Delírio do Verbo: O Jornalismo Gonzo e a realidade
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Delírio do Verbo: O Jornalismo Gonzo e a realidade
UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ CENTRO DE HUMANIDADES DEPARTAMENTO DE COMUNICAÇÃO SOCIAL CURSO DE COMUNICAÇÃO SOCIAL – HABILITAÇÃO EM JORNALISMO DISCIPLINA: PROJETO EXPERIMENTAL DELirIo do Verbo O Jornalismo Gonzo e a realidade alucinada Francisco Wesdley da Silva Vasconcelos FORTALEZA, MARÇO DE 2003 UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ CENTRO DE HUMANIDADES DEPARTAMENTO DE COMUNICAÇÃO SOCIAL CURSO DE COMUNICAÇÃO SOCIAL – HABILITAÇÃO EM JORNALISMO DISCIPLINA: PROJETO EXPERIMENTAL Delírio do Verbo: O Jornalismo Gonzo e a realidade alucinada Autor: Francisco Wesdley da Silva Vasconcelos Orientador: Prof. Dr. Antônio Wellington de Oliveira Jr. Monografia apresentada ao Departamento de Comunicação Social como requisito para a obtenção do grau Comunicação Social. FORTALEZA, MARÇO DE 2003 de Bacharel em Banca examinadora composta por: _____________________________________________ Prof. Dr. Wellington de Oliveira Jr. (orientador) _____________________________________________ Prof.a Dr. a Gabriela Reinaldo _____________________________________________ Prof. Ismael Furtado No descomeço era o verbo. Só depois é que veio o delírio do verbo O delírio do verbo estava no começo, lá Onde a criança diz: Eu escuto a cor dos passarinhos. A criança não sabe que o verbo escutar não Funciona para cor, mas para som. Então se a criança muda a função de um verbo, ele delira. E pois. Em poesia que é voz de poeta, que é a voz de fazer nascimentos – O verbo tem que pegar delírio. (Manoel de Barros) SUMÁRIO Introdução............................................................................................................................. 1 1. - Jornalismo Gonzo.......................................................................................................... 3 1.1 - Hunter Thompson: do nascimento ao gonzo........................................................... 3 1.1.1 – A gênese do gonzo-jornalismo....................................................................... 5 1.2 - Conceitos Básicos do Jornalismo Gonzo................................................................ 7 1.3 - Jornalismo Gonzo no Brasil.................................................................................. 13 1.3.1 - Irmandade Raoul Duke................................................................................. 16 2. - Pós-Reflexões................................................................................................................ 19 2.1 – Sob as “luzes” da pós-modernidade...................................................................... 19 2.2 – Internet, a mídia gonzo.......................................................................................... 24 2.2.1 – Autoria: um entretexto................................................................................. 31 2.2.2 - Ciberespaço: considerações essenciais......................................................... 33 2.3 – Contracultura ........................................................................................................ 38 3. – Quem és tu, Gonzo? ................................................................................................... 47 3.1 – Anti-jornalismo, que jornalismo? ......................................................................... 48 3.1.1 – A notícia como construção de pseudo-realidades........................................ 52 3.1.2 – Jornalismo em alta rotação .......................................................................... 59 3.1.3 - Objetividade, uma reflexão subjetiva............................................................ 63 3.2 – Algumas gotas de literatura .................................................................................. 69 3.3 – Literatura jornalística ou jornalismo literário? ..................................................... 73 3.4 – Ficção e verdade na Irmandade Raoul Duke......................................................... 78 3.4.1 – Jornalismo alucinado: anfetaminas, futebol, chocolate e outras drogas....... 84 4. – Conclusão..................................................................................................................... 90 AGRADECIMENTOS A meus pais e avós, pelo apoio silencioso de toda uma vida. A meu orientador, Wellington, por debruçar-se “alucinadamente” por sobre meus toscos escritos e por, ora controlar, ora estimular, meus “desvios” acadêmicos. Ao professor Ronaldo Salgado, pelo rumo mais amplo que me fez dar a este trabalho e pela forma de encarar o jornalismo transcendente à simples prática. Parafraseando o slogan do PT: “Ronaldo, você pode até não saber, mas você também é um pouco gonzo”. Ao professor Ricardo Jorge, pelo apoio na bibliografia e pelo termo “jornalismo guenzo”, o qual não adotei neste trabalho por mero pudor academicista. A Janice, por ter sido meu refúgio, minha fortaleza, mesmo sem saber disso. E a meu grande amigo Oziel, pela lição de vida que me dá a cada dia, com sua força, serenidade e espírito elevado. INTRODUÇÃO “A redação da Arca recebeu a visita de um dos melhores trafí da city. Mió per que o bagulho quase sempre é da massa e per que o preço é camarada. Madureira, como ele gosta de ser chamado, conta que o baixo preço se deve per que ele mesmo é quem vai buscar na república Guarany. E, per causa disso, ele acaba repassando diretamente aos clientes sedentos por uma boa causa. (...) De acordo com que nos conta, Madureira, como ele gosta de ser chamado, não molha a mão dos porcos que patrulham a up town. Ele parla que recebe ameaças dos porcos e que até seu fone já foi grampeado. Pero que los riscos que el hombre corre são maiores, arriégua! Seus concorrentes no milionário world of the traffic têm inveja de Madureira per que ele acaba lucrando muito.” - Jajá Qualquer leitor guiado pela curiosidade estará perguntando-se qual a natureza de tal composição. Em que gênero, em que corrente literária, em que categoria do discurso enquadra-se tal tipo de produção? Decerto não estamos lidando com um exemplar da literatura clássica, tampouco se suspeitaria que tais linhas fossem provenientes da matéria de capa de algum periódico de grande circulação. A linguagem assaz displicente e permeada por uma certa radicalidade ocasiona, antes de tudo, um estranhamento. A incorporação de gírias e o uso de expressões em idioma estrangeiro também subvertem a língua pregada pelos velhos alfarrábios. A cognição humana carece de rotulações, não prescinde de categorizar os elementos à sua volta, colocá-los numa estrutura lógica estabelecida sob parâmetros de similaridade ou congruência. Assim, como suprir essa carência e designar de uma vez por todas a classificação dos escritos da epígrafe acima? Sem a pretensão de responder a pergunta, mas com o intuito de dar um indício de uma possível resposta, elucidaremos uma primeira incógnita, que é a fonte da qual a composição foi transcrita. Aplacando parte de vossa curiosidade, o texto acima foi extraído da entrevista/artigo/matéria intitulada Madureira, como ele gosta de ser chamado [ver anexo1], publicada na edição 003, de 1 agosto de 2002, do site1 da Internet denominado Irmandade Raoul Duke. O intrigante nesta informação é que esse site promulga-se como um realizador do Jornalismo Gonzo. Que jornalismo é esse que recebe um traficante em sua redação e narra tal fato com uma linguagem deveras peculiar? Isso é o que tentaremos descobrir – ou deixar pistas para que outros descubram – com este trabalho. Nosso intuito, basicamente, mais do que analisar os mecanismos do gonzojornalismo, é apresentá-lo à comunidade acadêmica e jornalística, não como modelo ideal de jornalismo, mas como fonte de reflexão acerca das contradições da atividade jornalística em vigência nos tempos hodiernos. Apesar de ter sido bastante influente nos Estados Unidos, nação onde nasceu, o Jornalismo Gonzo ainda não foi difundido no Brasil. O conhecimento acerca do tema está restrito a um universo reduzido de indivíduos. Mesmo no meio acadêmico, o assunto ainda não foi tratado com profundidade, tanto que ainda não existe bibliografia sobre o tema no País. E essa escassez de referências diretas permite a este trabalho uma perspectiva ensaísta, de experimentação, onde a observação empírica surge como uma das fontes de informação, sempre contraposta a um referencial teórico de abrangência mais ampla. Para compreender a prática jornalística em vigência na imprensa tradicional faz-se necessário conhecer as propostas divergentes da mesma, para que suas contradições e peculiaridades sejam evidenciadas. Numa época em que o papel da imprensa está sendo posto em discussão na sociedade, com o crescente número de publicações e a dependência das verbas governamentais para o sustento financeiro dos meios de comunicação, os conceitos de objetividade e imparcialidade acabam por tornarem-se alvos de críticas quanto a suas existência e adequação. Estudar a prática do gonzo-jornalismo no Brasil é uma forma de questionar o modelo convencional de produção da notícia, suas relações intrínsecas, como necessidade de venda, subserviência a interesses comerciais, processos de mediação, e como isto é ocultado na busca da utopia da objetividade. O primeiro capítulo é iniciado com uma breve biografia do “inventor” do Jornalismo Gonzo, o americano Hunter Thompson, desde o seu nascimento até a ocasião em que o gonzo foi concebido. Depois disso, são descritos os conceitos básicos dessa 1 Embora alguns autores considerem o uso da expressão site inadequada pelo fato de haver palavra similar na língua portuguesa (no caso, sítio), iremos utilizar o termo em língua inglesa por entendermos que se trata de uma expressão de uso convencionado na Internet, meio de comunicação ao qual a palavra é relacionada. 2 prática de produção textual e os caminhos percorridos por ela até chegar a nosso objeto de estudo, a Irmandade Raoul Duke. No segundo capítulo, é tecido o pano de fundo para a análise do tema, baseado na tríade: Pós-modernidade, Internet e Contracultura. Trabalhar com o conceito de pósmodernidade permite-nos ampliar a noção acerca das produções textuais, vendo-as não como integrantes de categorias pré-determinadas, mas como discursos auto-reflexivos e passíveis de receber influências das mais diversas manifestações. Entender a Internet como meio que acarretou numa transfiguração no modo de encarar a mensagem textual conferenos subsídios para analisar de que maneira dá-se a relação entre a Irmandade Raoul Duke e o veículo que a abriga. Já a noção de contracultura é relevante no momento de estabelecer uma contraposição entre o gonzo e o jornalismo dito tradicional, por meio de uma perspectiva dialógica. O terceiro capítulo, por sua vez, condensa a essência de nosso trabalho. É neste ponto que é realizada a crítica da atividade jornalística vigente e são apontadas suas contradições fundamentais como a busca pela objetividade, o célere movimento de (re)atualização do conteúdo jornalístico, e a linguagem como construtora de mundos. Por outro lado, para possibilitar a devida compreensão acerca do gonzo, foi realizada uma análise do jornalismo tendo em vista sua intersecção com o universo literário, utilizando, para isso, a recorrência a fontes teóricas e ao próprio Jornalismo Gonzo praticado pela Irmandade Raoul Duke. Em língua portuguesa, a palavra gonzo é utilizada para designar dobradiças, articulações que permitem a movimentação de portas, janelas etc. Não desprezando tal concepção do termo e transportando-o para o Jornalismo Gonzo, pode-se mesmo dizer que o gonzo seja uma dobradiça, uma articulação entre o jornalismo e a literatura. Contudo, tal dobradiça não é livre de atrito. Ao contrário, esse gonzo (dobradiça) entre o jornalismo e a literatura não possui lubrificação alguma. Por isso, a cada vez que uma de suas partes se movimenta (e isso acontece constantemente) é produzido um ruído agudo e metálico. Algumas pessoas levam as mãos aos ouvidos, enquanto outras escutam-no como música. 3 1. Jornalismo Gonzo “A eclosão dos ímpetos explode para fora de nós. Todo delírio é expansivo. Toda impulsão escapa à estereotipia”. - Isidore Isidou 1.1 - Hunter Thompson: do nascimento ao gonzo Ao contrário da maioria das manifestações sócio-culturais, o Jornalismo Gonzo não é originário de uma escola, um movimento ou uma corrente de pensamento congregante. O gonzo é tão somente fruto de uma mente irrequieta, cujo dono chama-se Hunter Stockton Thompson, nascido em Louisville, no estado de Kentucky, Estados Unidos, no dia 18 de junho de 19392, em meio à Depressão. Pelo caráter eminentemente autobiográfico da escrita de Thompson, é recorrente encontrar em seus textos relatos sobre seus temas preferidos, que eram, assumidamente, esportes, violência, política, sexo e drogas. “Especialmente interessante é o fato de que esses mesmos temas criaram raízes em sua infância” (OTHITIS, 1994a). Uma criança hiperativa, “Hunter tendia a usar sua energia para propósitos violentos e destrutivos” (OTHITIS, 1994a). Seus pais, Virginia Davidson Ray e Jack Robert Thompson, eram ambos alcoólatras e, por causa do comportamento pouco exemplar do pequeno Thompson, sua família era mal-vista pela vizinhança. Jack, pai de Hunter, era um vendedor de seguros que acreditava na punição corporal como forma de repreensão e praticava-a constantemente em Hunter. Jack Thompson morreu subitamente aos 57 anos de uma embolia cerebral. Depois da morte do pai, Hunter, que tinha 15 anos, começou a beber e, segundo seus amigos, tornou-se mais “malicioso” devido ao sofrimento. Para Rousseau, o homem é, senão, um produto do meio onde vive. Não entremos no mérito quanto à validade universal do preceito, mas no que se refere a Hunter Thompson, o pressuposto de Rousseau parece ser bastante pertinente. Louisville é famosa nos Estados Unidos por sua indústria de bebidas alcoólicas e cigarro, além da tradicional e violenta corrida de cavalos, Kentucky Derby, onde a farândola costuma manter a polícia 2 As biografias divergem quanto ao ano, registrado também como sendo 1937. 4 ocupada com brigas, desmaios e outras ocorrências ligadas ao consumo excessivo de álcool. “Hunter is very Kentucky. Kentucky is a very violent place” (CARROL, 1993: 24). Esta afirmação de Walter Kaegi Jr., um dos amigos de infância de Thompson, resume bem a atmosfera do lugar onde Hunter nasceu e como ela influenciou sua vida e sua personalidade. Aos 10 anos de idade, Kaegi fora o editor do Southern Star, o primeiro jornal onde Thompson, ora com 8 anos, começou a escrever. O Southern Star era um jornal mimeografado, que custava três centavos de dólar, onde notícias locais, artigos de opinião e alguns anúncios aglutinavam-se nas duas páginas da publicação. Data desta época o primeiro registro de revolta atribuído a Hunter Thompson: ele, aliado a um grupo de garotos, preconizou um ato de vandalismo pueril em um banheiro no Parque Cherokee, atirando latas, pichando paredes e espalhando lixo pelo local. A polícia de Louisville prendeu o grupo, que foi levado em seguida à delegacia, onde uma ocorrência chegou a ser preenchida. Tabaco, gin, bourbon, Kentucky Derby e Hunter Thompson. Todos são produtos bastante alegóricos de Louisville, e têm em sua configuração um viés entorpecente, alterador do estado de consciência. É este espírito que iria marcar o estilo de vida e a escrita de Thompson dali em diante. Aos 17 anos de idade, dois anos após a ocasião na qual empurrou sua mãe escada a baixo – sem conseqüências mais graves: ela estava bêbada –, Hunter Thompson foi condenado por assalto e permaneceu sessenta dias detido, passando seu aniversário de 18 anos na cadeia. Após atingir sua maioridade atrás das grades, Thompson foi mandado para a Força Aérea: como forma de redução da pena, o juiz que o condenara propôs a Thompson que ele se alistasse no serviço militar. Após cerca de um ano, Thompson obteve dispensa “com honras”, apesar das inúmeras queixas de desobediência aos oficiais e ao regulamento da base. Essa rebeldia de Thompson não figurava apenas em sua atitude diante do mundo, mas sedimentava-se mais fortemente em sua maneira de escrever. “Por causa de diferenças de personalidade, opinião e estilo, Thompson não permaneceu por muito tempo nos pequenos jornais para os quais trabalhou” (OTHITIS, 1994c). Em 1962, Hunter Thompson tornou-se correspondente na América do Sul para a revista National Observer, onde relatava os costumes e peculiaridades dos países que visitava. Em 1963, esteve no Brasil e 5 escreveu a reportagem Brazilshooting [ver detalhes adiante], um dos primeiros trabalhos em que Thompson opina de modo mais incisivo e aparece como parte da cena que descreve. Uma das empreitadas mais temerárias de Hunter Thompson foi quando ele decidiu, em 1965, acompanhar o intimidativo grupo de motoqueiros denominado Hell’s Angels. Naquela época, havia sido divulgado o Lynch Report, um relatório escrito por Thomas C. Lynch, então secretário de segurança do estado da Califórnia, que alimentou diversas matérias sensacionalistas na imprensa americana, relatando casos de estupro, vandalismo e brigas provocadas pelos motoqueiros trajando jaquetas de couro. Apesar da hostilidade inicial dos Angels, e ameaças de surra, Hunter Thompson conseguiu convencêlos de que pretendia mostrá-los sob uma abordagem diferente do que a imprensa vinha fazendo até então. Thompson seguiu os Hell’s Angels por nove meses e o resultado foi publicado em 1967 sob o título de Hell’s Angels: A Strange and Terrible Saga. Nesta obra ocorreram as primeiras referências explícitas de Thompson a respeito do consumo de drogas pesadas: Os Angels insistem em dizer que não há viciados em drogas em seu clube, e, para todos os efeitos legais e médicos, isso é verdade. Viciados são centrados; sua necessidade física por qualquer que seja a droga em que estejam viciados os força a serem seletivos. Mas os Angels não têm foco algum. Eles devoram drogas como vítimas da fome soltas em um raro banquete. Eles usam qualquer coisa que esteja disponível e se o resultado disso forem gritos e delírio, então que seja. (THOMPSON, 1967: 213) A escrita emblemática e carregada de subjetividade de Hunter Thompson começava a dar indícios de uma nova concepção da atividade jornalística. Este foi o preâmbulo daquilo que mais tarde iria ser chamado de Jornalismo Gonzo. 1.1.1 – A gênese do gonzo-jornalismo A intitulação de gonzo ao estilo preconizado por Hunter Stockton Thompson não ocorreu de forma estudada, nem a partir de uma referência coerente. A versão “oficial” para a associação do nome gonzo ao estilo de Hunter Thompson remete a seu colega de trabalho, 6 Bill Cardoso, que ao ler o artigo The Kentucky Derby is Decadent and Depraved, publicado na edição de junho de 1970 da revista esportiva Scanlan’s Monthly, teria afirmado: “Eu não sei o que você fez, mas você mudou tudo. Está totalmente gonzo” (OTHITIS, 1994c). “The Kentucky Derby is Decadent and Depraved” não é sobre a corrida de cavalos realmente. Na verdade, a corrida propriamente dita constitui cerca de 1% do artigo (o vencedor da corrida nem chega a ser mencionado). A história é devotada ao encontro de Thompson com um fanfarrão em um bar, pessoas em Kentucky, o reencontro com o cartunista Ralph Steadman, e quando ele leva Ralph para jantar com seu irmão e sua esposa. (idem). Segundo o próprio Bill Cardoso, gonzo é uma corruptela da palavra “gonzeaux”, evocada nas regiões de língua francesa do Canadá com o sentido de “via iluminada” [shining path]. A partir de então, “gonzo journalism” passou a designar o estilo de Hunter Thompson, tanto que a autora Christine Othitis chega a afirmar que Thompson é “o único jornalista gonzo em atividade no mundo”. No entanto, o mérito desta última questão pode ser posto em contestação já que, apesar da inegável relação entre o gonzo e Thompson, o estilo preconizado por este possui elementos passíveis de serem reproduzidos em outros contextos e por outras pessoas. De lá para cá, Thompson escreveu 11 livros e publicou artigos em dezenas de publicações, onde mostra, a partir de sua experiência pessoal, as contradições da sociedade americana. “Em toda a sua obra, Thompson mostra o quanto os americanos são alucinados em seu cotidiano, mesmo que tomando só água mineral. A ignorância, a corrida de cavalos, os jogos de futebol, as celebridades, as reuniões de policiais, toda sociedade americana aparece como numa constante trip3” (FERNANDES, 2002a). Durante sua trajetória de desavenças nos meios político e jornalístico e de problemas com a polícia, Thompson realizou muitos de seus escritos sob os pseudônimos Sebastian Owl, F.X. Leach e Raoul Duke, este último o mais celebrizado. 3 Termo em inglês, cuja tradução literal é viagem, mas que no referido contexto significa o efeito provocado pelo uso de drogas. 7 1.2 – Conceitos Básicos do Jornalismo Gonzo Embora Christine Othitis admita que o gonzo-jornalismo também possa ser chamado de “jornalismo fora-da-lei, jornalismo alternativo e cubismo literário” (OTHITIS, 1994c), adotaremos as seguintes nomenclaturas: gonzo-jornalismo, Jornalismo Gonzo, ou simplesmente gonzo. Estas serão as formas pelas quais o gênero criado por Hunter Thompson será referido neste trabalho. A natureza cataléctica e híbrida do gonzo permitiria uma infinidade de nomenclaturas. Por exemplo, “jornalismo porra-louca” também seria uma denominação conceitualmente plausível, mas a palavra gonzo e suas derivações serão adotadas para fins de convenção e por sua representatividade estética, conceitual e histórica. Estética, porque a palavra gonzo remete a um universo simbólico singular, dotado de peculiaridades e referências ímpares no que concerne a forma e conteúdo. Conceitual porque, advindo da concepção de gonzo atribuída ao estilo de Hunter Thompson, tal denominação transcendeu a si mesma e permeia outros campos da cultura e do conhecimento: termos como Gonzologia (FERNANDES, 2002c) e Marketing Gonzo4 já “contaminam” a esfera do saber. E, finalmente, histórica, porque a atribuição da palavra gonzo ao estilo do “Dr. Thompson” foi realizada de uma maneira extremamente nonsense, sem referenciais etimológicos bem fundamentados, ou qualquer outro tipo de embasamento teórico mais aprofundado, o que ocasionou uma ligação intrínseca e indissolúvel entre o gonzo e o estilo intrépido de Hunter Thompson. Neste ponto, iremos analisar as características fundamentais identificadas nos escritos de Hunter Thompson. Nosso objetivo é construir o alicerce lingüístico que sirva de suporte para a definição clássica de Jornalismo Gonzo. Antes de tudo, no entanto, é necessário salientar que, em essência, o gonzo-jornalismo caracteriza-se pela ausência de regras rígidas. Todavia, algumas diretrizes ajudam a delimitar o que pode ser enquadrado dentro da definição de Jornalismo Gonzo. 4 Link para a bibliografia: LOCKE, Christopher. Gonzo Marketing: Winning Through Worst Practices. Perseus, 2001. Em português: LOCKE, Chistopher. Marketing Muito Maluco: Vencendo com as Práticas Menos Convencionais, São Paulo, Campus, 2002. 8 A crítica fundamental de Thompson quanto ao jornalismo tradicional refere-se ao ideal de objetividade5. Para ele, o discurso calcado nos moldes da objetividade tem o intuito de gerar uma relação de confiança entre os meios de comunicação e o leitor, para convencêlo de que suas informações são isentas, livres de ideologias e interesses do autor. No livro Teorias da Comunicação de Massa, de Melvin L. DeFleur e Sandra BallRokeach, é traçado um breve panorama da situação midiática que dá margem à discussão (ou refutação) do conceito de objetividade: Os códigos éticos de jornalismo ressaltam dever ser “objetivo”, “justo”, “cuidadoso” e “factual”. Mas isso é jogo perdido antes de começar a partida. Seletividade e distorções são produtos de fatores fora do controle de repórteres, redatores, editores e diretores. As descrições do “mundo lá fora” apresentadas pela imprensa são conseqüências de condições anteriores, tais como recursos limitados de que os jornalistas dispõem para estudar em primeira mão qualquer acontecimento. São também decorrência de constrangimentos no processo de preparar as notícias para se adequarem às exigências de um determinado veículo. Espaço e tempo são caros, e todos os relatos de notícias têm que ser sumários. Há uma inevitável perda de pormenores em qualquer relato que tente focalizar os fatos centrais e ignore outros. (DEFLEUR, 1993: 280) O jornalismo gonzo não nega o panorama explicitado acima. Pelo contrário, busca colocá-lo em evidência até o limite extremo. Por trás dessa atitude está a compreensão do fato de que a pragmática do jornalismo é necessariamente perpassada por limitações, e que, portanto, torna-se obrigação do jornalista deixar isso claro para o leitor. Assim, é dado a este último um papel fundamental na depuração e na construção de significado do produto jornalístico. Os recursos dos quais o gonzo-jornalismo se utiliza com o intuito de ressaltar tal inexorabilidade da condição noticiosa são muitos. Os textos gonzo são escritos em primeira pessoa, para enaltecer a existência de um mediador entre o fato e o leitor, ao invés de esconder isso. Em artigo publicado na coletânea Ética, Imprensa e Cidadania, Mohammed Elhajji pressupõe que o discurso jornalístico convencional (em terceira pessoa) constrói condições para o cerceamento da amplitude de interpretação do leitor, impondo-lhe uma 5 Link para o Capítulo 3, onde a questão da objetividade jornalística será tratada com mais detalhes. 9 autoridade discursiva disposta a convencer o destinatário da “equivalência entre texto e mundo”. Se o discurso impessoal produz uma impressão de sério, de objetividade e de neutralidade, na verdade, é o quadro perfeito para a manifestação de todo tipo de ideário doutrinário e dogmático, pois, por seu modo enunciativo frio e sistemático, ele limita as possibilidades interpretativas do leitor e lhe dita uma visão do mundo única e unidirecional. (Elhajji in PAIVA, 2002: 129) A concepção de Elhajji é de que a alternativa de empregar o discurso pessoal (na 1ª pessoa) pode delimitar caminhos que levem à construção de um jornalismo autoreflexivo, auto-hermenêutico (in PAIVA, 2002: 130). No entanto, a escolha de escrever em primeira pessoa pressupõe, no gonzo-jornalismo, um desejo de subversão, ironia e contraposição, tanto frente ao jornalismo dito tradicional, quanto perante a ordem das coisas. “Gonzo é uma espécie de Buñuel do jornalismo. Mais do que tirar fotos engraçadinhas e escrever textos pseudo-espirituosos, ele quer rir de si mesmo, da sua cultura, do próprio ato de rir. Assim como o cineasta espanhol, o gonzo quer mostrar a família defecando na sala e almoçando no banheiro” (FERNANDES, 2002b). Desta forma, o gonzo situa-se numa esfera autodelatora, denuncia a si mesmo para mostrar a fragilidade do conteúdo discursivo jornalístico, seja ele em primeira ou terceira pessoa. Um dos recursos largamente utilizados pelo Jornalismo Gonzo é a ironia. Por meio dela o gonzo flerta com o jornalismo tradicional, flerta com a sociedade e flerta consigo mesmo. Ironia, palavra à qual podem ser atribuídos diversos significados, assume aqui um sentido bem específico, situando-se como “discurso que pretende significar o contrário do que é dito literal ou explicitamente e que, nessa perspectiva, também está ligada à definição de ironia como antífrase" (BRAIT, 1996: 72-73). Mesma concepção adotada por Sigmund Freud, que a definiu como categoria próxima ao chiste, ao dizer que “sua essência consiste em dizer o contrário do que se pretende comunicar a outra pessoa, mas poupando a esta uma réplica contraditória fazendo-lhe entender - pelo tom de voz, por algum gesto simultâneo, ou (onde a escrita está envolvida) por algumas pequenas indicações estilísticas - que se quer dizer o contrário do que se diz” (FREUD, 1969: 199). 