Ações em Saúde Indígena Amazônica

Transcrição

Ações em Saúde Indígena Amazônica
AÇÕES EM SAÚDE
INDÍGENA AMAZÔNICA
O modelo do alto rio Negro
Oscar Espellet Soares
Organizador
AÇÕES EM SAÚDE
INDÍGENA AMAZÔNICA
O Modelo do Alto Rio Negro
São Gabriel da Cachoeira - Amazonas
2006
Copyright © 2006 • Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro – FOIRN
Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro – FOIRN
Diretor Executivo
Domingos Sávio Barreto
Coordenação de Saúde Indígena
Hernane Guimarães dos Santos Júnior e Yessica Milagros Mundo Guerrero
Revisão
Eveline Espellet
Projeto Gráfico e Editoração Eletrônica
Áttema Design Editorial • www.attema.com.br
Fotos da Capa
Milton Schmidt de Castro
Fotomontagem
Fábio Sian Martins
Apoio
Fapesp
Ficha Catalográfica
Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro - FOIRN
Avenida Álvaro Maia, nº 79 - Bairro da Fortaleza - CEP 69.750-000.
Telefone: (0.. 97) 3471-2918 • E-mail: [email protected]
Organizador
Oscar Espellet Soares • Médico cirurgião-geral da Federação das Organizações
Indígenas do Rio Negro – FOIRN
Co-autores:
André Luiz Martins • Odontólogo do DSEI-RN/FOIRN, especialista em Saúde Pública
Guilherme de Almeida Ciriani • Odontólogo
Eduardo Assis Ottoni • Odontólogo, especialista em Endodontia
Ana Maria Monteiro • Odontóloga, especialista em Saúde Coletiva
Mítian Frossard • Odontóloga
Gilberto Granato • Odontólogo
Nacle Mourão Jr • Odontólogo
Daniel Vasconcelos • Odontólogo, especialista em Saúde Bucal Coletiva
Sandro Costa • Odontólogo
Élida Lopes da Silva • Odontóloga, especialista em Endodontia
Colaboradores
Norma Helen Medina • Médica Oftalmologista – Diretora do Centro de Oftalmologia Sanitária do Centro de Vigilância epidemiológica da Secretaria de Estado
da Saúde – São Paulo
Dominique Buchillet • Antropóloga da Saúde
Daniel Fernandes da Silva • Herpetólogo
Acácio Siqueira • Médico Pediatra
Fotografias
André Luiz Martins
Milton Schmidt de Castro
Acervo DSEI/FOIRN
Índice
Prólogo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 9
Agradecimentos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 13
Introdução . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 15
Ações médicas
1 • Clínica médica em área indígena . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 19
2 • Cirurgia em área indígena . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 27
3 • Nutrição em área indígena . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 35
4 • Tracoma em área indígena . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 45
5 • Tuberculose em área indígena . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 60
6 • Parasitismo em área indígena . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 69
7 • Doença diarréica aguda em área indígena . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 83
8 • Infecção respiratória aguda em área indígena . . . . . . . . . . . . . . . . . . 93
9 • Ofidismo em área indígena . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 105
Ações odontológicas
10 • Introdução ao atendimento odontológico em área indígena . . .
11 • Promoção de saúde bucal em área indígena . . . . . . . . . . . . . . . .
12 • Atendimento clínico odontológico em área indígena . . . . . . . .
13 • Agentes indígenas de saúde e a saúde bucal coletiva . . . . . . .
14 • ART em comunidades indígenas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
15 • Educação e prevenção em saúde bucal . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
16 • Odontologia para gestantes e bebês em área indígena . . . . .
17 • A Odontologia e o alto rio Negro: uma nova perspectiva . .
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Prólogo
Houve uma semana na Comarca de Cruzeiro do Sul, Alto Juruá, Acre,
na primeira semana do mês último, dos anos 2000, passados seis.
No Acre, li um livro de mais de 3.000 páginas, sem ter que virar uma
folha sequer! Os brasileiros daquele recanto mágico me apresentaram tudo,
se expuseram sem medo, aqueles medos que a civilização do sudeste–sul
cultua e propaga. Lá se comunica com a segurança de que os conhecimentos seguem, perpetuam-se através dos outros, dos filhos, dos que vem, dos
que virão; tem-se a sensação de que os conhecimentos essenciais são bens
comuns e não há o espírito deletério da competição que cresce no cone–
sul influenciada pelo capitalismo do cubo-norte que fomenta a desigualdade, a desilusão e infelicidade.
Quando lá nas terras do Rio Akiry onde tudo soa autêntico, ficou
evidenciado que, progressivamente, durante os últimos tempos, com as
descobertas e desenvolvimento de vacinas, da soroterapia, dos antibióticos, dos métodos diagnósticos, das variadas tecnologias sedutoras [uma
lista seria muito extensa e maçante], houve melhora na qualidade de vida
para os que têm acesso aos bens... Por outro lado, porém, desde o Acre,
clareou o que venho percebendo de há tempos: a qualidade do ser humano decresceu... O ser humano pior
ou
piorou
ou!... Também progressivamente, especialmente a partir dos anos 1980. E para esse mal, para essa enfermidade crônica, não há cura, sequer atadura...
Retornei com a certeza de que índios e seringueiros não vivem o desemprego mental, comum entre brancos, e fiz votos de que não cedam ao
assédio intelectual que deformou os meios acadêmicos. Regressei com a sensação de que os brancos que para lá imigraram estão sendo catequizados
pelos povos da floresta. Durante os poucos dias, não ouvi dizerem nada além
daquilo que fazem. São relações honestas, cruas, onde visão e tato se confundem, olfato e audição são límpidos, nítidos, percebidos e exercitados...
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Ações em saúde indígena amazônica
E lá no Alto do Rio Juruá, vez por vezes imaginei o Alto Rio Negro!
Relembrei o vivido há 30-40 anos atrás, tempos de uma cidade mais
calma, dos paralelepípedos, do urbano mais limpo, do silêncio noturno precoce. Percorri São Paulo dentro e nos contornos dos bairros da Mooca [onde
nasci], Perdizes [Rua Apinagés, onde cresci], Butantan [aonde vim trabalhar].
Na cidade de São Paulo, índios não há, mas o Tupi-Guarani segue inscrito:
Mooca – é o construir, o pouso; Apinagés – uma das várias tribos extintas no
Brasil; Butantan – é a terra firme, dura... Visitei novamente a São Paulo do
avô Augusto Esteves [1891-1966] desenhista, que ilustrou várias obras científicas que, até os anos 1950 escrevia, surpreendam-se, poesia caipira com o
pseudônimo de Mané Coivara...; cidade do avô Oswaldo Sant´Anna [19011976], bancário, que consertava tudo, que, pasmem, esculpia madeira e criava brinquedos...; terra adotiva do meu bisavô Mineiro da Campanha, o cientista Vital Brazil [1865-1950] que no Instituto Butantan descreveu pela primeira vez a especificidade dos sistemas biológicos através dos estudos que
conduziram à obtenção dos soros anti-ofídicos.
Dessa São Paulo, há exatos 80 anos, partiu para a Amazônia o
paulistano Mário de Andrade [1893-1945] intelectual genial que anunciou
Macunaíma, entidade divina para os indígenas do Alto Rio Branco, e que
descreveria sua Viagem Etnográfica pelo país, como... Viagem pelo Amazonas até o Peru, pelo Madeira até a Bolívia, e pelo Marajó até dizer chega.
Como Mário, o filósofo-antropólogo belga Claude Lévi–Strauss quando
professor da Universidade de São Paulo viajou pela Amazônia em fins da
década de 30. Ambos embebedaram-se da floresta tropical, apaixonaramse pelos povos honestos de sinceridade assustadora. Imagino que essas
características foram determinantes de sua vulnerabilidade ante o homem
branco.
Como cientista, algumas vezes me pergunto como meu bisavô agiria
e procuro a pergunta mais adequada para um estudo que se inicia. Minha
aproximação com o Alto Rio Negro deu-se através do Dr. Oscar Soares,
que numa conversa no pólo oposto, em Cruz Alta, Rio Grande do Sul, em
julho de 2005, contagiou-me com sua narrativa entusiasmada e emocionante. Foi esse jovem senhor destemido e cidadão incomum quem me descreveu em detalhes e clareou as idéias que vínhamos tendo no Instituto
Butantan sobre as ações do veneno da Bothrops atrox, a Jararaca do Amazonas. Pouco tempo antes, sabendo dos casos de envenenamento com
essa Jararaca, junto com a Dra. Denise Vilarinho Tambourgi, cientista maior, parceira de estudos e de sentido de vida, havia esboçado o estudo:
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Reatividade Cruzada e Imunogenicidade dos V
enenos de Serpentes
Venenos
Bothr
ops
do
alto
rio
Negr
o,
Extremo
Nor
oeste
da
Região Amazônica
Bothrops
Negro,
Noroeste
Amazônica..
Contrariamente a outras regiões do Brasil, as espécies Bothrops atrox, em
especial, e outras duas, B. brazili e B. taeniata, são responsáveis por 100%
dos acidentes humanos no Alto Rio Negro. Após o encontro com Oscar,
preparamos o Projeto contando com outros pesquisadores do Instituto
Butantan: Maria de Fátima Furtado, Fan Hui Wen, Giuseppe Puorto, Silvia
Travaglia Cardoso, com Daniel S. Fernandes do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro, e o próprio Oscar Espellet Soares. Esse
estudo integra o Sub-Programa Toxinas e Imunidades do Centro de
Toxinologia Aplicada [CAT] da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado
de São Paulo [FAPESP]; iniciou-se com resultados surpreendentes... Resumidamente: os resultados preliminares indicam que o veneno das B. atrox
do Alto Rio Negro possuem toxinas diferentes das B atrox do Maranhão; a
preparação do soro produzido pelo Instituto Butantan deverá ser modificada para atender ao tratamento das vítimas picadas por essas serpentes e o
veneno dessa Jararaca deverá compor o grupo de peçonhas atualmente
utilizadas para obtenção de soro terapêutico anti-Botrópico.
Os envenenamentos causados por serpentes representam um dos
problemas críticos de saúde pública em regiões subdesenvolvidas e, para a
cura, o único meio seguro conhecido é o tratamento com soro anti-ofídico.
Daí a necessidade de seguir os estudos sobre as toxinas de venenos. E há
tantos outros males, causas distintas para os mesmos males, enfermidades
agudas ou crônicas que acompanham as populações mundo afora, e tanto
por se conhecer. Mas vale lembrar que o sentido da sobrevivência de uma
espécie também se aplica ao homem.
Não devem ser subestimadas as capacidades que os povos possuem
de enfrentar dificuldades em todos os níveis, inclusive em relação à saúde.
O verbo ajudar deveria ser banido; substituí-lo por compartilhar parece
razoável; afinal, não somos seres superiores e na minha caminhada não tive
o prazer de conhecer alguém com tais características!
De Cruz Alta, do Alto Rio Negro, do Alto Juruá, donde quer que a vista ou
outro sentido alcance, certamente haverá uma história sendo contada no futuro!
Osvaldo Augusto Sant’Anna
Instituto Butantan – Laboratório de Imunoquímica
Diretor Científico do Centro de Toxinologia Aplicada
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Ações em saúde indígena amazônica
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Agradecimentos
Gostaríamos de agradecer às seguintes referências pelo
incansável apoio e incentivo à realização deste livro:
À Federação das Organizações Indígenas do Alto Rio Negro - FOIRN e
todos os seus funcionários que representam esta ONG de inegável
contribuição à causa indígena como um todo, desde demarcação de
terras, educação, projetos de auto-sustentabilidade, afirmação cultural e saúde, que ao longo dos anos não deixou de cumprir o seu
papel mesmo diante das maiores adversidades; um agradecimento
especial à sua diretoria e secretariado.
Ao Distrito Sanitário Especial Indígena do Alto Rio Negro - DSEI-RN,
com seu espetacular corpo de funcionários apaixonados pelo ofício
de levar a saúde aos povos indígenas aldeados com o devido cuidado
e respeito à sua diferença étnica e sociocultural; entre eles, médicos,
enfermeiros, odontólogos, técnicos de enfermagem, auxiliares de
odontologia, agentes indígenas de saúde, barqueiros, logísticos,
assistentes sociais, administradores, farmacêuticos, auxiliares de
administração e todos os demais que mantém a pedra rolando sem
jamais criar musgo.
Agradecimento em especial ao Professor Doutor Osvaldo Augusto
Sant´anna, por ter garimpado este grupo de doidos apaixonados
por um país melhor e levado adiante o espírito do novo.
À Doutora Norma Helen Medina, oftalmologista e possivelmente a maior
autoridade nacional em Tracoma, responsável por propagar o
conhecimento e capacitação de jovens profissionais da saúde para o
controle e redução dos números desta terrível endemia.
À Doutora Dominique Buchillet, antropóloga, grande nome de destaque
na antropologia da saúde, por sua gigantesca generosidade ao repartir
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conhecimento, através da crítica sincera e construtiva pois, sem ela,
o equívoco e a omissão seriam consumados.
Ao Instituto Socioambiental (ISA), pelo inegável apoio de seu grupo
multidisciplinar de demógrafos, sociólogos, antropólogos e
educadores, por auxiliar-nos na compreensão e aceitação dos valores
distintos.
Ao professor Daniel Fernandes da Silva, Herpetólogo do Museu Nacional
de História Natural, por sua bravura em aceitar o convite de ir para a
densa floresta, vasculhar os paus e coletar as mais variadas serpentes
venenosas para que se melhore a terapia dos acidentes desta natureza.
Aos povos indígenas do alto rio Negro que tiveram paciência em nos
receber e ensinar, tolerar e educar até que pessoas mais simples nos
tornássemos; também a todos os pacientes que curamos e
melhoramos, pelo seu voto de confiança e a todos os pacientes que
infelizmente perdemos, na intransponível barreira da morte, por terem
nos dado suas vidas como lições.
Gostaríamos de agradecer aos pajés e benzedores por tolerarem tamanha
e desrespeitosa invasão.
Às nossas famílias, maridos, esposas, filhos, que compreendem e sofrem
com nossa longa ausência, por extensos períodos, até que retornemos
com mais uma pedra na construção de nossas vidas.
“Demorei a vida inteira para pintar como criança.”
Pablo Ruyz Picasso
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Introdução
O Brasil mudou!
As festividades de 500 anos de Brasil tornaram mister reparar toda
uma história de desconsideração com os povos indígenas brasileiros, porém ao discursar sobre esta tese quase raspamos no idealismo romântico
que colore, mas não move a nação.
Vejamos os fatos por um escopo mais técnico.
A sociedade contemporânea pós industrial gera novos filhos com a
visão e desejo de um crescimento abstrato mais duradouro que a mera
conquista material.
A competição por consumo é atraente, porém, superficial demais;
não alimenta sequer a conversa de uma mesa de bar. Há uma profunda
necessidade de conteúdo dentro de nós mesmos; procuramos uma história
que nos inclua no roteiro não apenas como mais um, mas como aquele que
luta por fazer alguma diferença, remodelando a sociedade que nos engole
com uma volúpia animal.
É fundamental o interesse pelo novo, esta é a mola impulsora das
descobertas e assim o conhecimento se faz; num mundo tomado por informação excessiva, a banalização do cotidiano uniformiza o homem mediano,
nós mesmos, em um moto contínuo de nascer, reproduzir e morrer... precisamos narrar a trajetória, desvelar à si próprio.
À quem interessa é preciso reiniciar, postar-se nu e beber a tudo que
nos cerca.
Um interesse cultural, então, por fim, se anuncia e a cultura dos povos
indígenas é um prato e tanto, uma vez que nos oferece penetrar num mundo
de conceitos e valores distintos dos dogmas vigentes na sociedade ocidental.
Um universo que não utiliza a matemática exata como pedra fundamental no seu dia a dia e procura valores de aproximação mais condizentes
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Ações em saúde indígena amazônica
com a harmonia de seu meio. Na vida indígena os números existem porém
não regem o mundo, como fazemos cada segundo e instante de nosso
cotidiano ocidental, desde os primeiros anos de nossas vidas.
Realmente esta observação é preocupante e nos alerta para revermos nossa comunicação.
Negociamos com povos que se apoiam na mitologia para explicar o
mundo e, assim a utilizam como modelo de ciência, justificando o inexplicável,
dando sentido ao o que de outra forma não se explica.
Como justificar a menstruação, a gestação, a febre, os satélites e os
meteoros que giram sobre suas cabeças? Através da inserção dos mitos,
um modelo explicativo se mostra lógico.
Mas a comunicação de duas esferas distintas de valores pode levar à
ruptura e ao distanciamento.
“Para o mundo indígena, não há choque de culturas, nem conflito
entre a ciência ocidental e a medicina tradicional indígena.
O conflito está dentro da cabeça do branco (nome genérico para todo
aquele proveniente do mundo cristão ocidental) e, principalmente, dos médicos, enfermeiros e odontólogos, mas não está na cabeça dos índios, os quais,
até agora, mostraram que a sua medicina é extremamente dinâmica e criativa
e não estática e fadada a desaparecer ou a morrer frente à alegada superioridade da medicina ocidental.
A medicina indígena é capaz de mudar e absorver coisas estranhas
aos seus valores.
Os indígenas através de seus itinerários terapêuticos se mostram extremamente abertos a experiências e eles usam a medicina ocidental de
modo complementar às suas práticas médicas sem que isso represente para
eles, um conflito ou um confronto.
Os dois tipos de modelos médicos não atuam/agem no mesmo nível.
Não é a medicina ocidental que é capaz de responder à pergunta
fundamental para os indígenas: Porque eu estou doente agora? Para eles, a
medicina ocidental age no nível dos sintomas e não no nível da causa da
doença” (D. Buchillet, comunicação pessoal, dezembro de 2004).
Desta forma, as doenças e curas assumem outra dinâmica que jamais
será a mesma da ocidental e neste modelo repousa então a concepção do
ser, o nascimento, a reprodução e a morte... e todo um conjunto de valores
distintos daqueles do mundo cristão.
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Introdução
Ainda lembro, quando recém-chegado no alto rio Negro, minha preocupação em entender como os indígenas aceitavam a morte, pois ela seria
minha companheira em algumas ocasiões e então com eles aprendi a compreender o desfecho final com muito mais dignidade e aceitação, como
simples conseqüência da vida, sem desespero ou rejeição.
No entanto, fui ensinado a negar esta possibilidade, com drogas e
transplantes, cateteres e silicone, UTI e respiradores.
Não que tenhamos de desistir diante da morte, mas que tenhamos de
perceber mais nossa fragilidade em estarmos vivos... morrer é apenas conseqüência da vida e nosso desespero, assim, será menor.
A questão indígena preenche facilmente nossa demanda de conceber o mundo com menos sofrimento, ofertando um universo cultural que
desafia o “status quo” do século 21.
Com uma maneira inovadora de explorar e entender a vida por um
prisma inesperado, mesmo nos mais refinados cantos da cultura dominante
do ocidente, o mundo ameríndio atrai aqueles que questionam as normas
mestras da cultura cristã... não por simples postura inconseqüente, mas por
urgente necessidade de tornarmo-nos velhos espetaculares, com imensa responsabilidade de repartir, em algum momento, um pedaço da história, com
plena realização social.
E como se estas colocações não bastassem para definir estes loucos
maravilhosos, que mergulham na questão, há ainda a necessidade pessoal
de se exercer uma profissão e ser dignamente remunerado pela mesma, fato
que parece distante numa sociedade em crise, de um país de terceiro mundo, como o Brasil.
Por simples saturação de mercados nos grandes centros populacionais,
que não mais admitem os números crescentes ofertados de novos profissionais de saúde, estes agora se engajam nas frentes de ações de saúde aos
povos indígenas.
No entanto, a questão é um assunto vasto e complexo, requer conhecimento sócio-antropológico e uma base de preparo para se iniciar no
tópico inovador.
Não obstante, torna-se fundamental desenvolver modelos diagnósticos e terapêuticos aplicáveis ao meio em que se exercem as ações de saúde
ocidental ofertadas aos indígenas em seu habitat.
Como diagnosticar e resolver, por exemplo, uma pneumonia, a cárie
dentária, uma pio-miosite, o tracoma ou como tratar a vítima de um aciden17
Ações em saúde indígena amazônica
te ofídico, longe dos recursos laboratoriais e hospitalares, mostrou-se nossa prioridade nestes anos de convívio com os povos do alto rio Negro.
É de suma importância adaptarmos os modelos do “como faço” ao
ambiente indígena amazônico. Cada vez mais, o tema se anuncia como uma
especialidade e, para tal, é preciso literatura disponível, que prepare todo
aquele que chega e, invariavelmente, sofre a incomunicabilidade de dois
mundos tão distintos.
A Universidade não prepara seus jovens profissionais de saúde para
atuar em tão peculiar cenário. Pensou-se, assim, em fazer um livro que
tratasse das ações em saúde indígena, isto é, que narrasse o real cenário de
atuação de equipes de atenção básica primária em odontologia e medicina,
expondo suas dificuldades e estabelecendo soluções em uma realidade tão
distinta do nosso mundo contemporâneo.
Até então, somente as visões técnicas abstratas de gabinetes e teses
acadêmicas, com uma abordagem distante da aplicabilidade, haviam sido
escritas, assinadas e publicadas, tornando-se assim, o único recurso literário disponível para consulta daqueles que se interessam nestas ações.
Para nós, mostrou-se imperativo escrever e publicar nossa experiência com os povos indígenas do alto rio Negro, Amazonas... um recanto do
planeta que abriga 30 mil índios de 3 famílias lingüísticas (Aruak, Tukano
Oriental e Maku) representados em 22 distintas etnias.
O ensinamento foi prolífico e o aprendizado, imenso.
Estamos dando os primeiros passos e esperamos que muitos sintamse estimulados a se engajarem ao momento e sigam escavando a pedra até
que a escultura esteja feita. Nossos filhos se orgulharão disto. Que os futuros profissionais de saúde, apareçam no horizonte com o verdadeiro intento de um Brasil melhor. Nossas equipes estarão lá, nas matas, aguardando
tão nobre reforço.
Enquanto isto...mãos à obra!
Oscar Espellet Soares
Médico- Cirurgião Geral
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Ações em Saúde Indígena Amazônica: O Modelo do Alto Rio Negro
FOIRN • São Gabriel da Cachoeira • 2006
Capítulo 1, pp. 15 - 22
Clínica médica
em área indígena
Oscar Espellet Soares
Médico cirurgião-geral da
Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro – FOIRN
Introdução
Foto: acervo DSEI/FOIRN
O confronto cultural entre o mundo indígena ameríndio e a medicina
do universo ocidental corre o risco de gerar graves rupturas de comunicação e aceitabilidade de propostas de tratamento se não forem respeitadas
premissas básicas fortemente embasadas na antropologia.
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FIGURA
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Atendimento clínico-pediátrico
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Ações em saúde indígena amazônica
A falta de recursos diagnósticos e a grande distância do apoio hospitalar levam forçosamente ao exercício pleno da clínica médica, vindo a
ressurgir o valor de antigas manobras semiológicas, há muito esquecidas
no mundo ocidental (como a simples análise macroscópica da urina, por
exemplo).
A clínica médica em área indígena é resumida como o exercício da
medicina no século 19 com terapêutica do século 21 (graças ao avanço
significativo na indústria farmacêutica contemporânea).
Aspectos antropológicos
A experiência no exercício médico junto aos povos indígenas do alto
rio Negro, nos aponta um confronto gigantesco de semântica e, talvez, o
maior obstáculo na comunicação adequada entre a medicina ocidental e o
mundo indígena que é a valorização de um elemento cotidiano quase imperceptível: a matemática exata!
O cotidiano da vida na floresta gerou culturas milenares de quantificações
aproximadas, onde o elemento numérico exato não alimenta valores práticos;
nunca precisou-se pesar os peixes com medição exata, medir as distâncias,
estabelecer cronogramas, contar as horas, minutos, segundos ou mesmo idades. Muito pelo contrário, a observação da natureza e seu ambiente harmônico estabeleceram conceitos práticos de aproximação como o perto, o longe, o mais ou menos, o pesado, o leve, o pouco e o muito.
A vida no universo indígena nunca foi monetarizada, as trocas nunca envolveram crédito ou débito, ao contrário, a vida sempre foi prática e harmônica com
o seu meio, o qual valorizava apenas a produção de alimentos, o nascer, o reproduzir e o morrer (e a vasta mitologia e todo um universo de valores).
Observa-se que, segundo a epistemiologia, há elementos exatos no
universo indígena, como a contagem dos dedos das mãos e seus múltiplos,
inclusive o ensinamento e o aprendizado do mundo matemático ocidental
são muito proveitosos e de ganho idêntico, senão maior, comparados à
cultura ocidental dominante; no entanto, enfatizamos, não há aplicação
prática cotidiana, não há “valorização” deste modelo!
Por outro lado, em rumo de colisão, o mundo ocidental introduz
seus filhos precocemente na matemática exata; muito cedo estabelece o
contato com números e seus significados; há uma profunda valorização do
tempo, relógios, calendários, somas, subtrações, dinheiro, kilogramas, miligramas etc....
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Clínica médica em área indígena
O modelo renascentista, aprimorado no iluminismo francês, ainda
guia a ciência do século 21, com sua postura dualista.
Hoje, a astrofísica e a cosmologia, o refino da física contemporânea,
percebem as falhas deste modelo de pensamento dominante no mundo
cristão atual.
Como agravante, em contraposição à cultura dos povos indígenas do
rio Negro, a cultura ocidental cristã rejeita profundamente a idéia da morte;
a medicina atual desenvolve transplantes, cria CTI´s, aprimora máquinas
que prometem arrastar o ciclo vital até seu derradeiro e último suspiro,
enquanto que no meio indígena há uma dignidade expressiva no entendimento do ciclo vital e sua aceitação do momento final; o sofrimento da
morte existe, porém com maior resignação e preparo.
Ainda neste contexto, reforçando os contrastes que acompanham
dois mundos tão distintos, alguns elementos de linguagem, de conceitos
excessivamente abstratos, como as palavras “saúde” e “doença” que, nem
sequer, são adequadamente definidas em dicionários consagrados de língua
portuguesa e inglesa, como o Aurélio e o Webster´s, também muito menos
encontram um significado comum no mundo indígena.
Assim, agora, parece esclarecer o grave conflito entre o método ocidental e o indígena.
A medicina ocidental, mesmo não sendo ciência exata, está embasada
em valores excessivamente exatos, como posologias, tempo de evolução
das doenças, medição de sinais vitais; portanto, facilmente o conflito se
estabelecerá caso não atentarmos para métodos alternativos de adequação
das propostas semióticas e terapêuticas.
No mundo indígena, os convidados somos nós e precisamos respeitar as regras da casa, uma vez que esta integração permitirá ganhos futuros
nos resultados da saúde indígena como um todo.
Propedêutica
O primeiro elemento da propedêutica em área indígena é a observação do meio: o asseio geral, o estado nutricional da comunidade como um
todo, a presença de alguma evidência explícita de epidemia, atentar para o
som dos tossidores, observar se há neonatos ou velhos e se estes estão
sendo trazidos ao encontro do visitante.
É importante que a demanda do serviço médico não seja apenas
espontânea, porém, também, induzida.
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Ações em saúde indígena amazônica
Explicitar que o propósito da visita é procurar doenças específicas,
com o cuidado de que no universo de conceitos indígenas, muitas doenças,
em particular naquelas atribuídas à feitiçaria, o exame físico nada detecta
(D. Buchillet, communicação pessoal, dezembro de 2004); portanto, é fundamental dar nome às doenças que se procura, definir precisamente o objetivo de se estar ali.
É importante lembrar que a palavra “saúde” é um conceito abstrato
de difícil definição e de mesma forma a palavra “doença”. Evitam-se estas
generalizações dando, preferentemente, espaço para definições mais precisas como gripe, dor de cabeça, diarréia, febre, ferimentos etc....
Este modelo permite a separação grosseira do “joio do trigo”, e tem
se demonstrado eficiente, principalmente quando a visita se demora e aqueles
que não se anunciaram como enfermos têm a chance de se manifestar, em
momento oportuno.
Saúde indígena e pressa não são um bom dueto... é fundamental a
paciência.
Anamnese
A anamnese deve, sempre que possível, ser feita na língua-mãe com a
participação de um tradutor, preferentemente de elo familiar direto com o cuidado
para não usar “tradutores” de outros povos que conhecem a língua, uma vez que
poderá haver conflitos entre eles que o examinador ignora e conseqüentemente o
doente e sua família poderão sentir-se constrangidos em falar de sua doença.
Estas colocações são válidas principalmente quando o paciente é
mulher adulta que culturalmente, deve reportar a queixa ao seu marido e
este processará a informação ao profissional de saúde.
Outra ressalva importante é o fato de que a língua-mãe tem conceitos e abstrações nem sempre similares aos conceitos ocidentais. Se a informação for colhida exclusivamente em língua portuguesa, apresentará falhas
de definições, enquanto que, na língua-mãe, encontrará apoio nos demais
elementos sociais que auxiliam na tradução.
Reforçamos, mais uma vez, que conceitos exatos de tempo de evolução, intensidades e outras medições não costumam ser atendidos com precisão e frustram o modelo ocidental de anamnese médica, levando este
impasse a ser resolvido quase que exclusivamente no exame físico.
Há uma premissa básica e fundamental que direciona o método de
saúde indígena aplicada: a primeira hipótese diagnóstica é infecto-contagi22
Clínica médica em área indígena
osa, a segunda hipótese diagnóstica também é infecto-contagiosa e assim a
terceira, a quarta, e todas as demais.
As patologias crônico-degenerativas existem, porém não são o carro
chefe da morbidade e da mortalidade indígenas no alto rio Negro.
Este modelo nos permite abordar uma epigastralgia, por exemplo,
como sintoma de duodenite por giardíase ou estrongiloidíase, uma cefaléia
crônica como sintoma de meningite por fungos, uma desnutrição como
sinal de tuberculose ou uma dor muscular intensa como quadro sindrômico
de uma piomiosite tropical.
De mesma forma as queixas de fundo conversivo e psico-somáticas
pouco são reportadas aos profissionais de assistência médica ocidental e,
possivelmente, poderão ser reportadas aos pajés e benzedores uma vez
que muitas doenças indígenas são decorrentes de elementos atribuídas à
feitiçaria; no entanto, a distinção entre doença física e psico-somática não
faz sentido no universo indígena da região.
O modelo acima resumido, apesar de grosseiro, é um método extremamente eficaz, diante das circunstâncias até aqui abordadas.
Exame físico
O exame físico é, talvez, a pedra fundamental de apoio ao profissional de saúde em áreas remotas da floresta.
Todo o agente que executa ações de saúde em populações indígenas isoladas é um semiota... ou, pelo menos, deveria ser e esta postura, infelizmente, está em desuso no mundo ocidental, com tantas facilidades de recursos laboratoriais diagnósticos; portanto, é compreensível que todo o profissional iniciante no mundo médico indígena sinta
um certo desamparo quando apenas sua intuição diagnóstica (o olho
clínico) é seu guia. O exame físico deve ser exemplar e metódico, crâneocaudal, principalmente quando facilitado pelo perfil epidemiológico da
região, que nos indica quais as patologias mais freqüentes e suas respectivas faixas etárias de incidência, apontando assim para o traçado da
curva de Gauss da morbi-mortalidade da população assistida.
Não podemos abordar todo o universo possível de doenças que justificam um sinal ou um sintoma, porém podemos formatar um padrão de
quais patologias mais freqüentes, em determinada região, explicam aquelas
queixas... Se pensarmos num método diferente, mais elegante, cairemos na
inevitável exigência de recursos laboratoriais, não disponíveis.
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Foto: Acervo DSEI/FOIRN
Ações em saúde indígena amazônica
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FIGURA
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Exame físico em área indígena.
A clínica médica ocidental em área indígena, para ser funcional, não
pode ser ortodoxa.
Romper com a ética não está no “fazer” e sim, no “não fazer”. Está
na omissão!
Métodos semiológicos há muito em desuso no mundo ocidental
demonstram profundo valor no mundo indígena, como a manobra de
Mauriceau, na obstetrícia do parto pélvico, até mesmo, manobras de rotação externa de feto transverso, ou, ainda, o sopro tubário apical pulmonar na tuberculose ou o especterolóquio sussurrante nas consolidações
pulmonares; o mesmo vale para a transmissão púbica da percussão patelar
na fratura do colo do fêmur e a punção aspirativa nas miosites
estafilocóccicas superficiais ou mesmo a simples verificação da hipotensão
postural (correlação pulso-TA ortostático e supino) nas perdas volêmicas.
Repousam na clínica e no exame físico muitas respostas para o diagnóstico em recantos isolados do planeta. A observação é elemento crucial
da propedêuta indígena e as soluções de inúmeros impasses diagnósticos
apoiam-se nas coisas simples.
24
Clínica médica em área indígena
Obviamente, quando o modelo se esgota, só resta o encaminhamento do paciente para um centro diagnóstico competente, porém esta
alternativa é a exceção e não devemos esquecer que a referência é o
sistema SUS, há muito tido e sabido como falho e semi-operante, sem
capacidade de resolução da grande massa de excluídos da sociedade
brasileira.
Considerações finais
A medicina ocidental no meio indígena é deselegante aos olhos de
um mundo voltado para a tecnologia de ponta.
O contexto social das populações indígenas do alto rio Negro não permite a aplicação da medicina desenvolvida para ações no mundo ocidental dominante norte-americano ou europeu (grandes guias de referência da competência e elegância), profusamente ensinado e respeitado nos meios acadêmicos
do Brasil.
Precisamos formar novos profissionais que se adaptem à triste realidade da nação, e nesta se incluem os povos indígenas.
Precisamos resgatar a medicina de nossos avós, se esta se mostra
aplicável e resoluta.
O simples uso dos 5 sentidos e uma mente perspicaz, bem informada e culta em princípios de medicina básica primária é o que torna a máxima
“a clínica é soberana” uma realidade.
É fundamental criar e desenvolver modelos de ações possíveis nos
pontos remotos do planeta e talvez esta ponderação tenha aplicação, também, à população brasileira como um todo.
Hoje, talvez, o maior inimigo do exercício médico junto aos povos
indígenas seja a desinformação, o preconceito e a rejeição, por parte de jovens profissionais, de uma medicina mais simples e aplicada às massas de
excluídos.
É fundamental o compromisso social.
É possível mover uma montanha quando se tem muita vontade.
Também é possível escrever um capítulo melhor, na triste história
destes 500 anos que abandonou ao extermínio os povos ameríndios que
aqui reinaram, criaram e construíram... porém, a formula do sucesso não se
importa com esta gente!
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Ações em saúde indígena amazônica
Referências bibliográficas
BARROS, E.; ALBUQUERQUE,G.; PINHEIRO,C.; CZEPIELEWSKI, M.
Exame Clínico. Consulta rápida,1ª ed. Artes Médicas, Porto Alegre, 1999.
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RIBEIRO, D. O. Problema indígena. Doença, fome e desangano. In: RIBEIRO
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ROMEIRO, VIEIRA. Semiologia médica. - Rio de Janeiro: Ed. Científica, 9ª ed., 1954.
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2
Ações em Saúde Indígena Amazônica: O Modelo do Alto Rio Negro
FOIRN • São Gabriel da Cachoeira • 2006
Capítulo 2, pp. 23 - 29
Cirurgia em
área indígena
Oscar Espellet Soares
Médico cirurgião-geral da
Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro – FOIRN
Introdução
Foto: Milton Schimidt de Castro
O procedimento cirúrgico ambulatorial, fora do ambiente hospitalar, demonstra ser viável e seguro se seguidos alguns preceitos básicos da disciplina.
O ambiente indígena, à grande distância de um centro de referência, oferece uma grande demanda reprimida de pacientes candidatos à
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Cirurgia ambulatorial
em área indígena.
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Ações em saúde indígena amazônica
cirurgia ambulatorial que deixam de receber atenção médica adequada
seja por barreiras de comunicação, seja por inoperância do sistema de
saúde pública ofertado pelo sistema SUS.
Não obstante, importantes aspectos antropológicos graduam a questão em um complexo universo de valores que prontamente demanda análise e
estudo para a adequada abordagem da proposta.
A finalidade deste capítulo é demonstrar a metodologia empregada
numa proposta de oferta cirúrgica ambulatorial em população indígena no
alto rio Negro, Amazonas, que demonstra resultados técnicos e sociais de
profundo impacto.
Aspectos antropológicos
As populações indígenas amazônicas, pré-colombianas, não desenvolveram uma ciência cirúrgica expressiva no seu arsenal médico.
