemias e epidemias em certos grupos indígenas aldeados. Com o tracoma, não é diferente. A cristianização imposta ao mundo indígena assume destaque, uma vez que a nudez foi combatida com a rápida introdução de material fabril, sem a adequada introdução dos conceitos do manuseio higiênico destes; o mesmo acontecendo com utensílios domésticos estranhos ao universo indí47 Ações em saúde indígena amazônica gena, como a rede de dormir de algodão fabril, por exemplo (importante reservatório de clamídias). A metodologia missionária de aplicação ao mundo indígena, ainda hoje praticada, enfatiza a urgente rejeição aos valores autóctones, que representam conhecimento para se viver nas selvas, com menor dependência do mundo ocidental. Clínica O diagnóstico preciso da doença se estabelece, frente aos casos suspeitos, com o exame clínico ocular padronizado pela OMS. Daí se procede, então, a notificação; salientamos lembrar que este método não é único, podendo recorrer à confirmação laboratorial, como a imuno-fluorescência direta; no entanto, a base de exames laboratoriais perdem em sensibilidade frente ao exame clínico para medir índices de incidência e prevalência . Em 1987 a OMS adotou um método simples de exame clínico confiável e de padronização mundial para o diagnóstico da doença após notificação. São 5 formas clínicas de apresentação da doença. Três formas são inspecionadas na pálpebra superior evertida, de ambos os olhos e duas, com os olhos abertos para inspecionar a linha de implantação ciliar e a transparência da córnea. Apenas a placa tarsal, propriamente dita, e sua conjuntiva são considerados local de exame de inspeção, na pálpebra superior evertida, para o diagnóstico clínico do tracoma (Figura1). ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ Acervo DSEI/FOIRN ○ FIGURA 1 ○ ○ Desenho esquemático da pálpebra superior, evertida. A área de exame está delimitada na região mais central da conjuntiva tarsal (linha pontilhada). 48 Tracoma em área indígena Padronizaçâo clínica Foto: M. S. de Castro • TRACOMA FOLICULAR (TF): com a pálpebra superior evertida, a presença de 5 ou mais folículos (pontos claros, elevados), medindo 0.5mm ou mais de diâmetro; traduz doença ativa e ação clamidiana (contagiosa). • TRACOMA INTENSO (TI): com a pálpebra superior evertida, observase hiperemia intensa com edema conjuntival e perda de visibilidade de 50% do total dos vasos tarsais profundos ou de sua extensão, também traduz doença ativa e contagiosa. ○ ○ ○ ○ ○ FIGURA 2 ○ Foliculos tracomatosos e tracoma intenso. ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ • TRACOMA CICATRICIAL (TS): Com a pálpebra superior evertida, observam-se cicatrizes em forma de rede ou estrelas, como pequenas linhas brancas irregulares na placa tarsal; traduz doença residual (sequelar). • TRIQUIASIE TRACOMATOSA (TT): sem everter a pálpebra superior, procura-se qualquer pêlo ciliar que toque o globo ocular ou sinais de remoção recente de pêlo ciliar; traduz forte risco de cegueira futura. ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ FIGURA Foto: M. S. de Castro 3 ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ Triquiasis. 49 Ações em saúde indígena amazônica Foto: M. S. de Castro • OPACIFICAÇÃO CORNEANA (CO): sem everter a pálpebra superior, procura-se a perda de transparência da córnea, na área correspondente à pupila; traduz cegueira iminente ou estabelecida. Quase invariavelmente coexiste com TT. ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ FIGURA 4 ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ Tracoma cegante com entrópio e opacificação corneana. Padronização clínica simplificada do tracoma, segundo a OMS TABEL A ○ ○ 1 ○ TF 5 o u mais fo lículo s de 5 mm TI diminuição da visualização de 50% da ex tensão do s vaso s tarsais pro fundo s TS cicatrizes traco mato sas TT presença de entró pio e/ o u triquiasis CO o pacificação da có rnea envo lvendo área pupilar Do ponto de vista prático, TF e TI representam o tracoma chamado inflamatório; a clamídia está presente e é contagioso. TT e CO representam o tracoma chamado cegante, onde não há risco de contágio e são considerados como casos sequelares de doença antiga. A linha divisória é o TS, que requer revisões periódicas anuais devido ao risco de desenvolver TT. É importante lembrar que um mesmo paciente pode ter a doença em um olho e noutro não, ou pode ter diferentes formas clínicas coexistindo num mesmo olho ou em ambos; basta apresentar uma forma clínica qualquer, que o diagnóstico está estabelecido desde que o técnico examinador tenha sido padronizado para o diagnóstico frente às normas da OMS (re50 Tracoma em área indígena quisito de difícil obtenção uma vez que o certificado de padronização é extremamente rigoroso e somente fornecido por membros do MS, mediante curso de padronização do diagnóstico do tracoma). À partir destes cinco padrões diagnósticos, a doença pode, universalmente ser compreendida e analisada em seus marcadores epidemiológicos, lembrando que é uma doença infecto-contagiosa e de profundo impacto na qualidade de vida ao redor do globo. Tratamento A OMS preconiza que a maneira mais razoável de enfrentar o tracoma é através da estratégia SAFE, um acrônimo em língua inglesa, onde cada letra representa um passo, dispostos em ordem prioritária de implantação, especificamente “Surgery”, “Antibiotics”, “Face washing” e “Environmental .Health”; no entanto, ainda há certa dúvida se este padrão estratégico é aplicável aos povos indígenas amazônicos, fato que somente o tempo dirá. Cirurgia A primeira letra (S) representa “surgery” (cirurgia), o que aponta para o primeiro ato à enfrentar o tracoma é a cirurgia corretiva de todos os casos que configurem TT, uma vez que traduzem risco de cegueira futura ou iminente e alívio sintomático para aqueles que já estão cegos. A cirurgia é proposta, em todo o mundo, fora do ambiente hospitalar, o mais próximo possível do local de habitação para que se aumente a aceitação e complacência ao tratamento necessário, inclusive com finalidade de redução de custos aos programas de saúde pública. Existem diferentes técnicas operatórias para a resolução de todo o caso que configure TT. Aquela adotada pela OMS, chamada técnica de Ballen, se faz por via anterior através de uma blefarotomia total para que, então, se reposicione o bordo palpebral, por imbricamento da placa tarsal fraturada. Corre o risco de sangramento profuso, uma vez que toda a pálpebra foi partida, inclusive a sua musculatura (ricamente vascularisada). A técnica empregada no único e pioneiro programa cirúrgico da estratégia SAFE em área indígena brasileira, se faz por via posterior, transconjuntival, chamada técnica de Halassa e Jarundi, sem manipular a musculatura, com bons resultados comparáveis aos da literatura (resolutividade 51 Ações em saúde indígena amazônica Foto: M. S. de Castro de 70% e falha de 30%), no entanto, ligeiramente inferiores ao resultados da técnica de Ballen (OMS). ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ FIGURA 5 ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ Cirurgia em área indígena O bordo palpebral também é reposicionado por fratura tarsal e imbricamento dos folhetos, com pontos de ancoragem. Independentemente de técnica empregada os procedimentos são feitos sob anestesia local e na comunidade indígena. Tradicionalmente em cirurgia, os ferimentos operatórios podem ser considerados limpos, potencialmente contaminados, contaminados ou infectados, dependendo da quantia de bactérias por grama cúbica de tecido humano (isto, obviamente, depende da patologia e do local anatômico onde é feito o ato operatório). As cirurgias corretivas do tracoma são consideradas ferimentos contaminados, daí ser compreensível e dispensável o ambiente hospitalar . São procedimentos viáveis e seguros, aceitos mundialmente e amparados por normas da OMS; no entanto, no Brasil, ainda existem resistências dentro dos programas de saúde pública e estes procedimentos apenas há pouco tempo começaram a ser feitos em área indígena. Antibioticoterapia Dentro da estratégia SAFE, a letra A representa “antibiotics”, uso de antibióticos, o que traduz combate à clamídia nas formas inflamatórias da doença (TF e TI). 52 Tracoma em área indígena A opção antibiótica vai desde a pomada oftálmica de tetraciclina, 2 vezes ao dia, por 6 semanas contínuas ou eritromicina 500mg, 6/6h, por 3 semanas, ou sulfa, dois tabletes ao dia, por 3 semanas ou doxiciclina 100mg/dia, 12/12 horas, por 3 semanas, para os maiores de 10 anos de idade; no entanto, estas propostas representam tratamentos de baixa adesão posológica e, portanto, baixa efetividade. O tratamento hoje preferencial, é feito com dose “única¨ de azitromicina 20mg/kg, VO, até o máximo de 1000mg por dose, o que representa um tratamento seguro e altamente eficaz além de alta taxa de adesão. No alto rio Negro, Amazonas, o projeto pioneiro de adoção do tratamento em massa com azitromicina apontou uma redução de 40% das formas ativas após um ciclo da droga e uma redução de 20% após 2º ciclo da droga um ano após o primeiro, totalizando uma redução final de 52,8%% das formas ativas iniciais. Gestantes não entram neste esquema sendo, então indicado o tratamento tópico com pomada de tetraciclina. De acordo com as normas da OMS, optamos por dose única de azitromicina extensiva à todas as pessoas da comunidade quando os índices gerais de prevalência de tracoma inflamatório excedem 10%, com reforço de nova dose 1 vez ao ano, por 3 anos consecutivos, até ocorrerem reduções significativas das taxas, quando, então, se estabelece o tratamento individual, dos futuros novos casos. Higiene A próxima letra do acróstico é F (face washing), e traduz o hábito do freqüente uso da água limpa, seja na higiene pessoal ou de fômites em geral. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS) é extremamente difícil resolver este item uma vez que o hábito do uso da água limpa é uma barreira de difícil transposição mesmo com intensos programas de distribuição gratuita de sabão; no entanto, é possível serem implantados modelos educativos, para que se possa mudar este cenário e para tal é fundamental estabelecer nova metodologia adequada, partindo dos bancos de escolas. Saúde e educação são indissociáveis. Meio ambiente O último item da estratégia é a letra E (Environmental Health), que traduz melhora do meio ambiente com oferta de água potável e adequado destino dos dejetos humanos e lixo. 53 Ações em saúde indígena amazônica Este referencial somente será alterado se reais políticas de saúde pública poderem ser viabilizadas para grandes massas de excluídos sociais; convém lembrar que o ministério da saúde disponibiliza recursos para saneamento básico desde que apresentados projetos viáveis e cabíveis por parte dos governos municipais em todo o território nacional. A região norte do Brasil apresenta acentuada imaturidade política para implantação de ações de saneamento. Acredita-se que esta tarefa deverá ser cumprida pelo terceiro setor representado por ONG´s sérias e atuantes na região. ○ ○ ○ Estratégia SAFE ○ TABEL A ○ ○ 2 ES TRATÉGIA CONDUTA S-surgery o perar to do o caso Tt A- antibio tics tratar co m antibió tico s to do o caso que co nfigure Tf e/ o u Ti (co nsiderar tratamento individual, familiar o u em massa) F-face washing promover a higiene E-enviro nmental health promover a melhoria das condições sócio-ambientais Enfim, os únicos itens que estão ao alcance de ações de curto prazo, são a cirurgia e a antibioticoterapia. Os demais requerem um projeto sério de saúde pública de médio à longo prazo e sólidos planos de governo. A estratégia SAFE há muito é aplicada ao redor do globo especialmente em regiões de grande fome e miséria como a África e Ásia e parece ser a melhor metodologia até então, uma vez que, repito, a cegueira decorrente do tracoma não tem tratamento na medicina ocidental contemporânea; no entanto, a realidade sócio-antropológica de alguns povos indígenas do alto rio Negro apresenta peculiaridades únicas que merecem atenção diferenciada e melhores estudos de impacto, para que, então, este perfil de abordagem se mostre realmente funcional. Considerações finais O tracoma é uma doença que traduz desarranjo sócio-ambiental e coloca a qualidade de vida abaixo de quaisquer níveis de aceitabilidade; no 54 Tracoma em área indígena entanto, o Brasil considera esta patologia pouco expressiva nas populações pobres do país. Tamanha é a desconsideração com esta realidade que esta doença não mais é ensinada nas faculdades de medicina e enfermagem e, nem sequer, nas residências médicas de oftalmologia, no Brasil. Os países vizinhos ao Brasil agem de igual forma, negando o cenário de desarranjo sócio-ambiental e suas doenças correlatas. As atitudes de profissionais sérios e qualificados junto à saúde indígena dos povos amazônicos trazem à tona o pioneirismo de ações até então negligenciadas, nunca antes realizadas no meio indígena brasileiro e que só agora, com muitos anos de atraso, começam a ser implantadas. Inúmeras vezes representantes do mal gerenciamento da saúde pública no Brasil tentaram ofuscar ou denegrir estas ações, porém o país está mudando para melhor e nós, profissionais da saúde indígena, acreditamos fazer a nossa parte com qualidade e dedicação. Frente a este cenário de horror e descaso, só podemos citar o ácido comentário do magnífico Sir Winston Churchill : “Você pode enganar algumas pessoas o tempo todo, ou enganar todos por algum tempo, porém não pode, jamais, enganar a todo mundo por todos os instantes”. Referências bibliográficas ATHIAS R. Análise das representações de doenças contagiosas entre os HupdeMaku do alto rio Negro, 1997. ALVES, A.P.X.; MEDINA, N.H.; CRUZ, A.A.V.Trachoma and ethnic diversity in the upper rio negro basin of amazonas state, Brazil. Ophthalmic epidemiology, 9: 29-34, 2002. ALVES, A.P.X. Tracoma em 4 grupos populacionais da região do alto e médio rio Negro, Amazonas, Brasil. Tese de doutorado. Faculdade de medicina de Ribeirão Preto/ USP. p.114: il. 30 cm, 2000. BALLEN, P.H. A simple procedure for the relief of trichiasis and entropion of upper eye lid. Archives of ophthalmology, 72:239-40, 1964. BAILEY, R.; LIETMAN, T. The safe strategy for elimination of trachoma by 2020: will it work? Bulletin of WHO, 79:233-236, 2001. 55 Ações em saúde indígena amazônica Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro; Instituto Socioambiental. Povos indígenas do alto e médio rio Negro, 1ª ed. Ministério da Educação e Cultura, Secretaria de Ensino Fundamental, v.1, 1998. FREITAS, C.A. Prevalência do tracoma no Brasil. Rev. Bras. Malariol. D. Trop. 28:227-370, 1976. GARRIDO, C.; GUIDUGLI, T.; CAMPOS, M. Estudo clínico-laboratorial do tracoma em população indígena da amazônia brasileira. Arq. Bras. oftalmol. 62:132-138, 1999. HALASSA, A. H. & JARUNDI, N.Tarsotomy for the correction of cicatricial entropion. Annals of ophthalmology, 6: 837-840, 1974. MACCALLAN, A. The epidemiology of trachoma. Br. J. Ophthalmol. 15:369,1931. MARX, R. Sociomedical aspects of trachoma. Acta Ophthalmol. Suppl.183:1-65,1988. MARX, R. Social factors and trachoma: a review of literature. Soc. S ci. Med. 29:23-34, 1989. Manual de controle do tracoma/Fundação Nacional da Saúde. - Brasilia: FUNASA, p.56 il.: 21cm, 2002. MUNOZ, B.; WEST, S. Trachoma: the forgoten cause of blindness. Epidemiol. Rer. 19: 205-217, 1997. NEGREL, A. D.; MARIOTTI, S. P. WHO alliance for the global elimination of blinding trachoma and the potencial use of azitromycin. International Journal of. Antimicrobial Agents. 10:259-262, 1998. SCARPI, M. J. História do tracoma no Brasil. Arq. Bras. Oftalmol.54:,1991. SCHWAB, L.; WHITTFIELD, R. J.; ROSS-DEGNAN, D.; STEINKULLER, P.; SWARTWOOD, J. The epidemiology of trachoma in rural Kenya . Ophtalmology 102:475-482, 1995. SCHACHTER, J.; WEST, S. K.; MABEY, D.; DAWSON, C. R.; BOBO, L.; BAILEY, R.; VITALE, S.; QUINN, T. C.; SHETA, A.; SALLAM, S.; MKOCHA, H.; FAAL, H. Azithromycin in control of trachoma. Lancet 354: 630-635,1999. SILVERWOOD-COPE P. L. Cosmologia. Morte e vida nas plantas, monstros, caça e homens. In: Silverwood-Cope PL. Os Maku, povo caçador do noroeste da Amazônia, 1ª ed., Brasilia, Edit.Unb, v.1, p.173-176, 1990. 56 Tracoma em área indígena SOARES, O.E. & CRUZ, A. A. V. Community-based transconjuntival marginal rotation for cicatricial trachoma in indians from the upper rio Negro basin. Braz. J Med. Biol. Res. 37 (5): 669-674, 2004 SUPERINTENDÊNCIA DE CAMPANHAS DE SAÚDE PÚBLICA. Manual de campanha contra o tracoma. 2. Ed. Brasilia: pp. 37, 1985 TABBARA, K. F.; EL-ASRAR, A. M. A.; AL-OMAR, O.; CHOUDLHURY, A. H.; AL-FAIZAL, Z. Single-dose azithromycin in the treatment of trachoma. Ophthalmology 103:842-846, 1996. TREHARNE, J. D. The comunity epidemiology of trachoma. rev. infect. Dis. 7:760-764, 1985. WHO. Global data on visual impairment on year 2002. WHO Bulletin. v. 82, n. 11, Nov. 2004. WHO. Primary Health care Level Management of trachoma. Geneve: 1989. v.1, 14 pp. WHO. Report of third meeting of the WHO alliance for the global elimination of trachoma. 1998. WAY, LW, Doherty, G. M. Current surgical diagnosis and treatment. 11ª ed., Lange Medical Books, EUA, pp. 6-142. 2003. 57 Ações em saúde indígena amazônica 58 5 Ações em Saúde Indígena Amazônica: O Modelo do Alto Rio Negro FOIRN • São Gabriel da Cachoeira • 2006 Capítulo 5, pp. 55 - 64 Tuberculose em área indígena Oscar Espellet Soares Médico cirurgião-geral da Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro – FOIRN Introdução A infecção pelo bacilo de Koch é característica marcante de populações desnutridas e sob desarranjo sócio-ambiental. A tuberculose em área indígena amazônica atinge proporções alarmantes conforme reportam os dados de publicação da Organização PanAmericana da Saúde (OPAS) atingindo coeficiente de incidência de 286 a 326 casos novos por 100.000 habitantes. Como exemplo preliminar citamos a nossa experiência no alto rio Negro, a qual reporta que, anualmente, no período de 2000 até 2002, foram diagnosticados, em média, 50 casos/ano para uma população alvo de 15 mil indígenas; à partir de 2003, a população alvo analisada se estendeu para um total de 20 mil indígenas aldeados, estando os números apontando para 76 novos casos por ano. Ações de saúde Nas análises anuais das populações indígenas do Brasil os números apontam para 90% dos novos casos como formas pulmonares e estes apresentam, em média, 50% de pacientes com análise de baciloscopia “negativa” no escarro (em algumas regiões, estes números atingem 70%, o que levanta a suspeita de erro diagnóstico dos excedentes). Os dados epidemiológicos dos povos indígenas do alto rio Negro endossam estes números. Infelizmente a pesquisa do bacilo de Koch no escarro apresenta resultados desanimadores e o diagnóstico da tuberculose pulmonar, em área 59 Ações em saúde indígena amazônica indígena, distante de um centro laboratorial-hospitalar, se estabelece, portanto, com a análise radiológica de todo o paciente tossidor crônico que apresenta emagrecimento progressivo... e isto parece ser a prática utilizada na população indígena brasileira (vide, por exemplo, a experiência do Distrito Sanitário Indígena do Xingu). Tendo em vista a dificuldade de obtenção de positividade na baciloscopia, o bom-senso nos direciona à apenas duas alternativas: implementação de abordagem diagnóstica laboratorial em área indígena ○ ○ ○ Quadro sindrômico da TB pulmonar TABEL A ○ ○ 1 ○ Emagrecimento pro gressivo * Febre co m sudo rese no turna Anemia To sse crô nica pro dutiva Astenia Ano rex ia * elemento universal em todas as formas da apresentação da doença (entenda-se teste tuberculínico e RX portátil) e liberação mais flexível de provas terapêuticas por parte do programa de controle da tuberculose. Para todos os demais pacientes suspeitos que apresentem o quadro sindrômico da doença (anemia, anorexia, astenia, tosse produtiva, emagrecimento, febre com sudorese noturna), entendidos como prováveis tossidores crônicos, o controle de peso, seriado e, no mínimo, semanal, parece a melhor conduta até então; no entanto, a procura da visualização do bacilo da tuberculose no escarro deve ser incansável e constante. Antropologia Os povos indígenas do alto rio Negro trazem em sua história e comportamento um íntimo convívio com a fumaça intra-domiciliar. A queima de matéria vegetal e seus gases emitidos oferece qualidade de vida para o convívio nas matas uma vez que espanta insetos e outros 60 Tuberculose em área indígena artrópodes nocivos, afugenta animais variados (é o único método, conhecido na ciência ocidental, que realmente afasta ofídios peçonhentos) e está indissoluvelmente vinculado aos rituais de cura, como elemento de purificação; portanto, na visão indígena da região, o convívio com a fumaça em ambiente doméstico traduz benefício e conforto. Obviamente apresentamos um tópico no revéz da medicina ocidental, que entende o convívio em ambiente com estas características, altamente devastador para a função pulmonar. Não obstante, a maioria dos povos aqui analisados são populações de profundo vínculo com a água e o convívio com os rios, tendo uma vida de íntima relação com o ambiente úmido, fato que nos leva à elementar evidência de uma elevada taxa de infecções respiratórias baixas ao longo da primeira infância, sendo, portanto, importante elemento de formação de bronquiectasias (deformidades da árvore brônquica, com estase de secreções) e gênese de elevada prevalência de tossidores crônicos. Estes breves comentários parecem ser universais aos demais povos indígenas aldeados na região amazônica brasileira. Como elemento de agravo, a definição epidemiológica de tossidor crônico, utilizada pelo ministério da saúde, envolve a quantificação de tosse contínua por 3 semanas consecutivas; no entanto, os povos indígenas que habitam o rio Negro e seus afluentes não utilizam quantificações matemáticas exatas, apenas aproximadas... e isto é cultural; por mais que se implementem medidas educativas, elas não terão valor cotidiano e não serão empregadas; portanto, a plotagem dos tossidores crônicos necessita de outros critérios, que não aqueles consagrados na medicina ocidental. À título de complementação, para ilustrar melhor a complexidade de valores envolvidos, é importante mencionar que entre os Desana/Tukano orientais e os Tariana/Aruak, que são povos sedentários, de habitação ribeirinha, no alto rio Negro, certas formas clinicas da tuberculose (pulmonar, óssea, laringea, ganglionar) são associadas à feitiçaria xamânica, sendo consideradas como doenças tradicionais indígenas dentro da esfera mitológica; portanto, elas não são consideradas como contagiosas já que a feitiçaria, para surtir efeito, deve ser endereçada a uma pessoa específica; no entanto, os indígenas do alto rio Negro distinguem também uma forma branca da tuberculose pulmonar cuja concepção assemelha-se à concepção ocidental e que teria sido introduzida pelos brancos, enfim, com uma forma clínica de apresentação e suas implicações epidemiológicas condizentes com a definição ocidental (D. Buchillet, communicação pessoal, dezembro de 2004). 61 Ações em saúde indígena amazônica Outro comentário antropológico de valia é que certos povos caçadores-coletores não têm afinidade com o ambiente urbano e aqueles pacientes suspeitos clínicos de tuberculose pulmonar ativa, com estas características culturais, são resistentes ao encaminhamento para um centro de referência (isso vale, na verdade, para a maioria dos povos indígenas do rio Negro). Os pólos-bases de abrangência aos povos caçadores-coletores apresentam números preocupantes de pacientes com suspeita diagnóstica “clínica” de tuberculose pulmonar ativa, ao mesmo tempo em que apresentam baixíssimo índice de confirmação diagnóstica laboratorial... e a explicação para tal paradoxo, entende-se nas precárias linhas acima. Por enquanto, a situação epidemiológica real destes populações é aquela do paciente clínico suspeito de tuberculose pulmonar ativa, em curso natural da doença, até a caquexia, hemoptise fulminante e óbito, sem receber, sequer, uma única dose de tuberculostáticos. Isto explica-se pelo fato de que a prova terapêutica (tratamento empírico, por 30 dias com controle de peso) não é liberada por controladores do programa de controle da tuberculose, por pura e simples ignorância antropológica e fortemente embasados no programa nacional de controle da doença (rígido e inflexível no embasamento diagnóstico laboratorial). Baciloscopia A busca do bacilo de Koch (BK) no escarro, padrão ouro do diagnóstico de todo paciente sindrômico suspeito de tuberculose pulmonar, como método isolado de busca ativa, em populações indígenas do alto rio Negro, sem menor sombra de dúvida, é infrutífero, possivelmente explicada por elementos antropológicos que coíbem a expectoração por ser representativa de má conduta social; enfim, elementos ainda pouco estudados no universo representativo das doenças talvez possam endossar estas suspeitas, uma vez que são povos que sobreviveram a várias epidemias e estas são sempre educadoras, independentemente da cultura em questão. Reforçamos tratar-se apenas de uma hipótese que, à contento, explica e dificuldade de obtenção de bom material para baciloscopia. A análise de escarro de todo o paciente provável tossidor crônico, na região, aponta para um elevado número de resultados negativos que na verdade são resultados de material insatisfatório (saliva); portanto, não parece ser um bom método isolado para diagnóstico ou exclusão de novos casos . 62 Tuberculose em área indígena A positividade da baciloscopia em escarro ao longo da história natural da doença, em áreas indígenas do alto rio Negro, aponta para doença terminal, daí conclui-se que o curso da evolução da tuberculose pulmonar (de 2-5 anos sintomáticos, culminando em caquexia, hemoptise e insuficiência ventilatória) passa, em grande parte, sem diagnóstico laboratorial apesar da evidência clínica... uma vez que ainda não há RX, próximo ao ambiente cultural e familiar. Apesar destas ponderações, a pesquisa do BK deve sempre ser feita de forma insistente e repetitiva para todo o paciente sindrômico suspeito de tuberculose pulmonar ativa. Como breve comentário, a cultura de bacilo de Koch (4-6 semanas) somente é viável se o material isolado for prontamente remetido à um laboratório referencial (infelizmente à grande distância do cenário de selva), uma vez que a sobrevivência do bacilo ao meio ambiente é muito lábil. Teste tuberculínico (PPD) O teste tuberculínico é ferramenta de valia como elemento complementar diagnóstico naqueles pacientes que apresentem suspeita clínica de tuberculose ativa e progressiva perda de peso; no entanto, este exame apenas acusa a presença de bacilo (infecção) sem, necessariamente, a existência de doença em curso. Sua maior valia está na plotagem dos comunicantes de pacientes bacilíferos, uma vez que aqueles acusando “não reatores” podem ser excluídos da quimioprofilaxia; no entanto, é importante lembrar que os candidatos preferenciais ao uso de supressão com hidrazida são todas as crianças menores de 5 anos de idade e que podem ter recebido BCG recente, daí que pode ocorrer interferência na leitura dos “reatores”; portanto, o exame é de extrema valia e confiabilidade para mostrar os “não reatores” e excluí-los do programa. É fundamental reforçar a idéia de exame complementar que não afirma o diagnóstico, apenas reforça sua suspeita . A existência de imunização por BCG, há mais de 24 meses prévios ao teste, não acusa interferência na interpretação de resultados. Conclui-se que a implementação do PPD (Mantoux), com leituras de conversão em 5mm (a mesma para população vítima de imuno-supressão), parece promissor, uma vez se tratar de população hiperendêmica e desnutrida. 63 Ações em saúde indígena amazônica ○ ○ ○ Interpretaçãodo Mantoux (Ppd) ○ TABEL A ○ ○ 2 5-10 mm induração fraco reato r 10-15 mm induração r e a to r Acima de15 mm induração fo rte reato r Radiologia Foto: acervo DSEI/FOIRN A análise radiológica em área indígena de todo o caso clínico suspeito é elemento importante para o controle da doença, lembrando que inúmeras outras patologias mimetizam o quadro clínico sindrômico da tuberculose, entre elas as micoses profundas, as bronquiectasias, as cicatrizes antigas de tuberculoses passadas e outras tantas patologias que somente o RX de tórax, o controle seriado de peso, e a incansável procura do BK no escarro poderão esclarecer. A única proposta viável para abordar laboratorialmente esta situação de hiperendemia pelo bacilo de Koch seria o emprego de unidade radiológica, em área indígena. A implantação de unidade radiológica portátil requer um aparelho radiológico de média potência, gerador próprio, sala isolada, se possível baritada, insumos de filmes e processadores químicos e técnico capacitado. ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ FIGURA 1 ○ ○ ○ 64 ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ Imagem radiológica de TBC Pleural em base de hemitórax esq. Tuberculose em área indígena Campanhas radiológicas poderiam ser implantadas sob forma de busca ativa de pacientes sindrômicos encaminhados para um centro de referência, “em área indígena”, próximo do ponto de habitação. A leitura de exames se faria por profissional médico, em área, e dúvidas radiológicas seriam destinadas à discussão médica multi-disciplinar num centro de referência hospitalar. Infelizmente, por enquanto, não é possível de implementação à curto prazo e somente a flexibilização da prova terapêutica estaria ao nosso alcance se realmente ocorressem ações conjuntas e verdadeiramente capacitadas para o assunto (a ignorância antropológica dos gerenciadores do programa de combate à tuberculose são fortes obstáculos, dentro da área da saúde coletiva indígena). Tratamento A tuberculose pulmonar é tratada conforme o protocolo de terapêutica adotado pelo Ministério da Saúde, no Brasil; no entanto, algumas ressalvas são fundamentais no que tange às populações indígenas do alto rio Negro. Todo o caso de tuberculose recebe tratamento supervisionado pela equipe de enfermeiros e médicos no primeiro mês, na Casa de Saúde Indígena (residência de apoio à indígenas aldeados, sob tratamento em centro de referência) e segue, em seu domicílio, sob supervisão do AIS (agente indígena de saúde) e equipes sanitárias volantes de área indígena. Alguns pacientes, entre eles os caçadores-coletores, devido a seu comportamento de alta mobilidade, são convidados a concluir seu tratamento no centro de referência, apesar desta medida causar forte impacto na estrutura familiar. É fundamental o controle de peso corporal durante todo o tratamento, principalmente no primeiro mês, quando o quadro sindrômico deve apresentar resolução (apesar da tosse se manter, muitas vezes, indefinidamente) acompanhado de curva ascendente de recuperação de peso, confirmando assim a suspeita diagnóstica pré-estabelecida. Porém, este simples detalhe está omitido nas melhores escolas de formação de profissionais de saúde no Brasil. Outro detalhe de grande importância se deve ao fato de alguns povos indígenas não conceberem a tuberculose como doença recidivante, principalmente após um curso de tratamento mal sucedido (abandono); mostra-se assim a necessidade de cuidado na utilização de conceitos diferenciados fortemente embasados na antropologia da saúde. 