10 Para Freud, portanto, a ironia é a figura de retórica que supõe uma certa posição do sujeito diante da verdade, forma invertida. A autora Beth Brait reforça o caráter de ruptura engendrado na própria concepção de ironia e na utilização desta pelas escolas literárias para contestar os estilos precedentes. Segundo Brait, a ironia – em seus diversos mecanismos - é a estratégia aplicada a fim de representar e revelar as formas esgotadas (BRAIT, 1996: 57). A dupla de autores, Rosenfeld & Guinsburg, tece uma análise de como a ironia se desenvolve e é aplicada no contexto específico da escola romântica européia, a qual, dentro desta análise, possui traços análogos aos observados na esfera da Irmandade Raoul Duke. Segundo eles, Rosenfeld & Guinsburg, a ironia é brandida por um homem marginalizado e converte-se a priori para ferir os valores oficiais do mundo burguês. “Trata-se, para o romantismo, de abalar os padrões filisteus e toda esta realidade aparentemente factícia em que o burguês se acha em casa. Mostrar que tudo isso é falso e ilusório constituiu-se numa importante meta de sua ironia" (ROSENFELD & GUINSBURG, 1978: 286). Mais que isso, este “homem marginalizado” é situado num contexto urbano, exposto a uma infinidade de estímulos, o que faz com que se torne insensível a todos eles. E é esta situação de “tédio” que o literato busca transcender pelo uso da palavra. Uma forma de pensar muito sutil e específica que, no seu caráter oblíquo e cindido, reflete as complexas circunvoluções mentais de gente extremamente crítica, sensível e refinada, individualista e anárquica, afeita ao trato diuturno do espírito e das letras, um gênero de pessoa que na Alemanha é chamada de Asfaltliterat, 'literato de asfalto'. São criaturas essencialmente urbanas, que vivem como plantas algo emurchecidas e lânguidas na atmosfera assaz sufocante da cidade grande. Em seu meio sempre surge aquele tedium vitae, o enjôo de viver tão característico do homem blasé, uma criatura que já experimentou de tudo e não mais sente prazer em nada, que precisamente por isso procura a satisfação no mais rústico e elementar, porque isso poderia representar uma fonte de restauração de seus sentidos estiolados, um banho de juventude por assim dizer. (ROSENFELD & GUINSBURG, 1978: 282-283) Em sua argumentação, a autora Beth Brait cita um artigo publicado em 1941, na Révue de Métaphysique et de Merale (pp. 163-201), intitulado Le mécanisme de l'ironie dans sés rapports avec la dialectique, no qual René Schaerer não apenas compara a ironia a 11 um jogo de luz e sombra, de claro e escuro, mas também acentua a idéia de que a ambigüidade irônica reside no fato de que o enunciador, ao mesmo tempo em que simula, aponta para essa dissimulação. A ironia, neste espectro, é compreendida como uma simulação ou uma dissimulação que é arquitetada deliberadamente para ser desmascarada. “Diferentemente da mentira, em que a simulação pretende se passar por verdade, o engano irônico se oferece para que o receptor o adivinhe ou perceba como engano. Nesse sentido, a dissimulação só se torna irônica, segundo Schaerer, no momento em que é denunciada ou percebida como tal” (BRAIT, 1996: 81). A diferença entre o ironista e o mentiroso reside no fato de que o primeiro sinaliza de alguma maneira a mensagem para que o enunciatário reconheça e participe ativamente de sua "não-sinceridade", de sua inversão semântica, enquanto o segundo procura apagar de sua fala todo traço de inversão, desqualificando o enunciatário na medida em que tenta fazêlo aceitar como verdade o que não é. (BRAIT, 1996: 50) A citação acima condensa um dos pressupostos fundamentais do Jornalismo Gonzo e desfere (mesmo que involuntariamente) uma acusação cabal ao dito jornalismo convencional. Para exemplificar isto, tratemos de considerar os seguintes aspectos: enquanto o gonzo-jornalismo põe-se num patamar nivelado ao receptor, compartilhando com ele suas ambigüidades e deixando clara sua incapacidade de absorver e transmitir a “verdade” em sua essência, o jornalismo dito objetivo e imparcial tece seu discurso sob o viés do aparente distanciamento, apagando todo traço de pessoalidade no texto, de forma a fazer sua escrita verossímil parecer verdadeira. Destarte, sob esta perspectiva, tomando o Jornalismo Gonzo e o jornalismo tradicional, qual dos dois é o ironista e qual é o mentiroso? Pelas suas características idiossincráticas, o Jornalismo Gonzo não comporta uma definição fechada de si mesmo. Segundo Othitis, a própria definição de Hunter Thompson sobre o que é Jornalismo Gonzo mudou com o passar dos anos, mas o gonzo tem como um de seus pilares a idéia do autor William Faulkner de que “a melhor ficção é muito mais verdadeira do que qualquer tipo de jornalismo” (apud OTHITIS, 1994c). O gonzojornalismo tende a enfocar assuntos ignorados ou pouco evidenciados pela imprensa 12 tradicional, como atividades da contracultura e drogas, por exemplo. O gonzo-jornalismo “não é anti-Governo, mas sim anti-jornalismo”, define Othitis (1994c). A autora Christine Othitis ressalta mais algumas características essenciais no gonzo-jornalismo, tais como a predominância dos temas sexo, violência, drogas, esporte e política; o uso de citações como epígrafe; tendência de desviar do assunto inicial; averiguação minuciosa das situações e o uso de sarcasmo e vulgaridade como recursos humorísticos (OTHITIS, 1994c). No entanto, a principal característica do gonzo-jornalismo é “a ênfase que dá à experiência pessoal direta. (...) Descrever-se descrevendo, fazer parte da pauta, de alguma maneira” (FERNANDES, 2002a). Para isso, o gonzo usa o “eu” como ponto de partida: não basta transcrever em palavras os pormenores de um fato, é necessário participar de alguma maneira de tal situação, de modo a nela interferir e, só então, tecer o relato de sua experiência individual. Dentre os vários personagens – ativos ou figurantes – dessa história, o narrador é o personagem primeiro, o proto-personagem, que suga e filtra a todos, a seu bel prazer. Por isso, não há uma fôrma, um modelo de jornalismo gonzo. Ele é a síntese das idiossincrasias, levadas ao extremo até o limite do absurdo. Isto posto, nota-se que a contraposição do Jornalismo Gonzo frente ao jornalismo mainstream6 dá-se sob um espectro multidirecional. A subversão do gonzo costuma ocorrer desde o momento da escolha das pautas até o modo de tratamento do material jornalístico. Destarte, um jornalista gonzo não iria cobrir, por exemplo, uma solenidade governamental. Se o fizesse, todavia, tentaria interferir na cerimônia até interrompê-la, ou de lá ser expulso; ou, pelo menos, noticiá-la-ia sob um ponto de vista inusitado, como ressaltar (ou inventar) que o assessor de finanças do Governador estava com a braguilha aberta, fazer notar a apatia dos presentes, ou estipular uma possível ressaca do Governador como sendo o motivo de sua ausência em plena manhã de uma segunda-feira. O jornalista gonzo também poderia, antes mesmo de entrar na “solenidade”, parar para conversar com o porteiro e dividir com ele um litro de aguardente durante uma prosa onde os mais escatológicos detalhes da personalidade dos dois ébrios seriam evidenciados, o que seria minuciosamente relatado na matéria, a despeito da realização da solenidade. 6 Termo referenciado a manifestações culturais e sociais de tendência dominante. 13 1.3 - Jornalismo Gonzo no Brasil Antes de enumerar as experiências de alguns brasileiros que se deixaram influenciar pelo gonzo (intencionalmente ou não), iremos relatar o primeiro contato direto que este país teve com tal espécie de escritos. Tal ocasião data de 1963, ano em que aportou no Brasil o jornalista americano Hunter Thompson, então correspondente da revista National Observer. Naquela época, o gonzo-jornalismo ainda era embrionário, ainda não havia sido batizado como tal. Remete-se, portanto, à sua permanência no Brasil, a concepção de um dos primeiros trabalhos de Thompson no qual ele articula-se de modo mais incisivo, ácido, e aparece como elemento integrante da cena que descreve. A reportagem em questão foi denominada Brazilshooting e consta do relato de um tiroteio na boate Domino, situada no bairro de Copacabana, cidade do Rio de Janeiro. Thompson construiu sua reportagem a partir da transcrição de uma conversa telefônica com um interlocutor anônimo. Nela, Thompson emite crítica direta ao exército e polícia brasileiros, questionando até a própria necessidade da existência de ambos. A polícia brasileira tem a reputação de ser extremamente leniente, e diz-se que o exército brasileiro é um dos mais estáveis e inclinados à democracia em toda a América latina, mas nas últimas semanas, a administração da “justiça” no Brasil adquiriu um novo perfil, e muitos começam a se perguntar para que existem a polícia e o exército. (THOMPSON, 1979: 383) A título de curiosidade, convém ressaltar que o mesmo exército “inclinado à democracia” protagonizou no ano seguinte, 1964, o Golpe Militar, que deixou o Brasil por cerca de 20 anos sob uma sombra autocrática, que inegavelmente destoava dos ideais igualitários e democráticos. Divagações históricas à parte, notemos, no trecho a seguir, a abordagem crítica de Thompson perante a cobertura jornalística brasileira, encerrando sua matéria com forte carga de ironia: Depois do ataque ao Domino, o Jornal do Brasil deu uma suíte intitulada: “Exército não vê crime em sua ação”. Ou, como observou George Orwell, “em terra de cego, quem tem um olho é rei”. (THOMPSON, 1979: 386) 14 Fechando os parênteses, tratemos de fazer um breve intercurso com repórteres e publicações que incorporaram pelo menos alguns elementos da estética gonzo. O mercado editorial brasileiro já foi permeado por algumas experiências gonzo, no sentido amplo da palavra. Exemplos escassos de experimentos catárticos de jornalismo, colhidos por intermédio da observação empírica, serão enumerados neste tópico para fins de contextualização. Nosso objetivo aqui é mostrar que, a despeito dos rótulos, nomenclaturas e classificações por gênero, o jornalismo brasileiro possui sua vertente contestadora já há algum tempo. Contestação aqui é dita, não somente no que tange a ideologias, mas no que concerne à própria práxis do jornalismo. O primeiro nome que vem à tona quando o assunto é formas pouco usuais de jornalismo no Brasil é o de Arthur Veríssimo, da revista Trip. Sob o pseudônimo de Gian Danton, o professor Ivan Carlo afirma que “exemplos de jornalismo gonzo estão se tornando cada vez mais freqüentes na imprensa brasileira. Arthur Veríssimo, da revista Trip, foi o primeiro a celebrizar esse estilo no Brasil” (DANTON, 2002). Veríssimo ganhou notoriedade ao realizar coberturas internacionais, nas quais mostrava culturas milenares sob um ponto de vista pouco ortodoxo. O excerto abaixo foi extraído da matéria Nirvana Unplugged, publicada na 64ª edição da Trip, na qual relata sua passagem pela Índia. Percebamos que, mais do que descrever o local, Arthur Veríssimo relata sua própria experiência, de uma maneira fortuita e cômica: Milhares de pessoas bebiam, cagavam e cozinhavam por todos os cantos. Para completar, fui dar umas braçadas no crowd do rio Ganges. Este mergulho entrou para a minha história pessoal por dois motivos: Primeiro, pelo detono que o contato com a água santa mas infectada do rio produziu. Na noite que se seguiu, meu estômago e intestino não fizeram parte do mesmo conjunto. Estavam completamente desentrosados. Com a barriga totalmente inchada corri para uma privada. Nem sinal de defecação. Trêmulo de tanto esforço no troninho, tentei praticar algumas mentalizações e meditações e, como que por milagre, uma energia divina descarregou todos os gases do meu organismo. Outro nome freqüentemente associado ao conceito de gonzo é Cláudio Tognolli, que tem no seu currículo passagem pelos jornais Folha de S. Paulo e O Estado de S. Paulo, rádio CBN, revista Veja e Rede Globo. Na realização de suas reportagens, infiltrou-se em torcidas organizadas, teve de fumar crack, chegou a ser expulso de Cuba e já perdeu os 15 dentes durante a feitura de uma matéria. Por conta da sua coragem em denunciar e expor seus pontos de vista, Tognolli sofreu mais de trinta processos judiciais. Hoje, Tognolli é repórter especial da Rádio Jovem Pan, professor da ECA-USP e do Unifiam (SP); e também é consultor de jornalismo da Unesco, mestre em Psicanálise da Comunicação e doutor em Filosofia das Ciências. A escrita do jornalista Pepe Escobar também permite que seja feita uma comparação – mesmo que complacente – entre ele e Hunter Thompson. Escobar é conhecido por trabalhar em pautas inusitadas e fazer isso de modo catártico, agressivo. No trecho abaixo podem ser vistas outras relações entre o trabalho de Escobar e o jornalismo gonzo: desde a latente opinião pessoal perpassando cada linha do texto, a explícita refutação de conceitos pré-estabelecidos e instituições tradicionais, até a referência ao uso de drogas ilícitas, uma das características mais emblemáticas do que se convencionou como gonzo. Aprendi que a marijuana e o LSD podiam ser úteis para muitas coisas. Eu só queria era chutar, chutar, chutar. Para acabar com a demência maternal quando encontra os lençóis manchados de esperma; para acabar com as penitências sado-ideológicas dos curas de todos os pecados; para acabar com os ensinamentos educativo-castradores dos mestres; para acabar com a legalidade repressora, a normalidade triunfante.7 No entanto, as experiências mais relevantes no que se refere ao jornalismo gonzo no Brasil não estão na mídia impressa, mas na mídia eletrônica. A Internet, em virtude de seu caráter libertário e da facilidade de publicação, tem sido o cerne onde o gonzo se desenvolveu mais fortemente8. É importante ressaltar que diversos sites (e até mesmo os weblogs9) possuem características gonzo. Contudo, duas publicações na Internet lançadas no ano de 2002 são os principais expoentes do Jornalismo Gonzo praticado no País. Uma delas é a Fraude10, cujo editor é o jornalista Eduardo Fernandes. A Fraude recebe colaborações de colunistas de alguns 7 Link para a Internet: ESCOBAR, Pepe. Roubei um Carro e Desembarquei no Centro do Mundo, in http://www.subcultura.net/letras/critica/beat_escobar.php 8 Link para o Capítulo 2 deste trabalho, onde as particularidades da Internet que possibilitaram o desenvolvimento de práticas heterodoxas de produção textual serão abordadas. 9 Espécies de “diários virtuais”, onde seus emuladores escrevem sem qualquer restrição estilística. 10 Link para a Internet: http://www.fraude.org 16 estados e de brasileiros residentes no Exterior, tratando de diversos temas, como música, sexo, drogas, produção midiática e outros. A maioria de seus textos tem uma estética próxima à do gonzo-jornalismo, mas os textos essencialmente gonzo estão localizados em uma seção específica do site. A outra publicação é a Irmandade Raoul Duke. Esta última, no entanto, possui algumas características que a tornam mais relevante do ponto de vista científico, tanto por sua inovação, quanto por suas pretensões. 1.3.1 - Irmandade Raoul Duke O site Irmandade Raoul Duke (IRD) é uma iniciativa sem precedentes no jornalismo brasileiro. O objetivo do projeto consiste em publicar artigos, reportagens e entrevistas no estilo gonzo, preconizado inicialmente por Hunter Thompson, de modo periódico. A Irmandade Raoul Duke surgiu a partir de uma lista de discussão11 sobre gonzo-jornalismo, a qual evoluiu para um projeto editorial palpável. O editor do site é o jornalista André "Cardoso" Czarnobai. A alcunha “Cardoso” é referente ao jornalista Bill Cardoso, o mesmo que batizou o estilo de Hunter Thompson com o termo gonzo. A primeira edição da IRD foi atualizada em março de 2002, constando de 12 textos cunhados na estética gonzo. Depois disso, foram “ao ar” as edições de abril, com 8 textos, e julho, desta vez com 12 textos. O endereço eletrônico do servidor onde está armazenado o conteúdo do site Irmandade Raoul Duke é http://planeta.terra.com.br/arte/familiadacoisa/IRD/home3.html . No entanto, com o intuito de facilitar a publicização e difusão do endereço do site, foi utilizado um recurso chamado redirecionamento. Com este mecanismo, basta digitar o endereço http://raoulduke.cjb.net para que o internauta seja direcionado ao servidor. Apesar da denominação Irmandade Raoul Duke de Gonzo Jornalismo, André Czarnobai afirma em seu site que a equipe editorial da IRD (formada por jornalistas, escritores e colaboradores de São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais e Rio Grande do Sul) não é de gonzo-jornalistas. Segundo ele, o único jornalista gonzo é o próprio Hunter 11 Comunidade virtual que troca mensagens eletrônicas e arquivos a respeito de determinado tema de interesse comum. 17 Thompson. No entanto, assume fazer “uma interpretação tosca do que seria gonzo”12 e escrever seus relatos seguindo alguns de seus preceitos. Essa “interpretação” está condensada na Carta de Princípios da Irmandade Raoul Duke, onde estão enumerados os requisitos para que determinada matéria seja publicada no site. É o “manual de redação” da IRD. Contém normas estilísticas e diretrizes conceituais que tentam conferir uma certa unidade ao caos do gonzo. Do ponto de vista acadêmico, a existência dessa Carta de Princípios é de suma relevância, pois permite-nos entender parte da lógica da produção de conteúdo para o site. A primeira determinação da Carta, notadamente, visa a legitimar a aura jornalística atribuída ao gonzo. Com o intuito de evitar que o conteúdo do site seja tomado por um apanhado de contos ou outro gênero que esteja além da fronteira com a literatura13, a Carta é veemente ao afirmar que “o conteúdo dos textos deve ser jornalístico, ou seja: um fato precisa estar acontecendo, necessariamente”. Na mesma Carta de Princípios, o site autodivide-se em três estilos distintos de produção textual: artigo, reportagem e entrevista. Ao articulista cabe comentar um fato noticioso a partir de uma análise gonzo, a qual define como “catártica, cáustica e caótica”. Já os repórteres “não precisam necessariamente ter objetos bizarros, basta que a maneira como a história é contada seja bizarra”. Quanto aos entrevistadores, a Carta recomenda que seus objetos sejam bizarros em si mesmos. As técnicas que preferencialmente devem ser empregadas na confecção de reportagens para a Irmandade Raoul Duke são a síntese dos conceitos do Jornalismo Gonzo. É importante notar que a maioria das recomendações não acontece no âmbito do estilo em sentido estrito, mas tratam de uma postura perante o fato noticioso e o processo de apuração e de depuração do mesmo. O repórter deve se envolver na história e alterar ao máximo os acontecimentos dentro da medida do impossível, de forma a transformá-la não em um mero relato do evento, mas sim uma história cáustica, para ser contada em rodas de maconha e mesas de bar. 12 Na Internet, consultar: http://planeta.terra.com.br/arte/familiadacoisa/IRD/filo.html Clique aqui e siga para o Capítulo 3, no qual a tênue delimitação entre Jornalismo Gonzo e literatura é discutida. 13 18 O site também alerta para a questão das drogas ilícitas, combustível recorrente nas intrépidas aventuras de Hunter Thompson. A IRD, por sua vez, coloca como facultativo o uso de substâncias entorpecentes ou alucinógenas, ressaltando que sua utilização “ajuda na criação de situações extremas mas pode ser prejudicial para mentes sensíveis”. Outra recomendação é a de que os textos “devem ser escritos em uma sentada, sem intervalos.” Além disso, “os textos não devem ser revisados nem reescritos, sob pretexto algum”. Esta prerrogativa gera nos textos da IRD alguns lapsos de ortografia e gramática, como na matéria Hip Hop Lapa: Uma Visita ao Front, publicada na terceira edição do site, de onde foram extraídos os seguintes excertos: "a gravdora diz que não rola de de correr atrás desses direitos. (...) Um pico maneirissimo na Lapa, onde já asisti shows clássicos do Cabeça” [sic]. A Irmandade Raoul Duke representa o jornalismo do lapso, da catarse, da alucinação (voluntária ou induzida), das conexões oníricas, do raciocínio ilógico, da ironia, do mergulho abissal do repórter na matéria, da contradição, da contravenção, da contraposição. Um jornalismo que anda na contra-mão, contra todos e contra si mesmo. Anti-jornalismo, anti-literatura, anti-tudo. 19 2. – Pós-Reflexões “A arte e toda a cultura contemporânea nada mais são do que a simbolização do absurdo e do apocalipse final.”- Manfredo Oliveira 2.1 – Sob as “luzes” da pós-modernidade Com o intuito de possibilitar a análise adequada de nosso objeto, pisemos, a partir de agora, num terreno movediço. A pós-modernidade é questão controversa nos estudos da sociedade contemporânea. Há os que negam sua validade (HABERMAS, 1990: 151-152) e, entre os que a aceitam, não há consenso sobre suas particularidades, tampouco sobre suas questões mais fundamentais, como origem e reflexos nos campos da ciência e da cultura14. Ver-se-á adiante que tal controvérsia, tal multiplicidade de visões, não é senão pósmoderna, ou reflexo da própria pós-modernidade. Este cenário mostra-se encorajador para que entremos nesse caminho sem-volta, mas repleto de saídas. Tangendo a esfera lexical, observa-se certa alternância entre as nomenclaturas referentes à situação contemporânea: pós-modernidade, pós-modernismo e idade pósmoderna. Em contrapartida, pôde-se observar claramente um critério na utilização específica dos termos. Convém estabelecer que o termo “pós-modernidade” (OLIVEIRA, 1995) pode ser tido como equivalente a “idade pós-moderna” (LYOTARD, 2002: 3), visto que as duas expressões remetem ao fenômeno evidenciado a partir da segunda metade do século XX que afetou a concepção de ciência, cultura e da sociedade em si. No que se refere ao uso da palavra “pós-modernismo” (HARVEY, 1992: 15), nota-se sua atribuição a condições específicas, como na literatura, na arquitetura, etc. Assim, o termo pósmodernismo costuma referir-se à situação de um campo determinado do conhecimento dentro do âmbito da pós-modernidade. A leitura primeira, a descoberta intuitiva, a decifração infantil da palavra pósmodernidade indica algo que vem depois da modernidade. Todavia, sem deixar de lado a 14 Neste trabalho, o conceito de cultura é basicamente decorrente da teoria de Clifford Geerz, que a considera como sistemas simbólicos, ou seja, “não um complexo de comportamentos concretos, mas um conjunto de mecanismos de controle, planos, receitas, regras, instruções (que os técnicos de computadores chamam programa) para governar o comportamento” (apud LARAIA, 2000: 63). 20 sabedoria das crianças, notemos que, mais do que a questão da temporalidade, o principal fator a desvelar são as demais relações da modernidade com a pós, ou vice-versa. Que transformações provocaram o aparecimento da pós-modernidade? Ruptura ou continuidade? Antimodernidade ou supramodernidade? Seria inocência (maior ainda do que a das crianças) tratar da pós-modernidade sem perscrutar o que se convencionou chamar de modernidade. Afinal, em que consiste a modernidade? “O saber moderno é fundamentalmente marcado pela vontade da verdade” (OLIVEIRA, 1993: 81-82). Sucinto e abrangente, o cearense Manfredo Oliveira dá a deixa para a crítica do francês Jean-François Lyotard quanto aos metarrelatos, a representação materializada do pensamento moderno. Na medida em que [a ciência] não se limite a enunciar regularidades úteis e que busque o verdadeiro, deve legitimar suas regras de jogo. Assim, exerce sobre seu próprio estatuto um discurso de legitimação, chamado filosofia. Quando este metadiscurso recorre explicitamente a algum grande relato, como a dialética do espírito, a hermenêutica do sentido, a emancipação do sujeito racional ou trabalhador, o desenvolvimento da riqueza, decide-se chamar “moderna” a ciência que a isto se refere para legitimar. (LYOTARD, 2002: XV - observação minha) Desta forma, Lyotard deixa clara sua concepção acerca da intrínseca associação entre a modernidade e os grandes relatos metafísicos. Para Jean-François Lyotard, a condição pós-moderna é, portanto, a situação de incredulidade frente ao metadiscurso filosófico-metafísico e sua utopia universalizante, totalizante e atemporal. Em Condição Pós-Moderna, o norte-americano David Harvey cita a revista de arquitetura PRECIS para traçar uma contraposição entre o pós-modernismo e a modernidade. Para os editores da referida revista, o pós-moderno é visto como uma reação à visão de mundo do modernismo universal, percebido como “positivista, tecnocêntrico e racionalista”. Para eles, o modernismo pode ser caracterizado como preconizador da “crença no progresso linear, nas verdades absolutas, no planejamento racional de ordens sociais ideais, e com a padronização do conhecimento e da produção”, enquanto o pósmoderno tende a dar ênfase a fatores como fragmentação, indeterminação e a intensa desconfiança de todos os discursos universais ou “totalizantes” (apud HARVEY, 1992: 19). 21 Para Lyotard, o conhecimento metafísico de ordem positivista, racionalista, ou “moderno”, é construído de modo que o “verdadeiro saber é sempre um saber indireto, feito de enunciados recolhidos e incorporados ao metarrelato de um sujeito que assegura-lhe a legitimidade” (LYOTARD, 2002: 63). O grande relato teria perdido sua credibilidade, tanto que Lyotard acaba por dizimar qualquer validade que tal relato poderia ter, ao afirmar que “o discurso denotativo que versa sobre um referente (...) não sabe na verdade o que ele acredita saber. A ciência positiva não é um saber. E a especulação nutre-se da sua supressão” (LYOTARD, 2002: 70). Ao abolir a idéia da validade dos metarrelatos, Lyotard questiona as perspectivas da produção de conhecimento inserida no âmbito da pós-modernidade: “A condição pósmoderna é, todavia, tão estranha ao desencanto como à positividade cega da deslegitimação. Após os metarrelatos, onde se poderá encontrar a legitimidade?” (LYOTARD, 2002: XVII). No entanto, Lyotard, ele mesmo, propõe uma saída baseada numa concepção fragmentária da linguagem, na qual a multiplicidade toma o lugar da unidade. “O princípio de uma metalinguagem universal é substituído pelo da pluralidade de sistemas formais e axiomáticos capazes de argumentar enunciados denotativos, sendo estes sistemas descritos numa metalíngua universal [lógica] mas não consistente” (idem: 79). E foi a questão da linguagem a que mais atraiu Lyotard naquilo que ele chama de idade pós-moderna. Agora, não há (ou não existe a pretensão de que haja) uma linguagem única, universal, que explique tudo sem explicar a si mesma. O que existe, por sua vez, é uma polifonia de linguagens que desbanca a metalíngua e os metarrelatos. A nova ordem é a quebra de paradigmas cristalizados pelo tempo e pela razão moderna. Ao compor as peças do (incompleto) quebra-cabeça pós-moderno, Lyotard assume que a figura resultante de tais articulações desconexas permite que se enxergue com pessimismo e, ao realizar sua descrição “pessimista”, o faz de modo niilista e catastrófico, segundo a qual, velhas instituições são superadas e substituídas por outras, incompletas, não resolutas, sem perspectivas... Novas linguagens vêm acrescentar-se às antigas (...). Pode-se acrescentar a isto as linguagens-máquinas, as matrizes de teoria dos jogos, as novas notações musicais, as notações das lógicas não denotativas (lógicas do tempo, lógicas deônticas, lógicas modais), a linguagem do código genético, os gráficos de estruturas fonológicas, etc. Pode-se retirar 22 desta explosão uma impressão pessimista: ninguém fala todas essas línguas, elas não possuem uma metalíngua-universal, o projeto do sistema-sujeito é um fracasso, o da emancipação nada tem a ver com a ciência, está se mergulhado no positivismo de tal ou qual conhecimento particular, os sábios tornaram-se cientistas, as reduzidas tarefas de pesquisa tornaram-se tarefas fragmentárias que ninguém domina; e, do seu lado, a filosofia especulativa ou humanista nada mais tem a fazer senão romper com suas funções de legitimação. (LYOTARD, 2002: 73-74) Convém admitir, entretanto, que o panorama pós-moderno feito por Lyotard e, conseqüentemente, sua relação com a modernidade, embora preciso, carece de desdobramentos. Como toda obra seminal, A Condição Pós-Moderna fornece-nos bases para uma reflexão mais aprofundada, mas não a executa. Isto posto, cabe lançar alguma luz (não Luzes) na discussão acerca da passagem da modernidade para a pós-modernidade. Tal como afirmou Baudelaire no artigo O pintor da vida moderna, publicado originalmente em 1863, a modernidade é composta de duas “metades”: uma comporta o “transitório, o fugidio, o contingente” e a outra “o eterno e o imutável” (BAUDELAIRE, 1993: 21). Para David Harvey, a definição baudelairiana de modernidade tece o pano de fundo a partir do qual ele irá fazer a passagem à pós-modernidade. Tal passagem não é brusca e também não pressupõe uma ruptura com todos os conceitos da modernidade. Começo com o que parece ser o fato mais espantoso sobre o pós-modernismo: sua total aceitação do efêmero, do fragmentário, do descontínuo e do caótico que formavam uma metade do conceito baudelairiano de modernidade. Mas o pós-modernismo responde a isso de uma maneira bem particular; ele não tenta transcendê-lo, opor-se a ele e sequer definir os elementos “eternos e imutáveis” que poderiam estar contidos nele. O pós-modernismo nada, e até se espoja, nas fragmentárias e caóticas correntes da mudança, como se isso fosse tudo o que existisse (HARVEY, 1992: 49). O pós-modernismo apega-se a uma “metade” da modernidade, enquanto aceita a impossibilidade de conceber a verdadeira dimensão da outra metade. Assume-se que o caos da vida contemporânea não pode ser compreendido por uma linha de pensamento racional, pois aquela não obedece a leis estáveis, estanques. De certa forma, Fredric Jameson compactua com a visão de Harvey ao dizer que o moderno apenas mudou de nome por não conseguir absorver a si mesmo. 