Apesar de serem culturas com importantes elementos médicos
xamânicos e fitoterápicos, a agressão do ato operatório e seus rápidos resultados, aparentemente, não encontram espaço nos métodos tradicionais
de cura ou melhora.
Os elementos de proposta de cura tradicionais envolvem, quase que
invariavelmente, elementos metafísicos, uso de ervas e infusões, por via
oral, e emplastros variados aplicados sobre áreas de lesões ou representativas de doença.
É importante salientar que a agressão física ao corpo, provocando dor e sangramento, é vista socialmente como elemento extremamente negativo e condenável, algo preditivo de morte e sofrimento,
sem qualquer valor de cura ou melhora em contraste ao que a cirurgia
se propõe a ser.
Mesmo na obstetrícia, área de profundo interesse e domínio técnico indígena, não evidenciamos abordagem cirúrgica indígena expressiva,
sendo que alguns elementos de vital importância são omitidos nas narrativas orais, como a extricação do feto morto transverso, por exemplo.
Assim parece de fácil conclusão o confronto da proposta cirúrgica
ocidental em populações de formação cultural mais conservadora em sua
medicina milenar.
No entanto a evolução da ciência cirúrgica no mundo ocidental a
torna procedimento seguro e sem dor significativa, mesmo no período pós28
Cirurgia em área indígena
operatório, com a grande vantagem do emprego do pensamento mágico, o
qual é aquele que traduz súbita mudança de qualidade de vida, deixando o
estado de enfermo para a transformação em estado sano, através de uma
ação rápida e de profundo impacto em curto prazo.
A abordagem do tratamento cirúrgico quando realizado em área indígena sob testemunho dos demais circundantes, representa profundo
impacto através do emprego da rápida mudança para um estado de melhora, desmistificando a agressão cirúrgica.
Em síntese, o modelo cirúrgico enfrenta resistências iniciais para sua
aceitação uma vez que é temido; no entanto, após instituído, oferece importantes elementos de confiança, sendo considerado um poderoso componente de cura e/ou melhora sem grande sofrimento instituído .
Se estes elementos não forem considerados com uma oferta clara de
suas vantagens e desvantagens, dificilmente ocorrerá aceitação ou complacência aos cuidados pós-operatórios, fato que, invariavelmente, levará à
ruptura da relação médico-paciente (principalmente, quando o paciente é
referenciado a um centro hospitalar, do sistema SUS, sem preparo antropológico para lidar com a questão).
Metodologia
Nas bases da ciência cirúrgica contemporânea encontramos elementos de definição fundamentais para a justificativa do ato operatório à grande
distância de um centro hospitalar de referência.
Os ferimentos cirúrgicos são qualificados conforme a quantidade de
bactérias por centímetro cúbico de tecido humano na área abordada e isto,
obviamente, dependerá da patologia e sua respectiva área anatômica:
“limpas”- aquelas com menor quantia possível de
• F eridas “limpas”
microorganismos por centímetro cúbico de tecido. Por exemplo: uma
herniorrafia eletiva.
• Feridas “potencialmente contaminadas”
contaminadas”- aquelas em que a população
de microorganismos existe, porém é inexpressiva (até 100.000
bactérias por centímetro cúbico de tecido). Por exemplo: exerese de
um cisto sebáceo eletiva.
• Feridas “contaminadas”
“contaminadas”- aquelas com expressiva população de
microorganismos, acima de 100.000 microorganismos por centímetro
29
Ações em saúde indígena amazônica
cúbico de tecido humano; no entanto, sem traduzir infecção-doença.
Por exemplo: extração dentária eletiva.
• Feridas “infectadas” - aquelas com grande quantia de microorganismos
por centímetro cúbico de tecido, sob condições flogísticas. Por
exemplo: a drenagem de um abcesso.
Os procedimentos cirúrgicos ambulatoriais, fora de ambiente hospitalar, se darão, por preferência, na ordem inversa da acima descrita; primeiro os “infectados” (em regime de urgência) e por último, os “limpos” (em
regime eletivo).
De óbvia conclusão, lembramos que o procedimento cirúrgico
ambulatorial eletivo será aquele que oferece melhores condições de assepsia,
menor aspersão de microorganismos no meio e melhor controle da dor transe pós-operatória sem necessidade de estrutura hospitalar nas proximidades
da área de trabalho; porém, em situações de urgência-emergência todos estes elementos serão considerados em segundo plano elevando ao prioritário
a ação médica cirúrgica imediata, se os benefícios superarem os riscos.
O teatro cirúrgico deve ser toda e qualquer estrutura abrigada do
vento e poeira; a mesa cirúrgica se faz com maca dobrável e recomendamos
o uso de lona plástica limpa, de uso exclusivo, para acobertar o chão (de
extrema valia), idém o uso de telas de proteção contra insetos tipo “mosquiteiro”. O foco cirúrgico deve ser aquele de lanterna frontal, com fonte
de pilhas tradicionais, para cirurgião e auxiliar.
Todo o material cirúrgico deve ser direcionado para o descartável, sob
embalagem de fábrica lacrada, devidamente acondicionado e protegido da umidade (muito intensa em área amazônica) em sacos plásticos. Aquele material
metálico e de algodão de re-uso deve ser submetido à esterilização sob autoclavagem tradicional; para tal sugerimos o uso do método de panela de pressão,
com uma grade interna para separar o material do fundo com água.
O modelo utiliza uma panela de pressão de 10-12 litros, com uma
grade tipo “cuscuzeira” no seu interior, que servirá para apoio do material
cirúrgico devidamente embalado e acondicionado em campos de algodão
tipo “brim” duplo.
Adiciona-se 400-500ml de água limpa e espera-se iniciar a pressão
de vapor que deve ser mantida por, no mínimo, 30 minutos.
Após estabelecido o tempo total de esterilização, destapa-se a panela e deixa-se o material secar espontaneamente, sem qualquer manipulação
do invólucro (para evitar pontes de contaminação com o algodão úmido).
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Foto: M.S. de Castro
Cirurgia em área indígena
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Auto-clave.
Este método é extremamente confiável e eficiente com a desvantagem de reduzir, em muito, a vida útil do material esterilizado, uma vez que
não há controle sobre a temperatura e pressão “excedentes” aos métodos
tradicionais.
Analgesia
O paciente candidato à cirurgia ambulatorial, preferentemente, não
deve apresentar patologia de base importante; a epidemiologia do alto rio
Negro aponta para população aldeada de baixo risco cardio-vascular e elevado risco respiratório; no entanto, a população indígena urbana já apresenta perfil de risco cirúrgico de todo e qualquer paciente sedentário.
A patologia de base mais freqüente ainda é a desnutrição protéicocalórica; fato que infelizmente justifica o retardo da formação de matriz
cicatricial confiável; o que, para tanto, requer o dobro do tempo médio
usual de restrição de tensão na ferida operatória.
A grande maioria dos procedimentos cirúrgicos ambulatoriais se resumem àqueles sob anestesia local com lidocaína à 1-2% (4-5mg/kg, sem
vaso; 7mg/kg, com vaso).
No entanto, o uso de sedação trans-operatória está cada vez mais
seguro com a oferta de drogas novas de mercado.
O midazolam na dose de 0,1-0,3mg/kg IV ou IM é droga segura e
eficiente para procedimentos rápidos (flumazenil 0.2mg IV é seu antagonista).
É fundamental ter oxigênio e drogas de emergência próximos e prontos para uso.
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Ações em saúde indígena amazônica
Para procedimentos maiores sugerimos o uso da cetamina na dose
de 4mg/kg IM ou 1mg/kg IV; no entanto, o efeito alucinógeno é importante
limitante do uso da droga e melhor manuseado com midazolam IV, lento; é
esquema de droga extremamente eficaz para analgesia em procedimentos
ambulatoriais extensos sob risco de intoxicação com largas doses de lidocaína;
no entanto, podem ocorrer discrepâncias de margem de dose segura para
pacientes indígenas.
A melhor analgesia pós-operatória para procedimentos ambulatoriais
em área indígena é o tenoxicam 20mg IV, acompanhado ou não de meperidina
0.5mg/kg IV, seguidos de analgésicos leves e de potencialização dos anteriores, como o paracetamol 1g, 6/6hs, VO, se necessário.
Antibioticoterapia profilática pode ser instituída, se julgada necessária, com cefalexina 1g VO 12/12 horas por 48 horas, iniciada 3 horas antes
do procedimento, com o cuidado de explicitar o motivo desta conduta para
que ocorra adesão posológica.
Considerações finais
Todo e qualquer procedimento cirúrgico ambulatorial limitado em
sua complexidade e rigidamente embasado na disciplina aqui proposta, se
mostra seguro e viável em área indígena; no entanto, requer profissional
qualificado e com larga experiência nos fundamentos cirúrgicos gerais.
O mesmo é válido para os fundamentos da odontologia intervencionista
em área indígena, uma vez tratar-se de disciplina cirúrgica ambulatorial.
A base do sucesso e ganho de laços de confiança com as populações indígenas do alto rio Negro, para este tipo de proposta e resolução,
requer profundo embasamento antropológico para que pequenas concessões de confiança se ampliem e se tornem extensivas a todos os demais necessitados.
Os índices de complicação existem e se demonstram aceitáveis conforme literatura médica especializada; complicações infecciosas incidem em
menos de 3% para as cirurgias “limpas”, menos de 10% para as “potencialmente contaminadas” e menos de 30% para as “contaminadas”, conforme reportam os índices do alto rio Negro, Amazonas.
Ainda afirmamos a máxima dos antigos cirurgiões que ressurgem nas
bases de uma medicina de guerra, nos confins das matas e no esforço dos
românticos que crêem num Brasil melhor:
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Cirurgia em área indígena
“Ferir a ética não está em fazer; porém, em não fazer... em esconder-se na omissão!”
Referências bibliográficas
BARROS, E., ALBUQUERQUE,G., PINHEIRO,C., CZEPIELEWSKI, M. Exame
Clínico. Consulta rápida,1ª ed., Artes Médicas, Porto Alegre, 1999.
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SILVERWOOD-COPE P.L. Cosmologia. Morte e vida nas plantas, monstros,
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WAY, L.W. & DOHERTY, G.M. Current surgical diagnosis and treatment.
11ª ed., Lange Medical Books, EUA, pp. 100-142, 2003.
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Ações em saúde indígena amazônica
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3
Ações em Saúde Indígena Amazônica: O Modelo do Alto Rio Negro
FOIRN • São Gabriel da Cachoeira • 2006
Capítulo 3, pp. 30 - 39
Nutrição em
área indígena
Oscar Espellet Soares
Médico cirurgião-geral da
Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro – FOIRN
Introdução
Toda a fonte alimentar kilo-calórica tem origem viva.
Como explicar a fome, mesmo que em caráter sazonal, em uma região onde abundam seres vivos?!
Segundo dados da FUNASA, a desnutrição esta presente como cofator
da mortalidade infantil em 75% das crianças de 0-5 anos.
Para as diferentes etnias do alto rio Negro, o cenário de oferta de
alimentos não é igual; no entanto predomina uma frágil estrutura de obtenção de recursos nutritivos.
A floresta amazônica abriga a maior biodiversidade do planeta seja
no reino animal, seja no vegetal; no entanto a desnutrição em alguns povos
indígenas do alto rio Negro é fato grosseiro e evidente.
Para explicar isto precisamos nos remeter a um passado não muito distante.
Aspectos antropológicos
No extremo noroeste do Brasil, localiza-se a “Cabeça do Cachorro”,
uma região que abriga aproximadamente 30 mil indígenas de 22 distintas
etnias num território de floresta ainda preservado, no qual o meio ambiente
é muito diversificado e irregular, isto é os recursos são altamente dispersos
e não distribuídos de maneira uniforme na região. Por exemplo, não há
terra firme em toda a região. No entanto, a terra firme é imprescindível
para abrir as plantações de mandioca. As palmeiras, tão importantes na
cultura indígena, na vida ritual e na alimentação dos índios, somente crescem em certos lugares; há muita caatinga onde nada cresce! Além do mais,
35
Ações em saúde indígena amazônica
os índios precisam de espaço para seus deslocamentos, suas mudanças de
sítios (antigamente os povos Tukano e Aruak mudavam as suas malocas de
lugar a cada 10 anos) e de lugares onde abrir as roças para permitir a
regeneração da floresta que, no caso do rio Negro, um ambiente por natureza bastante frágil e estéril, demanda mais de vinte anos. E no caso dos
povos ribeirinhos devido à sedentarização imposta pela organização dos
povoados (no lugar das antigas malocas) e o adensamento populacional em
certos lugares, os indígenas reabrem as suas plantações antes do processo
de regeneração natural da floresta ser completado.
A estruturação do sistema produtivo entre estas várias etnias remonta a tempos seculares com uma grande finalidade primordial: obter
comida e sobreviver!
A vida nas matas impõe um elevado tributo àqueles que nela habitam
e a organização comunitária sempre utilizou técnicas “milenares” para a
obtenção de recursos alimentares e outros (tecnológicos, medicinais).
Todos esses povos são agricultores, em maior ou menor grau, assim
como são pescadores ou caçadores em maior ou menor grau, conforme o
tipo de ecossistema em que vivem. Por exemplo, boa parte dos Desana vive
na beira de igarapés e, por isso, ao menos no passado, caçavam mais do
que pescavam; por sua vez, o grupo Tukano, que mora na beira dos grandes rios é mais pescador do que caçador, o que não quer dizer que ele não
saiba caçar ou que ele nunca caça! Essa “preferência” é também marcada
no mito e constitui o fundamento dos dabucuri (festas de trocas de alimentos e outros bens): por exemplo, os Tukano sempre irão oferecer peixes
para os Desana (e nunca carne de caça) ao passo que os Desana sempre
irão oferecer carne de caça para os Tukano (e nunca peixe). Por fim, cada
um desses povos é considerado como o melhor artesão, isto é, aquele que
sabe melhor fabricar desde certos artefatos como as canoas para os Tuyuka,
os artigos de cestaria para o processamento da mandioca para os Desana,
os bancos para os Tukano etc.
No entanto, produzir estes itens envolve um “know-how” que tem
apenas a transmissão oral do conhecimento para se manter, já que o sistema da escrita não foi desenvolvido.
Porém, ao longo da história, novas personagens se anunciaram com
a colonização das Américas.
A chegada dos missionários católicos trazia um objetivo prioritário,
salvar os ímpios já que uma bula papal do século 16, após muitas discus36
Nutrição em área indígena
sões, concluiu que também o indígena tem alma e que alguém deveria trazer a mensagem da Santa Igreja ao Novo Mundo para salvá-lo da perdição.
O método de impregnação cristã, então utilizado entre os povos
ameríndios, já havia sido testado e aprovado na idade média européia e nas
grandes cruzadas, demonstrando grande eficiência.
Primeiro, ensinou-se o demônio e seus mecanismos de sofrimento,
penúria e castigo.
Depois ensinaram onde se escondia o diabo: na nudez, na dança, na
língua, na poligamia, nas festas, nas malocas comunitárias e nos dabucuri .
Por fim, ensinaram a salvação: Cristo.
O mecanismo de transmissão oral assim foi minado.
O sistema tradicional de troca começou a ser ameaçado e iniciouse então uma era de dependência em relação aos de recursos ocidentais
que se estende e agrava até os dias de hoje, sem sinais de contenção ou
moderação (não esquecer também que a chegada dos brancos nos territórios indígenas sempre é acompanhada por uma redução do território
tradicional dos indios e a conseqüente limitação dos seus territórios de
caça, de pesca, além da introdução de alimentos e técnicas etc.). Por fim,
a redução dos territórios tradicionais e a conseqüente diminuição dos
recursos tradicionais impõe aos indígena uma dependência crescente em
relação aos produtos dos brancos.
A pesca passou, ao longo do tempo, a ser feita com anzóis, linhas de
nylon, redes, malhadeiras; a caça, com pólvora, lanternas; a artesania de
poteria de barro, com finalidade refrigeradora dos alimentos, começou à
ser substituída por outros materiais como plástico, alumínio; as roupas de
material fabril cobriram a nudez e trouxeram doenças; povos anteriormente
altamente moveis passaram à se sedentarizar à força ou por vontade própria em um curto espaço de tempo perdendo, assim, a harmonia sanitária
com o seu meio; as verminoses se instalaram; as epidemias se tornaram
freqüentes... enfim, ao orgulho indígena os missionários tentaram impor a
vergonha e negação de seus valores.
O que se vê no rio Negro é mais um sistema missionário de
denigramento da cultura indígena e de seus valores; isto é, eles passaram
com um buldozer em cima da cultura indigena e ninguém pode escapar
sadio das conseqüências desse processo. Mas não só os missionários fizeram isso, os militares, os colonos, com seus preconceitos em relação aos
indígenas e à sua cultura, e também muito pessoal de saúde quando consi37
Ações em saúde indígena amazônica
dera que os índios não têm a minima noção de higiene ou vive de maneira
promíscua etc. (o que é totalmente errado).
É muito comum a expressão de descontentamento dos indígenas
contemporâneos frente a este quadro, e agora se estabelece um processo
de resgate da cultura ameaçada.
Epidemiologia
Foto: M.S. de Castro
A medição do estado nutricional requer treinamento adequado e
utilização de tabelas para referência do perfil de normalidade e conseqüentes desvios.
A medicina ocidental utiliza parâmetros de normalidade pouco aplicáveis ao universo indígena amazônico.
Os dados antropométricos medidos como índice de massa corporal
(peso dividido pelo quadrado da altura), circunferência braquial, prega triciptal
e prega sub-escapular (medidos com calíper ou adipômetro) são bons
referenciais e sugerem quantificações de reservas protéicas (musculatura) e
de gorduras (pregas); no entanto, sua aplicação requer treinamento, envolve
materiais sensíveis e metodologia estatística para estabelecer referenciais.
As curvas de plotagem de normalidade ainda não são confiáveis e
requerem uma coleta de dados mais extensa e abrangente, ainda não disponível em literatura, porém algumas conclusões já podem se estabelecer,
principalmente, frente àqueles casos de desnutrição moderada e grave, uma
vez que os casos leves podem ser confundidos como limites inferiores da
normalidade, na ausência de um padrão ouro referencial.
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FIGURA
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Desnutrição pronunciada .
Foto: M.S. de Castro
Nutrição em área indígena
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FIGURA
2
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Desnutrição pronunciada.
No que tange às fontes de alimento é característica marcante dos
povos do alto rio Negro terem o perfil de “alimentação de risco”, isto é,
pouco armazenamento de reservas alimentares, uma vez que a conservação de alimentos no clima equatorial úmido é tarefa muito difícil e requer
uma metodologia peculiar, hoje, cada vez menos aplicada.
A dieta indígena básica, nesta região, se resume à derivados variados
da mandioca, caça, pesca, frutas e insetos sazonais.
Progressivamente estão sendo incorporados, na dieta regular, elementos da cultura ocidental industrial como farinha de trigo, sal e açúcar,
arroz, massas, carne de lata, sardinhas de lata, café etc.
A utilização do processo de defumação é um recurso corrente para o
pequeno armazenamento temporário de alimentos de origem animal, porém nem sempre há fartura de caça ou pesca para enfrentar longos períodos sem reposição do pequeno estoque.
A mandioca amarga (Manihot esculenta Cranz), cultivada pelo sistema
da coivara é forte componente da dieta indígena, sendo consumida na forma
de farinha, beiju etc... no entanto, traduz fonte apenas de amido e fibras e
necessita complementação dietética com outras fontes alimentares como proteína animal e vegetal, vitaminas lipo e hidrossolúveis e fontes de gorduras.
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Ações em saúde indígena amazônica
Convém lembrar que algumas etnias não dominam bem a agricultura.
Como exemplo, os Maku, povo de grande deslocamento no alto rio
Negro, sabem plantar e sempre tiveram e têm pequenas roças mas a sua
alta mobilidade impede-os de manter roças grandes e bem cuidadas, sendo
eles mais caçadores-coletores do que agricultores. Neste sentido o erro
etnocidiário dos salesianos foi de tentar transformar grupos de caçadorescoletores altamente movéis em grupos de agricultores sedentários; portanto, agora, dependem do frágil comércio inter-étnico para complementação
dietética. Hoje são estes que estão em pior situação nutricional, uma vez
que os laços de troca estão comprometidos de forma mais intensa com a
cultura ocidental .
Um estudo recente do Instituto Socioambiental – ISA, em uma
amostragem na área do alto rio Tiquié, sub-região do alto rio Negro,
aponta para desnutrição proteico-calórica de caráter crônico nas populações indígenas, decorrente de múltipla infestação parasitária intestinal e baixo aporte nutricional por pouca disponibilidade sazonal
de alimentos.
Do ponto de vista clínico este cenário se expressa por um alto índice
de doenças diarréicas e respiratórias graves, refratárias ao tratamento, com
elevada mortalidade infantil e de idosos uma vez que a reserva imunológica
está diretamente vinculada ao estado nutricional.
Neste contexto repousa também a explicação do alto índice de miositepiomiosite tropical nestas populações, uma vez que é doença estafilocóccica
que se expressa em população de imuno-deprimidos (AIDS, desnutrição,
câncer), já que o tecido muscular é altamente resistente à infecção, sob
condições de normalidade consensual.
Como recurso vigente implantado o tratamento do parasitismo intestinal sem um adequado saneamento do meio, mesmo com tratamentos
de massa programados ao longo do ano (sugerimos Albendazol 400mg
VO, dose única, duas vezes ao ano), é tarefa pouco resolutiva, apesar de
algum impacto transitório e imediato pois reduz significativamente a “carga
parasitária”.
Apenas a remodelação sanitária produz efeitos duradouros, porém
poucas são as ações reais de saneamento do meio ambiente indígena brasileiro (oferta de fonte de água potável para o consumo).
Muito se resume à propostas de projetos para implantação futura, no
entanto, não há seriedade política nestas idéias.
40
Nutrição em área indígena
O desarranjo sócio-ambiental requer esforços multi-disciplinares para
melhoria da qualidade de vida e, desta forma para reverter as condições
propícias para as mais diferentes entidades nosológicas.
Diante deste cenário de difícil resolução é válida a conclusão de que
a pior doença existente em área indígena é a imuno-deficiência nutricional,
daí que neonatos de baixo peso expressam a população de maior risco e
forte possibilidade de não atingirem o segundo ano de vida.
Os métodos assistenciais precisam ser dirigidos para estas prioridades,
uma vez que os desnutridos morrem prematuramente e de causas banais.
Ações paternalisantes de prover alimentos agravam o problema; no entanto, diante de um caso isolado de desnutrição severa indicamos remoção para
um centro diagnóstico para excluir patologia de base (principalmente tuberculose) e indicamos o complemento nutricional o mais rápido possível.
Quando o quadro é extensivo a todos os elementos da população,
como na maioria dos povos caçadores-coletores, sedentarizados à força,
precisamos nos preocupar em desenvolver projetos auto-sustentáveis para
erradicação da fome.
Tarefa extremamente difícil.
Mas isto requer profundo empenho de ações de governo, ainda não
existentes na amazônia brasileira.
Considerações finais
Não há cultura isolada e estática, todas são dinâmicas e interativas.
A realidade sócio-ambiental indígena se traduz em desarranjo dos meios
de auto-sustentação, principalmente no que tange à busca de alimentos.
A única maneira encontrada até o momento para amenizar a pouca
oferta de recursos alimentares é a monetarização do indígena, através de
empregos de baixa renda, aposentadorias e pequenas vendas de artesanato
e produtos extraídos da floresta.
Cabe a ressalva de alguns projetos pilotos de produção extensiva de
alimentos (como a piscicultura, por exemplo), em implantação em algumas
regiões do alto rio Negro em parceria estreita entre a Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro – FOIRN, associações indígenas filhadas
e o Instituto Socioambiental – ISA.
No entanto há dúvidas se realmente são auto-sustentáveis... somente o tempo dirá e todos torcemos para que isto realmente aconteça.
41
Ações em saúde indígena amazônica
Diante desta realidade todos os melhores esforços de assistência à
saúde provavelmente não causarão maior impacto nos índices de morbimortalidade, principalmente em população infantil, uma vez que a patologia de base, a desnutrição, continua sem solução.
Certos povos caçadores-coletores, originalmente com alto grau de
mobilidade espacial, agora agregados e sedentarizados, seja por ações de
missionários católicos, seja por delimitação territorial de áreas demarcadas,
não conseguiram amenizar o impacto da perda cultural para obter os meios
de subsistência na selva. Apresentam altíssimo índice de mortalidade infantil e são populações, sem dúvida alguma, em descenso populacional.
Ações de organizações não governamentais sérias e tecnicamente
preparadas são uma fonte de esperança, pois já enfrentam o desafio de
reverter este quadro ameaçador.
Notamos que, infelizmente, não há um órgão governamental que
fiscalize a ética de atitudes de frentes missionárias cristãs na Amazônia
brasileira.
A penetração em território indígena de catequistas de nacionalidade
externa ainda é grande e preocupante e exerce grave influência política local.
O futuro é incerto.
Para finalizar, saibamos todos que será tarefa extremamente difícil, e
que tange o absurdo explicar para os nossos filhos que em nome de uma
mensagem de amor e solidariedade, na figura de Cristo, extinguiram-se
povos, arrasaram-se culturas e estabeleceram-se o etnocidio e o genocídio...
guiados pela melhor das intenções!
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43
Ações em saúde indígena amazônica
44
4
Ações em Saúde Indígena Amazônica: O Modelo do Alto Rio Negro
FOIRN • São Gabriel da Cachoeira • 2006
Capítulo 4, pp. 41 - 53
Tracoma em
área indígena
Oscar Espellet Soares
Médico cirurgião-geral da
Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro – FOIRN
Colaboração: Norma
Helen Medina
Médica oftalmologista – Diretora do Centro de Oftalmologia Sanitária do
Centro de Vigilância epidemiológica da Secretaria de Estado da Saúde – São Paulo
Introdução
O tracoma é uma conjuntivite crônica provocada pela bactéria
Chlamydia trachomatis, sorotipos A, B e C.
De acordo com a OMS o tracoma é uma importante causa de cegueira nos países emergentes, apresentando a peculiaridade de ser
irreversível, refratária ao transplante de córnea.
O ambiente propício para criação de bolsões endêmicos no planeta é aquele de desarranjo sócio-ambiental e, conseqüentemente, falta
de saneamento do meio.
A atual realidade indígena de alguns povos do alto rio Negro preenche todos os requisitos para a disseminação da doença como já foi provado
e constatado, abrangendo de forma distinta as 3 famílias linguísticas e as
22 etnias filhadas.
Nos povos das famílias lingüísticas Aruak e Tukano Oriental a
prevalência da bactéria, acometendo a conjuntiva, é alta (20%) enquanto
que as formas cegantes (sequelares) são raras.
Já, entre as populações da família Maku, reportam-se taxas de
prevalência acima de 50% de formas inflamatórias (aquelas que traduzem
atividade da bactéria, na conjuntiva) e números acima de 10% para as formas cegantes.
À título de comparação, no Kenya (considerado como região
hiperendêmica), África, as mesmas taxas reportam números em torno de
20% e 5%, respectivamente.
45
Ações em saúde indígena amazônica
Fisiopatologia
A conjuntivite tracomatosa é infecto-contagiosa e seu meio de transmissão se dá por secreção ocular em contato direto ou indireto com o
receptor; daí ser importante lembrar que roupas, lençóis, redes de dormir
e até mesmo moscas e outros insetos podem transportar uma quantidade
suficiente de Clamídias para se estabelecer o contágio.
A simples higiene matinal como lavar a face, e o uso de sabão nas
roupas e fômites e adequado saneamento do meio para diminuir o número de
moscas e outros insetos, já são medidas suficientes para diminuir o contágio
e, até mesmo, estabelecer a cura das formas ativas de doença; no entanto,
com a fome e a miséria crescendo no planeta, estas medidas estão longe de
serem implantadas, especialmente em certas áreas indígenas amazônicas.
As primeiras formas da doença se estabelecem ainda na infância, em
crises agudas de doença ativa com remissões espontâneas e novas agudizações.
A maioria dos casos é pouco sintomática com referência, apenas, à sensação
de corpo estranho ocular, e prurido (sintoma mais freqüente), como uma
conjuntivite leve, acompanhada de secreção muco-purulenta discreta.
Ao longo do tempo, após vários episódios acima reportados, se instalam as cicatrizes conjuntivais e tarsais, que poderão sofrer retração e,
conseqüente deformidade tarsal, com inversão dos bordas das pálpebras
para dentro (entrópio) e os cílios podem assumir posição anômala fazendoos tocar o globo ocular (triquíasis).
Quando ocorre a inversão do bordo palpebral, a pele da pálpebra
superior passa a fazer atrito sobre a córnea, idem os pêlos ciliares que, por
entrópio ou por triquiasis, passam a roçar a córnea a cada abertura e fechamento dos olhos, causando profunda dor e fotofobia.
Com o tempo, pode ocorrer neovascularização na córnea (pannus) e
levando à proliferação de fibroblastos e depósito de colágeno, dando um
aspecto branco-leitoso à transparência corneana, estabelecendo, assim, a
cegueira de dificílima resolução (refratária ao transplante).
Considerações antropológicas
O rápido processo de cristianização e integração da sociedade indígena junto à ocidental favoreceu para que uma situação de desarranjo sócio-ambiental se estabelecesse, ameaçando os métodos de caça, pesca e
46
Tracoma em área indígena
agricultura, tornando-se este impacto mais evidente junto aos povos de
comportamento caçador-coletor da família lingüística Maku; no entanto,
esta realidade não é a mesma das demais etnias que habitam os afluentes do
alto rio Negro junto às quais adaptações ao novo cenário ocorreram, diminuindo as conseqüências deste desarranjo.
Os indígenas não perderam as técnicas de pesca nem de caça e a
falta de peixe ou de caça em certas sub-regiões do rio Negro, por exemplo,
pode ser explicada por várias razões.
No caso da pesca, por exemplo, além do ambiente naturalmente frágil e estéril por se tratar de um ecossistema de águas pretas, a sedentarização
aliada ao aumento demográfico de certas comunidades que fazem com que
as mesmas áreas estejam utilizadas, ou também o uso exagerado de timbó
(veneno de origem vegetal utilizado em métodos de pesca artesanal) etc.
são fatores que favoreceram a diminuição ou escassez de peixes.
Entre os certos sub-grupos da família Maku, hoje sedentários, a situação de desarranjo sócio-ambiental levou ao acúmulo de resíduos humanos
próximos às moradias, favorecendo a grande população de moscas e outros
insetos. Estas populações são as que mais sentem os efeitos do tracoma
devido ao profundo desarranjo social com o meio em curto espaço de tempo, sem adequado conhecimento para a vida comunitária sedentária; daí
que o acúmulo de resíduos e dejetos é mais caótico (este comentário se
estende para o entendimento da fome e suas conseqüências nosológicas).
Nestes grupos o tracoma assume proporções monstruosas, bem piores que os mais negativos índices reportados, ao redor do globo, em
literatura especializada.
Tratando-se de culturas de transmissão “oral”, sem o desenvolvimento da escrita, grande parte do conhecimento para uma organização
social mais harmônica com seu meio, corre o risco de desaparecer, fato que
traduz um prognóstico muito sombrio para resolução de várias endemias.
A perda rápida e progressiva da harmonia social com o meio é o fator
de maior responsabilidade no surgimento de endemias e epidemias em certos grupos indígenas aldeados.
Com o tracoma, não é diferente.
A cristianização imposta ao mundo indígena assume destaque, uma
vez que a nudez foi combatida com a rápida introdução de material fabril,
sem a adequada introdução dos conceitos do manuseio higiênico destes; o
mesmo acontecendo com utensílios domésticos estranhos ao universo indí47
Ações em saúde indígena amazônica
gena, como a rede de dormir de algodão fabril, por exemplo (importante
reservatório de clamídias).
A metodologia missionária de aplicação ao mundo indígena, ainda
hoje praticada, enfatiza a urgente rejeição aos valores autóctones, que representam conhecimento para se viver nas selvas, com menor dependência
do mundo ocidental.
Clínica
O diagnóstico preciso da doença se estabelece, frente aos casos suspeitos, com o exame clínico ocular padronizado pela OMS. Daí se procede,
então, a notificação; salientamos lembrar que este método não é único,
podendo recorrer à confirmação laboratorial, como a imuno-fluorescência
direta; no entanto, a base de exames laboratoriais perdem em sensibilidade
frente ao exame clínico para medir índices de incidência e prevalência .
Em 1987 a OMS adotou um método simples de exame clínico
confiável e de padronização mundial para o diagnóstico da doença
após notificação.
São 5 formas clínicas de apresentação da doença.
Três formas são inspecionadas na pálpebra superior evertida, de ambos
os olhos e duas, com os olhos abertos para inspecionar a linha de implantação ciliar e a transparência da córnea.
Apenas a placa tarsal, propriamente dita, e sua conjuntiva são considerados local de exame de inspeção, na pálpebra superior evertida, para o
diagnóstico clínico do tracoma (Figura1).
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Acervo DSEI/FOIRN
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FIGURA
1
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Desenho esquemático da pálpebra superior, evertida. A área de exame está delimitada na região mais central da conjuntiva tarsal (linha pontilhada).
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Tracoma em área indígena
Padronizaçâo clínica
Foto: M. S. de Castro
• TRACOMA FOLICULAR (TF): com a pálpebra superior evertida, a
presença de 5 ou mais folículos (pontos claros, elevados), medindo 0.5mm
ou mais de diâmetro; traduz doença ativa e ação clamidiana (contagiosa).
• TRACOMA INTENSO (TI): com a pálpebra superior evertida, observase hiperemia intensa com edema conjuntival e perda de visibilidade
de 50% do total dos vasos tarsais profundos ou de sua extensão,
também traduz doença ativa e contagiosa.
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FIGURA
2
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Foliculos tracomatosos
e tracoma intenso.
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• TRACOMA CICATRICIAL (TS): Com a pálpebra superior evertida,
observam-se cicatrizes em forma de rede ou estrelas, como pequenas
linhas brancas irregulares na placa tarsal; traduz doença residual (sequelar).
• TRIQUIASIE TRACOMATOSA (TT): sem everter a pálpebra superior,
procura-se qualquer pêlo ciliar que toque o globo ocular ou sinais de
remoção recente de pêlo ciliar; traduz forte risco de cegueira futura.
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FIGURA
Foto: M. S. de Castro
3
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Triquiasis.
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Ações em saúde indígena amazônica
Foto: M. S. de Castro
• OPACIFICAÇÃO CORNEANA (CO): sem everter a pálpebra superior, procura-se a perda de transparência da córnea, na área
correspondente à pupila; traduz cegueira iminente ou estabelecida.
Quase invariavelmente coexiste com TT.
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FIGURA
4
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Tracoma cegante com
entrópio e opacificação
corneana.
Padronização clínica simplificada do tracoma, segundo a OMS
TABEL A
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1
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TF
5 o u mais fo lículo s de 5 mm
TI
diminuição da visualização de 50% da ex tensão do s vaso s tarsais pro fundo s
TS
cicatrizes traco mato sas
TT
presença de entró pio e/ o u triquiasis
CO
o pacificação da có rnea envo lvendo área pupilar
Do ponto de vista prático, TF e TI representam o tracoma chamado
inflamatório; a clamídia está presente e é contagioso.
TT e CO representam o tracoma chamado cegante, onde não há risco
de contágio e são considerados como casos sequelares de doença antiga.
A linha divisória é o TS, que requer revisões periódicas anuais devido
ao risco de desenvolver TT.
É importante lembrar que um mesmo paciente pode ter a doença em
um olho e noutro não, ou pode ter diferentes formas clínicas coexistindo
num mesmo olho ou em ambos; basta apresentar uma forma clínica qualquer, que o diagnóstico está estabelecido desde que o técnico examinador
tenha sido padronizado para o diagnóstico frente às normas da OMS (re50
Tracoma em área indígena
quisito de difícil obtenção uma vez que o certificado de padronização é
extremamente rigoroso e somente fornecido por membros do MS, mediante curso de padronização do diagnóstico do tracoma).
À partir destes cinco padrões diagnósticos, a doença pode, universalmente ser compreendida e analisada em seus marcadores epidemiológicos,
lembrando que é uma doença infecto-contagiosa e de profundo impacto na
qualidade de vida ao redor do globo.
Tratamento
A OMS preconiza que a maneira mais razoável de enfrentar o tracoma
é através da estratégia SAFE, um acrônimo em língua inglesa, onde cada
letra representa um passo, dispostos em ordem prioritária de implantação,
especificamente “Surgery”, “Antibiotics”, “Face washing” e “Environmental
.Health”; no entanto, ainda há certa dúvida se este padrão estratégico é
aplicável aos povos indígenas amazônicos, fato que somente o tempo dirá.