65 Ações em saúde indígena amazônica Conclusões A pedra fundamental para a abordagem da tuberculose nos povos do alto rio Negro, é o controle de peso seriado, semanal, de todo o tossidor crônico sindrômico, traduzindo-se como a melhor conduta para se estabelecer busca ativa de possíveis novos casos de tuberculose pulmonar ativa. A análise radiológica, em área indígena, é o melhor exame complementar para se reforçar o diagnóstico de tuberculose pulmonar, enquanto que a baciloscopia do escarro apresenta resultados desanimadores como modelo de busca ativa; no entanto, a busca de visualização do bacilo deve ser incansável e continuada. O teste tuberculínico aponta grandes limitações para estabelecer o diagnóstico de doença; no entanto, tem profundo valor para seleção e exclusão de comunicantes candidatos à quimioprofilaxia. O maior obstáculo na questão ainda é estabelecido por gerenciadores de saúde pública despreparados para discutir a saúde indígena como um todo e como forma de especialidade, já que o universo de valores e percepção da ética e moral estão abertos aguardando uma verdadeira discussão. Enquanto isto, não se fez luz. Muito já andamos, porém o caminho é longo. Que as mentes maravilhosas que abordam estas questões não se cansem e continuem carregando o peso da pedra. Por enquanto, somente Hank Williams nos faz voz: “I´m gonna kick the darkness, till it bleeds day-light” Referências bibliográficas ATHIAS, R. Análise das representações de doenças contagiosas entre os Hupde-Maku do alto rio Negro. 1997 BARUZZI, R. G, BARROS, V. L.; RODRIGUES, D.; SOUZA, A. L.; PAGLIARO, H. Health and disease among Panara indians in central Brazil. Cad Sau Pub. v.17 n. 2, 2001. BUCHILLET, D. Contas de vidro, Enfeites de branco e “Potes de malária”. Epidemiologia e representações de doenças infecciosas entre os Desana do alto rio Negro. Brasilia: Universidade de Brasilia, Serie Antropologia n. 66 Tuberculose em área indígena 187, 1995. [republicado em 2002 In B. Albert & A.R. Ramos (orgs), Pacificando o Branco. Cosmologias do contato no Norte-Amazônico, pp. 113-142. São Paulo: Editora UNESP/Imprensa Oficial] BUCHILLET, D. Tuberculose, busca de assistência médica e observância terapêutica na Amazônia brasileira. França-Flash Saúde, Abril/Maio/Junho, n 11, pp. 1-8, 1997. BUCHILLET, D. Os ìndios do alto rio Negro: história, etnografia, e situação das terras. Laudo antropológico da Procuradoria Geral da República, Brasilia, Junho de 1990. BUCHILLET, D. Tuberculose, cultura e saúde pública. UNB, Brasília. 2000. BUCHILLET, D.; GAZIN, P. A situação da tuberculose na população indígena no alto rio negro. Cad. Saúde Públ.14:181-185, 1998. BUCHILLET D. Tuberculose, antropologia e saúde pública. In Anais do Seminário sobre alcoolismo e vulnerabilidade às DST/AIDS entre os povos indígenas da Macrorregião sul, sudeste e Mato Grosso do Sul, pp. 61-82. Brasília: Ministério da Saúde (Série Seminários e Congressos), 2001. BARROS, E; ALBUQUERQUE, G; PINHEIRO, C; CZEPIELEWSKI, M. Exame Clínico. Consulta rápida,1ª ed. artes médicas, Porto Alegre, 1999. BASTA, P. C.; JUNIOR, C. C.; ESCOBAR, A. L.; SANTOS, R.V. Aspectos epidemiológicos da tuberculose na população indígena Suruí. Rev Soc Bras Med Trop. v. 37, n. 4. 2004. CLINE, D. M.; M.A. O. J. Emergências médicas, 5ª ed. Mc Grae hill, Espanha. 2001. FUNASA. Relatório bianual 2000-2002 da tuberculose em área indígena. Brasília. 2003. FEDERAÇÃO DAS ORGANIZAÇÕES INDÍGENAS DO RIO NEGRO; INSTITUTO SOCIOAMBIENTAL. Povos indígenas do alto e médio rio Negro, 1ª ed. Ministério da Educação e Cultura, Secretaria de Ensino Fundamental, v. 1, 1998. GARNELO, L.; MACEDO, C.; BRANDÃO, L. C. Os povos indígenas e a construção de políticas de saúde no Brasil. OPAS, Brasília, 2003. GOLDMAN, L. BENNETT, J. C. Cecil textbook of medicine, 21ª ed., WB Saunders Company, Philadelphia, 2001. 67 Ações em saúde indígena amazônica MINISTÉRIO DA SAÚDE. Manual de controle de tuberculose. Centro Nacional de epidemiologia/coordenação do programa nacional de imunizações, Brasilia, 2001. Saúde Indígena em São Gabriel da Cachoeira (AM): uma abordagem antropológica/UFPE.CFCH.PPGA; Diocese de São Gabriel da Cachoeira (AM).CSE-DWI; colaboradores Andréa S.C. Cavalcante... et al. ; organizadores Maria do Carmo Brandão, Nilton Cezar de Paula, Renato Athias. Recife: Líber Graf. e Editora, 2002. WHO. Treatment of tuberculosis: guidelines for national programm. Geneva, 2003. 68 6 Ações em Saúde Indígena Amazônica: O Modelo do Alto Rio Negro FOIRN • São Gabriel da Cachoeira • 2006 Capítulo 6, pp. 65 - 78 Parasitismo em área indígena Oscar Espellet Soares Médico cirurgião-geral da Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro – FOIRN Introdução Toda e qualquer forma de parasitismo é debilitante. Em diferentes maneiras de apresentação, a patologia parasitária é universal em todo o mundo vivo e acompanhará a humanidade até o final dos tempos. Em área indígena, no entanto, este assunto se mostra prioritário para a atenção básica à saúde uma vez que, freqüentemente, o parasitismo é hiperendêmico nos povos que habitam o alto rio Negro e seus afluentes. Entender as peculiaridades destas doenças tropicais mais freqüentes, através da apresentação sindrômica e seu tratamento longe de um centro diagnóstico, é a finalidade deste capítulo. Aspectos antropológicos O parasitismo é doença universal e afeta qualquer organismo vivo. Os povos amazônicos sempre conviveram com parasitas humanos e portanto, não é de se admirar que tenham desenvolvido elementos culturais, inclusive sua própria medicina, para lidar com a questão; portanto, a análise antropológica dos povos indígenas do alto rio Negro nos fornece importante base conclusiva para abordar o assunto. Na falta de um modelo ocidental de ciência, a mitologia indígena age da mesma forma, isto é, explicando o mundo, dando um sentido lógico àquilo que se anuncia sem explicação. Dentro deste cenário, muitas doenças originaram junto à criação do homem, bem como sua medicina de cura ou melhora. 69 Ações em saúde indígena amazônica Aqueles que aprenderam a longa narrativa do surgimento do universo e suas doenças e respectivos tratamentos, ganharam a aura xamãnica do curandeiro... ou “pajé”. Sendo a cultura de transmissão oral, o processo de informação e formação do curandeiro é lento, longo e fortemente embasado no conhecimento dos mais velhos... para tal, é preciso um jovem para ouvir... o candidato à formação. O velho é o livro, o jovem é quem lê. Com a cristianização indígena gerenciada pelos católicos ao longo dos séculos, este mecanismo de construção xamãnica foi ameaçado como elemento demoníaco e de perdição... a condenação iminente se instalou. Os jovens perderam progressivamente o interesse nestes conhecimentos e o processo continuista da transmissão oral está frágil e prestes à se romper, comprometendo e privando gerações futuras do usufruto cultural do exercício xamânico. Hoje são poucos os pajés e rezadores. Por conseguinte, permanecem as doenças e a necessidade de explicação dos sintomas (de onde surgem) e seus intentos de cura; portanto, a mitologia persiste porque explica aquilo que não tem explicação de outra forma (como a febre recorrente da mansonelose, ou a úlcera crônica da leishmaniose), criando mecanismos de compreensão e aceitação e, ídem, o intento de cura com benzimentos e aplicação de fitoterapia, ainda presente... porém há a ameaça de se perder o maestro do processo: o “pajé”, o benzedor, o conhecedor da medicina tradicional indígena, o detentor eficiente da sabedoria e dos segredos do universo. O instrumento da cura, portanto, está sob ameaça, porém mantémse viva a lógica explicativa das doenças e seus mecanismos de disseminação e respectivos tratamentos. O parasitismo assume assim a posição de qualquer outra doença que demanda atenção, explicação e cura A mecânica ocidental que descreve o parasitismo e seus vetores, portanto, não pode ser a mesma que a indígena. Para conseguir penetrar neste universo, já explorado e aceito de forma milenar, precisamos aprender sua lógica. Por outro lado, há a medicina ocidental querendo participar do processo de entendimento e manuseio das doenças, e a dificuldade de comunicação é inevitável . 70 Parasitismo em área indígena A medicina ocidental mostra-se carente de um método explicativo para povos indígenas amazônicos de forma que pouco contribui na educação sanitária adequada à estas populações. Isto é uma tarefa muito difícil porque guiados pela verdade dos conceitos ocidentais, poderemos nos tornar os fervorosos (e equivocados) Salesianos de amanhã, tentando agir confiantes demais em modelos éticos e morais cristãos e devastadores para os povos indígenas. Se não atentarmos para a existência do modelo indígena e seus mecanismos explicativos do universo e suas doenças, pouco deixaremos como elemento de contribuição na saúde indígena. Mais uma vez a antropologia se apresenta como elemento fundamental para evitar o conflito e também parece elementar a conclusão de que se necessita de um outro grupo de profissionais para abordar a saúde indígena: “o pedogogo”, o educador que conheça a cultura indigena e que esteja pronto para aprender tanto quanto para ensinar (programas de educação para a saúde so podem ser eficaces quando baseados/apoiados na propria cultura!) A formação do profissional de saúde é eminentemente técnica e muito pouco voltada à pedagogia e o fato principal, em saúde indígena, é a transmissão de conhecimentos e integração das culturas conflitantes para que os esforços se somem no intento de melhorar a qualidade de vida consensual. Saúde e educação sempre andaram juntas. Que estes comentários nos sirvam de alerta para o planejamento de ações futuras de maior qualidade, junto aos povos amazônicos como um todo. Clínica e terapêutica O parasitismo em área indígena, mais prevalente, se resume a três grupos: o do tegumento comum (pele e fâneros), o intestinal e o hemático. Nos três conjuntos temos como pano de fundo a coexistência da desnutrição, gerando um ciclo vicioso de retroalimentação contínua e danosa; portanto, medidas diagnosticas mais adequadas e terapia antiparasitária, mesmo que momentânea e vertical, parecem prioridade em saúde básica primária. 71 Ações em saúde indígena amazônica ○ ○ ○ Parasitoses mais comuns no alto rio Negro ○ TABEL A ○ ○ 1 PARAS ITOS E AGENTE parasitas de te gu m e n to c o m u m Sarcop tes scab ei , Pti ru s h u man u s e Tu n ga p en etran s parasitas intestinais Helmintiasis em geral, Gi ardi a l amb l i a, En tamoeb a h i stol i tyca Parasitas hemático s Plasmodium vivax, Plasmodium falci parum, Leishmania brasiliensis, Mansonela ozzardi A - Parasitas de tegumento comum A pediculose, a escabiose e a tungíase acompanham a falta de saneamento em qualquer ponto do planeta. A perda da harmonia sócio-ambiental gera padrões hiperendêmicos deste grupo parasitário. A infestação de roupas e outros utensílios domésticos de origem fabril são o foco principal e mantenedores de reservatórios de Sarcoptes scabiei e Pediculus humanus, enquanto que o solo arenoso e fofo alberga ovos espiculados da Tunga penetrans (os maiores reservatórios são cães, gatos e porcos). As formas clínicas são as mesmas da literatura, podendo infestar qualquer parte do corpo humano coberto por tegumento comum, inclusive genitais, dobras e palmas das mãos e solas dos pés (sarna norueguesa). Óbviamente a tungiase afeta mais os pés, a escabiose, o tronco e a pediculose, a cabeça. A impetiginização é muito comum, seja na forma estreptocóccica (crostas melicéricas), seja na forma estafilocóccica (aspecto de queimadura, com bolhas), caracterizando, assim, a freqüente infecção bacteriana secundária. Tratamento O tratamento da tungiase envolve matar todas os parasitas com imersão da parte afetada em água sanitária à 25% por 30-60 minutos, seguido de extricação do parasita com lâmina de bisturí nº15. Nas multi-infestações por Tunga penetrans esta medida mostra-se de valor uma vez que a pele fica macerada e de fácil remoção nos pontos afetados. Uma vez tratando-se de pele morta, não há necessidade de anestesia qualquer. 72 Parasitismo em área indígena Após a extricação aplica-se água oxigenada 10-20 volumes para eliminar os ovos vivos dispersos no local tratado. É fundamental pedir à comunidade que espalhe barro ou argila sobre o solo arenoso fofo, isolando, assim, os ovos espiculados que infestam o chão. O tratamento preferencial da escabiose e pediculose, sem impetigo, é com veículos que contenham deltametrina na composição; preferentemente, o sabão de deltametrina. ○ ○ ○ Tratamento das parasitoses de tegumento comum ○ TABEL A ○ ○ 2 PARAS ITOS E TRATAMENTO Escabio se so lução de deltametrina Pediculo se so lução de deltametrina Tungiase extricação com lâmina 15 Evita-se o uso do benzoato de benzila devido seu poder neurotóxico (se ingerido) e irritante local, mesmo na pele íntegra. A impetiginização se trata com permanganato de potássio e pomada de neomiciana, nos casos leves e mais localizados, ou com penicilina benzatina (300.000ui até 2 anos de idade, 600.000ui até 10 anos de idade e 1.200.000ui nas demais faixas etárias) dose única IM, nos casos extensos. O incentivo ao uso de sabão deve ser extensivo a todos. É fundamental a fervura de roupas, redes e lençóis. O uso da dose única de Ivermectina para tratar a escabiose e a pediculose é promissor, porém limitado, uma vez que são populações que comumente estão infestados de Mansonella ozzardi (um parasita hemático) e podem desencadear reação colateral tipo “reação de Mazzoti”. B - Parasitas intestinais A multi-infestação parasitária intestinal por helmintos é regra em povos com desarranjo sócio-ambiental. A baixa oferta de saneamento é o cerne da questão. 73 Ações em saúde indígena amazônica Toda e qualquer medida de deverminação cai no insucesso dentro da primeira semana pós-tratamento porque o solo está infestado de cistos, pseudocistos e ovos, e estas formas podem manter-se vivas e passíveis de infestação por décadas e décadas... indiferente à característica composicional do solo. As helmintíases se apresentam como queixas abdominais vagas e persistentes, ocasionalmente como sub-oclusão intestinal, nos casos intensos. A anemia clínica é muito comum. Entre a imensa gama parasitária, dois protozoários e um helminto requerem especial atenção: a Entamoeba histolitica, a Giardia lamblia e o Strongilóides estercoralis, respectivamente porque todos estes têm em comum o quadro diarréico. Na giardíase a diarréia se apresenta de caráter recorrente, auto-limitada ou crônica, com evidente esteatorréia podendo também ter o caráter de epigastralgia crônica por duodenite. Na amebíase o quadro costuma ser de disenteria com febre baixa e de caráter recorrente. Na estrongiloidose, a diarréia pode se apresentar como qualquer padrão, porém recorrente, inclusive a apresentação clínica pode ter apenas características vagas, ou pronunciada epigastralgia. Tratamento Diante deste cenário, o tratamento de deverminação está indicado em todo o caso sintomático com epigastralgia, ou dor abdominal inespecífica ou diarréia crônica e/ou recorrente e, também, extensivamente à todos os membros da comunidade 2 vezes ao ano, indiferente da apresentação de sintomas. A droga de ação mais ampla é o Albendazol 400mg, VO, dose única, quando usado modelos extensivos de tratamento em massa, indiferente à apresentação de sintomas. É contra-indicado em gestantes e crianças com menos de 2 anos de idade. Nos casos sintomáticos, sugerimos o uso de albendazol 400mg, VO, por 3 dias. Nas sub-oclusões por helmintos, primeiro se dá óleo mineral,15ml, VO, seguido de 3 horas após, de piperazina,75mg/kg/dia, VO,8/8horas por 3 dias. Se ocorrer distensão abdominal sugerimos a descompressão com sondagem naso-gástrica de alívio. 74 Parasitismo em área indígena As giardiases e amebiases são melhor tratadas com metronidazol 30mg/kg/dia por 5 dias. A estrongiloidiase responde melhor à ivermectina como droga de escolha, além da praticidade posológica de dose única, outra alternativa é o albendazol 400mg/dia, VO, por 3 dias. ○ ○ ○ Tratamento das parasitoses intestinais ○ TABEL A ○ ○ 3 PARAS ITOS E TRATAMENTO Amebiasis metro nidazo l 30mg/ kg/ dia, VO, 5dias. Giardiasis metronidazol 30 mg/kg/dia, VO, 5 dias ou secnidazol 2g dose única, VO. Helmintiasis albendazol 400mg, VO, dose única diária por 3 dias. C - Parasitas hemáticos Do universo parasitário hemático 3 gêneros assumem destaque: Mansonella, Plasmodium e Leishmania. C1 - Mansonelose A Mansonelose é uma doença causada pelo filarídeo Mansonella ozzardi, um helminto, e transmitida pelo mosquito simulídeo (o” pium” amazônico). Sua característica clínica é a miríade de sintomas vagos a clássicos das síndromes infecciosas: febre baixa e recorrente, cefaléia, artralgias, astenia e anorexia, além de sensação de parestesias ou frio nos membros inferiores. A literatura médica especializada no assunto é pouco extensa e limitada não respondendo, por exemplo, qual a participação da mansonelose naquele grupo de morte de causa indeterminada, nem respondendo quais as possíveis lesões tissulares ao longo do extenso período de doença. A clínica da micro-filaríase (mansonelose) parece decorrer de resposta imunológica desencadeada pela morte de micro-filárias na corrente sangüínea. Os poucos grupos de pares de casais se alojam em serosas do corpo, assumindo diminuto tamanho e, portanto, de impossível localização por exames de imagética. 75 Ações em saúde indígena amazônica Foto: M. S. de Castro O diagnóstico se dá por coleta de gota espessa de sangue periférico ou biópsia exangue de pele da região dorsal, sub-escapular. ○ ○ ○ ○ ○ FIGURA 1 ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ Mansonela sp. Visualizada em gota espessa de sangue periférico Tratamento Não há droga que elimine os grupos sexuais adultos, resumindo o tratamento a apenas as micro-filárias circulantes, portanto o tratamento de eliminação das formas jovens deve ser realizado repetidas vezes até que ocorra a morte natural da população de casais adultos. A droga de escolha é a ivermectina, 200 microgramas/kg, dose única, VO; no entanto, 6-12 horas após a ingestão da droga ocorrerá lise das micro-filárias na corrente sangüínea e liberação de mediadores imunológicos, gerando uma intensa sintomatologia conhecida como reação de Mazzoti, que nada mais é que a exacerbação da clínica da micro-filariose, e constituise em : febre elevada com calafrios e delírio, cefaléia intensa, náusea e vômitos (reflexos à dor) e poliartralgias intensas. O tratamento da reação é com dipirona IV, anti-inflamatório não esteróide (tenoxicam, IV) e anti-heméticos, se necessário. Aparentemente a administração de prednisona 1mg/kg, VO, conjuntamente à ivermectina, diminui a sintomatologia. Todo o paciente em área indígena, que recebe ivermectina, precisa ser revisto dentro do período de reação de Mazzoti. Há importante ganho de redução da morbidade após um curso de tratamento. O retratamento deve ser considerado; no entanto, não há consenso literário para estipular um prazo mínimo de repetidas doses; para tal, sugerimos uma dose a cada 6 meses até desaparecimento total das formas jovens no sangue periférico em repetidos exames bi-anuais. 76 Parasitismo em área indígena C2 - Malária O segundo grupo de parasitas hemáticos em povos amazônicos corresponde ao protozoário do gênero Plasmodium responsável pelo impaludismo amazônico. A malária, ou febre palustre, há muito é considerada uma endemia de dificílima solução. Aparentemente é doença autóctone de ambientes tropicais e equatoriais úmidos. As espécies de Plasmodium, dentro do universo amazônico de patologias tropicais, se resumem, praticamente, a Plasmodium vivax e Plasmodium falciparum. As espécies Plasmodium malariae ou Palasmodium ovalae são pouco reportadas e não assumem destaque nos programas de atenção primária. A transmissão se dá pelo mosquito anofelino fêmea, hematófago, que suga o sangue de um reservatório mamífero de Plasmodium. Após 2 semanas, em média, se anunciam os primeiros sintomas que se resumem a febre de caráter recorrente, “sem padrão de oscilação” (como reporta a literatura clássica), geralmente elevada, calafrios, cefaléia, náusea e vômitos, diarréia ocasional, poli-artralgias e mal estar geral; com a evolução aparecem icterícia sem colúria e hepatoesplenomegalia. As apresentações agudas tendem a desaparecer com a evolução da doença, podendo ocorrer extensos períodos assintomáticos. O óbito nas formas agudas pode se anunciar por encefalite, falência hepática ou hipoglicemia. O padrão terçã e quartã são raras vezes reportados e, cada vez mais, reforçam a evidência clínica de elemento de pouca valia, para suspeita diagnóstica. As infestações por P. vivax são mais freqüentes e as formas agudas são menos intensas que aquelas decorrentes de P. falciparum; no entanto, ao longo de vários episódios de reinfestação de malária, num mesmo indivíduo, ocorre imuno-modulação da apresentação da doença, vindo esta a ser cada vez menos intensa em infestações futuras. Parece fundamental indagar onde o paciente se encontrava há mais de 15 dias antes dos sintomas (período de incubação médio) com o intento de localizar o foco criadouro do mosquito (elo da corrente de transmissão fundamental no controle da endemia). 77 Ações em saúde indígena amazônica Tratamento Estabelecida a suspeita de malária, colhe-se a gota espessa, em sangue periférico, e acondiciona-se a lâmina (a coleta não precisa coincidir com o pico febril e o uso de anti-térmicos não interfere nos resultados) e se introduz o tratamento empírico com cloroquina, VO, 600mg (4 cp) em dose única no primeiro dia, seguido de 450 mg (3 cp) em dose única no segundo e terceiro dia (famoso esquema 4,3,3), para adultos. Em crianças o esquema se aproxima de um terço das doses, como regra genérica; no entanto, sugerimos consultar tabelas de peso e ajuste de doses distribuídas pelo ministério da saúde. A primaquina é indicada para todo o caso de malária “confirmado”, com finalidade de eliminar reservatórios hemáticos e hepáticos; no entanto, é droga extremamente tóxica (principalmente para crianças e gestantes). Não se administra a primaquina até obter-se a confirmação da lâmina. Se indicada, utiliza-se o esquema de 15 mg,VO, 12/12 horas, por 7 dias, para adultos com P. vivax e esquema de apenas um dia para P. falciparum; crianças devem receber a dose adequada pelo peso (vide tabela de ajuste de dose do ministério da saúde) em mesma formatação de esquema. Devido aos casos mais intensos serem decorrentes de P. falciparum, sugerimos esquema de dose única de mefloquina, 1250mg, VO, para adultos, frente à esta suspeita, preferentemente à cloroquina, até que se obtenha confirmação diagnóstica com leitura de lâmina em sangue periférico. Em crianças, usar ajuste de dose do esquema acima, pelo cálculo de peso corporal. Em casos de apresentação grave, sugerimos a hidratação endovenosa agressiva com aporte de glicose e considerar o uso de artemeter IM (droga de ação imediata contra P. falciparum) e remoção para o hospital de referência. Após confirmação diagnóstica da lâmina coletada, conclui-se o tratamento com primaquina, exceto gestantes, com finalidade de eliminar formas reclusas da doença (reservatório hepático e hemático). Importante lembrar que se os episódios de crises febris voltarem a acontecer, enquanto se aguarda a confirmação diagnóstica (este atraso pode ser de vários dias, uma vez que estamos na floresta, longe de um centro diagnóstico), todo o esquema deve ser refeito incluindo novas doses de cloroquina ou mefloquina. 78 Parasitismo em área indígena Lembramos que é doença passível de cura, apesar de cada vez mais se anunciarem formas resistentes à terapêutica clássica. C3 - Leishmaniose Foto: acervo DSEI/FOIRN Para finalizar, o terceiro grupo se reporta ao gênero Leishmania. Este grupo se constitui de protozoários transmitidos pelo mosquito flebotomídeo, hematófago de mamíferos silvestres e domésticos infestados (inclusive o cão). O período de incubação varia de 2 semanas à 3 meses. Sua característica principal na apresentação da doença é a formação de úlceras cutâneas e mucosas, na forma tegumentar da doença (apresentação mais freqüente e abordada neste capítulo) e hepato-esplenomegalia, na forma visceral (apresentação menos freqüente no alto rio Negro, e que não será abordada neste capítulo). No alto rio Negro, a suspeita diagnóstica se dá em todo o caso reportado de úlcera crônica sem um mecanismo direto que a justifique, com especial menção às úlceras de septo nasal. A coleta de lâmina se faz com anestesia local do bordo da ferida e curetagem com o bordo cego de uma lâmina nº15; faz-se um esfregaço simples em lâmina de microscópio e se acondiciona para referir à um centro diagnóstico; no entanto, a demora para análise do raspado pode conferir resultado falso-negativo sendo, às vezes, necessária a remoção do paciente para um centro diagnóstico. Cuidados gerais devem ser instituídos no tratamento local da ferida, como o uso de pomada antibiótica e higiene com curativos à base de soro fisiológico. ○ ○ ○ ○ ○ FIGURA 2 ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ Leishmaniose tegumentar em tornozelo 79 Ações em saúde indígena amazônica Tratamento O tratamento específico ainda é rudimentar, cardio-tóxico e pancreatotóxico, à base de antimoniais antigos, como o Glucantime, 1ml/5kg/dia, IM; no entanto, há baixa complascência por parte dos pacientes; é fundamental reforçar que é doença passível de cura após 2-3 semanas de terapia. Devido aos efeitos tóxicos da medicação, sugerimos referenciar o paciente para um centro de monitoramento do tratamento e seus efeitos lesivos. Evita-se o tratamento em área indígena sem base hospitalar e laboratorial. ○ ○ Tratamento das parasitoses hemáticas TABEL A 4 PARAS ITOS E TRATAMENTO Malária Clo ro quina o u meflo quina* Manso nelo se Ivermectina Leishmanio se Antimoniais (Glucantime) * primaquina somente após confirmação da lâmina Considerações finais Abordar a vastidão de doenças parasitárias que afetam os povos indígenas do alto rio Negro é tarefa pretensiosa demais, para apenas um capítulo curto; entretanto, as patologias mais freqüentes e grandes causadoras de elevado impacto de morbidade se resumem à estas aqui apresentadas e sumariamente comentadas. A oferta de saneamento é a única alternativa adequada de melhorar a qualidade de vida dos povos indígenas e isto é possível mantendo os hábitos de asseio pessoal peculiar à cada etnia. É preciso crer que adaptações são viáveis. Não precisamos criar banheiros! Basta a simples oferta de água pura obtida de fonte não contaminada por dejetos humanos e adequada alocação ao lixo, criando uma política que incentive a educação com qualidade e compreensão, de fato. Também não esquecer que todos os povos têm habitos de higiene peculiares e lugares 80 Parasitismo em área indígena peculiares onde fazer as suas dejeções e onde tomar água para beber, mas que, com a intensificação do contato com os brancos, a conseqüente sedentarização e o adensamento populacional ao redor de alguns centros (missionários, centros urbanos, por exemplo) fica mais difícil manter esses hábitos . Isto é, não precisamos ensinar onde, como e o que fazer (de) suas dejeções, mas proporcionarmos para os indígenas os meios de fazer isso de maneira salubre e digna nesse ambiente de mudança sociocultural! Projetos já foram escritos e o assunto exaustivamente estudado por grupos variados e multi-disciplinares competentes na questão, mas as ações, infelizmente, estão aos encargos de governos que insistentemente negligenciam estas populações de excluídos da sociedade brasileira efetiva. Não se tem ainda um plano de governo para implantação de saneamento básico em pontos críticos de adensamentos populacionais indígenas na Amazônia brasileira... nem mesmo se evidencia isto em municípios de predomínio populacional mestiço. Sequer um simples projeto de coleta de água da chuva foi implantado pelo poder público brasileiro em terras indígenas demarcadas do alto rio Negro (de exclusiva atenção e prioridade da união, conforme rege a carta máxima da legislação federal). Ações isoladas e competentes de organizações não governamentais sérias, mostram o caminho, o “como se faz”, porém não tem capacidade de manter um sistema continuado e educativo sem a participação de ações governamentais reais e efetivas. Em muito se economizaria em internações hospitalares, extensivo uso de medicações e perda de vidas, desnecessariamente expostas ao descaso e ao esquecimento. Comparativo à estes gastos, estabelecer um saneamento digno é um custo infinitamente menor. Um país que teve Oswaldo Cruz, Vital Brasil e Carlos Chagas, e passados 100 anos de suas lições, ainda está longe de contemplar uma melhor moldura para os seus excluídos! Referências bibliográficas ATHIAS, R. Análise das representações de doenças contagiosas entre os Hupde-Maku do alto rio Negro. 1997. 81 Ações em saúde indígena amazônica BUCHILLET, D. Contas de vidro, Enfeites de branco e “Potes de malária”. Epidemiologia e representações de doenças infecciosas entre os Desana do alto rio Negro. Brasilia: Universidade de Brasilia, Serie Antropologia n. 187, 1995. [republicado em 2002 In: B. Albert & A.R. Ramos (orgs), Pacificando o Branco. Cosmologias do contato no Norte-Amazônico, pp. 113-142. São Paulo: Editora UNESP/Imprensa Oficial]. DEANE, L. M. & GRIMALDI, G. Leishmaniasis in Brasil: Leishmaniasis (ed chang, Bray) cap.14: 247-281, 1985. DIAS, L. C. S.; DELLOME F. J.; PAES, G. M.; FARIAS, N. A.; AGUIAR, J. C. S. Prevalência de parasitas intestinais em habitantes do rio negro, amazonas, Brasil. Acta amazônica 12(1): 65-70, 1982. DUPONT, H. L.; SULLIVAN, P. S. Giardiasis: the clinical spectrum, diagnosis and therapy. Pediatric Infectious diseases, 5(1): 131-137, 1986. Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro; Instituto Socioambiental. Povos indígenas do alto e médio rio Negro, 1ª ed. Ministério da Educação e Cultura, Secretaria de Ensino Fundamental, v.1, 1998. FEITOSA, L. F. M. Aspectos da amebíase intestinal e hepática no Hospital Universitário getúlio Vargas, Manaus - AM. Tese, 98p. , depto. Parasitologia, ICB, UFMG, Belo Horizonte - MG, 1986. MARCONDES, E.; ISSLER, H.; LEONE, C. Pediatria na atenção básica primária. São Paulo: Sarvier. 2002. NEVES, David Pereira. Parasitologia Humana. 9ª ed. São Paulo: Ed Atheneu, 1998. SILVERWOOD-COPE, P. L. Cosmologia. Morte e vida nas plantas, monstros, caça e homens. In: Silverwood-Cope PL. Os Maku, povo caçador do noroeste da amazônia, 1ª edição, Brasilia, Edit.Unb, v.1, p.173-176, 1990. TDR news.UNDP/ World Bank/ WHO. Special program to research and trainning in tropical diseases. n. 42, pp.1-2, July,1993. VIANA, J. A. C. Oterceiro mundo não é assim: está assim. Reflexões provocativas. Cadernos Técnicos Escola de Veterinária da UFMG, Belo Horizonte, n.10, p.1-86, 1994. 