23 O “moderno” deve ser agora rebatizado de pós-moderno (uma vez que aquilo que chamamos de moderno é conseqüência de uma modernização incompleta e deve, necessariamente, se definir em oposição a uma residualidade não-moderna que não mais se encontra na pós-modernidade enquanto tal – ou melhor, cuja ausência define esta última). (JAMESON, 1997: 34) Acrescentando à trama um ingrediente apocalíptico, Manfredo Oliveira encara essa “passagem” como fruto da crise da modernidade, calcada nos moldes da razão, que se mostrou ineficaz e incapaz de concretizar o ideal civilizatório. Para o autor, tal incapacidade tem como conseqüências a recusa ontológica, o cinismo, a dominação e a auto-destruição. A palavra absurdo, em nossa situação epocal, aponta para uma suspeita de perda de sentido para a vida humana: a suspeita de que a pretensão originária que marca nosso processo civilizatório desde suas origens a uma civilização da razão mostra-se hoje uma ilusão, ou seja, nossa razão parece emergir como racionalidade perversa, dominadora. A racionalidade ter-se-ia tornado cínica, pois por trás da máscara do esclarecimento e da liberdade, na verdade, o que caracteriza nossa epocalidade é a experiência de perda de sentido da vida, através da institucionalização e da concretização de uma razão que é antes desrazão perversa, instrumental, não só dominando a natureza e os homens, mas ameaçando a própria vida humana.(OLIVEIRA, 1993: 68) A própria discussão sobre a pós-modernidade já tem, por si só, algumas características pós-modernas. Embora seus diversos conceitos não sejam, em sua totalidade, coerentes entre si, note-se que por sua natureza intrínseca, eles não são excludentes. A multiplicidade polifônica (embora soe tautológica) de definições acabou por pintar o cenário perfeito de uma condição que se diz pós-moderna. A pós-modernidade é como uma espiral: indica um movimento circular mas nunca se fecha... 24 2.2 Internet, a Mídia Gonzo “A página não pôde ser exibida”. Ruídos de comunicação ecoam por entre os suspensos jardins da cibionta15. Alto fluxo de dados, baixo índice de absorção e o mundo tornando-se cada vez maior enquanto recrudescemos paulatinamente à gênese: intermináveis seqüências de 0 e 1... A rapsódia pós-moderna canta sua diversidade em versos livres enquanto samplers e colagens conduzem um acompanhamento monocórdico, repetitivo e metalizado. A letra da canção não diz nada ao dizer tudo, diz a todos o que diz respeito a ninguém. Contudo, a estória anuncia um final feliz e a pós-modernidade encontra o seu par em meio ao caos. Ciberespaço é o seu nome. À noite traveste-se de Cibionta, mas você pode chamálo do que quiser... A pós-modernidade e o ciberespaço andam mesmo lado a lado? Ou estão dispostos numa frágil e coerente imbricação, como as telhas num telhado de vidro? “O cenário pós-moderno é essencialmente cibernético-informático e informacional” (LYOTARD, 2002: VIII). Destarte, para Jean-François Lyotard, o ciberespaço configura-se como a reificação dos melindres pós-modernos, sendo aquele uma síntese dos atributos desses. Mas o que é o ciberespaço? Este pode ser definido como o “espaço de comunicação [ou meio de comunicação] aberto pela interconexão mundial dos computadores e das memórias dos computadores” (LÉVY, 2001: 92). Essa definição compreende, portanto, todo o conjunto de sistemas de comunicação eletrônicos que transmitem, codificam e/ou decodificam informações provenientes de fontes digitais ou destinadas ao processo de digitalização. A Internet, sendo a interconexão mundial dos computadores, não constitui um sinônimo de ciberespaço, mas sua mais abrangente ramificação. Para Afonso da Silva Junior, o “ciberespaço (...) não se resume à Internet. Neste sentido, podemos afirmar que a rede mundial corresponde a uma parte constituinte do ciberespaço” (in LEMOS & PALACIOS, 2001: 127). Pierre Lévy amplia ainda mais o raio de abrangência de sua definição ao afirmar que o termo ciberespaço “especifica não apenas a infra-estrutura material da comunicação digital, mas também o universo oceânico de 15 Ciberespaço. 25 informações que ela abriga, assim como os seres humanos que navegam e alimentam esse universo” (LÉVY, 2001: 17). Vez por outra, no entanto, salientamos que os conceitos de ciberespaço e Internet parecerão intersecionados, já que a última está inserida no primeiro, o que faz com que os dois possuam atributos semelhantes quando analisados sob determinados aspectos. Não esqueçamos, entretanto, que nosso objeto de estudo inicial, a Irmandade Raoul Duke, está contido na Internet e, por conseguinte, no ciberespaço. Faz-se então necessário navegar pelos nós da cibionta em busca da compreensão deste cenário, de suas transformações estruturais e de suas implicações nas formas de produção de sentido e relações sócio-culturais. O autor Pierre Lévy relata – mesclando denotação e metáfora – um breve panorama do que foi propiciado pela expansão das telecomunicações, cuja protagonista é a Internet, utilizando a mesma analogia concebida pelo teórico Roy Ascott, que a comparou a um “segundo dilúvio”: As telecomunicações geram esse novo dilúvio por conta da natureza exponencial, explosiva e caótica de seu crescimento. A quantidade bruta de dados disponíveis se multiplica e se acelera. A densidade dos links entre as informações aumenta vertiginosamente nos bancos de dados, nos hipertextos e nas redes. Os contatos transversais entre os indivíduos proliferam de forma anárquica. É o transbordamento caótico das informações, a inundação de dados, as águas tumultuosas e os turbilhões da comunicação, a cacofonia e o psitacismo ensurdecedor das mídias, a guerra das imagens, as propagandas e as contra-propagandas, a confusão dos espíritos (idem: 13). Como alternativa para evitar a submersão pelas torrentes do dilúvio informacional, Lévy inspira-se na figura bíblica de Noé, que protagonizou uma seleção daquilo que deveria ou não ser salvo segundo orientação (ou determinação) divina, e contraria-a, para propor-nos uma imensa regata, onde não há somente um suporte para permanecer à tona, mas sim diversas embarcações, cada uma carregando pequenos mundos a serem reconstruídos. Devemos substituir a imagem da grande arca pela de uma frota de pequenas arcas, barcas ou sampanas, uma miríade de pequenas totalidades, diferentes, abertas e provisórias, secretadas por filtragem ativa, perpetuamente reconstruídas pelos coletivos inteligentes que se cruzam, 26 se interpelam, se chocam ou se misturam sobre as grandes águas do dilúvio informacional (LÉVY, 2001: 161). Esse mosaico de totalidades interconectadas (e ao mesmo tempo desconexas) gera um efeito de saturação, uma overdose de mensagens, que resultam no paradoxo: a informação gera desinformação. Para Leão Serva, esse conjunto de informações “provoca uma espécie de paroxismo da desinformação-informada e da deformação, no qual milhares de informações diariamente se sobrepõem umas às outras no suporte da comunicação, no meio em si e também ou mais gravemente na mente do receptor, em sua compreensão de mundo” (SERVA, 2001: 76). Pierre Lévy também constata essa evidência ao ressaltar que “o saber, destotalizado, flutua. De onde resulta um sentimento violento de desorientação” (LÉVY, 2001: 166). Para ele, a causa da “desordem” é a interconexão em tempo real de todos com todos. Nessa “orgia” virtual, a troca de fluidos é constante e o entrelaçar de corpos é tão simbiótico, que não se sabe onde um começa e o outro termina. [A Internet] Trata-se de um novo tipo de organização sociotécnica que facilita a mobilidade no e do conhecimento, as trocas de saberes, a construção coletiva do sentido, em que a identidade sofre uma expansão do eu baseada na diluição da corporeidade, ou seja, o que se perde em corpo ganha-se em rapidez e capacidade de disseminar o eu no espaço-tempo. Assiste-se, assim, a uma aceleração do metabolismo social (Lídia Oliveira Silva in LEMOS & PALACIOS, 2001: 152- observação minha). E um dos principais fenômenos observados nessa nova concepção de sociedade é decerto sua velocidade de transformação. A realidade caleidoscópica do ciberespaço é amorfa, fluida, mutante. A cada vez que se olha para ela, não se vê a mesma coisa, não se reconhece o objeto anterior. O ciberespaço é desprovido de qualquer essência estável, de modo que a velocidade de transformação configura-se como o único elemento constante de sua natureza, o que constitui um intrigante paradoxo (LÉVY, 2001: 27). Mais que isso, a configuração do ciberespaço implica também numa aceleração do ritmo da alteração tecno-social, fazendo com que a inclusão neste movimento torne-se “necessária”, caso contrário, a exclusão ocorreria de maneira ainda mais radical naqueles que não entraram no ciclo “positivo” da alteração, de sua compreensão e apropriação. 27 A aceleração é tão forte e tão generalizada que até mesmo os mais “ligados” encontram-se, em graus diversos, ultrapassados pela mudança, já que ninguém pode participar ativamente da criação das transformações do conjunto de especialidades técnicas, nem mesmo seguir essas transformações de perto (LÉVY, 2001: 28). Mais uma contradição: o próprio ciberespaço é encarado como o “salvador” do processo de exclusão tecno-científica, devido a seu aspecto participativo, socializante, descompartimentalizante e emancipador, constituindo “um dos melhores remédios para o ritmo desestabilizante, por vezes excludente, da mutação técnica” (idem: 30). Esta última, inclusive, ocorrida em grande parte devido ao ciberespaço ou, ao menos, parte integrante do mesmo processo. Surge então a pergunta: Por que a Irmandade Raoul Duke, como produto cultural em si, não se “materializou” (virtualizou) em outro meio de comunicação que não a Internet? Por se tratar de uma produção na qual o componente textual é o principal meio de expressão, seria natural predizer que o suporte impresso configuraria a melhor gama de alternativas possíveis. A opção mais lógica seria pensar no formato revista. Entretanto, a escolha desse meio representaria problemas para a equipe editorial: a adoção de um suporte tradicional, que não condiz com a proposta do gonzo-jornalismo, e que, além disso, pressupõe um determinado investimento financeiro para a absorção dos custos de produção, o que inevitavelmente, abriria espaço para a incorporação de alternativas comerciais para a manutenção da revista, como busca de patrocinadores e divulgação propagandística, desvirtuando sua condição de veículo contracultural. Por sua vez, o meio impresso que mais se aproxima da estética gonzo é o fanzine. Produto artesanal, feito a partir de colagens e superposições caóticas de textos e figuras, e reproduzido por meio de fotocopiadoras, o fanzine é um modo de publicação com baixo custo e caráter ideológico condizente com expressões da contracultura como o Jornalismo Gonzo. No entanto, a Irmandade Raoul Duke é formada por repórteres e colaboradores localizados em diversas cidades do País, o que no mínimo dificultaria a transposição dos textos para uma publicação desse tipo. E como quebrar essas barreiras espaciais de um modo economicamente viável? O ciberespaço encoraja um estilo de relacionamento quase independente dos lugares geográficos – com o uso de telecomunicação, telepresença – e da coincidência dos tempos 28 – por meio de comunicação assíncrona (LÉVY, 2001: 49). Por sua vez, a Internet reúne atributos que a caracterizam como o ambiente ideal para o florescimento de formas alternativas de comunicação que integrem pessoas apesar dos empecilhos naturais como distância e incompatibilidade de horários, por exemplo. Nas palavras de Pierre Lévy: Apenas as particularidades técnicas do ciberespaço permitem que os membros de um grupo humano (...) se coordenem, cooperem, alimentem e consultem uma memória comum, e isto quase em tempo real, apesar da distribuição geográfica e da diferença de horários. (...) Com a ajuda das ferramentas da cibercultura, tornam-se cada vez menos dependentes de lugares determinados, de horários de trabalho fixos e de planejamentos a longo prazo (LÉVY, 2001: 49). Portanto, “torna-se possível, então, que comunidades dispersas possam comunicar-se por meio do compartilhamento de uma telememória na qual cada membro lê e escreve, qualquer que seja sua posição” (idem: 94). Destarte, mesmo geograficamente separados, os integrantes da Irmandade Raoul Duke podem sugerir e discutir pautas, trocar informações, traçar diretrizes, estipular prazos (deadline) e, principalmente, enviar e publicar seus textos. É nesse aspecto que é ressaltada outra peculiaridade da Internet: o fato de que “a informação digitalizada pode ser processada automaticamente, com um grau de precisão quase absoluto, muito rapidamente e em grande escala quantitativa” (idem: 52). E, por trás dessa rapidez e facilidade de manipulação, está o fato de que as informações digitais estão codificadas como números, mais especificamente, matrizes em seqüências de 0 e 1. “Os números estão sujeitos a cálculos, e computadores calculam rápido” (idem: 53). O binômio 0 e 1 é o suporte de toda a gama informacional do ciberespaço. Os velhos conhecimentos só poderão ser aproveitados se puderem ser convertidos para esse “alfabeto” reduzido, já que “o suporte digital (disquete, disco rígido, disco ótico) não contém um texto legível por humanos mas uma série de códigos informáticos que serão eventualmente traduzidos por um computador em sinais alfabéticos para um dispositivo de apresentação” (LÉVY, 1996: 39). Para Jean-François Lyotard só será considerado “conhecimento científico” aquele conjunto de informações que puder ser traduzido para a linguagem utilizada pelas máquinas informáticas, que “enxergam” textos, sons e imagens como bits de informação. 29 É razoável pensar que a multiplicação das máquinas informacionais afeta e afetará a circulação dos conhecimentos. (...) Nessa transformação geral, a natureza do saber não permanece intacta. Ele não pode se submeter aos novos canais, e tornar-se operacional, a não ser que o conhecimento possa ser traduzido em quantidades de informação. Pode-se então prever que tudo o que no saber constituído não é traduzível será abandonado, e que a orientação das novas pesquisas se subordinará à condição de tradutibilidade dos resultados eventuais em linguagem de máquina (LYOTARD, 2002: 4). A natureza insólita da informação digitalizada (ou digitalizável) direciona-nos à análise de outro aspecto de sua constituição: a virtualidade. A informação, no estado puro, perdeu suas propriedades físicas, palpáveis, palatáveis e passou a ser um avatar, que existe num “outro plano”, mas que só demonstra seus “poderes” quando é devidamente invocado. É certo, no entanto, que no centro das redes digitais, a informação situa-se fisicamente armazenada em um suporte, mas ela também está “virtualmente presente, ao mesmo tempo, em cada ponto da rede onde seja pedida” (LÉVY, 2001: 48). E aí está o caráter virtual da informação: estar em determinado lugar, poder estar em qualquer lugar e não estar realmente em lugar nenhum, pois, “é virtual toda entidade desterritorializada, capaz de gerar diversas manifestações concretas em diferentes momentos e locais determinados, sem contudo estar ela mesma presa a um lugar ou tempo em particular” (idem: 47). Não há dúvidas de que as transformações provocadas pelo advento e universalização do ciberespaço são co-responsáveis pela aura de virtualidade agregada à informação: Ubiqüidade da informação, documentos interativos interconectados, telecomunicação recíproca e assíncrona em grupo e entre grupos: as características virtualizante e desterritorializante do ciberespaço fazem dele o vetor de um universo aberto. Simetricamente, a extensão de um novo espaço universal dilata o campo de ação dos processos de virtualização (idem: 49-50). E o texto, qual o seu papel nesse jogo de (re)interpretação? O texto linear e concatenado dos anacrônicos alfarrábios empoeirados; o texto literalmente manuseável; o texto da velha retórica; o texto sobre o papel... Aqui reside uma importante questão de atemporalidade: o texto, desde os primórdios da civilização da linguagem, já era e sempre 30 foi uma entidade virtual, no sentido de que ele existe no inconsciente coletivo independentemente de sua evocação e “materializa-se” no ato de fala, nos jogos de linguagem e na escrita. O texto é, por si só, “um objeto virtual, abstrato, independente de um suporte específico” (LÉVY, 1996: 35). A problemática atual (recente) a respeito do texto é que ele recebeu um prefixo que lhe transfigurou em forma e essência. Com a interconexão dos discursos possibilitada pelo processo de navegação através do ciberespaço, o texto evoluiu, sofreu uma mutação, e transformou-se em hipertexto. Não por isso o “velho texto” tenha deixado de existir. Ele ainda persiste, é a célula-mãe, um mero fragmento de um universo incomensurável de jogos de linguagem. Para cada uma das grandes modalidades do signo, texto alfabético, música ou imagem, a cibercultura faz emergir uma nova forma e maneira de agir. O texto dobra-se, redobra-se, divide-se e volta a colar-se pelas pontas e fragmentos: transmuta-se em hipertexto, e os hipertextos conectam-se para formar o plano hipertextual indefinidamente aberto e móvel da Web (LÉVY, 2001: 149). “Um hipertexto é uma matriz de textos potenciais, sendo que alguns deles vão se realizar sob o efeito da interação com um usuário” (LÉVY, 1996: 40). A modalidade de texto como sendo o elemento-matriz de um hipertexto, que vai sendo construído à medida que o leitor (internauta) o percorre, provocou um choque no conceito de autoria. Para Pierre Lévy, o navegador participa da redação (ou pelo menos da edição) do texto que ele “lê”, uma vez que determina sua organização final. Se definirmos um hipertexto como um espaço de percurso para leituras possíveis, um texto aparece como uma leitura particular de um hipertexto. O navegador participa, portanto, da redação do texto que lê. Tudo se dá como se o autor de um hipertexto constituísse uma matriz de textos potenciais, o papel dos navegantes sendo o de realizar alguns desses textos colocando em jogo, cada qual à sua maneira, a combinatória entre os nós. O hipertexto opera a virtualização do texto (LÉVY, 2001: 57). Notemos, entretanto, que esse processo autoral é, no mínimo, relativo. É necessário perceber que essa construção dá-se num âmbito abstrato. O que ocorre efetivamente é a montagem, a estruturação do texto, a atualização (oposto de virtualização) 31 de um hipertexto, como se fosse montado um quebra-cabeça com um número infinito de soluções. No entanto, essa autoria pode ser legitimada conceitualmente de modo mais pleno à medida em que o navegador do ciberespaço passa a participar da estruturação do hipertexto e não apenas percorre uma rede preestabelecida, fazendo-se desta forma, “autor de maneira mais profunda” (LÉVY, 1996: 45). 2.2.1 – Autoria: um entretexto Desafiando a vertigem que nos desnorteia o labirinto, sigamos em queda livre rumo a uma outra esfera de pensamento. Se antes voávamos na altitude da exosfera da abstração, agora empreendemos um vôo rasante sobre o trivial, o corriqueiro, o pueril. Para tentar materializar ao máximo o pensamento do teórico Pierre Lévy, recorramos às recônditas alcovas da memória e de lá tiremos a lembrança do clássico quebra-cabeça Lego, jogo formado por peças encaixáveis, que possibilita a “criação” de cidades, pessoas, carros, aviões, casas... enfim, pequenos mundos. Embora em algumas de suas modalidades sejam sugeridas montagens específicas, como uma casa holandesa, um pato ou avião, há no Lego uma certa liberdade de criação. Dentro de suas limitações, as peças estão “disponíveis” para que o brincante elabore as formas que sua imaginação permitir. Tal como no ciberespaço, as peças do Lego “estão lá” para serem ordenadas e montadas ao livre arbítrio do usuário. Tu, leitor, dirias a uma criança que o cachorrinho (que mais parece o grito da Floresta Amazônica retratado pela arte abstrata) construído por ela não é de sua autoria? Dirias tu que o “cachorrinho” não é dela? Dirias tu, ao menos, que o “cachorrinho” não é um cachorrinho? As peças do Lego são pré-fabricadas, ou seja, existem a despeito da interação com o sujeito brincante. Mas as formas, as relações entre cada peça individualmente e a maneira pela qual uma se encaixa à outra, são uma criação particular, única, singular... o que constitui, portanto, um processo autoral. O mesmo ocorre com a Internet: o conteúdo “está lá”, mas à medida em que se acrescentam novos nós aos preexistentes e constrói-se uma estrutura hipertextual repleta de atalhos que ligam documentos, imagens, sons entre si, estamos diante de uma obra criacional, e, portanto, um novo texto. Para Lévy, portanto, o trabalho da leitura é rasgar, amarrotar, torcer, re-costurar um texto, a partir de uma 32 linearidade ou platitude inicial, para abrir um meio vivo no qual possa se desdobrar o sentido. Este, portanto, não preexiste à leitura, e por isso é necessário percorrê-lo, cartografá-lo, para que o fabriquemos, o atualizemos. Mas enquanto o dobramos sobre si mesmo, produzindo assim sua relação consigo próprio, sua vida autônoma, sua aura semântica, relacionamos também o texto a outros textos, a outros discursos, a imagens, a afetos, a toda a imensa reserva flutuante de desejos e de signos que nos constitui. Aqui, não é mais a unidade do texto que está em jogo, mas a construção de si, construção sempre a refazer, inacabada. Não é mais o sentido do texto que nos ocupa, mas a direção e a elaboração do nosso pensamento, a precisão de nossa imagem no mundo, a culminação de nossos projetos, o despertar de nossos prazeres, o fio de nossos sonhos (LÉVY, 1996: 36). Desta forma, a partir do hipertexto, “toda leitura tornou-se um ato de escrita” (idem: 46). Imerso no emaranhar de teias do ciberespaço, o texto assume a condição metonímica de pedaço, estilhaço de um todo incomensurável. É a interface que coloca nossos sentidos em contato com um universo do qual o texto não é mais do que uma mera partícula, restrito ao seu papel de interconectar-se com outros textos, desprezando a idéia de totalidade em si mesmo. Em suma, seja qual for o texto, e em qual con-texto apresenta-se ou oculta-se, ele é senão “o fragmento talvez ignorado do hipertexto móvel que o envolve, o conecta a outros textos e serve como mediador ou meio para uma comunicação recíproca, interativa, interrompida” (LÉVY, 2001: 118). No entanto, a fronteira da autoria de um texto é por demais tênue, fugidia. Não existe mais como conceber um texto discernível e individualizável, “mas apenas texto, assim como não há uma água e uma areia, mas apenas água e areia” (LÉVY, 1996: 48). O texto passa agora para a categoria dos substantivos incontáveis... Ainda sobre a questão da autoria, Lévy brinca com o conceito de hipertexto, desvinculando-o da obrigatoriedade de imbricação com a questão do ciberespaço e coloca-o numa esfera transcendente, quiçá divina, ao remeter-se à Bíblia, como o “experimento” pioneiro, desbravador, o bandeirante da floresta do hipertexto: A Bíblia é um outro caso exemplar de uma obra maior do fundo espiritual e poético da humanidade, à qual, no entanto, não podemos atribuir um autor. Precursor do hipertexto, sua 33 constituição resulta de uma seleção (de um sampling!) e de um amálgama tardio de um grande número de textos de gêneros heterogêneos redigidos em diversas épocas” (LÉVY, 2001: 152). 2.2.2 – Ciberespaço: considerações essenciais Considere-se a digressão do entretexto apenas como o toque arremetido das aeronaves que, na impossibilidade de realizar uma aterrissagem segura, retomam o vôo imediatamente após o toque no solo. Flutuemos novamente no plano da abstração e saiamos do refúgio da trivial materialização. Seguindo o caminho de volta, chegaremos na derradeira e essencial contradição do ciberespaço: o universal sem totalidade. Com o intuito de abarcar esta concepção de modo adequado e historicizado, retrocedamos um pouco em direção ao momento “pré-ciberespacial”, de mensagens escritas e estáticas. Um texto escrito no século XIV ou uma mensagem escrita e enviada por alguém na Polinésia Francesa, invariavelmente, vêm carregados de significações inerentes ao contexto no qual foram produzidos. Para suprir tais “ruídos de comunicação”, foram concebidas mensagens com o intuito de preservarem o mesmo sentido pretendido pelo autor independentemente do contexto do destinatário. A estas mensagens é dado o atributo de “universais”, dentre as quais se incluem as religiões do livro (cristianismo, islamismo, judaísmo etc.), a ciência e os direitos do homem, por exemplo. Entretanto, tal universalidade só pode ser construída “à custa de uma certa redução ou fixação do sentido” (LÉVY, 2001: 15), configurando um “universal totalizante”. Portanto, “a existência de uma verdade universal, objetiva e crítica só pôde se impor numa ecologia cognitiva largamente estruturada pela escrita, ou, mais exatamente, pela escrita sobre suporte estático” (LÉVY, 1996: 38). Com o advento dos novos suportes tecnológicos de codificação e transmissão de informações, logrou-se um processo de superação do modelo anterior, pelo menos num universo determinado, que é o do ciberespaço. Instituiu-se uma “nova universalidade”, que renega a auto-suficiência dos textos e a fixação e independência das significações, sendo, a partir de então, construída e ampliada pela interconexão das mensagens, por meio de uma atribuição de sentidos vários, o que lhes coloca numa renovação permanente. 34 Pois o texto contemporâneo, alimentando correspondências on line e conferências eletrônicas, correndo em redes, fluido, desterritorializado, mergulhado no meio oceânico do ciberespaço, esse texto dinâmico reconstitui, mas de outro modo e numa escala infinitamente superior, a co-presença da mensagem e se seu contexto vivo que caracteriza a comunicação oral (LÉVY, 1996: 39). Em suma, a universalidade ciberespacial não está alicerçada sobre as fundações da palavra, sobre as construções do discurso. Antes, tal universalidade é proporcional ao movimento empreendido por determinada mensagem através dos labirintos da informação. O universal não mais utiliza o artifício do fechamento semântico para efetuar seu ritual totalizante. “Esse universal não totaliza mais pelo sentido, ele conecta pelo contato, pela interação geral” (LÉVY, 2001: 119). Essa impossibilidade de totalização gera o paradoxo essencial da cibercultura: quanto mais universal (interconectado, extenso, interativo), o ciberespaço torna-se menos totalizável, ou seja, cada vez menos suscetível de assimilação por meio do fechamento semântico, da unidade da razão. O ciberespaço realizou a façanha, portanto, de conseguir separar a universalidade e a totalização, que antes pareciam indissociáveis. “O principal evento cultural anunciado pela emergência do ciberespaço é a desconexão desses dois operadores sociais ou máquinas abstratas (muito mais do que conceitos!) que são a universalidade e a totalização” (idem: 118). O ciberespaço, como o cerne ideal para o florescimento de paradoxos e antinomias, tende a tornar-se ainda mais universal, convergindo para si uma gama tão diversa de conceitos e informações, que será impossível traçar uma linha reta entre eles. Quanto mais o ciberespaço se amplia, mais ele se torna “universal”, e menos o mundo informacional se torna totalizável. O universal da cibercultura não possui nem centro nem linha diretriz. É vazio, sem conteúdo particular. Ou antes, ele os aceita todos, pois se contenta em colocar em contato um ponto qualquer com qualquer outro, seja qual for a carga semântica das entidades relacionadas (idem: 111). O “sistema do caos”. É assim que Pierre Lévy passa a chamar o ciberespaço, esse meio de comunicação virtual, surreal, que se configura como a “encarnação máxima da transparência técnica”, acolhendo todas as opacidades do sentido, devido a seu crescimento 35 incontido. “Labirinto” foi a metáfora escolhida pelo autor para definir essa estrutura móvel, enredada, em expansão, sem plano possível... labirintiforme. E conclui: “Essa universalidade desprovida de significado central, esse sistema da desordem, essa transparência labiríntica, chamo-a de ‘universal sem totalidade’. Constitui a essência paradoxal da cibercultura16” (LÉVY, 2001: 111). Inevitavelmente, a discussão a respeito da totalização (ou da não-totalização) remete-nos de volta às argüições sobre a pós-modernidade. E é neste ponto, inclusive, onde residiria, talvez, o mais controverso aspecto da obra de Lévy. Seria natural ouvir que a Internet é um meio de comunicação moderno. Mas este “moderno” estaria referindo-se a sua recentidade, nos aspectos temporal e tecnológico. Pierre Lévy, entretanto, situa a Internet, o ciberespaço e a cibercultura, como o legado da Era das Luzes para a posteridade, ou seja, uma síntese materializada dos pressupostos filosóficos da modernidade17. “Em contraste com a idéia pós-moderna do declínio das idéias das luzes, defendo que a cibercultura pode ser considerada como herdeira legítima (ainda que longínqua) do projeto progressista dos filósofos do século XVIII” (idem: 245). O autor francês, talvez por influência latente de alguma forma de patriotismo ou sentido histórico coletivo e compartilhado, baseia sua argumentação sobre um resgate dos ideais revolucionários e republicanos de liberdade, igualdade e fraternidade, situando-os como elementos presentes (e fundamentais) na estrutura social possibilitada pelo ciberespaço. Desse modo, o ciberespaço não poderia ser pós-moderno se os ideais da modernidade estão tatuados em sua essência. Em suma, o autor conclui que “longe de ser decididamente pós-moderno, o ciberespaço pode surgir como uma espécie de materialização técnica dos ideais modernos”. Para Lévy, a tríade libertária da Revolução Francesa, quando inserida no âmbito do ciberespaço, configurar-se-ia da seguinte forma: Na era das mídias eletrônicas, a igualdade é realizada enquanto possibilidade para que cada um emita para todos; a liberdade é objetivada por meio de programas de codificação e do acesso transfronteiriço a diversas comunidades virtuais; a fraternidade, enfim, transparece na interconexão mundial (LÉVY, 2001: 245). 