Cirurgia
A primeira letra (S) representa “surgery” (cirurgia), o que aponta
para o primeiro ato à enfrentar o tracoma é a cirurgia corretiva de todos os
casos que configurem TT, uma vez que traduzem risco de cegueira futura
ou iminente e alívio sintomático para aqueles que já estão cegos.
A cirurgia é proposta, em todo o mundo, fora do ambiente hospitalar, o mais próximo possível do local de habitação para que se aumente a
aceitação e complacência ao tratamento necessário, inclusive com finalidade de redução de custos aos programas de saúde pública.
Existem diferentes técnicas operatórias para a resolução de todo o
caso que configure TT.
Aquela adotada pela OMS, chamada técnica de Ballen, se faz por via
anterior através de uma blefarotomia total para que, então, se reposicione o
bordo palpebral, por imbricamento da placa tarsal fraturada. Corre o risco
de sangramento profuso, uma vez que toda a pálpebra foi partida, inclusive
a sua musculatura (ricamente vascularisada).
A técnica empregada no único e pioneiro programa cirúrgico da estratégia SAFE em área indígena brasileira, se faz por via posterior, transconjuntival, chamada técnica de Halassa e Jarundi, sem manipular a musculatura, com bons resultados comparáveis aos da literatura (resolutividade
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Ações em saúde indígena amazônica
Foto: M. S. de Castro
de 70% e falha de 30%), no entanto, ligeiramente inferiores ao resultados
da técnica de Ballen (OMS).
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FIGURA
5
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Cirurgia em área indígena
O bordo palpebral também é reposicionado por fratura tarsal e
imbricamento dos folhetos, com pontos de ancoragem.
Independentemente de técnica empregada os procedimentos são feitos
sob anestesia local e na comunidade indígena.
Tradicionalmente em cirurgia, os ferimentos operatórios podem ser
considerados limpos, potencialmente contaminados, contaminados ou
infectados, dependendo da quantia de bactérias por grama cúbica de tecido humano (isto, obviamente, depende da patologia e do local anatômico
onde é feito o ato operatório).
As cirurgias corretivas do tracoma são consideradas ferimentos contaminados, daí ser compreensível e dispensável o ambiente hospitalar .
São procedimentos viáveis e seguros, aceitos mundialmente e amparados por normas da OMS; no entanto, no Brasil, ainda existem resistências dentro dos programas de saúde pública e estes procedimentos apenas há
pouco tempo começaram a ser feitos em área indígena.
Antibioticoterapia
Dentro da estratégia SAFE, a letra A representa “antibiotics”,
uso de antibióticos, o que traduz combate à clamídia nas formas inflamatórias da doença (TF e TI).
52
Tracoma em área indígena
A opção antibiótica vai desde a pomada oftálmica de tetraciclina, 2 vezes
ao dia, por 6 semanas contínuas ou eritromicina 500mg, 6/6h, por 3 semanas, ou
sulfa, dois tabletes ao dia, por 3 semanas ou doxiciclina 100mg/dia, 12/12 horas,
por 3 semanas, para os maiores de 10 anos de idade; no entanto, estas propostas
representam tratamentos de baixa adesão posológica e, portanto, baixa efetividade.
O tratamento hoje preferencial, é feito com dose “única¨ de azitromicina
20mg/kg, VO, até o máximo de 1000mg por dose, o que representa um
tratamento seguro e altamente eficaz além de alta taxa de adesão.
No alto rio Negro, Amazonas, o projeto pioneiro de adoção do tratamento
em massa com azitromicina apontou uma redução de 40% das formas ativas após
um ciclo da droga e uma redução de 20% após 2º ciclo da droga um ano após o
primeiro, totalizando uma redução final de 52,8%% das formas ativas iniciais.
Gestantes não entram neste esquema sendo, então indicado o tratamento tópico com pomada de tetraciclina.
De acordo com as normas da OMS, optamos por dose única de azitromicina
extensiva à todas as pessoas da comunidade quando os índices gerais de prevalência
de tracoma inflamatório excedem 10%, com reforço de nova dose 1 vez ao ano,
por 3 anos consecutivos, até ocorrerem reduções significativas das taxas, quando,
então, se estabelece o tratamento individual, dos futuros novos casos.
Higiene
A próxima letra do acróstico é F (face washing), e traduz o hábito do
freqüente uso da água limpa, seja na higiene pessoal ou de fômites em geral.
Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS) é extremamente
difícil resolver este item uma vez que o hábito do uso da água limpa é uma
barreira de difícil transposição mesmo com intensos programas de distribuição gratuita de sabão; no entanto, é possível serem implantados modelos
educativos, para que se possa mudar este cenário e para tal é fundamental
estabelecer nova metodologia adequada, partindo dos bancos de escolas.
Saúde e educação são indissociáveis.
Meio ambiente
O último item da estratégia é a letra E (Environmental Health), que
traduz melhora do meio ambiente com oferta de água potável e adequado
destino dos dejetos humanos e lixo.
53
Ações em saúde indígena amazônica
Este referencial somente será alterado se reais políticas de saúde
pública poderem ser viabilizadas para grandes massas de excluídos sociais;
convém lembrar que o ministério da saúde disponibiliza recursos para saneamento básico desde que apresentados projetos viáveis e cabíveis por
parte dos governos municipais em todo o território nacional.
A região norte do Brasil apresenta acentuada imaturidade política
para implantação de ações de saneamento.
Acredita-se que esta tarefa deverá ser cumprida pelo terceiro setor
representado por ONG´s sérias e atuantes na região.
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Estratégia SAFE
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TABEL A
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2
ES TRATÉGIA
CONDUTA
S-surgery
o perar to do o caso Tt
A- antibio tics
tratar co m antibió tico s to do o caso que co nfigure Tf e/ o u Ti
(co nsiderar tratamento individual, familiar o u em massa)
F-face washing
promover a higiene
E-enviro nmental
health
promover a melhoria das condições sócio-ambientais
Enfim, os únicos itens que estão ao alcance de ações de curto prazo,
são a cirurgia e a antibioticoterapia. Os demais requerem um projeto sério
de saúde pública de médio à longo prazo e sólidos planos de governo.
A estratégia SAFE há muito é aplicada ao redor do globo especialmente em regiões de grande fome e miséria como a África e Ásia e parece
ser a melhor metodologia até então, uma vez que, repito, a cegueira decorrente do tracoma não tem tratamento na medicina ocidental contemporânea; no entanto, a realidade sócio-antropológica de alguns povos indígenas
do alto rio Negro apresenta peculiaridades únicas que merecem atenção
diferenciada e melhores estudos de impacto, para que, então, este perfil de
abordagem se mostre realmente funcional.
Considerações finais
O tracoma é uma doença que traduz desarranjo sócio-ambiental e
coloca a qualidade de vida abaixo de quaisquer níveis de aceitabilidade; no
54
Tracoma em área indígena
entanto, o Brasil considera esta patologia pouco expressiva nas populações
pobres do país.
Tamanha é a desconsideração com esta realidade que esta doença
não mais é ensinada nas faculdades de medicina e enfermagem e, nem
sequer, nas residências médicas de oftalmologia, no Brasil.
Os países vizinhos ao Brasil agem de igual forma, negando o cenário
de desarranjo sócio-ambiental e suas doenças correlatas.
As atitudes de profissionais sérios e qualificados junto à saúde indígena dos povos amazônicos trazem à tona o pioneirismo de ações até então negligenciadas, nunca antes realizadas no meio indígena brasileiro e
que só agora, com muitos anos de atraso, começam a ser implantadas.
Inúmeras vezes representantes do mal gerenciamento da saúde pública no Brasil tentaram ofuscar ou denegrir estas ações, porém o país está
mudando para melhor e nós, profissionais da saúde indígena, acreditamos
fazer a nossa parte com qualidade e dedicação.
Frente a este cenário de horror e descaso, só podemos citar o ácido
comentário do magnífico Sir Winston Churchill :
“Você pode enganar algumas pessoas o tempo todo, ou enganar
todos por algum tempo, porém não pode, jamais, enganar a todo mundo
por todos os instantes”.
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57
Ações em saúde indígena amazônica
58
5
Ações em Saúde Indígena Amazônica: O Modelo do Alto Rio Negro
FOIRN • São Gabriel da Cachoeira • 2006
Capítulo 5, pp. 55 - 64
Tuberculose
em área indígena
Oscar Espellet Soares
Médico cirurgião-geral da
Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro – FOIRN
Introdução
A infecção pelo bacilo de Koch é característica marcante de populações desnutridas e sob desarranjo sócio-ambiental.
A tuberculose em área indígena amazônica atinge proporções alarmantes conforme reportam os dados de publicação da Organização PanAmericana da Saúde (OPAS) atingindo coeficiente de incidência de 286 a
326 casos novos por 100.000 habitantes.
Como exemplo preliminar citamos a nossa experiência no alto rio
Negro, a qual reporta que, anualmente, no período de 2000 até 2002,
foram diagnosticados, em média, 50 casos/ano para uma população alvo
de 15 mil indígenas; à partir de 2003, a população alvo analisada se estendeu para um total de 20 mil indígenas aldeados, estando os números apontando para 76 novos casos por ano.
Ações de saúde
Nas análises anuais das populações indígenas do Brasil os números
apontam para 90% dos novos casos como formas pulmonares e estes apresentam, em média, 50% de pacientes com análise de baciloscopia “negativa” no escarro (em algumas regiões, estes números atingem 70%, o que
levanta a suspeita de erro diagnóstico dos excedentes).
Os dados epidemiológicos dos povos indígenas do alto rio Negro
endossam estes números.
Infelizmente a pesquisa do bacilo de Koch no escarro apresenta resultados desanimadores e o diagnóstico da tuberculose pulmonar, em área
59
Ações em saúde indígena amazônica
indígena, distante de um centro laboratorial-hospitalar, se estabelece, portanto, com a análise radiológica de todo o paciente tossidor crônico que
apresenta emagrecimento progressivo... e isto parece ser a prática utilizada
na população indígena brasileira (vide, por exemplo, a experiência do Distrito Sanitário Indígena do Xingu).
Tendo em vista a dificuldade de obtenção de positividade na
baciloscopia, o bom-senso nos direciona à apenas duas alternativas:
implementação de abordagem diagnóstica laboratorial em área indígena
○
○
○
Quadro sindrômico da TB pulmonar
TABEL A
○
○
1
○
Emagrecimento pro gressivo *
Febre co m sudo rese no turna
Anemia
To sse crô nica pro dutiva
Astenia
Ano rex ia
*
elemento universal em todas as formas da apresentação da doença
(entenda-se teste tuberculínico e RX portátil) e liberação mais flexível de
provas terapêuticas por parte do programa de controle da tuberculose.
Para todos os demais pacientes suspeitos que apresentem o quadro
sindrômico da doença (anemia, anorexia, astenia, tosse produtiva, emagrecimento, febre com sudorese noturna), entendidos como prováveis tossidores
crônicos, o controle de peso, seriado e, no mínimo, semanal, parece a
melhor conduta até então; no entanto, a procura da visualização do bacilo
da tuberculose no escarro deve ser incansável e constante.
Antropologia
Os povos indígenas do alto rio Negro trazem em sua história e comportamento um íntimo convívio com a fumaça intra-domiciliar.
A queima de matéria vegetal e seus gases emitidos oferece qualidade
de vida para o convívio nas matas uma vez que espanta insetos e outros
60
Tuberculose em área indígena
artrópodes nocivos, afugenta animais variados (é o único método, conhecido na ciência ocidental, que realmente afasta ofídios peçonhentos) e está
indissoluvelmente vinculado aos rituais de cura, como elemento de purificação; portanto, na visão indígena da região, o convívio com a fumaça em
ambiente doméstico traduz benefício e conforto.
Obviamente apresentamos um tópico no revéz da medicina ocidental, que entende o convívio em ambiente com estas características, altamente devastador para a função pulmonar.
Não obstante, a maioria dos povos aqui analisados são populações
de profundo vínculo com a água e o convívio com os rios, tendo uma vida
de íntima relação com o ambiente úmido, fato que nos leva à elementar
evidência de uma elevada taxa de infecções respiratórias baixas ao longo da
primeira infância, sendo, portanto, importante elemento de formação de
bronquiectasias (deformidades da árvore brônquica, com estase de secreções) e gênese de elevada prevalência de tossidores crônicos.
Estes breves comentários parecem ser universais aos demais povos
indígenas aldeados na região amazônica brasileira.
Como elemento de agravo, a definição epidemiológica de tossidor
crônico, utilizada pelo ministério da saúde, envolve a quantificação de tosse
contínua por 3 semanas consecutivas; no entanto, os povos indígenas que
habitam o rio Negro e seus afluentes não utilizam quantificações matemáticas exatas, apenas aproximadas... e isto é cultural; por mais que se
implementem medidas educativas, elas não terão valor cotidiano e não serão empregadas; portanto, a plotagem dos tossidores crônicos necessita
de outros critérios, que não aqueles consagrados na medicina ocidental.
À título de complementação, para ilustrar melhor a complexidade de
valores envolvidos, é importante mencionar que entre os Desana/Tukano orientais e os Tariana/Aruak, que são povos sedentários, de habitação ribeirinha,
no alto rio Negro, certas formas clinicas da tuberculose (pulmonar, óssea,
laringea, ganglionar) são associadas à feitiçaria xamânica, sendo consideradas
como doenças tradicionais indígenas dentro da esfera mitológica; portanto,
elas não são consideradas como contagiosas já que a feitiçaria, para surtir
efeito, deve ser endereçada a uma pessoa específica; no entanto, os indígenas
do alto rio Negro distinguem também uma forma branca da tuberculose pulmonar cuja concepção assemelha-se à concepção ocidental e que teria sido
introduzida pelos brancos, enfim, com uma forma clínica de apresentação e
suas implicações epidemiológicas condizentes com a definição ocidental (D.
Buchillet, communicação pessoal, dezembro de 2004).
61
Ações em saúde indígena amazônica
Outro comentário antropológico de valia é que certos povos caçadores-coletores não têm afinidade com o ambiente urbano e aqueles pacientes
suspeitos clínicos de tuberculose pulmonar ativa, com estas características
culturais, são resistentes ao encaminhamento para um centro de referência
(isso vale, na verdade, para a maioria dos povos indígenas do rio Negro).
Os pólos-bases de abrangência aos povos caçadores-coletores apresentam números preocupantes de pacientes com suspeita diagnóstica “clínica” de tuberculose pulmonar ativa, ao mesmo tempo em que apresentam
baixíssimo índice de confirmação diagnóstica laboratorial... e a explicação
para tal paradoxo, entende-se nas precárias linhas acima.
Por enquanto, a situação epidemiológica real destes populações é
aquela do paciente clínico suspeito de tuberculose pulmonar ativa, em curso natural da doença, até a caquexia, hemoptise fulminante e óbito, sem
receber, sequer, uma única dose de tuberculostáticos.
Isto explica-se pelo fato de que a prova terapêutica (tratamento
empírico, por 30 dias com controle de peso) não é liberada por controladores
do programa de controle da tuberculose, por pura e simples ignorância
antropológica e fortemente embasados no programa nacional de controle
da doença (rígido e inflexível no embasamento diagnóstico laboratorial).
Baciloscopia
A busca do bacilo de Koch (BK) no escarro, padrão ouro do diagnóstico de todo paciente sindrômico suspeito de tuberculose pulmonar, como
método isolado de busca ativa, em populações indígenas do alto rio Negro,
sem menor sombra de dúvida, é infrutífero, possivelmente explicada por
elementos antropológicos que coíbem a expectoração por ser representativa de má conduta social; enfim, elementos ainda pouco estudados no universo representativo das doenças talvez possam endossar estas suspeitas,
uma vez que são povos que sobreviveram a várias epidemias e estas são
sempre educadoras, independentemente da cultura em questão. Reforçamos tratar-se apenas de uma hipótese que, à contento, explica e dificuldade
de obtenção de bom material para baciloscopia.
A análise de escarro de todo o paciente provável tossidor crônico, na
região, aponta para um elevado número de resultados negativos que na verdade são resultados de material insatisfatório (saliva); portanto, não parece
ser um bom método isolado para diagnóstico ou exclusão de novos casos .
62
Tuberculose em área indígena
A positividade da baciloscopia em escarro ao longo da história natural da doença, em áreas indígenas do alto rio Negro, aponta para doença
terminal, daí conclui-se que o curso da evolução da tuberculose pulmonar
(de 2-5 anos sintomáticos, culminando em caquexia, hemoptise e insuficiência ventilatória) passa, em grande parte, sem diagnóstico laboratorial apesar
da evidência clínica... uma vez que ainda não há RX, próximo ao ambiente
cultural e familiar.
Apesar destas ponderações, a pesquisa do BK deve sempre ser feita
de forma insistente e repetitiva para todo o paciente sindrômico suspeito
de tuberculose pulmonar ativa.
Como breve comentário, a cultura de bacilo de Koch (4-6 semanas)
somente é viável se o material isolado for prontamente remetido à um laboratório referencial (infelizmente à grande distância do cenário de selva),
uma vez que a sobrevivência do bacilo ao meio ambiente é muito lábil.
Teste tuberculínico (PPD)
O teste tuberculínico é ferramenta de valia como elemento complementar diagnóstico naqueles pacientes que apresentem suspeita clínica de
tuberculose ativa e progressiva perda de peso; no entanto, este exame apenas acusa a presença de bacilo (infecção) sem, necessariamente, a existência de doença em curso.
Sua maior valia está na plotagem dos comunicantes de pacientes
bacilíferos, uma vez que aqueles acusando “não reatores” podem ser excluídos da quimioprofilaxia; no entanto, é importante lembrar que os candidatos preferenciais ao uso de supressão com hidrazida são todas as crianças
menores de 5 anos de idade e que podem ter recebido BCG recente, daí
que pode ocorrer interferência na leitura dos “reatores”; portanto, o exame é de extrema valia e confiabilidade para mostrar os “não reatores” e
excluí-los do programa.
É fundamental reforçar a idéia de exame complementar que não afirma o diagnóstico, apenas reforça sua suspeita .
A existência de imunização por BCG, há mais de 24 meses prévios
ao teste, não acusa interferência na interpretação de resultados.
Conclui-se que a implementação do PPD (Mantoux), com leituras de
conversão em 5mm (a mesma para população vítima de imuno-supressão),
parece promissor, uma vez se tratar de população hiperendêmica e desnutrida.
63
Ações em saúde indígena amazônica
○
○
○
Interpretaçãodo Mantoux (Ppd)
○
TABEL A
○
○
2
5-10 mm induração
fraco reato r
10-15 mm induração
r e a to r
Acima de15 mm induração
fo rte reato r
Radiologia
Foto: acervo DSEI/FOIRN
A análise radiológica em área indígena de todo o caso clínico suspeito é elemento importante para o controle da doença, lembrando que inúmeras outras patologias mimetizam o quadro clínico sindrômico da tuberculose, entre elas as micoses profundas, as bronquiectasias, as cicatrizes
antigas de tuberculoses passadas e outras tantas patologias que somente o
RX de tórax, o controle seriado de peso, e a incansável procura do BK no
escarro poderão esclarecer.
A única proposta viável para abordar laboratorialmente esta situação
de hiperendemia pelo bacilo de Koch seria o emprego de unidade radiológica, em área indígena.
A implantação de unidade radiológica portátil requer um aparelho
radiológico de média potência, gerador próprio, sala isolada, se possível
baritada, insumos de filmes e processadores químicos e técnico capacitado.
○
○
○
○
○
○
○
○
○
FIGURA
1
○
○
○
64
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
Imagem radiológica de TBC
Pleural em base de hemitórax esq.
Tuberculose em área indígena
Campanhas radiológicas poderiam ser implantadas sob forma de busca
ativa de pacientes sindrômicos encaminhados para um centro de referência,
“em área indígena”, próximo do ponto de habitação.
A leitura de exames se faria por profissional médico, em área, e dúvidas radiológicas seriam destinadas à discussão médica multi-disciplinar
num centro de referência hospitalar.
Infelizmente, por enquanto, não é possível de implementação à curto
prazo e somente a flexibilização da prova terapêutica estaria ao nosso alcance se realmente ocorressem ações conjuntas e verdadeiramente capacitadas para o assunto (a ignorância antropológica dos gerenciadores do programa de combate à tuberculose são fortes obstáculos, dentro da área da
saúde coletiva indígena).
Tratamento
A tuberculose pulmonar é tratada conforme o protocolo de terapêutica adotado pelo Ministério da Saúde, no Brasil; no entanto, algumas ressalvas
são fundamentais no que tange às populações indígenas do alto rio Negro.
Todo o caso de tuberculose recebe tratamento supervisionado pela
equipe de enfermeiros e médicos no primeiro mês, na Casa de Saúde Indígena (residência de apoio à indígenas aldeados, sob tratamento em centro
de referência) e segue, em seu domicílio, sob supervisão do AIS (agente
indígena de saúde) e equipes sanitárias volantes de área indígena. Alguns
pacientes, entre eles os caçadores-coletores, devido a seu comportamento
de alta mobilidade, são convidados a concluir seu tratamento no centro de
referência, apesar desta medida causar forte impacto na estrutura familiar.
É fundamental o controle de peso corporal durante todo o tratamento,
principalmente no primeiro mês, quando o quadro sindrômico deve apresentar resolução (apesar da tosse se manter, muitas vezes, indefinidamente) acompanhado de curva ascendente de recuperação de peso, confirmando assim a
suspeita diagnóstica pré-estabelecida. Porém, este simples detalhe está omitido nas melhores escolas de formação de profissionais de saúde no Brasil.
Outro detalhe de grande importância se deve ao fato de alguns povos indígenas não conceberem a tuberculose como doença recidivante, principalmente após um curso de tratamento mal sucedido (abandono); mostra-se assim a necessidade de cuidado na utilização de conceitos diferenciados fortemente embasados na antropologia da saúde.
65
Ações em saúde indígena amazônica
Conclusões
A pedra fundamental para a abordagem da tuberculose nos povos do
alto rio Negro, é o controle de peso seriado, semanal, de todo o tossidor
crônico sindrômico, traduzindo-se como a melhor conduta para se estabelecer busca ativa de possíveis novos casos de tuberculose pulmonar ativa.
A análise radiológica, em área indígena, é o melhor exame complementar para se reforçar o diagnóstico de tuberculose pulmonar, enquanto
que a baciloscopia do escarro apresenta resultados desanimadores como
modelo de busca ativa; no entanto, a busca de visualização do bacilo deve
ser incansável e continuada.
O teste tuberculínico aponta grandes limitações para estabelecer o
diagnóstico de doença; no entanto, tem profundo valor para seleção e exclusão de comunicantes candidatos à quimioprofilaxia.
O maior obstáculo na questão ainda é estabelecido por gerenciadores
de saúde pública despreparados para discutir a saúde indígena como um
todo e como forma de especialidade, já que o universo de valores e percepção da ética e moral estão abertos aguardando uma verdadeira discussão.
Enquanto isto, não se fez luz.
Muito já andamos, porém o caminho é longo.
Que as mentes maravilhosas que abordam estas questões não se cansem e continuem carregando o peso da pedra.
Por enquanto, somente Hank Williams nos faz voz:
“I´m gonna kick the darkness, till it bleeds day-light”
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6
Ações em Saúde Indígena Amazônica: O Modelo do Alto Rio Negro
FOIRN • São Gabriel da Cachoeira • 2006
Capítulo 6, pp. 65 - 78
Parasitismo
em área indígena
Oscar Espellet Soares
Médico cirurgião-geral da
Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro – FOIRN
Introdução
Toda e qualquer forma de parasitismo é debilitante.
Em diferentes maneiras de apresentação, a patologia parasitária é
universal em todo o mundo vivo e acompanhará a humanidade até o final
dos tempos.
Em área indígena, no entanto, este assunto se mostra prioritário para
a atenção básica à saúde uma vez que, freqüentemente, o parasitismo é
hiperendêmico nos povos que habitam o alto rio Negro e seus afluentes.
Entender as peculiaridades destas doenças tropicais mais freqüentes,
através da apresentação sindrômica e seu tratamento longe de um centro
diagnóstico, é a finalidade deste capítulo.
Aspectos antropológicos
O parasitismo é doença universal e afeta qualquer organismo vivo.
Os povos amazônicos sempre conviveram com parasitas humanos e
portanto, não é de se admirar que tenham desenvolvido elementos culturais, inclusive sua própria medicina, para lidar com a questão; portanto, a
análise antropológica dos povos indígenas do alto rio Negro nos fornece
importante base conclusiva para abordar o assunto.
Na falta de um modelo ocidental de ciência, a mitologia indígena age
da mesma forma, isto é, explicando o mundo, dando um sentido lógico
àquilo que se anuncia sem explicação.
Dentro deste cenário, muitas doenças originaram junto à criação do
homem, bem como sua medicina de cura ou melhora.
69
Ações em saúde indígena amazônica
Aqueles que aprenderam a longa narrativa do surgimento do universo e suas doenças e respectivos tratamentos, ganharam a aura xamãnica do
curandeiro... ou “pajé”.
Sendo a cultura de transmissão oral, o processo de informação e
formação do curandeiro é lento, longo e fortemente embasado no conhecimento dos mais velhos... para tal, é preciso um jovem para ouvir... o
candidato à formação.
O velho é o livro, o jovem é quem lê.
Com a cristianização indígena gerenciada pelos católicos ao longo
dos séculos, este mecanismo de construção xamãnica foi ameaçado como
elemento demoníaco e de perdição... a condenação iminente se instalou.
Os jovens perderam progressivamente o interesse nestes conhecimentos e o processo continuista da transmissão oral está frágil e prestes à
se romper, comprometendo e privando gerações futuras do usufruto cultural do exercício xamânico.
Hoje são poucos os pajés e rezadores.
Por conseguinte, permanecem as doenças e a necessidade de explicação dos sintomas (de onde surgem) e seus intentos de cura; portanto, a mitologia persiste porque explica aquilo que não tem explicação de
outra forma (como a febre recorrente da mansonelose, ou a úlcera crônica da leishmaniose), criando mecanismos de compreensão e aceitação e,
ídem, o intento de cura com benzimentos e aplicação de fitoterapia, ainda presente... porém há a ameaça de se perder o maestro do processo: o
“pajé”, o benzedor, o conhecedor da medicina tradicional indígena, o
detentor eficiente da sabedoria e dos segredos do universo.
O instrumento da cura, portanto, está sob ameaça, porém mantémse viva a lógica explicativa das doenças e seus mecanismos de disseminação
e respectivos tratamentos.
O parasitismo assume assim a posição de qualquer outra doença que
demanda atenção, explicação e cura
A mecânica ocidental que descreve o parasitismo e seus vetores,
portanto, não pode ser a mesma que a indígena.
Para conseguir penetrar neste universo, já explorado e aceito de forma milenar, precisamos aprender sua lógica.
Por outro lado, há a medicina ocidental querendo participar do processo de entendimento e manuseio das doenças, e a dificuldade de comunicação é inevitável .
70
Parasitismo em área indígena
A medicina ocidental mostra-se carente de um método explicativo
para povos indígenas amazônicos de forma que pouco contribui na educação sanitária adequada à estas populações.
Isto é uma tarefa muito difícil porque guiados pela verdade dos conceitos ocidentais, poderemos nos tornar os fervorosos (e equivocados)
Salesianos de amanhã, tentando agir confiantes demais em modelos éticos
e morais cristãos e devastadores para os povos indígenas.
Se não atentarmos para a existência do modelo indígena e seus mecanismos explicativos do universo e suas doenças, pouco deixaremos como
elemento de contribuição na saúde indígena.
Mais uma vez a antropologia se apresenta como elemento fundamental para evitar o conflito e também parece elementar a conclusão de
que se necessita de um outro grupo de profissionais para abordar a
saúde indígena: “o pedogogo”, o educador que conheça a cultura
indigena e que esteja pronto para aprender tanto quanto para ensinar
(programas de educação para a saúde so podem ser eficaces quando
baseados/apoiados na propria cultura!)
A formação do profissional de saúde é eminentemente técnica e
muito pouco voltada à pedagogia e o fato principal, em saúde indígena, é a transmissão de conhecimentos e integração das culturas
conflitantes para que os esforços se somem no intento de melhorar a
qualidade de vida consensual.
Saúde e educação sempre andaram juntas.
Que estes comentários nos sirvam de alerta para o planejamento de ações futuras de maior qualidade, junto aos povos amazônicos
como um todo.
Clínica e terapêutica
O parasitismo em área indígena, mais prevalente, se resume a três grupos:
o do tegumento comum (pele e fâneros), o intestinal e o hemático.
Nos três conjuntos temos como pano de fundo a coexistência da
desnutrição, gerando um ciclo vicioso de retroalimentação contínua e
danosa; portanto, medidas diagnosticas mais adequadas e terapia antiparasitária, mesmo que momentânea e vertical, parecem prioridade em
saúde básica primária.
71
Ações em saúde indígena amazônica
○
○
○
Parasitoses mais comuns no alto rio Negro
○
TABEL A
○
○
1
PARAS ITOS E
AGENTE
parasitas de
te gu m e n to c o m u m
Sarcop tes scab ei , Pti ru s h u man u s e Tu n ga p en etran s
parasitas intestinais
Helmintiasis em geral, Gi ardi a l amb l i a, En tamoeb a h i stol i tyca
Parasitas hemático s
Plasmodium vivax, Plasmodium falci parum, Leishmania brasiliensis,
Mansonela ozzardi
A - Parasitas de tegumento comum
A pediculose, a escabiose e a tungíase acompanham a falta de saneamento em qualquer ponto do planeta.
A perda da harmonia sócio-ambiental gera padrões hiperendêmicos
deste grupo parasitário.
A infestação de roupas e outros utensílios domésticos de origem fabril
são o foco principal e mantenedores de reservatórios de Sarcoptes scabiei e
Pediculus humanus, enquanto que o solo arenoso e fofo alberga ovos espiculados
da Tunga penetrans (os maiores reservatórios são cães, gatos e porcos).
As formas clínicas são as mesmas da literatura, podendo infestar
qualquer parte do corpo humano coberto por tegumento comum, inclusive
genitais, dobras e palmas das mãos e solas dos pés (sarna norueguesa).
Óbviamente a tungiase afeta mais os pés, a escabiose, o tronco e a
pediculose, a cabeça.
A impetiginização é muito comum, seja na forma estreptocóccica (crostas
melicéricas), seja na forma estafilocóccica (aspecto de queimadura, com bolhas), caracterizando, assim, a freqüente infecção bacteriana secundária.
Tratamento
O tratamento da tungiase envolve matar todas os parasitas com
imersão da parte afetada em água sanitária à 25% por 30-60 minutos,
seguido de extricação do parasita com lâmina de bisturí nº15.
Nas multi-infestações por Tunga penetrans esta medida mostra-se
de valor uma vez que a pele fica macerada e de fácil remoção nos pontos
afetados. Uma vez tratando-se de pele morta, não há necessidade de
anestesia qualquer.
72
Parasitismo em área indígena
Após a extricação aplica-se água oxigenada 10-20 volumes para eliminar os ovos vivos dispersos no local tratado.
É fundamental pedir à comunidade que espalhe barro ou argila sobre o
solo arenoso fofo, isolando, assim, os ovos espiculados que infestam o chão.
O tratamento preferencial da escabiose e pediculose, sem impetigo,
é com veículos que contenham deltametrina na composição;
preferentemente, o sabão de deltametrina.
○
○
○
Tratamento das parasitoses de tegumento comum
○
TABEL A
○
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2
PARAS ITOS E
TRATAMENTO
Escabio se
so lução de deltametrina
Pediculo se
so lução de deltametrina
Tungiase
extricação com lâmina 15
Evita-se o uso do benzoato de benzila devido seu poder neurotóxico
(se ingerido) e irritante local, mesmo na pele íntegra.
A impetiginização se trata com permanganato de potássio e pomada
de neomiciana, nos casos leves e mais localizados, ou com penicilina benzatina
(300.000ui até 2 anos de idade, 600.000ui até 10 anos de idade e
1.200.000ui nas demais faixas etárias) dose única IM, nos casos extensos.
O incentivo ao uso de sabão deve ser extensivo a todos.
É fundamental a fervura de roupas, redes e lençóis.
O uso da dose única de Ivermectina para tratar a escabiose e a
pediculose é promissor, porém limitado, uma vez que são populações que
comumente estão infestados de Mansonella ozzardi (um parasita hemático)
e podem desencadear reação colateral tipo “reação de Mazzoti”.
B - Parasitas intestinais
A multi-infestação parasitária intestinal por helmintos é regra em
povos com desarranjo sócio-ambiental.
A baixa oferta de saneamento é o cerne da questão.
73
Ações em saúde indígena amazônica
Toda e qualquer medida de deverminação cai no insucesso dentro da
primeira semana pós-tratamento porque o solo está infestado de cistos, pseudocistos e ovos, e estas formas podem manter-se vivas e passíveis de infestação
por décadas e décadas... indiferente à característica composicional do solo.
As helmintíases se apresentam como queixas abdominais vagas e persistentes, ocasionalmente como sub-oclusão intestinal, nos casos intensos.
A anemia clínica é muito comum.
Entre a imensa gama parasitária, dois protozoários e um helminto
requerem especial atenção: a Entamoeba histolitica, a Giardia lamblia e o
Strongilóides estercoralis, respectivamente porque todos estes têm em comum o quadro diarréico.
Na giardíase a diarréia se apresenta de caráter recorrente, auto-limitada ou crônica, com evidente esteatorréia podendo também ter o caráter
de epigastralgia crônica por duodenite.
Na amebíase o quadro costuma ser de disenteria com febre baixa e
de caráter recorrente.
Na estrongiloidose, a diarréia pode se apresentar como qualquer
padrão, porém recorrente, inclusive a apresentação clínica pode ter apenas
características vagas, ou pronunciada epigastralgia.
Tratamento
Diante deste cenário, o tratamento de deverminação está indicado
em todo o caso sintomático com epigastralgia, ou dor abdominal
inespecífica ou diarréia crônica e/ou recorrente e, também, extensivamente à todos os membros da comunidade 2 vezes ao ano, indiferente da
apresentação de sintomas.
A droga de ação mais ampla é o Albendazol 400mg, VO, dose única,
quando usado modelos extensivos de tratamento em massa, indiferente à
apresentação de sintomas. É contra-indicado em gestantes e crianças com
menos de 2 anos de idade.
Nos casos sintomáticos, sugerimos o uso de albendazol 400mg, VO,
por 3 dias.
Nas sub-oclusões por helmintos, primeiro se dá óleo mineral,15ml, VO,
seguido de 3 horas após, de piperazina,75mg/kg/dia, VO,8/8horas por 3 dias.
Se ocorrer distensão abdominal sugerimos a descompressão com
sondagem naso-gástrica de alívio.
74
Parasitismo em área indígena
As giardiases e amebiases são melhor tratadas com metronidazol
30mg/kg/dia por 5 dias.
A estrongiloidiase responde melhor à ivermectina como droga de
escolha, além da praticidade posológica de dose única, outra alternativa é o
albendazol 400mg/dia, VO, por 3 dias.
○
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Tratamento das parasitoses intestinais
○
TABEL A
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3
PARAS ITOS E
TRATAMENTO
Amebiasis
metro nidazo l 30mg/ kg/ dia, VO, 5dias.
Giardiasis
metronidazol 30 mg/kg/dia, VO, 5 dias ou secnidazol 2g dose única, VO.
Helmintiasis
albendazol 400mg, VO, dose única diária por 3 dias.
C - Parasitas hemáticos
Do universo parasitário hemático 3 gêneros assumem destaque:
Mansonella, Plasmodium e Leishmania.
C1 - Mansonelose
A Mansonelose é uma doença causada pelo filarídeo Mansonella ozzardi,
um helminto, e transmitida pelo mosquito simulídeo (o” pium” amazônico).
Sua característica clínica é a miríade de sintomas vagos a clássicos
das síndromes infecciosas: febre baixa e recorrente, cefaléia, artralgias, astenia
e anorexia, além de sensação de parestesias ou frio nos membros inferiores.
A literatura médica especializada no assunto é pouco extensa e limitada não respondendo, por exemplo, qual a participação da mansonelose
naquele grupo de morte de causa indeterminada, nem respondendo quais
as possíveis lesões tissulares ao longo do extenso período de doença.