82 7 Ações em Saúde Indígena Amazônica: O Modelo do Alto Rio Negro FOIRN • São Gabriel da Cachoeira • 2006 Capítulo 7, pp. 79 - 88 Doença diarréica aguda em área indígena Oscar Espellet Soares Médico cirurgião-geral da Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro – FOIRN Colaboração: Acácio Siqueira Médico Pediatra Introdução Por definição semiológica, diarréia é a percepção subjetiva do aumento do conteúdo líquido das fezes e diarréia aguda é aquela que apresenta resolução em, até, duas semanas (com cura ou óbito). A doença diarréica aguda, ao contrário do que se pensa, incide menos que as doenças pulmonares como “causa mortis” em área indígena, atingindo cifras de 41,4 % na faixa etária de 0-1 ano (Funasa); no entanto, assume importante papel de destaque nas curvas de mortalidade das populações indígenas do alto rio Negro, atingindo cifras de 18%, no grupo de 0-5 anos . O maior fator de proteção à população pediátrica é o aleitamento materno extensivo quase que, invariavelmente, até o segundo ano de vida. A falta de saneamento das fontes de obtenção de água para consumo humano em áreas de adensamento populacional e a progressiva introdução do aleitamento artificial assumem importante destaque na epidemiologia da região. Aspectos antropológicos No universo indígena do alto rio Negro a formação do indivíduo é concebida de maneira distinta do mundo ocidental. Desde o momento em que se estabelece a suspeita de gestação até atingir o segundo ano de vida, o indivíduo está em processo progressivo de formação e este é o período em que o mesmo tem apenas na mãe sua fonte de nutrição. 83 Ações em saúde indígena amazônica Qualquer falha que demonstre fragilidade da criança ou rejeição por parte da mãe, implicará em forte possibilidade de morte precoce. O infanticídio de vítimas de mal formação congênita, ou de gemelares, foi elemento social largamente utilizado por populações indígenas ameríndias da região até que a cristianização se estabelecesse, coibindo esta prática; no entanto, há forte evidencia clínica que havendo alguma rejeição por parte materna, como dúvida da paternidade ou ausência de pai social (aquele que assume e ajuda à criar) a perda se estabelecerá, quase que invariavelmente. A morte se dará por descuido do infante rejeitado frente à um quadro de pneumonia ou diarréia aguda. Ainda, reforçando a complexidade de valores e significados na concepção das doenças, os povos Tukano orientais diferenciam alguns tipos de diarréia. Certas diarréias são consideradas como normais, fazendo parte do desenvolvimento da criança ou traduzem a inveja da criança brutalmente desmamada por causa de nova gravidez da mãe; portanto, elas não são consideradas como patológicas e não serão comunicadas ao médico; daí a importância do médico examinar todos os nenés durante uma viagem de consulta, mesmo se não forem apresentados pela mãe ao médico (D. Buchillet, communicação pessoal, dezembro de 2004). Outros tipos de diarréia são associados à comida dos brancos e outros ainda à feitiçaria. Às vezes, reidratar um doente com diarréia não é bem entendido pelos indígenas que preferem “secar” o doente, portanto, estabelecendo assim uma ruptura da comunicação com a medicina ocidental se esta não for bem trabalhada em seus significados (D. Buchillet, idem). Por outro lado, o aleitamento materno é prática quase que universal e compreendido pelos indígenas como importante fator de proteção e praticidade para o cotidiano de difícil obtenção de comida. Em contraposição, a interação com o mundo ocidental industrializado está ameaçando o benéfico hábito cultural da amamentação materna extensiva, uma vez que o escambo introduz o leite bovino em pó e a utilização da mamadeira, principalmente nos grupos familiares monetarizados, ofertando a ilusão de praticidade e destaque social, sem perceber a fragilização para a exposição à agentes infecciosos e conseqüente doença diarréica; no entanto, ainda não há um levantamento de dados precisos para quantificar a penetração do aleitamento artificial em comunidades indígenas do alto rio Negro; as evidências sugerem ainda ser tímida esta prática na população aldeada, porém mais explícita em população indígena urbana. 84 Doença diarréica aguda em área indígena Torna-se mister estabelecer ações de saúde pública para coibir tais hábitos, uma vez que há um “background” cultural para amparo. Convém lembrar que os velhos, no outro extremo do ciclo vital, também configuram população de risco para doenças diarréicas uma vez que habitualmente encontram-se desnutridos, considerando que não participam mais do sistema de obtenção de alimentos. Outro importante fator no contexto das doenças diarréicas é a falta de saneamento adequado das fontes de obtenção de água para beber. Sempre foi hábito das populações indígenas recorrer aos rios e igarapés para consumo de água potável; no entanto, com as demarcações territoriais e a agregação católica paroquial, elevaram-se os números censitários nas grandes comunidades e diminuíram nas pequenas. Apesar do elevado índice pluviométrico amazônico, no período de verão a vazante dos rios não protege a qualidade das águas em áreas de grandes adensamentos populacionais indígenas. A migração indígena interna em seu território demarcado levou à aglomerações populacionais que não oferecem fontes adequadas de água para consumo humano sem que ocorram contaminações e bolsões epidêmicos de diarréia aguda. Hoje, a principal alegação para manter este processo migratório “in continum” são a educação escolar em centros de agregação de ensino fundamental para crianças e adolescentes e a monetarização familiar iminente. Clínica A etiologia das diarréias agudas em área indígena se resume à virais (aparente maioria), bacterianas e parasitárias (forte predomínio de amebas), extendendo-se desde uma simples diarréia de fezes claras até uma disenteria clássica, com fezes muco-pio-sanguinolentas. A história natural da doença nos ensina que o óbito se dá ou por desidratação ou por sepsis; portanto, é necessário atentar para estes dois fatores, na abordagem sindrômica de cada caso. A avaliação do quadro de desidratação não é praticada através do cálculo da perda ponderal, como propõe a literatura, uma vez que a maioria dos pacientes não têm acompanhamento continuado de ganho de peso ao longo de suas vidas (isto também parece válido para a população brasileira como um todo). 85 Ações em saúde indígena amazônica A perda hídrica se calcula por aproximação clínica da apresentação. Uma rápida avaliação pode ser feita de forma simples levandose em conta a freqüência cardíaca, a freqüência respiratória, a presença de lágrimas e o tempo de enchimento capilar (medido após leve compressão da polpa digital sub-ungueal - em situações de normalidade é inferior à 2 segundos). • Doença diarreica aguda (DDA) leve: Os casos leves são muito discretos para avaliar, uma vez que a prega cutânea mantém o turgor (apesar de diminuído) e as mucosas mantém-se úmidas apesar de desidratadas e o estado geral é bom. As freqüências cardíaca e respiratória são normais para a idade ou levemente aumentadas, as lágrimas estão presentes e o tempo de enchimento capilar (TEC) é inferior à 2 segundos. • DDA moderada: Nos casos moderados, o turgor já apresenta evidências de diminuição e as mucosas se apresentam secas, além do que há evidente sinal de sede e ainda há sinais de interação com o meio e muitas vezes mantém a via oral. A freqüência cardíaca tende a ser aumentada principalmente com a criança em pé, a freqüência respiratória pode ser normal, no entanto, mais profunda, o TEC está entre 3-4 segundos e as lágrimas podem estar ausentes ou diminuídas (não escorrem). Em lactentes a fontanela tende a estar deprimida e há irritabilidade ao toque e manuseio da criança. • DDA grave: Nos casos graves a situação é gritante, o turgor está extremamente diminuído, os olhos estão fundos, a fontanela deprimida, não há boa interação com o meio e a via oral está prejudicada. As freqüências cardíaca e respiratória estão aumentadas, com sinais de desconforto respiratório, TEC acima de 4 segundos, sudorese pegajosa, irritabilidade ou letargia, ainda, palidez e moteamento da pele (depressível ao toque). 86 Doença diarréica aguda em área indígena ○ ○ ○ Clínica da doença diarréica aguda ○ TABEL A ○ ○ 1 APRES ENTAÇÃO CLÍNICA DE DES IDRATAÇÃO DDA LEVE sinais clínico s discreto s, bo a interação co m o meio D D A M O D ERAD A sinais clínico s evidentes, mantém a via o ral DDA GRAVE sinais clínicos pronunciados, perdeu a via oral Havendo estimado o grau de perda hídrica torna-se fundamental investigar a presença de infecção bacteriana (invasiva ou não). A intensidade da apresentação com curta evolução e rápida deterioração do estado geral, a febre elevada (acima de 39ºC) e a presença clínica de fezes muco-pio-sanguinolentas; todos estes sinais, em conjunto “ou não”, são indicadores confiáveis de infecção bacteriana primária ou oportunista e requerem antibiótico-terapia. Há uma situação conflitante que se expressa nos casos de suposta colite amebiana, uma vez que estes facilmente se apresentam como colites bacterianas invasivas e a distinção clínica é muito sutil entre um e outro. Na maioria das situações, as colites amebianas se anunciam com febre baixa e bom estado geral; no entanto, há exceções, principalmente se uma infecção bacteriana oportunista se instala. Nestas situações sugerimos optar pelo tratamento de ambos os agentes etiológicos. É importante não esquecermos o cenário de atuação do profissional de saúde. Em grande parte do território indígena do alto rio Negro, não há hospitais próximos e a remoção do paciente envolve um longo tempo de transporte, superior à 12 horas, período no qual se dará o óbito ou a melhora; portanto, a resolução terá de ser ofertada longe de recursos laboratoriais. Tratamento O sustentáculo da abordagem terapêutica de qualquer doença diarréica aguda é a hidratação, uma vez que a imensa maioria dos casos é auto-limitada, dentro de 7 a 14 dias. Segundo normas da OMS, optamos pelos 3 planos de abordagem, universalmente empregados em saúde primária, ao redor do globo. 87 Ações em saúde indígena amazônica • Plano A (DDA leve): Não há sinais de desidratação ou há desidratação leve de difícil afirmação clínica. A terapêutica se resume à oferta livre de líquidos quaisquer, inclusive o soro de rehidratação oral (SRO). É fundamental ensinar o preparo do SRO na prática, uma vez que não há recipientes para medir 1 litro exato de água (vide aspectos antropológicos). Opta-se pelo recipiente doméstico que comporte 1 litro, faz-se uma marca no mesmo e procede-se o preparo para que todos os membros da família apreciem e entendam o método, inclusive os homens (sendo sociedades patriarcais, mesmo que eles não cuidem diretamente dos infantes, exercem forte elemento de cobrança frente às mulheres). Um esquema prático é ofertar 10ml/ kg de peso corporal em SRO após cada episódio de diarréia ou vômito. É fundamental estimular o aleitamento materno e não suspender os alimentos sólidos. • Plano B (DDA moderada): Há sinais clínicos de desidratação evidentes, porém mantém a via oral e a interação com o meio. A perda líquida estimada sugere desidratação moderada. A terapêutica se resume à TROA (terapia de rehidratação oral assistida), que consiste em ofertar SRO num cálculo aproximado de 100ml/kg de peso, para crianças de até 2 anos, num período de 3-4 horas. Em outras faixas etárias sugerimos o cálculo de 50ml/kg de peso. A oferta deve ser lenta e continuada, preferentemente com uma seringa sem agulha, acoplada num catheter feito de silicone (escalpo de “butterfly”, sem a agulha). A apresentação de vômitos sugere oferta muito acelerada, uma vez que a hemese acontece por gastro-paresia (pouca motilidade de esvaziamento gástrico), comum às gastro-enterites. Um importante sinal de sucesso da terapêutica TROA é a apresentação de diurese; portanto a criança deve ser mantida nua e aquecida durante a rehidratação. Duas micções claras traduzem bom parâmetro para sucesso da terapia de rehidratação. 88 Doença diarréica aguda em área indígena • Plano C (DDA severa): A apresentação clínica é de desidratação grave, sem via oral. A terapêutica deverá ser invasiva ou por uso de sonda naso-gástrica ou por venóclise. Sugerimos, sempre que possível, a punção venosa periférica, uma vez que assegura a infusão e oferta de líquidos sem a possibilidade de hemese. Outra alternativa é a punção intra-ossea (crista ilíaca ântero-superior). Muitas vezes a punção jugular externa com gelco é um bom recurso, principalmente em crianças pequenas, nas quais um trendelemburg (inclinação dos membros inferiores acima do nível do tórax), é facilmente aplicável, tornando a punção venosa mais fácil. O cálculo de reposição hídrica deverá ser o de 50 ml/kg/hr, independente de faixa etária, em gotejo rápido ou à correr. O gotejo deve ser continuado por mais tempo até se obter diurese, quando então segue-se o cálculo de 100ml/kg /dia, de infusão, até assegurar a via oral e seguir a reposição com TROA. Com a melhora do quadro pode-se progressivamente reduzir a velocidade de infusão e aumentar a oferta oral. Quando o gotejamento for reduzido à metade do cálculo estabelecido e não houver mais sinais de desidratação, a via parenteral pode ser suspensa. Em idosos, se houver doença cardio-vascular, as infusões devem ser continuamente monitoradas por ausculta das bases pulmonares, à fim de que se evite um edema agudo de pulmão, por sobrecarga hídrica. Repetimos que a presença da diurese é o melhor parâmetro para se adequar a fluidoterapia, sempre. A falta de diurese nas primeiras 3 horas de infusão nos alerta para a presença de insuficiência renal orgânica aguda (situação pouco freqüente) e devemos considerar o uso de diuréticos de alça (furosemide 1mg/kg) e remoção para um centro diagnóstico. Sugerimos o uso de soro fisiológico até a obtenção da diurese, quando, então, opta-se por ringer lactato (uma vez que este tem potássio em sua constituição). Nesta estratégia o uso de anti-heméticos (metoclopramida, em crianças e prometazina, em adultos) é válido, preferentemente, por via parenteral. 89 Ações em saúde indígena amazônica Havendo suspeita de quadro bacteriano, sugerimos o uso de gentamicina 6mg/kg/dia (dose única diária até 1 ano) por 7 dias, após revertido o quadro de perda hídrica nas primeiras 4 horas. ○ ○ ○ Planos de abordagem da DDA, segundo a OMS. ○ TABEL A ○ ○ 2 ES TRATÉGIA CONDUTA P lano A o fertar líquido s, fo mentar a amamentação materna P lano B o fertar SRO, mo nito rado , co m o uso de seringa e catheter* P lano C hidratação com SNG ou venóclise* *possível associação de terapia com antibióticos Para os demais casos de apresentação clínica mais tênue que se suspeita de infecção bacteriana, sugerimos o uso de sulfametoxazol-trimetoprima 1ml/kg/dia, 12/12 horas, por via oral, acima da idade de 6 semanas (ampicilina 0,5ml/kg/dia, 6/6horas, para os menores de 1 mês e meio de vida); outra alternativa é o ciprofloxacin 20mg/kg/dia,VO, por 7 dias. Havendo a suspeita de amebíase, sugerimos o metronidazol 50mg/ kg/dia,VO, dividido em 12/12 horas por 7-10 dias. É comum a opção de ambos os esquemas, conjuntamente. ○ ○ ○ Antibióticos comumente usados em quadros diarreicos invasivos. ○ TABEL A ○ ○ 3 DROGA POS OLOGIA Gentamicina 6mg/ kg/ dia, IV-IM,q8*, po r 7 dias Sulfameto x azo l-trimeto prima TMP.10mg/ kg/ dia, SMX.50mg/ kg/ dia,q12*,VO,7 dias Ampicilina 50mg/kg/dia,q6*,IV,VO,por 7 dias Cipro flo x acin 20-30mg/kg/dia,q12*,VO, por 7 dias Metro nidazo l (amebiasis) 50mg/kg/dia,q12*, IV,VO, por 7 dias *q: período em horas entre as doses 90 Doença diarréica aguda em área indígena Considerações finais Por muito tempo considerou-se as doenças diarréicas agudas a maior “causa mortis” em áreas indígenas amazônicas. Não é verdade. As pneumonias assumem este destaque, apesar das diarréias serem extremamente freqüentes. Estas posições acadêmicas, teóricas, distantes da verdade, ainda dirigem os destinos destes povos que só agora, no início do século 21, começam a receber atenção digna de uma especialidade médica. O universo de valores e suas peculiaridades nos mostram quão grande é o desafio de fazer dois mundos se comunicarem e ir de encontro à um objetivo comum: uma qualidade de vida melhor. Tentar resolver uma simples diarréia às vezes parece uma tarefa hercúlea, porém viável, sem que se estabeleça um confronto de valores. Os ganhos já se anunciam. Escrever um capítulo que trate de coisa tão simples e elementar só nos prova uma triste verdade... poucos o sabem fazer (de outra forma o capítulo seria dispensável). Os segredos da medicina básica primária perdem em elegância e importância para um país que se anuncia preocupado em morar na França, Finlândia, Estocolmo, enquanto sua solução se esconde no amparo dos desvalidos, na atenção do excluído, no elementar do elementar do elementar... no mínimo de nós mesmos! Referências bibliográficas BARROS, E.; ALBUQUERQUE, G.; PINHEIRO, C.; CZEPIELEWSKI, M. Exame Clínico. Consulta rápida,1ª ed., artes médicas, Porto Alegre, 1999. BEHRMAN, R. E.; KLIEGMAN, R. M.; JENSON, H. B. Nelson. Tratado de pediatria. 16ª ed., Guanabara-koogan, 2002. BERN, C. et al. The magnitude of the global problem of diarrhoeal disease: a ten year update. WHO bulletin OMS, 70:705-14, 1992. BUCHILLET, D. A antropologia da doença e os sistemas oficiais de saúde. In D. Buchillet (org.), Medicinas Tradicionais e Medicina ocidental na Amazônia, pp. 21-44, Belém, MPEG/Cejup/UEP, 1991. 91 Ações em saúde indígena amazônica CLINE, D. M.; MA, O.J. Emergências médicas, 5ª ed., Mc Grae hill, Espanha. 2001. Funasa. Manual de Atenção à Saúde da Criança Indígena. MS, Brasília 2004,. GARNELO, L. Poder, hierarquia e reciprocidade: Saúde e harmonia no grupo indígena Baniwa. Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ (publicação da versão revista da tese de doutorado), 2003. GOLDMAN, L.; BENNETT, J. C. Cecil textbook of medicine, 21st ed., WB saunders Company, Philadelphia, 2001. LASSAUER, T.; CLAYDEN, G. Manual Ilustrado de pediatria, 2ª ed. GuanabaraKoogan, 2003. MARCONDES, E.; ISSLER, H.; LEONE. C. Pediatria na atenção básica primária. São Paulo: Sarvier. 2002. POLIN, R. A.; DITMAR, M. F. Segredos em pediatria , 2ª ed. Artmedica - Porto alegre/2000. SILVERWOOD-COPE, P. L. Cosmologia. Morte e vida nas plantas, monstros, caça e homens. In: Silverwood-Cope PL. Os Maku, povo caçador do noroeste da amazônia, 1ª ed. Brasilia, Edit.Unb, v.1, p.173-176, 1990. 92 8 Ações em Saúde Indígena Amazônica: O Modelo do Alto Rio Negro FOIRN • São Gabriel da Cachoeira • 2006 Capítulo 8, pp. 89 - 100 Infecção respiratória aguda em área indígena Oscar Espellet Soares Médico cirurgião-geral da Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro – FOIRN Acácio Siqueira Médico Pediatra Introdução As doenças respiratórias agudas constituem as principais causas de óbito em área indígena no alto rio Negro, Amazonas . Da população indígena geral, os extremos etários são os mais susceptíveis (crianças abaixo de 2 anos e adultos acima de 50 anos) e a presença de algum grau de desnutrição subjacente é freqüente e um fator agravante na maioria dos casos. A abordagem sindrômica é o único recurso disponível para aqueles que assistem ao paciente com infecção respiratória aguda (IRA), em áreas remotas da floresta, do mesmo modo, a padronização de condutas é o único recurso terapêutico aplicável à estas situações, uma vez que nem sempre o profissional estará presente no local e muito se fará por assistência via radiofonia junto ao agente indígena de saúde (AIS) local. Aspectos antropológicos É aspecto comum às várias etnias do alto rio Negro, a concepção que o indivíduo somente se completa ao longo dos dois primeiros anos de vida e, idém, o aspecto reverso da questão no que tange aos idosos. A morte nestes grupos etários é melhor compreendida e aceita que na cultura ocidental; portanto é comum não serem reportados casos graves de IRA nos extremos do ciclo vital, além de ser também muito comum a oposição dos pais ou responsáveis frente à necessidade de remoção do paciente para um hospital. 93 Ações em saúde indígena amazônica Lembramos que “hospital” é local de morte, devido aos casos graves para lá serem transportados, que não mais retornam, e a morte longe dos seus é pouco aceita ou compreendida, além do que há muitas outras razões de recusa indigena sobre isso, por exemplo: alimentação não adequada ao diagnóstico nativo da doença, preconceitos por parte do pessoal médico e para-médico, impossibilidade de ficar com a família, desconhecimento de um modelo explicativo para os procedimentos necessários, desconfiança com relação ao estado físico das mulheres que os assistem uma vez que a menstruação e a gestação são entendidos como elementos de agravo no processo de cura, falta de um benzedor que recite os mitos de melhora e cura, presença de membros de povos inimigos no mesmo recinto, uma vez tratando-se em enfermarias conjuntas etc. (D. Buchillet, communicação pessoal, dezembro de 2004). Os povos indígenas do Rio Negro concebem a doença e a cura de forma distinta a do mundo ocidental. Por isso, é fundamental atentarmos para uma melhora da comunicação e daí aceitabilidade da proposta hospitalar quando necessária; no entanto, o sistema SUS não oferece este preparo antropológico para abordar o paciente indígena. Como exemplo desta complexidade, as três famílias lingüisticas do alto rio Negro, que abrangem 22 distintas etnias, têm em comum o uso da palavra como elemento curativo; isto é, no ritual de benzimento há uma linha narrativa cuidadosa com o uso de palavras pronunciadas e seus referidos significados e estes elementos dialéticos são de profunda valia e conforto, fato que poderia favorecer para que laços de confiança se estabeleçam entre as duas distintas propostas médicas, a ocidental e a indígena, sem comprometimento das partes, apenas ganho; no entanto, a simples presença dos benzedores em ambiente hospitalar SUS, não é permitida, alegando distúrbio da ordem de trabalho ocidental. Quase que invariavelmente haverá um benzimento do paciente indígena antes, concomitante ou depois da abordagem médica ocidental. Não recomendamos o conflito com estas posições, uma vez que agravam abordagens futuras por desrespeito cultural e a rejeição ao ambiente hospitalar venha a ser cada vez maior. Fisiopatologia As IRA, em área indígena, se resumem basicamente àquelas virais e bacterianas, geralmente iniciando virais e rapidamente se apondo uma infec94 Infecção respiratória aguda em área indígena ção bacteriana oportunista, uma vez que a maioria dos casos se acompanham de desnutrição e isto entende-se como algum grau de imuno-deficiência. As infecções fúngicas geralmente são quadros crônicos ou sub-agudos e não serão abordadas neste capítulo. Há muito é sabido que o aspecto nutricional repercute no sistema imunológico sendo este, inclusive, um dos parâmetros de quantificação de deficiência kilo-calórica; portanto, maior a desnutrição, maiores as chances de infecção. Segundo dados da OMS, todo neonato de baixo peso, isto é, peso de nascimento inferior à 2500g, representa uma chance 40% maior de desenvolver IRA grave até o segundo ano de vida decorrente de imunodeficiência, seja por retardo de desenvolvimento intra-uterino, seja por desnutrição neonatal; portanto, traduzem população de alto risco e requerem visitas e monitoramento acurados, uma vez que são fortes candidatos à complicações; no entanto, devemos considerar que as cur vas antropomêtricas de normalidade nutricional ainda não são plotadas para população indígena ameríndia. Como análise geral, as infecções de vias altas são as mais freqüentes, principalmente em população indígena pediátrica; no entanto, não traduzem gravidade, uma vez que dificilmente complicam. Já aquelas infecções das vias baixas representam o foco de atenção principal e quase invariavelmente se acompanham de aumento da freqüência respiratória para compensar áreas mal oxigenadas do parênquima pulmonar, seja por secreção nos brônquios, seja por consolidação; portanto, este sinal vital é a pedra fundamental para o diagnóstico sindrômico aqui proposto. A hipóxia é um dos principais mecanismos fisiopatológicos para a compreensão da clínica dos casos graves. A maioria dos sinais físicos são decorrentes de mecanismos que tentam compensar o baixo aporte de oxigênio ao cérebro, daí nos atermos à estes dados como referências clínicas, uma vez que não se dispõe de exames complementares. Entre os sinais clínicos fundamentais, lembramos que o uso de musculatura acessória para ventilação é facilmente detectado à inspeção e traduz importante sinal de agravo uma vez que o esforço muscular leva à acidose láctica, que se sobrepõe à acidose respiratória e fadiga da mecânica ventilatória, enfatizando que a musculatura envolvida na ventilação acompanha o grau de desnutrição do paciente como um todo, isto é, costuma se apresentar com baixa reserva funcional frente ao esforço intenso e continuado. 95 Ações em saúde indígena amazônica A baixa oxigenação cerebral leva o paciente, progressivamente, a um quadro de dissociação com o meio (letargia ou agitação) que culmina com a perda de via oral, terminando com o óbito que se dá ou por sépsis ou por insuficiência respiratória; portanto, cobertura antibiótica adequada e aporte de oxigênio são as bases do sucesso terapêutico Teoria das 12 horas A experiência em área indígena no alto rio Negro nos ensina que quando se instala um caso de gravidade, frente à infecção descontrolada ou por perda ventilatória, as próximas 12 horas, após a abordagem inicial, serão cruciais para o desfecho: ou apresentará melhora ou se anunciará o óbito, dificilmente estes casos se estabilizam, uma vez que estamos em área indígena sem suporte hospitalar adequado; portanto os casos de extrema gravidade raramente são evacuados com rapidez, lembrando que uma remoção rápida geralmente requer um período médio de 24 horas para se estabelecer devido às peculiaridades geográficas da floresta amazônica. À esta postura damos o nome de “teoria das 12 horas” e se aplica à imensa maioria dos casos que configurem gravidade, independente da entidade nosológica em questão. Clínica Sempre que se chega em área indígena é preciso ter os ouvidos abertos para todo caso tossidor ser examinado. É fundamental indagar sobre os neonatos e os idosos, uma vez que estes muitas vezes são omitidos da abordagem médica (vide, aspectos antropológicos). O diagnóstico sindrômico se faz com obtenção de dados de história, como idade, período de doença e aparente agravo ou melhora, manutenção da via oral e avaliação de sinais clínicos como a medição dos 4 sinais vitais, inspeção e ausculta da caixa toráxica e exame das extremidades em busca de cianose. A freqüência ventilatória é a pedra fundamental para o diagnóstico dos casos graves, também o uso de musculatura acessória, frente a uma história de quadro gripal. 96 Infecção respiratória aguda em área indígena São fisiológicas as seguintes freqüências respiratórias: ○ ○ ○ Freqüências respirapórias. ○ TABEL A ○ ○ 1 IDADE FREQÜÊNCIA NORMAL TAQUIPNEIA Crianças até 1 ano 20-50cpm* >60 cpm* Crianças até 5 ano s 20-30cpm >50 cpm Crianças até 12 ano s 15-20cpm >40 cpm Acima de 12 ano s e adulto s 15-20cpm > 30 cpm *cpm: ciclos respiratórios por minuto Batimento das asas do nariz, afundamento da fúrcula esternal e a tiragem inter-costal são importantes dados de inspeção (não é válido inspecionar a arcada costal junto ao rebordo costo-abdominal em crianças menores de 1 ano; é fisiológica uma pequena retração inspiratória). Sugerimos o boletim de Silverman-Andersen, que melhor avalia o quadro respiratório de lactentes: ○ Pontuação de Silverman-Andersen ○ ○ ○ ○ ○ TABEL A ○ ○ 2 PONTOS SINCRONIA TORAXABDOMEM TIRAGEM RETRAÇÃO BATIMENTO GEMIDO INTERCOSTAL XIFÓIDEA DAS ASAS DO NARIZ 0 Sincrô nico au se nte au se n te au se n te au se n te 1 Assincro nia mo derada mo derada mo derada mo derada com estetoscópio 2 Assincro nia acentuada acentuada acentuada acentuada sem estetoscópio Se a pontuação atingir 5 ou mais pontos, devemos considerar grave dificuldade ventilatória. A ausculta pulmonar nem sempre é rica, principalmente em crianças pequenas, desidratadas e nos casos de pneumonia inter-lobar; no entanto, se presente estertoração é importante sinal de envolvimento bronco-pulmonar. 97 Ações em saúde indígena amazônica Cabe aqui a observação que a obtenção de todos estes dados não pode ser feita com a criança chorando. Sempre que possível examinar a criança dormindo no colo dos pais, pode-se dar o diafragma do estetoscópio para que o pai o posicione sobre o tórax da criança. Gradação clínica: Em área indígena é prática a classificação das IRA em três gradações (leve, moderada e grave) porque permite direcionar a padronização de condutas terapêuticas: • Ira leve: Boletim de Silverman-Andersen não se aplica. Apresenta-se como aquela IRA sem estertoração nem sinais de sofrimento ventilatório, isto é, sem aumento de freqüência e uso de musculatura acessória. A febre costuma ser a queixa mais freqüente junto com os sintomas gripais das vias altas. Importante salientar que a presença de estridor ou cornagem (sons de intensidade elevada emitidos nas vias altas durante a inspiração obstruída), ainda que leves, merecem especial atenção pois a orofaringe não deve ser examinada com abaixador de língua devido o risco de edema de glote e obstrução total da via aérea. É fundamental a otoscopia em população pediátrica, devido à coexistência de quadro gripal e otite média aguda . • Ira moderada: Para os lactentes, boletim de Silverman-Andersen de até 4 pontos (vide acima). Aquela IRA com estertoração, febre e “discreta” alteração de freqüência e musculatura acessória, isto é, no limite da normalidade (borderline). Evidentemente, estes casos requerem forte subjetividade para gradação e serão melhor avaliados por aqueles mais experientes. Há constatação de secreção nas vias aéreas inferiores, porém mantém via oral e boa interação com o meio. 98 Infecção respiratória aguda em área indígena • Ira grave: Para os lactentes, boletim de Silverman-Andersen com 5 ou mais pontos (vide acima). Aquela IRA que se apresenta com evidente aumento de freqüência e sofrimento ventilatório, podendo haver, ou não, estertoração presente. A febre não é um bom parâmetro desde que nos extremos etários ela costuma não ser expressiva. É comum ocorrerem alterações do estado mental e alguma dificuldade para manter a via oral. ○ ○ ○ Gradação clínica ○ TABEL A ○ ○ 3 GRAU CLÍNICA IRA LEVE aco metimento de vias aéreas superio res, FR no rmal IR A M O D E R A D A esterto ração de vias aéreas inferio res, FR bo rderline IRA GRAVE uso de musculatura acessó ria, tiragem, FR alterada Estes três níveis de intensidade resumem, praticamente, todo o universo de pacientes em estado gripal, em área indígena amazônica. À título de complementação lembramos que o paciente adulto deve sempre ser examinado sentado e com especial atenção para “pequenos” focos de estertoração na pneumonia lobar, principalmente em velhos. À medida em que o quadro de IRA se acentua, a presença de cianose de extremidades faz-se evidente e traduz baixa saturação da hemoglobina; é sinal tardio e de extrema gravidade, assim como a perda da via oral. Alterações psico-motoras se anunciam em casos severos, lembrando que nos idosos a hipóxia leva à agitação e, na criança, à letargia e gemência. É muito freqüente, nos casos graves, haver algum grau de desidratação, seja por perda hídrica nas vias aéreas, como perda insensível, ou por diarréia concomitante e perda da via oral (muito comum em menores de 1 ano). Como finalização é importante citar que todo o caso gripal com aumento de freqüência ventilatória abaixo dos 2 meses de idade traduz gravi99 Ações em saúde indígena amazônica dade e grande probabilidade de óbito, assim como todo o caso suspeito de bronquiolite aguda (os quais podem se anunciar como IRA grave). Tratamento A classificação das IRA em leve, moderada e grave nos permite três modalidades de tratamento. • Ira leve Para os casos de IRA leve, usamos apenas o tratamento sintomático com anti-térmicos e solução fisiológica nasal, raramente usa-se antibiótico, exceto quando o paciente presente coleções purulentas nas vias altas (otite média, sinusite, faringite). • Ira moderada Nos casos de IRA moderada, indicamos o uso de anti-térmicos e mucolíticos (ambroxol) quando a apresentação é recente e sugestiva de viral, porém, o uso de um antibiótico é quase que invariável, desde que os dados de história reportados em área indígena são pouco confiáveis e não se tem, com precisão, o tempo de evolução do quadro agudo. Para tal, sugerimos 3 esquemas básicos: A - Crianças abaixo de 1 ano: 300.000UI de Penicilina Benzatina IM com 100.000UI de Procaína IM, seguidos de doses repetidas de Procaína à cada 12 horas por um total de 4 doses; este esquema permite que se atinja níveis plasmáticos adequados nas primeiras 48 horas (Procaína) e mantidos por 7 dias (Benzatina). Se não ocorrer melhora ao final da 4º dose de Procaína, estender o esquema por mais 2 doses . Não ocorrendo melhora, reconsiderar o agente etiológico e considerar o tratamento de IRA grave. B - Crianças acima de 1 ano: Amoxicilina 50mg/kg/dia, ou 1ml/kg/dia (suspensão de 250mg/5ml), VO, ou dividida em posologia de 8/8 horas, ou, acrescido 15% da dose diária, dividida em 12/12 horas, ambos por 7 dias. 100 Infecção respiratória aguda em área indígena É um esquema de resposta mais lenta que o de acima, porém de alta resolutividade. Como segunda escolha sugerimos Trimetoprim-Sulfametoxazol VO, acima da idade de 1 mês e meio. Aqui fazemos uma observação: Quando ocorre falha dos esquemas acima citados é importante considerar o diagnóstico de Mycoplasma e entrar com Azitromicina 10mg/kg/dia VO, por 3 dias, como droga de escolha. Em lactente tossidor afebril, nascido de parto vaginal, que a mãe apresentou algum corrimento durante a gestação, sempre pensar em pneumonia por Chlamidya trachomatis. C - Adultos: Penicilina procaína 400.000 UI,IM, 12/12hrs., por 7 dias ou Amoxicilina 50 mg/kg/dia (até dose máxima de 1,5g/dia), VO, 8/8hrs, por 7 dias. O uso de bronco-dilatadores e mucolíticos pode se fazer necessário; no entanto, diante da baixa complacência posológica, pode comprometer a adesão ao antibiótico, portanto, a comunicação deve ser bem trabalhada para correto uso da medicação. • Ira grave: Quando estivermos frente à um caso de IRA grave indicamos, sempre que possível, independente da idade, Ceftriaxone 30-50mg/kg/dia, em dose única diária por 3 dias. A via pode ser IV ou IM e dependerá do diluente empregado (lidocaína 2% quando usada a via IM). Sempre que disponível devemos fornecer oxigênio 100%, na vazão de 1 litro por minuto, úmido, em catheter nasal, posicionado na nasofaringe, até obtermos melhora do quadro. Um catheter nasal pode ser improvisado com uma cânula de escalpo (butterfly), sem a agulha e medida da asa nasal até o lóbulo da orelha. É de extrema necessidade tratar os bronco-espasmos (sibilância) que por ventura estejam associados à IRA; sugerimos a nebulização com fenoterol e soro fisiológico. Fluidoterapia é indicada quando há sinais de desidratação concomitante. 