16 O neologismo “cibercultura” especifica o conjunto de técnicas (materiais e intelectuais) e de valores que se desenvolvem juntamente com o crescimento do ciberespaço. 17 Link para a página 25, onde podemos constatar que uma definição semelhante de ciberespaço é atribuída à pós-modernidade. 36 Não esqueçamos, entretanto, que o pós-modernismo não se trata de uma ruptura completa e radical do modernismo18. O pós-modernismo e a pós-modernidade são entendidos como reações “dispersas e diversas” a alguns aspectos da modernidade. Essencialmente, a base daquilo que se convencionou chamar de pós-moderno está calcada na refutação “à ditadura da razão, à ambição totalitária e impossível das ‘grandes narrativas’ filosóficas e literárias e ao purismo asséptico, formalista e moralista, do tardomodernismo, com o seu exacerbado ‘cânone de proibições’ e tabus” (BARRENTO, 2002). Não precisamos ir muito longe, portanto, para retomar nossa pressuposição inicial, vaticinada por Jean-François Lyotard, a lembrar: “O cenário pós-moderno é essencialmente cibernético-informático e informacional” (LYOTARD, 2002: VIII). Destarte, inverter a sentença, e afirmar que um cenário essencialmente cibernético-informático e informacional seja pós-moderno, não nos parece absurdo. Até o próprio Pierre Lévy, que prega o ciberespaço como herança da modernidade, assume que as facetas fundamentais da cibercultura são amparadas na teoria pós-moderna. A filosofia pós-moderna descreveu bem o esfacelamento da totalização. A fábula do progresso linear e garantido não possui mais curso nem em arte, nem em política, nem em qualquer outro domínio. (...) A multiplicidade e o entrelaçamento radical das épocas, dos pontos de vista e das legitimidades, traço distintivo do pós-moderno encontram-se nitidamente acentuados e encorajados na cibercultura (LÉVY, 2001: 120). A Internet, e o ciberespaço como um todo, são pós-modernos por se tratarem de um universo indeterminado, que foge ao controle de si mesmo, bem como a controles externos. Mais ainda, é um universo que tende a manter e reforçar sua indeterminação à medida em que se desenvolve, se amplia, se fragmenta e, paradoxalmente, se conecta, “pois cada novo nó da rede de redes em expansão constante pode tornar-se produtor ou emissor de novas informações, imprevisíveis, e reorganizar uma parte da conectividade global por sua própria conta” (LÉVY, 2001: 111). 18 Link para a página 23, onde o pós-modernismo é visto como a exaltação de alguns aspectos da modernidade e a refutação de outros. 37 Tal indeterminação do ciberespaço é o fator que permite estabelecer a diferença crucial entre a Internet e os meios de comunicação tradicionais, que engendram relacionamentos unilaterais. Enquanto as mídias de massa (imprensa, rádio, cinema, televisão), pelo menos em sua configuração clássica, dão continuidade à linguagem cultural do universal totalizante iniciado pela escrita, a Internet faz justamente o oposto, desconstruindo esse processo de totalização. “O movimento contínuo de interconexão rumo a uma comunicação interativa de todos com todos é em si mesmo um forte indício de que a totalização não ocorrerá, que as fontes serão sempre mais heterogêneas, que os dispositivos mutagênicos e as linhas de fuga irão multiplicar-se” (idem: 133). Mais que isso, enquanto as mídias de massa (relação um-todos) instauraram uma distinção nítida entre emissores e receptores passivos e isolados uns dos outros, “no ciberespaço, em troca, cada um é potencialmente emissor e receptor num espaço qualitativamente diferenciado, não fixo, disposto pelos participantes, explorável” (LÉVY, 1996: 113). O ciberespaço representa, portanto, o sepultamento da sociedade de massa, enquanto o hipertexto seria o epitáfio... Através desse caminho tortuoso, chegamos ao pressuposto de que “um dos principais significados da emergência do ciberespaço é o desenvolvimento de uma alternativa às mídias de massa” (LÉVY, 2001: 239). Essa é a brecha dada pelo ciberespaço para que a Irmandade Raoul Duke desempenhe e assuma seu verdadeiro papel, o de alternativa, de opção, aos meios de comunicação dominantes e, principalmente, às formas de comunicação dominantes, já que estas últimas também estão presentes em meios que não são considerados “de massa”, como a Internet, por exemplo. A Internet promoveu uma revolução no conceito de comunicação midiática, de modo que no ciberespaço não existem centros difusores que “despejam” informações sobre os receptores, mas sim espaços compartilhados, os quais cada um pode ocupar ou investigar aquilo que porventura lhe despertar interesse, configurando verdadeiros “mercados da informação onde as pessoas se encontram e nos quais a iniciativa pertence ao demandante” (idem: ibid). O ciberespaço inaugurou efetivamente o conceito de interatividade, ao instaurar um modelo de comunicação não em uma ou duas vias, mas em múltiplas vias que se entrecruzam, se complementam, colidem frontalmente ou se unem em sinergia, o que abre caminhos para uma comunicação recíproca, comunitária e intercomunitária, desenhando um “horizonte de 38 mundo virtual vivo, heterogêneo e intotalizável no qual cada ser humano pode participar e contribuir” (LÉVY, 2001: 126). O aumento das máquinas eletrônicas (não mais mecânicas) faz nascer uma arte paranacional, extracontinental, graças aos novos meios de transmissão que nada nem ninguém poderá doravante interromper. Assistimos pela primeira vez no mundo à personalização de cada voz (Henri Chopin in MENEZES, 1992: 60). A Internet metaforiza-se numa imensa folha de papel com incontáveis lacunas em branco, as quais podem ser preenchidas por qualquer um, com lápis e pincéis de cores e tamanhos variados. No ciberespaço, os pincéis estão a alcance de todos, o que permite que se transforme o branco do papel naquilo que o “pintor” desejar. Qualquer espécie de conteúdo (gráfico ou textual) pode ser publicada na Internet, de modo relativamente instantâneo, e sem a necessidade de passar pelo crivo de alguma entidade reguladora. E é neste ponto onde se situa nosso objeto de estudo, a Irmandade Raoul Duke, inserida num meio onde “qualquer um (grupo ou indivíduo) pode colocar em circulação obras ficcionais, produzir reportagens, propor suas sínteses e sua seleção de notícias sobre determinado assunto” (LÉVY, 2001: 239-240). A Irmandade Raoul Duke, portanto, aproveita-se de um cenário onde (quase) tudo é permitido, para promover um tipo de jornalismo (?)19 destoante das formas tradicionais e usuais de transmitir notícias e, mesmo assim, estar dentro da “normalidade” pois, na Internet, transgredir é a norma. 2.3 – Contracultura O autor Mark Dery, no livro Escape Velocity – Cyberculture at the end of the century20, estabelece um nó, uma ponte, entre a cibercultura e a contracultura. Durante os anos 90, a tônica contracultural é mais evidente na esfera da cibercultura denominada de cyberpunk, que se constitui no underground hi-tech, onde “grupos relativamente 19 20 Link para o Capítulo 3, onde a interrogação tentará ser eliminada... Link para a bibliografia: DERY, Mark, Escape Velocity – Cyberculture at the end of the century, Nova Iorque, Grove Press, 1996. 39 organizados que têm uma relação lúdica com o modus operandi do maquinário de ponta” procuram desmistificar o aparato tecnológico mais sofisticado trazendo-o para a realidade mais cotidiana. Dery enfoca que os temas recorrentes nesse underground cyberpunk são: a convergência entre o homem e a máquina; o supercorte da experiência sensorial pela simulação digital; o emprego subcultural da alta tecnologia a serviço de sensibilidades perversas ou ideologias subversivas; e uma profunda ambivalência, advinda dos anos sessenta, que leva a computadores como motores de liberação e ferramentas de controle social, refazendo o tecido social desfiado pelo modernismo industrial e por instrumentos de uma atomização cada vez maior (apud LEMOS & PALACIOS, 2001: 228). Afirma-se que a cibercultura dos anos 90 deve muito à contracultura dos anos 60. No entanto, há de ser notada uma diferença essencial entre os dois “movimentos”, residente naquilo que se refere à “aceitação e culto da tecnologia. Coisa impensável para os hippies, estes com tendência ao rural e de forte ligação naturalista” (in LEMOS & PALACIOS, 2001: 227). Todavia, tanto na contracultura quanto na cibercultura, pode-se perceber uma atitude contestadora ao “sistema”, de alguma forma, sem contudo haver uma perspectiva explícita de tomada de poder. Mas, o que é contracultura? Contra qual cultura lutava a contracultura dos anos 60? Existe apenas uma contracultura? Antes de responder ao primeiro questionamento, tratemos de elucidar o segundo, traçando um panorama do que foi o movimento contracultural da década de sessenta. A resposta ao terceiro virá naturalmente... A priori, o conceito de contracultura trata-se de uma etiqueta coletiva aplicada às subculturas alternativas ou “revolucionárias” de jovens politizados, principalmente da classe-média, na década de 60 e princípio dos anos 70. Para Maria José Ragué Arias, a contracultura teve data e local de nascimento: o ano de 1965, no bairro de Haight-Ashbury, na cidade de São Francisco, Estado da Califórnia, Estados Unidos. Para Theodore Roszak, no entanto, a contracultura caracterizou-se por sua indisciplina como movimento congregante, não comportando uma determinação exata de seu surgimento, e comparou-a com uma cruzada medieval: “uma procissão variegada, constantemente em fluxo, adquirindo e perdendo membros durante todo o percurso da marcha”. Nessa caravana obtusa, alguns são agregados por um curto momento, com o intuito de travar uma “luta 40 óbvia e imediata”, como uma rebelião no campus, um protesto contra a guerra ou uma manifestação contra a injustiça racial e talvez não faça nada além de “brandir uma minúscula bandeira contra as desumanidades da tecnocracia” (ROSZAK, 1972: 60). E é justamente a dita tecnocracia que representa o papel de principal antagonista da contracultura dos anos sessenta e setenta. Roszak ressalta a existência de “perigos” no embate contra a tecnocracia, devido à sua menor visibilidade perante os fenômenos sociais. A esse embate, ele denominou de “a luta suprema”. Mas quem é esse inimigo invisível? A tecnocracia é a “forma social na qual uma sociedade industrial atinge o ápice de sua integração organizacional” (idem: 19). É a aplicação prática dos conceitos de modernização, atualização, racionalização e planejamento. Para legitimar-se, a tecnocracia utiliza-se de “imperativos incontestáveis” como a procura de eficiência, a coordenação em grande escala de homens e recursos, a segurança social, níveis cada vez maiores de opulência e manifestações crescentes de força humana coletiva. Estabelecendo suas relações desta forma, ela age com o intuito de “eliminar as brechas e fissuras anacrônicas da sociedade industrial” (idem: 19). Sob o regime da tecnocracia, tudo tende a tornar-se eminentemente técnico e analisável apenas por especialistas autorizados, com o intuito de “eliminar os defeitos que sua determinação pessoal introduz no projeto perfeito da organização” (idem: 20). Destarte, o conceito de tecnocracia pode ser condensado na “sociedade na qual os governantes justificam-se invocando especialistas técnicos, que, por sua vez, justificam-se invocando formas científicas de conhecimento” (idem: 21). O “grande segredo” da tecnocracia está em sua capacidade de convencer a sociedade de algumas premissas. Por exemplo, ao afirmar que “as necessidades vitais do homem são de caráter puramente técnico”, todos os requisitos da condição humana passam a submeter-se à análise formal, engendrada por especialistas, detentores de conhecimentos científicos, e por isso, impenetráveis. Conclui-se que, na tecnocracia, cabe ao especialista descobrir nossos desejos e necessidades e provêlos com prazeres e soluções. Mas, para isso, a tecnocracia precisa reduzir o “mundo real” a uma esfera que possa ser abraçada por ela. E é neste ponto que reside o seu principal artifício: A estratégia fundamental da tecnocracia: reduzir a vida àquele padrão de “normalidade” apropriado à gestão da especialização técnica, e depois, segundo aquele critério espúrio e 41 exclusivista, reivindicar sobre nós uma intimidante onicompetência, justificada por seu monopólio dos especialistas (ROSZAK, 1972: 25). E é a máquina, materialização-mor do progresso técnico, a responsável por fincar as bases da tecnocracia na sociedade. Deste modo, a máquina acaba por substituir o homem em todas as suas atividades, mas não porque realize tais atividades de modo mais satisfatório ou eficiente, mas porque todas as coisas foram reduzidas àquilo de que a máquina é capaz. “Chegamos assim à ironia suprema: a máquina, que é uma criatura do ser humano, torna-se – de preferência na forma do processo de computerização – o ideal de seu criador” (idem: 232). Por outro lado, uma das principais características da tecnocracia é o seu caráter alienante, onde “a invenção e o embelezamento de traiçoeiras paródias de liberdade, alegria e realização tornam-se uma forma indispensável de controle social” (idem: 28). A tecnocracia, então, cria ideais para que ela própria satisfaça-os. Embora a contracultura tenha nascido no cerne do capitalismo, os Estados Unidos, Theodore Roszak ressalta a necessidade de se compreender que ela não é resultado somente das “maquinações daquele demônio, o capitalismo”, já que, acima de tudo, os americanos vivem “numa sociedade que busca a sua autoridade na tecnologia, satisfaz-se na tecnologia e orienta-se pelas regras impostas pela tecnologia” (TEÓFILO, 1998). A tecnocracia é, sim, por sua vez, “o produto de um industrialismo maduro e em aceleração” (ROSZAK, 1972: 31). O autor argumenta com a hipótese de que mesmo se a busca de lucros fosse eliminada de nossa sociedade, a tecnocracia persistiria. Para ele, o problema fundamental da tecnocracia é “o paternalismo da especialização dentro de um sistema sócio-econômico tão bem organizado que se acha inescapavelmente endividado com a especialização” (idem: ibid). O movimento contracultural compreendeu essa diferenciação, essa desvinculação entre capitalismo e sociedade industrial, e bateu de frente com a tecnocracia, o que se pôde perceber no manifesto estudantil afixado à entrada principal da Sorbonne, na significativa data de maio de 1968: A revolução que está começando questionará não só a sociedade capitalista como também a sociedade industrial. A sociedade de consumo tem de morrer de morte violenta. A sociedade 42 da alienação tem de desaparecer da História. Estamos inventando um mundo novo e original. A imaginação está tomando o poder (apud ROSZAK, 1972: 33). O fato é que jovens americanos (uma minoria deles), na década de 60, empreenderam um conflito de gerações que transcendeu a mera remodelagem habitual da cultura herdada em aspectos secundários e superficiais. Tendo isso por base, o que torna especial a transição ocorrida nos Estados Unidos é a profundidade de antagonismo que ela revela. É aí onde, para ele, nasce o conceito de contracultura, no contexto específico americano dos anos 60, que reflete “uma cultura tão radicalmente dissociada dos pressupostos básicos de nossa sociedade que muitas pessoas nem sequer consideram uma cultura, e sim uma invasão bárbara de aspecto alarmante” (ROSZAK, 1972: 54). Para Maria José Arias, a contracultura era a “modelagem física” de um grupo de jovens insatisfeitos com os valores da sociedade, e que percebera o processo de alienação a que eram submetidos e que os “envolviam numa engrenagem de que eles, como indivíduos, eram apenas uma peça a mais” (ARIAS, 1979: 114). E qual a alternativa proposta pelos preconizadores da contracultura frente à dominação tecnocrática? Em suma, era uma vida baseada no “amor a todas as coisas” e calcada sobre o tempo presente, sem “hipotecas sobre o futuro”. As principais ocupações dos chamados flower children eram os trabalhos manuais, o artesanato, agricultura, “apanhar sol”, música, literatura e a ingestão de substâncias que de alguma forma expandiam a consciência. Os hippies, por exemplo, chegaram a fundar diversas comunidades utópicas, afastadas dos centros urbanos, onde um novo modo de vida pudesse desenvolver-se. A construção da Grande Sociedade não era vista, pelos movimentos da contracultura, como uma empreitada social, mas um processo que deve pairar sobre a esfera do psíquico, provocando alterações na essência do homem. Por conseguinte, a “rebelião da juventude” da década de sessenta, mais do que um movimento político, era um fenômeno cultural, pelo “fato de passar por cima da ideologia, procurando atingir o nível da consciência, buscando transformar nosso sentido mais profundo do ego, do próximo, do ambiente” (ROSZAK, 1972: 61). Para Roszak, as premissas tecnocráticas quanto à natureza do homem e da sociedade deformaram o homem, portanto: 43 Para a extirpação dessas premissas deturpantes, é necessário nada menos do que a subversão da cosmovisão científica, com seu arraigado compromisso para com a consciência cerebral e egocêntrica. Em seu lugar é preciso que surja uma nova cultura na qual as capacidades nãointelectivas da personalidade – aquelas capacidades acionadas pelo esplendor visionário e pala experiência da comunhão humana – tornem-se os árbitros do bem, da verdade e da beleza (idem: 62). A contracultura se distanciou tanto da torrente cultural vigente em sua época, que quase não pode começar a manifestar-se sem parecer usar uma “língua estranha”. A contracultura nega que o verdadeiro eu seja condensável por meio da objetividade21 dos especialistas. E o faz por meio da transcendência da mente pelas experiências místicas e o uso de alucinógenos22. É isso que faz a contracultura quando, por meio de suas tendências místicas ou das drogas, agride a realidade do ego como uma unidade de identidade isolável, puramente cerebral. Ao fazê-lo, mais uma vez transcende a consciência da cultura dominante e arrisca-se a parecer um exercício árido de absurdo impertinente (idem: 65-66). As “tribos” que compunham o cenário da contracultura nos anos sessenta eram basicamente os pacifistas e místicos hippies e os boêmios beatniks, uma geração de poetas norte-americanos que se opunha ao sistema de vida da sociedade de consumo. É importante ressaltar que essas duas tribos pareciam possuir mais divergências do que semelhanças. Mas o que justificaria o fato de os dois estarem incluídos num mesmo movimento, apesar da aparente incompatibilidade estética e cultural? A consciência de classe cede lugar, como princípio generativo, à... consciência da consciência. É aí que a Nova Esquerda e a orla boêmia dão-se as mãos. Pois até nas caricaturas mais hostis da orla boêmia de nossa cultura jovem torna-se evidente seu caráter distintivo, fundado num exame intensivo do eu, da esquecida riqueza de consciência pessoal. O estereótipo do beatnik ou do hippie, desinteressado e introspectivo, mergulhado em estupor narcótico ou perdido em contemplação extasiada... (ROSZAK, 1972: 72) 21 Impossível não estabelecer uma relação com a crítica da objetividade jornalística feita pelo gonzo. 44 Desta forma, a unidade geral a que se sobrepõem os diversos grupos contraculturais – a boêmia beat e hippie – consiste na tentativa de elaborar a estrutura de personalidade e o estilo de vida total que se derivam da crítica social da Nova Esquerda, procurando “descobrir novos tipos de comunidade, novos padrões familiares, novos costumes sexuais, novas maneiras de ganhar a vida, novas formas estéticas e novas identidades pessoais no lado oculto da política de poder, no lar burguês e na sociedade de consumo” (idem: 75). Em síntese, a meta fundamental da contracultura consiste em “proclamar um novo céu e uma nova terra, tão vastos, tão maravilhosos, que as pretensões descabidas da técnica tenham forçosamente de se retrair, diante de tamanho esplendor, a uma posição subordinada e marginal na vida dos homens” (idem: 242). Theodore Roszak, escreveu sua obra, A Contracultura, nos anos de 1968 e 1969, no pleno auge do movimento contracultural nos Estados Unidos. Aí reside a maior vantagem e, ao mesmo tempo, a maior desvantagem da obra. A vantagem está no fato de se enxergar nas linhas do autor reflexos diretos das transformações ocorridas naquela década, o que produziu um texto vivo, que suplantou os academicismos em nome de um ideal. A desvantagem, contudo, está na impossibilidade de um distanciamento temporal que o permitisse acompanhar o caminho que viria a ser percorrido pela contracultura. Entretanto, Roszak ainda teve tempo de perceber a derrocada do movimento e prever o seu fim, pelo menos em essência. Ele argüiu que “é a experimentação cultural dos jovens que freqüentemente corre o maior risco de infestação comercial – e, portanto, de dissipação da força de sua contestação” (idem: 79). Como um visionário, ou um astuto observador social, ele enxergou que a contracultura começava a aparentar, paradoxalmente, “uma campanha publicitária em escala mundial”. O autor vaticinou, portanto, que a contracultura corria o risco de sucumbir à debilidade de seu relacionamento cultural com os desprivilegiados e à vulnerabilidade perante a exploração como espetáculo divertido para a “sociedade opulenta” (idem: 80-81). E foi justamente isso o que aconteceu... É fato que a contracultura derivou das circunstâncias políticas, sociais, econômicas e culturais na década de 60, que se resumia numa sociedade de massas baseada no consumo, transformando tudo e todos em mercadoria para produção em série. E os 22 Link para o Capítulo 3, onde a questão das drogas e as aventuras psicodélicas serão tratadas de maneira sóbria e casta. 45 movimentos contraculturais (assim como todos os outros elementos culturais que alcançaram certa evidência), com suas características exóticas e suas diferenças gritantes, foram naturalmente absorvidos, incorporados pela cultura que tanto combatera. “A contracultura atacou de fora o sistema de consumo e (...) foi assimilada pelo próprio sistema” (ARIAS, 1979: 139). Philadelpho Menezes também traz à tona esse processo que, embora na citação abaixo esteja especificamente relacionado aos movimentos de vanguarda, cabe perfeitamente uma adequação à contracultura, tanto pelo momento histórico, quanto pelo desdobramento encadeado pela questão. A falência do ideário de maio de 68, a mercantilização da contra-cultura norte-americana, a domesticação museológica dos projetos construtivistas nas artes foram alguns dos elementos que contribuíram para o esvaziamento desse caráter [revolucionário] no experimentalismo contemporâneo. (...) Experimentar, nesse âmbito, é a norma e a expectativa e não mais o desvio e o estranhamento. (MENEZES, 1992: 15). Não se desconsiderando a contracultura dos anos sessenta, mas ampliando a abrangência do termo contracultura, recorremos a Teixeira Coelho que afirma que os movimentos contraculturais não são uma exclusividade do século XX. Para exemplificá-lo, o autor remete-se a meados do século XVI e resgata o maneirismo, que se desvencilhara das amarras religiosas, tanto no aspecto da iconografia como da ideografia, e humanizou-se com as noções de ilusão, do maquinismo, do desvio, do insólito e do extravagante. Ao maneirismo, Teixeira Coelho atribui o título de “se não o primeiro, pelo menos o [movimento contracultural] mais incisivo e documentado da história anterior” (TEIXEIRA COELHO, 1997: 99). Ao se vincular o conceito de contracultura a diversas manifestações independentemente da situação temporal e da posição geográfica, atingimos uma superação da idéia de que contracultura refere-se exclusivamente ao movimento que se voltou em direção a experiências comunitárias, drogas psicodélicas, misticismo oriental, psicanálise profunda e teorias sociais anarquistas nos anos 60 e 70. O termo contracultura passa a ser usado para designar “diversos grupos e subculturas que não se integram ou que se opõem ao mainstream social, econômico e cultural” (SHUKER, 1999: 79). Contracultura, então, passa a assumir o papel de dêixis, uma palavra camaleônica, que assume a forma do contexto ao qual se refere. Por sua vez, os itens dêiticos clássicos 46 são os pronomes pessoais (eu, você, nós etc.), que podem remeter a inúmeras possibilidades de indivíduos, dependendo do emissor, do interlocutor e do contexto da mensagem. Da mesma forma acontece com a contracultura, que é dêitica a partir do momento em que seu sentido real não está contido na palavra em si, mas está vinculada à cultura e/ou forma de expressão dominante e à sua respectiva anticultura, ou antilinguagem. E como enquadrar o Jornalismo Gonzo e a Irmandade Raoul Duke dentro deste novo amálgama da contracultura? Embora o Jornalismo Gonzo tenha “nascido” nos Estados Unidos, em 1970, não se pode dizer que essa expressão jornalística faça parte do movimento da contracultura anteriormente descrito por Roszak. Mesmo considerando o uso de drogas como alterador do estado de consciência e a contraposição perante uma prática tecnocrática (o jornalismo dito tradicional), não é correto afirmar que Hunter Thompson e sua forma de fazer jornalismo tenha integrado o bojo do movimento encabeçado pelos beats e hippies, não desprezando, contudo, as possíveis influências, mesmo indiretas, que um movimento daquelas proporções teriam causado no gonzo-jornalismo. No entanto, o Jornalismo Gonzo é contracultura sim, no sentido de que ele “combate” uma força antagônica e subverte valores estabelecidos, enquadrando-se, então, na concepção de Teixeira Coelho. É importante ressaltar que contracultura, neste caso, refere-se ao conceito lato sensu, que abrange as formas de expressão cultural, social, artística e filosófica que se contrapõem aos pressupostos do mainstream, da cultura dominante. Desta forma, a prática de produção textual engendrada pelo site Irmandade Raoul Duke (IRD) também pode ser percebida como uma forma de contracultura, à medida que atua como crítico do jornalismo praticado pela chamada Grande Imprensa, desconstruindo seus artifícios e desvelando suas contradições. Todavia, apenas reforçando nosso caminho inicial, podemos claramente perceber que a forma de contracultura à qual pertence a Irmandade Raoul Duke muito difere daquela dos flower children, vista nos anos 60 e 70, posto que os flower children abominavam a tecnocracia acima de tudo, e a IRD utiliza-se do maior vetor tecnológico de nosso tempo, a Internet. Obviamente, esta divergência fundamental impossibilita-nos de fazer uma ligação direta do Jornalismo Gonzo da IRD com a contracultura praticada nos anos sessenta e setenta. 