A clínica da micro-filaríase (mansonelose) parece decorrer de resposta
imunológica desencadeada pela morte de micro-filárias na corrente sangüínea.
Os poucos grupos de pares de casais se alojam em serosas do corpo,
assumindo diminuto tamanho e, portanto, de impossível localização por
exames de imagética.
75
Ações em saúde indígena amazônica
Foto: M. S. de Castro
O diagnóstico se dá por coleta de gota espessa de sangue periférico
ou biópsia exangue de pele da região dorsal, sub-escapular.
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FIGURA
1
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Mansonela sp. Visualizada
em gota espessa de sangue
periférico
Tratamento
Não há droga que elimine os grupos sexuais adultos, resumindo o
tratamento a apenas as micro-filárias circulantes, portanto o tratamento de
eliminação das formas jovens deve ser realizado repetidas vezes até que
ocorra a morte natural da população de casais adultos.
A droga de escolha é a ivermectina, 200 microgramas/kg, dose única, VO; no entanto, 6-12 horas após a ingestão da droga ocorrerá lise das
micro-filárias na corrente sangüínea e liberação de mediadores imunológicos,
gerando uma intensa sintomatologia conhecida como reação de Mazzoti,
que nada mais é que a exacerbação da clínica da micro-filariose, e constituise em : febre elevada com calafrios e delírio, cefaléia intensa, náusea e
vômitos (reflexos à dor) e poliartralgias intensas.
O tratamento da reação é com dipirona IV, anti-inflamatório não
esteróide (tenoxicam, IV) e anti-heméticos, se necessário.
Aparentemente a administração de prednisona 1mg/kg, VO, conjuntamente à ivermectina, diminui a sintomatologia.
Todo o paciente em área indígena, que recebe ivermectina, precisa
ser revisto dentro do período de reação de Mazzoti.
Há importante ganho de redução da morbidade após um curso
de tratamento.
O retratamento deve ser considerado; no entanto, não há consenso
literário para estipular um prazo mínimo de repetidas doses; para tal, sugerimos uma dose a cada 6 meses até desaparecimento total das formas jovens no sangue periférico em repetidos exames bi-anuais.
76
Parasitismo em área indígena
C2 - Malária
O segundo grupo de parasitas hemáticos em povos amazônicos
corresponde ao protozoário do gênero Plasmodium responsável pelo impaludismo amazônico.
A malária, ou febre palustre, há muito é considerada uma endemia
de dificílima solução.
Aparentemente é doença autóctone de ambientes tropicais e equatoriais úmidos.
As espécies de Plasmodium, dentro do universo amazônico de patologias
tropicais, se resumem, praticamente, a Plasmodium vivax e Plasmodium falciparum.
As espécies Plasmodium malariae ou Palasmodium ovalae são pouco
reportadas e não assumem destaque nos programas de atenção primária.
A transmissão se dá pelo mosquito anofelino fêmea, hematófago,
que suga o sangue de um reservatório mamífero de Plasmodium.
Após 2 semanas, em média, se anunciam os primeiros sintomas
que se resumem a febre de caráter recorrente, “sem padrão de oscilação” (como reporta a literatura clássica), geralmente elevada, calafrios, cefaléia, náusea e vômitos, diarréia ocasional, poli-artralgias e
mal estar geral; com a evolução aparecem icterícia sem colúria e hepatoesplenomegalia.
As apresentações agudas tendem a desaparecer com a evolução da
doença, podendo ocorrer extensos períodos assintomáticos.
O óbito nas formas agudas pode se anunciar por encefalite, falência
hepática ou hipoglicemia.
O padrão terçã e quartã são raras vezes reportados e, cada vez
mais, reforçam a evidência clínica de elemento de pouca valia, para
suspeita diagnóstica.
As infestações por P. vivax são mais freqüentes e as formas agudas são
menos intensas que aquelas decorrentes de P. falciparum; no entanto, ao
longo de vários episódios de reinfestação de malária, num mesmo indivíduo,
ocorre imuno-modulação da apresentação da doença, vindo esta a ser cada
vez menos intensa em infestações futuras.
Parece fundamental indagar onde o paciente se encontrava há mais
de 15 dias antes dos sintomas (período de incubação médio) com o intento
de localizar o foco criadouro do mosquito (elo da corrente de transmissão
fundamental no controle da endemia).
77
Ações em saúde indígena amazônica
Tratamento
Estabelecida a suspeita de malária, colhe-se a gota espessa, em sangue periférico, e acondiciona-se a lâmina (a coleta não precisa coincidir
com o pico febril e o uso de anti-térmicos não interfere nos resultados) e se
introduz o tratamento empírico com cloroquina, VO, 600mg (4 cp) em
dose única no primeiro dia, seguido de 450 mg (3 cp) em dose única no
segundo e terceiro dia (famoso esquema 4,3,3), para adultos.
Em crianças o esquema se aproxima de um terço das doses, como
regra genérica; no entanto, sugerimos consultar tabelas de peso e ajuste de
doses distribuídas pelo ministério da saúde.
A primaquina é indicada para todo o caso de malária “confirmado”,
com finalidade de eliminar reservatórios hemáticos e hepáticos; no entanto,
é droga extremamente tóxica (principalmente para crianças e gestantes).
Não se administra a primaquina até obter-se a confirmação da lâmina.
Se indicada, utiliza-se o esquema de 15 mg,VO, 12/12 horas, por 7
dias, para adultos com P. vivax e esquema de apenas um dia para P. falciparum;
crianças devem receber a dose adequada pelo peso (vide tabela de ajuste
de dose do ministério da saúde) em mesma formatação de esquema.
Devido aos casos mais intensos serem decorrentes de P. falciparum,
sugerimos esquema de dose única de mefloquina, 1250mg, VO, para adultos, frente à esta suspeita, preferentemente à cloroquina, até que se obtenha confirmação diagnóstica com leitura de lâmina em sangue periférico.
Em crianças, usar ajuste de dose do esquema acima, pelo cálculo
de peso corporal.
Em casos de apresentação grave, sugerimos a hidratação endovenosa
agressiva com aporte de glicose e considerar o uso de artemeter IM (droga de
ação imediata contra P. falciparum) e remoção para o hospital de referência.
Após confirmação diagnóstica da lâmina coletada, conclui-se o tratamento com primaquina, exceto gestantes, com finalidade de eliminar formas reclusas da doença (reservatório hepático e hemático).
Importante lembrar que se os episódios de crises febris voltarem a
acontecer, enquanto se aguarda a confirmação diagnóstica (este atraso pode
ser de vários dias, uma vez que estamos na floresta, longe de um centro
diagnóstico), todo o esquema deve ser refeito incluindo novas doses de
cloroquina ou mefloquina.
78
Parasitismo em área indígena
Lembramos que é doença passível de cura, apesar de cada vez mais
se anunciarem formas resistentes à terapêutica clássica.
C3 - Leishmaniose
Foto: acervo DSEI/FOIRN
Para finalizar, o terceiro grupo se reporta ao gênero Leishmania.
Este grupo se constitui de protozoários transmitidos pelo mosquito
flebotomídeo, hematófago de mamíferos silvestres e domésticos infestados
(inclusive o cão).
O período de incubação varia de 2 semanas à 3 meses.
Sua característica principal na apresentação da doença é a formação
de úlceras cutâneas e mucosas, na forma tegumentar da doença (apresentação mais freqüente e abordada neste capítulo) e hepato-esplenomegalia,
na forma visceral (apresentação menos freqüente no alto rio Negro, e que
não será abordada neste capítulo).
No alto rio Negro, a suspeita diagnóstica se dá em todo o caso reportado de úlcera crônica sem um mecanismo direto que a justifique, com
especial menção às úlceras de septo nasal.
A coleta de lâmina se faz com anestesia local do bordo da ferida e
curetagem com o bordo cego de uma lâmina nº15; faz-se um esfregaço
simples em lâmina de microscópio e se acondiciona para referir à um centro
diagnóstico; no entanto, a demora para análise do raspado pode conferir
resultado falso-negativo sendo, às vezes, necessária a remoção do paciente
para um centro diagnóstico.
Cuidados gerais devem ser instituídos no tratamento local da ferida, como o uso de pomada antibiótica e higiene com curativos à base
de soro fisiológico.
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FIGURA
2
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Leishmaniose tegumentar
em tornozelo
79
Ações em saúde indígena amazônica
Tratamento
O tratamento específico ainda é rudimentar, cardio-tóxico e pancreatotóxico, à base de antimoniais antigos, como o Glucantime, 1ml/5kg/dia, IM;
no entanto, há baixa complascência por parte dos pacientes; é fundamental
reforçar que é doença passível de cura após 2-3 semanas de terapia.
Devido aos efeitos tóxicos da medicação, sugerimos referenciar o paciente para um centro de monitoramento do tratamento e seus efeitos lesivos.
Evita-se o tratamento em área indígena sem base hospitalar e
laboratorial.
○
○
Tratamento das parasitoses hemáticas
TABEL A
4
PARAS ITOS E
TRATAMENTO
Malária
Clo ro quina o u meflo quina*
Manso nelo se
Ivermectina
Leishmanio se
Antimoniais (Glucantime)
* primaquina somente após confirmação da lâmina
Considerações finais
Abordar a vastidão de doenças parasitárias que afetam os povos indígenas do alto rio Negro é tarefa pretensiosa demais, para apenas um
capítulo curto; entretanto, as patologias mais freqüentes e grandes causadoras de elevado impacto de morbidade se resumem à estas aqui apresentadas e sumariamente comentadas.
A oferta de saneamento é a única alternativa adequada de melhorar a
qualidade de vida dos povos indígenas e isto é possível mantendo os hábitos de asseio pessoal peculiar à cada etnia.
É preciso crer que adaptações são viáveis.
Não precisamos criar banheiros!
Basta a simples oferta de água pura obtida de fonte não contaminada
por dejetos humanos e adequada alocação ao lixo, criando uma política que
incentive a educação com qualidade e compreensão, de fato. Também não
esquecer que todos os povos têm habitos de higiene peculiares e lugares
80
Parasitismo em área indígena
peculiares onde fazer as suas dejeções e onde tomar água para beber, mas
que, com a intensificação do contato com os brancos, a conseqüente
sedentarização e o adensamento populacional ao redor de alguns centros
(missionários, centros urbanos, por exemplo) fica mais difícil manter esses
hábitos . Isto é, não precisamos ensinar onde, como e o que fazer (de) suas
dejeções, mas proporcionarmos para os indígenas os meios de fazer isso de
maneira salubre e digna nesse ambiente de mudança sociocultural!
Projetos já foram escritos e o assunto exaustivamente estudado
por grupos variados e multi-disciplinares competentes na questão,
mas as ações, infelizmente, estão aos encargos de governos que insistentemente negligenciam estas populações de excluídos da sociedade
brasileira efetiva.
Não se tem ainda um plano de governo para implantação de saneamento básico em pontos críticos de adensamentos populacionais indígenas
na Amazônia brasileira... nem mesmo se evidencia isto em municípios de
predomínio populacional mestiço.
Sequer um simples projeto de coleta de água da chuva foi implantado
pelo poder público brasileiro em terras indígenas demarcadas do alto rio
Negro (de exclusiva atenção e prioridade da união, conforme rege a carta
máxima da legislação federal).
Ações isoladas e competentes de organizações não governamentais
sérias, mostram o caminho, o “como se faz”, porém não tem capacidade de
manter um sistema continuado e educativo sem a participação de ações
governamentais reais e efetivas.
Em muito se economizaria em internações hospitalares, extensivo
uso de medicações e perda de vidas, desnecessariamente expostas ao descaso e ao esquecimento.
Comparativo à estes gastos, estabelecer um saneamento digno é um
custo infinitamente menor.
Um país que teve Oswaldo Cruz, Vital Brasil e Carlos Chagas, e
passados 100 anos de suas lições, ainda está longe de contemplar uma
melhor moldura para os seus excluídos!
Referências bibliográficas
ATHIAS, R. Análise das representações de doenças contagiosas entre os
Hupde-Maku do alto rio Negro. 1997.
81
Ações em saúde indígena amazônica
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82
7
Ações em Saúde Indígena Amazônica: O Modelo do Alto Rio Negro
FOIRN • São Gabriel da Cachoeira • 2006
Capítulo 7, pp. 79 - 88
Doença diarréica
aguda em área indígena
Oscar Espellet Soares
Médico cirurgião-geral da
Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro – FOIRN
Colaboração: Acácio Siqueira
Médico Pediatra
Introdução
Por definição semiológica, diarréia é a percepção subjetiva do aumento do conteúdo líquido das fezes e diarréia aguda é aquela que apresenta resolução em, até, duas semanas (com cura ou óbito).
A doença diarréica aguda, ao contrário do que se pensa, incide menos
que as doenças pulmonares como “causa mortis” em área indígena, atingindo
cifras de 41,4 % na faixa etária de 0-1 ano (Funasa); no entanto, assume importante papel de destaque nas curvas de mortalidade das populações indígenas
do alto rio Negro, atingindo cifras de 18%, no grupo de 0-5 anos .
O maior fator de proteção à população pediátrica é o aleitamento
materno extensivo quase que, invariavelmente, até o segundo ano de vida.
A falta de saneamento das fontes de obtenção de água para consumo
humano em áreas de adensamento populacional e a progressiva introdução do
aleitamento artificial assumem importante destaque na epidemiologia da região.
Aspectos antropológicos
No universo indígena do alto rio Negro a formação do indivíduo é
concebida de maneira distinta do mundo ocidental.
Desde o momento em que se estabelece a suspeita de gestação
até atingir o segundo ano de vida, o indivíduo está em processo progressivo de formação e este é o período em que o mesmo tem apenas
na mãe sua fonte de nutrição.
83
Ações em saúde indígena amazônica
Qualquer falha que demonstre fragilidade da criança ou rejeição por
parte da mãe, implicará em forte possibilidade de morte precoce.
O infanticídio de vítimas de mal formação congênita, ou de gemelares,
foi elemento social largamente utilizado por populações indígenas ameríndias
da região até que a cristianização se estabelecesse, coibindo esta prática; no
entanto, há forte evidencia clínica que havendo alguma rejeição por parte
materna, como dúvida da paternidade ou ausência de pai social (aquele que
assume e ajuda à criar) a perda se estabelecerá, quase que invariavelmente.
A morte se dará por descuido do infante rejeitado frente à um quadro de pneumonia ou diarréia aguda.
Ainda, reforçando a complexidade de valores e significados na concepção das doenças, os povos Tukano orientais diferenciam alguns tipos de
diarréia. Certas diarréias são consideradas como normais, fazendo parte
do desenvolvimento da criança ou traduzem a inveja da criança brutalmente
desmamada por causa de nova gravidez da mãe; portanto, elas não são
consideradas como patológicas e não serão comunicadas ao médico; daí a
importância do médico examinar todos os nenés durante uma viagem de
consulta, mesmo se não forem apresentados pela mãe ao médico (D.
Buchillet, communicação pessoal, dezembro de 2004).
Outros tipos de diarréia são associados à comida dos brancos e outros ainda à feitiçaria. Às vezes, reidratar um doente com diarréia não é
bem entendido pelos indígenas que preferem “secar” o doente, portanto,
estabelecendo assim uma ruptura da comunicação com a medicina ocidental se esta não for bem trabalhada em seus significados (D. Buchillet, idem).
Por outro lado, o aleitamento materno é prática quase que universal
e compreendido pelos indígenas como importante fator de proteção e
praticidade para o cotidiano de difícil obtenção de comida.
Em contraposição, a interação com o mundo ocidental industrializado
está ameaçando o benéfico hábito cultural da amamentação materna extensiva, uma vez que o escambo introduz o leite bovino em pó e a utilização da
mamadeira, principalmente nos grupos familiares monetarizados, ofertando a
ilusão de praticidade e destaque social, sem perceber a fragilização para a
exposição à agentes infecciosos e conseqüente doença diarréica; no entanto,
ainda não há um levantamento de dados precisos para quantificar a penetração do aleitamento artificial em comunidades indígenas do alto rio Negro; as
evidências sugerem ainda ser tímida esta prática na população aldeada, porém mais explícita em população indígena urbana.
84
Doença diarréica aguda em área indígena
Torna-se mister estabelecer ações de saúde pública para coibir tais
hábitos, uma vez que há um “background” cultural para amparo.
Convém lembrar que os velhos, no outro extremo do ciclo vital, também configuram população de risco para doenças diarréicas uma vez que
habitualmente encontram-se desnutridos, considerando que não participam mais do sistema de obtenção de alimentos.
Outro importante fator no contexto das doenças diarréicas é a falta
de saneamento adequado das fontes de obtenção de água para beber.
Sempre foi hábito das populações indígenas recorrer aos rios e
igarapés para consumo de água potável; no entanto, com as demarcações
territoriais e a agregação católica paroquial, elevaram-se os números
censitários nas grandes comunidades e diminuíram nas pequenas.
Apesar do elevado índice pluviométrico amazônico, no período de
verão a vazante dos rios não protege a qualidade das águas em áreas de
grandes adensamentos populacionais indígenas.
A migração indígena interna em seu território demarcado levou à
aglomerações populacionais que não oferecem fontes adequadas de água
para consumo humano sem que ocorram contaminações e bolsões epidêmicos de diarréia aguda.
Hoje, a principal alegação para manter este processo migratório “in
continum” são a educação escolar em centros de agregação de ensino fundamental para crianças e adolescentes e a monetarização familiar iminente.
Clínica
A etiologia das diarréias agudas em área indígena se resume à virais
(aparente maioria), bacterianas e parasitárias (forte predomínio de amebas),
extendendo-se desde uma simples diarréia de fezes claras até uma disenteria
clássica, com fezes muco-pio-sanguinolentas.
A história natural da doença nos ensina que o óbito se dá ou por
desidratação ou por sepsis; portanto, é necessário atentar para estes dois
fatores, na abordagem sindrômica de cada caso.
A avaliação do quadro de desidratação não é praticada através do
cálculo da perda ponderal, como propõe a literatura, uma vez que a maioria
dos pacientes não têm acompanhamento continuado de ganho de peso ao
longo de suas vidas (isto também parece válido para a população brasileira
como um todo).
85
Ações em saúde indígena amazônica
A perda hídrica se calcula por aproximação clínica da apresentação.
Uma rápida avaliação pode ser feita de forma simples levandose em conta a freqüência cardíaca, a freqüência respiratória, a presença de lágrimas e o tempo de enchimento capilar (medido após leve
compressão da polpa digital sub-ungueal - em situações de normalidade é inferior à 2 segundos).
• Doença diarreica aguda (DDA) leve:
Os casos leves são muito discretos para avaliar, uma vez que a prega
cutânea mantém o turgor (apesar de diminuído) e as mucosas mantém-se
úmidas apesar de desidratadas e o estado geral é bom.
As freqüências cardíaca e respiratória são normais para a idade ou
levemente aumentadas, as lágrimas estão presentes e o tempo de enchimento capilar (TEC) é inferior à 2 segundos.
• DDA moderada:
Nos casos moderados, o turgor já apresenta evidências de diminuição e as mucosas se apresentam secas, além do que há evidente
sinal de sede e ainda há sinais de interação com o meio e muitas vezes
mantém a via oral.
A freqüência cardíaca tende a ser aumentada principalmente com a
criança em pé, a freqüência respiratória pode ser normal, no entanto, mais
profunda, o TEC está entre 3-4 segundos e as lágrimas podem estar ausentes ou diminuídas (não escorrem).
Em lactentes a fontanela tende a estar deprimida e há irritabilidade
ao toque e manuseio da criança.
• DDA grave:
Nos casos graves a situação é gritante, o turgor está extremamente
diminuído, os olhos estão fundos, a fontanela deprimida, não há boa interação
com o meio e a via oral está prejudicada.
As freqüências cardíaca e respiratória estão aumentadas, com sinais de desconforto respiratório, TEC acima de 4 segundos, sudorese
pegajosa, irritabilidade ou letargia, ainda, palidez e moteamento da pele
(depressível ao toque).
86
Doença diarréica aguda em área indígena
○
○
○
Clínica da doença diarréica aguda
○
TABEL A
○
○
1
APRES ENTAÇÃO
CLÍNICA DE DES IDRATAÇÃO
DDA LEVE
sinais clínico s discreto s, bo a interação co m o meio
D D A M O D ERAD A
sinais clínico s evidentes, mantém a via o ral
DDA GRAVE
sinais clínicos pronunciados, perdeu a via oral
Havendo estimado o grau de perda hídrica torna-se fundamental investigar a presença de infecção bacteriana (invasiva ou não).
A intensidade da apresentação com curta evolução e rápida deterioração do estado geral, a febre elevada (acima de 39ºC) e a presença clínica
de fezes muco-pio-sanguinolentas; todos estes sinais, em conjunto “ou
não”, são indicadores confiáveis de infecção bacteriana primária ou oportunista e requerem antibiótico-terapia.
Há uma situação conflitante que se expressa nos casos de suposta
colite amebiana, uma vez que estes facilmente se apresentam como colites
bacterianas invasivas e a distinção clínica é muito sutil entre um e outro.
Na maioria das situações, as colites amebianas se anunciam com febre baixa e bom estado geral; no entanto, há exceções, principalmente se
uma infecção bacteriana oportunista se instala. Nestas situações sugerimos
optar pelo tratamento de ambos os agentes etiológicos.
É importante não esquecermos o cenário de atuação do profissional de saúde.
Em grande parte do território indígena do alto rio Negro, não há hospitais próximos e a remoção do paciente envolve um longo tempo de transporte, superior à 12 horas, período no qual se dará o óbito ou a melhora;
portanto, a resolução terá de ser ofertada longe de recursos laboratoriais.
Tratamento
O sustentáculo da abordagem terapêutica de qualquer doença
diarréica aguda é a hidratação, uma vez que a imensa maioria dos casos é
auto-limitada, dentro de 7 a 14 dias.
Segundo normas da OMS, optamos pelos 3 planos de abordagem,
universalmente empregados em saúde primária, ao redor do globo.
87
Ações em saúde indígena amazônica
• Plano A (DDA leve):
Não há sinais de desidratação ou há desidratação leve de difícil afirmação clínica.
A terapêutica se resume à oferta livre de líquidos quaisquer, inclusive
o soro de rehidratação oral (SRO).
É fundamental ensinar o preparo do SRO na prática, uma vez que não há
recipientes para medir 1 litro exato de água (vide aspectos antropológicos).
Opta-se pelo recipiente doméstico que comporte 1 litro, faz-se uma
marca no mesmo e procede-se o preparo para que todos os membros da
família apreciem e entendam o método, inclusive os homens (sendo sociedades patriarcais, mesmo que eles não cuidem diretamente dos infantes,
exercem forte elemento de cobrança frente às mulheres).
Um esquema prático é ofertar 10ml/ kg de peso corporal em SRO
após cada episódio de diarréia ou vômito.
É fundamental estimular o aleitamento materno e não suspender os
alimentos sólidos.
• Plano B (DDA moderada):
Há sinais clínicos de desidratação evidentes, porém mantém a via
oral e a interação com o meio.
A perda líquida estimada sugere desidratação moderada.
A terapêutica se resume à TROA (terapia de rehidratação oral assistida), que consiste em ofertar SRO num cálculo aproximado de 100ml/kg
de peso, para crianças de até 2 anos, num período de 3-4 horas.
Em outras faixas etárias sugerimos o cálculo de 50ml/kg de peso.
A oferta deve ser lenta e continuada, preferentemente com uma seringa sem agulha, acoplada num catheter feito de silicone (escalpo de
“butterfly”, sem a agulha).
A apresentação de vômitos sugere oferta muito acelerada, uma vez
que a hemese acontece por gastro-paresia (pouca motilidade de esvaziamento gástrico), comum às gastro-enterites.
Um importante sinal de sucesso da terapêutica TROA é a apresentação de
diurese; portanto a criança deve ser mantida nua e aquecida durante a rehidratação.
Duas micções claras traduzem bom parâmetro para sucesso da terapia de rehidratação.
88
Doença diarréica aguda em área indígena
• Plano C (DDA severa):
A apresentação clínica é de desidratação grave, sem via oral.
A terapêutica deverá ser invasiva ou por uso de sonda naso-gástrica
ou por venóclise.
Sugerimos, sempre que possível, a punção venosa periférica, uma vez
que assegura a infusão e oferta de líquidos sem a possibilidade de hemese.
Outra alternativa é a punção intra-ossea (crista ilíaca ântero-superior).
Muitas vezes a punção jugular externa com gelco é um bom recurso,
principalmente em crianças pequenas, nas quais um trendelemburg (inclinação dos membros inferiores acima do nível do tórax), é facilmente aplicável, tornando a punção venosa mais fácil.
O cálculo de reposição hídrica deverá ser o de 50 ml/kg/hr, independente de faixa etária, em gotejo rápido ou à correr. O gotejo deve ser
continuado por mais tempo até se obter diurese, quando então segue-se o
cálculo de 100ml/kg /dia, de infusão, até assegurar a via oral e seguir a
reposição com TROA.
Com a melhora do quadro pode-se progressivamente reduzir a velocidade de infusão e aumentar a oferta oral.
Quando o gotejamento for reduzido à metade do cálculo estabelecido
e não houver mais sinais de desidratação, a via parenteral pode ser suspensa.
Em idosos, se houver doença cardio-vascular, as infusões devem
ser continuamente monitoradas por ausculta das bases pulmonares, à fim
de que se evite um edema agudo de pulmão, por sobrecarga hídrica.
Repetimos que a presença da diurese é o melhor parâmetro para se
adequar a fluidoterapia, sempre.
A falta de diurese nas primeiras 3 horas de infusão nos alerta para a
presença de insuficiência renal orgânica aguda (situação pouco freqüente) e
devemos considerar o uso de diuréticos de alça (furosemide 1mg/kg) e
remoção para um centro diagnóstico.
Sugerimos o uso de soro fisiológico até a obtenção da diurese, quando, então, opta-se por ringer lactato (uma vez que este tem potássio em
sua constituição).
Nesta estratégia o uso de anti-heméticos (metoclopramida, em crianças e prometazina, em adultos) é válido, preferentemente, por via parenteral.
89
Ações em saúde indígena amazônica
Havendo suspeita de quadro bacteriano, sugerimos o uso de
gentamicina 6mg/kg/dia (dose única diária até 1 ano) por 7 dias, após revertido o quadro de perda hídrica nas primeiras 4 horas.
○
○
○
Planos de abordagem da DDA, segundo a OMS.
○
TABEL A
○
○
2
ES TRATÉGIA
CONDUTA
P lano A
o fertar líquido s, fo mentar a amamentação materna
P lano B
o fertar SRO, mo nito rado , co m o uso de seringa e catheter*
P lano C
hidratação com SNG ou venóclise*
*possível associação de terapia com antibióticos
Para os demais casos de apresentação clínica mais tênue que se suspeita de infecção bacteriana, sugerimos o uso de sulfametoxazol-trimetoprima
1ml/kg/dia, 12/12 horas, por via oral, acima da idade de 6 semanas (ampicilina
0,5ml/kg/dia, 6/6horas, para os menores de 1 mês e meio de vida); outra
alternativa é o ciprofloxacin 20mg/kg/dia,VO, por 7 dias.
Havendo a suspeita de amebíase, sugerimos o metronidazol 50mg/
kg/dia,VO, dividido em 12/12 horas por 7-10 dias.
É comum a opção de ambos os esquemas, conjuntamente.
○
○
○
Antibióticos comumente usados em quadros diarreicos invasivos.
○
TABEL A
○
○
3
DROGA
POS OLOGIA
Gentamicina
6mg/ kg/ dia, IV-IM,q8*, po r 7 dias
Sulfameto x azo l-trimeto prima
TMP.10mg/ kg/ dia, SMX.50mg/ kg/ dia,q12*,VO,7 dias
Ampicilina
50mg/kg/dia,q6*,IV,VO,por 7 dias
Cipro flo x acin
20-30mg/kg/dia,q12*,VO, por 7 dias
Metro nidazo l (amebiasis)
50mg/kg/dia,q12*, IV,VO, por 7 dias
*q: período em horas entre as doses
90
Doença diarréica aguda em área indígena
Considerações finais
Por muito tempo considerou-se as doenças diarréicas agudas a
maior “causa mortis” em áreas indígenas amazônicas.
Não é verdade.
As pneumonias assumem este destaque, apesar das diarréias serem
extremamente freqüentes.
Estas posições acadêmicas, teóricas, distantes da verdade, ainda dirigem os destinos destes povos que só agora, no início do século 21, começam a receber atenção digna de uma especialidade médica.
O universo de valores e suas peculiaridades nos mostram quão grande é o desafio de fazer dois mundos se comunicarem e ir de encontro à um
objetivo comum: uma qualidade de vida melhor.
Tentar resolver uma simples diarréia às vezes parece uma tarefa
hercúlea, porém viável, sem que se estabeleça um confronto de valores.
Os ganhos já se anunciam.
Escrever um capítulo que trate de coisa tão simples e elementar só
nos prova uma triste verdade... poucos o sabem fazer (de outra forma o
capítulo seria dispensável).
Os segredos da medicina básica primária perdem em elegância e
importância para um país que se anuncia preocupado em morar na França,
Finlândia, Estocolmo, enquanto sua solução se esconde no amparo dos
desvalidos, na atenção do excluído, no elementar do elementar do elementar... no mínimo de nós mesmos!
Referências bibliográficas
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Exame Clínico. Consulta rápida,1ª ed., artes médicas, Porto Alegre, 1999.
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Ações em saúde indígena amazônica
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92
8
Ações em Saúde Indígena Amazônica: O Modelo do Alto Rio Negro
FOIRN • São Gabriel da Cachoeira • 2006
Capítulo 8, pp. 89 - 100
Infecção respiratória
aguda em área indígena
Oscar Espellet Soares
Médico cirurgião-geral da
Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro – FOIRN
Acácio Siqueira
Médico Pediatra
Introdução
As doenças respiratórias agudas constituem as principais causas de
óbito em área indígena no alto rio Negro, Amazonas .
Da população indígena geral, os extremos etários são os mais susceptíveis (crianças abaixo de 2 anos e adultos acima de 50 anos) e a presença de algum grau de desnutrição subjacente é freqüente e um fator agravante na maioria dos casos.
A abordagem sindrômica é o único recurso disponível para aqueles
que assistem ao paciente com infecção respiratória aguda (IRA), em áreas
remotas da floresta, do mesmo modo, a padronização de condutas é o
único recurso terapêutico aplicável à estas situações, uma vez que nem
sempre o profissional estará presente no local e muito se fará por assistência via radiofonia junto ao agente indígena de saúde (AIS) local.
Aspectos antropológicos
É aspecto comum às várias etnias do alto rio Negro, a concepção
que o indivíduo somente se completa ao longo dos dois primeiros anos de
vida e, idém, o aspecto reverso da questão no que tange aos idosos.
A morte nestes grupos etários é melhor compreendida e aceita que
na cultura ocidental; portanto é comum não serem reportados casos graves
de IRA nos extremos do ciclo vital, além de ser também muito comum a
oposição dos pais ou responsáveis frente à necessidade de remoção do
paciente para um hospital.
93
Ações em saúde indígena amazônica
Lembramos que “hospital” é local de morte, devido aos casos graves
para lá serem transportados, que não mais retornam, e a morte longe dos
seus é pouco aceita ou compreendida, além do que há muitas outras razões
de recusa indigena sobre isso, por exemplo: alimentação não adequada ao
diagnóstico nativo da doença, preconceitos por parte do pessoal médico e
para-médico, impossibilidade de ficar com a família, desconhecimento de
um modelo explicativo para os procedimentos necessários, desconfiança
com relação ao estado físico das mulheres que os assistem uma vez que a
menstruação e a gestação são entendidos como elementos de agravo no
processo de cura, falta de um benzedor que recite os mitos de melhora e
cura, presença de membros de povos inimigos no mesmo recinto, uma vez
tratando-se em enfermarias conjuntas etc. (D. Buchillet, communicação
pessoal, dezembro de 2004).
Os povos indígenas do Rio Negro concebem a doença e a cura de
forma distinta a do mundo ocidental. Por isso, é fundamental atentarmos
para uma melhora da comunicação e daí aceitabilidade da proposta hospitalar quando necessária; no entanto, o sistema SUS não oferece este preparo antropológico para abordar o paciente indígena.
Como exemplo desta complexidade, as três famílias lingüisticas do
alto rio Negro, que abrangem 22 distintas etnias, têm em comum o uso da
palavra como elemento curativo; isto é, no ritual de benzimento há uma
linha narrativa cuidadosa com o uso de palavras pronunciadas e seus referidos significados e estes elementos dialéticos são de profunda valia e conforto, fato que poderia favorecer para que laços de confiança se estabeleçam entre as duas distintas propostas médicas, a ocidental e a indígena,
sem comprometimento das partes, apenas ganho; no entanto, a simples
presença dos benzedores em ambiente hospitalar SUS, não é permitida,
alegando distúrbio da ordem de trabalho ocidental.
Quase que invariavelmente haverá um benzimento do paciente indígena antes, concomitante ou depois da abordagem médica ocidental.
Não recomendamos o conflito com estas posições, uma vez que agravam abordagens futuras por desrespeito cultural e a rejeição ao ambiente
hospitalar venha a ser cada vez maior.
Fisiopatologia
As IRA, em área indígena, se resumem basicamente àquelas virais e
bacterianas, geralmente iniciando virais e rapidamente se apondo uma infec94
Infecção respiratória aguda em área indígena
ção bacteriana oportunista, uma vez que a maioria dos casos se acompanham
de desnutrição e isto entende-se como algum grau de imuno-deficiência.
As infecções fúngicas geralmente são quadros crônicos ou sub-agudos e não serão abordadas neste capítulo.
Há muito é sabido que o aspecto nutricional repercute no sistema
imunológico sendo este, inclusive, um dos parâmetros de quantificação de deficiência kilo-calórica; portanto, maior a desnutrição, maiores as chances de infecção.
Segundo dados da OMS, todo neonato de baixo peso, isto é, peso
de nascimento inferior à 2500g, representa uma chance 40% maior de
desenvolver IRA grave até o segundo ano de vida decorrente de imunodeficiência, seja por retardo de desenvolvimento intra-uterino, seja por desnutrição neonatal; portanto, traduzem população de alto risco e requerem
visitas e monitoramento acurados, uma vez que são fortes candidatos à
complicações; no entanto, devemos considerar que as cur vas
antropomêtricas de normalidade nutricional ainda não são plotadas para
população indígena ameríndia.
Como análise geral, as infecções de vias altas são as mais freqüentes,
principalmente em população indígena pediátrica; no entanto, não traduzem gravidade, uma vez que dificilmente complicam. Já aquelas infecções
das vias baixas representam o foco de atenção principal e quase invariavelmente se acompanham de aumento da freqüência respiratória para compensar áreas mal oxigenadas do parênquima pulmonar, seja por secreção
nos brônquios, seja por consolidação; portanto, este sinal vital é a pedra
fundamental para o diagnóstico sindrômico aqui proposto.
A hipóxia é um dos principais mecanismos fisiopatológicos para a
compreensão da clínica dos casos graves.
A maioria dos sinais físicos são decorrentes de mecanismos que tentam compensar o baixo aporte de oxigênio ao cérebro, daí nos atermos à
estes dados como referências clínicas, uma vez que não se dispõe de exames complementares.
Entre os sinais clínicos fundamentais, lembramos que o uso de musculatura acessória para ventilação é facilmente detectado à inspeção e traduz importante sinal de agravo uma vez que o esforço muscular leva à acidose láctica,
que se sobrepõe à acidose respiratória e fadiga da mecânica ventilatória,
enfatizando que a musculatura envolvida na ventilação acompanha o grau de
desnutrição do paciente como um todo, isto é, costuma se apresentar com
baixa reserva funcional frente ao esforço intenso e continuado.
95
Ações em saúde indígena amazônica
A baixa oxigenação cerebral leva o paciente, progressivamente, a um
quadro de dissociação com o meio (letargia ou agitação) que culmina com a
perda de via oral, terminando com o óbito que se dá ou por sépsis ou por
insuficiência respiratória; portanto, cobertura antibiótica adequada e aporte
de oxigênio são as bases do sucesso terapêutico
Teoria das 12 horas
A experiência em área indígena no alto rio Negro nos ensina
que quando se instala um caso de gravidade, frente à infecção descontrolada ou por perda ventilatória, as próximas 12 horas, após a
abordagem inicial, serão cruciais para o desfecho: ou apresentará
melhora ou se anunciará o óbito, dificilmente estes casos se estabilizam, uma vez que estamos em área indígena sem suporte hospitalar
adequado; portanto os casos de extrema gravidade raramente são evacuados com rapidez, lembrando que uma remoção rápida geralmente
requer um período médio de 24 horas para se estabelecer devido às
peculiaridades geográficas da floresta amazônica.