101 Ações em saúde indígena amazônica ○ ○ ○ Tratamento da IRA ○ TABEL A ○ ○ 4 GRAU TRATAMENTO IRA LEVE tratamento sinto mático * IR A M O D E R A D A co nsiderar antibió tico terapia co m amo x icilina o u penicilina IRA GRAVE ceftriax o ne e o x igenio terapia, co nsiderar hidratação *Antibióticos somente se localizar foco bacteriano evidente (otite, sinusite) Lembramos que quadros virais podem se apresentar como qualquer modalidade de intensidade acima descritas; no entanto, na falta de recursos diagnósticos mais apurados, muitos receberão tratamento indevido com antibióticos, e parece conduta bem razoável e válida quando se trabalha com populações de elevado índice de mortalidade. Os quadros virais costumam ser aqueles que se apresentam em curta evolução dos sintomas até o atendimento se estabelecer e tendem à ser caracterizados como IRA leve, sem esquecer que crianças abaixo dos 3 anos podem desenvolver bronquiolite e quadros de IRA viral grave. Todo o caso entendido como viral, de intensidade moderada, requer monitoramento “à posteriori”, ou por radiofonia, ou por nova visita em curto prazo. É fundamental entendermos que são medidas práticas que reduzem a mortalidade significativamente, mesmo frente ao erro diagnóstico do agente etiológico ou mesmo com o uso inadequado da antibiótico-terapia. Considerações finais Frente a culturas distintas da ocidental, que direciona a nossa ética e moral, a medicina ocidental ortodoxa, em área indígena, funciona pouco ou não funciona. É fundamental ocorrerem adaptações dos métodos para que se atinjam resultados com menor índice de morbi-mortalidade nas áreas indígenas do alto rio Negro e sendo as IRA grandes responsáveis pela perda de vidas nestes grupos populacionais é mister o estudo de melhoria de padronizações de condutas. 102 Infecção respiratória aguda em área indígena Este foi o nosso propósito. A capacitação de pessoal local (agentes indígenas de saúde) para o diagnóstico sindrômico e a aplicação de medidas terapêuticas adequadas (inclusive aquelas invasivas), na ausência de um profissional da saúde, parece ser o modelo mais adequado e funcional. O sistema de saúde indígena implantado há mais de 30 anos no parque do Xingu, apostou neste modelo e hoje apresenta índices aceitáveis de mortalidade dentro do cenário brasileiro. Nunca é tarde para iniciarmos. Sistemas paternalisantes em demasia (verticais) não resolvem e só atingem resultados temporários e momentâneos, deixando poucas lições. Diante deste cenário de grandes dificuldades técnicas, onde culturas distintas co-habitam, valores entram em conflito, grandes distâncias à percorrer, falta de ambiente hospitalar adequado e dificuldade de locomoção (principalmente quando se tem pressa), nos parece óbvia a máxima afirmação dos grandes epidemiologistas que vivenciaram os confins do mundo e trataram dos excluídos: “Torne-se desnecessário o mais rápido possível”! Referências bibliográficas ATHIAS, R. Análise das representações de doenças contagiosas entre os Hupde-Maku do alto rio negro. 1997. BARROS, E.; ALBUQUERQUE, G.; PINHEIRO, C.; CZEPIELEWSKI, M. Exame Clínico. Consulta rápida,1ª ed. artes médicas, porto Alegre, 1999. BEHRMAN, R. E; KLIEGMAN, R. M.; JENSON, H. B. Nelson - Tratado de pediatria, 16ª ed., Guanabara-koogan, 2002. BUCHILLET, D. A antropologia da doença e os sistemas oficiais de saúde. In D. Buchillet (org.), Medicinas Tradicionais e Medicina ocidental na Amazônia, pp. 21-44, Belém, MPEG/Cejup/UEP, 1991. BUCHILLET, D. Contas de vidro, Enfeites de branco e “Potes de malária”. Epidemiologia e representações de doenças infecciosas entre os Desana do alto rio Negro. Brasilia: Universidade de Brasilia, Série Antropologia n. 187 , 1995. [republicado em 2002 In B. Albert & A.R. Ramos (orgs), Pacificando o Branco. Cosmologias do contato no Norte-Amazônico, pp. 113-142. São Paulo: Editora UNESP/Imprensa Oficial] 103 Ações em saúde indígena amazônica CLINE, D, M. MA, O. J. Emergências médicas, 5ª ed., Mc Grae hill, Espanha. 2001. Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro; Instituto Socioambiental. Povos indígenas do alto e médio rio Negro, 1ª ed. Ministério da Educação e Cultura, Secretaria de Ensino Fundamental, v.1, 1998. FUNASA. Manual de Atenção à Saúde da Criança Indígena. MS, 2004, Brasília. GARNELO, L. & Wright, R. Doença, cura e serviços de saúde. Representações, práticas e demandas Baniwa. Cadernos de Saúde Pública, v.17, n. 2, pp. 273-284, 2001. GARNELO, L. Representações sociais em saúde indígena: O mercado simbólico do alto rio Negro. Educação em Questão. Revista da UFRN, vol. 12-13, pp. 80-99, 2003. GOLDMAN, L.; BENNETT, J. C. Cecil textbook of medicine, 21st ed., WB saunders Company, Philadelphia, 2001. LASSAUER, T; CLAYDEN, G. Manual Ilustrado de pediatria, 2ª ed. GuanabaraKoogan, 2003. MARCONDES, E.; ISSLER, H.; LEONE, C. Pediatria na atenção básica primária. São Paulo: Sarvier, 2002. OPAS/OMS - Programa control de lãs infecciones respiratórias agudas. Neumonia em los niños: estratégias para hacer frente al desafio. HMP/ ARI-OPS/OMS, 1991. POLIN, R. A.; DITMAR, M. F. Segredos em pediatria, 2ª ed. Artmedica Porto alegre, 2000. RIBEIRO, B. G. Introdução. In: Ribeiro, B.R. Os índios das águas pretas, 1ª ed., São Paulo, Edusp e companhia das letras, v.1, p.17-29, 1995. RIBEIRO, D. O problema indígena. Doença, fome e desengano. In: Ribeiro D. Os índios e a civilização, 1ª ed., Brasília, Edit. Vozes, v.1, p.207-214, 1980. SILVERWOOD-COPE, P. L. Cosmologia. Morte e vida nas plantas, monstros, caça e homens. In: Silverwood-Cope PL. Os Maku, povo caçador do noroeste da amazônia, 1ª ed. Brasília, Edit.Unb, v.1, p.173-176, 1990. 104 9 Ações em Saúde Indígena Amazônica: O Modelo do Alto Rio Negro FOIRN • São Gabriel da Cachoeira • 2006 Capítulo 9, pp. 101 - 116 Ofidismo em área indígena Oscar Espellet Soares Médico cirurgião-geral da Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro – FOIRN Colaboração: Daniel Fernandes da Silva Herpetólogo Introdução A Amazônia concentra, provavelmente, a maior densidade de ofídios das Américas, sendo lógica a conclusão epidemiológica de um altíssimo índice de acidentes com estes animais e, decorrente de peculiaridades geográficas e antropológicas, um elevado índice de letalidade. Estes dados ainda encontram-se sub-notificados nos levantamentos epidemiológicos dos órgãos competentes referentes ao alto rio Negro, Amazonas, e, provavelmente, o mesmo se repita para as demais regiões amazônicas de terras indígenas demarcadas. A compreensão do comportamento destes animais, a visão xamãnica indígena e suas representações, o entendimento da fisiopatologia das peçonhas e seu tratamento traduzem a finalidade deste capítulo que enfatiza a adequada resolução do acidente ofídico amazônico “in locus” à grande distância de um hospital. Ofídios Os ofídios não peçonhentos traduzem um baixo índice de acidentes. Tais serpentes pertencem às famílias Boidae e, principalmente Colubridae, sendo que com exceção de alguns gêneros, tais como Philodryas, Clelia, entre outros, os acidentes têm pouca repercussão clínica (pequenas perfurações e infecção local), daí não serem o tema central deste assunto. Os acidentes ofídicos peçonhentos na floresta amazônica equatorial do alto rio Negro, no extremo noroeste do Brasil, se resumem à família 105 Ações em saúde indígena amazônica Viperidae (principalmente gêneros Lachesis e Bothrops) e à família Elapidae (principalmente gênero Micrurus). O gênero Crotalus (cascavéis) não habita a região. A imensa maioria dos casos se resume ao gênero Bothrops (jararacas), por serem serpentes de fácil adaptação ao ambiente modificado pelo homem e por terem comportamento agressivo quando se sentem ameaçadas. Estas serpentes respondem por 90-95% dos acidentes. Possuem um orifício entre o olho e a narina, chamado fosseta loreal, presas anteriores articuladas (dentição solenóglifa), e cauda lisa. As espécies Bothrops atrox e Bothrops brazili parecem assumir quase 100% dos acidentes deste gênero específico nos afluentes do alto rio Negro (o que não se repete na extensão do território brasileiro). Em torno de 5-8% dos casos de acidente são causados pelo gênero Lachesis (surucucus), que são animais terrestres, de grande porte (podem atingir cerca de 3,5m de comprimento) e que habitam primordialmente a selva fechada, não alterada pelo homem, sendo que os encontros com pessoas são menos freqüentes. Este gênero se diferencia de Bothrops, entre outras características, por apresentar as escamas da ponta da cauda eriçada e as escamas dorsais tuberculadas. Na região do alto rio Negro este gênero é representado pela espécie Lachesis muta . A família Elapidae traduz apenas 1% dos acidentes, uma vez que comporta serpentes de pequeno a médio porte, pouco agressivas, popularmente conhecidas como “cobras corais”. No alto rio Negro, alguns destes ofídios (gênero Leptomicrurus) têm coloração marrom escura, “sem os anéis” coloridos característicos de grande parte das serpentes do gênero Micrurus. Os elapídeos têm cabeça arredondada, pouco destacada do corpo, sem fosseta loreal (apenas escama loreal), presas anteriores não-articuladas (dentição proteróglifa) e cauda curta e arredondada. As espécies Micrurus surinamensis e Micrurus spixi, parecem ser, segundo levantamento preliminar, as mais freqüentes no alto rio Negro, Amazonas. Todos estes ofídios aumentam sua atividade durante o final do período de verão amazônico, sendo que os encontros com humanos neste período são mais freqüentes. Aspectos antropológicos Muitas das bases conceituais da representação das serpentes no imaginário cultural indígena são fundamentadas de igual maneira como na cultura ocidental. 106 Ofidismo em área indígena Mesmo no cristianismo e islamismo, as cobras assumem o aspecto negativo de insurgência do diabo e daí a expulsão do homem do paraíso. No universo indígena do alto rio Negro, a harmonia do homem e seu meio sofre a ameaça de domínio das serpentes e conseqüente mundo de sofrimentos e penúria. Em suma, mesmo na cultura ameríndia, as cobras assumem destaque contrário ao benévolo e aceitável; no entanto, nem só a figura agressiva e traiçoeira acompanha a mitologia destes animais, uma vez que, mesmo na cultura grega, a serpente é representativa de cura (Esculápio), gerando uma dualidade representativa do bem e do mau. Infelizmente predominam os aspectos negativos. No imaginário mitológico indígena do alto rio Negro as serpentes assumem um papel importantíssimo na explicação da origem do mundo e suas doenças e curas, daí o tratamento ocidental de grande parte dos acidentes ser tardio, quase sempre após todas as tentativas de cura próprias de cada etnia. A medicina milenar indígena dos povos do alto rio Negro mantém-se viva para tratar de seus acidentes ofídicos, com o uso de ervas e elementos místicos ainda preservados. Alguns tabus ainda imperam fortemente em certos grupos indígenas, como o afastamento das mulheres sexualmente ativas frente ao acidentado (aquele que foi mordido de jararaca não deve nem pode ser em contato ou simplesmente olhar para uma mulher menstruada ou grávida; seu estado pode também piorar se estiver em contato com uma mulher que acabou de ter relação sexual), uso de dieta específica para a situação (por exemplo, sem assado, pimenta etc.), tanto para o paciente como para aqueles que compartilham do mesmo sangue; é o que os antropólogos chamam de “grupo de substância”; geralmente, na concepção indígena, tudo o que aqueles que participam do grupo de substância fazem ou comem pode piorar o estado daquele que é mais vulnerável (D. Buchillet, communicação pessoal, dezembro de 2004). E, sob hipótese alguma, a amputação encontrou espaço para consideração no tratamento indígena do ofidismo. A ameaça de amputação é, em grande parte, responsável pela abordagem tardia da maioria dos casos por parte da medicina ocidental, salientando-se que, nas narrativas orais, a amputação nunca esteve presente como forma de tratamento e sim como agressão e estigma de “incapacitado” para obter alimento numa mata de difícil obtenção de recursos; portanto, um ônus para a família e sociedade. 107 Ações em saúde indígena amazônica A partir destas observações, conclui-se o porquê da grande resistência dos pacientes indígenas a se submeterem ao tratamento da medicina ocidental, quase sempre hospitalar e sob normas do sistema SUS (sem tempo ou dedicação às peculiaridades antropológicas acima descritas). Conforme já foi salientado, a questão da alimentação nos hospitais constitui um problema sério para os indígenas vitimas de acidentes ofidicos assim como a do sexo do pessoal médico e para-médico já que o paciente nunca sabe ao certo se aquela médica, enfermeira ou agente de saúde é ou não menstruada ou grávida. Apresentação clínica É fundamental, diante do acidente ofídico, respondermos à pergunta: “há presença de peçonha?” Devido à grande variedade de espécies amazônicas de serpentes, a coleta de informações sobre o ofídio sem vê-lo é de pouca valia. Os indígenas não classificam os ofídios por peçonhas ou gêneros e sim por seu padrão de cores e desenhos, daí ocorrerem grandes confusões quando é trazida a informação de acidente por “jararaca” (não é informação confiável e suficiente), uma vez que um grande número de serpentes não peçonhentas entram nesta categoria. Além disso, os elapídeos com coloração escura podem ser confundidos com o gênero Bothrops. Um agravante é que a cabeça do ofídio quase nunca é trazida junto ao pessoal da assistência médica aqui proposta. Identificar o tipo de peçonha inoculada por sua apresentação clínica é, infelizmente, o único recurso confiável para definir-se a conduta terapêutica. • Clínica do acidente ofídico Diante da informação de mordedura de ofídio a medição dos sinais vitais é o primeiro passo, sempre! Frente ao acidente “não peçonhento” a máxima queixa reportada é dor, apenas, que raramente é progressiva e gradual, exceto após o quarto ou quinto dia, quando ocorre celulite e abscesso. Dificilmente será reportada como dor imediata e crescente sem momento de alívio, como ocorre em presença de veneno. Geralmente a dor, nos acidentes não-peçonhentos, apresenta duas fases: uma, decorrente do ferimento, de caráter passageiro; e outra, tardia, decorrente de complicações infecciosas. 108 Ofidismo em área indígena Por outro lado, na presença de peçonha, basicamente dois grupos de toxinas estarão possivelmente envolvidos: as neurotoxinas e as toxinas proteolíticas. A - Clínica da toxina neurotóxica A família Elapidae, o grupo das corais verdadeiras, é representada principalmente por ofídios do gênero Micrurus, com peçonha de ação neurotóxica. No acidente elapídico a apresentação clínica é a da síndrome miastênica, e a queixa proeminente será cansaço (fraqueza muscular) e dificuldade visual (ptose palpebral e diplopia), ambos com rápida progressão e pouca dor (miotoxina). Sialorréia também é reportada. Geralmente o paciente apresentará parestesia no membro afetado. Não há edema, sangramento ou história arrastada! Os sinais vitais apresentam pouca alteração, nos momentos iniciais, progredindo rapidamente para falência ventilatória. A apresentação é desastrosa, rápida e com forte potencial de fatalidade, em questão de poucas horas, apenas. Fisiopatologia da toxina neurotóxica A fácies neurotóxica (dificuldade de abertura dos olhos) é característica elapídica e a morte se dá por insuficiência ventilatória durante o período de circulação da neurotoxina (em média 24 hs.) que bloqueia a placa motora da musculatura ventilatória (predominantemente ação pós-sináptica, impedindo a acetil-colina de se ligar aos receptores colinérgicos da placa motora; no entanto, algumas espécies têm toxina pré-sináptica, que bloqueia a liberação da acetil-colina). Sempre é considerado um acidente grave devido ao potencial de letalidade. B - Clínica da toxina inflamatoria aguda Os gêneros Bothrops e Lachesis, grupo das jararacas e surucucus, é representado por ofídios com peçonha, predominantemente, de ação proteolítica (inflamatória aguda). O acidente peçonhento inflamatório é caracterizado por dor intensa e progressiva acompanhada de edema quase imediato à inoculação, estabelecendo seu grau de apresentação nas primeiras 12 horas do inóculo. 109 Ações em saúde indígena amazônica A quantificação de toxina é a base da abordagem adequada e isto é feito com a classificação clínica do local afetado, no ponto de inoculação. O acidente de grau “leve” traduz pouca peçonha e apresenta apenas edema limitado à região afetada pelas presas do animal e dor. O acidente de grau “moderado” apresenta a adição do caráter ascendente ao edema distante do ponto de inoculação, isto é, um edema maior e progressivo que invade áreas adjacentes ao ponto de inoculação, num padrão crescente e extenso. A dor é característica marcante dos acidentes botrópicos decorrente da liberação de prostaglandinas, na área de lesão, e ação direta da peçonha (botropjaracina) em terminações nervosas. O acidente “grave” apresenta a adição de áreas de necrose, eritema, equimose, bolhas e comprometimento da perfusão tecidual distal ao ponto de inoculação, além de sangramento profuso, sistêmico e instabilidade hemodinâmica com ou sem insuficiência renal, sugerimos aferir a hipotensão postural. Nas três gradações do acidente botrópico podem estar presentes alterações da coagulação, tanto laboratoriais como clínicas, por isto este elemento clínico sozinho não serve de parâmetro para gradação da quantidade de toxina inoculada, exceto quando assume grande repercussão hemodinâmica, como acontece no acidente grave. Um simples teste clínico para detectar alterações de coagulação é feito através da colocação de uma pequena amostra de sangue periférico em um tubo de ensaio e aquecer na palma da mão por tempo suficiente até evidenciar coagulação. O tempo médio é de até 10 minutos sob condições de normalidade; excedendo 30 minutos, é considerado sangue incoagulável. A este teste damos o nome de “tempo de coagulação”, e serve apenas para medir a resolução da terapia antiveneno; portanto, deve ser estabelecido antes e após a soroterapia, como elemento de comparação. Ocorrendo soroterapia em doses adequadas, o teste acusa melhora do tempo de coagulação dentro de 6 a 12 horas após a infusão da anti-toxina. O sangramento gengival é muito comum na maioria dos casos e se traduz por impregnação achocolatada na implantação odôntico-gengival, nem sempre apresentado como sangramento vivo. Ao acidente laquético valem as mesmas considerações acima, uma vez que a toxina tem ação muito similar, apesar de maior ação hemorrágica e com o adendo de sintomas vagotônicos decorrentes da fração neurotóxica do veneno, 110 Ofidismo em área indígena Foto: acervo DSEI/FOIRN como vômitos, diarréia, cólicas abdominais, salivação, bradicardia e hipotensão arterial; no entanto, apenas 15% dos casos reportam estes sintomas. No demais, a fração proteolítica e coagulante do veneno o descreve quase exatamente como o acidente botrópico. ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ FIGURA 1 ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ Acidente ofídico de face Fisiopatologia da Toxina Inflamatoria Aguda É importante salientar que se trata de toxina proteolítica (flogística), miotóxica, coagulante, hemorrágica e não neurotóxica e a fisiopatologia desta se resume à liberação de citokinas e fosfolipídios teciduais e consumo dos elementos da coagulação por ambas as vias, extrínseca e intrínseca. Há forte consumo de fibrinogênio. O ponto de inoculação é melhor entendido como ponto de “inflamação” tecidual e ativação dos noci-receptores por ação direta da toxina, daí a dor e áreas de necrose e conseqüente infecção secundária. O quadro flogístico evolutivo, e seu edema, pode ser medido,circunferencialmente, com fita métrica, em pontos pre-determinados no membro afetado; medidas subsequentes devem ser feitas de 12 em 12 horas. Geralmente nas primeiras 24 hs. ele tende a aumentar e depois há uma tendencia a estabilizar e diminuir se a terapia de soroterapia heteróloga for adequada. 111 Ações em saúde indígena amazônica O edema progressivo, resultado do intenso processo inflamatório, pode levar à síndrome compartimental (o edema impede a passagem de sangue arterial e retorno venoso, no membro afetado, por formação de um compartimento retido por fáscia muscular) e agravo da situação dos tecidos distais ao ponto de inoculação. Pressões intra-musculares acima de 30 mmHg estabelecem o diagnóstico desta complicação; no entanto, nem sempre se dispõe de manômetro para esta aferição diagnóstica, repousando na evidência clínica, apenas, esta afirmação de complicação (tempo de enchimento capilar da polpa digital, após compressão, superior à 3 segundos). A ação hemorrágica do veneno se dá por provável lesão da lâmina basal do endotélio da micro-vasculatura, levando à disrupção da integridade da rede vascular, tanto local, como sistemicamente. Quando se estabelece intenso consumo dos elementos da coagulação, de pouco resolve a infusão de sangue ou plasma, se não interrompermos a liberação de mediadores inflamatórios teciduais com soro anti-ofídico em quantidades adequadas e debridamento das áreas necróticas úmidas (decorrentes da necrose rápida e progressiva). De outra forma, rapidamente os elementos infundidos serão consumidos local e sistemicamente. ○ ○ ○ Clínica do ofidismo do alto rio Negro ○ TABEL A ○ ○ 1 OFÍDIO CLÍNICA Co lubrídeo s (não peço nhento s) Do r no lo cal da mo rdedura* Both rop s sp. (jararacas) Do r, edema, necro se, alteraçõ es de co agulação * Lach esi s mu ta (surucucus) Dor, edema, necrose, alterações de coagulação pronunciadas, sintomas vagotônicos* Micrurus sp. (corais verdadeiras) Parestesias, síndro me miastênica, facies neuro tó x ica, insuficiência ventilató ria* *freqüente infecção no local da mordedura Tratamento Toda a mordedura de vertebrados carnívoros é considerada, no mínimo, potencialmente infectada por flora mista (gram positivos, gram negativos e anaeróbios). 112 Ofidismo em área indígena O acidente ofídico não é exceção e pode requerer, em até 30% dos casos, antibióticoterapia adequada para gramm negativos e anaeróbios (optamos por ciprofloxacino associado ao metronidazol, ou, então, cefoxitina ou cefprozil, apenas), independente de haver peçonha ou não; no entanto, a distinção entre processo inflamatório decorrente apenas da peçonha e processo inflamatório decorrente de infecção, não é de fácil afirmação clínica, por isto sugerimos a aferição dos diâmetros subseqüentes à cada 12 horas, uma vez que na presença de infecção (geralmente após 48 hrs. do inoculo)eles tendem a aumentar progressivamente. É de vital importância a cobertura com VAT (vacina anti-tetânica), nos indivíduos não vacinados. Frente aos acidentes venenosos, antigas medidas como punção ao redor da mordedura, sugar com a boca ou até mesmo o garroteamento do membro afetado, são contra-indicadas e só agravam a lesão tecidual. É válido comentar que medidas de garroteamento elevam os números de amputados frente aos casos de toxina proteolítica e, paradoxalmente, podem proteger aqueles casos de neurotoxina; no entanto, não há consenso literário e condenamos esta medida em área indígena. É fundamental o repouso e a “pendência” do membro afetado abaixo do nível cardíaco, com finalidade de diminuir a absorção da toxina e facilitar o aporte arterial, além de conduzir à melhora da dor. Não há afirmação na literatura quanto ao tempo de atuação das peçonhas após inoculação, uma vez que inúmeras variáveis estão envolvidas (tamanho do ofídio e idade, tempo decorrido da última refeição do animal, área geográfica de habitação do animal etc...), além de que, nos casos de acidentes botrópicos e laquéticos, a peçonha tem características enzimáticas, o que se entende como ação continuada enquanto existirem condições ideais de temperatura e ph no ponto de inoculação; portanto, havendo presença clínica de neurotoxina ou ação proteolítica “em evolução”, devemos administrar anti-veneno, independente do tempo decorrido entre a inoculação e a assistência soroterápica. Soroterapia A soroterapia anti-veneno é, com poucas exceções, a base do tratamento dos acidentes ofídicos peçonhentos! É importante salientar que o objetivo terapêutico é confrontar veneno com anti-veneno no corpo da vítima, o qual serve apenas de cenário para este 113 Ações em saúde indígena amazônica conflito, independentemente de idade, sexo, peso, altura ou superfície corporal, daí os acidentes serem classificados em leve, moderado ou grave, o que traduz uma tentativa de quantificação de peçonha inoculada para se adequar uma quantia de anti-peçonha para a situação; portanto, uma criança lactente receberá mesmas doses de soro-terapia de um adulto de 70 kg, se a inoculação da peçonha corresponder à mesma quantidade inferida. O soro anti-ofídico não é comercializado no Brasil, sendo de distribuição pública e gratuita em todo o território nacional. Sua composição é soro eqüino líquido, veiculado em fenol, mantido em refrigeração, gênero específico ou polivalente e de dose e concentração uniforme independente do laboratório produtor (cada mililitro é capaz de neutralizar 5 mg de toxina botrópica na fórmula anti-botropica e neutralizar 5 mg de veneno botrópico e 3 mg de veneno laquético na fórmula anti-botropica, anti-laquética). Saibamos que na formulação do soro específico, várias espécies são envolvidas (geralmente aquelas que incidem nas regiões de grande adensamento populacional brasileiro, predominantemente Bothrops jararaca) e dificilmente as espécies de ofídios amazônicos do alto rio Negro encontram-se nestas fórmulas, o que pode comprometer significativamente a potência anti-veneno. Os acidentes leves requerem 2-4 ampolas, os moderados, 4-8 e os graves, 8-12 ampolas infundidas em “push” (direto e rápido), ou gotejo, endovenoso; em crianças pequenas é fundamental administrar lento, em micro-gotas, dado o significativo volume da infusão anti-veneno. Os acidentes elapídicos requerem 20 ampolas IV, no mínimo, até obter-se reversão do quadro miastênico. Os acidentes laquéticos requerem 10 ampolas de soro específico (se não ocorrer quadro neurotóxico vagotonico) ou 20 ampolas IV se o quadro vagotonico se expressar. ○ ○ ○ Gradação do acidente ofídico proteolítico e respectivas doses de soroterapia ○ TABEL A ○ ○ 1 GRAU APRES ENTAÇÃO DOS E LEVE do r e edema apenas no lo cal da ino culação * 2-4 ampô las M O D ERAD O do r e edema abrangente ao lo cal da ino culação * 4-8 ampô las GRAVE moderado acrescido de bolhas e/ou instabilidade hemodinâmica* 8-12 ampô las *presença ou não de alterações da coagulação 114 Ofidismo em área indígena A administração deve sempre ser gênero-específica, lembrando que o anti-veneno anti-botrópico não tem uma certa ação cruzada com o antilaquético e vice-versa. Nas 12 horas seguintes se reavalia a estabilidade do caso ou regressão clínica e, se possível, o tempo de coagulação (melhor parâmetro laboratorial). Lembramos o quanto fundamental é aferir os diâmetros do membro afetado uma vez que universalmente tendem a aumentar nas primeiras 24 hs e, posteriormente, estabilizar ou regredir até as 48 hs do inoculo, se a dose de soroterapia heteróloga for adequada. A melhora da dor não é bom elemento clínico para medir soroterapia adequada. Se não ocorrer estabilização do edema e/ou do quadro hemorrágico, repetem-se novas doses em igual quantia, até se obter melhora do tempo de coagulação (nos acidentes inflamatórios), ou reversão do quadro neurotóxico (nos casos elapídicos). Há uma tendência atual, na literatura, para se reduzir estas quantias de anti-veneno pela metade; no entanto, o ministério da saúde ainda não homologou estas condutas no território nacional. Enfatizamos que na presença clínica de peçonha inflamatória aguda (edema, dor e/ou necrose recente) em evolução, ou neurotóxica (facies neurotóxica), o anti-veneno sempre é infundido até mesmo há 72 hs do tempo transcorrido entre o momento do inóculo e a terapia. Medidas complementares Em área indígena, devido à grande distância de um hospital, e à premissa de que soroterapia anti-ofídica deve ser instalada o mais cedo possível para minimizar os danos teciduais recomendamos, antes de começar a infusão anti-peçonha, fazer a medicação pré-soro, isto é, medicação com intenção anti-anafilática. Apesar de não haver consenso literário quanto à valia da medicação pré-soro (em alguns estudos não foi superior ao placebo) sugerimos o uso de Difenidramina 50 mg IV, 15-20 minutos antes da infusão do anti-veneno (em crianças a dose desta medicação é reduzida a um terço). A instalação de fluidoterapia generosa IV, é regra em todo acidente ofídico venenoso e sempre deve ser imediata. 