47 3. - Quem és tu, Gonzo? "Pois decidi que foda-se. Gonzo jornalistas não precisam de fatos noticiáveis: eles são a própria notícia. Eles fazem com que as coisas aconteçam. Eles desceram dos pedestais da objetividade e se lançaram ferozmente às ruas para ver a vida de perto, para experimentar e poder contar o que eles experimentaram. O gonzo jornalista não tem de falar por uma instituição e também por isso não precisa usar centenas de artimanhas para tentar - inutilmente esconder a sua parcialidade." - André "Cardoso" Czarnobai. Pós-modernidade, Cibercultura e Contracultura. Tríade que permitirá a apreensão das particularidades de um objeto que, se não é inovador, é pelo menos novo. E já foi visto que não é possível tentar entender a contemporaneidade tendo como base os velhos paradigmas de apreensão do conhecimento. Não sejamos radicais; jogar toda a sapiência humana na lata do lixo não é o pretendido aqui. O que se espera é poder enxergar os conceitos e práticas humanas de modo a transparecer-lhes a essência e não só a epiderme. O triunvirato exposto no capítulo anterior será o nosso artifício para alcançar a devida compreensão da Irmandade Raoul Duke como prática jornalística, literária e, acima de tudo, social. Encarar nosso objeto como ator da pós-modernidade é trabalhar com uma noção que encara os gêneros (se de fato existem) não como unidades hermeticamente cerradas, mas como líquidos multicoloridos, fluidos, que podem misturar-se uns aos outros e formar novas cores. Além disso, dentro de um ponto de vista que se diz pós-moderno, o processo investigativo perpassa o texto de modo a realçar o seu próprio fazer, questionando sua própria escritura e lugar. Por sua vez, estudar a cibercultura é não ignorar as transformações ocorridas, nos mais diversos âmbitos, com o advento e evolução da Internet como meio de comunicação. Se para McLuhan, o meio é a mensagem23, não podemos deixar de afirmar que o meio é, no mínimo, determinante de algumas das propriedades da referida mensagem, 23 Link para bibliografia: MCLUHAN, Marshall. The Medium is the Message: An Inventory of Effects. Nova Iorque, Bantam Books, 1967. 48 mas principalmente, responsável pela amplitude de sua difusão. E, finalmente, a contracultura, que nos permite analisar os fenômenos sob uma perspectiva dialética, como preconizadores de relações dialógicas, no sentido pleno da palavra, permitindo que se explorem suas contradições e potencialidades. A Irmandade Raoul Duke, como praticante do estilo/prática/gênero denominado Jornalismo Gonzo, estabelece uma relação intrínseca com o dito jornalismo tradicional, já que o gonzo critica sua estrutura e seus mecanismos. Mas o que é exatamente esse jornalismo “tradicional”? Como é sua estrutura e quais são esses tais mecanismos? Só compreendendo a antítese do gonzo-jornalismo é que iremos apreender sua verdadeira identidade, isto é, supondo que exista verdade, e ainda supondo que o gonzo tenha alguma identidade. 3.1 - Anti-jornalismo, que jornalismo? “Vejo com verdadeira compaixão a grande quantidade de pessoas que, ao lerem os jornais, vivem e morrem acreditando haver conhecido algo do que está acontecendo no mundo durante sua vida”. – Thomas Jefferson, 1807. O que é esse jornalismo que o gonzo tanto combate? Qual é a sua natureza? Um sem-número de autores já discutiu o conceito de jornalismo, e tudo o que efetivamente descobriu-se é que não há uma definição universal e abrangente do termo. E a grande dificuldade de sua definição reside no fato de que “o jornalismo não existe como fenómeno abstracto, fora de todo o contexto histórico, que não pode compreender-se fora das suas relações com uma sociedade concreta e da sua estrutura de classe num determinado nível de desenvolvimento” (HUDEC, 1980: 35). O jornalismo, durante o percurso da História, tem sofrido mudanças profundas na sua pragmática, assim como de seu papel ideológico e social. Por isso, tentemos, primeiramente, abordar os atributos essenciais do jornalismo, para depois atermo-nos a suas especificidades no que concerne ao momento atual. José Ortega Costalles é explícito ao dizer que “a missão do repórter é captar a realidade objetiva com a maior amplitude e precisão possíveis, narrá-la com fidelidade, de tal forma que o leitor receba a mais cabal informação sobre o fato” (apud MEDINA, 1988: 49 20). Tal definição, embora simplista diante da diversidade da atividade jornalística como um todo, é condizente com a concepção de jornalismo como anti-gonzo. Em cada palavra dessa definição reside um aspecto importante do fazer jornalístico convencional, como objetividade, captação, realidade, difusão, recepção etc. Cada um a seu modo, esses fatores (que não atuam isoladamente) são o motor da crise pela qual passa o jornalismo contemporâneo. Mas, antes de analisar a crise do jornalismo, temos que defini-lo enquanto objeto de estudo. Michael Kunczik encara o jornalismo, mais do que como uma prática ou discurso, como atividade profissional em si. Para ele, “o jornalismo é considerado a profissão principal ou suplementar das pessoas que reúnem, detectam, avaliam e difundem as notícias” (KUNCZIK, 2001: 16). Dessa definição, contudo, podemos tirar o único fator de convergência entre a maioria dos autores que analisam a questão jornalística: a notícia é a matéria-prima, o produto principal da atividade jornalística. A concepção do jornalismo intrinsecamente atrelado à notícia é tão forte que, para alguns, a própria acepção do termo acaba por reduzir-se ao ponto em que a atividade jornalística passe a ser tomada como o ato de “transformar os acontecimentos - ou, por vezes, simples informações - em notícias, pelo fato de as publicar" (GAILLARD, 1974: 23). Nilson Lage prefere considerar a notícia, no seu sentido mais amplo, e desde o tempo mais antigo, como o modo corrente de transmissão da experiência, isto é, a articulação simbólica que transporta a consciência do fato a quem não o presenciou. Esta definição nos permite desvincular a notícia dos meios de comunicação de massa e trazê-la a uma infinidade de suportes. Baseado nesta concepção, talvez, o escritor Gabriel García Márquez deu a um de seus livros o nome Notícia de um seqüestro. Resultado de intenso trabalho de apuração jornalística, a obra retrata as minúcias de dez seqüestros ocorridos no início da década de 90. No entanto, o início da obra já nos dá pistas para atingirmos nosso principal foco: o relato como construção da realidade. Antes de entrar no automóvel olhou por cima do ombro para ter certeza de que ninguém a espreitava. Eram sete e cinco da noite em Bogotá. Havia escurecido uma hora antes, o Parque Nacional estava mal iluminado e as árvores sem folhas tinham um perfil fantasmagórico contra o céu turvo e triste, mas não havia à vista nada a temer (GARCÍA MÁRQUEZ, 1996: 7) 50 No próprio prefácio do livro, o autor colombiano revela sua incapacidade de traduzir toda a amplitude do mundo real, ao dizer que sua única frustração é saber que nenhum dos protagonistas do livro “encontrará no papel nada além de um pálido reflexo do horror que padeceram na vida real” (idem: 6). E, neste mesmo prefácio, ele acaba por revelar o nome das duas reféns mortas, Marina Montoya e Diana Turbay, fazendo as vezes de uma espécie de lead. Por outro lado, ao restringir o conceito de notícia, Lage define-a como “o relato de uma série de fatos a partir do fato mais importante, e este, de seu aspecto mais importante” (LAGE, 1982: 36), definição esta que deixa clara a hierarquização como recurso da produção noticiosa. Já para Alsina, “notícia é uma representação social da realidade cotidiana, produzida institucionalmente e que se manifesta na construção de um mundo possível” (apud HENN, 1996: 34). As concepções de notícia acima, por si sós, dão abertura para críticas acerca da atividade jornalística, em aspectos como: construção da realidade, seleção, representação e mediação. Por outro lado, quando o relato jornalístico é posto dentro do contexto da Irmandade Raoul Duke, tais aspectos ficam ainda mais evidentes. O ambiente no qual o repórter redige a matéria, seu estado mental e as edições feitas no texto são, então, trazidos à tona, como em Inferno Sangrento em São Leopoldo...24 [ver anexo 2]: Coloquei pra tocar um pouco de jazz e tentei me concentrar um pouco mais. As freqüências do baixo de Charles Mingus foderam com a minha percepção por completo. Começou a se tornar virtualmente impossível digitar uma palavra que não contivesse ao menos dois erros estruturais graves. Minha cabeça oscilava sobre o teclado como se eu estivesse tentando marcar o ritmo sincopado da música. O resultado foi um bloco de texto ininteligível que parecia ter sido escrito por um débil mental chapado de benzina e que removi desta matéria em consideração às pessoas de compleição frágil que possam vir a lê-la. Em algum ponto, me deitei no sofá e fiquei olhando para o teto e decidi que, embora nunca fosse revelar isso em público (ops), iria votar naquele cara que não tem todos os dedos. Antes de escrutinar os detalhes do jornalismo tradicional, tratemos de “ouvir os dois lados” e conhecer o ponto de vista daqueles que fazem o jornalismo. Para tal, 24 O título completo é Inferno Sangrento em São Leopoldo / Quanto Vale um Attorney / Kill All Hippies / Via Expressa até o teu Crânio. 51 escolhemos o veículo Folha de S. Paulo, que, ao longo dos anos, tem tentado deixar clara a sua “opinião” sobre a atividade jornalística ideal, mesmo que essa opinião mude. Nos anos 80, uma famosa peça publicitária da Folha ganhou prêmio internacional ao enfatizar a importância da correta interpretação dos fatos: Locutor (com uma voz grave em off, sobre a imagem de retículas ampliadas das quais não se distingue nada além de círculos pretos sobre fundo branco): Este homem pegou uma nação destruída. Recuperou sua economia e devolveu o orgulho ao seu povo. Em seus quatro primeiros anos de governo, o número de desempregados caiu de 6 milhões para 900 mil pessoas. Este homem fez o Produto Interno Bruto crescer 102% e a renda per capita dobrar. Aumentou os lucros das empresas de 175 milhões para 5 bilhões de marcos e reduziu a hiperinflação a no máximo 25% ao ano. Este homem adorava música e pintura e quando jovem imaginava seguir a carreira artística. Zoom fechando close na imagem composta, relevando o rosto de Hitler. Locutor (em off): É possível contar um monte de mentiras dizendo só a verdade. Por isso, é preciso tomar muito cuidado com a informação e o jornal que você recebe. Folha de São Paulo. O jornal que mais se compra. E que nunca se vende. O anúncio deixa transparecer a preocupação no tratamento da notícia, a possibilidade de veicular uma informação tendenciosa utilizando um texto aparentemente objetivo, além de ressaltar a independência da instituição jornalística Folha de S. Paulo, o jornal que “nunca se vende”. No entanto, basta avançar um pouco mais de um decênio e chegar ao Projeto Editorial 97, publicado em duas páginas no caderno principal de 17 de agosto de 1997, no qual a Folha diz-se uma empresa praticante de um jornalismo “independente, submetido apenas às forças de mercado” (apud MORETZSOHN, 2002: 112-113 – grifo meu). Pôde-se notar uma considerável mudança de postura, a qual não iremos julgar, mas sim tentar entender. O que mudou? A notícia, como principal produto jornalístico, modificou seu caráter de relato simplesmente e transformou-se em mercadoria, assim como atesta Jürgen Habermas, no artigo Do jornalismo literário aos meios de comunicação de massa, “a circulação de notícias desenvolve-se não somente em conexão com as necessidades da circulação de mercadorias, as próprias notícias tornam-se mercadorias” (apud idem: 41). Já no título do livro de Cremilda Medina, Notícia, um 52 produto à venda, é notável a identificação da mensagem jornalística com atividades urbanas e industriais, plasmada no universo da comunicação de massa. O jornalismo como elemento mercadológico é um dos principais alvos de críticas advindas da Irmandade Raoul Duke. No editorial da terceira edição, André Czarnobai discute a questão de modo ácido e ressalta para o fato de que, já que a notícia virou mercadoria, está sujeita a manipulações de ordem apelativa, protagonizadas não por uma equipe editorial, mas por homens de marketing. O jornalismo transformou-se em grande parte em uma prostituta barata, que vende almas em troca do salário - risível - de frustrados jornalistas obrigados a cobrir pautas absurdas única e exclusivamente porque o jornalismo não mais é um serviço de utilidade pública. Agora é um negócio. Um filão do mercado. Mais um instrumento nas mãos dos brilhantes gerentes de marketing que, pelo menos, andam tomando bonitaço nos seus ricos rabinhos. Definir a notícia como mercadoria, por outro lado, permitiu a Sylvia Moretzsohn a aplicação do conceito marxista de fetiche25 em dois sentidos. O primeiro é o aspecto mais visível, que se relaciona à idéia de que “os fatos falam por si”, tais como aparecem no jornal, ocultando o processo de produção do sentido. Depois, o fetiche ocorre na relação que a imprensa estabelece com o público, “conferindo à notícia aparência de valor de uso, construída pelo impacto e pelo caráter explosivo associado ao fato” (idem: 120). A compreensão da idéia de fetiche como a ocultação dos procedimentos que antecedem à difusão de uma notícia será valiosa ao se discutir o conceito de objetividade. 25 Fetichismo da mercadoria, conceito formulado por Karl Marx, é o processo através do qual os bens produzidos pelo homem, uma vez postos no mercado, parecem existir por si, como se ganhassem vida própria, escondendo a relação social que lhes deu origem. 53 3.1.1 – A notícia como construção de pseudo-realidades “Devemos começar descartando todos os fatos...” – Rousseau A notícia, quando "vira" mercadoria, fica passível de ser moldada segundo padrões mercadológicos, ou seja, será confeccionada de modo atrair a atenção do leitor/consumidor, com todos os seus apelos estéticos, emocionais e sensacionais. Nesse mundo-cão, vem novamente à tona o velho ditado jornalístico “Se um cachorro morde um homem, não há notícia. Se o homem morde o cachorro, isso é notícia”. Para Leão Serva, a práxis jornalística que é justificada e resumida através desse ditado é o de “destacar e noticiar o raro, o paradoxo, o imprevisto – o caos, aparente ou verdadeiro. É isso que caracteriza a notícia, sua matéria-prima” (SERVA, 2001: 50). Esta noção de sensacionalismo é levada ao extremo na piada que circulou em um dos encontros da Organization of News Ombudsmen, relatada pela então ombudsman da Folha de S.Paulo, Júnia Nogueira de Sá, sobre a clássica definição do homem mordendo o cachorro: Se um cachorro morde um homem, isso não é notícia. Se o homem morde o cachorro, também não é notícia. Se o homem estivesse pagando ao cachorro por seus favores sexuais, aí sim seria notícia. Mas não seria uma notícia de primeira página. Para ser manchete, o cachorro tinha de ser menor de idade e o homem deveria ter um cargo importante no governo. Ou o cachorro e o homem deveriam ter, ambos, o mesmo sexo – a menos que trabalhassem no cinema, o que transformaria a manchete numa notinha da coluna de fofocas. Se o cachorro tivesse falsificado o nome de alguém bastante conhecido num cheque, aí seria notícia de novo. Agora, se o cachorro fosse um grande anunciante, o caso teria muito menos interesse do que poderia parecer a princípio. O recurso ao sensacionalismo torna-se, então, uma das formas de esfacelamento da realidade pelos meios de comunicação. Aquele, que diz fazer o “puro registro dos fatos”, passa a assumir o papel de ficcionista, tendo em vista que os princípios clássicos do jornalismo teoricamente baseiam-se na idéia de “esclarecer os cidadãos”, relacionada a critérios de objetividade que dizem respeito ao suposto poder de “verdade” contido nos próprios fatos. “Em todo tipo de comunicação há a necessidade de atrair o receptor [...] através do uso da sensação, da emoção e do sentimento, como armadilhas para prender o 54 leitor. A prisão emocional afasta o leitor da razão e da própria realidade a qual o jornalismo diz ser referencial” (SILVA, 1997: 122). Sob este aspecto, o jornalismo passa a ser um “produtor de mundos” ao ampliar micro-realidades, a despeito da esfera macro-social: O mundo fictício criado pelos media coloca novos personagens em conflito, personagens esses que não têm enraizada no social nenhuma relevância, cujos conflitos são apenas discrepâncias forjadas. Diante da diluição, do enfraquecimento dos conteúdos no plano macro-social, o jornalismo para sobreviver apela para a indústria imaginária de notícias. Criam-se fatos, forjam-se notícias, estimulam-se polêmicas fictícias, constrói-se o conflito “em laboratório”. O estúdio de TV, a redação de jornal, deixam de ser meios de transmissão de fatos e tornam-se eles mesmos os produtores de mundos (MARCONDES FILHO, 1993: 63). Mas a questão é mais complexa do que parece. Visto dessa forma, o jornalismo apenas não cumpriria sua função-mor de captar a “realidade tal como ela é” devido a um mau uso de suas potencialidades. Porém, a partir do momento em que a realidade é mediada pelo universo da linguagem, não se pode atingi-la diretamente. “A essência do mundo não pode ser expressa pela linguagem” (SILVA, 1997: 130). Toda notícia, o acontecer jornalístico, é uma proposição gramatical. A proposição jornalística não tem mais uma relação alguma com os acontecimentos que diz se referir. A proposição jornalística trabalha com símbolos (signos) e a compreensão (usos) que o público faz deles. Só que os significados (usos) das palavras, conceitos, imagens, modelos, paradigmas são padronizados, unificados, dentro de uma uniformidade que nada mais diz ou mostra. Restam as sensações e com elas o enfeitiçamento da realidade (idem: 122). “Como a linguagem é o próprio ar que respiro, jamais poderei ter uma significação ou experiência pura e sem deformações” (EAGLETON, 1997: 179). Barthes corrobora com a concepção de que a fala, o verbo, é incapaz de conter a imensa significância do “mundo real”. Para ele, “a linguagem nunca pode dizer o mundo, pois ao dizê-lo está criando um outro mundo, um mundo em segundo grau regido por leis próprias que são as da própria linguagem” (BARTHES, 1982: 9). Desse modo, o próprio ato de expressar-se por meio da linguagem já pressupõe a criação de um mundo “paralelo”, cujo maior atributo é não ser idêntico ao mundo do qual ele deveria ser o espelho. “O relato 55 jornalístico procura imitar a realidade e assim confundir o real com a simulação e o simulacro” (SILVA, 1997: 151). No caso do jornalismo, esse testemunho do testemunho, assim como em todo discurso realista, recorre àquilo que mais promove o efeito de realidade: a estratégia da referencialidade. Para Ciro Marcondes Filho, a práxis jornalística é efetuada de modo a perseguir esse ideal de retratar a realidade de maneira fidedigna. Alimentava-se uma ficção de que a imprensa seria o retrato condensado do mundo em páginas de jornal e que se realizava uma certa produção reflexiva, no sentido de o jornal espelhar de forma miniaturizada as coisas que se passavam na sociedade. [...] Jornalismo é, ao contrário, essencialmente seleção, ordenação, atribuição ou negação de importância de acontecimentos dos mais diversos, que passam a funcionar como se fossem um espelho do mundo (MARCONDES FILHO, 1993: 126-127). Para ocultar esse “testemunho do testemunho”, uma das estratégias recorrentes no jornalismo, assim como em todo discurso realista, é o uso da referencialidade como instrumento de retórica implícita, o que termina por promover o “efeito de real”, termo empregado por Barthes para designar o resultado das estratégias dos discursos realistas, aqueles que, na busca de testemunho para o seu testemunho, recorrem a uma realidade em cuja construção colaboram. É por esse motivo “que todas as matérias jornalísticas estarão sempre calcadas ora em citações, ora em entrevistas; sempre salpicadas ora pela fotografia, ora pelas tabelas de porcentagem. Trata-se do recurso aos sinais de marcação da remetência ao real” (GOMES, 2000: 24). Há uma “generalizada conspiração”: o aperfeiçoamento e elaboração de técnicas, obras e instituições com o intuito de satisfazer a eterna necessidade jornalística de autenticar o real. Tudo contribuindo para o exercício da referencialidade, remetência a uma realidade de suposta plenitude. Por outro lado, sabe-se que tanto a fotografia quanto a entrevista, a citação, os gráficos, as tabelas, as dramatizações e reconstituições, são recortes, submetidos a escolhas. A principal contradição do uso desses artifícios é a pretensa metonímia empreendida pelo jornalismo: No fundamento do recorte há uma estrutura lacunar: algo está de fora, algo foi excluído, pois trata-se de um viés e sempre de uma descontextualização”. Trata-se aqui do fragmento valendo por, sempre outra coisa que o referenciado. Impossível sustentar a tese de apresentação de um real tal qual nessas condições (idem: 30). 56 Se o simples fato de utilizar a linguagem como mediadora já incapacita um relato de apreender a realidade em plenitude, todos os escritos estão fadados, portanto, a residir na esfera do não-real. A questão é que no jornalismo dito tradicional essa incapacidade é ocultada, enquanto que no gonzo-jornalismo ela é desvelada. Apesar de, no artigo Close Up Planet: Inferno total drugs kickin´in, Magistrados e outras cacetadas, André “Cardoso” utilizar-se da referencialidade para descrever o ambiente onde a cena de sua matéria desenrola-se, ele faz uso dos adjetivos, advérbios e substantivos adjetivados para explicitar o fato de que a descrição do cenário está sendo feita não “tal como ele é”, mas como um universo mediado, que passa por idiossincrasias, edições mentais e textuais, e uma análise baseada nos sentidos: Em algumas horas estaremos em Registro para almoçar num mega-mini-mall-aberração no meio do nada, onde simplesmente TODAS as excursões de clubbers do sul do país parariam ao mesmo tempo. Era mesmo uma visão muito impressionante naquela manhã de sábado: bichonas esquálidas e suas cigarretes de brim com a barra dobrada pra fora, correntes, coturnos e union jacks rasgadas no peito, biscas multi-coloridas decoradas de vinil, colares, pulseiras e prendedores de cabelo infantis. Muitos entravam nos banheiros em seus trajes civis e saíam montados de parafernálias mil. Piercings em lugares estranhíssimos, aplicações pouco ortodoxas da pelúcia, perfumes de bebê, pirulitos e outros bichos. [...] Para os habitantes de Registro, era como se o circo tivesse chegado. Agricultores de boné e mulheres em vestidos-cortina com temas florais nos olhavam com medo e curiosidade. Nota-se também que a composição do texto e a mistura de tempos verbais dão a idéia de que ele vai sendo escrito à medida que os fatos vão ocorrendo. Mesclando futuro e passado – “em algumas horas estaremos” e “era mesmo uma visão” – o texto caminha pela sua linha do tempo, tirando a importância da veracidade dos fatos e transferindo-a para o fluxo dos acontecimentos. No entanto, tal recurso consiste apenas em uma estratégia narrativa pois, já no primeiro parágrafo da matéria, o autor revela que o fato havia ocorrido alguns anos antes da referida redação. Fator este que desvela que o quesito atualidade, um dos fundamentos do jornalismo tradicional, perde importância no gonzo-jornalismo: 57 Nem me lembro direito como tudo aconteceu. Lembro, sim, da tarde em que eu decidi que ia pro Close Up Planet, em São Paulo, naquele ano. Ano esse que pode ser 98 mas também pode ser 99 - não lembro, todo mundo que foi comigo também já esqueceu e a camiseta da excursão já desbotou totalmente há mais de muitas lavagens. Apesar da ressalva temporal, o autor continua a explorar a intercalação de passado e futuro na enunciação. Baseado nessa estratégia, chega a realizar um intrigante paradoxo e efetua a “previsão” daquilo que já aconteceu: “Mistura EXPROSIVA em sampa: hip hop & eletronica. Manos & clubbers. Isso vai dar merda”. Alguns parágrafos à frente, a “merda” realmente acontece, e o vaticínio do narrador é concretizado: Manos & clubbers em Sampa. Barril de pólvora. Mesmo assim, prontamente escorraçamos os locais que tentaram nos alertar. Na confusão alguém disse que eles queriam nos aplicar um golpe e naquele momento tudo pareceu fazer muito sentido. Contudo, a chegada de helicópteros negros e viaturas da ROTA em grande quantidade (acompanhados de gritos provenientes de um evidente TUMULTO na fila) nos fizeram crer na sinceridade paulistana. Corremos para um Quartel do Exército próximo enquanto víamos uma monstruosa avenida da não menos monstruosa São Paulo se transformar em um verdadeiro campo de batalha. Correria, cassetada, cachorro, capuz. Pânico e incerteza. No Quartel, os soldados riam, brandindo seus fuzis. "Eles que tentem entrar aqui". Outro artifício largamente utilizado na Irmandade Raoul Duke é o de revelar a incerteza do narrador acerca de detalhes do fato relatado. Em vez de colocar o relato como substância estanque, arte-final, trabalho concluído e destinado inerte à posteridade, o gonzo-jornalismo prefere situar-se como fluido, rascunho, com ênfase no caminho e não no fim. Na matéria Gramado 100% Free26 [ver anexo 3], Giuseppe Zani perfaz em palavras os tortuosos caminhos de sua memória. Recorre a lembranças táteis, olfativas, auditivas e visuais para reconstruir o fato e, no entanto, é traído pelos sentidos, tendo que efetuar inúmeras voltas narrativas: Já faz três anos desde então e, mesmo assim, tenho a sensação de estar recordando acontecimentos de uma noite de excessos. Uma noite que se repete e que demora ainda a 26 O título completo é Gramado 100% Free ou Tirando Proveito de um Assédio Homossexual. 58 acabar. Primeiro vêm os vultos, como um hálito fresco a arder por dentro do nariz, um aroma que se insinua e logo escapa. Parecem destinados ao esquecimento, até que irrompem novamente num turbilhão de imagens. Tenho que anotá-los, papel papel papel... É preciso precaver-se contra novo esquecimento. [...] Ele me pediu o cartão de novo e anotou o número e o quarto do hotel em que ele estava hospedado e se despediu. Eu não consigo lembrar a cara que ele fez, mesmo por que eu não recordo um traço sequer de seu rosto. Eu ainda lembro do cartão, do carpaccio que ele pagou, da credencial verde, mas essas coisas todas surgem como adereços de uma sombra e eu não entendo como isso pôde se manter na minha cabeça senão pelas conseqüências que desencadeou. Ok, mas penso que me precipitei, e acabei num caminho sem saída. O jeito é voltar no labirinto dos acontecimentos e tomar outra direção. Como que insatisfeito pelo teor de seu próprio relato, o repórter recorre à coautoria para desfazer os nós que o impedem de reproduzir o fato que ocorrera consigo. E, para isso, faz uso de uma transcrição na íntegra de uma mensagem eletrônica “encomendada” a um amigo-testemunha que tem a função de preencher as lacunas deixadas pelo repórter. No entanto, o que ocorre é uma matéria gonzo dentro da outra, já que, no fim das contas, o co-autor perde-se em suas divagações e acaba por relatar sua própria experiência: From: "Emiliano Urbim" ([email protected]) To: "Zani" ([email protected]) Sent: Friday, April 19, 2002 10:29 PM Subject: texto Tentei, mas não achei na minha agenda de 1999 - sou desses que carrega consigo uma agenda de 1999 - a data exata do Festival de Cinema de Gramado daquele ano. Podia procurar na Internet, claro, mas aí ia perder a graça. Vou chutar tudo aconteceu numa quarta-feira. Tudo desde que eu encontrei até desencontrar Giuseppe Zani. [...] Num desses passeios contra-produtivos e pró-vadiagem eu te encontrei. Aqui eu não sei se me refiro diretamente a ti, Giuseppe, ou se faço média com os outros leitores e escrevo: "encontrei o Giuseppe". Isso seria ferir meus princípios estéticos, minha integridade artística, me vender para o sistema. Encontrei o Giuseppe. [...] O drama do Giuseppe: tinha uma guria com quem ele tinha uma história, na real muito mais que uma história, ele era apaixonado por ela, apaixonado o suficiente para ir a Gramado sem bagagem sem dinheiro sem hospedagem e com muito frio, só para vê-la. Fim do drama do Giuseppe. [...] Aí apareceu sei lá de onde a 59 apresentadora de um programa juvenil da repetidora da maior rede nacional e uma guria muito querida por quem eu me apaixonei na hora. Na hora, na horita, na horaça, no horêra. [...] Bebedeira, gritaria, cheiração, putedo e fuzarca, agnóstica e nababesca fuzarca. Larguei o Giuseppe de mão e fui investir no amor da minha vida. Não sei nem se dei tchau pra ele, só fui saber o que aconteceu com o cara depois. Emiliano Urbim Foi visto que o jornalismo vive numa indelével contradição: é alicerçado nas fluidas bases da linguagem e finge, por meio da própria linguagem, superar suas limitações. O que aconteceria, no entanto, se o já confuso processo jornalístico fosse acelerado de modo exponencial? Que conseqüências isso traria para o fazer jornalístico e, principalmente, para o resultado desse trabalho, a notícia? 