À esta postura damos o nome de “teoria das 12 horas” e se aplica à
imensa maioria dos casos que configurem gravidade, independente da entidade nosológica em questão.
Clínica
Sempre que se chega em área indígena é preciso ter os ouvidos
abertos para todo caso tossidor ser examinado.
É fundamental indagar sobre os neonatos e os idosos, uma vez que
estes muitas vezes são omitidos da abordagem médica (vide, aspectos antropológicos).
O diagnóstico sindrômico se faz com obtenção de dados de história,
como idade, período de doença e aparente agravo ou melhora, manutenção da via oral e avaliação de sinais clínicos como a medição dos 4 sinais
vitais, inspeção e ausculta da caixa toráxica e exame das extremidades em
busca de cianose.
A freqüência ventilatória é a pedra fundamental para o diagnóstico
dos casos graves, também o uso de musculatura acessória, frente a uma
história de quadro gripal.
96
Infecção respiratória aguda em área indígena
São fisiológicas as seguintes freqüências respiratórias:
○
○
○
Freqüências respirapórias.
○
TABEL A
○
○
1
IDADE
FREQÜÊNCIA NORMAL
TAQUIPNEIA
Crianças até 1 ano
20-50cpm*
>60 cpm*
Crianças até 5 ano s
20-30cpm
>50 cpm
Crianças até 12 ano s
15-20cpm
>40 cpm
Acima de 12 ano s e adulto s
15-20cpm
> 30 cpm
*cpm: ciclos respiratórios por minuto
Batimento das asas do nariz, afundamento da fúrcula esternal e a
tiragem inter-costal são importantes dados de inspeção (não é válido inspecionar a arcada costal junto ao rebordo costo-abdominal em crianças menores de 1 ano; é fisiológica uma pequena retração inspiratória).
Sugerimos o boletim de Silverman-Andersen, que melhor avalia o
quadro respiratório de lactentes:
○
Pontuação de Silverman-Andersen
○
○
○
○
○
TABEL A
○
○
2
PONTOS SINCRONIA
TORAXABDOMEM
TIRAGEM
RETRAÇÃO BATIMENTO GEMIDO
INTERCOSTAL XIFÓIDEA DAS ASAS
DO NARIZ
0
Sincrô nico
au se nte
au se n te
au se n te
au se n te
1
Assincro nia
mo derada
mo derada
mo derada
mo derada
com
estetoscópio
2
Assincro nia
acentuada
acentuada
acentuada
acentuada
sem
estetoscópio
Se a pontuação atingir 5 ou mais pontos, devemos considerar grave
dificuldade ventilatória.
A ausculta pulmonar nem sempre é rica, principalmente em crianças
pequenas, desidratadas e nos casos de pneumonia inter-lobar; no entanto, se
presente estertoração é importante sinal de envolvimento bronco-pulmonar.
97
Ações em saúde indígena amazônica
Cabe aqui a observação que a obtenção de todos estes dados não
pode ser feita com a criança chorando. Sempre que possível examinar a
criança dormindo no colo dos pais, pode-se dar o diafragma do estetoscópio
para que o pai o posicione sobre o tórax da criança.
Gradação clínica:
Em área indígena é prática a classificação das IRA em três gradações
(leve, moderada e grave) porque permite direcionar a padronização de condutas terapêuticas:
• Ira leve:
Boletim de Silverman-Andersen não se aplica.
Apresenta-se como aquela IRA sem estertoração nem sinais de sofrimento ventilatório, isto é, sem aumento de freqüência e uso de musculatura acessória.
A febre costuma ser a queixa mais freqüente junto com os sintomas
gripais das vias altas.
Importante salientar que a presença de estridor ou cornagem (sons
de intensidade elevada emitidos nas vias altas durante a inspiração obstruída),
ainda que leves, merecem especial atenção pois a orofaringe não deve ser
examinada com abaixador de língua devido o risco de edema de glote e
obstrução total da via aérea.
É fundamental a otoscopia em população pediátrica, devido à coexistência de quadro gripal e otite média aguda .
• Ira moderada:
Para os lactentes, boletim de Silverman-Andersen de até 4 pontos (vide acima).
Aquela IRA com estertoração, febre e “discreta” alteração de freqüência e musculatura acessória, isto é, no limite da normalidade (borderline).
Evidentemente, estes casos requerem forte subjetividade para
gradação e serão melhor avaliados por aqueles mais experientes.
Há constatação de secreção nas vias aéreas inferiores, porém mantém via oral e boa interação com o meio.
98
Infecção respiratória aguda em área indígena
• Ira grave:
Para os lactentes, boletim de Silverman-Andersen com 5 ou mais
pontos (vide acima).
Aquela IRA que se apresenta com evidente aumento de freqüência e
sofrimento ventilatório, podendo haver, ou não, estertoração presente.
A febre não é um bom parâmetro desde que nos extremos etários ela
costuma não ser expressiva.
É comum ocorrerem alterações do estado mental e alguma dificuldade para manter a via oral.
○
○
○
Gradação clínica
○
TABEL A
○
○
3
GRAU
CLÍNICA
IRA LEVE
aco metimento de vias aéreas superio res, FR no rmal
IR A M O D E R A D A
esterto ração de vias aéreas inferio res, FR bo rderline
IRA GRAVE
uso de musculatura acessó ria, tiragem, FR alterada
Estes três níveis de intensidade resumem, praticamente, todo o universo de pacientes em estado gripal, em área indígena amazônica.
À título de complementação lembramos que o paciente adulto deve
sempre ser examinado sentado e com especial atenção para “pequenos”
focos de estertoração na pneumonia lobar, principalmente em velhos.
À medida em que o quadro de IRA se acentua, a presença de cianose
de extremidades faz-se evidente e traduz baixa saturação da hemoglobina;
é sinal tardio e de extrema gravidade, assim como a perda da via oral.
Alterações psico-motoras se anunciam em casos severos, lembrando
que nos idosos a hipóxia leva à agitação e, na criança, à letargia e gemência.
É muito freqüente, nos casos graves, haver algum grau de desidratação, seja por perda hídrica nas vias aéreas, como perda insensível, ou por diarréia concomitante e perda da via oral (muito comum
em menores de 1 ano).
Como finalização é importante citar que todo o caso gripal com aumento de freqüência ventilatória abaixo dos 2 meses de idade traduz gravi99
Ações em saúde indígena amazônica
dade e grande probabilidade de óbito, assim como todo o caso suspeito de
bronquiolite aguda (os quais podem se anunciar como IRA grave).
Tratamento
A classificação das IRA em leve, moderada e grave nos permite três
modalidades de tratamento.
• Ira leve
Para os casos de IRA leve, usamos apenas o tratamento sintomático com anti-térmicos e solução fisiológica nasal, raramente usa-se antibiótico, exceto quando o paciente presente coleções purulentas nas vias
altas (otite média, sinusite, faringite).
• Ira moderada
Nos casos de IRA moderada, indicamos o uso de anti-térmicos e
mucolíticos (ambroxol) quando a apresentação é recente e sugestiva de
viral, porém, o uso de um antibiótico é quase que invariável, desde que os
dados de história reportados em área indígena são pouco confiáveis e não
se tem, com precisão, o tempo de evolução do quadro agudo.
Para tal, sugerimos 3 esquemas básicos:
A - Crianças abaixo de 1 ano:
300.000UI de Penicilina Benzatina IM com 100.000UI de Procaína
IM, seguidos de doses repetidas de Procaína à cada 12 horas por um total
de 4 doses; este esquema permite que se atinja níveis plasmáticos adequados nas primeiras 48 horas (Procaína) e mantidos por 7 dias (Benzatina).
Se não ocorrer melhora ao final da 4º dose de Procaína, estender o
esquema por mais 2 doses .
Não ocorrendo melhora, reconsiderar o agente etiológico e considerar o tratamento de IRA grave.
B - Crianças acima de 1 ano:
Amoxicilina 50mg/kg/dia, ou 1ml/kg/dia (suspensão de 250mg/5ml),
VO, ou dividida em posologia de 8/8 horas, ou, acrescido 15% da dose
diária, dividida em 12/12 horas, ambos por 7 dias.
100
Infecção respiratória aguda em área indígena
É um esquema de resposta mais lenta que o de acima, porém de
alta resolutividade.
Como segunda escolha sugerimos Trimetoprim-Sulfametoxazol VO,
acima da idade de 1 mês e meio.
Aqui fazemos uma observação: Quando ocorre falha dos esquemas
acima citados é importante considerar o diagnóstico de Mycoplasma e entrar
com Azitromicina 10mg/kg/dia VO, por 3 dias, como droga de escolha.
Em lactente tossidor afebril, nascido de parto vaginal, que a mãe
apresentou algum corrimento durante a gestação, sempre pensar em pneumonia por Chlamidya trachomatis.
C - Adultos:
Penicilina procaína 400.000 UI,IM, 12/12hrs., por 7 dias ou Amoxicilina
50 mg/kg/dia (até dose máxima de 1,5g/dia), VO, 8/8hrs, por 7 dias.
O uso de bronco-dilatadores e mucolíticos pode se fazer necessário;
no entanto, diante da baixa complacência posológica, pode comprometer a
adesão ao antibiótico, portanto, a comunicação deve ser bem trabalhada
para correto uso da medicação.
• Ira grave:
Quando estivermos frente à um caso de IRA grave indicamos, sempre que possível, independente da idade, Ceftriaxone 30-50mg/kg/dia, em
dose única diária por 3 dias. A via pode ser IV ou IM e dependerá do
diluente empregado (lidocaína 2% quando usada a via IM).
Sempre que disponível devemos fornecer oxigênio 100%, na vazão
de 1 litro por minuto, úmido, em catheter nasal, posicionado na nasofaringe, até obtermos melhora do quadro.
Um catheter nasal pode ser improvisado com uma cânula de escalpo
(butterfly), sem a agulha e medida da asa nasal até o lóbulo da orelha.
É de extrema necessidade tratar os bronco-espasmos (sibilância)
que por ventura estejam associados à IRA; sugerimos a nebulização com
fenoterol e soro fisiológico.
Fluidoterapia é indicada quando há sinais de desidratação
concomitante.
101
Ações em saúde indígena amazônica
○
○
○
Tratamento da IRA
○
TABEL A
○
○
4
GRAU
TRATAMENTO
IRA LEVE
tratamento sinto mático *
IR A M O D E R A D A
co nsiderar antibió tico terapia co m amo x icilina o u penicilina
IRA GRAVE
ceftriax o ne e o x igenio terapia, co nsiderar hidratação
*Antibióticos somente se localizar foco bacteriano evidente (otite, sinusite)
Lembramos que quadros virais podem se apresentar como qualquer
modalidade de intensidade acima descritas; no entanto, na falta de recursos
diagnósticos mais apurados, muitos receberão tratamento indevido com
antibióticos, e parece conduta bem razoável e válida quando se trabalha
com populações de elevado índice de mortalidade.
Os quadros virais costumam ser aqueles que se apresentam em curta
evolução dos sintomas até o atendimento se estabelecer e tendem à ser
caracterizados como IRA leve, sem esquecer que crianças abaixo dos
3 anos podem desenvolver bronquiolite e quadros de IRA viral grave.
Todo o caso entendido como viral, de intensidade moderada, requer monitoramento “à posteriori”, ou por radiofonia, ou por nova visita em curto prazo.
É fundamental entendermos que são medidas práticas que reduzem
a mortalidade significativamente, mesmo frente ao erro diagnóstico do agente
etiológico ou mesmo com o uso inadequado da antibiótico-terapia.
Considerações finais
Frente a culturas distintas da ocidental, que direciona a nossa ética e
moral, a medicina ocidental ortodoxa, em área indígena, funciona pouco ou
não funciona.
É fundamental ocorrerem adaptações dos métodos para que se atinjam resultados com menor índice de morbi-mortalidade nas áreas indígenas
do alto rio Negro e sendo as IRA grandes responsáveis pela perda de vidas
nestes grupos populacionais é mister o estudo de melhoria de padronizações de condutas.
102
Infecção respiratória aguda em área indígena
Este foi o nosso propósito.
A capacitação de pessoal local (agentes indígenas de saúde) para o
diagnóstico sindrômico e a aplicação de medidas terapêuticas adequadas
(inclusive aquelas invasivas), na ausência de um profissional da saúde, parece ser o modelo mais adequado e funcional.
O sistema de saúde indígena implantado há mais de 30 anos no
parque do Xingu, apostou neste modelo e hoje apresenta índices aceitáveis
de mortalidade dentro do cenário brasileiro.
Nunca é tarde para iniciarmos.
Sistemas paternalisantes em demasia (verticais) não resolvem e só
atingem resultados temporários e momentâneos, deixando poucas lições.
Diante deste cenário de grandes dificuldades técnicas, onde culturas distintas co-habitam, valores entram em conflito, grandes distâncias à percorrer, falta
de ambiente hospitalar adequado e dificuldade de locomoção (principalmente
quando se tem pressa), nos parece óbvia a máxima afirmação dos grandes
epidemiologistas que vivenciaram os confins do mundo e trataram dos excluídos:
“Torne-se desnecessário o mais rápido possível”!
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103
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104
9
Ações em Saúde Indígena Amazônica: O Modelo do Alto Rio Negro
FOIRN • São Gabriel da Cachoeira • 2006
Capítulo 9, pp. 101 - 116
Ofidismo
em área indígena
Oscar Espellet Soares
Médico cirurgião-geral da
Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro – FOIRN
Colaboração: Daniel Fernandes da Silva
Herpetólogo
Introdução
A Amazônia concentra, provavelmente, a maior densidade de ofídios
das Américas, sendo lógica a conclusão epidemiológica de um altíssimo
índice de acidentes com estes animais e, decorrente de peculiaridades geográficas e antropológicas, um elevado índice de letalidade.
Estes dados ainda encontram-se sub-notificados nos levantamentos
epidemiológicos dos órgãos competentes referentes ao alto rio Negro,
Amazonas, e, provavelmente, o mesmo se repita para as demais regiões
amazônicas de terras indígenas demarcadas.
A compreensão do comportamento destes animais, a visão xamãnica
indígena e suas representações, o entendimento da fisiopatologia das peçonhas e seu tratamento traduzem a finalidade deste capítulo que enfatiza
a adequada resolução do acidente ofídico amazônico “in locus” à grande
distância de um hospital.
Ofídios
Os ofídios não peçonhentos traduzem um baixo índice de acidentes.
Tais serpentes pertencem às famílias Boidae e, principalmente Colubridae,
sendo que com exceção de alguns gêneros, tais como Philodryas, Clelia,
entre outros, os acidentes têm pouca repercussão clínica (pequenas perfurações e infecção local), daí não serem o tema central deste assunto.
Os acidentes ofídicos peçonhentos na floresta amazônica equatorial
do alto rio Negro, no extremo noroeste do Brasil, se resumem à família
105
Ações em saúde indígena amazônica
Viperidae (principalmente gêneros Lachesis e Bothrops) e à família Elapidae
(principalmente gênero Micrurus).
O gênero Crotalus (cascavéis) não habita a região.
A imensa maioria dos casos se resume ao gênero Bothrops (jararacas),
por serem serpentes de fácil adaptação ao ambiente modificado pelo homem e por terem comportamento agressivo quando se sentem ameaçadas.
Estas serpentes respondem por 90-95% dos acidentes. Possuem um orifício entre o olho e a narina, chamado fosseta loreal, presas anteriores articuladas (dentição solenóglifa), e cauda lisa.
As espécies Bothrops atrox e Bothrops brazili parecem assumir quase 100% dos acidentes deste gênero específico nos afluentes do alto rio
Negro (o que não se repete na extensão do território brasileiro).
Em torno de 5-8% dos casos de acidente são causados pelo gênero Lachesis
(surucucus), que são animais terrestres, de grande porte (podem atingir cerca de
3,5m de comprimento) e que habitam primordialmente a selva fechada, não alterada pelo homem, sendo que os encontros com pessoas são menos freqüentes.
Este gênero se diferencia de Bothrops, entre outras características, por apresentar
as escamas da ponta da cauda eriçada e as escamas dorsais tuberculadas. Na
região do alto rio Negro este gênero é representado pela espécie Lachesis muta .
A família Elapidae traduz apenas 1% dos acidentes, uma vez que
comporta serpentes de pequeno a médio porte, pouco agressivas, popularmente conhecidas como “cobras corais”. No alto rio Negro, alguns destes
ofídios (gênero Leptomicrurus) têm coloração marrom escura, “sem os anéis”
coloridos característicos de grande parte das serpentes do gênero Micrurus.
Os elapídeos têm cabeça arredondada, pouco destacada do corpo, sem
fosseta loreal (apenas escama loreal), presas anteriores não-articuladas (dentição proteróglifa) e cauda curta e arredondada.
As espécies Micrurus surinamensis e Micrurus spixi, parecem ser, segundo levantamento preliminar, as mais freqüentes no alto rio Negro, Amazonas.
Todos estes ofídios aumentam sua atividade durante o final do período de verão amazônico, sendo que os encontros com humanos neste
período são mais freqüentes.
Aspectos antropológicos
Muitas das bases conceituais da representação das serpentes no
imaginário cultural indígena são fundamentadas de igual maneira como
na cultura ocidental.
106
Ofidismo em área indígena
Mesmo no cristianismo e islamismo, as cobras assumem o aspecto
negativo de insurgência do diabo e daí a expulsão do homem do paraíso.
No universo indígena do alto rio Negro, a harmonia do homem e seu
meio sofre a ameaça de domínio das serpentes e conseqüente mundo de
sofrimentos e penúria.
Em suma, mesmo na cultura ameríndia, as cobras assumem destaque
contrário ao benévolo e aceitável; no entanto, nem só a figura agressiva e
traiçoeira acompanha a mitologia destes animais, uma vez que, mesmo na
cultura grega, a serpente é representativa de cura (Esculápio), gerando uma
dualidade representativa do bem e do mau.
Infelizmente predominam os aspectos negativos.
No imaginário mitológico indígena do alto rio Negro as serpentes assumem um papel importantíssimo na explicação da origem do mundo e suas
doenças e curas, daí o tratamento ocidental de grande parte dos acidentes ser
tardio, quase sempre após todas as tentativas de cura próprias de cada etnia.
A medicina milenar indígena dos povos do alto rio Negro mantém-se
viva para tratar de seus acidentes ofídicos, com o uso de ervas e elementos
místicos ainda preservados.
Alguns tabus ainda imperam fortemente em certos grupos indígenas,
como o afastamento das mulheres sexualmente ativas frente ao acidentado
(aquele que foi mordido de jararaca não deve nem pode ser em contato ou
simplesmente olhar para uma mulher menstruada ou grávida; seu estado
pode também piorar se estiver em contato com uma mulher que acabou de
ter relação sexual), uso de dieta específica para a situação (por exemplo,
sem assado, pimenta etc.), tanto para o paciente como para aqueles que
compartilham do mesmo sangue; é o que os antropólogos chamam de “grupo
de substância”; geralmente, na concepção indígena, tudo o que aqueles
que participam do grupo de substância fazem ou comem pode piorar o
estado daquele que é mais vulnerável (D. Buchillet, communicação pessoal,
dezembro de 2004). E, sob hipótese alguma, a amputação encontrou espaço para consideração no tratamento indígena do ofidismo.
A ameaça de amputação é, em grande parte, responsável pela abordagem tardia da maioria dos casos por parte da medicina ocidental, salientando-se que, nas narrativas orais, a amputação nunca esteve presente como
forma de tratamento e sim como agressão e estigma de “incapacitado” para
obter alimento numa mata de difícil obtenção de recursos; portanto, um
ônus para a família e sociedade.
107
Ações em saúde indígena amazônica
A partir destas observações, conclui-se o porquê da grande resistência dos pacientes indígenas a se submeterem ao tratamento da medicina
ocidental, quase sempre hospitalar e sob normas do sistema SUS (sem
tempo ou dedicação às peculiaridades antropológicas acima descritas).
Conforme já foi salientado, a questão da alimentação nos hospitais
constitui um problema sério para os indígenas vitimas de acidentes ofidicos
assim como a do sexo do pessoal médico e para-médico já que o paciente
nunca sabe ao certo se aquela médica, enfermeira ou agente de saúde é
ou não menstruada ou grávida.
Apresentação clínica
É fundamental, diante do acidente ofídico, respondermos à pergunta: “há presença de peçonha?”
Devido à grande variedade de espécies amazônicas de serpentes, a
coleta de informações sobre o ofídio sem vê-lo é de pouca valia. Os indígenas
não classificam os ofídios por peçonhas ou gêneros e sim por seu padrão de
cores e desenhos, daí ocorrerem grandes confusões quando é trazida a informação de acidente por “jararaca” (não é informação confiável e suficiente),
uma vez que um grande número de serpentes não peçonhentas entram nesta
categoria. Além disso, os elapídeos com coloração escura podem ser confundidos com o gênero Bothrops. Um agravante é que a cabeça do ofídio quase
nunca é trazida junto ao pessoal da assistência médica aqui proposta.
Identificar o tipo de peçonha inoculada por sua apresentação clínica é,
infelizmente, o único recurso confiável para definir-se a conduta terapêutica.
• Clínica do acidente ofídico
Diante da informação de mordedura de ofídio a medição dos sinais
vitais é o primeiro passo, sempre!
Frente ao acidente “não peçonhento” a máxima queixa reportada é
dor, apenas, que raramente é progressiva e gradual, exceto após o quarto
ou quinto dia, quando ocorre celulite e abscesso.
Dificilmente será reportada como dor imediata e crescente sem momento de alívio, como ocorre em presença de veneno.
Geralmente a dor, nos acidentes não-peçonhentos, apresenta duas
fases: uma, decorrente do ferimento, de caráter passageiro; e outra, tardia,
decorrente de complicações infecciosas.
108
Ofidismo em área indígena
Por outro lado, na presença de peçonha, basicamente dois grupos de
toxinas estarão possivelmente envolvidos: as neurotoxinas e as toxinas proteolíticas.
A - Clínica da toxina neurotóxica
A família Elapidae, o grupo das corais verdadeiras, é representada principalmente por ofídios do gênero Micrurus, com peçonha de ação neurotóxica.
No acidente elapídico a apresentação clínica é a da síndrome
miastênica, e a queixa proeminente será cansaço (fraqueza muscular) e dificuldade visual (ptose palpebral e diplopia), ambos com rápida progressão
e pouca dor (miotoxina).
Sialorréia também é reportada.
Geralmente o paciente apresentará parestesia no membro afetado.
Não há edema, sangramento ou história arrastada!
Os sinais vitais apresentam pouca alteração, nos momentos iniciais,
progredindo rapidamente para falência ventilatória.
A apresentação é desastrosa, rápida e com forte potencial de fatalidade, em questão de poucas horas, apenas.
Fisiopatologia da toxina neurotóxica
A fácies neurotóxica (dificuldade de abertura dos olhos) é característica elapídica e a morte se dá por insuficiência ventilatória durante o período de circulação da neurotoxina (em média 24 hs.) que bloqueia a placa
motora da musculatura ventilatória (predominantemente ação pós-sináptica,
impedindo a acetil-colina de se ligar aos receptores colinérgicos da placa
motora; no entanto, algumas espécies têm toxina pré-sináptica, que bloqueia a liberação da acetil-colina).
Sempre é considerado um acidente grave devido ao potencial de letalidade.
B - Clínica da toxina inflamatoria aguda
Os gêneros Bothrops e Lachesis, grupo das jararacas e surucucus, é
representado por ofídios com peçonha, predominantemente, de ação
proteolítica (inflamatória aguda).
O acidente peçonhento inflamatório é caracterizado por dor intensa
e progressiva acompanhada de edema quase imediato à inoculação, estabelecendo seu grau de apresentação nas primeiras 12 horas do inóculo.
109
Ações em saúde indígena amazônica
A quantificação de toxina é a base da abordagem adequada e isto é
feito com a classificação clínica do local afetado, no ponto de inoculação.
O acidente de grau “leve” traduz pouca peçonha e apresenta apenas
edema limitado à região afetada pelas presas do animal e dor.
O acidente de grau “moderado” apresenta a adição do caráter ascendente ao edema distante do ponto de inoculação, isto é, um edema
maior e progressivo que invade áreas adjacentes ao ponto de inoculação,
num padrão crescente e extenso.
A dor é característica marcante dos acidentes botrópicos decorrente
da liberação de prostaglandinas, na área de lesão, e ação direta da peçonha
(botropjaracina) em terminações nervosas.
O acidente “grave” apresenta a adição de áreas de necrose, eritema,
equimose, bolhas e comprometimento da perfusão tecidual distal ao ponto de
inoculação, além de sangramento profuso, sistêmico e instabilidade hemodinâmica
com ou sem insuficiência renal, sugerimos aferir a hipotensão postural.
Nas três gradações do acidente botrópico podem estar presentes
alterações da coagulação, tanto laboratoriais como clínicas, por isto este
elemento clínico sozinho não serve de parâmetro para gradação da quantidade de toxina inoculada, exceto quando assume grande repercussão
hemodinâmica, como acontece no acidente grave.
Um simples teste clínico para detectar alterações de coagulação é
feito através da colocação de uma pequena amostra de sangue periférico
em um tubo de ensaio e aquecer na palma da mão por tempo suficiente até
evidenciar coagulação.
O tempo médio é de até 10 minutos sob condições de normalidade;
excedendo 30 minutos, é considerado sangue incoagulável.
A este teste damos o nome de “tempo de coagulação”, e serve apenas para medir a resolução da terapia antiveneno; portanto, deve ser estabelecido antes e após a soroterapia, como elemento de comparação.
Ocorrendo soroterapia em doses adequadas, o teste acusa melhora do
tempo de coagulação dentro de 6 a 12 horas após a infusão da anti-toxina.
O sangramento gengival é muito comum na maioria dos casos e se
traduz por impregnação achocolatada na implantação odôntico-gengival,
nem sempre apresentado como sangramento vivo.
Ao acidente laquético valem as mesmas considerações acima, uma vez
que a toxina tem ação muito similar, apesar de maior ação hemorrágica e com o
adendo de sintomas vagotônicos decorrentes da fração neurotóxica do veneno,
110
Ofidismo em área indígena
Foto: acervo DSEI/FOIRN
como vômitos, diarréia, cólicas abdominais, salivação, bradicardia e hipotensão
arterial; no entanto, apenas 15% dos casos reportam estes sintomas.
No demais, a fração proteolítica e coagulante do veneno o descreve
quase exatamente como o acidente botrópico.
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FIGURA
1
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Acidente ofídico de face
Fisiopatologia da Toxina Inflamatoria Aguda
É importante salientar que se trata de toxina proteolítica (flogística),
miotóxica, coagulante, hemorrágica e não neurotóxica e a fisiopatologia
desta se resume à liberação de citokinas e fosfolipídios teciduais e consumo
dos elementos da coagulação por ambas as vias, extrínseca e intrínseca.
Há forte consumo de fibrinogênio.
O ponto de inoculação é melhor entendido como ponto de “inflamação” tecidual e ativação dos noci-receptores por ação direta da toxina, daí
a dor e áreas de necrose e conseqüente infecção secundária.
O quadro flogístico evolutivo, e seu edema, pode ser
medido,circunferencialmente, com fita métrica, em pontos pre-determinados no membro afetado; medidas subsequentes devem ser feitas de 12 em
12 horas. Geralmente nas primeiras 24 hs. ele tende a aumentar e depois
há uma tendencia a estabilizar e diminuir se a terapia de soroterapia
heteróloga for adequada.
111
Ações em saúde indígena amazônica
O edema progressivo, resultado do intenso processo inflamatório,
pode levar à síndrome compartimental (o edema impede a passagem de
sangue arterial e retorno venoso, no membro afetado, por formação de um
compartimento retido por fáscia muscular) e agravo da situação dos tecidos
distais ao ponto de inoculação. Pressões intra-musculares acima de 30 mmHg
estabelecem o diagnóstico desta complicação; no entanto, nem sempre se
dispõe de manômetro para esta aferição diagnóstica, repousando na evidência clínica, apenas, esta afirmação de complicação (tempo de enchimento capilar da polpa digital, após compressão, superior à 3 segundos).
A ação hemorrágica do veneno se dá por provável lesão da lâmina
basal do endotélio da micro-vasculatura, levando à disrupção da integridade da rede vascular, tanto local, como sistemicamente.
Quando se estabelece intenso consumo dos elementos da coagulação, de pouco resolve a infusão de sangue ou plasma, se não interrompermos a liberação de mediadores inflamatórios teciduais com soro anti-ofídico
em quantidades adequadas e debridamento das áreas necróticas úmidas
(decorrentes da necrose rápida e progressiva).
De outra forma, rapidamente os elementos infundidos serão consumidos local e sistemicamente.
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Clínica do ofidismo do alto rio Negro
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TABEL A
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1
OFÍDIO
CLÍNICA
Co lubrídeo s (não
peço nhento s)
Do r no lo cal da mo rdedura*
Both rop s sp. (jararacas)
Do r, edema, necro se, alteraçõ es de co agulação *
Lach esi s mu ta (surucucus)
Dor, edema, necrose, alterações de coagulação pronunciadas,
sintomas vagotônicos*
Micrurus sp.
(corais verdadeiras)
Parestesias, síndro me miastênica, facies neuro tó x ica,
insuficiência ventilató ria*
*freqüente infecção no local da mordedura
Tratamento
Toda a mordedura de vertebrados carnívoros é considerada, no
mínimo, potencialmente infectada por flora mista (gram positivos, gram
negativos e anaeróbios).
112
Ofidismo em área indígena
O acidente ofídico não é exceção e pode requerer, em até 30% dos
casos, antibióticoterapia adequada para gramm negativos e anaeróbios (optamos por ciprofloxacino associado ao metronidazol, ou, então, cefoxitina
ou cefprozil, apenas), independente de haver peçonha ou não; no entanto,
a distinção entre processo inflamatório decorrente apenas da peçonha e
processo inflamatório decorrente de infecção, não é de fácil afirmação clínica, por isto sugerimos a aferição dos diâmetros subseqüentes à cada 12
horas, uma vez que na presença de infecção (geralmente após 48 hrs. do
inoculo)eles tendem a aumentar progressivamente.
É de vital importância a cobertura com VAT (vacina anti-tetânica),
nos indivíduos não vacinados.
Frente aos acidentes venenosos, antigas medidas como punção ao
redor da mordedura, sugar com a boca ou até mesmo o garroteamento do
membro afetado, são contra-indicadas e só agravam a lesão tecidual.
É válido comentar que medidas de garroteamento elevam os números de amputados frente aos casos de toxina proteolítica e, paradoxalmente, podem proteger aqueles casos de neurotoxina; no entanto, não há consenso literário e condenamos esta medida em área indígena.
É fundamental o repouso e a “pendência” do membro afetado abaixo
do nível cardíaco, com finalidade de diminuir a absorção da toxina e facilitar
o aporte arterial, além de conduzir à melhora da dor.
Não há afirmação na literatura quanto ao tempo de atuação das peçonhas
após inoculação, uma vez que inúmeras variáveis estão envolvidas (tamanho do
ofídio e idade, tempo decorrido da última refeição do animal, área geográfica de
habitação do animal etc...), além de que, nos casos de acidentes botrópicos e
laquéticos, a peçonha tem características enzimáticas, o que se entende como
ação continuada enquanto existirem condições ideais de temperatura e ph no
ponto de inoculação; portanto, havendo presença clínica de neurotoxina ou ação
proteolítica “em evolução”, devemos administrar anti-veneno, independente do
tempo decorrido entre a inoculação e a assistência soroterápica.
Soroterapia
A soroterapia anti-veneno é, com poucas exceções, a base do tratamento dos acidentes ofídicos peçonhentos!
É importante salientar que o objetivo terapêutico é confrontar veneno
com anti-veneno no corpo da vítima, o qual serve apenas de cenário para este
113
Ações em saúde indígena amazônica
conflito, independentemente de idade, sexo, peso, altura ou superfície corporal, daí os acidentes serem classificados em leve, moderado ou grave, o
que traduz uma tentativa de quantificação de peçonha inoculada para se adequar uma quantia de anti-peçonha para a situação; portanto, uma criança
lactente receberá mesmas doses de soro-terapia de um adulto de 70 kg, se a
inoculação da peçonha corresponder à mesma quantidade inferida.
O soro anti-ofídico não é comercializado no Brasil, sendo de distribuição pública e gratuita em todo o território nacional.
Sua composição é soro eqüino líquido, veiculado em fenol, mantido em
refrigeração, gênero específico ou polivalente e de dose e concentração uniforme
independente do laboratório produtor (cada mililitro é capaz de neutralizar 5 mg
de toxina botrópica na fórmula anti-botropica e neutralizar 5 mg de veneno
botrópico e 3 mg de veneno laquético na fórmula anti-botropica, anti-laquética).
Saibamos que na formulação do soro específico, várias espécies são envolvidas (geralmente aquelas que incidem nas regiões de grande adensamento
populacional brasileiro, predominantemente Bothrops jararaca) e dificilmente
as espécies de ofídios amazônicos do alto rio Negro encontram-se nestas fórmulas, o que pode comprometer significativamente a potência anti-veneno.
Os acidentes leves requerem 2-4 ampolas, os moderados, 4-8 e os
graves, 8-12 ampolas infundidas em “push” (direto e rápido), ou gotejo,
endovenoso; em crianças pequenas é fundamental administrar lento, em
micro-gotas, dado o significativo volume da infusão anti-veneno.
Os acidentes elapídicos requerem 20 ampolas IV, no mínimo, até
obter-se reversão do quadro miastênico.
Os acidentes laquéticos requerem 10 ampolas de soro específico (se
não ocorrer quadro neurotóxico vagotonico) ou 20 ampolas IV se o quadro
vagotonico se expressar.
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○
Gradação do acidente ofídico proteolítico e respectivas doses de soroterapia
○
TABEL A
○
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1
GRAU
APRES ENTAÇÃO
DOS E
LEVE
do r e edema apenas no lo cal da ino culação *
2-4 ampô las
M O D ERAD O
do r e edema abrangente ao lo cal da ino culação *
4-8 ampô las
GRAVE
moderado acrescido de bolhas e/ou instabilidade
hemodinâmica*
8-12 ampô las
*presença ou não de alterações da coagulação
114
Ofidismo em área indígena
A administração deve sempre ser gênero-específica, lembrando que
o anti-veneno anti-botrópico não tem uma certa ação cruzada com o antilaquético e vice-versa.
Nas 12 horas seguintes se reavalia a estabilidade do caso ou regressão clínica e, se possível, o tempo de coagulação (melhor parâmetro
laboratorial). Lembramos o quanto fundamental é aferir os diâmetros do
membro afetado uma vez que universalmente tendem a aumentar nas primeiras 24 hs e, posteriormente, estabilizar ou regredir até as 48 hs do
inoculo, se a dose de soroterapia heteróloga for adequada.
A melhora da dor não é bom elemento clínico para medir
soroterapia adequada.
Se não ocorrer estabilização do edema e/ou do quadro hemorrágico,
repetem-se novas doses em igual quantia, até se obter melhora do tempo
de coagulação (nos acidentes inflamatórios), ou reversão do quadro
neurotóxico (nos casos elapídicos).
Há uma tendência atual, na literatura, para se reduzir estas quantias
de anti-veneno pela metade; no entanto, o ministério da saúde ainda não
homologou estas condutas no território nacional.
Enfatizamos que na presença clínica de peçonha inflamatória aguda
(edema, dor e/ou necrose recente) em evolução, ou neurotóxica (facies
neurotóxica), o anti-veneno sempre é infundido até mesmo há 72 hs do
tempo transcorrido entre o momento do inóculo e a terapia.
Medidas complementares
Em área indígena, devido à grande distância de um hospital, e à
premissa de que soroterapia anti-ofídica deve ser instalada o mais cedo
possível para minimizar os danos teciduais recomendamos, antes de começar a infusão anti-peçonha, fazer a medicação pré-soro, isto é, medicação
com intenção anti-anafilática.
Apesar de não haver consenso literário quanto à valia da medicação
pré-soro (em alguns estudos não foi superior ao placebo) sugerimos o uso
de Difenidramina 50 mg IV, 15-20 minutos antes da infusão do anti-veneno (em crianças a dose desta medicação é reduzida a um terço).
A instalação de fluidoterapia generosa IV, é regra em todo acidente
ofídico venenoso e sempre deve ser imediata.