115 Ações em saúde indígena amazônica Optamos por soro fisiológico ou glicosado em veia periférica a correr os primeiros 500ml, em adultos, ou 250ml, em crianças, seguidos de 40 gts/mint ou 30 micro-gts/mint, respectivamente, até se obter diurese, daí segue manutenção de 30ml/kg/dia. É importante lembrar que a fluidoterapia não deve conter potássio até que se obtenha diurese adequada (50 ml/kg/dia ou 30 ml/hora). A finalidade da fluidoterapia imediata é prevenir a insuficiência renal por necrose tubular aguda, muito freqüente, decorrente da baixa perfusão tecidual, além de provável ação direta da peçonha proteolítica. A literatura reporta taxas altas de sintomas alérgicos durante a administração do tratamento anti-peçonha; no entanto, dados preliminares sugerem que a população indígena tem um perfil de baixa incidência de expressivas reações alérgicas como um todo. Mesmo na presença de sintomas alérgicos, a soroterapia anti-veneno não deve jamais ser suspensa, apenas reduz-se a velocidade de infusão e usa-se medicação anti-histamínica mais uma vez, associada à adrenalina, repetindo-se as doses acima mencionadas como pré-medicação. É de boa conduta sempre ter adrenalina e oxigênio próximos e prontos para uso; no entanto, nem sempre isto é disponível em área indígena, mas as condutas não mudam, uma vez que os benefícios superam os riscos. A analgesia é fundamental, já que a dor é decorrente da lesão tecidual e ação direta da peçonha e se faz com meperidina 0.5mg/kg IV ou dipirona IV. Jamais utilizar drogas do grupo dos anti-inflamatórios não-esteróides porque favorecem a baixa adesão plaquetária e piora do quadro hemodinâmico, além de diminuírem a perfusão renal através de sua ação anti-prostaglandinas. A soroterapia anti-veneno adequada não leva à melhora imediata da dor. Nos acidentes elapídicos, devido à gravidade do quadro e insuficiência ventilatória iminente, recomendamos o uso de prostigmina IV (um anticolinesterásico que mantém por mais tempo a acetil-colina em ação na placa motora, a qual se encontra bloqueada por ação da toxina) acompanhada de atropina, previamente administrada, já que bradicardia é muito comum com o uso de anti-colinesterásicos; no entanto, naquelas raras espécies que inoculam neurotoxina de ação pré-sináptica, estas medidas são de mínima valia. É fundamental e prioritária a assistência ventilatória controlada em todos os casos elapídicos porém, em área indígena nem sempre é possível este recurso, daí instalar respiração com máscara ou boca-a-boca até receber anti-vene116 Ofidismo em área indígena no específico ou aguardar a total metabolização do veneno (24 horas); mesmo assim, o índice de letalidade é altíssimo na falta de soro anti-elapídico. Nos acidentes laquéticos também é válido o uso de atropina junto à soroterapia devido ao efeito vagotônico da toxina. Complicações da proteólise Foto: M. S. de Castro Como mencionado anteriormente, frente à toxina proteolítica e miotóxica, é fundamental bloquear a liberação de citokinas e fosfolipídios teciduais com soroterapia adequada, debridamento das áreas necróticas úmidas (as áreas secas, mumificadas, não representam perigo) e fasciotomia precoce (extensas incisões helicoidais em fáscias de grupos musculares), viabilizando, assim, melhor aporte de oxigênio aos grupos teciduais em sofrimento. De outra forma, nas apresentações graves, se isto não for feito, instalase a coagulação intravascular disseminada (CIVD), com extenso consumo de fibrinogênio e trombina, refratária à infusão de derivados de sangue e óbito. Quando há extensas áreas de necrose seca mumificada, opta-se por tratamento conservador com debridamentos programados e enxertias, sempre lembrando que o suporte da medicina indígena coadjuvante à ocidental não interfere negativamente nos resultados e só melhora a aceitação, além de se evitar o estigma da amputação, lembrando que mesmo um membro anquilótico sequelado, reserva ainda alguma função de apoio ou preensão e pode evitar a necessidade de órtese ou prótese. Se presentes extensas áreas necróticas úmidas, recentes, com sepsis ou CIVD, só resta a amputação da área afetada. ○ ○ ○ ○ ○ ○ FIGURA 2 ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ Necrose extensa de pé direito 117 Ações em saúde indígena amazônica Considerações finais No alto rio Negro e seus afluentes, a grande maioria dos acidentes ofídicos leves não é reportada e se resolve com a medicina tradicional indígena, respondendo pelo significativo número de sub-notificações. Os acidentes moderados e graves são notificados e traduzem pronta demanda de soroterapia adequada; no entanto, o Brasil, apesar de ser auto-suficiente em soro anti-ofídico, de excelente qualidade, não oferece a opção de soro anti-ofídico específico para o universo de ofídios amazônicos daquela região e não tem uma rede de distribuição confiável e eficiente. Cabe a nós ressaltar que a desinformação dos profissionais de saúde frente às condutas técnicas adequadas ainda responde pelo elevado número de amputações e outras seqüelas. Os manuais e cartilhas distribuídas gratuitamente pelo ministério da saúde são válidas para a imensa extensão do território nacional, porém apresentam limitações significativas para a abordagem do ofidismo nestas áreas indígenas da floresta amazônica, uma vez que não consideram que a soroterapia anti-veneno de distribuição gratuita em cadeia nacional não engloba as espécies de ofídios peçonhentos do território de abordagem e a base de sucesso desta forma de tratamento é a administração da anti-peçonha específica. A medicina tradicional indígena ainda oferece muito para o melhor entendimento desta patologia e seu tratamento como uma abordagem mais conservadora e só resta a nós, profissionais qualificados, buscar estas informações e adequá-las aos dois mundos que enfrentam este desafio. Frente a este cenário de confronto cultural a antropologia prova, cada vez mais, ser ferramenta de grande apoio para os profissionais atuantes em saúde dos povos indígenas. Para finalizar, ainda optamos pela máxima: “acidente ofídico indígena trata-se longe de hospitais”, afirmação que tem por objetivo diminuir complicações, evitar estigmas de amputação e morte e, conseqüentemente, aumentar a aceitação da terapêutica anti-veneno, quando necessária. Referências bibliográficas BUCHILLET, D. A antropologia da doença e os sistemas oficiais de saúde. In D. Buchillet (org.), Medicinas Tradicionais e Medicina ocidental na Amazônia, pp. 21-44, Belém, MPEG/Cejup/UEP, 1991. 118 Ofidismo em área indígena CAMPBELL, J. A. & LAMAR, W. W. The Venomous Reptiles of Latin America. Comstock, Ithaca, New York, 1989. DALTRY, J. C.; WUSTER, W. & THORPE, R. S. Diet and snake venom evolution. Nature 379 (6565): 537-40, 1996. DOS SANTOS, M. A. Serpentes peçonhentas e ofidismo no Amazonas. In: J. L. C. Cardoso, F. O. S. França, F. H. Wen, C. M. S. Málaque e V. Haddad Jr. (Eds), Animais peçonhentos no Brasil: biologia, clínica e terapêutica dos acidentes. Sarvier. São Paulo, 2003. FERNANDES, D. S.; GERMANO, V. J.; FERNANDES, R. & FRANCO F. L. Taxonomic status and geographic distribution of the lowland species of the Liophis cobella group with comments on the species from the Venezuelan Tepuis (SerpentesColubridae). Boletim do Museu Nacional 481: 1-14, 2002. FRANÇA, F. O. S., & MÁLAQUE, C. M. S. Acidente botrópico. In: J. L. C. Cardoso, F. O. S. França, F. H. Wen, C. M. S. Málaque e V. Haddad Jr. (Eds), Animais peçonhentos no Brasil: biologia, clínica e terapêutica dos acidentes. Sarvier. São Paulo. 2003. FURTADO, M. F. D.; MARUYAMA, M.; KAMIGUTI A. S.; & ANTONIO, L. C. Comparative study of nine Bothrops snake venoms from adult female snakes and their offspring. Toxicon 29(2): 219-226, 1991. GARNELO, L. Poder, hierarquia e reciprocidade: Saúde e harmonia no grupo indígena Baniwa. Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ (publicação da versão revista da tese de doutorado), 2003. HOGE, A. R. & ROMANO-HOGE, S. A. R. W. L. Sinopse das serpentes peçonhentas do Brasil. Memórias do Instituto Butantan 42/43: 373-496, 1981. MARTINS, M., & OLIVEIRA, M. E. Natural history of snakes in forests of the Manaus region, Central Amazonia, Brazil. Herpetological Natural History 6: 78-150, 1998. RIBEIRO, B. G. Introdução. In: Ribeiro, BR. Os índios das águas pretas, 1ª ed., São Paulo, Edusp e companhia das letras, v.1, p.17-29, 1995. SCHVARTSMAN, Samuel. Plantas venenosas e animais peçonhentos. São Paulo: Sarvier, 2ª ed.,1992. 119 Ações em saúde indígena amazônica WAY, L.W. & DOHERTY, G.M. Current surgical diagnosis and treatment. 11ª ed., Lange Medical Books, EUA, pp. 100-142, 2003. WUSTER, W.; SALOMÃO, M. G.; DUCKETT, G. J.; THORPE, R. S. & B. B. B. S. P. Mitochondrial DNA phylogeny of the Bothrops atrox complex (Squamata: Serpentes: Viperidae). Kaupia 8: 135-144, 1999. 120 10 Ações em Saúde Indígena Amazônica: O Modelo do Alto Rio Negro FOIRN • São Gabriel da Cachoeira • 2006 Capítulo 10, pp. 117 - 122 Introdução ao atendimento odontológico em área indígena André Luiz Martins Odontólogo do DSEI-RN/FOIRN, Especialista em Saúde Pública Eduardo Assis Ottoni Odontólogo, Especialista em Endodontia Considerações iniciais Ar condicionado, cadeiras automáticas ergonômicas de última geração, canetas de alta rotação, mochos pneumáticos, sugador, cuspideira, câmera intra-oral computadorizada, foco de luz; esqueça tudo isto!!! Você está num local onde o acesso se faz apenas por vias fluvial ou aérea e não existe energia elétrica. A universidade contemporânea prepara o profissional da área odontológica para trabalhar em estabelecimento clínico privado, consultório, hospital modelo, onde grande parte dos atendimentos são elitizados e a tecnologia é a fiel escudeira da qualidade e da facilidade. Porém, não se preocupa em preparar o odontólogo para a saúde coletiva e para diferentes situações e maneiras de se promover saúde. Para tanto, o esforço, a dedicação, a imaginação e a criação se fazem necessários para a construção e consolidação de um modelo assistencial diferenciado, lógico e eficiente em saúde indígena. É freqüente observar em qualquer profissional recém chegado no DSEIRN (Distrito Sanitário Especial Indígena do Rio Negro) um sentimento vago e impreciso, muito provavelmente causado pelo impacto da realidade local com a realidade aprendida ou eventuais experiências anteriores. Ele não sabe o que o espera, quem o espera, como irá trabalhar e em que condições. É um abismo de ignorância que só é transponível pela incrível capacidade do ser humano de se adaptar a diversos ambientes. 121 Ações em saúde indígena amazônica A Saúde bucal do alto rio Negro no contexto da distritalização A implantação de uma Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas, em consonância com os princípios do Sistema Único de Saúde, requereu a adoção de um modelo complementar e diferenciado de organização dos serviços, que levasse em conta as especificidades culturais, epidemiológicas e operacionais desses povos, enfatizando o princípio da equidade. O modelo adotado foi o DSEI, concebido como sistema local de saúde orientado para populações definidas, dentro de espaços geográficos e administrativos específicos. Os DSEIs contemplam um conjunto de atividades técnicas que visam prover medidas racionais e qualificadas de atenção, promovendo a organização da rede de serviços de saúde e o repensar das práticas sanitárias levando em consideração as especificidades culturais dos usuários e efetivando o controle social. O que se busca com a construção dos Distritos é redirecionar e modificar a forma de organização e o conteúdo das ações e serviços de saúde, de modo a responder às demandas da população, atender às necessidades de saúde e, fundamentalmente, contribuir para a solução dos problemas de saúde da população que vive e trabalha no espaço territorial e social do Distrito Sanitário. Visando garantir o acesso da população indígena, respeitando e valorizando suas práticas tradicionais, além de respeitar os limites da ética profissional, as ações de atenção em saúde bucal nos DSEI-RN almejam: • Propiciar a incorporação de procedimentos coletivos e individuais em locais onde não há consultórios odontológicos; • Adequar à prática de controle de infecção intrabucal onde existam ou não consultórios instalados • Propiciar uma ação integrada com as áreas da saúde e a utilização de diversos espaços sociais para o desenvolvimento de ações coletivas de saúde bucal; • Consolidar a prática efetiva de discussão local com a população indígena sobre as ações desenvolvidas; • Utilizar a epidemiologia como instrumento organizador da atenção; • Atuar em plena consonância com os AIS (agente indígena de saúde), buscando a melhoria da qualidade e do acesso às atividades em saúde bucal; • Organizar a demanda assistencial a partir do levantamento de necessidades (programação). 122 Introdução ao atendimento odontológico em área indígena As ações de saúde bucal do DSEI-RN expressam os princípios e diretrizes do SUS e da política Nacional de Saúde Bucal e apresentam as seguintes características operacionais: • Definição das aldeias como local preferencial de realização das atividades de saúde bucal; • Integralidade da assistência prestada à população, no âmbito da atenção básica, e articulação de referência e contra-referência aos serviços de média e alta complexidade do SUS; • Humanização do atendimento e capacitação dos profissionais para trabalhar no contexto intercultural; • Abordagem multiprofissional; • Estímulo às ações de promoção de saúde, à articulação intersetorial, à participação e ao controle social; • Acompanhamento e avaliação permanente das ações realizadas. O atendimento odontológico em área encontra diversas barreiras: 1. Barreiras tecnológicas 2. Barreiras geográficas 3. Barreiras ambientais 4. Barreiras linguísticas 5. Barreiras endêmicas Todo o aparato tecnológico que se tem acesso nos cursos de graduação e pós-graduação é de muito pouca utilidade, já que os equipamentos necessitam de energia elétrica para o seu funcionamento e ao mesmo tempo seria inviável transportá-los para todos os locais de atendimento, por razões geográficas, de peso e de transporte. Até mesmo um consultório portátil, muitas vezes, é inviável, pois para seu funcionamento também é necessário gerador de energia. O local escolhido para os atendimentos odontológicos geralmente são centros comunitários cobertos ou palhoças indígenas. Em substituição as cadeiras odontológicas, mesas, cadeiras ou pequenos bancos são utilizados para tal. Esses são dispostos em um lugar próximo o suficiente de uma fonte de luz natural, para que se permita uma boa visualização do campo operatório. Gazes são utilizadas para absorver o sangue nas cirurgias e roletes de algodão são utilizados para reter a saliva no caso de restaurações. Aliás, para os que pensam que a utilização daquele motorzinho do dentista é imprescindível, estão enganados. A cárie é um tecido amolecido 123 Ações em saúde indígena amazônica que pode ser removido através de um instrumento afiado: a cureta dentinária. A técnica utilizada para restaurações é o ART (Tratamento Restaurador Atraumático) e o material usado para tal é o ionômero de vidro. ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ FIGURA 1 ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ Local dos atendimentos ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ FIGURA 2 ○ Local dos atendimentos Em alguns DSEIs, em especial o do alto rio Negro, o acesso até as aldeias é feito através de rios, muitos deles com cachoeiras, onde é necessário desembarcar todo o carregamento e arrastar a voadeira (barco de alumínio de 6 ou 8 metros) através da cachoeira ou por terra até atingir o próximo ponto navegável. A distância é imensa e em muitas micro-áreas de atendimento são necessários três ou quatro dias de viagem somente para atingi-las. Em algumas localidades, além da parte fluvial é necessário reali124 Introdução ao atendimento odontológico em área indígena zar longas caminhadas através da mata selvagem para atingir uma aldeia, carregando todo material, insumos e alimentação, sob um calor causticante onde a umidade sufoca os menos preparados para tal. O deslocamento de equipes via aérea é inviável devido o seu alto custo financeiro. ○ ○ ○ ○ FIGURA 3 ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ Deslocamento das equipes As barreiras ambientais também estão presentes para dificultar o atendimento. Como já foi citado, o calor e os mosquitos são perturbadores em potencial. Insetos de vários tipos como moscas, aranhas, mutucas também estão presentes. O risco de ser atacado por algum animal selvagem peçonhento, uma cobra – mais freqüentemente –, porcos do mato ou onças – mais raramente – é eminente. A grande diversidade étnica associada a grande variedade línguística constituem um verdadeiro mosaico. Somente na região do alto rio Negro, são quatro troncos lingüísticos que se subdividem em aproximadamente 22 dialetos. Para transpor tais dificuldades é necessária a ajuda de intérpretes indígenas que falam Português. Por isso, objetivando garantir a atenção primária à saúde e facilitar a comunicação entre a população indígena e as equipes de saúde, foi criada a categoria de AIS. Barreiras culturais, por vezes, tornam-se grandes demais impedindo o atendimento do indígena pelo profissional não preparado. Tais diferenças culturais não devem ser ignoradas. Ignorá-las é falta grave e o profissional não será bem recebido nas comunidades. O estudo do povo no qual o profissional irá se inserir é recomendável para evitar choques culturais e conseqüentemente o fracasso do tratamento. Como se não bastasse, muitas áreas de atendimento estão em regiões consideradas endêmicas. Doenças como malária, dengue, tuberculose, filariose e outras podem ser freqüentes na área de atendimento, portanto a prevenção se faz necessária cada uma a seu modo. 125 Ações em saúde indígena amazônica Considerações finais Apesar de todas essas barreiras o atendimento odontológico em área é perfeitamente viável e até mesmo pode servir como uma válvula de escape para driblar a monotonia das quatro paredes do consultório odontológico. A natureza e a convivência com estes povos nos surpreendem e nos presenteiam de tal forma que todos estes inconvenientes se tornam perfeitamente transponíveis para o profissional disposto a viver e aprender com eles. Já se torna perceptível a assimilação das comunidades indígenas com o recente modelo de atenção básica à saúde bucal, que a cada dia está sendo adaptado à cultura, à tradição e as singularidades desses povos indígenas. Enquanto isso, aguardamos novos profissionais que aceitem o desafio de repartir uma história ímpar e inigualável. Alguém se habilita? Referências bibliográficas MS/FNS - Departamento de Saúde Indígena: Programa Nacional de Saúde Bucal para os Povos Indígenas - Brasília, 2005. MENDES, E. V. Distrito Sanitário. O processo social de mudança das práticas sanitárias do Sistema Único de Saúde. RJ:Ed. HUCITEC/ABRASCO, 1994. 126 11 Ações em Saúde Indígena Amazônica: O Modelo do Alto Rio Negro FOIRN • São Gabriel da Cachoeira • 2006 Capítulo 11, pp. 123 - 131 Promoção de saúde bucal em área indígena André Luiz Martins Odontólogo do DSEI-RN/FOIRN, Especialista em Saúde Pública Guilherme Almeida Ciriani Odontólogo Introdução O conceito ampliado de saúde deve nortear a mudança progressiva dos serviços, evoluindo de um modelo assistencial, economicamente inviável, dependente, centrado na doença e baseado no atendimento a quem procura, para um modelo de atenção integral à saúde, onde haja a incorporação progressiva de ações de promoção e de proteção, ao lado daquelas propriamente ditas de recuperação. Para melhor identificar os principais grupos de ações de promoção, de proteção e de recuperação de saúde a serem desenvolvidas prioritariamente, é necessário conhecer as características do perfil epidemiológico da população, não só em termos de doenças de maior prevalência, como das condições sócio-econômicas da comunidade, seus hábitos, costumes e estilo de vida e suas necessidades de saúde – sentidas ou não -, aí incluídas por extensão a infra-estrutura de serviços disponíveis. É nesse contexto que esse capítulo tem por finalidade a proposta de retratar as práticas de promoção e proteção à saúde executadas em comunidades indígenas da bacia do alto rio Negro. Cronologia resumida da política de saúde indígena no Brasil 1590-1900 – A assistência de saúde dos povos indígenas era realizada por grupos religiosos, ligados ao processo de evangelização. 1910 – Criação do Serviço de Proteção ao Índio (SPI), comandado pelo Marechal Cândido Rondon, no momento do surgimento de 127 Ações em saúde indígena amazônica grandes frentes de expansão no interior do país (abertura de estradas, mineração e atividades agropecuárias) 1956 – Criação do Serviço de Unidades Sanitárias Aéreas (SUSA) e das Unidades de Atendimento Especial (UAE). Este serviço era coordenado pelo Dr. Noel Nutels e realizava trabalho de campo nas comunidades indígenas, cuidando principalmente dos casos de tuberculose. 1965 – Início das atividades do Programa do Xingu, através do Departamento de Medicina Preventiva da Escola Paulista de Medicina, coordenado pelo Professor Dr. Roberto Baruzzi, realizando cadastramentos, avaliação clínica e vacinação de todos os indígenas do parque do Xingu. O trabalho da escola paulista, atual Unifesp, se mantém até os dias de hoje. 1967 – Extinção do SPI. 1968 – Criação da Fundação Nacional do Índio (Funai), numa fusão do SPI, Conselho Nacional de Proteção dos Índios e do Parque Nacional do Xingu. No âmbito da responsabilidade da prestação de assistência médico-sanitária da Funai instaurou-se Equipes Volantes de Saúde, que visitavam as comunidades de forma periódica e ou emergenciais. 1986 – I Conferência Nacional de Proteção a Saúde do Índio Pouca participação Indígena e esboço de um modelo assistencial. 1988 – Definição das bases do Sistema Único de Saúde, expressas na Constituição Brasileira. O Ministério da Saúde passa a ser o responsável por todo o sistema de saúde brasileiro. 1991 – A saúde do índio passa a ser de responsabilidade da Fundação Nacional de Saúde e define que a organização dos serviços de saúde se dará mediante a implantação dos Distritos Sanitários Especiais Indígenas. 1993 – Realização do Fórum Nacional de Saúde Indígena. II Conferência Nacional de Saúde para os Povos Indígenas, com ampla participação dos povos Indígenas de todo o país. Consolida-se a proposta de criação dos Distritos Sanitários Especiais Indígenas. Decreto 1141/93 – Divisão das responsabilidades de atenção à saúde do índio entre a Funasa e a Funai. 1998 – O Ministério Público, através da 6ª Câmara, elabora um parecer no qual fica estabelecida inconstitucionalidade do Decreto 1141/93 e recomenda que a saúde indígena seja gerida pelo Ministério da Saúde. 1999 – Decisão Política da Funasa quanto a implantação dos Distritos Sanitários Especiais Indígenas em todo o país, com a proposta de 128 Promoção de saúde bucal em área indígena distritos e que a execução das ações de saúde sejam realizadas por organizações indígenas, organizações não governamentais, universidades e secretarias de saúde mediante convênios firmados com a Funasa. 2000 – Implantação dos DSEI. 2001 – III Conferência Nacional de Saúde para Povos Indígenas. 2006 – IV Conferência Nacional de Saúde Indígena: “Distrito Sanitário Especial Indígena: Território de Produção de Saúde, proteção da vida e valorização das tradições”. Um panorama das ações Através de séculos o modelo colonizador ou “explorador” inseriu nessas culturas hábitos alimentares nocivos e não esclarecedores sobre suas seqüelas, introduzindo o açúcar (carboidrato) e seus derivados, mais recentemente os industrializados. Esses colonizadores difundiram a idéia de que o sal era maléfico a saúde bucal e não o açúcar. Isto se torna de fácil compreensão levando-se em consideração as intenções mercantilistas dos colonos, pois o açúcar é mais saciável que o sal, tornando aquele infinitamente mais consumido. Os profissionais do DSEI-RN têm a consciência de que os índices odontológicos relacionados à cárie dental estão acima dos indicadores aceitáveis, por isso, a mudança de hábitos introduzidos pelo branco e a adoção dos costumes tradicionais são necessidades não apenas sanitária, mas de resgate sociológico e antropológico dessas culturas. O aspecto fundamental a ser discutido é a horizontalização dos programas odontológicos e a sua integração com outras áreas da saúde. A odontologia integral implica em que a atenção em saúde bucal não se limite ao simples atendimento à demanda espontânea, mas que busque meios de sensibilizar no indivíduo a importância dos serviços coletivos de ampla resolução. As novas concepções sobre saúde pública enfocam os aspectos preventivos e educativos como prioritários, uma vez que se os esforços se direcionarem nesse sentido, os resultados, a longo prazo, seriam plenamente satisfatórios. Essa prática preventiva vem sendo construída na saúde indígena amazônica com esforços dos profissionais de saúde do DSEI, dos agentes indígenas de saúde e, até mesmo, dos professores que atuam nas comunidades indígenas e lideranças locais. 129 Ações em saúde indígena amazônica A grande evolução da odontologia em nossas incursões em área não é relacionada à introdução de novas tecnologias para o tratamento da doença cárie e da doença periodontal, mas sim, de uma nova filosofia e conceitos: as ações de promoção de saúde são descentralizadas e multiplicativas, uma vez que são compartilhadas com os auxiliares odontológicos, agentes indígenas de saúde, professores, pajés, pais e outros, sob a responsabilidade e a orientação do odontólogo. Nossa principal ponte de ligação em razão da linguagem, abordagem e convivência são os auxiliares odontológicos, que geralmente são indígenas, e os agentes indígenas de saúde. As ações de promoção e proteção de saúde visam a redução de fatores de risco, que constituem ameaça à saúde dos indígenas, podendo provocar-lhes incapacidades e doenças. Nesse grupo situam-se, também, a identificação e difusão de informações sobre os fatores de proteção à saúde. Esse grupo compreende um elenco bastante vasto e diversificado de ações de natureza eminentemente educativo-preventivas. Os profissionais que trabalham com saúde indígena precisam atentar-se que a promoção em saúde bucal está inserida num coiceito amplo de saúde que transcende a dimensão meramente técnica do setor odontológico, integrando a saúde bucal às demais práticas de saúde coletiva. Significa a construção de um modelo saudável, direcionado a todas as pessoas da comunidade. ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ FIGURA 1 ○ ○ ○ ○ 130 ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ AIS avaliando trabalho odontológico Promoção de saúde bucal em área indígena O enfoque à promoção e proteção de saúde se subdivide em várias ações: • Promoção de curso de capacitação aos auxiliares odontológicos pleiteando o aprimoramento das atuações em área e o aprendizado dos conhecimentos básicos imprescindíveis às suas atribuições. • Controle de infecção, biossegurança, materiais e instrumentais odontológicos, preparo do ambiente de trabalho, preparo do paciente, limpeza e desinfecção de instrumentos e materiais, esterelização em área indígena e preenchimento de fichas são assuntos imprescindíveis para os auxiliares odontológicos. • Capacitação odontológica no curso introdutório dos AIS, com duração de 16 horas, na parte respectiva ao tema: processo saúde x doença. O curso de capacitação introdutória para AIS novatos também contempla assuntos da área de saúde bucal. É a acepção de noções inicias sobre a fisiopatogênese das principais afecções bucais que atigem a população indígena do DSEI-RN. • Capacitação odontológica anual aos AIS. Saúde bucal e os povos indígenas, interação e relacionamento AIS x equipe de saúde bucal, atribuições do AIS, escovação bucal supervisionada, aplicação tópica de flúor, métodos alternativos de higiene oral, troca de conhecimentos e experiências tradicionais indígenas com as ocidentais e debate sobre as ações de saúde bucal. • Realização de palestras e atividades educativas de fácil compreensão, adaptadas a cada faixa etária, enfatizando os cuidados necessários para uma boa saúde bucal, relembrando a saúde de seus antepassados, ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ FIGURA 2 ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ Capacitação de AIS – utilização de recurso áudio-visual 131 Ações em saúde indígena amazônica os riscos de uma dieta cariogênica, o consumo inteligente de açúcar e meios alternativos de higiene oral (escova confeccionada com galhos de açaizeiro e o fio de tucum para limpeza interdental); As palestras educativas podem ser realizadas pelos auxiliares odontológicos - sob a supervisão do Cirurgião-Dentista – em consonância com o AIS, que traduz as informações na língua nativa com o intuito de uma melhor assimilação de toda a população. A apresentação de filmes educativos, principalmente nas comunidades de pólo base do DSEI-RN, onde existem geradores, configura um instrumento ímpar de educação em saúde. O uso de material didático de confecção local, com a participação da população e respeitando as peculiaridades culturais tem demonstrado melhores resultados que a utilização de recursos pré-fabricados. As atividades permitem a construção do conhecimento, através da interação entre o saber da população indígena, com toda sua riqueza de simbolismo e o saber oficial da equipe de saúde bucal. • Distribuição de pastas e escovas em todas as comunidades do alto rio Negro durante as visitas realizadas pela equipe de saúde bucal. Uma das estratégias criada pelos odontólogos é a entrega da nova escova e creme dental ao indivíduo somente se ele devolver a escova velha. Essa prática estimula um maior cuidado com o kit recebido. • Realização de atividades de higiene bucal supervisionada (HBS) com maior abordagem às crianças. A HBS visa à prevenção da cárie – quando for emregado dentifrício fluoretado – e da gengivite, através ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ FIGURA 3 ○ ○ ○ ○ 132 ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ Palestra educativa – Aplicação de evidenciador de placa bacteriana Promoção de saúde bucal em área indígena do controle continuado de placa pelo paciente com supervisão do profissional, adequando a higienização à motricidade do indivíduo. Para evitar estigmações é necessário muita cautela na definição de técnicas “corretas”e ou “erradas” de escovação bucal. Procura-se enfatizar que o importante não é a técnica adotada e sim a prática diária. A HBS deve ser desenvolvida pelos profissionais auxiliares da equipe de saúde bucal. Sua finalidade é a busca da autonomia com vistas ao autocuidado. • Disseminação dos conhecimentos necessários para as atuais e futuras gerações, sobre as funções do aparelho estomatognático e alusão às doenças como a cárie e as doenças periodontais, as quais além de ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ FIGURA 4 ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ Escovação bucal supervisionada ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ Pai é instruído a escovar os dentes do filho ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ FIGURA 5 ○ 133 Ações em saúde indígena amazônica causarem dor, perda precoce dos dentes, alteração na posição dos dentes, alterações estéticas, mau-hálito, serem foco de infecções a outros órgãos, requer tratamento dispendioso aos pais ou aos serviços públicos de saúde ou não públicos assistenciais; • Explicação e entrega aos AIS os materias para a escovação supervisionada e aplicações de flúor, enfatizando a sua importância na melhoria da qualidade de vida nas comunidades; • Realização por parte do odontólogo de atividades clínicas preventivas, tais como: aplicação tópica de flúor, aplicação de verniz fluoretado, aplicação de cariostático, selamento de molares permanentes com ionômero de vidro autopolimerizável em pacientes com potencial atividade de cárie; Conclusões É imprescindível fortalecer as ações de promoção em saúde no intuito de reverter o quadro clínico delicado das condições de saúde bucal dos indígenas, construído à custa de um tratamento odontológico não efetivo. Ao colocar para o indígena a proposta de implementação desse modelo amplificado de saúde, além de introduzir o “novo”, afronta valores, lugares e poderes consolidados pelas práticas dos modelos que antecederam. Para a saúde bucal, esta nova forma de se fazer às ações cotidianas representa, ao mesmo tempo, um avanço significativo e um grande desafio. As ações coletivas e individuais promovem a interação dos comunitários com as equipes de saúde bucal através de reuniões, palestras, oficinas de avaliação dos serviços de saúde, atenção individualizada e domiciliar, estímulo aos métodos tradicionais de higiene oral, distribuição de escovas e dentifrícios, práticas de escovação e capacitação dos 185 agentes indígenas de saúde (AIS), que são os pilares do processo de educação continuada nas comunidades. A promoção em saúde bucal tem sido o instrumento de maior importância no processo de construção de um modelo integral de saúde indígena, com independência e previsibilidade. Referências bibliográficas BASTOS, J. R. M. et al. Odontologia preventiva e social. Universidade de São Paulo, Bauru, Jul. 2001. 