3.1.2 – Jornalismo em alta rotação "Vivemos num tempo maluco em que a informação é tão rápida que exige explicação instantânea e tão superficial que qualquer explicação serve" – Luiz Fernando Veríssimo David Harvey ressalta que é da própria dinâmica do capitalismo, como sistema, a tendência à fragmentação e à efemeridade. E o jornalismo? Este que está assumidamente inserido na dinâmica do efêmero, como seus processos e sua estrutura são alterados pela aceleração do mundo capitalista? O capitalismo está para o jornalismo assim como o acelerador de partículas está para a física quântica, mas no caso do jornalismo, as partículas são as notícias. Para Sylvia Moretzsohn, que alcunha o momento atual do jornalismo como a “era do tempo real”, as inúmeras contradições do jornalismo tendem a se agravar com o célere movimento. No entanto, para que o ciclo apuração/ordenação/difusão/recepção mantenha-se intacto apesar do inimigo Tempo, o jornalismo busca “resolver” suas contradições pela eliminação de um dos termos (por sinal, o mais delicado e complicador) do problema: a necessidade de veicular informações corretas e contextualizadas, pois, “qualquer explicação serve” para sustentar a notícia transmitida instantaneamente. Para 60 Paul Virilio, na era do ciberespaço, “a informação só tem valor pela rapidez de sua difusão, ou melhor, a velocidade é a própria informação!” (apud MORETZSOHN, 2002: 125). Jürgen Wilke, que analisou a evolução histórica dos jornais com o auxílio da análise de conteúdo, fala em mudança na consciência temporal: A história demonstra uma crescente sincronização entre a realidade editorial e a realidade do acontecimento, o que resulta numa “atualização” da consciência temporal e, juntamente com uma periodicidade cada vez mais intensa e com uma crescente acumulação, na “agitação” ou não “fragmentação temporal” que se observam com freqüência nos dias de hoje (apud KUNCZIK, 2001: 220). Em sua pesquisa, Wilke constatou que “antes, os leitores do jornal se informavam menos, mas por outro lado se informavam de maneira mais contínua sobre cada evento. Depois, passou-se a informar mais, mas em geral a informação tornou-se menos contínua” (idem: 222). Esse aspecto de notícia como apenas fragmento, e não um entremear histórico, advém do desprezo da idéia de que “os fatos, embora separados no tempo cronológico, fazem parte de uma única cadeia, uma única ocorrência histórica da qual cada ‘notícia’ é apenas uma manifestação, como um fotograma de um filme de longa metragem” (SERVA, 2001: 44). Em suma, para Leão Serva, a natureza acelerada do jornalismo gerou a consumação de um fato: “as notícias não deixam ver a história” (idem: 47). Receptor de mensagens aleatórias, o indivíduo percebe o mundo e a História como um espetáculo entrópico, fragmentário, sem totalidade e irracional, enquanto à sua volta a realidade se dissolve numa colagem de signos e simulacros cujos referentes são remotos ou se perderam. Nesse cosmos tendente ao caos, sem princípio unificador seja ele cristão ou newtoniano, o sujeito é quando muito um átomo estatístico surfando nas ondas do provável e do incongruente (Jair Ferreira dos Santos in OLIVEIRA, 1995: 60). Desvincular os acontecimentos jornalísticos de uma perspectiva histórica, tratando a notícia como um ser pleno e o fato como uma circunstância atomizada, acaba por distorcer a percepção do receptor. Assim, ao “apresentar retratos dos fatos de forma isolada e descontextualizada, os meios informativos simultaneamente negam ao seu consumidor uma apreensão mais completa da notícia e produzem uma percepção alterada dos 61 acontecimentos ao longo do tempo” (SERVA, 2001: 126). Para continuar com essa lógica de produção desenfreada de notícias, os meios acabam por “fazer o tempo andar mesmo que ele se recuse” (idem: 129), o que gera fatos sem “gravidez”, sem história, sem memória. O alemão Michael Kunczik propõe uma “abolição” da escravidão à atualidade, o que possibilitaria um jornalismo mais responsável e independente: Seria muito mais útil para a realização da autonomia profissional reduzir a importância da atualidade no trabalho jornalístico. Caso se considerem valiosas somente as notícias de atualidade, as notícias cuidadosas, complexas e bem-investigadas continuariam sendo a exceção. A escravidão à atualidade prejudica todas as outras normas jornalísticas, como a investigação cuidadosa, e aumenta a probabilidade da crítica leiga. A obsessão pela atualidade faz também com que os jornalistas sejam manipuláveis por meio de pseudoeventos, forjados com o propósito único de atrair a cobertura dos meios de comunicação (KUNCZIK, 2001: 52). Ignácio Ramonet, por sua vez, escavou a etimologia da palavra jornalista que, nesses termos, significa “analista de um dia”. O que ocorre é que a transmissão instantânea da informação e o volume diluviano de notícias encurtaram a periodicidade de “análise” do jornalista, que passa a ser analista não mais de um dia, mas de um instante. Para ele, o jornalista deveria chamar-se um “instantaneísta” ou um “imediatista”. Todavia, essa análise do instante configura-se como uma tarefa impossível, pois: Com o momento imediato do evento, nenhuma distância – precisamente aquela distância indispensável à análise – é possível. Por ora, o jornalista tem afinal cada vez mais a tendência de tornar-se um simples vínculo. Ele é o fio que permite conectar o evento com sua difusão (RAMONET, 1999:74). O fato é que também a Irmandade Raoul Duke está passível de ser acometida por todos os falibilismos do jornalismo tradicional. Portanto, o jornalismo gonzo não escapa às pressões do tempo, apesar do fato de que este fator incide na IRD de modo mais oblíquo, já que a periodicidade média de atualização do site é superior a um mês. Na reportagem Inferno Sangrento em São Leopoldo, o repórter identificado apenas como Colaborador 001 revela: “O Cardoso tinha me dito ‘fecho até dia 26/04 a próxima edição’. O prazo me 62 acuava feito um maníaco de pau duro num beco, e minha verba de trabalho estava reduzida a 0r$ e 25centavos [sic]”. Tais condições de “trabalho” acabam por desencadear problemas como a impossibilidade de se estabelecer uma pauta adequada ou o atestado de que a pauta escolhida não havia rendido o resultado esperado: Constatei na manhã seguinte que nada do que havia ocorrido lá se assemelhava, ainda que vagamente, a uma pauta gonzostyle (ou seja, nada que explodisse na sua cara, causasse fagulhas, fosse considerado contravenção, ou mesmo te obrigasse a bater em retirada sem pagar a conta). [...] Ninguém vomitou sangue no palco. Ninguém deu um soco na lata homofóbica do segurança. Ninguém fumou um baseado e acidentalmente pôs fogo no bar, iniciando um tumulto que só encontraria paralelo com a invasão de Roma pelos bárbaros iniciando a Baixa Idade Média. No excerto acima, é latente a tentativa de se deixar clara a concepção do repórter acerca do que seria uma pauta gonzo. No entanto, André Czarnobai, no já citado editorial da terceira edição da IRD, afirma que “gonzo é um termo bastante flexível e pode ser associado a uma grande variedade de manifestações: tudo que estiver totalmente fora dos padrões, for estranhamente chocante ou evidentemente bizarro é gonzo”. Essa indeterminação a respeito do conceito de gonzo-jornalismo permite à IRD abrigar uma diversidade de textos que divergem enormemente entre si, tanto no que tange às pautas, ao teor do “fato” jornalístico, quanto no que concerne à forma, ao tratamento dado à notícia. Isto pode ser percebido na matéria FGTS: As Letras do Demônio27 [ver anexo 4], de Paula Pó, que relata o processo de tentativa de resgate do benefício do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço através de uma fabulação na qual a Caixa Econômica Federal é tida como um templo satânico que exige que o suplicante passe por sacrifícios e ritos de passagem antes de “vender sua alma” em troca de “consumo, sucesso e poder”. Eu achava que já sabia tudo sobre ocultismo até conhecer as assustadoras letras: FGTS. São quatro inocentes sinais gráficos que ganham um poder demoníaco quando juntos, comparável ao 666. [...] Só que enquanto o tal número da besta atrai as elites, eruditos, diretores de cinema e metaleiros, o FGTS manipula uma massa desdentada, quasímoda, sedenta por alguns centavos a mais nas suas contas bancárias. [...] Nossa peregrinação 27 O título completo é FGTS: As Letras do Demônio ou Burocracia e Ocultismo de Pobre. 63 começou às 10h00. Consegui andar cerca de 3 metros até as 14h00. Depois é que as coisas ficaram lentas. Só entrei no templo às 17h40: quase 4 horas para andar um metro. [...] Muitas pessoas não suportaram jejuar por todo esse tempo e desistiram. Outras tentaram encurtar o caminho. Mas, como disse Jesus, a porta é estreita. E tem detector de metais. [...] No portal de entrada do templo, tive de me desapegar de todos os bens materiais: celular, óculos, chaves, moedas etc. Por mais que fizesse, não era aceito: sempre tinha que voltar e humildemente me submeter ao julgamento dos funcionários de batinas. [...] O mestre pegou minha carteira de identidade. Súbito, suas veias saltaram e sua voz ficou gutural: "não pode dar entrada no FGTS com este RG". [...] Meus documentos foram rejeitados, minha iniciação fora recusada. O tratamento metaforizado de um fato “real” remete-nos à máxima enunciada por Paulo Leminski: “Fatos não se explicam com fatos, fatos se explicam com fábulas28”. 3.1.3 - Objetividade, uma reflexão subjetiva Juiz: “Nome. Profissão”. Homem: “Philip Duncan. Cientista”. Juiz: “Que razões alega para ser contra a construção da bomba de hidrogênio?” Homem: “O respeito ao gênero humano”. Juiz: “Seja mais objetivo”. Trecho da peça A saída? Onde fica a saída?, de Antônio Carlos Fontoura, Armando Costa e Ferreira Gullar. A partir deste momento, eu, Francisco Wesdley da Silva Vasconcelos, engendrarei uma breve análise a respeito do conceito de objetividade aplicado ao jornalismo. Mas, para isso, tiro a máscara que usei até então... A discussão de conceitos e idéias feita aqui (e isso vale para todo o resto deste trabalho) foi baseada na bibliografia devidamente citada e, acima de tudo, em minhas idiossincrasias e pré-concepções de análise. Muitas vezes, descartei citações pertinentes, mas que por acaso não convergiam para a linha metodológica adotada. Ou, em outras vezes, adotei determinado autor, mas, logo em seguida, refutei seus 28 Link para a bibliografia: LEMINSKI, Paulo. Metamorfose – uma viagem pelo imaginário grego. São Paulo, Iluminuras, 1994. 64 argumentos com um conceito antitético, mesmo sabendo que, se tivesse escolhido a ordem inversa, o resultado teria sido diferente. E mais, quando coloco meu pensamento por meio de citações de teóricos reconhecidos, apenas busco reforçar meu ponto de vista acerca do tema e fazê-lo predominar sobre os demais... Tal como o exemplo anedótico dado por Neil Postman de dois padres que desejam saber se podem fumar e rezar ao mesmo tempo. Ambos redigem uma pergunta ao Papa, mas de uma forma diferente. Por isso obtiveram respostas contraditórias para a mesma dúvida. Um dos padres perguntou: “É permitido fumar enquanto rezo?”, ao que o Papa respondeu: “Não, enquanto se ora deve estar-se completamente concentrado na oração”. O outro padre então perguntou: “É permitido rezar enquanto fumo?”, e resposta do Papa não foi outra senão: “Claro que sim, pois todos os momentos são apropriados para rezar”. (TEÓFILO, 1998 – adaptação minha). A idéia deste desmascaramento é efetuar uma discussão que coloque em xeque o mito que envolve a produção textual acadêmica e, sobretudo, jornalística. O conceito de objetividade, tido ainda como recurso de ordem nessas duas esferas, precisa, antes de qualquer coisa, ser revisto. No que concerne à atividade jornalística, a opção pela objetividade como estratégia de retórica é ainda mais grave, pois afeta a concepção de mundo dos receptores dessa mensagem, que, na maioria das vezes, ignoram o contexto no qual tal conteúdo foi concebido. Em suma, o conceito de objetividade está ligado à suposta relação existente entre as declarações jornalísticas e a realidade. Em teoria, a objetividade tende a mensurar o grau de identidade entre o fato e a sua descrição mediante a informação. Para efetuar a primeira crítica de minha reflexão subjetiva acerca da objetividade, recorramos ao conceito clássico de notícia que remete ao modelo de perguntas formulado há vinte séculos por Quintiliano: quis, quid, ubi, quibus auxilius, cur, quo-modo, quando? Uma adaptação dessa lista (ou interrogatório) derivou no chamado lead jornalístico: “quem, o quê, onde, quando, como, porquê?”. Para Gaillard, uma notícia é uma resposta a estas seis perguntas. Não há duvida de que a resposta às referidas perguntas ajudaria a transmitir um fato a um interlocutor. A dúvida reside na seguinte questão: de que modo pode-se atribuir a um homem o dom divino de responder a estas perguntas de modo exato e fidedigno, se ele é apenas um mediador (não-onisciente) entre o fato e o receptor? Sem falar no fato de que 65 duas dessas perguntas – “como” e “porquê” – dão imensa margem à “contaminação” pela subjetividade do jornalista, pois comportam em si dúvidas que não podem ser esclarecidas de modo estritamente objetivo. Assim, a objetividade configura não um método de busca à verdade, mas uma dissimulação do fato de que é impossível alcançar a verdade propriamente dita. Para Rogério Koff: A “objetividade” jornalística é um mecanismo ideológico proposto pelos meios de comunicação de massa, que pretendem mascarar a evidência de que a suposta verdade dos fatos é uma construção social. Desta forma, os meios de comunicação de massa não reproduzem a verdade objetiva ou pura sobre os fatos, mas versões intermediadas pela construção imaginária dos sujeitos envolvidos no processo comunicativo (apud MORETZSOHN, 2002: 80). A inserção da objetividade como atributo essencial do jornalismo ocorreu com o surgimento do “jornalismo de precisão”, proposto por P. Meyer, o qual determina que, ao investigarem os temas de atualidade, “os jornalistas devem usar os métodos científicos de pesquisa social para poder prestar declarações comprovadas sobre os temas sociais, ou seja, para poder relatá-los objetivamente” (KUNCZIK, 2001: 103). No entanto, sempre que se fala em objetividade, tem-se em mente apenas o texto, ignorando-se “não apenas o processo de seleção das informações ali contidas mas o fato de que um jornal é um conjunto de elementos verbais e não-verbais que interagem na produção de sentido” (MORETZSOHN, 2002: 80). O jornalista é considerado um agente neutralmente distanciado para poder transmitir a informação com objetividade e ética profissional. E, para efetuar essa transmissão nesses termos, ele utiliza-se de alguns artifícios. O principal deles é a estratégia da referencialidade, por meio do qual o jogo de eu (jornalista) a tu (receptor) é eliminado “em prol de um efeito de real impoluto” (GOMES, 2000: 66). No jornalismo, os fatos são contados por meio do verbo na terceira pessoa. “Tudo se passa como se não houvesse nenhuma colocação de valores ou hierarquização” (idem: ibid). Na Irmandade Raoul Duke, por outro lado, a referencialidade é colocada de lado e o pronome eu é figura recorrente para desmascarar o processo de produção do relato, o que pode ser percebido na matéria Eu só queria falar com a Malu: 66 O filme "Bellini e a Esfinge" é pior do que o livro. Eu não li o livro, mas é difícil imaginar uma história mais mal-contada do que nesta adaptação. [...} Eu fiquei imaginando como faria se tivesse que escrever uma matéria elogiando o filme no dia seguinte. Seria foda. Outro recurso largamente utilizado no jornalismo tradicional é a recorrência às aspas – que são o lugar de garantia da fidelidade do texto – como “comprovação” de uma informação objetiva e, ao mesmo tempo, como forma de transferir à fonte a responsabilidade pela autoria do enunciado. No entanto, para Barthes, o próprio ato de escrever pressupõe a transformação do Eu (da subjetividade) em fragmento de código, o que acarreta no paradoxo de que a linguagem (independente do seu referente) passa a ser institucionalização da subjetividade (BARTHES, 1982: 39). O uso da terceira pessoa é um sinal de “distanciamento” do repórter perante a notícia, mas que, paradoxalmente, aproxima o leitor do fato. A pretendida ausência de intermediários entre o acontecimento e o leitor, confeccionada pela linguagem objetiva, faz pensar “os fatos como contando-se por si próprios. Este é o suposto da objetividade, em que jornalista, jornal, fontes, condições técnicas, discurso corrente (...) e, enfim, a própria língua, não interviriam jamais” (GOMES. 2000: 66). A postura “objetiva” e “imparcial” do jornalista tem raízes nos preceitos da ciência e filosofia de cunho moderno: A consolidação deste, como dos outros mitos que alimentam o jornalismo, explica-se pelo entorno histórico da atividade. Ela transforma-se em produto da burguesia que tomou as rédeas do mundo no século passado e que encontrava legitimidade na ciência moderna em seu auge. Desta forma, o jornalismo incorpora certos fundamentos da ciência de base positiva que acreditavam na objetividade, no distanciamento frio e imparcial do cientista e em uma razão absoluta. O repórter comporta-se como um cientista, atendo-se apenas aos fatos, tratando-os distanciadamente, com critérios objetivos (HENN, 1996: 20). A noção daquilo que é “verdadeiro” evoca os termos pelos quais nossa contemporaneidade tem dimensionado a si mesma ante a impotência das metanarrativas e à impossibilidade da “verdade”. “Trata-se da oscilação entre verificabilidade, efetividade ou sucesso visando consenso. É por isso que para o jornalismo seu testemunho é verdadeiro, podendo, portanto, ser argumento pró-consenso” (GOMES, 2000: 53). Mas, o que dizer da 67 validação de um critério baseado numa corrente de pensamento que se mostrou incapaz de explicar o mundo? A anacrônica sublimação da objetividade não leva em conta o cenário hodierno da esfera comunicacional. O leque de explicações totalizantes e positivistas, tal como é insuficiente para abordar questões de cunho filosófico-científico, também se mostra incapaz de abrigar o “caos” do universo jornalístico, cuja disseminação é apontada por Ciro Marcondes Filho como baluarte da fragmentação de “versões do mundo”: A expansão dos meios de comunicação, contribuindo para multiplicar ao infinito as versões sobre os fatos, as explicações, as “dotações de sentido”, decreta igualmente o fim da unidirecionalidade histórica. Com eles e as milhares de pulverizadas versões, o mundo enche-se de mil histórias, mil interpretações, conflitantes, contraditórias, díspares, desconexas e não-lineares. Nessa situação, não há mais como sustentar a imposição (arbitrária) de uma única história (a ocidental, cristã, capitalista desenvolvida ou socialista). São todas ficções, tentativas vãs de “explicar” o caminhar sem destino da civilização (MARCONDES FILHO, 1993: 90). Percebe-se também que a defesa da objetividade, realizada no âmbito da abstração, desconhece o jornalismo “realmente existente”, de tal forma que, quando diante da práxis do dia-a-dia, acabaria por desqualificá-la, considerando-a como “não jornalística”. Colocando-se como elemento mediador, o jornalista faz-se presente nas notícias que narra, “uma presença emblemática, que não se esgota na captação dos dados e redação de um texto, mas atravessa todo o processo de construção da notícia” (HENN, 1996: 109-110). Nesses termos, “o jornalismo não é nem neutro nem objetivo” (MARCONDES FILHO, 1993: 130). Tendo esse panorama como base, pode-se dizer que a objetividade jornalística não existe de fato ou, pelo menos, é uma “meta-mito” (SILVA, 1997: 25). Nas palavras de Emil Dovifat: Um jornal não pode ser “objetivamente verdadeiro”, mas apenas “subjetivamente verdadeiro”. Imagine-se o que seria de um jornal puramente “objetivo”. Ele se assemelharia a uma construção de fórmulas matemáticas e aluiria com o primeiro erro de cálculo; mais ainda, ninguém o leria (apud KUNCZIK, 2001: 226). 68 É imprescindível constatar que a Irmandade Raoul Duke não consta apenas de um modelo estilístico. Em seus textos ocorre uma mixórdia de referências e estruturas diegéticas. Um exemplo cabal deste aspecto é a matéria Nu artístico, que narra a experiência de um repórter durante a sessão de fotos do americano Spencer Tunick, que utilizou como modelos cerca de mil brasileiros nus em pleno Parque do Ibirapuera, em São Paulo. Na abertura da matéria, o repórter mescla elucubrações com tópicos informativos: O brasileiro é um pelado nato. Qualquer coisa é pretexto para a carga genética herdada dos índios vir à tona. Somos de uma nudez acrobática e carnavalesca. Pelo menos é o que se conclui da passagem de Spencer Tunick pelo Brasil. O fotógrafo americano viaja pelo mundo clicando pessoas nuas em espaços públicos. Polêmico, chegou a ser preso em Nova Iorque. Mas, em São Paulo, foi recebido como um Rei Momo. Sua performance no Parque Ibirapuera atraiu cerca de 1100 pessoas, além de uma fauna de Nany Peoples, Otávio Mesquitas, Ratinhos, Rodolfo e ETs. Nunca a flacidez do brasileiro foi tão noticiada. A ironia é recurso freqüente nos textos gonzo. A ironia é o que “eleva o sujeito acima de sua comunhão com o mundo deslocando-o criticamente do real” (EAGLETON, 1993: 131). Por outro lado, como a ironia não fornece ao leitor nenhuma verdade alternativa, acabando deixando-o “suspenso em vertigem entre o real e o ideal, simultaneamente dentro e fora do mundo. O real é o elemento do pensador irônico, mas seu percurso através do real é oscilante e etéreo, pouco tocando o chão” (idem: ibid). Corroborando com a visão de Eagleton, nesta matéria a ironia é inserida dentro do viés da referencialidade. Esta junção de discursos confere à descrição, além do poder de fazer o leitor construir sua imagem mental do cenário, a propriedade de suscitar reflexões acerca de questões comportamentais e identificação de estereótipos. Todavia, o fator mais relevante do excerto abaixo é a utilização das aspas, recurso usual no jornalismo, como marcador de uma citação. O gonzo constitui-se, portanto, numa fusão de linguagens: Teríamos de preencher um papel e ceder os direitos de imagem das nossas estrias, celulites e fimoses. [...] Éramos uma paisagem de gordinhos bancários, secretárias desempregadas, professores de ensino médio, sorveteiros, estudantes, fãs de Raul Seixas e meninas tatuadas com desenhos de vacas e peixes. Cada um tentando provar algo a si mesmo. “Quero ver até 69 onde eu posso ir. Tirar a roupa aqui é um passo enorme para mim”, disse uma senhora de 60 anos. Por outro lado, à medida que o relato desenrola-se, o repórter passa a deslocar o foco da reportagem para si mesmo, deixando a diegese permear-se cada vez mais por elementos idiossincráticos, limitando o universo abordado na matéria, e passa a narrar a situação a partir de sua perspectiva: Ninguém ali estava preocupado em expressar o desespero ou a depressão da vida contemporânea. Nossas genitálias eram de uma felicidade jamais vista. Em liberdade, fariam piruetas e acrobacias, como micos amestrados. Finalmente, a catarse: Tunico pegou o megafone e mandou todo mundo tirar a roupa. Gritos de aprovação. Camisetas e cuecas voaram e, pouco depois, ficamos completamente pelados. Milhares de flashs explodiram nas nossas caras. Era a imprensa, num momento J. R. Duran. Em segundos, descobri toda a verdade: ficar nu em público é a coisa mais cheia de pudor que existe. Recomendo aos padres e às igrejas. Não houve olhares constrangedores, ninguém sequer se encostou em mim. Há menos respeito até no metrô. [...] Nossas peronites e espinhas na bunda se tornaram insuportavelmente coletivas, massificadas. Totalmente diferentes dos nus da Renascença, que eram individuais, tinham no máximo três ou quatro personagens. Admitiam até cenário. Para Tunico, nós éramos o cenário. [...] Debaixo da marquise deveríamos nos deixar cair, como se estivéssemos sem forças. Horror, horror, horror: ficamos literalmente amontoados, como entulho, e com as costas no chão frio. Minha cabeça ficou do lado da bunda mais peluda do universo. Deveria ser transgênica ou mutante, nunca humana. Quase vomitei. 