115
Ações em saúde indígena amazônica
Optamos por soro fisiológico ou glicosado em veia periférica a correr os primeiros 500ml, em adultos, ou 250ml, em crianças, seguidos de
40 gts/mint ou 30 micro-gts/mint, respectivamente, até se obter diurese,
daí segue manutenção de 30ml/kg/dia.
É importante lembrar que a fluidoterapia não deve conter potássio
até que se obtenha diurese adequada (50 ml/kg/dia ou 30 ml/hora).
A finalidade da fluidoterapia imediata é prevenir a insuficiência renal
por necrose tubular aguda, muito freqüente, decorrente da baixa perfusão
tecidual, além de provável ação direta da peçonha proteolítica.
A literatura reporta taxas altas de sintomas alérgicos durante a administração do tratamento anti-peçonha; no entanto, dados preliminares sugerem que a população indígena tem um perfil de baixa incidência de expressivas reações alérgicas como um todo.
Mesmo na presença de sintomas alérgicos, a soroterapia anti-veneno
não deve jamais ser suspensa, apenas reduz-se a velocidade de infusão e
usa-se medicação anti-histamínica mais uma vez, associada à adrenalina,
repetindo-se as doses acima mencionadas como pré-medicação.
É de boa conduta sempre ter adrenalina e oxigênio próximos e prontos para uso; no entanto, nem sempre isto é disponível em área indígena,
mas as condutas não mudam, uma vez que os benefícios superam os riscos.
A analgesia é fundamental, já que a dor é decorrente da lesão tecidual e
ação direta da peçonha e se faz com meperidina 0.5mg/kg IV ou dipirona IV.
Jamais utilizar drogas do grupo dos anti-inflamatórios não-esteróides
porque favorecem a baixa adesão plaquetária e piora do quadro
hemodinâmico, além de diminuírem a perfusão renal através de sua ação
anti-prostaglandinas.
A soroterapia anti-veneno adequada não leva à melhora imediata da dor.
Nos acidentes elapídicos, devido à gravidade do quadro e insuficiência
ventilatória iminente, recomendamos o uso de prostigmina IV (um anticolinesterásico que mantém por mais tempo a acetil-colina em ação na placa
motora, a qual se encontra bloqueada por ação da toxina) acompanhada de
atropina, previamente administrada, já que bradicardia é muito comum com o
uso de anti-colinesterásicos; no entanto, naquelas raras espécies que inoculam neurotoxina de ação pré-sináptica, estas medidas são de mínima valia.
É fundamental e prioritária a assistência ventilatória controlada em todos
os casos elapídicos porém, em área indígena nem sempre é possível este recurso, daí instalar respiração com máscara ou boca-a-boca até receber anti-vene116
Ofidismo em área indígena
no específico ou aguardar a total metabolização do veneno (24 horas); mesmo
assim, o índice de letalidade é altíssimo na falta de soro anti-elapídico.
Nos acidentes laquéticos também é válido o uso de atropina junto à
soroterapia devido ao efeito vagotônico da toxina.
Complicações da proteólise
Foto: M. S. de Castro
Como mencionado anteriormente, frente à toxina proteolítica e
miotóxica, é fundamental bloquear a liberação de citokinas e fosfolipídios
teciduais com soroterapia adequada, debridamento das áreas necróticas
úmidas (as áreas secas, mumificadas, não representam perigo) e
fasciotomia precoce (extensas incisões helicoidais em fáscias de grupos
musculares), viabilizando, assim, melhor aporte de oxigênio aos grupos
teciduais em sofrimento.
De outra forma, nas apresentações graves, se isto não for feito, instalase a coagulação intravascular disseminada (CIVD), com extenso consumo de
fibrinogênio e trombina, refratária à infusão de derivados de sangue e óbito.
Quando há extensas áreas de necrose seca mumificada, opta-se por
tratamento conservador com debridamentos programados e enxertias, sempre lembrando que o suporte da medicina indígena coadjuvante à ocidental
não interfere negativamente nos resultados e só melhora a aceitação, além
de se evitar o estigma da amputação, lembrando que mesmo um membro
anquilótico sequelado, reserva ainda alguma função de apoio ou preensão
e pode evitar a necessidade de órtese ou prótese.
Se presentes extensas áreas necróticas úmidas, recentes, com sepsis
ou CIVD, só resta a amputação da área afetada.
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FIGURA
2
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Necrose extensa de pé direito
117
Ações em saúde indígena amazônica
Considerações finais
No alto rio Negro e seus afluentes, a grande maioria dos acidentes
ofídicos leves não é reportada e se resolve com a medicina tradicional indígena, respondendo pelo significativo número de sub-notificações. Os acidentes moderados e graves são notificados e traduzem pronta demanda de
soroterapia adequada; no entanto, o Brasil, apesar de ser auto-suficiente
em soro anti-ofídico, de excelente qualidade, não oferece a opção de soro
anti-ofídico específico para o universo de ofídios amazônicos daquela região e não tem uma rede de distribuição confiável e eficiente.
Cabe a nós ressaltar que a desinformação dos profissionais de saúde
frente às condutas técnicas adequadas ainda responde pelo elevado número de amputações e outras seqüelas.
Os manuais e cartilhas distribuídas gratuitamente pelo ministério
da saúde são válidas para a imensa extensão do território nacional, porém apresentam limitações significativas para a abordagem do ofidismo
nestas áreas indígenas da floresta amazônica, uma vez que não consideram que a soroterapia anti-veneno de distribuição gratuita em cadeia
nacional não engloba as espécies de ofídios peçonhentos do território
de abordagem e a base de sucesso desta forma de tratamento é a administração da anti-peçonha específica.
A medicina tradicional indígena ainda oferece muito para o melhor
entendimento desta patologia e seu tratamento como uma abordagem mais
conservadora e só resta a nós, profissionais qualificados, buscar estas informações e adequá-las aos dois mundos que enfrentam este desafio.
Frente a este cenário de confronto cultural a antropologia prova,
cada vez mais, ser ferramenta de grande apoio para os profissionais atuantes em saúde dos povos indígenas.
Para finalizar, ainda optamos pela máxima: “acidente ofídico indígena
trata-se longe de hospitais”, afirmação que tem por objetivo diminuir complicações, evitar estigmas de amputação e morte e, conseqüentemente,
aumentar a aceitação da terapêutica anti-veneno, quando necessária.
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Ofidismo em área indígena
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119
Ações em saúde indígena amazônica
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120
10
Ações em Saúde Indígena Amazônica: O Modelo do Alto Rio Negro
FOIRN • São Gabriel da Cachoeira • 2006
Capítulo 10, pp. 117 - 122
Introdução ao
atendimento odontológico
em área indígena
André Luiz Martins
Odontólogo do DSEI-RN/FOIRN, Especialista em Saúde Pública
Eduardo Assis Ottoni
Odontólogo, Especialista em Endodontia
Considerações iniciais
Ar condicionado, cadeiras automáticas ergonômicas de última geração, canetas de alta rotação, mochos pneumáticos, sugador, cuspideira,
câmera intra-oral computadorizada, foco de luz; esqueça tudo isto!!! Você
está num local onde o acesso se faz apenas por vias fluvial ou aérea e não
existe energia elétrica.
A universidade contemporânea prepara o profissional da área
odontológica para trabalhar em estabelecimento clínico privado, consultório, hospital modelo, onde grande parte dos atendimentos são
elitizados e a tecnologia é a fiel escudeira da qualidade e da facilidade. Porém, não se preocupa em preparar o odontólogo para a saúde
coletiva e para diferentes situações e maneiras de se promover saúde. Para tanto, o esforço, a dedicação, a imaginação e a criação se
fazem necessários para a construção e consolidação de um modelo
assistencial diferenciado, lógico e eficiente em saúde indígena. É
freqüente observar em qualquer profissional recém chegado no DSEIRN (Distrito Sanitário Especial Indígena do Rio Negro) um sentimento vago e impreciso, muito provavelmente causado pelo impacto
da realidade local com a realidade aprendida ou eventuais experiências anteriores. Ele não sabe o que o espera, quem o espera, como
irá trabalhar e em que condições. É um abismo de ignorância que só
é transponível pela incrível capacidade do ser humano de se adaptar
a diversos ambientes.
121
Ações em saúde indígena amazônica
A Saúde bucal do alto rio Negro
no contexto da distritalização
A implantação de uma Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos
Indígenas, em consonância com os princípios do Sistema Único de Saúde,
requereu a adoção de um modelo complementar e diferenciado de organização
dos serviços, que levasse em conta as especificidades culturais, epidemiológicas
e operacionais desses povos, enfatizando o princípio da equidade.
O modelo adotado foi o DSEI, concebido como sistema local de
saúde orientado para populações definidas, dentro de espaços geográficos
e administrativos específicos. Os DSEIs contemplam um conjunto de atividades técnicas que visam prover medidas racionais e qualificadas de atenção, promovendo a organização da rede de serviços de saúde e o repensar
das práticas sanitárias levando em consideração as especificidades culturais
dos usuários e efetivando o controle social. O que se busca com a construção dos Distritos é redirecionar e modificar a forma de organização e o
conteúdo das ações e serviços de saúde, de modo a responder às demandas da população, atender às necessidades de saúde e, fundamentalmente,
contribuir para a solução dos problemas de saúde da população que vive e
trabalha no espaço territorial e social do Distrito Sanitário.
Visando garantir o acesso da população indígena, respeitando e valorizando suas práticas tradicionais, além de respeitar os limites da ética
profissional, as ações de atenção em saúde bucal nos DSEI-RN almejam:
• Propiciar a incorporação de procedimentos coletivos e individuais em
locais onde não há consultórios odontológicos;
• Adequar à prática de controle de infecção intrabucal onde existam ou
não consultórios instalados
• Propiciar uma ação integrada com as áreas da saúde e a utilização de
diversos espaços sociais para o desenvolvimento de ações coletivas
de saúde bucal;
• Consolidar a prática efetiva de discussão local com a população indígena
sobre as ações desenvolvidas;
• Utilizar a epidemiologia como instrumento organizador da atenção;
• Atuar em plena consonância com os AIS (agente indígena de saúde), buscando
a melhoria da qualidade e do acesso às atividades em saúde bucal;
• Organizar a demanda assistencial a partir do levantamento de
necessidades (programação).
122
Introdução ao atendimento odontológico em área indígena
As ações de saúde bucal do DSEI-RN expressam os princípios e diretrizes
do SUS e da política Nacional de Saúde Bucal e apresentam as
seguintes características operacionais:
• Definição das aldeias como local preferencial de realização das
atividades de saúde bucal;
• Integralidade da assistência prestada à população, no âmbito da atenção
básica, e articulação de referência e contra-referência aos serviços
de média e alta complexidade do SUS;
• Humanização do atendimento e capacitação dos profissionais para
trabalhar no contexto intercultural;
• Abordagem multiprofissional;
• Estímulo às ações de promoção de saúde, à articulação intersetorial, à
participação e ao controle social;
• Acompanhamento e avaliação permanente das ações realizadas.
O atendimento odontológico em área encontra diversas barreiras:
1. Barreiras tecnológicas
2. Barreiras geográficas
3. Barreiras ambientais
4. Barreiras linguísticas
5. Barreiras endêmicas
Todo o aparato tecnológico que se tem acesso nos cursos de graduação e pós-graduação é de muito pouca utilidade, já que os equipamentos
necessitam de energia elétrica para o seu funcionamento e ao mesmo tempo seria inviável transportá-los para todos os locais de atendimento, por
razões geográficas, de peso e de transporte. Até mesmo um consultório
portátil, muitas vezes, é inviável, pois para seu funcionamento também é
necessário gerador de energia.
O local escolhido para os atendimentos odontológicos geralmente
são centros comunitários cobertos ou palhoças indígenas. Em substituição
as cadeiras odontológicas, mesas, cadeiras ou pequenos bancos são utilizados para tal. Esses são dispostos em um lugar próximo o suficiente de uma
fonte de luz natural, para que se permita uma boa visualização do campo
operatório. Gazes são utilizadas para absorver o sangue nas cirurgias e
roletes de algodão são utilizados para reter a saliva no caso de restaurações. Aliás, para os que pensam que a utilização daquele motorzinho do
dentista é imprescindível, estão enganados. A cárie é um tecido amolecido
123
Ações em saúde indígena amazônica
que pode ser removido através de um instrumento afiado: a cureta dentinária.
A técnica utilizada para restaurações é o ART (Tratamento Restaurador
Atraumático) e o material usado para tal é o ionômero de vidro.
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FIGURA
1
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Local dos atendimentos
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FIGURA
2
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Local dos atendimentos
Em alguns DSEIs, em especial o do alto rio Negro, o acesso até as
aldeias é feito através de rios, muitos deles com cachoeiras, onde é necessário desembarcar todo o carregamento e arrastar a voadeira (barco de
alumínio de 6 ou 8 metros) através da cachoeira ou por terra até atingir o
próximo ponto navegável. A distância é imensa e em muitas micro-áreas de
atendimento são necessários três ou quatro dias de viagem somente para
atingi-las. Em algumas localidades, além da parte fluvial é necessário reali124
Introdução ao atendimento odontológico em área indígena
zar longas caminhadas através da mata selvagem para atingir uma aldeia,
carregando todo material, insumos e alimentação, sob um calor causticante
onde a umidade sufoca os menos preparados para tal. O deslocamento de
equipes via aérea é inviável devido o seu alto custo financeiro.
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FIGURA
3
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Deslocamento das equipes
As barreiras ambientais também estão presentes para dificultar o
atendimento. Como já foi citado, o calor e os mosquitos são perturbadores
em potencial. Insetos de vários tipos como moscas, aranhas, mutucas também estão presentes. O risco de ser atacado por algum animal selvagem
peçonhento, uma cobra – mais freqüentemente –, porcos do mato ou onças – mais raramente – é eminente.
A grande diversidade étnica associada a grande variedade línguística
constituem um verdadeiro mosaico. Somente na região do alto rio Negro,
são quatro troncos lingüísticos que se subdividem em aproximadamente 22
dialetos. Para transpor tais dificuldades é necessária a ajuda de intérpretes
indígenas que falam Português. Por isso, objetivando garantir a atenção
primária à saúde e facilitar a comunicação entre a população indígena e as
equipes de saúde, foi criada a categoria de AIS.
Barreiras culturais, por vezes, tornam-se grandes demais impedindo
o atendimento do indígena pelo profissional não preparado. Tais diferenças
culturais não devem ser ignoradas. Ignorá-las é falta grave e o profissional
não será bem recebido nas comunidades. O estudo do povo no qual o
profissional irá se inserir é recomendável para evitar choques culturais e
conseqüentemente o fracasso do tratamento.
Como se não bastasse, muitas áreas de atendimento estão em regiões consideradas endêmicas. Doenças como malária, dengue, tuberculose,
filariose e outras podem ser freqüentes na área de atendimento, portanto a
prevenção se faz necessária cada uma a seu modo.
125
Ações em saúde indígena amazônica
Considerações finais
Apesar de todas essas barreiras o atendimento odontológico em área
é perfeitamente viável e até mesmo pode servir como uma válvula de escape
para driblar a monotonia das quatro paredes do consultório odontológico. A
natureza e a convivência com estes povos nos surpreendem e nos presenteiam de tal forma que todos estes inconvenientes se tornam perfeitamente
transponíveis para o profissional disposto a viver e aprender com eles.
Já se torna perceptível a assimilação das comunidades indígenas com o
recente modelo de atenção básica à saúde bucal, que a cada dia está sendo
adaptado à cultura, à tradição e as singularidades desses povos indígenas.
Enquanto isso, aguardamos novos profissionais que aceitem o desafio de repartir uma história ímpar e inigualável.
Alguém se habilita?
Referências bibliográficas
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MENDES, E. V. Distrito Sanitário. O processo social de mudança das práticas
sanitárias do Sistema Único de Saúde. RJ:Ed. HUCITEC/ABRASCO, 1994.
126
11
Ações em Saúde Indígena Amazônica: O Modelo do Alto Rio Negro
FOIRN • São Gabriel da Cachoeira • 2006
Capítulo 11, pp. 123 - 131
Promoção de saúde bucal
em área indígena
André Luiz Martins
Odontólogo do DSEI-RN/FOIRN, Especialista em Saúde Pública
Guilherme Almeida Ciriani
Odontólogo
Introdução
O conceito ampliado de saúde deve nortear a mudança progressiva
dos serviços, evoluindo de um modelo assistencial, economicamente inviável,
dependente, centrado na doença e baseado no atendimento a quem procura, para um modelo de atenção integral à saúde, onde haja a incorporação
progressiva de ações de promoção e de proteção, ao lado daquelas propriamente ditas de recuperação.
Para melhor identificar os principais grupos de ações de promoção,
de proteção e de recuperação de saúde a serem desenvolvidas
prioritariamente, é necessário conhecer as características do perfil
epidemiológico da população, não só em termos de doenças de maior
prevalência, como das condições sócio-econômicas da comunidade, seus
hábitos, costumes e estilo de vida e suas necessidades de saúde – sentidas
ou não -, aí incluídas por extensão a infra-estrutura de serviços disponíveis.
É nesse contexto que esse capítulo tem por finalidade a proposta de
retratar as práticas de promoção e proteção à saúde executadas em comunidades indígenas da bacia do alto rio Negro.
Cronologia resumida da política de saúde indígena no Brasil
1590-1900 – A assistência de saúde dos povos indígenas era realizada
por grupos religiosos, ligados ao processo de evangelização.
1910 – Criação do Serviço de Proteção ao Índio (SPI), comandado
pelo Marechal Cândido Rondon, no momento do surgimento de
127
Ações em saúde indígena amazônica
grandes frentes de expansão no interior do país (abertura de estradas,
mineração e atividades agropecuárias)
1956 – Criação do Serviço de Unidades Sanitárias Aéreas (SUSA) e das
Unidades de Atendimento Especial (UAE). Este serviço era coordenado
pelo Dr. Noel Nutels e realizava trabalho de campo nas comunidades
indígenas, cuidando principalmente dos casos de tuberculose.
1965 – Início das atividades do Programa do Xingu, através do Departamento
de Medicina Preventiva da Escola Paulista de Medicina, coordenado pelo
Professor Dr. Roberto Baruzzi, realizando cadastramentos, avaliação
clínica e vacinação de todos os indígenas do parque do Xingu. O trabalho
da escola paulista, atual Unifesp, se mantém até os dias de hoje.
1967 – Extinção do SPI.
1968 – Criação da Fundação Nacional do Índio (Funai), numa fusão do
SPI, Conselho Nacional de Proteção dos Índios e do Parque Nacional
do Xingu. No âmbito da responsabilidade da prestação de assistência
médico-sanitária da Funai instaurou-se Equipes Volantes de Saúde,
que visitavam as comunidades de forma periódica e ou emergenciais.
1986 – I Conferência Nacional de Proteção a Saúde do Índio Pouca
participação Indígena e esboço de um modelo assistencial.
1988 – Definição das bases do Sistema Único de Saúde, expressas na
Constituição Brasileira. O Ministério da Saúde passa a ser o
responsável por todo o sistema de saúde brasileiro.
1991 – A saúde do índio passa a ser de responsabilidade da Fundação
Nacional de Saúde e define que a organização dos serviços de saúde se
dará mediante a implantação dos Distritos Sanitários Especiais Indígenas.
1993 – Realização do Fórum Nacional de Saúde Indígena.
II Conferência Nacional de Saúde para os Povos Indígenas, com ampla
participação dos povos Indígenas de todo o país. Consolida-se a
proposta de criação dos Distritos Sanitários Especiais Indígenas.
Decreto 1141/93 – Divisão das responsabilidades de atenção à saúde
do índio entre a Funasa e a Funai.
1998 – O Ministério Público, através da 6ª Câmara, elabora um parecer
no qual fica estabelecida inconstitucionalidade do Decreto 1141/93 e
recomenda que a saúde indígena seja gerida pelo Ministério da Saúde.
1999 – Decisão Política da Funasa quanto a implantação dos Distritos
Sanitários Especiais Indígenas em todo o país, com a proposta de
128
Promoção de saúde bucal em área indígena
distritos e que a execução das ações de saúde sejam realizadas por
organizações indígenas, organizações não governamentais,
universidades e secretarias de saúde mediante convênios firmados
com a Funasa.
2000 – Implantação dos DSEI.
2001 – III Conferência Nacional de Saúde para Povos Indígenas.
2006 – IV Conferência Nacional de Saúde Indígena: “Distrito Sanitário
Especial Indígena: Território de Produção de Saúde, proteção da vida
e valorização das tradições”.
Um panorama das ações
Através de séculos o modelo colonizador ou “explorador” inseriu nessas
culturas hábitos alimentares nocivos e não esclarecedores sobre suas seqüelas,
introduzindo o açúcar (carboidrato) e seus derivados, mais recentemente os
industrializados. Esses colonizadores difundiram a idéia de que o sal era maléfico a saúde bucal e não o açúcar. Isto se torna de fácil compreensão levando-se
em consideração as intenções mercantilistas dos colonos, pois o açúcar é mais
saciável que o sal, tornando aquele infinitamente mais consumido.
Os profissionais do DSEI-RN têm a consciência de que os índices
odontológicos relacionados à cárie dental estão acima dos indicadores aceitáveis, por isso, a mudança de hábitos introduzidos pelo branco e a adoção
dos costumes tradicionais são necessidades não apenas sanitária, mas de
resgate sociológico e antropológico dessas culturas. O aspecto fundamental a ser discutido é a horizontalização dos programas odontológicos e a
sua integração com outras áreas da saúde. A odontologia integral implica
em que a atenção em saúde bucal não se limite ao simples atendimento à
demanda espontânea, mas que busque meios de sensibilizar no indivíduo a
importância dos serviços coletivos de ampla resolução. As novas concepções sobre saúde pública enfocam os aspectos preventivos e educativos
como prioritários, uma vez que se os esforços se direcionarem nesse sentido, os resultados, a longo prazo, seriam plenamente satisfatórios. Essa
prática preventiva vem sendo construída na saúde indígena amazônica com
esforços dos profissionais de saúde do DSEI, dos agentes indígenas de
saúde e, até mesmo, dos professores que atuam nas comunidades indígenas e lideranças locais.
129
Ações em saúde indígena amazônica
A grande evolução da odontologia em nossas incursões em área não é
relacionada à introdução de novas tecnologias para o tratamento da doença
cárie e da doença periodontal, mas sim, de uma nova filosofia e conceitos: as
ações de promoção de saúde são descentralizadas e multiplicativas, uma vez
que são compartilhadas com os auxiliares odontológicos, agentes indígenas
de saúde, professores, pajés, pais e outros, sob a responsabilidade e a orientação do odontólogo. Nossa principal ponte de ligação em razão da linguagem, abordagem e convivência são os auxiliares odontológicos, que geralmente são indígenas, e os agentes indígenas de saúde.
As ações de promoção e proteção de saúde visam a redução de
fatores de risco, que constituem ameaça à saúde dos indígenas, podendo
provocar-lhes incapacidades e doenças. Nesse grupo situam-se, também, a
identificação e difusão de informações sobre os fatores de proteção à saúde. Esse grupo compreende um elenco bastante vasto e diversificado de
ações de natureza eminentemente educativo-preventivas.
Os profissionais que trabalham com saúde indígena precisam atentar-se
que a promoção em saúde bucal está inserida num coiceito amplo de saúde que
transcende a dimensão meramente técnica do setor odontológico, integrando a
saúde bucal às demais práticas de saúde coletiva. Significa a construção de um
modelo saudável, direcionado a todas as pessoas da comunidade.
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1
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AIS avaliando trabalho
odontológico
Promoção de saúde bucal em área indígena
O enfoque à promoção e proteção de saúde se subdivide em várias ações:
• Promoção de curso de capacitação aos auxiliares odontológicos
pleiteando o aprimoramento das atuações em área e o aprendizado
dos conhecimentos básicos imprescindíveis às suas atribuições.
• Controle de infecção, biossegurança, materiais e instrumentais
odontológicos, preparo do ambiente de trabalho, preparo do paciente,
limpeza e desinfecção de instrumentos e materiais, esterelização em
área indígena e preenchimento de fichas são assuntos imprescindíveis
para os auxiliares odontológicos.
• Capacitação odontológica no curso introdutório dos AIS, com duração
de 16 horas, na parte respectiva ao tema: processo saúde x doença.
O curso de capacitação introdutória para AIS novatos também contempla assuntos da área de saúde bucal. É a acepção de noções
inicias sobre a fisiopatogênese das principais afecções bucais que
atigem a população indígena do DSEI-RN.
• Capacitação odontológica anual aos AIS. Saúde bucal e os povos
indígenas, interação e relacionamento AIS x equipe de saúde bucal,
atribuições do AIS, escovação bucal supervisionada, aplicação tópica
de flúor, métodos alternativos de higiene oral, troca de conhecimentos
e experiências tradicionais indígenas com as ocidentais e debate sobre
as ações de saúde bucal.
• Realização de palestras e atividades educativas de fácil compreensão,
adaptadas a cada faixa etária, enfatizando os cuidados necessários
para uma boa saúde bucal, relembrando a saúde de seus antepassados,
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FIGURA
2
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Capacitação de AIS –
utilização de recurso
áudio-visual
131
Ações em saúde indígena amazônica
os riscos de uma dieta cariogênica, o consumo inteligente de açúcar
e meios alternativos de higiene oral (escova confeccionada com galhos
de açaizeiro e o fio de tucum para limpeza interdental);
As palestras educativas podem ser realizadas pelos auxiliares
odontológicos - sob a supervisão do Cirurgião-Dentista – em consonância
com o AIS, que traduz as informações na língua nativa com o intuito de uma
melhor assimilação de toda a população. A apresentação de filmes educativos,
principalmente nas comunidades de pólo base do DSEI-RN, onde existem
geradores, configura um instrumento ímpar de educação em saúde.
O uso de material didático de confecção local, com a participação da
população e respeitando as peculiaridades culturais tem demonstrado melhores resultados que a utilização de recursos pré-fabricados. As atividades
permitem a construção do conhecimento, através da interação entre o saber da população indígena, com toda sua riqueza de simbolismo e o saber
oficial da equipe de saúde bucal.
• Distribuição de pastas e escovas em todas as comunidades do alto rio
Negro durante as visitas realizadas pela equipe de saúde bucal.
Uma das estratégias criada pelos odontólogos é a entrega da nova
escova e creme dental ao indivíduo somente se ele devolver a escova
velha. Essa prática estimula um maior cuidado com o kit recebido.
• Realização de atividades de higiene bucal supervisionada (HBS) com
maior abordagem às crianças. A HBS visa à prevenção da cárie –
quando for emregado dentifrício fluoretado – e da gengivite, através
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FIGURA
3
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Palestra educativa –
Aplicação de
evidenciador de placa
bacteriana
Promoção de saúde bucal em área indígena
do controle continuado de placa pelo paciente com supervisão do
profissional, adequando a higienização à motricidade do indivíduo.
Para evitar estigmações é necessário muita cautela na definição de
técnicas “corretas”e ou “erradas” de escovação bucal. Procura-se
enfatizar que o importante não é a técnica adotada e sim a prática
diária. A HBS deve ser desenvolvida pelos profissionais auxiliares da
equipe de saúde bucal. Sua finalidade é a busca da autonomia com
vistas ao autocuidado.
• Disseminação dos conhecimentos necessários para as atuais e futuras
gerações, sobre as funções do aparelho estomatognático e alusão às
doenças como a cárie e as doenças periodontais, as quais além de
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FIGURA
4
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Escovação bucal
supervisionada
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Pai é instruído a escovar
os dentes do filho
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FIGURA
5
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133
Ações em saúde indígena amazônica
causarem dor, perda precoce dos dentes, alteração na posição dos
dentes, alterações estéticas, mau-hálito, serem foco de infecções a
outros órgãos, requer tratamento dispendioso aos pais ou aos serviços
públicos de saúde ou não públicos assistenciais;
• Explicação e entrega aos AIS os materias para a escovação
supervisionada e aplicações de flúor, enfatizando a sua importância
na melhoria da qualidade de vida nas comunidades;
• Realização por parte do odontólogo de atividades clínicas preventivas,
tais como: aplicação tópica de flúor, aplicação de verniz fluoretado,
aplicação de cariostático, selamento de molares permanentes com
ionômero de vidro autopolimerizável em pacientes com potencial
atividade de cárie;
Conclusões
É imprescindível fortalecer as ações de promoção em saúde no intuito de reverter o quadro clínico delicado das condições de saúde bucal dos
indígenas, construído à custa de um tratamento odontológico não efetivo.
Ao colocar para o indígena a proposta de implementação desse modelo amplificado de saúde, além de introduzir o “novo”, afronta valores,
lugares e poderes consolidados pelas práticas dos modelos que antecederam. Para a saúde bucal, esta nova forma de se fazer às ações cotidianas
representa, ao mesmo tempo, um avanço significativo e um grande desafio.
As ações coletivas e individuais promovem a interação dos comunitários
com as equipes de saúde bucal através de reuniões, palestras, oficinas de avaliação dos serviços de saúde, atenção individualizada e domiciliar, estímulo aos
métodos tradicionais de higiene oral, distribuição de escovas e dentifrícios, práticas de escovação e capacitação dos 185 agentes indígenas de saúde (AIS),
que são os pilares do processo de educação continuada nas comunidades.
A promoção em saúde bucal tem sido o instrumento de maior importância no processo de construção de um modelo integral de saúde indígena, com independência e previsibilidade.
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Promoção de saúde bucal em área indígena
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135
Ações em saúde indígena amazônica
136
12
Ações em Saúde Indígena Amazônica: O Modelo do Alto Rio Negro
FOIRN • São Gabriel da Cachoeira • 2006
Capítulo 12, pp. 133 - 143
Atendimento clínico
odontológico em
área indígena
André Luiz Martins
Odontólogo do DSEI-RN/FOIRN, Especialista em Saúde Pública
Ana Maria Campolim Monteiro
Odontóloga, Especialista em Saúde Coletiva
Introdução
As condições de saúde bucal em nível individual e coletivo são avaliadas, principalmente, pela análise da ocorrência da cárie e de doenças
periodontais. Por ser mais freqüente, a cárie tem sido intensamente estudada, do ponto de vista etiológico e epidemiológico, com o objetivo de melhor conhecer determinantes, prevalência e distribuição, assim como estabelecer medidas preventivas. No Brasil, as informações epidemiológicas
disponíveis sobre ocorrência e distribuição da cárie são ainda muito limitadas, no que diz respeito tanto à cobertura geográfica, como a tendências
temporais. Usualmente, envolvem amostras urbanas, sobretudo de escolares. Para um melhor esclarecimento sobre a multicausalidade da cárie
dentária, principalmente em grupos minoritários, como as populações indígenas, são necessários estudos longitudinais que contemplem grande
amostragem para um melhor entendimento sobre as condições de saúde
bucal, principalmente porque as intensas mudanças sócio-econômicas e
ambientais são os aspectos reconhecidamente propiciadores de alterações
no perfil da saúde bucal desses povos.
O quadro epidemiológico indígena na região é bastante
preocupante em relação à doença cárie. De acordo com levantamentos,
realizados em 2003, o CPOD (índice que fornece a média de dentes
permanentes atacados pela cárie, perdidos por extração e obturados),
na região dos rios Waupés/Tiquié, por exemplo, é 6,18 aos 12 anos;
9,74 dos 15 aos 18 anos; e 16,46 de 36 a 48 anos. O índice de cárie
137
Ações em saúde indígena amazônica
não é diferente do encontrado em populações rionegrinas que habitam
as margens de outros rios da região, e também de povos que vivem
longe da margem dos rios, como os Hupda, já que a introdução do
açúcar pelo branco na região é visível nas várias comunidades visitadas
pelas equipes de saúde do distrito.
Com o intuito de reverter o quadro situacional encontrado e contribuir
com a manutenção da saúde bucal dos indígenas, a estratégia de assistência
odontológica adotada fora fortemente sistemática e baseada na prevenção e educação odontológicas. Em adição, os tratamentos curativo básico e emergencial,
aliviando dores, eliminando focos infecciosos procurando restabelecer a anatomia
dental original e a função mastigatória, também são executados.
Histórico
Antes da implantação do DSEI, os problemas odontológicos que
acometiam os índios da região do alto rio Negro eram solucionados por
equipes volantes de assistência da Funai, ou, eventualmente, nas cidades
mais próximas como São Gabriel da Cachoeira ou cidades Venezuelanas e
Colombianas – próximas à divisa com o Brasil ( quando havia possibilidade
de deslocamento dos índios para estas cidades) – pelo exército (em pelotões especiais de fronteira - PEF), missões religiosas, por práticos em odontologia existentes em algumas comunidades, por pajés, benzedores ou ainda através do uso de ervas medicinais. O tratamento utilizado, exceto raras
exceções, era mutilador ou paliativo e totalmente isento de prevenção.
A partir do ano 2000, toda a região começou a receber assistência
odontológica através da introdução da atenção básica em saúde bucal,
isto é, realização de ações de identificação, prevenção e solução dos principais problemas bucais.
Assistência clínica ao indígena
As atividades clínicas realizadas em área indígena diferem muito daquelas realizadas em centros urbanos, a começar pelo local de atendimento,
isento de qualquer infra-estrutura, feito ao ar livre, no interior de casas, embarcados em voadeira ou sobre canoas, em palhoças, em centros comunitários e escolas. O paciente é atendido sentado sobre cadeiras comuns ou
odontológicas portáteis, deitado sobre bancos ou mesas. A luz utilizada é a
do ambiente e não há canetas de rotação ou qualquer outro material elétrico.
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Atendimento clínico odontológico em área indígena
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FIGURA
1
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Atendimento clínico
sobre um banco no
interior de uma casa
As ações em saúde bucal, como preconizado pelo DESAI/Funasa
(Departamento de Saúde Indígena da Fundação Nacional de Saúde) são
divididas em coletivas e individuais, devendo ocorrer paralelamente. As ações
de cunho individual se referem às necessidades individuais de atendimento
clínico e podem ser divididas em alguns níveis:
1ª Etapa - um levantamento coletivo das necessidades de tratamento individual é realizado com o intuito de obter um panorama das condições de
saúde bucal do grupo específico, bem como conhecer o grau de
complexidade dos procedimentos a serem feitos e o tipo de recursos
humanos necessários. Num segundo passo, equaciona-se as necessidades
de tratamento através da realização de procedimentos clínicos individuais
possíveis no nível local, preferencialmente em menor número de sessões
possíveis visando o controle de infecção. São realizadas exodontias de
dentes decíduos e/ou permanentes com comprometimento pulpar ou
periodontal e restos radiculares, raspagens, pequenas cirurgias, biópsias,
aplicações de selantes, profilaxias, além de restaurações com a técnica
do tratamento restaurador atraumático – ART (técnica preconizada nas
Diretrizes de Saúde Bucal dos DSEIs e recomendada pela OMS para o
tratamento da cárie em locais onde não há consultórios dentários) onde
a cárie é parcialmente removida com instrumentos manuais e a cavidade
preparada e selada com ionômero de vidro, um material restaurador
liberador de flúor, tendo-se ao mesmo tempo um tratamento restaurador
e preventivo para as cáries.
2ª Etapa - realiza-se um levantamento de necessidades individuais para
procedimentos de reabilitações funcional e social, com a confecção
139
Ações em saúde indígena amazônica
de próteses totais e parciais, bem como reconstruções em resina e
próteses unitárias em acrílico.
3ª Etapa - as necessidades que não tiveram resolução local são
encaminhadas para os serviços de referência do SUS, contemplando,
assim, a integralidade.
O trabalho do dentista em área é auxiliado por profissionais de nível
médio, previamente treinados por cursos de capacitação, realizado todo
início de ano, e atualização, no decorrer do ano, ministrados pelos próprios dentistas do distrito.
Em toda a região abrangida pelo DSEI-RN há apenas um pólo base
onde existe um consultório equipado que permite a realização de restaurações estéticas e de amálgama. Em resumo, as atividades clínicas individuais
se restrigem ao controle e eliminação de focos infecciosos executando procedimentos restauradores - usando a técnica do ART - removendo tártaro
dentário e realizando exodontias.
Anamnese
Montagem: André L. Martins
A anamnese (do grego ana, trazer de novo, e mnesis, memória) significa relembrar todos os fatos que se relacionam com a doença e à pessoa
doente. Trata-se de uma entrevista terapêutica, realizada como ponto inicial no diagnóstico de uma doença. Uma anamnese, como qualquer outro
tipo de entrevista, possui formas ou técnicas corretas de serem aplicadas.