134 Promoção de saúde bucal em área indígena BRANDÃO, M.C. et.al. Saúde Indígena em São Gabriel da Cachoeira (AM) – Uma abordagem antropológica. 1ª ed. Recife: Liber Gráfica e Editora, 2002. Dados dos Pólos do DSEI/FOIRN 2003. MAPA-LIVRO, Povos indígenas do alto e médio rio negro - FOIRN – ISA. 2000. MS - Coordenação Nacional de Saúde Bucal: Política Nacional de Saúde Bucal, Brasília, 2004. MS/FUNASA – Departamento de Saúde Indígena: Diretrizes para a atenção em saúde bucal aos distritos sanitários especiais indígenas/DSEI. Brasília, 2001. PESSINI, L. Em busca de uma política de equidade e solidariedade: o paradigma da promoção da saúde. O mundo da saúde, v. 20, n. 9, p. 291. Set/Out. 1996. PINTO, V. G. Saúde Bucal Coletiva, 4ª ed. São Paulo: Santos, 2000. 135 Ações em saúde indígena amazônica 136 12 Ações em Saúde Indígena Amazônica: O Modelo do Alto Rio Negro FOIRN • São Gabriel da Cachoeira • 2006 Capítulo 12, pp. 133 - 143 Atendimento clínico odontológico em área indígena André Luiz Martins Odontólogo do DSEI-RN/FOIRN, Especialista em Saúde Pública Ana Maria Campolim Monteiro Odontóloga, Especialista em Saúde Coletiva Introdução As condições de saúde bucal em nível individual e coletivo são avaliadas, principalmente, pela análise da ocorrência da cárie e de doenças periodontais. Por ser mais freqüente, a cárie tem sido intensamente estudada, do ponto de vista etiológico e epidemiológico, com o objetivo de melhor conhecer determinantes, prevalência e distribuição, assim como estabelecer medidas preventivas. No Brasil, as informações epidemiológicas disponíveis sobre ocorrência e distribuição da cárie são ainda muito limitadas, no que diz respeito tanto à cobertura geográfica, como a tendências temporais. Usualmente, envolvem amostras urbanas, sobretudo de escolares. Para um melhor esclarecimento sobre a multicausalidade da cárie dentária, principalmente em grupos minoritários, como as populações indígenas, são necessários estudos longitudinais que contemplem grande amostragem para um melhor entendimento sobre as condições de saúde bucal, principalmente porque as intensas mudanças sócio-econômicas e ambientais são os aspectos reconhecidamente propiciadores de alterações no perfil da saúde bucal desses povos. O quadro epidemiológico indígena na região é bastante preocupante em relação à doença cárie. De acordo com levantamentos, realizados em 2003, o CPOD (índice que fornece a média de dentes permanentes atacados pela cárie, perdidos por extração e obturados), na região dos rios Waupés/Tiquié, por exemplo, é 6,18 aos 12 anos; 9,74 dos 15 aos 18 anos; e 16,46 de 36 a 48 anos. O índice de cárie 137 Ações em saúde indígena amazônica não é diferente do encontrado em populações rionegrinas que habitam as margens de outros rios da região, e também de povos que vivem longe da margem dos rios, como os Hupda, já que a introdução do açúcar pelo branco na região é visível nas várias comunidades visitadas pelas equipes de saúde do distrito. Com o intuito de reverter o quadro situacional encontrado e contribuir com a manutenção da saúde bucal dos indígenas, a estratégia de assistência odontológica adotada fora fortemente sistemática e baseada na prevenção e educação odontológicas. Em adição, os tratamentos curativo básico e emergencial, aliviando dores, eliminando focos infecciosos procurando restabelecer a anatomia dental original e a função mastigatória, também são executados. Histórico Antes da implantação do DSEI, os problemas odontológicos que acometiam os índios da região do alto rio Negro eram solucionados por equipes volantes de assistência da Funai, ou, eventualmente, nas cidades mais próximas como São Gabriel da Cachoeira ou cidades Venezuelanas e Colombianas – próximas à divisa com o Brasil ( quando havia possibilidade de deslocamento dos índios para estas cidades) – pelo exército (em pelotões especiais de fronteira - PEF), missões religiosas, por práticos em odontologia existentes em algumas comunidades, por pajés, benzedores ou ainda através do uso de ervas medicinais. O tratamento utilizado, exceto raras exceções, era mutilador ou paliativo e totalmente isento de prevenção. A partir do ano 2000, toda a região começou a receber assistência odontológica através da introdução da atenção básica em saúde bucal, isto é, realização de ações de identificação, prevenção e solução dos principais problemas bucais. Assistência clínica ao indígena As atividades clínicas realizadas em área indígena diferem muito daquelas realizadas em centros urbanos, a começar pelo local de atendimento, isento de qualquer infra-estrutura, feito ao ar livre, no interior de casas, embarcados em voadeira ou sobre canoas, em palhoças, em centros comunitários e escolas. O paciente é atendido sentado sobre cadeiras comuns ou odontológicas portáteis, deitado sobre bancos ou mesas. A luz utilizada é a do ambiente e não há canetas de rotação ou qualquer outro material elétrico. 138 Atendimento clínico odontológico em área indígena ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ FIGURA 1 ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ Atendimento clínico sobre um banco no interior de uma casa As ações em saúde bucal, como preconizado pelo DESAI/Funasa (Departamento de Saúde Indígena da Fundação Nacional de Saúde) são divididas em coletivas e individuais, devendo ocorrer paralelamente. As ações de cunho individual se referem às necessidades individuais de atendimento clínico e podem ser divididas em alguns níveis: 1ª Etapa - um levantamento coletivo das necessidades de tratamento individual é realizado com o intuito de obter um panorama das condições de saúde bucal do grupo específico, bem como conhecer o grau de complexidade dos procedimentos a serem feitos e o tipo de recursos humanos necessários. Num segundo passo, equaciona-se as necessidades de tratamento através da realização de procedimentos clínicos individuais possíveis no nível local, preferencialmente em menor número de sessões possíveis visando o controle de infecção. São realizadas exodontias de dentes decíduos e/ou permanentes com comprometimento pulpar ou periodontal e restos radiculares, raspagens, pequenas cirurgias, biópsias, aplicações de selantes, profilaxias, além de restaurações com a técnica do tratamento restaurador atraumático – ART (técnica preconizada nas Diretrizes de Saúde Bucal dos DSEIs e recomendada pela OMS para o tratamento da cárie em locais onde não há consultórios dentários) onde a cárie é parcialmente removida com instrumentos manuais e a cavidade preparada e selada com ionômero de vidro, um material restaurador liberador de flúor, tendo-se ao mesmo tempo um tratamento restaurador e preventivo para as cáries. 2ª Etapa - realiza-se um levantamento de necessidades individuais para procedimentos de reabilitações funcional e social, com a confecção 139 Ações em saúde indígena amazônica de próteses totais e parciais, bem como reconstruções em resina e próteses unitárias em acrílico. 3ª Etapa - as necessidades que não tiveram resolução local são encaminhadas para os serviços de referência do SUS, contemplando, assim, a integralidade. O trabalho do dentista em área é auxiliado por profissionais de nível médio, previamente treinados por cursos de capacitação, realizado todo início de ano, e atualização, no decorrer do ano, ministrados pelos próprios dentistas do distrito. Em toda a região abrangida pelo DSEI-RN há apenas um pólo base onde existe um consultório equipado que permite a realização de restaurações estéticas e de amálgama. Em resumo, as atividades clínicas individuais se restrigem ao controle e eliminação de focos infecciosos executando procedimentos restauradores - usando a técnica do ART - removendo tártaro dentário e realizando exodontias. Anamnese Montagem: André L. Martins A anamnese (do grego ana, trazer de novo, e mnesis, memória) significa relembrar todos os fatos que se relacionam com a doença e à pessoa doente. Trata-se de uma entrevista terapêutica, realizada como ponto inicial no diagnóstico de uma doença. Uma anamnese, como qualquer outro tipo de entrevista, possui formas ou técnicas corretas de serem aplicadas. Ao seguir as técnicas pode-se aproveitar ao máximo o tempo disponível para o atendimento, o que produz um diagnóstico seguro e a um tratamen- ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ FIGURA 2 ○ ○ ○ ○ 140 ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ Ações Coletivas e individuais Atendimento clínico odontológico em área indígena to correto. Sabe-se hoje que a anamnese, quando bem conduzida, é responsável por 85% do diagnóstico na clínica, liberando 10% para o exame clínico e apenas 5% para os exames laboratoriais ou complementares. Em geral, a sitemática das perguntas a serem feitas ao paciente divide-se em 3 tipos: abertas, focadas e fechadas. Per guntas Abertas - devem ser feitas de tal maneira que o paciente se erguntas sinta livre para expressar-se, sem que haja nem um tipo de restrição. Ex: “O que o sr. está sentindo?” Per guntas FFocadas ocadas - são tipos de perguntas abertas, porém sobre um erguntas assunto específico, ou seja, o paciente deve sentir-se à vontade para falar, porém agora sob um determinado tema ou sintoma apenas. Ex: “Qual parte da boca dói mais? “. Per guntas FFechadas echadas - As perguntas fechadas servem para que o erguntas entrevistador complemente o que o paciente ainda não falou, com questões diretas de interesse específico. Ex: “O dente dói quando o sr. toma xibé ou quando come quinhampira?” É salutar a presença do AIS como intermediador no momento da entrevista do paciente. Muitas vezes os pacientes indígenas, principalmente as mulheres, se sentem mais seguros em relatar o que estão sentindo para o agente de saúde. Eles utilizam a língua nativa e não o português. Para tanto, o agente de saúde traduz as informações para ambos os lados. Exame clínico O exame clínico é um passo importante para se realizar um tratamento em área, como também para um melhor relacionamento entre paciente/profissional. O objetivo fundamental do exame do paciente é a elaboração do diagnóstico, do prognóstico e do correto planejamento terapêutico. Sistematizar o exame do paciente é essencial. A prática metódica é fundamental em regiões remotas da Amazônia. Observa-se no mundo globalizado que com a tecnologia e a sofisticação dos exames complementares diminuíram significativamente a prática do exame clínico minucioso. A conversa com o paciente diminuiu e o exame físico ficou por conta dos exames complementares. De fato, exames complentares não fazem parte da rotina dos profissionais que trabalham em área; por isso, a anamnese e o exame físico são os principais artifícios da prática clínica. Atender um paciente sem a possibilidade de se realizar um exame radiográfico ou de se 141 Ações em saúde indígena amazônica solicitar exames laboratoriais parece cômico. Entretanto, a decisão de condenação ou não de um elemento dentário à exodontia, em área indígena, se apoia apenas no olhar clínico e na inspeção da patologia, no momento em que o paciente se encontra deitado sobre uma mesa. Nos distantes escaninhos não se pode descuidar da anamnese, tampouco do exame clínico, pois são as mais preciosas pedras da propedêutica. “As máquinas só podem fornecer informações de utilidade baseadas na avalanche de dados que as alimentam, mas a compreensão dos problemas do homem só é possível através do pensamento humano”. GENOVESE (1992). Cirurgia em área indígena Tunuí - rio Içana O preparo do ambiente é feito pelo auxiliar odontológico e compreende esterelização dos instrumentais, desinfecção de artigos e disposição de todo o aparato clínico utilizado. O processo de esterização dos instrumentos e gaze é realizado com panelas de pressão, por se tratar de áreas sem eletricidade. A hemostasia é realizada com utilização de gazes estéreis e a iluminação do campo operatório é a própia luz natural, ou, eventualmente, utiliza-se uma lanterna de cabeça. Não há sugadores e cuspideiras, portanto o acúmulo de sangue e saliva é expelido pelo paciente em um cesto com saco plástico de lixo. ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ FIGURA 3 ○ ○ ○ ○ 142 ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ Cirurgia oral em área indígena – Pólo base Atendimento clínico odontológico em área indígena O enigma é como realizar um procedimento cirúrgico sem a disponibilidade de canetas de alta rotação para possíveis osteotomias ou seccionamentos. A impossibilidade de realização de exames complementares culmina e um planejamento e pré-operatórios limitados. Complicações no trans-operatório cirúrgico, preveníveis ou previsíveis em outro contexto, podem acontecer em diversas situações, tais como: dentes anquilosados, dentes com dilacerações radiculares, fraturas radiculares no momento da exodontia, na necessidade de ostectomias manuais, entre outras. Farmacoterapia Analgésicos: Ácido acetil-salicílico 10 mg/ Kg peso/ dose 6/6 hs 1 gota / Kg peso/ dose 6/6 hs Dipirona gotas: 1 gt/ 2 Kg peso/ dose 6/6 hs solução : 2,5 a 5 mL 6/6 hs Paracetamol 1 gota/ Kg peso/ dose 6/6 hs. (máx. de 35 gts.) (1 gota=5 mg) comp: 500 mg ou 750 mg (8/8hs) Anestésicos Locais: Lidocaína com vasoconstrictor (Lidocaína) Prilocaína com vasoconstrictor (Citanest, Biopressin, Citocaína) Antiinflamatórios: Diclofenaco Sódico ou Potássico (não utilizar em crianças com menos de 1 ano.) gotas: 1 gota/ Kg peso/ dose 8/8 hs (máximo de 35 gts.) (1 gota = 0,5 mg) comp: 75 mg (máximo 3 comp. ao dia) 143 Ações em saúde indígena amazônica Antibióticos: Amoxicilina suspensão: 250 mg/5 mL - solução: 20 a 40 mg/ Kg peso/ dia de 8/8 hs. cápsulas: 500 mg (8/8 horas) Eritromicina (alérgicos a penicilina) suspensão: 250 mg/5 mL - solução: 40 a 50 mg/ Kg peso/ dia de 8/8 hs cápsulas: 250 mg (6/6 horas) Tetraciclina cápsulas: 250 mg (6/6 horas) Penicilina G Benzatina Injetável: 1.200.000 U.I. (dose única) Os agentes antibióticos possuem três usos principais na prática da odontologia: tratamento de infecção odontogênica; profilaxia em pacientes com risco de desenvolver endocardite bacteriana ou outros problemas, devido à bacteremia causada por procedimentos odontológicos; profilaxia em pacientes com o comprometimento dos mecanismos de defesa do hospedeiro em decorrência de certas doenças ou tratamento farmacológico. Existem vários tipos de antibióticos, estes podem ser usados isoladamente ou combinados entre si, que podem ser empregados no tratamento dentário. Em pacientes adultos, na profilaxia de pacientes com risco de endocardite bacteriana a indicação é amoxicilina (2g) uma hora antes da intervenção cirúrgica. Para pacientes alérgicos à amoxicilina utilizamos eritromicina 1g duas horas antes do procedimento e 500 mg seis horas após. Os fámacos disponíveis mais utilizados pelas equipes de saúde bucal são os abaixo relacionados: No tratamento de infecções leves, a dose usual de amoxicilina é de 250 mg de 8/8 horas ou 500 mg de 12/12 horas. Para infecções graves a dose recomendada é de 500 mg de 8/8 horas durante 7 dias. O metronidazol pode ser utilizado em associação a outros antibióticos, sendo de grande eficácia em relação às bactérias anaeróbias, não devendo ser utilizado isoladamente, pois só seria eficaz em infecções exclusivamente anaeróbias. Utilizamos o metronidazol em associação com amoxicilina no tratamento de alveolite e infecções endodônticas refratárias. A utilização terapêutica na odontologia da Tetraciclina é limitada ao tratamento de infecções orodentais agudas; sendo esta mais empregada em 144 Atendimento clínico odontológico em área indígena certos tipos de doença periodontal, tal como, a periodontite juvenil localizada. A sua vantagem no tratamento desta doença se dá na capacidade de se concentrar várias vezes no fluído sulcular gengival, cerca de 5 a 7 vezes mais do que no soro, a sua eficácia contra Actinobacillus actinomicetencomitans, a boa substantividade e inibição da reabsorção óssea. Contudo a droga é apenas um coadjuvante no tratamento, pois a instrumentação mecânica perirradicular é primordial na obtenção do sucesso do tratamento. Considerações finais Planejar e realizar ações em saúde bucal indígena é experiência única em odontologia, que difere de todo o contexto teórico e prático da assistência odontológica ensinada pelas faculdades de odontologia, observado e praticado em consultórios particulares ou públicos dos centros urbanos. Frente ao quadro epidemiológico encontrado nestas populações e ausência de infra-estrutura, as atividades curativas em odontologia executadas na região abrangida pelo DSEI- RN são ações básicas e primárias, apoiadas e dependentes de ações preventivas e educativas para se tornarem cada vez mais não mutiladoras e fora do contexto formado pelo ciclo restaurador repetitivo. Referências bibliográficas ANDRADE, E. D. Terapêutica Medicamentosa em Odontologia. São Paulo, Artes Médicas, 1999. ASSAF, V. Tetraciclina em Periodontia. Revista Brasileira de Odontologia,Rio de Janeiro. v. 55,n. 4, p.246-250, 1998. CAVALCANTE, A. S. C. et al – Saúde indígena em SGC- uma abordagem antropológica – Recife/PE: Líber, 2002. www.funasa.gov.br – acesso em 01/02/04. COIMBRA JR., C. E. A. & SANTOS, R. V. Saúde, minorias e desigualdade: Algumas teias de inter-relações, com ênfase nos povos indígenas no Brasil. Ciência & Saúde Coletiva, 5:125-132, 2000. DINI, E. L; FOSCHINI, A. L. R.; BRANDÃO, I. M. G. & SILVA, S. R. C. Changes in caries prevalence in 7-12-year-old children from 145 Ações em saúde indígena amazônica Araraquara, São Paulo, Brazil: 1989-1995. Cadernos de Saúde Pública , 15:617-621, 1999. Equipe odontológica DSEI-RN: Relatório odontológico preliminar - março a dezembro de 2000 - Secretaria municipal de Saúde de São Gabriel da Cachoeira - convênio FUNASA 520/99. FONTOURA, R.; MEDEIROS, P. J. Antibioticoterapias nas infecções Odontogênicas. Revista Brasileira de Odontologia, Rio de Janeiro. v.56, n.5, Set/Out.,1999. FREYSLEBEN, G. R.; PERES, M. A. A. & MARCENES, W. Prevalência de cárie e CPO-D médio em escolares de doze a treze anos de idade nos anos de 1971 e 1997, região Sul, Brasil. Revista de Saúde Pública, 34:304-308, 2000. MS (Ministério da Saúde). Levantamento Epidemiológico em Saúde Bucal: Brasil, Zona Urbana. Brasília: Secretaria Nacional de Programas Especiais de Saúde. Divisão Nacional de Saúde Bucal, Ministério da Saúde, 1988. MS (Ministério da Saúde). Levantamento Epidemiológico em Saúde Bucal. Brasília: Secretaria Nacional de Programas Especiais de Saúde, Divisão Nacional de Saúde Bucal, Ministério da Saúde, 1996. NARVAI, P. C.; CASTELLANOS, R. & FRAZÃO, P. Prevalência de cárie em dentes permanentes de escolares do Município de São Paulo, SP, 19701996. Revista de Saúde Pública, 34:196-200, 2000. NORMANDO, A. D. C. & ARAÚJO, I. C. Prevalência de cárie dental em uma população de escolares da região amazônica. Revista de Saúde Pública, 24:294-299, 1990. NUNES, S. A. C., et al. Relatório das Ações de saúde Bucal na Região dos Rios Tiquié e Uapés - Distrito Sanitário Especial Indígena do Alto Rio Negro AM - Associação Saúde Sem Limites, São Gabriel da Cachoeira, 2001. OLIVEIRA, J. C. Antibióticos em Endodontia. Revista Brasileira de Odontologia, Rio de Janeiro. v. 56, n.3, p.134-138, 1999. PILOT, T. Trends in oral health: A global perspective. New Zealand Dental Journal, 84:40-45, 1988. PINTO, V. G. Saúde Bucal. Panorama Internacional. Brasília: Secretaria Nacional de Programas Especiais de Saúde, Ministério da Saúde, 1990. 146 Atendimento clínico odontológico em área indígena PINTO, V. G. Saúde Bucal. Odontologia Social e Preventiva. São Paulo: Livraria Santos Editora, 1992. SALLUM, W.; JUNIOR, F. H.; TOLEDO, S. et al. Revista Brasileira de Odontologia, Rio de Janeiro. v.53, n.1, p.11-14, 1996. SANTOS, R. V. & COIMBRA, JR., C. E. A. Saúde e Povos Indígenas. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 1994. Saúde Bucal Coletiva – Victor Gomes Pinto – São Paulo: Santos, 2000. VIEGAS, Y. & VIEGAS, A. R. Prevalência de cárie dental em Barretos, SP, Brasil, após dezesseis anos de fluoretação da água de abastecimento público. Revista de Saúde Pública, 22:25-35, 1988. WALKER, A. R. P. Changes in caries epidemiology and other diseases. British Dental Journal, 162:452-453, 1987. WANNMACHER, L.; FERREIRA, M.B. C. Farmacologia Clínica para Dentistas. Rio de Janeiro. Guanabara Koogan, 2ª ed. 1999. WHO (World Health Organization). Etiología y Prevención de la Caries Dental. Série de Informes Técnicos, 494. Geneva: WHO, 1972. WHO (World Health Organization). Avances Recientes en Salud Bucodental. Serie de Informes Técnicos n. 826, Geneva: WHO, 1992. WINTER, G. B. Epidemiology of dental caries. Archives of Oral Biology, 35 (Sup.): 1S-7S, 1990. YAGILA, J.; NEIDLE, E. Farmacologia e Terrapêutica para Dentistas. Rio de Janeiro, Guanabara Koogan, 4ª ed. 2000. 147 Ações em saúde indígena amazônica 148 13 Ações em Saúde Indígena Amazônica: O Modelo do Alto Rio Negro FOIRN • São Gabriel da Cachoeira • 2006 Capítulo 13, pp. 145 - 150 Agentes indígenas de saúde e saúde bucal coletiva André Luiz Martins Odontólogo do DSEI-RN/FOIRN, Especialista em Saúde Pública Ana Maria Campolim Monteiro Odontóloga, Especialista em Saúde Coletiva Élida Lopes Odontóloga, Especialista em Endodontia Gilberto Granato Odontólogo Mítian Frossard Odontóloga Daniel Vasconcelos Odontólogo, Especialista em Saúde Bucal Coletiva Introdução Para Narvai & Frazão, “Saúde Bucal Coletiva é um campo de conhecimentos e práticas [que integra] um conjunto mais amplo identificado como Saúde Coletiva e que, a um só tempo, compreende também o campo da ‘Odontologia’, incorporando-o e redefinindo-o e, por esta razão, necessariamente transcendendo-o”. Para esses autores, a saúde bucal coletiva (SBC) advoga que a saúde bucal das populações “não resulta apenas da prática odontológica, mas de construções sociais operadas de modo consciente pelos homens, em cada situação concreta”. Sendo processo social, cada situação é única, singular, histórica, não passível de replicação ou reprodução mecânica em qualquer outra situação concreta, uma vez que os elementos e dimensões de cada um desses processos apresentam contradições, geram conflitos e são marcados por negociações e pactos que lhes são próprios, específicos. Tal concepção implica (e, num certo sentido, impõe) à SBC uma ruptura epistemológica com a odontologia (de mercado), cujo marco teórico assenta-se nos aspectos bi149 Ações em saúde indígena amazônica ológicos e individuais – nos quais fundamenta sua prática – desconsiderando em sua prática essa determinação de processos sociais complexos. Na necessidade de um processo de construção ampla da saúde bucal coletiva, o agente indígena de saúde é reconhecido como categoria de trabalhador em saúde por conta da implantação dos Distritos Sanitários em 1999, pela Funasa, e ao programa de agentes comunitários de saúde (PACS), pelo Ministério da Saúde. Objetivo O objetivo desse capítulo é evidenciar a importância do agente indígena de saúde, dentro de um contexto atual e amplo de saúde bucal coletiva, na consolidação e multiplicação dos conhecimentos e das práticas odontológicas em regiões indígenas. Metodologia No Alto Rio negro existem cerca de 190 agentes de saúde indígenas distribuídos em 519 comunidades, portanto nem todos os povoados indígenas são assistidos. Dessa forma, alguns AIS realizam setorizações com o objetivo de melhor atender às diferentes comunidades. As atribuições de um agente indígena são semelhantes às de um agente comunitário não indígena: • Mapear área de atuação; • Cadastrar famílias da área, mantendo o mesmo sempre atualizado; • Identificar famílias e indivíduos em risco/atividade de doença; • Realizar visitas domiciliares periódicas; • Colher dados para análise e acompanhamento da situação das famílias; • Desenvolver ações de promoção da saúde; • Contribuir com a mobilização comunitária para melhoria da qualidade de vida; • Incentivar/participar de conselhos locais de saúde. O processo de capacitação deste agente é o marco incial na formação do multiplicador. Nossa atividade capacitadora é uma das mais antigas do estado do Amazonas, e é realizada em processos de concentração, no 150 Agentes indígenas de saúde e saúde bucal coletiva município de São Gabriel da Cachoeira, e de dispersão nas próprias comunidades, com a visita das equipes odontológicas. No módulo de saúde bucal abordamos assuntos como anatomia, doenças bucais, alimentação, métodos de higiene oral, métodos alternativos de higiene, prevenção, tratamento e planejamento das ações de promoção de saúde bucal, partindo-se dos seus padrões culturais e enfocando a realidade existente nas comunidades indígenas. A elaboração de mapas inteligentes – para a fácil identificação dos domicílios -, cadastramento das famílias e identificação dos indivíduos em risco ou atividade de doença são tarefas essenciais do trabalho do agente. É importante lembrar que a atualização desses dados facilita o desenvolvimento do trabalho de toda a equipe. Subsequentemente, a assistência domiciliar pode ser compreendida como um componente do continuum do cuidado à saúde por meio do quais os serviços de saúde são oferecidos ao indivíduo e à sua família em seus locais de residência, com o objetivo de promover, manter ou restaurar a saúde ou maximizar o nível de independência, minimizando os efeitos das incapacidades ou doenças, incluindo-as sem perspectiva terapêutica de cura. A assistência domiciliar permite: a) individualização da assistência a ele prestada e a conseqüente diminuição das iatrogenias assistivas; b) o desenvolvimento das ações cuidativas na privacidade e segurança da casa do paciente indígena; c) possibilidade do paciente/família manterem um maior controle sobre o processo de tomada de decisões relacionadas ao cuidado à saúde; d) desenvolvimento de uma parceria entre as equipes de saúde e o paciente/família no alcance das metas estabelecidas para a assistência; e) maior envolvimento dos pacientes/famílias com o planejamento e a execução dos cuidados necessários desenvolvidos de forma mais individualizada e, assim, com responsabilidade equitativamente distribuídas. Durante o trabalho da equipe de saúde bucal, a importância da atuação do AIS figura na comunicação entre o profissional e a comunidade visitada, traduzindo as palestras para língua nativa, enfatizando as orientações e inserindo-as no contexto da comunidade, atuando ativamente nas atividades de HBS (higiene bucal supervisionada) e ATF(aplicação tópica de flúor), e adquirindo mais conhecimentos ao acompanhar as atividades curativas. 151 Ações em saúde indígena amazônica Na ausência da equipe de saúde bucal em área, todo trabalho de prevenção e promoção de saúde deve ser executado pelo agente: • Realização de HBS e ATF (atividades registradas em fichas de atividades coletivas em Saúde Bucal e posteriormente repassadas ao cirurgiãodentista no seu retorno a comunidade, dando continuidade as orientações sobre saúde bucal); • Visitas domiciliares; • Acompanhamento de pacientes que por ventura estão fazendo uso de medicamentos; • Elaboração de ofinas e atividades educativas e • Trabalho voltado para os escolares – implantação de EBS após a merenda; A importância do agente, centralizada na responsabilidade de acompanhamento de pacientes pós-cirúrgicos, no cuidado com os medicamentos recebidos - principalmente no manejo desses fármacos (flúorgel 1,23%, analgésicos, antiinflamatórios, entre outros) - pode representar, também, uma forma de prestígio nas relações comunitárias. Observa-se uma expectativa social de que o agente indígena de saúde detenha a exclusividade de certos saberes; a “caixa de remédio”, que simboliza a capacidade de curar do agente de saúde, materializa um saber não partilhável com outras pessoas da aldeia. Na cosmologia indígena, o uso dos medicamentos industrializados caracteriza o poder de cura do agente de saúde. Mesmo que sejam capazes de organizar reuniões e atividades de educação em saúde, participar das atividades de promoção de saúde bucal ou dos conselhos de saúde, encaminhar reivindicações e organizar a demanda para o atendimento, nenhuma dessas habilidades é capaz de superar o prestígio conferido pela capacidade de nominar doenças e oferecer remédios para tratá-las. Sem eles, os agentes se declaram impotentes e são reconhecidos como tais nas comunidades. Nessa ótica, a distribuição de materiais de prevenção (escovas/cremes dentais e flúor tópico em gel), a atribuição da responsabilidade em dar uma medicação ao paciente e observar se o mesmo está fazendo uso, assim como fora prescrito pelo odontólogo, se torna imprescindível. Dentre suas atividades, também está envolvida a exigência em organizar e orientar a demanda de atendimentos clínicos para o cirurgião dentista. Num trabalho coletivo, a negociação, o acordo ou “contrato” consciente dos diversos atores envolvidos para buscar a saúde bucal é um trabalho a ser desejado. É uma negociação coletiva inicialmente com o Conselho 152 Agentes indígenas de saúde e saúde bucal coletiva Local de Saúde, para em seguida buscar adesão nos outros espaços sociais dos serviços. Daí a importância de estabelecer a credibilidade no agente de saúde bucal coletiva como comunicador, desenvolvendo novos vínculos, relações entre os trabalhadores da saúde e a população, utilizando o próprio exemplo, com demonstrações objetivas, sobre a própria realidade e refletidas para tomar consciência delas, verificando “pelos próprios olhos” (o olhar de um comunitário é muito sábio neste sentido) a eficácia dos procedimentos ofertados, discutidos e persuadidos. A saúde bucal coletiva pretende “substituir toda forma de ‘tecnicismo’ e de ‘biologismo’ presentes nas formulações específicas da área de odontologia social e preventiva, (...) realizando a reconstrução teórica de modo articulado e orgânico ao pensamento e a ação da Saúde Coletiva, e reforçando o compromisso histórico desta com a qualidade de vida na sociedade e com a defesa da cidadania, tanto da ação predatória do capital quanto da ação autoritária do Estado”. FRAZÃO, P. (1999) Conclusão O AIS é, no processo de saúde indígena, o elo entre as equipes de saúde e as aldeias, porque é a pessoa que está sempre presente nas comunidades. Porém, seu papel dentro da nova organização das comunidades do Alto Rio Regro ainda está em construção. Fatores como a sua rotatividade, escolaridade, processo seletivo e de própria formação ainda necessitam de melhor avaliação e planejamento, visto que, os processos educativos e preventivos de saúde bucal, para terem efeito e resultados consistentes necessitam de AISs bem preparados e estimulados para realizarem suas atividades integradas com as equipes odontológicas e com a população de suas comunidades. É preciso estimular o debate entre os diversos atores envolvidos para a compreensão crítica das necessidades sociais dos indígenas em saúde bucal. Assim, estaremos contribuindo para um crescimento sustentável das ações em saúde coletiva no noroeste amazônico. Referências bibliográficas BRANDÃO, M.C. et al. Saúde Indígena em São Gabriel da Cachoeira (AM) – Uma abordagem antropológica. 