3.2 - Algumas gotas de literatura... “A literatura é a literatura”. – Roland Barthes Antes de colocar o jornalismo frente a frente com a literatura, é necessário que esta última tenha demarcado o seu lugar dentro do micro-universo de conceitos que permeiam este trabalho. Se encerrar uma discussão sobre o conceito de jornalismo já é uma tarefa difícil, mesmo este já tendo sua função básica (transmitir o relato de um fato) 70 supostamente como um consenso, mais o é o de literatura, cuja concepção tem mudado muito, mesmo a respeito de suas características fundamentais. Para Raul Castagnino, a literatura pode ser vista sob os seguintes prismas: sinfronismo, função lúdica, evasão, compromisso e ânsia de imortalidade. Para ele, a literatura pode assumir todas essas funções, mas nem sempre ao mesmo tempo. O próprio autor reconhece a fraqueza de sua delimitação, pois mesmo todas as funções juntas não comportariam a diversidade de fins e meios dos quais a literatura vale-se. No entanto, um breve passeio pela obra de Castagnino, embora não nos responda à pergunta que batiza o próprio livro (Que é literatura?), pode dar-nos alguma pista. A literatura como sinfronismo pressupõe a coincidência espiritual entre o homem de uma época e os de todas as épocas e estabelece uma cumplicidade entre autor e leitor no processo da atividade criadora. Em suma, cada vez que um homem diante de uma obra literária “consegue reviver em si os estremecimentos que comoveram o autor no instante de compô-la, opera-se o efeito do sinfronismo, flui a onda maravilhosa de sinfonia espiritual capaz de aproximar simpaticamente dois seres, por sobre o tempo e o espaço” (CASTAGNINO, 1969: 46). A literatura como função lúdica “baseia-se no trato com certas imagens, numa transformação da realidade. Daí que a linguagem, ao passar do concreto para o abstrato, do material para o ideal, se valha do jogo” (idem: 75). Esta concepção converge para a idéia da linguagem como construtora de mundos, pois atrás de cada expressão do abstrato há uma metáfora oculta num jogo de palavras. Deste modo, o homem cria suas designações para o existente, ou seja, um segundo mundo inventado “à margem da natureza”. Enfim, “quantidade e medida silábica, ritmo, rima no verso; a sintaxe própria, o sentido figurado, os sentidos de elevação e tensão, de alegria e distensão na composição literária em geral correspondem por si mesmos à esfera lúdica” (idem: 86-87). O termo literatura de evasão também pode atuar sob diversos focos: cura, catarse, refúgio, substituto ou compensação, aturdimento, esquecimento, alienação, transposição de personalidade, fuga, êxtase. Enquanto evasão, a literatura “opera assim como um asilo, como um refúgio no qual é possível abrigar-se fugindo à realidade circundante” (idem: 109), o que pode ocorrer por meio da criação de personagens, de imagens-metáforas, da idealização etc. A literatura como compromisso está baseada na concepção de Jean Paul Sartre de que o homem serve-se das palavras como armas. “Escrever em prosa é uma empresa de combate porque o escritor tem uma ‘situação’ em sua época e cada palavra sua 71 repercute” (idem: 151). E esse compromisso existencialista faz da literatura uma mensagem que busca a imposição, o envolvimento, a militância ativa. A última “forma” da literatura é, sem dúvida, a mais romântica. Encarar a literatura como ânsia de imortalidade é vê-la como um caminho de ser eternizado por mérito de suas façanhas. A tal ânsia, “perfilam aqueles criadores que, esquecidos do presente, entregam-se à obra como quem sobe num veículo que os conduzirá à glória, à mortal imortalidade” (idem: 169). Raul Castagnino, já no final de seu livro, recorre a Alfonso Reyes para desferir uma definição esquiva, mas, de certa forma, simbólica, sobre o obscuro ser da literatura: A literatura não é uma atividade de adorno, mas a expressão mais completa do homem. Todas as demais expressões se referem ao homem enquanto especialista de alguma atividade singular. Só a literatura expressa o homem, sem distinção nem qualificação alguma (apud idem: 210). Terry Eagleton também trilha seus passos rumo a um conceito de literatura. A primeira idéia discutida por ele consiste na possível definição de literatura como “a escrita ‘imaginativa’, no sentido de ficção – escrita que não é literalmente verídica” (EAGLETON, 1997: 1). No entanto, o autor logo desvia desse caminho por julgar que a distinção entre “fato” e “ficção” é muitas vezes “questionável”. Nesse sentido, todo e qualquer escrito seria considerado literatura, pois, como vimos, o ato de escrever é mediado pela linguagem, o que já impede a apreensão absoluta da realidade. Continuando sua jornada, Eagleton imagina encontrar uma saída ao diferenciar a literatura dos outros escritos pelo fato de empregar a linguagem de maneira peculiar. Segundo essa teoria, a literatura é a escrita que representa uma “violência organizada contra a fala comum”, transformando e intensificando a linguagem costumeira, de modo a afastar-se sistematicamente da fala cotidiana. Assim, a literatura seria uma forma de linguagem na qual a tessitura, o ritmo e a ressonância das palavras superam o seu significado, chamando atenção sobre si mesma e exibindo sua existência material. Segundo essa corrente, a especificidade da linguagem literária seria “o fato de ela ‘deformar’ a linguagem comum de várias maneiras. Sob a pressão dos artifícios literários, a linguagem comum era intensificada, condensada, torcida, reduzida, ampliada, invertida. Era uma linguagem que se tornara estranha” (idem: 5). Contudo, essa trilha mostrou-se inviável, pois a idéia de que existe uma única linguagem 72 “normal”, usada igualmente por todos os membros da sociedade, é uma ilusão. Para ele, “qualquer linguagem em uso consiste de uma variedade muito complexa de discursos, diferenciados segundo a classe, região, gênero, situação, etc., os quais de forma alguma podem ser simplesmente unificados em uma única comunidade lingüística homogênea” (idem: 6). O atalho utilizado por Eagleton aponta em direção à função do escrito propriamente dito. Ele considera a literatura em si como um discurso “não-pragmático”, que não tem nenhuma finalidade prática imediata, referindo-se apenas a um “estado geral de coisas”. E, para mostrar esse desprendimento, a literatura, às vezes, deixa isso claro por meio do uso de uma linguagem particular. Para o autor, esse caminho mostra-se revelador, pois “esse enfoque na maneira de falar, e não na realidade daquilo que se fala, é por vezes considerado como uma indicação do que entendemos por literatura: uma espécie de linguagem autoreferencial, uma linguagem que fala de si mesma” (idem: 10-11). Só que, por outro lado, ele lembra que em grande parte daquilo que se classifica como literatura, “o valor verídico e a relevância prática do que é dito é considerado importante para o efeito geral” (idem: 11). E então, como resolver estas contradições e encontrar uma definição que possa abranger a literatura? A definição de literatura fica ancorada, então, sobre a “maneira pela qual alguém resolve ler, e não da natureza daquilo que é lido” (idem: ibid). Dessa forma, “qualquer coisa” pode ser literatura, e qualquer escrito que seja considerado como literatura, inalterável e inquestionavelmente, pode deixar de sê-lo. Por outro lado, Eagleton lembra que, na Inglaterra do séc. XVIII, o conceito de literatura não se limitava aos escritos “imaginativos” e não-pragmáticos. Abrangia todo o conjunto de obras valorizadas pela sociedade: filosofia, história, ensaios e cartas, bem como poemas. Não era o fato de ser ficção que tornava um texto “literário” e sim sua conformidade a certos padrões de “belas letras”. Em suma, da mesma forma que o jornalismo, a literatura não possui uma essência apreendida igualmente pelo homem através da História. Muito embora a impossibilidade de conceber uma idéia perene de literatura seja evidente, é necessário delimitar esse conceito de modo a trabalhá-lo sem ambigüidades. Como o nosso trabalho lida com a relação entre a ficção e a realidade, e o uso da palavra para designar ou não uma referencialidade, convém-nos adotar a concepção barthesiana de literatura, que concebe a linguagem literária como veículo propulsor que leva o texto em direção contrária ao “mundo concreto” e, o mais importante, deixa esse vôo fazer-se 73 perceber por si mesmo. Embora julguemos essa perspectiva redutora para designar o termo literatura como um todo, ele é o mais adequado para estabelecer uma analogia entre o jornalismo e a literatura, duas formas de discurso distintas em essência, mas interrelacionadas por natureza. Destarte: A idéia de literatura não é a mensagem que você recebe; é um significado que você acolhe a mais, marginalmente; você sente-o flutuar vagamente numa zona paróptica; o que você consome, são as unidades, as relações, em suma, as palavras e a sintaxe do primeiro sistema (que é a língua); e, no entanto, o ser desse discurso que você lê (o seu “real”), é mesmo a literatura, e não a anedota que ele lhe transmite (BARTHES, 1977: 361-362). Paul de Man segue no mesmo caminho de Barthes e define a “essência” da literatura no fato de que toda linguagem é inevitavelmente metafórica, operando por tropos e figuras; e que seria um engano acreditar que qualquer linguagem é “literalmente literal”. Na literatura, o leitor se vê a flutuar no vácuo entre um significado “literal” e outro, figurativo. Posto à gravidade zero, ele constata-se incapaz de efetuar uma escolha definitiva entre os dois sentidos e acaba sendo “lançado a um abismo lingüístico sem fundo por um texto que se tornou ilegível” (EAGLETON, 1997: 200). 3.3 – Literatura jornalística ou jornalismo literário? “O jornalista fere no peito o escritor. O escritor repele o jornalista, por esmagá-lo, por obrigá-lo a renascer quase sempre de um mesmo patamar. Feliz daquele que, nesse embate, consegue servir, e bem, aos dois senhores”. - Bernardo Ajzenberg Vimos que o Jornalismo Gonzo não pode, a princípio, ser enquadrado em nenhuma das definições tradicionais de jornalismo e literatura. Por ser permeado de elementos concernentes aos dois âmbitos, a análise do gonzo-jornalismo não pode ser realizada sem se realizar um estudo acerca das relações entre eles. Atribui-se ao poeta e ensaísta Salvador Novo, a seguinte frase: “Não se pode alternar o santo ministério da 74 maternidade que é a literatura com o exercício da prostituição que é o jornalismo” (apud CASTRO & GALENO, 2002: 17). Embora estereotipada, tal visão entende essas duas formas de expressão como detentoras de natureza e especificidades que as situam em esferas diferentes, intocáveis. Portanto, o primeiro passo para entender as relações entre jornalismo e literatura é tentar colocá-los como manifestações distintas, unidas por terem a palavra como objeto, mas separadas por terem seguido caminhos paralelos. “Jornalismo em si não é literatura” (JOBIM, 1992: 39). O catedrático Manuel Ángel Vázquez Medel tenta estabelecer essa diferenciação através da análise da referencialidade dos discursos: No caso do discurso jornalístico, deve ser dominante a função referencial, por ser a que articula sua funcionalidade informativa e sua vontade de construir discursos baseados em fatos reais. No caso dos discursos literários, esteja ou não presente a função referencial, deve dominar a função poética ou estética, que reclama atenção sobre o próprio texto (in CASTRO & GALENO, 2002: 23-24). Em sua diferenciação deveras simplista, ele afirma que enquanto “os discursos factuais, próprios do jornalismo podem ser, mais ou menos, submetidos à prova de veracidade ou falsidade, nos discursos literários esta conexão não é pertinente, já que o que o autor disse, estabelece sua própria referência” (idem: 24). Vimos, contudo, neste trabalho, que tampouco o jornalismo pode angariar tal prova de veracidade por ser, assim como a literatura, uma forma de expressão mediada pela palavra. No Brasil, Alceu Amoroso Lima é precursor nos estudos a respeito da linha que supostamente dividiria os campos literário e jornalístico. Para ele, o jornalismo é um gênero inserido dentro do espectro da literatura, assim como o romance e a poesia, e isso ocorre em virtude de alguns caracteres que lho atribuem uma aura literária, mas, por outro lado, constitui um gênero específico porque possui elementos que o distinguem das outras expressões ditas literárias. O próprio Amoroso Lima atribui à palavra, no jornalismo, a função de decodificar a realidade, mas estabelecendo-se critérios para que não deixe de ser “uma arte verbal em prosa; [...] uma prosa de apreciação; e uma apreciação de acontecimentos” (LIMA, 1969: 41). Na concepção de Amoroso Lima, o jornalismo é um gênero da literatura pelo fato de constituir-se como “arte da palavra”, com ênfase nos meios de expressão, mas não 75 excluindo os seus fins. Para estabelecer essa relação, o autor recorre ao conceito que enxerga o gênero como o conjunto de esquemas estéticos disponíveis para o escritor e inteligíveis pelo leitor de antemão. Tzvetan Todorov também não consegue desligar-se desse enraizado conceito, chamando o gênero de uma “codificação de propriedades discursivas” (TODOROV, 1980: 48). Para ele, apenas pode-se conceber a transgressão de uma obra que supera seus limites classificatórios, se pressupormos a existência de uma norma anterior: “só se detecta transgressão em função de uma regra preexistente” (TODOROV, 1980: 46). Tal concepção de gênero tem origens no pensamento moderno e, por isso, não leva em conta o fato de que o texto é um ato de fala constituído de propriedades idiossincráticas. Destarte, tentar analisar tais propriedades na forma de gêneros daria lugar a “uma infinita possibilidade de discursos que não encontraria respaldo num ou em qualquer outro sistema classificatório” (RESENDE, 2002: 29). Portanto, faz-se necessário que a noção de gênero deva ser revista e ampliada, “de forma a possibilitar uma variedade tal de discursos que destrua a própria hierarquia imposta aos gêneros e admita serem eles suscetíveis, não só de misturarem-se, mas de romperem com suas próprias amarras” (idem: 29-30). A própria Clarice Lispector, que trilhou o híbrido caminho interposto entre os discursos jornalístico e literário, confessa em uma de suas crônicas: “gêneros já não me interessam” (LISPECTOR, 1992: 375). Sob tal perspectiva é que recorremos aos autores pós-modernos, pensadores das teorias contemporâneas, que, por sua vez, repudiam modelos que categorizam gêneros e linguagens. “A invenção contínua de construções novas, de palavras e de sentidos que, no nível da palavra, é o que faz evoluir a língua” (LYOTARD, 2002: 17). Dessa forma, Lyotard acaba por contribuir para o atestado de impossibilidade, nos tempos hodiernos, de estabelecer normas que classifiquem a produção de textos. “Continuar falando em gêneros seria, ironicamente, generalizar e não entender a diversidade e a proliferação de vozes, hoje derivadas das várias instituições do saber e que ecoam nos diversos tipos de discurso” (RESENDE, 2002: 33). Desta forma, devemos: pensá-los enquanto manifestações da fala, enquanto discursos – nunca enquanto gênero jornalístico, de um lado, e gênero literário, de outro, que se fundem num só –, pensá-los enquanto manifestações detentoras de propriedades discursivas, por vezes, diferentes e particulares e, por outras, semelhantes (idem: 34). 76 Bakhtin atenta para importância de se levar em conta o contexto no qual uma manifestação é erigida. Para ele “assim como, para observar o processo de combustão, convém colocar o corpo no meio atmosférico, da mesma forma, para observar o fenômeno da linguagem, é preciso situar os sujeitos – emissor e receptor do som –, assim como o próprio som, no meio social” (BAKHTIN, 1997: 70). Isto significa que não é possível abster-se de fazer remissão aos lugares de onde tais discursos advêm. A priori, os chamados contextos factual e ficcional, são esses os lugares, do jornalismo e da literatura, respectivamente. No entanto, a delimitação desses “lugares” deve contribuir não para a classificação e hierarquização das práticas discursivas, mas para se chegar ao entendimento das “regras que, ainda, autoritariamente, regem sua enunciação na medida em que procuram defini-los” (RESENDE, 2002: 42). Ao pensar o discurso dentro do âmbito da pós-modernidade: Faz-se necessário considerar que componentes, tanto das águas literárias quanto jornalísticas, servem para que se estabeleça alguma diferenciação entre elas. Mas pensar que essa diferença impossibilita a interpenetração que se dá nesses dois campos é limitar o universo literário que se desenvolveu para um universo verbal mais abrangente. Sendo assim, deve-se não exatamente definir os dois discursos, mas estabelecer variáveis que possibilitem sua aproximação (idem: 40). No entanto, não podemos limitar nossa discussão somente ao antagonismo entre factual e ficcional pois, “a rigor, não há propriamente jornalismo, mas jornalismos, com formas, métodos e objetivos bem distintos entre si, de acordo com os propósitos de quem produz e do público a que se destina” (MORETZSOHN, 2002: 13). Através deste prisma, é possível enxergar que “o discurso jornalístico, como qualquer outro, não se faz de forma única, mas, ao contrário, de variações, de modos jornalísticos – notícias, reportagens, entrevistas, crônicas, artigos e outros – que se processam dentro do próprio fazer jornalístico” (RESENDE, 2002: 65). Assim, entendemos que acolher a classificação imposta ao discurso jornalístico, encarando-o como expressão de constituição indelevelmente informativa, limita o seu campo de manifestação. Para Santaella: 77 “Não podemos negar um evidente intercâmbio de recursos e migração de linguagens que extrapola a mera esfera da relação jornal e literatura. Um intercâmbio, aliás, que deve ser buscado, pois é na fenda entre dois sistemas de signos e nas brechas do sistema instituído que podem germinar novas estruturas de linguagem (o estereótipo do novo nasce sempre no interior de um mesmo sistema)” (SANTAELLA, 1996: 56). O jornalismo gonzo, como modelo de produção textual, vai e vem através dessas brechas, tendo, ora um pé no jornalismo, por que tem (ou diz ter) um referente externo, ora outro pé na literatura, pela subversão da linguagem, pelas figuras metafóricas, pelas descrições sensoriais, pelas elucubrações, pelos relatos de teor ficcional e pela inserção do repórter na matéria, marcando a destituição do uso da terceira pessoa, uma das características básicas do jornalismo no sentido estrito. Sobre este aspecto, Danton Jobim afirma que a experiência do jornalista e a do escritor “não são mundos fechados; intercomunicam-se esses dois domínios, entre os quais, separados que estão por uma linha fluida, haverá sempre uma passagem discreta” (JOBIM, 1992: 45). Desta forma, preceitos como verdade, realidade, atualidade e objetividade, nos textos gonzo, são “dessacralizados”, viabilizando a interposição com o contexto ficcional. Assim, quando inserida dentro do jornalismo, caberia à literatura estabelecer um recorte da realidade de tal forma que opere como “uma explosão que abra uma realidade muito mais ampla” (in CASTRO & GALENO, 2002: 44-45). Para que o jornalismo transcenda sua atual função de acompanhar o factual e esvaecer-se junto com ele, torna-se necessário, portanto, recorrer à literatura, que terá o intuito de “desobstruir a imaginação jornalística e [...] evitar que ela se transforme em mero exercício retórico do cotidiano” (in idem: 107). O jornalismo gonzo está situado num dos “enclaves de invenção” propostos por Santaella, que “rompem as barreiras entre as artes e entre os signos, subvertendo estereótipos estruturais e o conseqüente entorpecimento de nosso estar no mundo” (SANTAELLA, 1996: 56-57). Dentre os enclaves que resistem a “rótulos e engavetamentos”, que impossibilitam diluições imediatas, Santaella cita “poemas que se transformam em arquiteturas gráficas ou em móbiles táteis”, tal como “prosas que se recusam prosear” e, um último, que, mesmo sem intencionalidade, pode prover-nos uma definição provisória do que seja gonzo-jornalismo. Mais do que uma literatura jornalística ou alguma espécie de jornalismo literário, o Jornalismo Gonzo caracteriza-se por escritos 78 que “fendem a barreira entre ilusão e realidade desvelando um outro real nas dimensões intersticiais da palavra e da vida” (idem: 57). 3.4 – Ficção e verdade na Irmandade Raoul Duke "SENTE MEU CORAÇÃO! O cara no bar! Atirou! No Arco Íris! Meu coração! Tá disparando!" Ela tinha colocado minha mão direita sobre seu seio esquerdo e, no lugar de qualquer palpitação alterada, eu sentia só o mamilo e a carne em volta. Eu não duvidava do seu nervosismo, havia outros indícios de que ela estava realmente assustada: dois zoiões esbugalhados, a fala corrida e desconexa, e o fato de que fez uma estranha segurar seu peito enquanto contava a história. Podia estar cheirada também, mas àquela altura não fazia diferença.- Cecilia Giannetti. Por mais estranhamento que isso possa causar, o texto da epígrafe acima trata-se de um trecho de uma matéria gonzo-jornalística. O relato de viés erótico e a sinestesia da repórter sobrepõem-se ao fato jornalístico que está por trás da cena. Em verdade, a causa do nervosismo da “estranha” foi um tiroteio que ocorrera minutos antes num bar, no qual um homem fora baleado. A descrição do evento carece de minúcias, mas a repórter logo se justifica: “Eu não podia exigir detalhes sobre o ocorrido; um peitinho já era demais”. Dessa forma, a narradora esquiva-se da diegese linear da cena, buscando recursos outros para transmitir um fato: a apreensão da transeunte e a própria percepção sensorial da repórter. Sob esse viés, o fato em si é o que menos importa. Na matéria A Noite é Longa e a Saia é Curta na Lapa...29 ocorre um processo que é prática recorrente no gonzo-jornalismo: a ficcionalização do fato, por meio do qual são utilizados aspectos da ficção de modo a fazer com que o “mundo real” seja recomposto. “O processo consiste, basicamente, em (re)criar mundo, (re)construir narrativas, quer sejam factuais ou ficcionais, de modo a fazê-las se 29 O título completo é A Noite é Longa e a Saia é Curta na Lapa mas o Mar Não Tá pra Piranha: A Lapa é o Rio em 2002. 79 adequar, mais propriamente, ao universo daquele que as (re)constrói, daquele que está sempre (re)lendo o mundo” (RESENDE, 2002: 111). Com isso, o repórter viabiliza o rompimento do acordo factual que costumeiramente rege os processos de produção e recepção do jornalismo, guiando o leitor a um “outro mundo”, que beira a (e às vezes mergulha na) ficção, um mundo onde toda verdade se faz crível. O resultado disto é a criação de “um texto que, por sinalizar fato e/ou ficção, peça um leitor que divague, fazendo com que a significação se dê em níveis outros, que não somente aqueles que se referenciam no real de um ou outro discurso, mas, também, no real desse que é o seu segundo produtor” (idem: 102), criando a figura do leitor-investigador, ciente da não mais existência do pacto primeiro do jornalismo que pressupunha a verdade em suas afirmações. Um leitor que caminhará sobre a “saudável” (no sentido barthesiano30) dúvida: será o jornalista o mensageiro da verdade factual ou da “verdade” ficcional? O caráter de “verdade” atribuído à ficção não vem, contudo, de sua relação com o real. Ele é decorrente da consciência por parte do jornalista/literato acerca da condição irreal imanente à linguagem e, portanto, a todo ato nela baseado: A literatura mais “verdadeira” é aquela que se sabe a mais irreal, na medida em que ela se sabe essencialmente linguagem, é aquela procura de um estado intermediário entre as coisas e as palavras, é aquela tensão de uma consciência que é ao mesmo tempo levada e limitada pelas palavras, que dispõe através delas de um poder ao mesmo tempo absoluto e improvável (BARTHES, 1982: 79). O fato ficcionalizado, o jornalismo desapegado dos ideais de objetividade e imparcialidade, o factual permeado por elementos literários são formas de discurso nas quais “se acredita sem se acreditar” (BARTHES, 1977: 362) , pois o leitor está em trânsito entre dois universos, cada um com leis diferentes para reger a palavra. “É ilusão e não simulacro, pois não finge ser o que não é” (MAN, 1996: 119). O discurso, posto nestas condições, torna-se mais verdadeiro pois não almeja à dissimulação presente no jornalismo. “A ficcionalização é um jogo de linguagem, neste aspecto em que desrealiza o real e exige 30 O signo “saudável”, para Barthes, é aquele que chama a atenção para a sua própria arbitrariedade – aquele que não tenta fazer-se passar por “natural”, mas que, no momento mesmo de transmitir um significado, comunica também alguma coisa de sua própria condição relativa e artificial. 80 um processo intersubjectivo para se produzir, exige a presença do outro, a sua aceitação das regras do jogo, e nisso se distancia do puro fantasma individual que assola o sujeito nos processos patológicos” (BABO, 1996). Na matéria Nem John Wayne matou tanto índio na Cidade Baixa, de André “Cardoso” Czarnobai, mais um exemplo de ficcionalização, que desta vez é feita a partir da inserção da figura do repórter como protagonista da reportagem, manipulando os fatos e determinando o curso da história, não com palavras, mas com atos. “O próprio narrador, presente na história; ele se constrói do fato e da ficção” (RESENDE, 2002: 92). Apesar (ou por causa) de soar eminentemente ficcional, de certa forma, o relato – valendo-se da condensação de percepções (ou da imaginação) do repórter-narrador-personagem – constitui-se numa estrutura narrativa que tira da (existência ou não de) veracidade o seu atributo principal. A “verdade” desta cena designa “qualquer coisa como a genuinidade, sinceridade ou autenticidade; ou a verossimilhança, isto é, não adequação àquilo que aconteceu, mas aquilo que poderia ter acontecido” (VILAS BOAS, 1996: 63): Um sujeito desprezível ia nesse Palio. Rádio a todo volume num desses funks, camisa, vidro fumê, mascando chiclé de boca aberta. Virou a cabeça pro lado e viu que eu o estava olhando fixamente. Um pouco surpreso começou a acelerar e me encarar. Eu não mexi o pescoço. Permaneci olhando fixo pro motorista do Palio, que a essa altura começava a ficar nervoso, e olhava compulsivamente para os lados. Abri o vidro e coloquei o corpo pra fora. Seus olhos arregalaram, ele congelou. Eu disse "Ô", ele olhou pro sinal de novo "eu vou te pegar", e voltei pra dentro do carro, rindo. Ele acelerou, sem esperar o sinal. Deixei ele correr. Quando o sinal abriu, saí em disparada atrás do Palio. Gato e rato, um jogo clássico. Não tirei os olhos do seu retrovisor, onde só via o reflexo dos seus olhos apavorados. Fiquei dando sinais de luz a cada cinco ou dez segundos. Ele tentou de todas as formas me despistar: dava sinal prum lado e entrava pro outro, desligava os faróis pra sumir nas ruas escuras, ficava ansioso quando eu parava atrás dele nas sinaleiras. Isso foi até o último sinal antes da minha rua, quando consegui parar ao lado dele, e um caminhão impediu que ele desrespeitasse o sinal. De novo me coloquei pra fora do carro e gritei: "Ô, amigo" Ele nem me olhou "o sinal vermelho é pra PARAR" Ainda tive tempo de vê-lo me fulminando com um olhar um furioso, enquanto o sinal abria e eu subia as ladeiras da Medianeira. Talvez o mais emblemático exemplo publicado na IRD sobre a relação entre ficção e verdade seja a Entrevista com a Verdade, de autoria de Eduardo Fernandes, 81 heterônimo Eduf. Na surreal entrevista, Verdade é um transformista pernambucano, cujo pai, muito religioso, batizou os três filhos, respectivamente, de Verdade, Caminho e Vida, por admirar a passagem da Bíblia que diz: "Eu sou a verdade, o caminho e a vida". Não foi fácil, mas encontrei a Verdade. Segundo meu informante, ela faz ponto perto da Universidade de SP (USP). Reservada e desconfiada, só atende a um seleto grupo de clientes. Tudo estava combinado, eu pagaria caro, mas poderia entrevistá-la. Desde que não a filmasse e nem revelasse exatamente seu local de trabalho. A Verdade é alta, nordestina e tem silicone nos peitos, bochecha e glúteos. [...] Basta um olhar para entender: a Verdade é um transformista castigado pela idade. [...] Cético, pedi para olhar sua carteira de identidade. Ela riu: "Nunca peça para um traveco mostrar o documento". Confirmado: seu nome é realmente Verdade. Verdade de Souza. [...] Sentamos e começamos a entrevista. O nome propício do entrevistado permite a enunciação de diversas frases de efeito, que, se consideradas em seu sentido literal, podem fazer remissão, mesmo que indiretamente, aos conflitos e aproximações do Jornalismo Gonzo e do dito jornalismo tradicional com o ideal de verdade. Verdade: Tem uns professores da faculdade aí em frente que toda sexta mexem comigo: dizem que vão foder a verdade. Mas eu não ligo. Tá cheio de gente que diz que me ofende e que me defende. Mas quero que neguinho me deixe em paz. [...] Eduf: Que tipo de coisa lhe dizem? Verdade: Que eu não existo. Dessa parte eu gosto. Acho que é elogio. Mas tem um sujeito que pede que eu o enrabe e diga que está, como é que ele diz?, “sendo subjugado pela verdade”. Que diabo é isso? O desfecho da entrevista, por sua vez, é revelador. Novamente utilizando o nome do entrevistado como trampolim para frases de efeito, o repórter ao falar em “Verdade”, com inicial maiúscula, fá-lo com o sentido de verdade absoluta, universal. A Verdade teve de calar. Uma viatura se aproximava e, pelos faróis altos, não estava na folha de pagamento. "Eles sempre mandam carne nova para tirar grana da gente", disse o traveco, enquanto se levantava, apressado. [...] Corremos uns três quarteirões e nos encostamos num muro. Baixei a cabeça, tentando respirar. E, quando dei por mim, a Verdade tinha sumido. Como a minha bolsa, meu dinheiro e equipamentos. Sentei e olhei a 82 madrugada, me sentindo um idiota. Como poderia provar a alguém que, por alguns minutos, vi toda a Verdade? O rompimento das barreiras entre o factual e o ficcional e as conseqüências advindas desse fato remetem-nos a efetuar uma análise da produção textual dentro do âmbito da pós-modernidade. O hibridismo, a ironia manifesta, a auto-reflexividade, a consciência sobre seu próprio fazer e a desconfiança acerca da verdade, são alguns dos fatores do gonzo-jornalismo que corroboram com a idéia de que, antes de tudo, o Jornalismo Gonzo é um fenômeno da idade pós-moderna, não apenas temporalmente, mas por adequar-se (im)perfeitamente a seus conceitos. A obra de arte pós-moderna típica é arbitrária, eclética, híbrida, descentralizada, fluida e descontínua, lembra o pastiche. Fiel aos princípios da pós-modernidade, rejeita a profundidade metafísica em favor de uma espécie de superficialidade forjada, jocosidade e falta de afeto; é uma arte de prazeres, superfícies e identidades fugazes. Por desconfiar de todas as verdades e certezas estabelecidas, sua forma é irônica, e sua epistemologia relativista e cética. Por rejeitar toda tentativa de refletir uma realidade estável para além de si mesma, existe, de modo autoconsciente, no nível da forma ou da linguagem. Por saber que suas próprias ficções são infundadas e gratuitas, pode atingir uma espécie de autenticidade negativa apenas ao alardear sua irônica consciência desse fato, pervertidamente chamando atenção para seu próprio status de artifício construído. Impaciente com toda identidade isolada, e desconfiada da noção de origens absolutas, chama atenção para sua própria natureza “intertextual”, sua reciclagem paródica de outras obras que, por sua vez, nada mais são que o resultado de tal reciclagem (EAGLETON, 1997: 318). A assumidamente inverossímil matéria Et de Vagina [ver anexo 5], de autoria de Paula Pó, percorre algumas das trilhas que passam pelo conceito de obra “literária” pósmoderna. pois “os valores associados com a ficção ou narrativa, a abertura, a extensão no tempo, a impureza genérica, passaram a ter o domínio na teoria literária pós-moderna” (CONNOR, 1996: 103). Por outro lado, pode-se observar no excerto abaixo recursos como: descrição da condição psicológica (o que pode justificar a existência de certos elementos ultra-reais na matéria), análise sobre a própria atividade jornalística, ironia, influência de estandartes da cultura de massa como ficção científica e pornografia, indicações 83 pretensamente estatísticas, elucubrações e permutação de pessoas e pronomes narrativos de modo a ficarmos “sem saber quem está narrando” (in OLIVEIRA, 1995: 64): Quase um mês sem sexo. O sol gritava lá fora. Estava vestindo rosa. E pra variar, sou jornalista. Jornalismo é uma daquelas profissões fantasiosas que enganam desde os primórdios