Ao seguir as técnicas pode-se aproveitar ao máximo o tempo disponível
para o atendimento, o que produz um diagnóstico seguro e a um tratamen-
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FIGURA
2
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Ações Coletivas
e individuais
Atendimento clínico odontológico em área indígena
to correto. Sabe-se hoje que a anamnese, quando bem conduzida, é responsável por 85% do diagnóstico na clínica, liberando 10% para o exame
clínico e apenas 5% para os exames laboratoriais ou complementares.
Em geral, a sitemática das perguntas a serem feitas ao paciente divide-se em 3 tipos: abertas, focadas e fechadas.
Per
guntas Abertas - devem ser feitas de tal maneira que o paciente se
erguntas
sinta livre para expressar-se, sem que haja nem um tipo de restrição.
Ex: “O que o sr. está sentindo?”
Per
guntas FFocadas
ocadas - são tipos de perguntas abertas, porém sobre um
erguntas
assunto específico, ou seja, o paciente deve sentir-se à vontade para
falar, porém agora sob um determinado tema ou sintoma apenas.
Ex: “Qual parte da boca dói mais? “.
Per
guntas FFechadas
echadas - As perguntas fechadas servem para que o
erguntas
entrevistador complemente o que o paciente ainda não falou, com
questões diretas de interesse específico. Ex: “O dente dói quando o
sr. toma xibé ou quando come quinhampira?”
É salutar a presença do AIS como intermediador no momento da
entrevista do paciente. Muitas vezes os pacientes indígenas, principalmente
as mulheres, se sentem mais seguros em relatar o que estão sentindo para
o agente de saúde. Eles utilizam a língua nativa e não o português. Para
tanto, o agente de saúde traduz as informações para ambos os lados.
Exame clínico
O exame clínico é um passo importante para se realizar um tratamento em área, como também para um melhor relacionamento entre paciente/profissional. O objetivo fundamental do exame do paciente é a elaboração do diagnóstico, do prognóstico e do correto planejamento terapêutico.
Sistematizar o exame do paciente é essencial. A prática metódica é
fundamental em regiões remotas da Amazônia.
Observa-se no mundo globalizado que com a tecnologia e a sofisticação
dos exames complementares diminuíram significativamente a prática do exame
clínico minucioso. A conversa com o paciente diminuiu e o exame físico ficou
por conta dos exames complementares. De fato, exames complentares não
fazem parte da rotina dos profissionais que trabalham em área; por isso, a
anamnese e o exame físico são os principais artifícios da prática clínica. Atender
um paciente sem a possibilidade de se realizar um exame radiográfico ou de se
141
Ações em saúde indígena amazônica
solicitar exames laboratoriais parece cômico. Entretanto, a decisão de condenação ou não de um elemento dentário à exodontia, em área indígena, se apoia
apenas no olhar clínico e na inspeção da patologia, no momento em que o
paciente se encontra deitado sobre uma mesa.
Nos distantes escaninhos não se pode descuidar da anamnese,
tampouco do exame clínico, pois são as mais preciosas pedras da
propedêutica.
“As máquinas só podem fornecer informações de utilidade baseadas na
avalanche de dados que as alimentam, mas a compreensão dos problemas do
homem só é possível através do pensamento humano”. GENOVESE (1992).
Cirurgia em área indígena
Tunuí - rio Içana
O preparo do ambiente é feito pelo auxiliar odontológico e compreende esterelização dos instrumentais, desinfecção de artigos e disposição
de todo o aparato clínico utilizado. O processo de esterização dos instrumentos e gaze é realizado com panelas de pressão, por se tratar de áreas
sem eletricidade.
A hemostasia é realizada com utilização de gazes estéreis e a iluminação
do campo operatório é a própia luz natural, ou, eventualmente, utiliza-se uma
lanterna de cabeça. Não há sugadores e cuspideiras, portanto o acúmulo de
sangue e saliva é expelido pelo paciente em um cesto com saco plástico de lixo.
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FIGURA
3
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Cirurgia oral em área
indígena – Pólo base
Atendimento clínico odontológico em área indígena
O enigma é como realizar um procedimento cirúrgico sem a disponibilidade de canetas de alta rotação para possíveis osteotomias ou
seccionamentos. A impossibilidade de realização de exames complementares culmina e um planejamento e pré-operatórios limitados. Complicações
no trans-operatório cirúrgico, preveníveis ou previsíveis em outro contexto, podem acontecer em diversas situações, tais como: dentes anquilosados,
dentes com dilacerações radiculares, fraturas radiculares no momento da
exodontia, na necessidade de ostectomias manuais, entre outras.
Farmacoterapia
Analgésicos:
Ácido acetil-salicílico
10 mg/ Kg peso/ dose 6/6 hs
1 gota / Kg peso/ dose 6/6 hs
Dipirona
gotas: 1 gt/ 2 Kg peso/ dose 6/6 hs
solução : 2,5 a 5 mL 6/6 hs
Paracetamol
1 gota/ Kg peso/ dose 6/6 hs. (máx. de 35 gts.) (1 gota=5 mg)
comp: 500 mg ou 750 mg (8/8hs)
Anestésicos Locais:
Lidocaína com vasoconstrictor (Lidocaína)
Prilocaína com vasoconstrictor (Citanest, Biopressin, Citocaína)
Antiinflamatórios:
Diclofenaco Sódico ou Potássico
(não utilizar em crianças com menos de 1 ano.)
gotas: 1 gota/ Kg peso/ dose 8/8 hs (máximo de 35 gts.)
(1 gota = 0,5 mg)
comp: 75 mg (máximo 3 comp. ao dia)
143
Ações em saúde indígena amazônica
Antibióticos:
Amoxicilina
suspensão: 250 mg/5 mL - solução: 20 a 40 mg/ Kg peso/ dia de 8/8 hs.
cápsulas: 500 mg (8/8 horas)
Eritromicina (alérgicos a penicilina)
suspensão: 250 mg/5 mL - solução: 40 a 50 mg/ Kg peso/ dia de 8/8 hs
cápsulas: 250 mg (6/6 horas)
Tetraciclina
cápsulas: 250 mg (6/6 horas)
Penicilina G Benzatina
Injetável: 1.200.000 U.I. (dose única)
Os agentes antibióticos possuem três usos principais na prática da
odontologia: tratamento de infecção odontogênica; profilaxia em pacientes
com risco de desenvolver endocardite bacteriana ou outros problemas, devido à bacteremia causada por procedimentos odontológicos; profilaxia em
pacientes com o comprometimento dos mecanismos de defesa do hospedeiro em decorrência de certas doenças ou tratamento farmacológico.
Existem vários tipos de antibióticos, estes podem ser usados isoladamente ou combinados entre si, que podem ser empregados no tratamento
dentário. Em pacientes adultos, na profilaxia de pacientes com risco de
endocardite bacteriana a indicação é amoxicilina (2g) uma hora antes da intervenção cirúrgica. Para pacientes alérgicos à amoxicilina utilizamos eritromicina
1g duas horas antes do procedimento e 500 mg seis horas após.
Os fámacos disponíveis mais utilizados pelas equipes de saúde bucal
são os abaixo relacionados:
No tratamento de infecções leves, a dose usual de amoxicilina é de
250 mg de 8/8 horas ou 500 mg de 12/12 horas. Para infecções graves a
dose recomendada é de 500 mg de 8/8 horas durante 7 dias.
O metronidazol pode ser utilizado em associação a outros antibióticos, sendo de grande eficácia em relação às bactérias anaeróbias, não devendo ser utilizado isoladamente, pois só seria eficaz em infecções exclusivamente anaeróbias. Utilizamos o metronidazol em associação com
amoxicilina no tratamento de alveolite e infecções endodônticas refratárias.
A utilização terapêutica na odontologia da Tetraciclina é limitada ao
tratamento de infecções orodentais agudas; sendo esta mais empregada em
144
Atendimento clínico odontológico em área indígena
certos tipos de doença periodontal, tal como, a periodontite juvenil localizada. A sua vantagem no tratamento desta doença se dá na capacidade de se
concentrar várias vezes no fluído sulcular gengival, cerca de 5 a 7 vezes mais
do que no soro, a sua eficácia contra Actinobacillus actinomicetencomitans, a
boa substantividade e inibição da reabsorção óssea. Contudo a droga é apenas um coadjuvante no tratamento, pois a instrumentação mecânica
perirradicular é primordial na obtenção do sucesso do tratamento.
Considerações finais
Planejar e realizar ações em saúde bucal indígena é experiência
única em odontologia, que difere de todo o contexto teórico e prático
da assistência odontológica ensinada pelas faculdades de odontologia,
observado e praticado em consultórios particulares ou públicos dos
centros urbanos.
Frente ao quadro epidemiológico encontrado nestas populações e
ausência de infra-estrutura, as atividades curativas em odontologia executadas na região abrangida pelo DSEI- RN são ações básicas e primárias,
apoiadas e dependentes de ações preventivas e educativas para se tornarem cada vez mais não mutiladoras e fora do contexto formado pelo ciclo
restaurador repetitivo.
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147
Ações em saúde indígena amazônica
148
13
Ações em Saúde Indígena Amazônica: O Modelo do Alto Rio Negro
FOIRN • São Gabriel da Cachoeira • 2006
Capítulo 13, pp. 145 - 150
Agentes indígenas de saúde
e saúde bucal coletiva
André Luiz Martins
Odontólogo do DSEI-RN/FOIRN, Especialista em Saúde Pública
Ana Maria Campolim Monteiro
Odontóloga, Especialista em Saúde Coletiva
Élida Lopes
Odontóloga, Especialista em Endodontia
Gilberto Granato
Odontólogo
Mítian Frossard
Odontóloga
Daniel Vasconcelos
Odontólogo, Especialista em Saúde Bucal Coletiva
Introdução
Para Narvai & Frazão, “Saúde Bucal Coletiva é um campo de conhecimentos e práticas [que integra] um conjunto mais amplo identificado como
Saúde Coletiva e que, a um só tempo, compreende também o campo da
‘Odontologia’, incorporando-o e redefinindo-o e, por esta razão, necessariamente transcendendo-o”. Para esses autores, a saúde bucal coletiva (SBC)
advoga que a saúde bucal das populações “não resulta apenas da prática
odontológica, mas de construções sociais operadas de modo consciente
pelos homens, em cada situação concreta”.
Sendo processo social, cada situação é única, singular, histórica, não
passível de replicação ou reprodução mecânica em qualquer outra situação
concreta, uma vez que os elementos e dimensões de cada um desses processos apresentam contradições, geram conflitos e são marcados por negociações e pactos que lhes são próprios, específicos. Tal concepção implica (e, num certo sentido, impõe) à SBC uma ruptura epistemológica com a
odontologia (de mercado), cujo marco teórico assenta-se nos aspectos bi149
Ações em saúde indígena amazônica
ológicos e individuais – nos quais fundamenta sua prática – desconsiderando
em sua prática essa determinação de processos sociais complexos.
Na necessidade de um processo de construção ampla da saúde bucal
coletiva, o agente indígena de saúde é reconhecido como categoria de trabalhador em saúde por conta da implantação dos Distritos Sanitários em
1999, pela Funasa, e ao programa de agentes comunitários de saúde (PACS),
pelo Ministério da Saúde.
Objetivo
O objetivo desse capítulo é evidenciar a importância do agente indígena de saúde, dentro de um contexto atual e amplo de saúde bucal coletiva, na consolidação e multiplicação dos conhecimentos e das práticas
odontológicas em regiões indígenas.
Metodologia
No Alto Rio negro existem cerca de 190 agentes de saúde indígenas
distribuídos em 519 comunidades, portanto nem todos os povoados indígenas são assistidos. Dessa forma, alguns AIS realizam setorizações com o
objetivo de melhor atender às diferentes comunidades.
As atribuições de um agente indígena são semelhantes às de um
agente comunitário não indígena:
• Mapear área de atuação;
• Cadastrar famílias da área, mantendo o mesmo sempre atualizado;
• Identificar famílias e indivíduos em risco/atividade de doença;
• Realizar visitas domiciliares periódicas;
• Colher dados para análise e acompanhamento da situação das famílias;
• Desenvolver ações de promoção da saúde;
• Contribuir com a mobilização comunitária para melhoria da
qualidade de vida;
• Incentivar/participar de conselhos locais de saúde.
O processo de capacitação deste agente é o marco incial na formação do multiplicador. Nossa atividade capacitadora é uma das mais antigas
do estado do Amazonas, e é realizada em processos de concentração, no
150
Agentes indígenas de saúde e saúde bucal coletiva
município de São Gabriel da Cachoeira, e de dispersão nas próprias comunidades, com a visita das equipes odontológicas.
No módulo de saúde bucal abordamos assuntos como anatomia,
doenças bucais, alimentação, métodos de higiene oral, métodos alternativos de higiene, prevenção, tratamento e planejamento das ações de promoção de saúde bucal, partindo-se dos seus padrões culturais e enfocando
a realidade existente nas comunidades indígenas.
A elaboração de mapas inteligentes – para a fácil identificação dos
domicílios -, cadastramento das famílias e identificação dos indivíduos em
risco ou atividade de doença são tarefas essenciais do trabalho do agente.
É importante lembrar que a atualização desses dados facilita o desenvolvimento do trabalho de toda a equipe.
Subsequentemente, a assistência domiciliar pode ser compreendida
como um componente do continuum do cuidado à saúde por meio do quais
os serviços de saúde são oferecidos ao indivíduo e à sua família em seus
locais de residência, com o objetivo de promover, manter ou restaurar a
saúde ou maximizar o nível de independência, minimizando os efeitos das
incapacidades ou doenças, incluindo-as sem perspectiva terapêutica de cura.
A assistência domiciliar permite:
a) individualização da assistência a ele prestada e a conseqüente
diminuição das iatrogenias assistivas;
b) o desenvolvimento das ações cuidativas na privacidade e segurança
da casa do paciente indígena;
c) possibilidade do paciente/família manterem um maior controle sobre
o processo de tomada de decisões relacionadas ao cuidado à saúde;
d) desenvolvimento de uma parceria entre as equipes de saúde e o
paciente/família no alcance das metas estabelecidas para a assistência;
e) maior envolvimento dos pacientes/famílias com o planejamento e a
execução dos cuidados necessários desenvolvidos de forma mais
individualizada e, assim, com responsabilidade equitativamente
distribuídas.
Durante o trabalho da equipe de saúde bucal, a importância da atuação do
AIS figura na comunicação entre o profissional e a comunidade visitada, traduzindo as palestras para língua nativa, enfatizando as orientações e inserindo-as no
contexto da comunidade, atuando ativamente nas atividades de HBS (higiene
bucal supervisionada) e ATF(aplicação tópica de flúor), e adquirindo mais conhecimentos ao acompanhar as atividades curativas.
151
Ações em saúde indígena amazônica
Na ausência da equipe de saúde bucal em área, todo trabalho de
prevenção e promoção de saúde deve ser executado pelo agente:
• Realização de HBS e ATF (atividades registradas em fichas de atividades
coletivas em Saúde Bucal e posteriormente repassadas ao cirurgiãodentista no seu retorno a comunidade, dando continuidade as
orientações sobre saúde bucal);
• Visitas domiciliares;
• Acompanhamento de pacientes que por ventura estão fazendo uso de
medicamentos;
• Elaboração de ofinas e atividades educativas e
• Trabalho voltado para os escolares – implantação de EBS após a
merenda;
A importância do agente, centralizada na responsabilidade de acompanhamento de pacientes pós-cirúrgicos, no cuidado com os medicamentos recebidos - principalmente no manejo desses fármacos (flúorgel 1,23%, analgésicos, antiinflamatórios, entre outros) - pode representar, também, uma forma de
prestígio nas relações comunitárias. Observa-se uma expectativa social de que
o agente indígena de saúde detenha a exclusividade de certos saberes; a “caixa
de remédio”, que simboliza a capacidade de curar do agente de saúde, materializa um saber não partilhável com outras pessoas da aldeia.
Na cosmologia indígena, o uso dos medicamentos industrializados
caracteriza o poder de cura do agente de saúde. Mesmo que sejam capazes
de organizar reuniões e atividades de educação em saúde, participar das
atividades de promoção de saúde bucal ou dos conselhos de saúde, encaminhar reivindicações e organizar a demanda para o atendimento, nenhuma dessas habilidades é capaz de superar o prestígio conferido pela capacidade de nominar doenças e oferecer remédios para tratá-las. Sem eles, os
agentes se declaram impotentes e são reconhecidos como tais nas comunidades. Nessa ótica, a distribuição de materiais de prevenção (escovas/cremes dentais e flúor tópico em gel), a atribuição da responsabilidade em dar
uma medicação ao paciente e observar se o mesmo está fazendo uso, assim
como fora prescrito pelo odontólogo, se torna imprescindível.
Dentre suas atividades, também está envolvida a exigência em organizar e orientar a demanda de atendimentos clínicos para o cirurgião dentista.
Num trabalho coletivo, a negociação, o acordo ou “contrato” consciente dos diversos atores envolvidos para buscar a saúde bucal é um trabalho a ser desejado. É uma negociação coletiva inicialmente com o Conselho
152
Agentes indígenas de saúde e saúde bucal coletiva
Local de Saúde, para em seguida buscar adesão nos outros espaços sociais
dos serviços.
Daí a importância de estabelecer a credibilidade no agente de saúde
bucal coletiva como comunicador, desenvolvendo novos vínculos, relações
entre os trabalhadores da saúde e a população, utilizando o próprio exemplo, com demonstrações objetivas, sobre a própria realidade e refletidas
para tomar consciência delas, verificando “pelos próprios olhos” (o olhar
de um comunitário é muito sábio neste sentido) a eficácia dos procedimentos ofertados, discutidos e persuadidos.
A saúde bucal coletiva pretende “substituir toda forma de ‘tecnicismo’
e de ‘biologismo’ presentes nas formulações específicas da área de odontologia social e preventiva, (...) realizando a reconstrução teórica de modo
articulado e orgânico ao pensamento e a ação da Saúde Coletiva, e reforçando o compromisso histórico desta com a qualidade de vida na sociedade
e com a defesa da cidadania, tanto da ação predatória do capital quanto da
ação autoritária do Estado”. FRAZÃO, P. (1999)
Conclusão
O AIS é, no processo de saúde indígena, o elo entre as equipes de
saúde e as aldeias, porque é a pessoa que está sempre presente nas comunidades. Porém, seu papel dentro da nova organização das comunidades
do Alto Rio Regro ainda está em construção.
Fatores como a sua rotatividade, escolaridade, processo seletivo e de
própria formação ainda necessitam de melhor avaliação e planejamento,
visto que, os processos educativos e preventivos de saúde bucal, para terem efeito e resultados consistentes necessitam de AISs bem preparados e
estimulados para realizarem suas atividades integradas com as equipes
odontológicas e com a população de suas comunidades.
É preciso estimular o debate entre os diversos atores envolvidos para
a compreensão crítica das necessidades sociais dos indígenas em saúde
bucal. Assim, estaremos contribuindo para um crescimento sustentável das
ações em saúde coletiva no noroeste amazônico.
Referências bibliográficas
BRANDÃO, M.C. et al. Saúde Indígena em São Gabriel da Cachoeira (AM) –
Uma abordagem antropológica. 1ª ed. Recife, 2002.
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Ações em saúde indígena amazônica
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14
Ações em Saúde Indígena Amazônica: O Modelo do Alto Rio Negro
FOIRN • São Gabriel da Cachoeira • 2006
Capítulo 14, pp. 151 - 158
ART em
comunidades indígenas
André Luiz Martins
Odontólogo do DSEI-RN/FOIRN, Especialista em Saúde Pública
Mítiam Frossard Colodete
Odontóloga
Ana Maria Monteiro
Odontóloga, Especialista em Saúde Coletiva
Daniel Vasconcelos
Odontólogo, Especialista em Saúde Bucal Coletiva
Guilherme Ciriani
Odontólogo
Introdução
Diversos estudos têm sido realizados sobre o ART, no sentido de
avaliar e demonstrar suas utilidades e aplicabilidade no tratamento
odontológico, principalmente em países em desenvolvimento, áreas rurais
e grupos comunitários menos favorecidos dentro de países desenvolvidos.
No Brasil, poucas pesquisas são direcionadas para estudar essa modalidade
de tratamento, e particularmente em saúde indígena muito pouco, ou nada,
se conhece sobre a aplicabilidade do ART em área.
A Técnica Restauradora Atraumática (ART) surgiu na Tanzânia, em
meados da década de 80, e vem sendo utilizada mundialmente em saúde
coletiva, particularmente em localidades de difícil acesso, que não dispõe
de energia elétrica e em populações menos favorecidas. No Brasil, esta
técnica tem sido empregada, pela sua simplicidade e eficiência, desde 1995
como meio alternativo no tratamento odontológico. Entretanto, o seu uso
em saúde indígena foi padronizado somente no ano 2000, após a implantação dos Distritos Sanitários Especiais Indígenas.
Na região do alto rio Negro, no Município de São Gabriel da Cachoeira - AM, as equipes de saúde bucal do DSEI utilizam a técnica restaura155
Ações em saúde indígena amazônica
dora atraumática como parte do tratamento clínico individual, em consonância com as Diretrizes preconizadas pelo DESAI-Funasa e de acordo
com as recomendações da Organização Mundial de Saúde.
A finalidade deste capítulo é descrever a experiência da utilização do
Tratamento Restaurador Atraumático em comunidades indígenas e evidenciar, dentro de uma proposta preventiva e reabilitadora, as vantagens e as
limitações da utilização dessa técnica.
Indicações
Acreditamos que o ART é viável em locais de baixo nível sócio-econômico, de alto índice de CPOD (elevada prevalência de cárie dentária) e de grande
demanda por tratamento odontológico. É o caso do alto rio Negro, região de
grande extensão territorial, inúmeros acidentes geográficos, percursos com características bastante hostis, grande dispersão populacional (23.000 indígenas
distribuídos em 519 comunidades), 23 etnias com línguas e culturas diferentes,
ausência de energia elétrica e reduzido número de profissionais.
Não encaramos o tratamento restaurador atraumático como comportamento provisório de adequação bucal, ao contrário, consideramos
parte do nosso programa para controle de cárie dentária, sendo assim encarado como uma medida de Saúde Pública. Além disso, é visto como um
tratamento de caráter preventivo, devido à propriedade do Cimento de
Ionômero de Vidro (CIV) liberar fluoreto para o meio bucal e recarregar-se
em situações de abundância deste íon no meio.
Segundo FRENCKEN et al., o ART é indicado para cavidades pequenas ou médias do tipo classe I, II ou III, e contra indicadas em cavidades
extensas próximas à polpa dentária. Em nosso trabalho de campo, utilizamos a técnica com o ionômero de vidro em todas as possibilidades de
restauração, portanto, de classes I a V, de diferentes profundidades e em
ambas dentições. É importante enfatizar que não estamos falhando ao usar
a técnica em situações onde ela é contra-indicada. Estariamos sendo omissos ou antiéticos se deixássemos um elemento dental cariado – por exemplo, um incisivo central com cavitação média, classe V – sem tratá-lo.
Técnica
“Atraumatic Restaurative Treatment” (ART) é uma técnica de tratamento restaurador dentário onde não são utilizados aparelhos de corte
156
ART em comunidades indígenas
Foto gentilmente cedida por Gabriel Côrtes
rotatórios para o preparo da cavidade dental cariada. O material odontológico
utilizado neste tipo de restauração é, normalmente, o cimento de ionômero
de vidro autopolimerizável (Ketac molar / Fugi IX / Vitro Molar). Para realização da técnica são utilizados: uma bandeija pequena contendo uma pinça
clínica, um explorador, uma espátula de inserção n.1, uma colher de dentina,
roletes de algodão, vaselina sólida, potes dappen, soro fisiológico /
clorexidina, cimento de inonômero de vidro, placa de vidro e espátula para
manipulação. Outros materiais de consumo e instrumentais também, eventualmente, podem ser utilizados, como por exemplo, seringa Centrix.
Inicialmente, procede-se a remoção mecânica do tecido cariado com
a colher de dentina, em movimentos circulares. É recomendada, em algumas situações, a utilização de recortadores de bordo ou machados para
romper a camada de esmalte socavado e permitir o acesso à dentina cariada
subjacente. Este fator tem sido uma restrição ao uso da técnica, pois é
cansativo e traumatizante para o operador. Posteriormente, realiza-se o
isolamento relativo com roletes de algodão, lavagem da cavidade com bolinhas de algodão embebidas em soro fisiológico ou clorexidina e secagem
com bolinhas secas. Após, realiza-se o condicionamento da cavidade utilizando uma bolinha de algodão umedecida no líquido do ionômero de vidro
e novamente lava-se e seca-se. O isolamento relativo deve ser trocado para
que se tenha o máximo possível de controle de umidade. Passa-se para a
colocação do material restaurador na cavidade. Em seguida, faz-se a compressão digital com o dedo vaselinado.
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FIGURA
1
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Molares com
cavitação (antes)
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Foto gentilmente cedida por Gabriel Côrtes
Ações em saúde indígena amazônica
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FIGURA
2
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Molares pós
ART (depois)
Aplicabilidade
O grande número de estudos sobre o ART confirmou a sua grande
aplicabilidade. Por ser uma técnica manual de remoção de tecido dental
cariado, não exige infra-estrutura voltada ao atendimento odontológico,
equipamentos elétricos e sofisticados sistemas restauradores.
Os profissionais de saúde bucal do DSEI-RN utilizam esta técnica
com a finalidade de promover saúde bucal através da paralisação da cárie
dentária – devido à liberação de flúor pelo material restaurador –, manutenção da função mastigatória e, também, por ser uma técnica conservadora de estrutura dental e viável para locais com o mínimo de infra-estrutura.
As equipes realizam viagens às aldeias indígenas (comunidades) com duração média de 30 dias, onde, após os procedimentos coletivos (atividades
educativas e prevenção em saúde bucal) e prévia organização da demanda
de pacientes, realiza-se o tratamento restaurador atraumático com ionômero
de vidro – procurando-se executar o maior número possível de restaurações – e exodontias necessárias.
Os dados do Sistema de Informação em Saúde Indígena (SIASI) do
DSEI-RN revelam a tendência de incremento da utilização do ART em área
indígena (gráfico 2), possivelmente pelo esforço e trabalho sustentável das
equipes de saúde bucal. Outro dado revelador é a concentração dessa modalidade de tratamento na população de 5 a 12 anos, idade da dentição mista.
Hipoteticamente, supõe-se que a população dessa faixa etária deva ter expe158
ART em comunidades indígenas
riência de cárie bem precocemente e que os pais, possivelmente, estejam
cientes das condições bucais da criança e procuram levá-la ao atendimento.
Antes da criação dos Distritos Sanitários, a odontologia praticada
nessa região era puramente extracionista e não condicionada a um programa de saúde bucal. Essa prática mutiladora trouxe conseqüências importantes: (1) grande parte dos indígenas, principalmente os adultos e idosos,
tem preferência pela exodontia do elemento dental à sua restauração; (2)
muitos têm “medo” de que o dente possa ter sintomatologia dolorosa após
a restauração e não haver odontólogo naquele momento na comunidade,
portanto opta pela resolução extracionista; (3) o número de indivíduos desdentados parciais ou totais é alto.
Entendemos que o âmago da questão não está na realização da técnica
em si, até porque é considerada de fácil execução e baixo custo, mas na
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FIGURA
3
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Gráfico 1: Fonte – SIASI – DSEI-RN
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Gráfico: Fonte – SIASI – DSEI-RN
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FIGURA
4
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Ações em saúde indígena amazônica
sensibilização e na confiança do indígena para com o profissional e o tratamento
por ele realizado. Pois, se o índígena não entender o que está sendo feito, há
grandes chances do trabalho se tornar perdido. E para que o tratamento restaurador atraumático tenha potencial de se tornar viável para populações indígenas, é importante que não seja realizado isoladamente, mas integrado a outras
medidas preventivas, como controle de placa e higiene bucal. Por isso, para que
haja sustentabilidade são necessários alguns cuidados: bom entendimento sobre o tratamento, boa higienização bucal, cuidados com a alimentação, e o
próprio fato do paciente estar feliz com o tratamento aplicado.
Em relação ao sucesso da utilização do ART, alguns estudos com duração de até um ano verificaram um grau de sucesso bastante favorável, como os
resultados de PITIPHAT et al. (1993), que constataram índices de sucesso de
87% e 56% para restaurações de uma ou mais superfícies, respctivamente.
FRENCKEN et al. (1994) também encontraram índices de 79% e 55% para
dentição decídua e de 93% e 67% para a permanente, em uma ou mais superfícies, respcetivamente. Porém, estudos de maior duração encontraram índices
de sucesso moderado. MALLOW et al. (1998), após 3 anos, encontraram
resultados de 79,5% de restaurações presentes, sendo apenas 59% consideradas como bem-sucedidas. No Brasil, poucos são os estudos avaliativos e
aplicativos sobre o ART, e particularmente em saúde indígena a literatura é nula.
Vantagens
• É bem aceita, principalmente por crianças;
• Não necessita de equipamentos sofisticados;
• A técnica é conservadora e biologicamente aceitável pelos tecidos dentários;
• É de fácil execução e pode realizada em qualquer localidade e comunidade;
• Em geral não envolve uso de anestesia;
• Fácil de reparar a restauração (se necessário);
• Não provoca desconforto ao paciente;
• Libera flúor e inibe microrganismos residuais.
Limitações
- Maior desgaste superficial e menor dureza do material restaurador;
- É mais adequada para restaurações de uma face (classe I);
160
ART em comunidades indígenas
• Inadequada espatulação pode comprometer a durabilidade da
restauração;
• O tempo médio de uma restauração é de 20 minutos, o que pode
resultar em fadiga das mãos;
• Não aceitabilidade da técnica por alguns profissionais;
• É mais adequada apenas para dentes posteriores.
Conclusão
Devido à simplicidade da técnica, o baixo custo operacional, à possibilidade de execução da técnica sem uso de energia elétrica e sem equipamentos odontológicos sofisticados, à alta prevalência de cárie e à ampla
necessidade de tratamento da população rionegrina, o ART se consolidou
como uma alternativa viável e adequada para saúde indígena.
Após 6 anos de assistência no alto rio Negro, verificou-se uma boa
aceitação desta técnica, devido sua simplicidade e possibilidade de execução em qualquer comunidade indígena, independente do seu tamanho ou
das dificuldades de acesso.
Percebeu-se também, a partir da utilização do ART, uma melhora
significativa nas condições de saúde bucal das populações assistidas, pois,
além de manter a função mastigatória, evitam-se mutilações desnecessárias
e melhora-se a auto-estima.
Estudos precisam ser realizados para um melhor esclarecimento e entendimento sobre a durabilidade e longevidade dessas restaurações, mostrando-se uma linha de pesquisa promissora no campo da saúde pública.
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162
15
Ações em Saúde Indígena Amazônica: O Modelo do Alto Rio Negro
FOIRN • São Gabriel da Cachoeira • 2006
Capítulo 15, pp. 159 - 165
Educação e prevenção
em saúde bucal
André Luiz Martins
Odontólogo do DSEI-RN/FOIRN, Especialista em Saúde Pública
Guilherme Ciriani
Odontólogo
Eduardo Ottoni
Odontólogo, Especialista em Endodontia
Ana Maria Monteiro
Odontóloga, Especialista em Saúde Coletiva
Mítian Frossard
Odontóloga
Gilberto Granato
Odontólogo
Nacle Mourão Jr.
Odontólogo
Introdução
O contato dos povos do alto rio Negro com os colonizadores e seus
hábitos alimentares produziu um efeito devastador sobre a dentição daquela população, gerando elevada prevalência de cárie dental e outras doenças
bucais. O modelo de atenção odontológica promovido ao longo das últimas
décadas, baseou-se em processos curativos - quase que exclusivamente,
extrações dentárias -, e poucas ações educativas foram executadas a partir
da pedagogia de condução.
Com a implantação do Distrito Sanitário Especial Indígena do Alto
Rio Negro – DSEI-RN, em 2000, surgiu a possibilidade de programar ações
curativas e principalmente coletivas, objetivando levar a educação em saúde, e ações preventivas, que garantiria acesso a saúde bucal diferenciada
aos indígenas da região.
A educação em saúde deve ser capaz de criar condições para a construção de um conceito que leve em conta as condições de vida de cada
163
Ações em saúde indígena amazônica
indivíduo e que contribua, não só para despertar o sentimento de que é
possível modificar hábitos, mas também para conscientizar de que a saúde
é um direito de todos.
Segundo FREIRE (1996) ensinar não é transferir conhecimento, mas
criar as possibilidades para a sua própria produção ou sua construção. O
entendimento é co-participado, e acrescenta que o educador deve ser comprometido com seus educandos.
Objetivos
O objetivo desse capítulo é descrever a importância da educação na
prevenção e na promoção em saúde bucal, bem como relatar o trabalho de
educação em saúde no contexto da sociedade indígena.
As ações de saúde bucal coletiva objetivam a educação e prevenção
em área indígena, e são embasadas nos seguintes critérios:
• Desenvolver ações preventivas e educativas respeitando os hábitos e
costumes indígenas;
• Diminuir a prevalência e incidência de cárie, nas regiões assistidas;
• Promover uma mudança, de um modelo assistencialista curativo, para
um modelo educativo/preventivo;
• Melhorar a qualidade de vida da população.
O foco: educação em saúde bucal
No enfoque tradicional a educação em saúde se ocupa principalmente do comportamento humano e de como modificá-lo para a melhoria e a
promoção da saúde individual e comunitária. O seu objetivo é tentar modificar comportamentos considerados prejudiciais à saúde. Este enfoque é
comumente encontrado nas ações educativas realizadas em escolas, nas
instituições de saúde pública e na prática odontológica em saúde indígena.
Um outro enfoque busca aumentar a participação da população no
acesso e gestão dos serviços de saúde. Neste enfoque, os esforços se concentram para efetivar as decisões tomadas pela comunidade e suas lideranças, visando promover ações que tenham impacto coletivo.
Em todos esses enfoques a educação é vista como um pré-requisito
para se alcançar a saúde. Considera-se que através de processos educativos
pode-se conseguir a modificação de hábitos e/ou a participação política da
164
Educação e prevenção em saúde bucal
população. Tem-se a visão que, se todas as pessoas fossem educadas, os
problemas de saúde estariam resolvidos.
Entretanto, tem-se observado que, na prática com populações indígenas, não tem sido uma atividade simples de ser realizada.
A educação em saúde bucal, tradicionalmente em todo o mundo, tem
se baseado na transmissão de informações. É realizada, na maioiria das vezes,
dando ênfase aos conteúdos da informação, deixando de lado os receptores
destas informações. Baseadas nas pesquisas científicas estas informações se
colocam como neutras e verdadeiras e se constituem em mensagens prontas,
aplicáveis em todos os lugares do mundo, em todas as faixas etárias e em
todas as camadas sociais. Parece que existe uma receita única.
DONNEYS (1991) faz uma crítica à maioria dos programas de educação em saúde, afirmando que quase todos eles consideram apenas as
causas biológicas da doença, desconsiderando suas características sociais.
Nesse sentido, a educação se utiliza somente dos conhecimentos científicos para tentar modificar a consciência e controlar o comportamento das
pessoas. Não há uma preocupação com o indivíduo enquanto um ser social, que vive, e que também é o maior interessado no processo educativo.
Como fazer educação em saúde bucal?
A educação em saúde bucal é uma das responsabilidades da equipe
odontológica. Não existe uma forma padronizada (uma receita) para sua realização, embora seja preciso levar em consideração alguns aspectos importantes.
Conhecer as histórias de vida, o contexto social em que vivem e o
repertório sociocultural são fatores fundamentais para o processo de ensino-aprendizagem. A educação em saúde bucal deve focar o indivíduo, seu
corpo, seus desejos, sua inserção na realidade social.
Entendido por essa ótica, onde tanto a educação como a saúde são
práticas sociais, cabe ao odontólogo uma atuação que extrapole o ato
terapêutico, contribuindo efetivamente para melhoria das condições de vida
da comunidade. Para atender as necessidades do paciente as ações
educativas, preventivas e curativas devem ser consideradas como procedimentos integrados.
A saúde bucal está inserida dentro do contexto amplo de saúde, a
qual está comprometida com o repertório sociocultural do indivíduo/comunidade. O entendimento desta ótica favorece o odontólogo a responder às
165
Ações em saúde indígena amazônica
necessidades de saúde bucal da população. Com vista à superação da odontologia tradicional, passa-se a buscar o modelo de atenção à saúde bucal
mais abrangente, integrando aspectos preventivos, curativos, biopsicossociais
e ambientais, com ênfase em ações de integração à equipe multidisciplinar.