1ª ed. Recife, 2002. 153 Ações em saúde indígena amazônica CÓRDON, J. A construção de uma agenda para a saúde bucal coletiva. Cad. Saúde Públ., Rio de Janeiro, 13(3):557-563, Jul/Set, 1997. DE MOURA, F. M. & SANTOS, M. S. S. Saúde Bucal: uma Proposta para Formação de Agentes Multiplicadores – Um Estudo de “Caso” para a Cidade Satélite de Paranoá. Brasília: Universidade de Brasília, Faculdade de Ciências da Saúde/Departamento de Odontologia, Curso de Especialização em Odontologia em Saúde Coletiva. 160 pp. 1994. Equipe Odontológica do Dsei Alto Rio Negro: Propostas e Metas - Convênio 2004 - Odontologia DSEI-FOIRN. São Gabriel da Cachoeira/AM, Jan, 2004. FRAZÃO, P. Epidemiologia da oclusão dentária na infância e os sistemas de saúde [Tese de Doutorado]. São Paulo: Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo, 1999. GARNELO, L. & WRIGHT, R. Doença, cura e serviços de saúde. Representações, práticas e demandas Baníwa. Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, 17(2):273-284, Mar/Abr, 2001. MS/FNS - Departamento de Saúde Indígena: Educação Profissional Básica para o AIS - Módulo Introdutório - Brasília, Set, 1999. MS/FNS - Departamento de Saúde Indígena: Educação Profissional Básica para o AIS - Saúde da Mulher, Criança e Saúde Bucal - Brasília, Set, 2000. NARVAI, P. C., FRAZÃO, P. Epidemiologia, política, e saúde bucal coletiva. In: Antunes JLF, Peres MA. Epidemiologia da saúde bucal. Rio de Janeiro: Guanabara - Koogan; p. 346-62, 2006. Relatórios Odontológicos do DSEI - FOIRN/ARNEG – 2000-2003 154 14 Ações em Saúde Indígena Amazônica: O Modelo do Alto Rio Negro FOIRN • São Gabriel da Cachoeira • 2006 Capítulo 14, pp. 151 - 158 ART em comunidades indígenas André Luiz Martins Odontólogo do DSEI-RN/FOIRN, Especialista em Saúde Pública Mítiam Frossard Colodete Odontóloga Ana Maria Monteiro Odontóloga, Especialista em Saúde Coletiva Daniel Vasconcelos Odontólogo, Especialista em Saúde Bucal Coletiva Guilherme Ciriani Odontólogo Introdução Diversos estudos têm sido realizados sobre o ART, no sentido de avaliar e demonstrar suas utilidades e aplicabilidade no tratamento odontológico, principalmente em países em desenvolvimento, áreas rurais e grupos comunitários menos favorecidos dentro de países desenvolvidos. No Brasil, poucas pesquisas são direcionadas para estudar essa modalidade de tratamento, e particularmente em saúde indígena muito pouco, ou nada, se conhece sobre a aplicabilidade do ART em área. A Técnica Restauradora Atraumática (ART) surgiu na Tanzânia, em meados da década de 80, e vem sendo utilizada mundialmente em saúde coletiva, particularmente em localidades de difícil acesso, que não dispõe de energia elétrica e em populações menos favorecidas. No Brasil, esta técnica tem sido empregada, pela sua simplicidade e eficiência, desde 1995 como meio alternativo no tratamento odontológico. Entretanto, o seu uso em saúde indígena foi padronizado somente no ano 2000, após a implantação dos Distritos Sanitários Especiais Indígenas. Na região do alto rio Negro, no Município de São Gabriel da Cachoeira - AM, as equipes de saúde bucal do DSEI utilizam a técnica restaura155 Ações em saúde indígena amazônica dora atraumática como parte do tratamento clínico individual, em consonância com as Diretrizes preconizadas pelo DESAI-Funasa e de acordo com as recomendações da Organização Mundial de Saúde. A finalidade deste capítulo é descrever a experiência da utilização do Tratamento Restaurador Atraumático em comunidades indígenas e evidenciar, dentro de uma proposta preventiva e reabilitadora, as vantagens e as limitações da utilização dessa técnica. Indicações Acreditamos que o ART é viável em locais de baixo nível sócio-econômico, de alto índice de CPOD (elevada prevalência de cárie dentária) e de grande demanda por tratamento odontológico. É o caso do alto rio Negro, região de grande extensão territorial, inúmeros acidentes geográficos, percursos com características bastante hostis, grande dispersão populacional (23.000 indígenas distribuídos em 519 comunidades), 23 etnias com línguas e culturas diferentes, ausência de energia elétrica e reduzido número de profissionais. Não encaramos o tratamento restaurador atraumático como comportamento provisório de adequação bucal, ao contrário, consideramos parte do nosso programa para controle de cárie dentária, sendo assim encarado como uma medida de Saúde Pública. Além disso, é visto como um tratamento de caráter preventivo, devido à propriedade do Cimento de Ionômero de Vidro (CIV) liberar fluoreto para o meio bucal e recarregar-se em situações de abundância deste íon no meio. Segundo FRENCKEN et al., o ART é indicado para cavidades pequenas ou médias do tipo classe I, II ou III, e contra indicadas em cavidades extensas próximas à polpa dentária. Em nosso trabalho de campo, utilizamos a técnica com o ionômero de vidro em todas as possibilidades de restauração, portanto, de classes I a V, de diferentes profundidades e em ambas dentições. É importante enfatizar que não estamos falhando ao usar a técnica em situações onde ela é contra-indicada. Estariamos sendo omissos ou antiéticos se deixássemos um elemento dental cariado – por exemplo, um incisivo central com cavitação média, classe V – sem tratá-lo. Técnica “Atraumatic Restaurative Treatment” (ART) é uma técnica de tratamento restaurador dentário onde não são utilizados aparelhos de corte 156 ART em comunidades indígenas Foto gentilmente cedida por Gabriel Côrtes rotatórios para o preparo da cavidade dental cariada. O material odontológico utilizado neste tipo de restauração é, normalmente, o cimento de ionômero de vidro autopolimerizável (Ketac molar / Fugi IX / Vitro Molar). Para realização da técnica são utilizados: uma bandeija pequena contendo uma pinça clínica, um explorador, uma espátula de inserção n.1, uma colher de dentina, roletes de algodão, vaselina sólida, potes dappen, soro fisiológico / clorexidina, cimento de inonômero de vidro, placa de vidro e espátula para manipulação. Outros materiais de consumo e instrumentais também, eventualmente, podem ser utilizados, como por exemplo, seringa Centrix. Inicialmente, procede-se a remoção mecânica do tecido cariado com a colher de dentina, em movimentos circulares. É recomendada, em algumas situações, a utilização de recortadores de bordo ou machados para romper a camada de esmalte socavado e permitir o acesso à dentina cariada subjacente. Este fator tem sido uma restrição ao uso da técnica, pois é cansativo e traumatizante para o operador. Posteriormente, realiza-se o isolamento relativo com roletes de algodão, lavagem da cavidade com bolinhas de algodão embebidas em soro fisiológico ou clorexidina e secagem com bolinhas secas. Após, realiza-se o condicionamento da cavidade utilizando uma bolinha de algodão umedecida no líquido do ionômero de vidro e novamente lava-se e seca-se. O isolamento relativo deve ser trocado para que se tenha o máximo possível de controle de umidade. Passa-se para a colocação do material restaurador na cavidade. Em seguida, faz-se a compressão digital com o dedo vaselinado. ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ FIGURA 1 ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ Molares com cavitação (antes) 157 Foto gentilmente cedida por Gabriel Côrtes Ações em saúde indígena amazônica ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ FIGURA 2 ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ Molares pós ART (depois) Aplicabilidade O grande número de estudos sobre o ART confirmou a sua grande aplicabilidade. Por ser uma técnica manual de remoção de tecido dental cariado, não exige infra-estrutura voltada ao atendimento odontológico, equipamentos elétricos e sofisticados sistemas restauradores. Os profissionais de saúde bucal do DSEI-RN utilizam esta técnica com a finalidade de promover saúde bucal através da paralisação da cárie dentária – devido à liberação de flúor pelo material restaurador –, manutenção da função mastigatória e, também, por ser uma técnica conservadora de estrutura dental e viável para locais com o mínimo de infra-estrutura. As equipes realizam viagens às aldeias indígenas (comunidades) com duração média de 30 dias, onde, após os procedimentos coletivos (atividades educativas e prevenção em saúde bucal) e prévia organização da demanda de pacientes, realiza-se o tratamento restaurador atraumático com ionômero de vidro – procurando-se executar o maior número possível de restaurações – e exodontias necessárias. Os dados do Sistema de Informação em Saúde Indígena (SIASI) do DSEI-RN revelam a tendência de incremento da utilização do ART em área indígena (gráfico 2), possivelmente pelo esforço e trabalho sustentável das equipes de saúde bucal. Outro dado revelador é a concentração dessa modalidade de tratamento na população de 5 a 12 anos, idade da dentição mista. Hipoteticamente, supõe-se que a população dessa faixa etária deva ter expe158 ART em comunidades indígenas riência de cárie bem precocemente e que os pais, possivelmente, estejam cientes das condições bucais da criança e procuram levá-la ao atendimento. Antes da criação dos Distritos Sanitários, a odontologia praticada nessa região era puramente extracionista e não condicionada a um programa de saúde bucal. Essa prática mutiladora trouxe conseqüências importantes: (1) grande parte dos indígenas, principalmente os adultos e idosos, tem preferência pela exodontia do elemento dental à sua restauração; (2) muitos têm “medo” de que o dente possa ter sintomatologia dolorosa após a restauração e não haver odontólogo naquele momento na comunidade, portanto opta pela resolução extracionista; (3) o número de indivíduos desdentados parciais ou totais é alto. Entendemos que o âmago da questão não está na realização da técnica em si, até porque é considerada de fácil execução e baixo custo, mas na ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ FIGURA 3 ○ Gráfico 1: Fonte – SIASI – DSEI-RN ○ ○ Gráfico: Fonte – SIASI – DSEI-RN ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ FIGURA 4 ○ 159 Ações em saúde indígena amazônica sensibilização e na confiança do indígena para com o profissional e o tratamento por ele realizado. Pois, se o índígena não entender o que está sendo feito, há grandes chances do trabalho se tornar perdido. E para que o tratamento restaurador atraumático tenha potencial de se tornar viável para populações indígenas, é importante que não seja realizado isoladamente, mas integrado a outras medidas preventivas, como controle de placa e higiene bucal. Por isso, para que haja sustentabilidade são necessários alguns cuidados: bom entendimento sobre o tratamento, boa higienização bucal, cuidados com a alimentação, e o próprio fato do paciente estar feliz com o tratamento aplicado. Em relação ao sucesso da utilização do ART, alguns estudos com duração de até um ano verificaram um grau de sucesso bastante favorável, como os resultados de PITIPHAT et al. (1993), que constataram índices de sucesso de 87% e 56% para restaurações de uma ou mais superfícies, respctivamente. FRENCKEN et al. (1994) também encontraram índices de 79% e 55% para dentição decídua e de 93% e 67% para a permanente, em uma ou mais superfícies, respcetivamente. Porém, estudos de maior duração encontraram índices de sucesso moderado. MALLOW et al. (1998), após 3 anos, encontraram resultados de 79,5% de restaurações presentes, sendo apenas 59% consideradas como bem-sucedidas. No Brasil, poucos são os estudos avaliativos e aplicativos sobre o ART, e particularmente em saúde indígena a literatura é nula. Vantagens • É bem aceita, principalmente por crianças; • Não necessita de equipamentos sofisticados; • A técnica é conservadora e biologicamente aceitável pelos tecidos dentários; • É de fácil execução e pode realizada em qualquer localidade e comunidade; • Em geral não envolve uso de anestesia; • Fácil de reparar a restauração (se necessário); • Não provoca desconforto ao paciente; • Libera flúor e inibe microrganismos residuais. Limitações - Maior desgaste superficial e menor dureza do material restaurador; - É mais adequada para restaurações de uma face (classe I); 160 ART em comunidades indígenas • Inadequada espatulação pode comprometer a durabilidade da restauração; • O tempo médio de uma restauração é de 20 minutos, o que pode resultar em fadiga das mãos; • Não aceitabilidade da técnica por alguns profissionais; • É mais adequada apenas para dentes posteriores. Conclusão Devido à simplicidade da técnica, o baixo custo operacional, à possibilidade de execução da técnica sem uso de energia elétrica e sem equipamentos odontológicos sofisticados, à alta prevalência de cárie e à ampla necessidade de tratamento da população rionegrina, o ART se consolidou como uma alternativa viável e adequada para saúde indígena. Após 6 anos de assistência no alto rio Negro, verificou-se uma boa aceitação desta técnica, devido sua simplicidade e possibilidade de execução em qualquer comunidade indígena, independente do seu tamanho ou das dificuldades de acesso. Percebeu-se também, a partir da utilização do ART, uma melhora significativa nas condições de saúde bucal das populações assistidas, pois, além de manter a função mastigatória, evitam-se mutilações desnecessárias e melhora-se a auto-estima. Estudos precisam ser realizados para um melhor esclarecimento e entendimento sobre a durabilidade e longevidade dessas restaurações, mostrando-se uma linha de pesquisa promissora no campo da saúde pública. Referências bibliográficas DAY, R. A. Como Escrever e Publicar um Artigo Científico. 5ª ed. São Paulo: Santos, 2001. FRENCKEN, J. E. Et al. An atraumatic restorative treatment (ART): evaluation after one year. Int. Dent. J., v.44, n.5, p.460-464, 1995. FRENCKEN, J. E. Manual for Atraumatic Restorative Treatment. Approach to control dental caries. WHO Collaborating Centre for Oral Health Services Research, Groninger, 1997. 161 Ações em saúde indígena amazônica FRENCKEN, J. E.; HOLMGREN, C. J. Tratamento Restaurador Atraumático (ART) para cárie dentária. 1ª ed. São Paulo: Santos, 2001. MALLOW, P. K. et al. Restoration of permanent teth in young rural children in Cambodia using the ART technique and Fuji II glass ionomer cement. Int. J. Paediatr. Dent., v.8, n.1, p.35-40, Mar. 1998. MICKENAUTSCH, S. et al. The impacto f the ART approach on the treatment profile in a Mobile Dental System (MDS) in South África. Int. Dent. J., v.49, p.132-138, 1999. MONTEIRO, A. M. C. Tratamento Restaurador Atraumático (ART): uma opção em Saúde Pública? Piracicaba. Monografia (Especialização-Odontologia em Saúde Coletiva). Faculdade de Odontologia de Piracicaba, Universidade Estadual de Campinas, 2003. OLIVEIRA, L. M. C. et al. Tratamento restaurador atraumático e adequação ao meio bucal. Ver. Brás. Odont., v.55, n.2, p.94-99, Mar/Abr. 1998. PITIPHAT, W. et al. Atraumatic treatment of dental caries in rural Thailand: 6 month evaluation. J. Dent. Res., v.72, p.838, 1993. TOURINO, L. F. P. G. et al. O tratamento restaurador atraumático (ART) e sua aplicabilidade em saúde pública. J. Brás. Clin. Int. Curitiba, v.6, n.31, p.78-83, Jan/Fev. 2002. 162 15 Ações em Saúde Indígena Amazônica: O Modelo do Alto Rio Negro FOIRN • São Gabriel da Cachoeira • 2006 Capítulo 15, pp. 159 - 165 Educação e prevenção em saúde bucal André Luiz Martins Odontólogo do DSEI-RN/FOIRN, Especialista em Saúde Pública Guilherme Ciriani Odontólogo Eduardo Ottoni Odontólogo, Especialista em Endodontia Ana Maria Monteiro Odontóloga, Especialista em Saúde Coletiva Mítian Frossard Odontóloga Gilberto Granato Odontólogo Nacle Mourão Jr. Odontólogo Introdução O contato dos povos do alto rio Negro com os colonizadores e seus hábitos alimentares produziu um efeito devastador sobre a dentição daquela população, gerando elevada prevalência de cárie dental e outras doenças bucais. O modelo de atenção odontológica promovido ao longo das últimas décadas, baseou-se em processos curativos - quase que exclusivamente, extrações dentárias -, e poucas ações educativas foram executadas a partir da pedagogia de condução. Com a implantação do Distrito Sanitário Especial Indígena do Alto Rio Negro – DSEI-RN, em 2000, surgiu a possibilidade de programar ações curativas e principalmente coletivas, objetivando levar a educação em saúde, e ações preventivas, que garantiria acesso a saúde bucal diferenciada aos indígenas da região. A educação em saúde deve ser capaz de criar condições para a construção de um conceito que leve em conta as condições de vida de cada 163 Ações em saúde indígena amazônica indivíduo e que contribua, não só para despertar o sentimento de que é possível modificar hábitos, mas também para conscientizar de que a saúde é um direito de todos. Segundo FREIRE (1996) ensinar não é transferir conhecimento, mas criar as possibilidades para a sua própria produção ou sua construção. O entendimento é co-participado, e acrescenta que o educador deve ser comprometido com seus educandos. Objetivos O objetivo desse capítulo é descrever a importância da educação na prevenção e na promoção em saúde bucal, bem como relatar o trabalho de educação em saúde no contexto da sociedade indígena. As ações de saúde bucal coletiva objetivam a educação e prevenção em área indígena, e são embasadas nos seguintes critérios: • Desenvolver ações preventivas e educativas respeitando os hábitos e costumes indígenas; • Diminuir a prevalência e incidência de cárie, nas regiões assistidas; • Promover uma mudança, de um modelo assistencialista curativo, para um modelo educativo/preventivo; • Melhorar a qualidade de vida da população. O foco: educação em saúde bucal No enfoque tradicional a educação em saúde se ocupa principalmente do comportamento humano e de como modificá-lo para a melhoria e a promoção da saúde individual e comunitária. O seu objetivo é tentar modificar comportamentos considerados prejudiciais à saúde. Este enfoque é comumente encontrado nas ações educativas realizadas em escolas, nas instituições de saúde pública e na prática odontológica em saúde indígena. Um outro enfoque busca aumentar a participação da população no acesso e gestão dos serviços de saúde. Neste enfoque, os esforços se concentram para efetivar as decisões tomadas pela comunidade e suas lideranças, visando promover ações que tenham impacto coletivo. Em todos esses enfoques a educação é vista como um pré-requisito para se alcançar a saúde. Considera-se que através de processos educativos pode-se conseguir a modificação de hábitos e/ou a participação política da 164 Educação e prevenção em saúde bucal população. Tem-se a visão que, se todas as pessoas fossem educadas, os problemas de saúde estariam resolvidos. Entretanto, tem-se observado que, na prática com populações indígenas, não tem sido uma atividade simples de ser realizada. A educação em saúde bucal, tradicionalmente em todo o mundo, tem se baseado na transmissão de informações. É realizada, na maioiria das vezes, dando ênfase aos conteúdos da informação, deixando de lado os receptores destas informações. Baseadas nas pesquisas científicas estas informações se colocam como neutras e verdadeiras e se constituem em mensagens prontas, aplicáveis em todos os lugares do mundo, em todas as faixas etárias e em todas as camadas sociais. Parece que existe uma receita única. DONNEYS (1991) faz uma crítica à maioria dos programas de educação em saúde, afirmando que quase todos eles consideram apenas as causas biológicas da doença, desconsiderando suas características sociais. Nesse sentido, a educação se utiliza somente dos conhecimentos científicos para tentar modificar a consciência e controlar o comportamento das pessoas. Não há uma preocupação com o indivíduo enquanto um ser social, que vive, e que também é o maior interessado no processo educativo. Como fazer educação em saúde bucal? A educação em saúde bucal é uma das responsabilidades da equipe odontológica. Não existe uma forma padronizada (uma receita) para sua realização, embora seja preciso levar em consideração alguns aspectos importantes. Conhecer as histórias de vida, o contexto social em que vivem e o repertório sociocultural são fatores fundamentais para o processo de ensino-aprendizagem. A educação em saúde bucal deve focar o indivíduo, seu corpo, seus desejos, sua inserção na realidade social. Entendido por essa ótica, onde tanto a educação como a saúde são práticas sociais, cabe ao odontólogo uma atuação que extrapole o ato terapêutico, contribuindo efetivamente para melhoria das condições de vida da comunidade. Para atender as necessidades do paciente as ações educativas, preventivas e curativas devem ser consideradas como procedimentos integrados. A saúde bucal está inserida dentro do contexto amplo de saúde, a qual está comprometida com o repertório sociocultural do indivíduo/comunidade. O entendimento desta ótica favorece o odontólogo a responder às 165 Ações em saúde indígena amazônica necessidades de saúde bucal da população. Com vista à superação da odontologia tradicional, passa-se a buscar o modelo de atenção à saúde bucal mais abrangente, integrando aspectos preventivos, curativos, biopsicossociais e ambientais, com ênfase em ações de integração à equipe multidisciplinar. O diálogo entre o educando e o educador possibilita identificar quem são os nossos educandos, quais são seus conhecimentos, crenças e valores com relação à saúde bucal. Através do diálogo pode-se compreender como as pessoas de uma aldeia percebem, explicam e lidam com seus problemas de saúde bucal: como explicam suas causas, seu desenvolvimento, os possíveis efeitos sobre sua saúde geral, sobre as outras pessoas e as formas encontradas para resolvê-los. É preciso considerar que o Cirurgião Dentista não é o dono do saber e da cultura; que o processo educativo necessita de uma interação entre as pessoas. Para que essa interação ocorra, o dentista deve saber ouvir, partir de onde o outro se encontra para juntos irem construindo novos saberes e novas práticas. O trabalho de educação em saúde bucal deve envolver, cada vez mais, todos os interessados no desenvolvimento de ações voltadas para a defesa da saúde. Deve, assim, aproximar cirurgiões-dentistas, técnicos de higiene dental, auxiliares em odontologia, agentes de saúde, pedagogos, professores, antropólogos e demais grupos organizados da comunidade no intuito de desenvolver trabalhos educativos. As ações O método de abordagem e trabalho praticado pelos profissionais do DSEI-RN abrange toda população do distrito, através de palestras educativas para toda a comunidade indígena – utilizando a pedagogia da problematização na língua – palestras educativas voltadas para uma linha de cuidado (atenção à gestante, atenção ao bebê, atenção à criança e ao adolescente), oficinas educacionais centralizadas na temática da saúde e na importância do intercâmbio dos conhecimentos tradicionais indígenas com os ocidentais, capacitação dos agentes de saúde e trabalho com escolares visando a produção de materiais educativos na língua nativa. O treinamento dos agentes indígenas de saúde (AIS) em higiene bucal supervisionada (HBS) e aplicações periódicas de flúor faz parte da cadeia funcional das propostas aplicadas in locus conjuntamente com a conscientização das gestantes e mães sobre a importância de uma boa higienização bucal para a saúde de seus filhos. 166 Educação e prevenção em saúde bucal ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ FIGURA 1 ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ AIS sendo capacitados por odontólogos em EBS. Capacitação no P.B. de Tucumã. ○ ○ ○ ○ ○ ○ FIGURA 2 ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ AIS em oficina de saúde bucal na escola. Foto gentilmente cedida por M. Carolina A capacitação e introdução dos professores dentro do contexto de saúde bucal e a distribuição de pastas e escovas reforçam este cenário dentro dos métodos aplicados. A escola tem sido apontada como local estratégico para realização de programas de educação devido ao grande tempo de permanência das crianças, por estas encontrarem-se em fase de grande receptividade de informações e pela grande influência exercida pelos professores na incorporação de hábitos. O incentivo ao uso de meios alternativos para a higiene bucal, como por exemplo, fio de tucum à fio dental, escova de galho verde na ausência de escova dental convencional e, também, o incentivo ao uso da medicina tradicional e da ingestão dos alimentos tradicionais, são fatores de profunda importância. Considerações finais Através das atividades de educação, promoção e prevenção em saúde bucal conseguimos despertar nas comunidades indígenas (aldeias) a importância de uma boa higienização bucal, conscientização sobre a introdução de hábi167 Foto: Alexandre Carlos da Silva. Ações em saúde indígena amazônica ○ ○ ○ FIGURA 3 ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ Escovação bucal supervisionada. Foto: André L. Martins. tos alimentares nocivos à saúde bucal, noções básicas de prevenção das doenças cárie e periodontal e delegação de poder aos agentes indígenas de saúde com relação a escovação supervisionada e aplicação tópica de flúor, dentro de um cronograma previsto nas diretrizes de saúde bucal para os DSEI. A intensificação das atividades em saúde baseadas na educação e prevenção podem acelerar a transformação de uma atenção assistencialista para um modelo que desvincula a dependência destas comunidades. As práticas de educação em saúde, baseadas exclusivamente no repasse de conhecimentos, deixam de lado questões importantes. É necessário um aprendizado constante com a população sobre os detalhes de seu cotidiano, seu modo de vida, história e costumes para então se perceber como as dimensões do conhecimento técnico podem ser utilizadas. Os trabalhos educativos precisam ser reforçados e encarados como atividades prioritárias dentro das ações odontológicas em comunidades indígenas. ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ FIGURA 4 ○ ○ ○ ○ 168 ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ Educação em saúde: alunos da Escola Indígena Baniwa Curipaco, rio Içana, apresentando a cartilha em saúde bucal produzida na língua local, sob orientação do odontólogo. Educação e prevenção em saúde bucal Referências bibliográficas BORUCHOVIT, E.; et al. Conceito de doença e preservação da saúde da população de professores e escolares de primeiro grau. Rev. Saúde Pública, v. 25, n.6, p.418-425, Dez.1991. Dados dos Pólos do DSEI/FOIRN 2003. DAY, R. A. Como Escrever e Publicar um Artigo Científico. 5ª ed. São Paulo: Santos, 2001. DONNEYS, M. E. C. Educacion para la salud: aspcetos metodologicos. In: Educ. Med Salud, n.2, v.25, 1991. FONSECA, L. C. S. Ensino de ciências e saber popular: In: VALLA, V. V. Saúde e educação. Rio de Janeiro, DP7A Editora, p.87-104, 2000. FREIRE, P. Pedagogia da autonomia – Saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra. p.165, 1996. MARTINS, E. M. Educação em saúde bucal: os desafios de uma prática. Cad. Odont. v.1, n.2, p.30-40, 1998. PINTO, V. G. Saúde Bucal Coletiva, 4ª ed. São Paulo: Santos, 2000. VALENÇA, A. M. G. A Educação em Saúde na formação do Cirurgião-Dentista da necessidade à pratica participativa. 103f. Monografia (Especialização em Saúde Pública) Faculdade de Medicina, Universidade Federal Fluminense, Niterói, Rj, 1992. VASCONCELOS, E. M. Educação popular e atenção à saúde da família. São Paulo: HUCITEC. p.332, 1999. 169 Ações em saúde indígena amazônica 170 16 Ações em Saúde Indígena Amazônica: O Modelo do Alto Rio Negro FOIRN • São Gabriel da Cachoeira • 2006 Capítulo 16, pp. 167 - 172 Odontologia para gestantes e bebês em aldeias indígenas André Luiz Martins Odontólogo do DSEI-RN/FOIRN, Especialista em Saúde Pública Eduardo Ottoni Odontólogo, Especialista em Endodontia Nacle Mourão Jr. Odontólogo Gilberto Granato Odontólogo Introdução As populações da região conhecida como alto rio Negro estão em contato com frentes de colonização desde o século XVII. Durante estes contatos estas populações sofreram um processo de aculturação que influenciou tanto suas tradições quanto seus hábitos alimentares. Estas mudanças na alimentação, através da introdução do açúcar e alimentos industrializados na dieta provocaram elevada prevalência e incidência de cárie desde a infância. Soma-se a isso o fato de que, na contra-mão desse processo, não foram introduzidos os hábitos benéficos de higiene oral. Mediante tal histórico, e até mesmo pela tradição, a odontologia fortaleceu uma preocupação mais voltada ao atendimento de crianças, à partir da erupção dos primeiros dentes decíduos. Na tentativa de reverter este quadro, foi introduzido desde 2000 através do Distrito Sanitário Especial Indígena do Alto Rio Negro - DSEIRN, um trabalho de conscientização com gestantes e mães com bebês de colo desassistidas até então. A conscientização: um processo em construção As ações de saúde bucal coletiva para gestantes e bebês envolvem a conscientização da população sobre a importância do aleitamento materno 171 Ações em saúde indígena amazônica Foto: André L. Martins nos primeiros meses de vida da criança e orientações sobre a dieta. Na impossibilidade ou deficiência do aleitamento materno, os enfermeiros cadastram a criança no programa do leite e entregam mensalmente uma lata de leite em pó. É enfatizado que a utilização do açúcar no preparo do leite não é necessária, ao contrário, é prejudicial à saúde bucal, mesmo antes do irrompimento dos primeiros decíduos. É preciso salientar que a microbiota cariogênica inicia sua formação mesmo antes da erupção dentária e uma dieta rica em carboidratos, em especial o açúcar, pode levar o bebê a se tornar mais susceptível a experiências de cárie dentária logo após a erupção dos primeiros decíduos. A mudança de atitude em relação aos cuidados da dentição decídua e a orientação de que as mães podem procurar assistência odontológica para a criança em qualquer idade são elementos fundamentais do elo da corrente. Motivar os pais e a família em relação à adoção de medidas preventivas, tanto para o bebê quanto para si próprios, também é uma prática importante no sentido da promoção em saúde. As mães de colo são orientadas a realizar a higiene do bebê sempre após a amamentação. São aconselhadas a utilizar uma fralda limpa embebida em água e esfregá-la com cuidado sobre a toda a região gengival. Os pais também são orientados que quando a criança já estiver com dentes decíduos erupcionados a higiene oral deve ser feita com escova dental, e que a responsabilidade da escovação ainda é deles, visto que a ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ FIGURA 1 ○ ○ ○ ○ 172 ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ Mãe Baniwa com criança de colo. Odontologia para gestantes e bebês em aldeias indígenas Foto: André L. Martins criança não é capaz de fazer uma boa escovação e evitar o desperdício de creme dental. Quando os pais acharem por bem devem passar a responsabilidade da escovação para a criança, porém devem ficar atentos e observar se a criança está de fato realizando ação de forma correta. O Programa Nacional de Saúde Bucal para os Povos Indígenas orienta para a não participação de menores de sete anos de idade nas atividades de aplicação tópica de flúor realizada pelos agentes indígenas de saúde. Crianças menores de 7 anos demandam atendimento individual pelo Cirurgião-Dentista e técnicas diferenciadas para aplicação. ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ FIGURA 2 ○ ○ ○ ○ ○ ○ Mãe higienizando a gengiva do bebê Clinicamente, realizações de ART ( técnica restauradora atraumática) podem se fazer necessárias a partir do aparecimento da dentição decídua. Todas as ações realizadas são previamente planejadas e articuladas com os AIS, que são capacitados para serem multiplicadores em potencial, visando levar uma única abordagem educativa e buscando englobar o maior número de gestantes e bebês da região de assistência. No processo das ações de trabalho, após as palestras, um espaço precisa ser destinado exclusivamente para as gestantes e mães no processo de conquista de uma boa saúde bucal dos bebês. 173 Foto: André L. Martins Ações em saúde indígena amazônica ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ FIGURA 2 ○ ○ ○ ○ ○ ○ Pai higienizando os primeiros dentes decíduos. A importância do aleitamento materno e o cuidado de se evitar a introdução do açúcar na dieta de seus filhos, alertando-as sobre os malefícios deste alimento para a saúde bucal são enfatizados. Atenção clínica à gestante Em relação ao atendimento clínico individual procuramos não realizar procedimentos cirúrgicos em área indígena, exceto em situações emergenciais (=dor), em gestantes em qualquer período gestacional. Como as distâncias são grandiosas até os centros de referência, as condições de atendimento e infra-estrutura não são satisfatórias, as dificuldades de locomoção são inúmeras e os recursos para situações de pronto-atendimento médico/enfermagem são limitados, o bom profissional opta em preservar o paciente. É necessário o esclarecimento ao AIS e à gestante que a não realização de um evento cirúrgico é meramente por questões de segurança. Famacoterapia A farmacoterapia deste grupo de pacientes se reveste de grande delicadeza, dadas as características da paciente nestes estados. Durante a gestação a mulher passa por modificações fisiológicas e hormonais importantíssimas e o fato de a Barreira Placentária não ser plenamente efetiva na 174 Odontologia para gestantes e bebês em aldeias indígenas filtração dos fármacos, devemos ter sempre em conta que ao medicarmos a mãe, estamos medicando também o feto. O mesmo se aplica às lactantes, pois sendo o leite uma excreção, nele encontramos traços de fármacos administrados à mulher, que fatalmente serão absorvidos pela criança. Uma ótima opção seria o aleitamento imediatamente antes ou imediatamente após a dosificação da droga. Mas um princípio deve ser obedecido: usar a menor dose efetiva, pelo menor tempo possível, evitar sessões clínicas demoradas e estressantes, orientar a paciente sobre sua condição, não aumentando os medos e preconceitos que acompanham seu atual estado. Anestésico local Lidocaína com vasoconstrictor (Xylocaína, Lidocaína com vaso) Obs. evitar o uso de Prilocaína (Citanest, Biopressin) e Fenilefrina (vasopressor do Novocol) : são tóxicos ao feto e ao recém-nato Analgésicos 1a escolha escolha: Paracetamol (Tylenol, Dôrico 500 mg) 500 mg de 6/6 hs SOS 2a escolha escolha: Dipirona (com restrições) 1 comp. de 6/6 hs 35 gts. de 6/6 hs OBS.: o ácido acetil-salicílico é contra-indicado! Antiinflamatórios 1a escolha escolha: Meios físicos uso de frio, imediatamente após o trauma, por 2 hs.; calor local 24 hs. Após o trauma. 2a escolha escolha: Diclofenaco (não utilizar no último trimestre gestacional) (Cataflan, Voltaren, Diclofen, Biofenac etc., todos de 50 mg.) 50 mg de 8/8 hs 175 Ações em saúde indígena amazônica Antibióticos 1a escolha escolha: Penicilinas 500 mg de 6/6 hs ou 8/8 hs 2a escolha escolha: alergia às penicilinas Eritromicina e Frademicina 250 a 500 mg 6/6 hs. Conclusão O resultado deste trabalho demonstra que o conhecimento sobre saúde bucal das mães e gestantes ainda tem muito a ser aprimorado. Incentivando o resgate de práticas tradicionais, benzimentos, alimentos regionais e a amamentação do bebê, esperamos obter uma melhora do quadro atual. Apesar das dificuldades, observamos o interesse dessas mães em relação às atividades alvo. Com isso almejamos estimular a médio/longo prazo, nesta fatia da população, conhecimentos que possam ser transmitidos às próximas gerações. Referências bibliográficas BRANDÃO, M. C. et al. Saúde Indígena em São Gabriel da Cachoeira (AM): uma abordagem antropológica, 1ª ed. Líber gráfica e editora, 2002. PINTO, V. G. Saúde bucal coletiva, 4ª ed. 2000. YAGILA, J.; NEIDLE, E. Farmacologia e Terrapêutica para Dentistas. Rio de Janeiro, Guanabara Koogan, 4ª ed. 2000. WANNMACHER, L.; FERREIRA, M. B. C. Farmacologia Clínica para Dentistas. Rio de Janeiro. Guanabara Koogan, 2ª ed. 1999. 176 17 Ações em Saúde Indígena Amazônica: O Modelo do Alto Rio Negro FOIRN • São Gabriel da Cachoeira • 2006 Capítulo 16, pp. 173 - 188 A odontologia e o alto rio Negro: Uma nova perspectiva André Luiz Martins Odontólogo do DSEI-RN/FOIRN, Especialista em Saúde Pública Introdução Respirar a pureza da Amazônia e trabalhar ao ar livre e de forma transparente, uma vez que a prática clínica não é realizada a quatro paredes, ao contrário, é explicitada a todos, sem distinção de idade, sem censura, é no mínimo fascinante. Toda a comunidade disposta ao redor da mesa de atendimento, conversando assuntos inimagináveis na língua nativa, crianças ao colo das mães – muitas aos prantos, outras sorrindo -, professores trazendo os alunos para o atendimento, jovens com olhares desconfiados – mas aparentemente tranqüilos -, lideranças e agente indígena de saúde preocupados com a organização dos comunitários para a realização dos atendimentos. A simplicidade dos nativos indígenas ao se submeterem – na maioria das vezes sem sequer falar, gemer ou reclamar - às mãos de um odontólogo, com cultura, hábitos e costumes absolutamente diferentes, confere à odontologia praticada em grande parte da Amazônia, em especial na região do alto rio Negro, detalhes de puridade, humildade e singularidade. Objetivo Esse capítulo pretende, além de debater as experiências realizadas e observadas ao longo da existência do Distrito Sanitário do Alto Rio Negro, propor, para discussão, alguns caminhos que levem à construção, à evolução e à consolidação de uma prática coletiva em saúde bucal nos diversos espaços indígenas. Assim sendo, essa tarefa constitui um grande desafio porque envolve um rearranjo das formas organizacionais dentro de um contexto de co-responsabilidade, isto é, participante e democrática. 177 Ações em saúde indígena amazônica Cárie: A doença mais prevalente no alto rio Negro A cárie dentária é uma doença dos tecidos calcificados dos dentes, que se caracteriza pela desmineralização da porção inorgânica e pela destruição da substância orgânica do dente. É uma patologia de caráter multifatorial. Seu aparecimento depende da interação de três fatores essenciais: o hospedeiro – representado pelos dentes e saliva -, a microbiota bucal e a dieta consumida. Das doenças crônicas que atingem a raça humana é a mais prevalente. Quando ocorre, suas manifestações permanecem por toda a vida, mesmo que a lesão seja tratada. Não existe, praticamente, nenhuma área geográfica no mundo cujos habitantes não apresentem alguma evidência de cárie dentária. A doença atinge pessoas de ambos os sexos em todas as raças, em todos os grupos sócio-econômicos e em todas as faixas etárias, podendo ser perfeitamente considerada uma doença da civilização moderna. Em 1934, Mellanby reviu a literatura sobre a incidência de cárie em raças primitivas e notou que era invariavelmente menos freqüente do que no homem civilizado. Esquimós, que vivem em vilas nativas, afastados do contato com o homem civilizado, apresentam uma baixa incidência de lesões de cárie. Rosenbury e Karshan constataram que entre membros de uma vila isolada 1,2 por cento dos dentes examinados estava cariado, enquanto que uma vila onde vivia um comerciante que negocia alimentos processados, a incidência de dentes cariados era de 18,1 por cento. O mesmo efeito da dieta sobre a cárie dentária foi demonstrado por Mellanby em estudos com nativos no sul da Rodésia. Esses estudos indicam que a civilização moderna e o aumento da incidência de cárie dentária estão em associação constante e que o fator dieta parece ser mais significativo, principalmente porque a incidência de cárie aumenta pelo contato como alimentos industrializados. A dificuldade no diagnóstico de lesões de cárie é um problema diário, principalmente a detecção de lesões de cárie oculta. O termo cárie oculta é usado para descrever a lesão cariosa que atingiu a dentina e é observada através de radiografia interproximal, em que clinicamente o esmalte oclusal está aparentemente sadio ou com mínima desmineralização. Como não dispomos de equipamentos para exame radiográfico, o único método de diagnótico é o exame clínico. Portanto, ele deve ser realizado com o dente limpo, seco e bem iluminado. A remoção do biofilme dentário com profilaxia adequada é fundamental no diagnóstico de cárie oculta. Muitas vezes, as lesões apresentam pontos de desmineralização do esmalte, principalmente ao redor do sistema de fossas e fissuras, e não apresentam cavitações. 178 A odontologia e o alto rio Negro : uma nova perspectiva No trabalho em área indígena, a opção terapêutica mais indicada é restauração do elemento dental com cimento de ionômero de vidro (ART). O perfil epidemiológico do alto rio Negro No alto rio Negro o contato e o relacionamento dos indígenas com a sociedade nacional, nas últimas décadas, provavelmente contribuíram para alterações no quadro de saúde bucal, especialmente no incremento na prevalência de cárie dentária. Esta doença pode estar relacionada à mudança no estilo de vida e hábitos tradicionais. Os alimentos naturais foram substituídos por produtos processados, especialmente carboidratos refinados. Estudos como o de THYLSRUP & FEJERSKOV (1995), demonstra que a dieta exerce um papel central no desenvolvimento da cárie. Um levantamento epidemiológico realizado em 2004, na área de abragência do DSEI-RN, revelou que os índices CPOD e CeO estão bem acima dos preconizados pela OMS (Organização Mundial de Saúde), sinalizando a gravidade das condições bucais encontradas. ○ ○ ○ Fonte: SIASI – 2004 – DSEI-RN ○ TABEL A ○ ○ 1 FAIXA ETÁRIA CPOD E CEO 5 ANOS 7 ,2 9 12 ANOS 5 ,4 5 15 ANOS 7,50 35 a 44 ANOS 15,92 60-90 ANOS 21,80 A evolução da cárie dentária no alto rio Negro pode ser facilmente comprovada segundo o percentual do índice CPO-D (cariados / perdidos / obturados) de dentes cariados aos doze anos de idade (55%) e de dentes perdidos após os sessenta anos de idade (90%). Consequentemente, o número de indivíduos desdentados parciais ou totais é elevado. A mortalidade dentária é um problema de saúde pública na região e deve ser encarado como prioridade dentre as diversas ações de atenção básica ofertadas pelo DSEI. 179 Ações em saúde indígena amazônica ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ FIGURA 1 ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ Gráfico 1: Fonte – SIASI – 2004 – DSEI-RN ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ Gráfico 2: Fonte – SIASI – 2004 – DSEI-RN ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ Gráfico 3: Fonte – SIASI – 2004 – DSEI-RN ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ FIGURA 2 ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ FIGURA 3 180 A odontologia e o alto rio Negro : uma nova perspectiva ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ FIGURA 4 ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ Gráfico 4: Fonte – SIASI – 2004 – DSEI-RN Um estudo realizado com indígenas do Parque Nacional do Xingu demonstrou elevados níveis de cáries nesses povos, em todos os grupos etários. O CPO-D médio para crianças de 11 a 13 anos de idade foi de 5,93 - semelhante ao encontrado no alto rio Negro. Segundo a observação dos autores, há baixa incorporação de serviços odontológicos. A irregularidade dos serviços programados para estas comunidades, assim como alterações em seus padrões alimentares e culturais, reforçam a necessidade urgente de iniciativas de promoção de saúde dirigidas a estes grupos. O ART como modalidade de tratamento É evidente que as novas concepções sobre saúde pública enfocam os aspectos preventivos e educativos como prioritários, uma vez que se os esforços se direcionarem nesse sentido, os resultados, a longo prazo, seriam plenamente satisfatórios. Entretanto, os programas de saúde bucal, principalmente em comunidades indígenas não podem se limitar somente à ações educativas e preventivas, visto que o índice de cárie e a demanda para procedimentos restauradores são altos. O Tratamento Restaurador Atraumático (ART) foi desenvolvido para possibilitar o tratamento odontológico em localidades de baixo nível socioeconômico, principalmente em países menos industrializados, em campos de refugiados, locais onde não há eletricidade ou, alternativamente, em áreas eletrificadas, mas que a situação econômica não permita a aquisição de equipamento e material odontológicos caros, já que a execução é simples. 181 Ações em saúde indígena amazônica A utilização do ART nos DSEIs, particularmente no Distrito Alto Rio Negro, vem se consolidando como uma prática cotidiana em saúde bucal, principalmente porque o alto índice de cárie é uma realidade preocupante, e as populações indígenas dessa região habitam locais de difícil acesso e não dispõem de energia elétrica. Na Amazônia, particularmente no alto rio Negro, a maioria dos povos indígenas (cerca de 23 mil índios) habitam localidades de difícil acesso, alguns são nômades ou semi-nômades, em geral não falam Português, e não dispõem de eletricidade. Frente a esse quadro, associado à alta prevalência de cárie dentária desses povos, o ART foi adotado como alternativa viável. A técnica do ART é uma inovação que necessita de mínima intervenção para o tratamento de lesões de cárie, particularmente em locais onde existe uma equipe altamente treinada e capacitada, não necessitando de equipamentos clínicos elétricos. O ART é um procedimento baseado na remoção de tecido cariado, sem uso de anestesia, utilizando-se apenas instrumentos manuais cortantes, com o ionômero de vidro como material restaurador. A técnica é reconhecida e tem o aval da Organização Mundial de Saúde (OMS), de forma que visa beneficiar populações que não tem acesso à atendimento odontológico, principalmente de países em desenvolvimento ou menos desenvolvidos, ou em áreas carentes de infra-estrutura (FRENCKEN et al. 1997). Até o ano de 2005, o ART se mostrou uma excelente alternativa clínica, entretanto, suas limitações – relativas ao baixo percentual de sucesso dessa modalidade de tratamento para cavidades profundas e de múltiplas faces, a durabilidade da restauração, a contestação de alguns profissionais e até mesmo de comunitários e agentes indígenas de saúde sobre a qualidade do trabalho restaurador, e a fadiga cumulativa das mãos do odontólogo conseqüente da escariação manual – foram alvo de intensas e cuidadosas discussões, principalmente sobre os reais benefícios e o impacto nas condições de saúde bucal propiciados por essa prática e as possibilidades em se introduzir uma nova modalidade de tratamento, sem renunciar a já existente. Esse ano de 2006 marca um tempo histórico para saúde bucal, pois foi a primeira vez em que se atentou para a necessidade de uma reorganização da atenção odontológica em todas as instâncias: capacidade instalada, infra-estrutura e equipamentos, operacionalização, logística e modalidades de tratamento. De modo indubitável, a implementação de materiais restauradores de maior longevidade e durabilidade, de forma gradual, pode ser um aliado ao ART. 182 A odontologia e o alto rio Negro : uma nova perspectiva Reabilitação oral em área indígena A alta incidência de cárie nas populações indígenas do alto rio Negro é uma comprovação que merece atenção, uma vez que essa patologia configura a causa mais freqüente e comum da perda de elementos dentais. Consequentemente, a prevalência de indivíduos desdentados é muito alta. A perda de um ou mais elementos dentais causa sérios transtornos musculares, articulares e oclusais, de formar que o paciente precisa ser reabilitado para que as funções e o equilíbrio do aparelho estomatognático se restabeleçam. É evidente que os aspectos preventivos e educativos são prioritários. A prática preventiva vem sendo construída com o esforço dos profissionais de saúde do DSEI, dos agentes de saúde e, até mesmo, dos professores que atuam ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ FIGURA 5 ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ Gráfico 5: Fonte – SIASI – 2004 – DSEI-RN ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ FIGURA 6 ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ Gráfico 6: Fonte – SIASI – 2004 – DSEI-RN 183 Ações em saúde indígena amazônica nas comunidades indígenas. Entretanto, como a odontologia praticada antes da criação do distrito sanitário era puramente extracionista e somente há 5 anos vem experimentando a prática preventiva, observa-se um edentulismo diretamente proporcional à idade. Certamente, a população indígena adulta e idosa apresenta sérios problemas bucais, principalmente relacionados à ausência de elementos dentais, portanto essa fatia da população necessita urgentemente de um trabalho específico voltado para essa faixa etária. Pensando em como buscar resolutividade a essa questão, em meados de 2005, me deparei com a possibilidade de realizar um projeto de reabilitação oral em área indígena, pois poderia proporcionar, sem dúvida, a solução para uma série de problemas de ordem odontológica, bem como ajudar na estética, na elevação da auto-estima, melhorando, assim, a qualidade e o estilo de vida desses povos. O processo se iniciou na sede da instituição compreendendo organização de materiais e instrumentais necessários para o atendimento na micro-área selecionada. Foi montado um laboratório de prótese no pólo-base, pois é o único local que apresenta gerador de energia. Foram realizados exames clínicos em inúmeros pacientes de diferentes aldeias para um levantamento das necessidades de uso de peças protéticas. Também foi levado em consideração o desejo do paciente em receber a prótese. Dentre os diferentes tipos de tratamento reabilitador, trabalhamos nas confecções de Prótese Total e Prótese Parcial Removível Provisória. A reabilitação oral com Prótese Total se destinou aos pacientes selecionados desdentados totais, ou seja, com ausência total dos elementos dentais em uma arcada ou em ambas. Já a Prótese Parcial Removível Provisória se destinou aos pacientes desdentados parciais. Selecionados e cadastrados os pacientes, o trabalho técnico de moldagem, confecção, instalação da prótese e orientação ao paciente e proservação seguiram os padrões atualmente adotados pela comunidade científica. A experimentação foi bastante satisfatória e gratificante, o que me levou a concluir que a reabilitação oral em área indígena é viável e pode ser introduzida no planejamento das ações de saúde bucal do DSEI Alto Rio Negro, pois resgata a funcionalidade e o equilíbrio dos órgãos bucais, ajuda na estética, auxilia na auto-estima e melhora o estilo e qualidade de vida dessa população. Hoje, essa nova modalidade de tratamento tem merecido especial cuidado, basicamente na melhoria da qualidade dos materiais utilizados, no aperfeiçoamento das técnicas laboratoriais, e também na busca de um crescimento gradual e sustentável da oferta desse serviço. 184 A odontologia e o alto rio Negro : uma nova perspectiva Casos Clínicos: (antes e depois) Fotos: André Luiz Martins Caso 1 – Etnia: Dessana 1 2 3 5 4 Fotos: André Luiz Martins Caso 2 – Etnia: Baniwa 1 2 3 2 3 2 3 Fotos: André Luiz Martins Caso 3 – Etnia: Baniwa 1 Fotos: André Luiz Martins Caso 4 – Etnia: Dow 1 185 Ações em saúde indígena amazônica Uma nova estratégia Foto: André L. Martins. Outro fato observado em minhas incursões em área e analisando os relatórios dos odontólogos no SIASI foi que a demanda indígena na maioria das micro-áreas é semelhante do ponto de vista quantitativo, já que cada região apresenta uma média de aproximadamente 1.000 indivíduos. Dentro da demanda espontânea o que pode variar é o percentual de dentes que necessitam de tratamento, e se esse número for elevado, se configura em uma grande dificuldade para que o profissional possa tratar todos os elementos dentais em única sessão, ou viagem. Portanto, é evidente que o paciente, na maioria das vezes, não é assistido de maneira integral e o plano de tratamento não é finalizado. Cada dentista é responsável por 2 microregiões e, consequentemente, o intervalo para que o profissional retorne ao mesmo pólo é de aproximadamente 4 ou 5 meses. Como a população indígena do alto rio Negro apresenta taxas consideráveis de mobilidade – viagens de passeio para visita de parentes, muitos adolescentes estudam fora de sua aldeia natal – e migração – de comunidade para comunidade, de comunidade para a cidade – possivelmente, encontrar um paciente que fora atendido em viagem anterior e que necessita de atendimento para a conclusão do plano de tratamento é algo incomum. Assim, foi definida a micro-área de Camarão no rio Içana, afluente do rio Negro, para a realização de um trabalho inovador. Uma equipe composta ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ FIGURA 7 ○ ○ ○ 186 ○ ○ ○ Barco Pró-Amazônia A odontologia e o alto rio Negro : uma nova perspectiva Foto: André L. Martins. por três odontólogos, três ACDs, um TPD e três navegadores viajou em um barco, com gerador de energia, onde se instalou um consultório odontológico e uma maleta odontológica portátil acoplada em uma cadeira, também portátil. Toda a demanda espontânea foi atendida de maneira semelhante ao trabalho que sempre fora realizado. Entretanto, se definiu uma população alvo – 6 a 12 anos – para um tratamento diferenciado. Essa população foi cadastrada e obrigatoriamente examinada, seguido de preenchimento completo de ficha clínica. As crianças foram submetidas à exodontias, restaurações de resina composta e amálgama, além de aplicação de vernizes fluoretados, sempre buscando a conclusão do plano de tratamento. Motivado pela necessidade emergencial de mudanças na operacionalização dos serviços, na utilização de materiais restauradores de maior qualidade e de uma clínica literalmente integrada, um planejamento diferenciado fora elaborado em meados de 2006. Provavelmente, se caracterizará como um divisor de águas para a odontologia do DSEI. O sucesso do trabalho pode ser observado nos olhos dos pacientes logo após o tratamento e no clima de entusiasmo que tomava conta das comunidades quando o barco atracava. Do ponto de vista clínico, foi possível realizar restaurações estéticas em dentes anteriores, amálgamas em dentes posteriores com cavidades complexas – dentes provavelmente condenados à exodontia se tivéssemos apenas uma opção restauradora (ART) – resina composta em posteriores e anteriores de todas as classes. ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ FIGURA 8 ○ ○ ○ ○ ○ ○ Atendimento no Consultório odontológico do barco 187 Ações em saúde indígena amazônica Foto: André L. Martins. O mais importante é que o exercício da odontologia em regiões longínquas e desprovidas de infra-estrutura, em populações que o percentual de necessidade de tratamento é elevado, se desenvolve com maior eficiência e eficácia se o trabalho for bem planejado e se a clínica for efetuada com dois ou três odontólogos. ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ FIGURA 9 ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ Atendimento na cadeira e maleta portáteis Foto: André L. Martins. ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ FIGURA 10 ○ 188 Aplicação de verniz fluoretado – cadeira portátil / barco A odontologia e o alto rio Negro : uma nova perspectiva Foto: André L. Martins. Nessa ótica é que conseguimos atender o maior número possível de crianças de 5 a 12 e concluir a primeira fase clínica, isto é, deixar o paciente sem cárie e doença periodontal. Naturalmente, não só a população alvo da viagem recebera tratamento, ao contrário, todas as tarefas anteriormente desenvolvidas aconteceram. ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ FIGURA 11 ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ Cáries proximais em dentes anteriores Foto: André L. Martins. ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ FIGURA 12 ○ Após o tratamento com resina composta 189 Ações em saúde indígena amazônica Considerações finais Em geral, a experiência de cárie dentária nas populações indígenas rionegrinas é precoce, acometendo a dentição decídua e atingindo a permanente de forma potencializada. Apesar de o modelo adotado ser recente – seis anos de atividade – esse período foi fundamental para uma análise inicial da organização do serviço, da oferta, do acesso e da qualidade da assistência. Embora os dados sobre saúde bucal disponíveis na rede do SIASI sejam escassos e limitados e o número de pesquisas em saúde bucal indígena ser praticamente ínfimo para uma avaliação abrangente, pode-se afirmar pormenor que a dinâmica atual de cobertura não é suficiente para atender as necessidades dos indígenas rionegrinos. Há uma urgência em se apontar os erros e acertos, as experiências bem sucedidas e os fracassos, a verdadeira demanda em contraste com a real capacidade de oferta. Nesse sentido, a reorientação do modelo de atenção em saúde bucal deveria partir dos seguintes pressupostos: • Compromisso pela qualidade da atenção básica • Uma rede de atenção básica em área bem articulada com a rede de serviços municipal • Integralidade nas ações de saúde bucal • Uso da epidemiologia subsidiando o planejamento • Incorporar a estratégia de Saúde da Família • Assegurar capacitação a AIS periodicamente • Definição de uma agenda de pesquisa em saúde bucal indígena Para que serviço apresente resultados mais qualificativos é preciso aumentar a resolutividade no pronto atendimento e garantir a inclusão de procedimentos “mais complexos” na Atenção Básica como: (a) pulpotomias; (b) restauração de dentes com cavidades complexas utilizando materiais restauradores definitivos de maior longevidade e durabilidade; (c) fase clínica da instalação de próteses dentárias elementares; (d) tratamento periodontal que não requeira procedimento cirúrgico. Ao mesmo tempo, se faz necessária uma ampliação do acesso, possivelmente trabalhando duas formas de inserção transversal da saúde bucal nos diferentes programas integrais de saúde: por linhas de cuidado (saúde da criança, saúde do adolescente, saúde do adulto e saúde do idoso) e por condição de vida (saúde da mulher, saúde do trabalhador, portadores de necessidades especiais, hipertensos, diabéticos, dentre outras), ambas subsidiadas pela estratégia de saúde da família. 190 A odontologia e o alto rio Negro : uma nova perspectiva Também, é importante fortalecer as atividades de educação e prevenção em saúde bucal bem arquitetado a um multiplicador potencial – AIS – capacitado e atualizado. De maneira global os diversos profissionais que atuam no âmbito da saúde pública, em especial na saúde indígena, precisam contribuir para um rompimento com o atual paradigma assistencial e atentar-se para processos sociais de mudanças das práticas sanitárias. “Só existirá um dia que não poderemos fazer algo pela saúde bucal dos indígenas do alto rio Negro: ontem”. Autor desconhecido Referências bibliográficas CORDON, J. A construção de uma agenda para a saúde bucal coletiva. Cad. Saúde Públ., Rio de Janeiro, 13(3):557-563, Jul-Set. 1997. Dados dos Pólos do DSEI/FOIRN, 2003. FRENCKEN, J.; MAKONI, F. A treatment technique for tooth decay in previded communities. World Health. 1:15-17, 1995 FRENCKEN, J. ; MAKONI, F. A treatment technique for tooth decay in deprived communities. World Heath. 1:15-17, 1994 FRENCKEN, J. E.; PHANTUMVANIT, P.; PILOT, T.; SONGPAINSAN, Y. Manual for the atraumatic restorative treatment approach to control dental caries, 3rd ed. Groningen, the Netherlands: WHO collaborating Center for Oral Services Research, University of Groningen, 1997. FRENCKEN, J. E.; PILOT, T.; SONGPASIAN, Y.; PHANTUMVANIT, P. Atraumatic restorative treatment (ART): rationale, technique and development. Pubic Health Dent. 56: 135-140, 1996. MELLANBY, M. Effect of diet on the resistance of teeth to caries. Proc. R. Soc. Med., 16, pt.3:74, 1923. MENDES, E. V. Distrito Sanitário – O Processo Social de Mudança das Práticas Sanitárias do SUS. São Paulo: Editora Hucitec/Rio de Janeiro: ABRASCO. 1995. PHANTUMVANIT, P. et al. Atraumatic restorative treatment technique – evaluation after one year. J. Dent. Res. v.73, p. 1006, 1994. 191 Ações em saúde indígena amazônica RIBEIRO, C. P. et al. Diagnóstico e tratamento de cárie oculta. J. Bras Odontol Int, Curitiba, v.6, n.35, p.366-370, Set/Out. 2002. RIGONATTO, Deborah Denise Leal; ANTUNES, José Leopoldo Ferreira & FRAZAO, Paulo. Experiência de cárie dentária em índios do Alto Xingu, Brasil. Rev. Inst. Med. trop. S. Paulo, v.43, n. 2, p.93-98, Mar/Abr. 2001. ROSEBURY, T. & KARSHAN, M. Dietary habits of Kuskokwin Eskimos, with varying degrees of dental caries. J. Dent. Res., 16:307, 1937. SHAFER, W. G., et al. Patologia Bucal, 3ª ed., Ed. Interamericana, 1979. SMITH, A. J. E.; CHIMIMBA, P. D.; KALF-SCHOLLE, S.; BOUMA, J. Clinical pilot study on dental filling materials and reparation procedures in developing countries. Community Dent Oral Epidemiol; 18: 309-312, 1990. THYLSLRUP, A. & FEJERSKOV, O. Cariologia Clínica, 2ª ed., Ed. Santos, 1995. WEERHEIJM, K. L. et al. The effect of fluoridation on the occurrence of hidden caries in clinically sound surfaces. Caries Re, Basel, v.31, n.1, p.30-34, Jan/Feb. 1997. 192