O diálogo entre o educando e o educador possibilita identificar quem
são os nossos educandos, quais são seus conhecimentos, crenças e valores
com relação à saúde bucal. Através do diálogo pode-se compreender como
as pessoas de uma aldeia percebem, explicam e lidam com seus problemas
de saúde bucal: como explicam suas causas, seu desenvolvimento, os possíveis efeitos sobre sua saúde geral, sobre as outras pessoas e as formas
encontradas para resolvê-los. É preciso considerar que o Cirurgião Dentista não é o dono do saber e da cultura; que o processo educativo necessita
de uma interação entre as pessoas. Para que essa interação ocorra, o dentista deve saber ouvir, partir de onde o outro se encontra para juntos irem
construindo novos saberes e novas práticas.
O trabalho de educação em saúde bucal deve envolver, cada vez
mais, todos os interessados no desenvolvimento de ações voltadas para a
defesa da saúde. Deve, assim, aproximar cirurgiões-dentistas, técnicos de
higiene dental, auxiliares em odontologia, agentes de saúde, pedagogos,
professores, antropólogos e demais grupos organizados da comunidade no
intuito de desenvolver trabalhos educativos.
As ações
O método de abordagem e trabalho praticado pelos profissionais do
DSEI-RN abrange toda população do distrito, através de palestras educativas
para toda a comunidade indígena – utilizando a pedagogia da
problematização na língua – palestras educativas voltadas para uma linha
de cuidado (atenção à gestante, atenção ao bebê, atenção à criança e ao
adolescente), oficinas educacionais centralizadas na temática da saúde e na
importância do intercâmbio dos conhecimentos tradicionais indígenas com
os ocidentais, capacitação dos agentes de saúde e trabalho com escolares
visando a produção de materiais educativos na língua nativa.
O treinamento dos agentes indígenas de saúde (AIS) em higiene bucal supervisionada (HBS) e aplicações periódicas de flúor faz parte da cadeia funcional das propostas aplicadas in locus conjuntamente com a
conscientização das gestantes e mães sobre a importância de uma boa
higienização bucal para a saúde de seus filhos.
166
Educação e prevenção em saúde bucal
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FIGURA
1
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AIS sendo capacitados por odontólogos
em EBS. Capacitação
no P.B. de Tucumã.
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FIGURA
2
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AIS em oficina de saúde bucal
na escola. Foto gentilmente
cedida por M. Carolina
A capacitação e introdução dos professores dentro do contexto de
saúde bucal e a distribuição de pastas e escovas reforçam este cenário
dentro dos métodos aplicados. A escola tem sido apontada como local
estratégico para realização de programas de educação devido ao grande
tempo de permanência das crianças, por estas encontrarem-se em fase de
grande receptividade de informações e pela grande influência exercida pelos professores na incorporação de hábitos.
O incentivo ao uso de meios alternativos para a higiene bucal, como por
exemplo, fio de tucum à fio dental, escova de galho verde na ausência de escova
dental convencional e, também, o incentivo ao uso da medicina tradicional e da
ingestão dos alimentos tradicionais, são fatores de profunda importância.
Considerações finais
Através das atividades de educação, promoção e prevenção em saúde
bucal conseguimos despertar nas comunidades indígenas (aldeias) a importância de uma boa higienização bucal, conscientização sobre a introdução de hábi167
Foto: Alexandre Carlos da Silva.
Ações em saúde indígena amazônica
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FIGURA
3
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Escovação bucal
supervisionada.
Foto: André L. Martins.
tos alimentares nocivos à saúde bucal, noções básicas de prevenção das doenças cárie e periodontal e delegação de poder aos agentes indígenas de saúde
com relação a escovação supervisionada e aplicação tópica de flúor, dentro de
um cronograma previsto nas diretrizes de saúde bucal para os DSEI.
A intensificação das atividades em saúde baseadas na educação e
prevenção podem acelerar a transformação de uma atenção assistencialista
para um modelo que desvincula a dependência destas comunidades.
As práticas de educação em saúde, baseadas exclusivamente no repasse de conhecimentos, deixam de lado questões importantes. É necessário um aprendizado constante com a população sobre os detalhes de seu
cotidiano, seu modo de vida, história e costumes para então se perceber
como as dimensões do conhecimento técnico podem ser utilizadas.
Os trabalhos educativos precisam ser reforçados e encarados como atividades prioritárias dentro das ações odontológicas em comunidades indígenas.
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FIGURA
4
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Educação em saúde: alunos da
Escola Indígena Baniwa
Curipaco, rio Içana, apresentando a cartilha em saúde bucal
produzida na língua local, sob
orientação do odontólogo.
Educação e prevenção em saúde bucal
Referências bibliográficas
BORUCHOVIT, E.; et al. Conceito de doença e preservação da saúde da
população de professores e escolares de primeiro grau. Rev. Saúde Pública,
v. 25, n.6, p.418-425, Dez.1991.
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DAY, R. A. Como Escrever e Publicar um Artigo Científico. 5ª ed. São Paulo:
Santos, 2001.
DONNEYS, M. E. C. Educacion para la salud: aspcetos metodologicos. In:
Educ. Med Salud, n.2, v.25, 1991.
FONSECA, L. C. S. Ensino de ciências e saber popular: In: VALLA, V. V.
Saúde e educação. Rio de Janeiro, DP7A Editora, p.87-104, 2000.
FREIRE, P. Pedagogia da autonomia – Saberes necessários à prática educativa.
São Paulo: Paz e Terra. p.165, 1996.
MARTINS, E. M. Educação em saúde bucal: os desafios de uma prática. Cad.
Odont. v.1, n.2, p.30-40, 1998.
PINTO, V. G. Saúde Bucal Coletiva, 4ª ed. São Paulo: Santos, 2000.
VALENÇA, A. M. G. A Educação em Saúde na formação do Cirurgião-Dentista
da necessidade à pratica participativa. 103f. Monografia (Especialização
em Saúde Pública) Faculdade de Medicina, Universidade Federal
Fluminense, Niterói, Rj, 1992.
VASCONCELOS, E. M. Educação popular e atenção à saúde da família. São
Paulo: HUCITEC. p.332, 1999.
169
Ações em saúde indígena amazônica
170
16
Ações em Saúde Indígena Amazônica: O Modelo do Alto Rio Negro
FOIRN • São Gabriel da Cachoeira • 2006
Capítulo 16, pp. 167 - 172
Odontologia para gestantes
e bebês em aldeias indígenas
André Luiz Martins
Odontólogo do DSEI-RN/FOIRN, Especialista em Saúde Pública
Eduardo Ottoni
Odontólogo, Especialista em Endodontia
Nacle Mourão Jr.
Odontólogo
Gilberto Granato
Odontólogo
Introdução
As populações da região conhecida como alto rio Negro estão em contato com frentes de colonização desde o século XVII. Durante estes contatos
estas populações sofreram um processo de aculturação que influenciou tanto
suas tradições quanto seus hábitos alimentares. Estas mudanças na alimentação, através da introdução do açúcar e alimentos industrializados na dieta provocaram elevada prevalência e incidência de cárie desde a infância. Soma-se a
isso o fato de que, na contra-mão desse processo, não foram introduzidos os
hábitos benéficos de higiene oral. Mediante tal histórico, e até mesmo pela
tradição, a odontologia fortaleceu uma preocupação mais voltada ao atendimento de crianças, à partir da erupção dos primeiros dentes decíduos.
Na tentativa de reverter este quadro, foi introduzido desde 2000
através do Distrito Sanitário Especial Indígena do Alto Rio Negro - DSEIRN, um trabalho de conscientização com gestantes e mães com bebês de
colo desassistidas até então.
A conscientização: um processo em construção
As ações de saúde bucal coletiva para gestantes e bebês envolvem a
conscientização da população sobre a importância do aleitamento materno
171
Ações em saúde indígena amazônica
Foto: André L. Martins
nos primeiros meses de vida da criança e orientações sobre a dieta. Na
impossibilidade ou deficiência do aleitamento materno, os enfermeiros cadastram a criança no programa do leite e entregam mensalmente uma lata
de leite em pó. É enfatizado que a utilização do açúcar no preparo do leite
não é necessária, ao contrário, é prejudicial à saúde bucal, mesmo antes do
irrompimento dos primeiros decíduos. É preciso salientar que a microbiota
cariogênica inicia sua formação mesmo antes da erupção dentária e uma
dieta rica em carboidratos, em especial o açúcar, pode levar o bebê a se
tornar mais susceptível a experiências de cárie dentária logo após a erupção
dos primeiros decíduos.
A mudança de atitude em relação aos cuidados da dentição decídua e
a orientação de que as mães podem procurar assistência odontológica para a
criança em qualquer idade são elementos fundamentais do elo da corrente.
Motivar os pais e a família em relação à adoção de medidas preventivas, tanto para o bebê quanto para si próprios, também é uma prática
importante no sentido da promoção em saúde.
As mães de colo são orientadas a realizar a higiene do bebê sempre
após a amamentação. São aconselhadas a utilizar uma fralda limpa embebida em água e esfregá-la com cuidado sobre a toda a região gengival.
Os pais também são orientados que quando a criança já estiver com
dentes decíduos erupcionados a higiene oral deve ser feita com escova
dental, e que a responsabilidade da escovação ainda é deles, visto que a
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FIGURA
1
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172
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Mãe Baniwa com criança de colo.
Odontologia para gestantes e bebês em aldeias indígenas
Foto: André L. Martins
criança não é capaz de fazer uma boa escovação e evitar o desperdício de
creme dental. Quando os pais acharem por bem devem passar a responsabilidade da escovação para a criança, porém devem ficar atentos e observar
se a criança está de fato realizando ação de forma correta.
O Programa Nacional de Saúde Bucal para os Povos Indígenas orienta para a não participação de menores de sete anos de idade nas atividades
de aplicação tópica de flúor realizada pelos agentes indígenas de saúde.
Crianças menores de 7 anos demandam atendimento individual pelo Cirurgião-Dentista e técnicas diferenciadas para aplicação.
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FIGURA
2
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Mãe higienizando a gengiva do bebê
Clinicamente, realizações de ART ( técnica restauradora atraumática)
podem se fazer necessárias a partir do aparecimento da dentição decídua.
Todas as ações realizadas são previamente planejadas e articuladas
com os AIS, que são capacitados para serem multiplicadores em potencial,
visando levar uma única abordagem educativa e buscando englobar o maior
número de gestantes e bebês da região de assistência. No processo das
ações de trabalho, após as palestras, um espaço precisa ser destinado exclusivamente para as gestantes e mães no processo de conquista de uma
boa saúde bucal dos bebês.
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Foto: André L. Martins
Ações em saúde indígena amazônica
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FIGURA
2
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Pai higienizando os primeiros dentes decíduos.
A importância do aleitamento materno e o cuidado de se evitar a
introdução do açúcar na dieta de seus filhos, alertando-as sobre os malefícios
deste alimento para a saúde bucal são enfatizados.
Atenção clínica à gestante
Em relação ao atendimento clínico individual procuramos não realizar
procedimentos cirúrgicos em área indígena, exceto em situações emergenciais
(=dor), em gestantes em qualquer período gestacional. Como as distâncias
são grandiosas até os centros de referência, as condições de atendimento e
infra-estrutura não são satisfatórias, as dificuldades de locomoção são inúmeras e os recursos para situações de pronto-atendimento médico/enfermagem
são limitados, o bom profissional opta em preservar o paciente.
É necessário o esclarecimento ao AIS e à gestante que a não realização de um evento cirúrgico é meramente por questões de segurança.
Famacoterapia
A farmacoterapia deste grupo de pacientes se reveste de grande delicadeza, dadas as características da paciente nestes estados. Durante a
gestação a mulher passa por modificações fisiológicas e hormonais importantíssimas e o fato de a Barreira Placentária não ser plenamente efetiva na
174
Odontologia para gestantes e bebês em aldeias indígenas
filtração dos fármacos, devemos ter sempre em conta que ao medicarmos a
mãe, estamos medicando também o feto.
O mesmo se aplica às lactantes, pois sendo o leite uma excreção,
nele encontramos traços de fármacos administrados à mulher, que fatalmente serão absorvidos pela criança. Uma ótima opção seria o aleitamento
imediatamente antes ou imediatamente após a dosificação da droga.
Mas um princípio deve ser obedecido: usar a menor dose efetiva,
pelo menor tempo possível, evitar sessões clínicas demoradas e estressantes,
orientar a paciente sobre sua condição, não aumentando os medos e preconceitos que acompanham seu atual estado.
Anestésico local
Lidocaína com vasoconstrictor (Xylocaína, Lidocaína com vaso)
Obs. evitar o uso de Prilocaína (Citanest, Biopressin) e Fenilefrina
(vasopressor do Novocol) : são tóxicos ao feto e ao recém-nato
Analgésicos
1a escolha
escolha: Paracetamol (Tylenol, Dôrico 500 mg)
500 mg de 6/6 hs SOS
2a escolha
escolha: Dipirona (com restrições)
1 comp. de 6/6 hs
35 gts. de 6/6 hs
OBS.: o ácido acetil-salicílico é contra-indicado!
Antiinflamatórios
1a escolha
escolha: Meios físicos
uso de frio, imediatamente após o trauma, por 2 hs.;
calor local 24 hs. Após o trauma.
2a escolha
escolha: Diclofenaco (não utilizar no último trimestre gestacional)
(Cataflan, Voltaren, Diclofen, Biofenac etc., todos de 50 mg.)
50 mg de 8/8 hs
175
Ações em saúde indígena amazônica
Antibióticos
1a escolha
escolha: Penicilinas
500 mg de 6/6 hs ou 8/8 hs
2a escolha
escolha: alergia às penicilinas
Eritromicina e Frademicina
250 a 500 mg 6/6 hs.
Conclusão
O resultado deste trabalho demonstra que o conhecimento sobre
saúde bucal das mães e gestantes ainda tem muito a ser aprimorado.
Incentivando o resgate de práticas tradicionais, benzimentos, alimentos regionais e a amamentação do bebê, esperamos obter uma melhora do
quadro atual.
Apesar das dificuldades, observamos o interesse dessas mães em
relação às atividades alvo. Com isso almejamos estimular a médio/longo
prazo, nesta fatia da população, conhecimentos que possam ser transmitidos às próximas gerações.
Referências bibliográficas
BRANDÃO, M. C. et al. Saúde Indígena em São Gabriel da Cachoeira (AM):
uma abordagem antropológica, 1ª ed. Líber gráfica e editora, 2002.
PINTO, V. G. Saúde bucal coletiva, 4ª ed. 2000.
YAGILA, J.; NEIDLE, E. Farmacologia e Terrapêutica para Dentistas. Rio de
Janeiro, Guanabara Koogan, 4ª ed. 2000.
WANNMACHER, L.; FERREIRA, M. B. C. Farmacologia Clínica para Dentistas.
Rio de Janeiro. Guanabara Koogan, 2ª ed. 1999.
176
17
Ações em Saúde Indígena Amazônica: O Modelo do Alto Rio Negro
FOIRN • São Gabriel da Cachoeira • 2006
Capítulo 16, pp. 173 - 188
A odontologia e o
alto rio Negro:
Uma nova perspectiva
André Luiz Martins
Odontólogo do DSEI-RN/FOIRN, Especialista em Saúde Pública
Introdução
Respirar a pureza da Amazônia e trabalhar ao ar livre e de forma transparente, uma vez que a prática clínica não é realizada a quatro paredes, ao
contrário, é explicitada a todos, sem distinção de idade, sem censura, é no
mínimo fascinante. Toda a comunidade disposta ao redor da mesa de atendimento, conversando assuntos inimagináveis na língua nativa, crianças ao colo
das mães – muitas aos prantos, outras sorrindo -, professores trazendo os
alunos para o atendimento, jovens com olhares desconfiados – mas aparentemente tranqüilos -, lideranças e agente indígena de saúde preocupados com
a organização dos comunitários para a realização dos atendimentos. A simplicidade dos nativos indígenas ao se submeterem – na maioria das vezes sem
sequer falar, gemer ou reclamar - às mãos de um odontólogo, com cultura,
hábitos e costumes absolutamente diferentes, confere à odontologia praticada em grande parte da Amazônia, em especial na região do alto rio Negro,
detalhes de puridade, humildade e singularidade.
Objetivo
Esse capítulo pretende, além de debater as experiências realizadas e
observadas ao longo da existência do Distrito Sanitário do Alto Rio Negro,
propor, para discussão, alguns caminhos que levem à construção, à evolução e à consolidação de uma prática coletiva em saúde bucal nos diversos
espaços indígenas. Assim sendo, essa tarefa constitui um grande desafio
porque envolve um rearranjo das formas organizacionais dentro de um contexto de co-responsabilidade, isto é, participante e democrática.
177
Ações em saúde indígena amazônica
Cárie: A doença mais prevalente no alto rio Negro
A cárie dentária é uma doença dos tecidos calcificados dos dentes, que
se caracteriza pela desmineralização da porção inorgânica e pela destruição
da substância orgânica do dente. É uma patologia de caráter multifatorial.
Seu aparecimento depende da interação de três fatores essenciais: o hospedeiro – representado pelos dentes e saliva -, a microbiota bucal e a dieta
consumida. Das doenças crônicas que atingem a raça humana é a mais
prevalente. Quando ocorre, suas manifestações permanecem por toda a vida,
mesmo que a lesão seja tratada. Não existe, praticamente, nenhuma área
geográfica no mundo cujos habitantes não apresentem alguma evidência de
cárie dentária. A doença atinge pessoas de ambos os sexos em todas as raças,
em todos os grupos sócio-econômicos e em todas as faixas etárias, podendo
ser perfeitamente considerada uma doença da civilização moderna.
Em 1934, Mellanby reviu a literatura sobre a incidência de cárie em
raças primitivas e notou que era invariavelmente menos freqüente do que no
homem civilizado. Esquimós, que vivem em vilas nativas, afastados do contato com o homem civilizado, apresentam uma baixa incidência de lesões de
cárie. Rosenbury e Karshan constataram que entre membros de uma vila
isolada 1,2 por cento dos dentes examinados estava cariado, enquanto que
uma vila onde vivia um comerciante que negocia alimentos processados, a
incidência de dentes cariados era de 18,1 por cento. O mesmo efeito da dieta
sobre a cárie dentária foi demonstrado por Mellanby em estudos com nativos
no sul da Rodésia. Esses estudos indicam que a civilização moderna e o aumento da incidência de cárie dentária estão em associação constante e que o
fator dieta parece ser mais significativo, principalmente porque a incidência
de cárie aumenta pelo contato como alimentos industrializados.
A dificuldade no diagnóstico de lesões de cárie é um problema diário, principalmente a detecção de lesões de cárie oculta. O termo cárie
oculta é usado para descrever a lesão cariosa que atingiu a dentina e é
observada através de radiografia interproximal, em que clinicamente o esmalte oclusal está aparentemente sadio ou com mínima desmineralização.
Como não dispomos de equipamentos para exame radiográfico, o único método de diagnótico é o exame clínico. Portanto, ele deve ser realizado
com o dente limpo, seco e bem iluminado. A remoção do biofilme dentário
com profilaxia adequada é fundamental no diagnóstico de cárie oculta. Muitas
vezes, as lesões apresentam pontos de desmineralização do esmalte, principalmente ao redor do sistema de fossas e fissuras, e não apresentam cavitações.
178
A odontologia e o alto rio Negro : uma nova perspectiva
No trabalho em área indígena, a opção terapêutica mais indicada é
restauração do elemento dental com cimento de ionômero de vidro (ART).
O perfil epidemiológico do alto rio Negro
No alto rio Negro o contato e o relacionamento dos indígenas com a
sociedade nacional, nas últimas décadas, provavelmente contribuíram para
alterações no quadro de saúde bucal, especialmente no incremento na
prevalência de cárie dentária. Esta doença pode estar relacionada à mudança no estilo de vida e hábitos tradicionais. Os alimentos naturais foram
substituídos por produtos processados, especialmente carboidratos refinados. Estudos como o de THYLSRUP & FEJERSKOV (1995), demonstra
que a dieta exerce um papel central no desenvolvimento da cárie.
Um levantamento epidemiológico realizado em 2004, na área de
abragência do DSEI-RN, revelou que os índices CPOD e CeO estão bem
acima dos preconizados pela OMS (Organização Mundial de Saúde), sinalizando a gravidade das condições bucais encontradas.
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Fonte: SIASI – 2004 – DSEI-RN
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TABEL A
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FAIXA ETÁRIA
CPOD E CEO
5 ANOS
7 ,2 9
12 ANOS
5 ,4 5
15 ANOS
7,50
35 a 44 ANOS
15,92
60-90 ANOS
21,80
A evolução da cárie dentária no alto rio Negro pode ser facilmente
comprovada segundo o percentual do índice CPO-D (cariados / perdidos
/ obturados) de dentes cariados aos doze anos de idade (55%) e de dentes perdidos após os sessenta anos de idade (90%). Consequentemente,
o número de indivíduos desdentados parciais ou totais é elevado. A mortalidade dentária é um problema de saúde pública na região e deve ser
encarado como prioridade dentre as diversas ações de atenção básica
ofertadas pelo DSEI.
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Ações em saúde indígena amazônica
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FIGURA
1
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Gráfico 1: Fonte – SIASI – 2004 – DSEI-RN
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Gráfico 2: Fonte – SIASI – 2004 – DSEI-RN
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Gráfico 3: Fonte – SIASI – 2004 – DSEI-RN
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FIGURA
2
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FIGURA
3
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A odontologia e o alto rio Negro : uma nova perspectiva
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FIGURA
4
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Gráfico 4: Fonte – SIASI – 2004 – DSEI-RN
Um estudo realizado com indígenas do Parque Nacional do Xingu
demonstrou elevados níveis de cáries nesses povos, em todos os grupos
etários. O CPO-D médio para crianças de 11 a 13 anos de idade foi de
5,93 - semelhante ao encontrado no alto rio Negro. Segundo a observação
dos autores, há baixa incorporação de serviços odontológicos. A irregularidade dos serviços programados para estas comunidades, assim como alterações em seus padrões alimentares e culturais, reforçam a necessidade
urgente de iniciativas de promoção de saúde dirigidas a estes grupos.
O ART como modalidade de tratamento
É evidente que as novas concepções sobre saúde pública enfocam os
aspectos preventivos e educativos como prioritários, uma vez que se os
esforços se direcionarem nesse sentido, os resultados, a longo prazo, seriam plenamente satisfatórios. Entretanto, os programas de saúde bucal, principalmente em comunidades indígenas não podem se limitar somente à
ações educativas e preventivas, visto que o índice de cárie e a demanda
para procedimentos restauradores são altos.
O Tratamento Restaurador Atraumático (ART) foi desenvolvido para
possibilitar o tratamento odontológico em localidades de baixo nível
socioeconômico, principalmente em países menos industrializados, em campos de refugiados, locais onde não há eletricidade ou, alternativamente, em
áreas eletrificadas, mas que a situação econômica não permita a aquisição de
equipamento e material odontológicos caros, já que a execução é simples.
181
Ações em saúde indígena amazônica
A utilização do ART nos DSEIs, particularmente no Distrito Alto Rio
Negro, vem se consolidando como uma prática cotidiana em saúde bucal,
principalmente porque o alto índice de cárie é uma realidade preocupante,
e as populações indígenas dessa região habitam locais de difícil acesso e
não dispõem de energia elétrica. Na Amazônia, particularmente no alto rio
Negro, a maioria dos povos indígenas (cerca de 23 mil índios) habitam
localidades de difícil acesso, alguns são nômades ou semi-nômades, em
geral não falam Português, e não dispõem de eletricidade. Frente a esse
quadro, associado à alta prevalência de cárie dentária desses povos, o ART
foi adotado como alternativa viável.
A técnica do ART é uma inovação que necessita de mínima intervenção para o tratamento de lesões de cárie, particularmente em locais onde
existe uma equipe altamente treinada e capacitada, não necessitando de
equipamentos clínicos elétricos.
O ART é um procedimento baseado na remoção de tecido cariado,
sem uso de anestesia, utilizando-se apenas instrumentos manuais cortantes,
com o ionômero de vidro como material restaurador. A técnica é reconhecida
e tem o aval da Organização Mundial de Saúde (OMS), de forma que visa
beneficiar populações que não tem acesso à atendimento odontológico, principalmente de países em desenvolvimento ou menos desenvolvidos, ou em
áreas carentes de infra-estrutura (FRENCKEN et al. 1997).
Até o ano de 2005, o ART se mostrou uma excelente alternativa clínica, entretanto, suas limitações – relativas ao baixo percentual de sucesso
dessa modalidade de tratamento para cavidades profundas e de múltiplas
faces, a durabilidade da restauração, a contestação de alguns profissionais e
até mesmo de comunitários e agentes indígenas de saúde sobre a qualidade
do trabalho restaurador, e a fadiga cumulativa das mãos do odontólogo conseqüente da escariação manual – foram alvo de intensas e cuidadosas discussões, principalmente sobre os reais benefícios e o impacto nas condições de
saúde bucal propiciados por essa prática e as possibilidades em se introduzir
uma nova modalidade de tratamento, sem renunciar a já existente.
Esse ano de 2006 marca um tempo histórico para saúde bucal, pois
foi a primeira vez em que se atentou para a necessidade de uma reorganização da atenção odontológica em todas as instâncias: capacidade instalada, infra-estrutura e equipamentos, operacionalização, logística e modalidades de tratamento. De modo indubitável, a implementação de materiais
restauradores de maior longevidade e durabilidade, de forma gradual, pode
ser um aliado ao ART.
182
A odontologia e o alto rio Negro : uma nova perspectiva
Reabilitação oral em área indígena
A alta incidência de cárie nas populações indígenas do alto rio Negro é
uma comprovação que merece atenção, uma vez que essa patologia configura a causa mais freqüente e comum da perda de elementos dentais.
Consequentemente, a prevalência de indivíduos desdentados é muito alta. A
perda de um ou mais elementos dentais causa sérios transtornos musculares,
articulares e oclusais, de formar que o paciente precisa ser reabilitado para
que as funções e o equilíbrio do aparelho estomatognático se restabeleçam.
É evidente que os aspectos preventivos e educativos são prioritários. A
prática preventiva vem sendo construída com o esforço dos profissionais de
saúde do DSEI, dos agentes de saúde e, até mesmo, dos professores que atuam
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FIGURA
5
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Gráfico 5: Fonte – SIASI – 2004 – DSEI-RN
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FIGURA
6
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Gráfico 6: Fonte – SIASI – 2004 – DSEI-RN
183
Ações em saúde indígena amazônica
nas comunidades indígenas. Entretanto, como a odontologia praticada antes da
criação do distrito sanitário era puramente extracionista e somente há 5 anos
vem experimentando a prática preventiva, observa-se um edentulismo diretamente proporcional à idade. Certamente, a população indígena adulta e idosa
apresenta sérios problemas bucais, principalmente relacionados à ausência de
elementos dentais, portanto essa fatia da população necessita urgentemente de
um trabalho específico voltado para essa faixa etária.
Pensando em como buscar resolutividade a essa questão, em meados de 2005, me deparei com a possibilidade de realizar um projeto de
reabilitação oral em área indígena, pois poderia proporcionar, sem dúvida,
a solução para uma série de problemas de ordem odontológica, bem como
ajudar na estética, na elevação da auto-estima, melhorando, assim, a qualidade e o estilo de vida desses povos.
O processo se iniciou na sede da instituição compreendendo organização de materiais e instrumentais necessários para o atendimento
na micro-área selecionada. Foi montado um laboratório de prótese no
pólo-base, pois é o único local que apresenta gerador de energia. Foram realizados exames clínicos em inúmeros pacientes de diferentes
aldeias para um levantamento das necessidades de uso de peças
protéticas. Também foi levado em consideração o desejo do paciente
em receber a prótese. Dentre os diferentes tipos de tratamento
reabilitador, trabalhamos nas confecções de Prótese Total e Prótese
Parcial Removível Provisória. A reabilitação oral com Prótese Total se
destinou aos pacientes selecionados desdentados totais, ou seja, com
ausência total dos elementos dentais em uma arcada ou em ambas. Já a
Prótese Parcial Removível Provisória se destinou aos pacientes desdentados parciais. Selecionados e cadastrados os pacientes, o trabalho técnico de moldagem, confecção, instalação da prótese e orientação ao
paciente e proservação seguiram os padrões atualmente adotados pela
comunidade científica.
A experimentação foi bastante satisfatória e gratificante, o que me levou
a concluir que a reabilitação oral em área indígena é viável e pode ser introduzida
no planejamento das ações de saúde bucal do DSEI Alto Rio Negro, pois resgata a funcionalidade e o equilíbrio dos órgãos bucais, ajuda na estética, auxilia na
auto-estima e melhora o estilo e qualidade de vida dessa população.
Hoje, essa nova modalidade de tratamento tem merecido especial
cuidado, basicamente na melhoria da qualidade dos materiais utilizados, no
aperfeiçoamento das técnicas laboratoriais, e também na busca de um crescimento gradual e sustentável da oferta desse serviço.
184
A odontologia e o alto rio Negro : uma nova perspectiva
Casos Clínicos: (antes e depois)
Fotos: André Luiz Martins
Caso 1 – Etnia: Dessana
1
2
3
5
4
Fotos: André Luiz Martins
Caso 2 – Etnia: Baniwa
1
2
3
2
3
2
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Fotos: André Luiz Martins
Caso 3 – Etnia: Baniwa
1
Fotos: André Luiz Martins
Caso 4 – Etnia: Dow
1
185
Ações em saúde indígena amazônica
Uma nova estratégia
Foto: André L. Martins.
Outro fato observado em minhas incursões em área e analisando os
relatórios dos odontólogos no SIASI foi que a demanda indígena na maioria
das micro-áreas é semelhante do ponto de vista quantitativo, já que cada
região apresenta uma média de aproximadamente 1.000 indivíduos. Dentro da demanda espontânea o que pode variar é o percentual de dentes que
necessitam de tratamento, e se esse número for elevado, se configura em
uma grande dificuldade para que o profissional possa tratar todos os elementos dentais em única sessão, ou viagem. Portanto, é evidente que o
paciente, na maioria das vezes, não é assistido de maneira integral e o plano
de tratamento não é finalizado. Cada dentista é responsável por 2 microregiões e, consequentemente, o intervalo para que o profissional retorne
ao mesmo pólo é de aproximadamente 4 ou 5 meses. Como a população
indígena do alto rio Negro apresenta taxas consideráveis de mobilidade –
viagens de passeio para visita de parentes, muitos adolescentes estudam
fora de sua aldeia natal – e migração – de comunidade para comunidade,
de comunidade para a cidade – possivelmente, encontrar um paciente que
fora atendido em viagem anterior e que necessita de atendimento para a
conclusão do plano de tratamento é algo incomum.
Assim, foi definida a micro-área de Camarão no rio Içana, afluente do
rio Negro, para a realização de um trabalho inovador. Uma equipe composta
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FIGURA
7
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Barco Pró-Amazônia
A odontologia e o alto rio Negro : uma nova perspectiva
Foto: André L. Martins.
por três odontólogos, três ACDs, um TPD e três navegadores viajou em um
barco, com gerador de energia, onde se instalou um consultório odontológico
e uma maleta odontológica portátil acoplada em uma cadeira, também portátil. Toda a demanda espontânea foi atendida de maneira semelhante ao trabalho que sempre fora realizado. Entretanto, se definiu uma população alvo – 6
a 12 anos – para um tratamento diferenciado. Essa população foi cadastrada
e obrigatoriamente examinada, seguido de preenchimento completo de ficha
clínica. As crianças foram submetidas à exodontias, restaurações de resina
composta e amálgama, além de aplicação de vernizes fluoretados, sempre
buscando a conclusão do plano de tratamento.
Motivado pela necessidade emergencial de mudanças na
operacionalização dos serviços, na utilização de materiais restauradores de
maior qualidade e de uma clínica literalmente integrada, um planejamento
diferenciado fora elaborado em meados de 2006. Provavelmente, se caracterizará como um divisor de águas para a odontologia do DSEI.
O sucesso do trabalho pode ser observado nos olhos dos pacientes
logo após o tratamento e no clima de entusiasmo que tomava conta das
comunidades quando o barco atracava. Do ponto de vista clínico, foi possível realizar restaurações estéticas em dentes anteriores, amálgamas em
dentes posteriores com cavidades complexas – dentes provavelmente condenados à exodontia se tivéssemos apenas uma opção restauradora (ART)
– resina composta em posteriores e anteriores de todas as classes.
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FIGURA
8
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Atendimento no Consultório odontológico do barco
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Ações em saúde indígena amazônica
Foto: André L. Martins.
O mais importante é que o exercício da odontologia em regiões longínquas e desprovidas de infra-estrutura, em populações que o percentual
de necessidade de tratamento é elevado, se desenvolve com maior eficiência e eficácia se o trabalho for bem planejado e se a clínica for efetuada com
dois ou três odontólogos.
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FIGURA
9
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Atendimento na cadeira e maleta portáteis
Foto: André L. Martins.
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FIGURA
10
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Aplicação de verniz fluoretado – cadeira portátil / barco
A odontologia e o alto rio Negro : uma nova perspectiva
Foto: André L. Martins.
Nessa ótica é que conseguimos atender o maior número possível de
crianças de 5 a 12 e concluir a primeira fase clínica, isto é, deixar o paciente
sem cárie e doença periodontal.
Naturalmente, não só a população alvo da viagem recebera tratamento, ao contrário, todas as tarefas anteriormente desenvolvidas aconteceram.
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FIGURA
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Cáries proximais em dentes anteriores
Foto: André L. Martins.
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FIGURA
12
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Após o tratamento com resina composta
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Ações em saúde indígena amazônica
Considerações finais
Em geral, a experiência de cárie dentária nas populações indígenas
rionegrinas é precoce, acometendo a dentição decídua e atingindo a permanente de forma potencializada.
Apesar de o modelo adotado ser recente – seis anos de atividade –
esse período foi fundamental para uma análise inicial da organização do serviço, da oferta, do acesso e da qualidade da assistência. Embora os dados
sobre saúde bucal disponíveis na rede do SIASI sejam escassos e limitados e
o número de pesquisas em saúde bucal indígena ser praticamente ínfimo para
uma avaliação abrangente, pode-se afirmar pormenor que a dinâmica atual de
cobertura não é suficiente para atender as necessidades dos indígenas
rionegrinos. Há uma urgência em se apontar os erros e acertos, as experiências bem sucedidas e os fracassos, a verdadeira demanda em contraste com a
real capacidade de oferta. Nesse sentido, a reorientação do modelo de atenção em saúde bucal deveria partir dos seguintes pressupostos:
• Compromisso pela qualidade da atenção básica
• Uma rede de atenção básica em área bem articulada com a rede de
serviços municipal
• Integralidade nas ações de saúde bucal
• Uso da epidemiologia subsidiando o planejamento
• Incorporar a estratégia de Saúde da Família
• Assegurar capacitação a AIS periodicamente
• Definição de uma agenda de pesquisa em saúde bucal indígena
Para que serviço apresente resultados mais qualificativos é preciso
aumentar a resolutividade no pronto atendimento e garantir a inclusão de
procedimentos “mais complexos” na Atenção Básica como: (a) pulpotomias;
(b) restauração de dentes com cavidades complexas utilizando materiais
restauradores definitivos de maior longevidade e durabilidade; (c) fase clínica da instalação de próteses dentárias elementares; (d) tratamento periodontal
que não requeira procedimento cirúrgico.
Ao mesmo tempo, se faz necessária uma ampliação do acesso, possivelmente trabalhando duas formas de inserção transversal da saúde bucal
nos diferentes programas integrais de saúde: por linhas de cuidado (saúde
da criança, saúde do adolescente, saúde do adulto e saúde do idoso) e por
condição de vida (saúde da mulher, saúde do trabalhador, portadores de
necessidades especiais, hipertensos, diabéticos, dentre outras), ambas subsidiadas pela estratégia de saúde da família.
190
A odontologia e o alto rio Negro : uma nova perspectiva
Também, é importante fortalecer as atividades de educação e prevenção
em saúde bucal bem arquitetado a um multiplicador potencial – AIS – capacitado e atualizado.
De maneira global os diversos profissionais que atuam no âmbito da
saúde pública, em especial na saúde indígena, precisam contribuir para um
rompimento com o atual paradigma assistencial e atentar-se para processos
sociais de mudanças das práticas sanitárias.
“Só existirá um dia que não poderemos fazer algo pela saúde bucal
dos indígenas do alto rio Negro: ontem”.
Autor desconhecido
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Ações em saúde indígena amazônica
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