da pena. [...] Eles me levaram e me possuíram. Quem? Eles são perigosos. O senhor está falando de quem? Do comando vermelho? Do homem do saco? Do FÊO, o pagodeiro fugitivo? Não. Dos ETs. Hã. Diga mais. Só pessoalmente. Fui na casa dele. Paredes azuis, alguns quadros de anjos, poucos livros, enya rolando. Aceita um suco? Meu deus, é o inferno. Tomei um suco de morango com leite que fez meu fígado, cuidadosamente destruído pelos anos de pinga se retorcer de dor. Maldito emprego. Isso aí começou com um dos e-mails mais bizarros da minha vida, mais que os da minha mãe. Entrarei em contato. Assim que eles permitirem. Tá. Em seguida um alfabeto supostamente alienígena numa planilha do Excel. Que merda de tecnologia avançada é essa que ainda usa o Windows? [...] Uma luz forte que clareou tudo em volta. Coloquei meus braços sobre o rosto para proteger meus olhos e quando saí dessa posição havia se passado cinco horas [...] Depois desse dia, passei a sonhar com uma etéia. Bonitinha até. Tinha longos cabelos loiros, alta e magra. Só tinha três dedos, que usava como ninguém. Vestia uma espécie de macacão espacial, com uns desenhos estranhos. Ao contrário daqueles cinzas, tinha lábios, nariz ou orelhas. E dois olhos imensos. Desde esse dia nunca dormi em paz. Sempre a ouço dizer que queria um filho meu. [...] Mas então vi a prova. Concreta, firme e ereta. No prepúcio havia uma espécie de bolinha, como um grão de ervilha, que se mexia de acordo com o toque. Depois de três gozadas, digo, testes, me convenci da verdade. Iria publicar a matéria. [...] O interessante é que a América Latina, apesar da fama de seus homens, é uma das áreas com o menor índice de envolvimento sexual entre espécies. Os Estados Unidos se encontram na liderança absoluta dos casos de sexo com alienígenas, inclusive com registros de crianças e/ou seres híbridos. Isso explica muitas coisas, entre elas o Michael Jackson. Outro dado interessante, é que das pessoas que tiveram contatos avançados menos de 5% chega a saber o que aconteceu. Muito pior que amnésia alcoólica. [...] Abaixei pra amarrar meu tênis. Uma luz forte passava por debaixo da porta. Ia ficando cada vez mais forte. Meu coração não estava mais. Pus os braços no rosto numa tentativa desesperada de proteger os olhos. Quando a luz não tinha mais o que invadir, a porta se abriu e eu gritei. Não era um alien, mas quase. Carvão, o uébi que vinha me mostrar sua geringonça nova de rave. Maldito emprego, malditos indies. Malditas raves. Elas fodem tudo. 84 3.4.1 – Jornalismo alucinado: anfetaminas, futebol, chocolate e outras drogas Assim como vejo araras de neon pairando sob a minha cabeça e faço com que o balançar do meu dedo produza uma intensa luz purpúrea, cavalos de fogo e elefantes de arame correm lado a lado com o ônibus. No horizonte, robôs imensos se levantam da terra e começam a pisotear as cidades próximas. Pessoas feitas de bola de gude se materializam e se dissolvem na minha frente. Vejo rostos conhecidos na penumbra, me encarando com inexplicável raiva - "o que foi que eu fiz?". A morte viaja grudada no teto do bus mas, por algum motivo, não tenho medo. – André “Cardoso”. A maioria dos aspectos do gonzo-jornalismo relatados aqui, além da crítica conceitual ao jornalismo tradicional, situa-se no âmbito do uso da linguagem. Muitas das características do Jornalismo Gonzo vistas até então (inserção do repórter na matéria, linguagem subjetiva, lapsos ortográficos, subversão da linguagem padrão, confusão do real com o factual etc.) podem ser encontradas em outros tipos de escritos. No entanto, o principal diferencial do gonzo frente a outros estilos jornalísticos é sua estreita relação com o mundo das drogas e o seu uso como “combustível” na geração de pautas, apesar do fato de que, na literatura contemporânea, alguns nomes como o escritor beatnik Jack Kerouak e Charles Bukowski já beberam da fonte alucinógena e relataram isso em seus escritos. Na Irmandade Raoul Duke, a referência ao uso de drogas por parte do jornalista não é uma regra, mas é fator recorrente em seus textos. A menção às drogas na IRD faz-se de modo multidirecional: é grande a variedade de substâncias relatadas nos escritos, assim como são várias as suas formas de combinação. Da mesma forma, os efeitos físicos, sensoriais, psicológicos e comportamentais geram produções textuais semi-míticas (ver epígrafe), fora o fato de constituírem parte considerável do conteúdo das reportagens. Na matéria Close Up Planet..., o repórter submete-se como cobaia de uma experiência psicodélica: 85 Pra falar bem a verdade eu não planejava levar nenhuma droga, não tinha mesmo pensado nisso. Doug, por outro lado, tinha planos de rachar comigo uma cartela de Benflogin, conhecido remédio para dor de garganta que contém cloridrato de benzidamina, a popular ANFETAMINA. Segundo Presunto, que fez alguns semestres de farmácia antes de se aventurar pelo louco mundo do jornalismo, a benzidamina e o álcool administrados concomitantemente produzem resultados bastante medonhos, como os RAIOZINHOS e o efeito BRUCE LEE, por exemplo. Conheceríamos os seus significados mais tarde. [...] Algumas horas mais tarde achei que o combo ceva-maconha-vinho-anfetamina não tinha surtido efeito algum. Todos dormiam e eu lutava contra uma inoportuna insônia e um gosto meio esquisito na boca. Resolvi dar uma mijada. Um tanto bêbado, me equilibrei até o fundo do ônibus, acendi a luz do banheiro e foi aí que bateu: TÓIM! - EFEITO BRUCE LEE. É o que acontece quando os teus movimentos parecem deixar impressões efêmeras no ar: tu pode VER o movimento - vários braços que vão se formando e desaparecendo, representando o momento anterior da sua trajetória, como a famosa imagem de Bruce Lee antes de um duelo. E aí pra todo lado que tu olha as coisas estão assim: o mundo é Bruce Lee. Doug já tinha contado pro pessoal da Unisinos o que havíamos tomado e logo descobrimos que alguns deles também compartilhavam da mesma alucinação. Gritavam "ráio-zí-nhôs, rá-io-zí-nhôs", referindo-se a um efeito característico do começo da viagem, quando raios de luz parecem cruzar a retina toda vez que se movimenta o globo ocular. Algumas reportagens, por sua vez, são exclusivamente dedicadas às peripécias lisérgicas. Um exemplo significativo é a matéria Raoul Duke Explica: Cogumelos Alucinógenos [ver anexo 6], que serve como um “guia” para o devido uso dos fungos psicodélicos, desde sua correta identificação, até dicas para uma adequada assimilação da droga pelo organismo. O repórter salienta ainda que o cogumelo mais indicado para o referido propósito é o “Stropharia cubensis que cresce nas bostas de vaca do Brasil”, por isso: Não tome cogumelos sem ter certeza de que são os que está procurando. É evidentemente perigoso. Procurar cogumelos alucinógenos sem nunca ter visto um é besteira, mas pelos mesmos motivos de antes, aqui vão algumas dicas de como reconhecer o bicho. Crescem sobre as bostas de vaca, após uma chuva ou garoa. Os mais altos tem cerca de 10cm, com uma cabeça circular de até 5cm de diâmetro, de coloração branco-dourada. Às vezes, há um anel preto no caule branco. A consistência é carnosa e ele se despedaça com facilidade. Mais importante: ao entrar em contato com o ar, a parte interna do caule fica roxo-azulada. Abra o caule, para verificar, e espere alguns minutos. [...] Como em geral são adolescentes 86 imbecis que usam drogas diferentes de cocaína ou maconha, é aconselhável que tomem os cogumelos ao menos acompanhados de algum amigo sóbrio e, se possível, em casa, numa sala confortável, sem decoração agressiva, com música decente e calma tocando. [...] Há várias formas de ingestão. A mais popular é a infusão. Basta ferver os cogumelos durante alguns minutos, podendo-se acrescentar vinho, cachaça, sucos, ervas, qualquer coisa. O gosto é tenebroso, em compensação bate mais rápido. Minha forma preferida é lavar e comê-los dentro de um pão, cabeças e caule. Dá menos trabalho, a onda chega de forma mais suave, dura mais e é mais forte. Café ou cerveja ajudam a tirar o gosto ruim da boca. A dose, no caso de ingestão dos cogumelos inteiros, é de 4 ou 5 grandes por pessoa. Tenha em mente que a viagem é muito potente, e o risco de bad trip é alto. Quanto a riscos físicos, além dos possíveis acidentes (atropelamentos, quedas, etc.), há a possibilidade de um surto psicótico. Algumas pessoas jamais retornam dele. (adaptação minha) “Cardoso” lembra que Hunter Thompson “dizia que demorou muito tempo pra se dar conta de que sem drogas dá pra ficar muito mais alterado do que com elas”. Portanto, não é somente a partir das drogas que os gonzo-jornalistas incorporam uma visão alucinada da realidade. Toda experiência pode ser encarada como um momento psicodélico, opiáceo. Na matéria Capitão, tu me vê um Natu aí, por gentileza? uma partida de futebol é o fator alterador do estado de consciência. E, para “perceber com exatidão” os efeitos de tal situação sobre a torcida, o repórter prefere acompanhar a partida “livre de aditivos”. Notase, entretanto, que o fato de não estar sob o efeito de drogas (ou afirmá-lo) não impede o autor de apreender o caráter insano da circunstância. Faltam ainda alguns minutos para o começo do jogo quando percebo, um tanto irritado, que o odor produzido pela minha saburra lingual empesteia alguns pares de centímetros cúbicos em volta da minha cabeça. Não guardei muitas lembranças da última vez que estive em um estádio de futebol, edificação igualmente gigantesca e bizarra que abriga uma das maiores quantidades de viciados e fanáticos legalmente autorizados a cometerem as suas barbaridades. Sobre o futebol foi escrito o mesmo que sobre a religião: é o ópio das massas. Como o ópio por essas paragens permanece ilegal e de acesso praticamente impossível (a não ser em suas nojentas versões modernosas remixadas pela química), talvez o futebol seja o último fricote de massa capaz de produzir os efeitos estupefacientes desejados pelo grosso contingente que preenche boa parte das gerais e das cadeiras no Estádio Olímpico, lar do glorioso Grêmio Futebol Porto Alegrense. 87 A jogatina também já foi relatada numa reportagem da IRD como um experimento narcótico. A matéria em questão é Nem John Wayne matou tanto índio na Cidade Baixa, onde “Cardoso” e seu procurador aventuram-se numa casa de bingo. O repórter considera o jogo como causador de uma espécie de vício químico da mesma natureza que o vício pelas drogas: Meu procurador já havia encontrado uma mesa vaga e estava sentado quando finalmente o encontrei. "Caralho, olha só a cara dessas pessoas" ele disse "Um bando de drogaditos". De fato. As feições de um jogador inveterado diferem pouco das de um viciado em drogas. Aqueles filtetes de suor silencioso, os olhos ricocheteando, o metodismo neurótico e a concentração canina diferenciam os veteranos dos novatos. Por alguns segundos me senti num daqueles prédios abandonados onde os viciados em crack se reunem pra fumar em filmes do Spike Lee. [...] Me sinto atento como nunca, mente totalmente vazia, sintonizada apenas nas luzes e em um único tom de voz. O silêncio entre os anúncios numéricos é imperceptível. Os instantes são picotados e embaralhados novamente numa anfetamínica linha de tempo. Cada número riscado no cartão causa um prazer quase masoquista. Já na matéria Gramado 100% Free... é ao chocolate que é atribuída a condição de droga, pelo comportamento compulsivo que provoca em seus degustadores. Nesse caso, além da questão da adicção, outro atributo sensorial é conferido ao chocolate: uma implícita apologia sensual. Os chocolates estavam num pequeno balaio de vime e cada vez que eu metia a mão ali, metia cinco envelopes daqueles no bolso - é de se notar que para essas coisas eu sou ambidestro. Assim que constituí um pequeno estoque, me dediquei à degustação. Nessas horas que a gente percebe que o chocolate é uma droga, e o sujeito ao consegui-lo tem momentos de consumo compulsivo. Principalmente se for desses chocolates de envelope. Eles são fininhos, do formato de uma hóstia, passam quase desapercebidos pela boca, e aí é que está o perigo. Há também uma explicação semiótica, um certo apelo erótico nestes chocolates que reside principalmente na forma como estes se assemelham a certos atributos das camisinhas (ou seria o inverso?). Ambos possuem uma embalagem de envelope quadrada que deve ser rasgada para ser aberta. Os dois também utilizam-se de sabores similares, quando não idênticos, em seus produtos como morango, abacaxi, laranja, menta etc., para torná-lo mais atrativo. E, por último, ambos remetem a um pecado capital (a gula ou a luxúria) ao mesmo tempo que se eximem dele: o chocolate, apesar de remeter à gula, 88 vem embalado numa porção tão ínfima que é considerado produto de degustação. O mesmo acontece com a camisinha, ela é efêmera, descartável, serve para uma transa só - e quem se satisfaz com uma foda só? - Por outro lado, uma transa apenas também não implica compromisso, assim como a amostra do doce não implica na chocolatria. Na ausência de drogas mais fortes, os gonzo-jornalistas fazem das iguarias gastronômicas sua fonte de alucinação. Nesse caso, o narcômano repórter embrenha-se no oleoso conteúdo de um sanduíche para receber uma alta dose de estimulação sensorial, pois, no gonzo-jornalismo, o estado hígido de consciência é, a priori, considerado negativo. A tônica nas matérias gonzo é, portanto, mergulhar o mais fundo possível em qualquer tipo de experimentação sensitiva: Depois de uma longa espera, eis que chega o esperado xis-coração. Quando o magricelo olhou pra mim lá da cantina e começou a caminhar na minha direção eu não consegui identificar a extravagante massa escura como sendo um xis-coração. Pensei que - sei lá - era uma torta pra alguma outra mesa. Um empadão. Eu não sabia na hora, mas estava prestes a vivenciar a experiência gastronômica mais intensa de toda minha vida. Muito a contra-gosto quebrei a casca de pão torrado com o garfo, cortei um pedaço daquela monstruosidade e experimentei. Putz, e não é que é bom o negócio? Meu procurador me olhava com uma certa temeridade, acompanhando cada nova garfada com medo nos olhos, o que tornou a experiência ainda mais desconfortável. Certamente ele não acreditava que eu seria capaz de ir até o fim com aquele monumento à azia. Não tenho certeza, mas acredito que a iguaria vinha com nada menos que DOIS ovos e pelo menos umas cinqüenta gramas de coração e miúdos. O resto do conteúdo que boiava em uma grossa camada de maionese ficou totalmente na subjetividade. Na verdade, foi melhor assim. Theodore Roszak considera a experiência psicodélica como uma forma de “acesso controlado a formas transnormais de consciência” (ROSZAK, 1972: 164). No jornalismo gonzo, essa forma de consciência visa alertar de modo brusco ao leitor que toda forma de percepção da realidade é alienada e que a droga apenas amplifica essa percepção. As drogas alucinógenas consistiriam numa “bomba psíquica de profundidade para abrir caminhos de percepção enormemente congestionados pelos arraigados hábitos cerebrais da ciência ocidental” (idem: ibid). O jornalismo alucinado da Irmandade Raoul Duke faz refletir acerca da fraqueza de nossos sentidos, que podem ser manipulados sob o efeito de uma 89 substância química, ou mesmo de uma situação extrema. É sabido, entretanto, que a apuração jornalística inevitavelmente passa por intermédio dos atributos sensoriais do repórter. Então, por que acreditar na “verdade” do jornalismo? O gonzo não se quer fazer verdadeiro. Ao exibir seus hiperbólicos atributos, o Jornalismo Gonzo implicitamente afirma que outras práticas (inclusive o jornalismo) são perpassadas pelos mesmos “defeitos”, em maior ou menor grau. A experiência psicodélica suscita uma questão intelectual importante sobre epistemologia: até que ponto nossos sentidos são uma forma razoável de conhecer o mundo? Tudo o que eu vi sob efeito da psilocibina EXISTIA. Quem poderia negar? Eu FALEI com o mar, eu VI a criação e a evolução. Se uma substância qualquer pode confundir assim os sentidos, por que uma variação normal em nosso cérebro não poderia nos fazer ver coisas que não existem o tempo inteiro? Pode-se confiar realmente na realidade que vemos? O equilíbrio químico do cérebro é, afinal, delicado. Não seria tudo um grande embuste?31 31 Em Raoul Duke Explica: Cogumelos Alucinógenos, por Marcelo Träsel. 90 4. – Conclusão A multiplicidade de vozes e tipos de discursos presentes no seio da Irmandade Raoul Duke impossibilita-nos de delimitar uma cercania que compreenda a essência de todas as suas manifestações. É, portanto, imprescindível ter a noção de que o Jornalismo Gonzo praticado por ela não constitui um gênero, quer seja literário ou jornalístico, com limites estabelecidos ou normas que de alguma forma rejam sua enunciação, visto que a própria concepção de gênero revela-se anacrônica quando situada dentro de um referencial teórico calcado no pensamento pós-moderno. Os escritos de Hunter Thompson são a fonte primeira de inspiração nos textos da IRD, mas, dependendo do autor, pode ocorrer um distanciamento maior ou menor em relação ao estilo concebido por Thompson. Esse fator não desvirtua de modo algum o caráter fundamental do gonzo-jornalismo, já que este permite, ou melhor, pressupõe, a inoculação de elementos da constituição individual do repórter. É neste aspecto que reside o heterogêneo manancial de brados do gonzo. Como ele é condicionado pela subjetividade, pode assumir camaleonicamente diversas formas, dependendo do contexto de sua apuração, dos recursos lingüísticos à disposição do autor e do universo idiossincrático da mente do repórter. O gonzo poderia ser denominado jornalismo pelo seu aspecto pragmático, pelo fato de propor a si mesmo como jornalismo. Por outro lado, o gonzo também poderia ser situado na esfera da literatura pelo uso que faz da linguagem ao assumidamente colocá-la numa esfera exterior à concretude do mundo. No entanto, o gonzo não é nenhum dois, nem literatura nem jornalismo. É, antes de tudo, discurso. Um discurso permeado por subsídios tanto da prática jornalística, como do fazer literário. Gonzo é discurso, palavra em curso, foz em delta, que recebe águas de inúmeras ramificações, embocadura de torrentes diversas de produção textual. Navegar pelas correntes do gonzo significa poder sair do lago de águas paradas do jornalismo e adentrar num mar de incertezas, revolto, vivo. Desvencilhar-se da âncora imposta pela objetividade jornalística é o principal fator de autonomia do gonzo-jornalismo, que procura, não alcançar a realidade, mas mostrar que esta é uma utopia e, como meta utópica, deve ser perseguida, mas não pelos métodos convencionais, fundados sobre bases 91 de cunho positivista e extemporâneo. A partir do gonzo, a “realidade” é formada de microrealidades, pequenos mundos, vozes fragmentadas, que, juntas, dão idéia, mas apenas infimamente, de sua imensidão. A figura do repórter como foco principal do relato gonzo tem o intuito de desmistificar a construção do texto jornalístico, que é perpassado por mediação, hierarquização, omissão. O jornalista, portanto, é um arquiteto de mundos, que atua como um demiurgo, “organizando” o caos do mundo e colocando-o numa disposição inteligível. O jornalista gonzo procura, com sua escrita muitas vezes inverossímil, gerar no leitor uma postura de descrença, não somente para com seus textos, mas para toda e qualquer espécie de escritos, principalmente as que se colocam como reprodutoras fidedignas do real. O gonzo corrobora com a idéia de que “ver a vida verdadeiramente é vê-la nem com certeza nem inteira” (EAGLETON, 1993: 135). Num mundo onde a irrealidade jornalística tipifica um crime, o gonzo é colocado na condição de bode expiatório: leva a culpa em nome de todas as outras formas discursivas, também incapazes de traduzir o real. Entretanto, a penitência do gonzo não é silenciosa. É, ao contrário, delatora, pois denuncia os falibilismos do jornalismo tradicional e de qualquer enunciação mediada pela linguagem. Desta forma, todos – o Jornalismo Gonzo, o jornalismo tradicional e os outros tipos de discursos – são presos atrás das grades da irrealidade e passam a enxergar o mundo através da janela da alucinação. 92 5. - Bibliografia ARIAS, Maria José Ragué. Os Movimentos Pop, trad. C.V. e Ireneu Garcia, Rio de Janeiro, Salvat Editora do Brasil, 1979. BAKHTIN, Mikhail Mikhailovitch. Marxismo e filosofia da linguagem, 8ª ed., São Paulo, Hucitec, 1997. BARTHES, Roland. Ensaios Críticos, São Paulo, Edições 70, 1977. BARTHES, Roland. Crítica e Verdade, São Paulo, Perspectiva, 1982. BAUDELAIRE, Charles. O Pintor da Vida Moderna, trad. Teresa Cruz, Lisboa, Veja, 1993. BRAIT, Beth. Ironia em Perspectiva Polifônica, Campinas, Unicamp, 1996. CARROL, E. Jean. Hunter, The Strange and savage Life of Hunter S. Thompson, Nova Iorque, Dutton, 1993. CASTAGNINO, Raul H. 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ANEXOS Índice: Anexo 1 Madureira, como ele gosta de ser chamado Anexo 2 Inferno Sangrento em São Leopoldo Anexo 3 Gramado 100% Free ou Tirando Proveito de um Assédio Homossexual Anexo 4 FGTS: As Letras do Demônio Anexo 5 Et de Vagina Anexo 6 Raoul Duke Explica: Cogumelos Alucinógenos ANEXO 1 MADUREIRA, COMO ELE GOSTA DE SER CHAMADO por Jajá com ilustrações de Nelson Azevedo e Luiz Monty Pellizzari A redação da Arca recebeu a visita de um dos melhores trafí da city. Mió per que o bagulho quase sempre é da massa e per que o preço é camarada. Madureira, como ele gosta de ser chamado, conta que o baixo preço se deve per que ele mesmo é quem vai buscar na república Guarany. E, per causa disso, ele acaba repassando diretamente aos clientes sedentos por uma boa causa. Madureira, como ele gosta de ser chamado, explica que o preço é baixo não só per causa da ausência de intermediários, pero que sin és un hombre ousado. De acordo com que nos conta, Madureira, como ele gosta de ser chamado, não molha a mão dos porcos que patrilham a up town. Ele parla que recebe ameaças dos porcos e que até seu fone já foi grampeado. Pero que los riscos que el hombre corre são maiores, arriégua! Seus concorrentes no milionário world of the traffic têm inveja de Madureira per que ele acaba lucrando muito. Óbzio, né: é a massa, não tem intermediários, não tem choro pros porco e o preço é super camarada. Mas a inveja tem seu preço también: Madureira, como ele gosta de ser chamado, lembra que um carro, com seis cabeça dentro, ficou rodeando ao redor de sua baia uma madrugada inteira. Deu um pavor no loco, tanto é que ele pegou os cria e sumiu per uno bom tempo: "achei que ia durmir de sapato e palitó! Sabe, assim de pezinho juntinho um com o outro, fera?" Madureira, como ele gosta de ser chamado, conta histórias incríveis da república Guarany: "Jajá, imagina essas imensas lavouras de mandioca. Sabe, eu tive numa lavoura lá no Guarany, mas era de baura. Cara, os pés eram de dois metros de altura. Eu fiquei perdido naquela mata verdinha e cheirosa. 30 conto o quilo, imagina Jajá, imagina só." Seus olhos brilham quando lembra da enorme plantação de baura. Pergunto como foi trazer a bagulhada até São Pedro e ele me responde toda a falcatrua: "Bah, da fazenda até a divisa de Guarany com São Pedro passei por uns dez postos policiais guaranis. Em cada posto eu deixava uns 50 conto. Eles nem revistavam o caminhão." Na real, a miséria da república Guarany é tão grande que o achaque diário corresponde a muito mais do que ganha um policial por mês. "Não tem como não se corromper", afirma Madureira, como ele gosta de ser chamado. - MAS BAH! Fomos atrás de pessoas que consumiram a massa do Madureira. Titichong é um jovem que usou a dita cuja: "Ô meu, enrolei o lance numa borracha, tá loco, é o bicho, mesmo, hein! É o melhor béq de São Pedro", sorri Titichong de zoio vermeio. Outro jovem, o Sem Malandragem, relata como ficou após dar uns tapa no veneno: "Caramba, cremei uma baga e fui pra baia. Aí comecei a dançar, mas bem depois é que eu me dei conta que o som tava desligado." A massinha acabou recebendo vários apelidos, tipo: genérico, semi skank, meu querido, primo, da arca, american airlines, mas bah! ANEXO 2 INFERNO SANGRENTO EM SÃO LEOPOLDO / QUANTO VALE UM ATTORNEY / KILL ALL HIPPIES / VIA EXPRESSA ATÉ O TEU CRÂNIO por Colaborador 001 com ilustrações de Nelson Azevedo e Luiz Monty Pellizzari ATENÇÃO: Este texto é uma colaboração. O seu autor não faz parte da IRD. Se você também quer colaborar, leia antes a nossa Carta de Princípios "Para algumas pessoas, a idéia de que a vida é desprovida de sentido é simplesmente apavorante." -- David Lynch Na realidade, é bastante simples: de algum modo, eu sabia que, se não vomitasse, eu não tomaria um tiro, e se não tomasse um tiro, tudo ficaria bem. O Cardoso tinha me dito "fecho até dia 26/04 a próxima edição". O prazo me acuava feito um maníaco de pau duro num beco, e minha verba de trabalho estava reduzida a 0r$ e 25centavos. Na noite anterior, tinha gasto preciosos dez reais num malfadado show da Walverdes. Problemas detectáveis: minha attorney era sóbria. Péssima, PÉSSIMA estratégia. Tentei uma abordagem circundante, tentando iniciar um rápido e pouco gradual processo de entorpecimento em casa mesmo, à base de vodka Walesa (Wahlehsahhh), embora fontes seguras tenham me informado que essa marca não chegue nem aos pés do joelhaço que é a famigerada vodka Popokelvis. A coisa não frutificou muito. Ela (minha attorney) meio que vampirizava meu espírito-de-porco latente repondo isso com bondade - e sou grato a ela por isso, pois do contrário não sei o que poderia ter sido de mim. De qualquer forma, nunca, NUNCA considere a possibilidade de transformar sua namorada na sua attorney, com a possível exceção de ela ter sido roadie dos Cascaveletes nos anos 80. Via de regra, sua namorada é sua namorada, e SOMENTE sua namorada, mesmo que tu a ame até o último fio de cabelo e ainda assim ela insista em ser uma COMUNISTA como a minha. Ok. Após duas rodadas de ceva (desprezo ceva -- mas tomei --, e aquilo desceu feito soda), o show transcorreu legal (comigo já bem zureta), mas constatei na manhã seguinte que nada do que havia ocorrido lá se assemelhava, ainda que vagamente, a uma pauta gonzostyle (ou seja, nada que explodisse na sua cara, causasse fagulhas, fosse considerado contravenção, ou mesmo te obrigasse a bater em retirada sem pagar a conta). O lugar estava infestado com uma deplorável fauna de universitários hippies ornamentais e nerds (lembra do termo?) além de qualquer redenção. Havia um número considerável de gente que havia saído de casa NAQUELA NOITE unicamente preocupada em mostrar suas camisetas (vermelhas) com SIGLAS do EZLN e do MST para deixar bem claro que, a) sim, tinham ido ao Fórum Social Mundial e, b) eram politizados pra caralho, embora muito provavelmente não tivessem idéia do que significa OUTRAS siglas, como WTO, NAFTA e até mesmo CPMF. Tinha um velhusco com cara de cotovelo remanescente do verão do amor, completamente trincado e usando uma jaqueta de couro, que, aposto, tinha os bolsos cheios de artesanato de durepóxi aguardando uma oportunidade, SÓ UMA. Ninguém vomitou sangue no palco. Ninguém deu um soco na lata homofóbica do segurança. Ninguém fumou um baseado e acidentalmente pôs fogo no bar, iniciando um tumulto que só encontraria paralelo com a invasão de Roma pelos bárbaros iniciando a Baixa Idade Média. E esse, meus caros, é justamente o problema com o povinho indie: PUNHETEIROS NATOS. (Procedimento rápido e à prova de falhas para se detectar um indivíduo ‘indie’: 1) Ao mencionar a expressão ‘cultura pop’, um breve brilho vai trespassar os olhos habitualmente opacos do sujeito; 2) Se for homem, usa alguma peça de pelugem facial remanescente do senso estético vigente no princípio da década passada (cavanhaque, barbicha/goatee ou barba aparada em formatos que parecem um acidente geográfico), se for mulher, usa um penteado que se assemelha um bocado a dois pretzels mais ou menos mastigados; 3) Roupas de brechó que parecem ter sido usadas por um interno de manicômio judiciário; 4) Camiseta do Weezer (opção: com ou sem camisa de flanela sobreposta); 5) Encontram-se perpetuamente em uma espiral descendente de piedade e auto-repulsa loser arduamente ensaiada frente ao espelho; 6) De maneira geral, apoiam as drogas e sua subseqüente descriminalização - basicamente, porque isso é razoável e descolado - mas, se tu oferecer um baseado a um espécime 100% LEGÍTIMO de indie, é provável que ele comece a chorar e em seguida chame a Brigada; 7) Apresentam uma incômoda incapacidade de distinguir ‘indie’ de ‘alt’ (indie deriva de INDEPENDENTE, obviamente, enquanto que o que realmente querem incutir com essa palavra é ALTERNATIVO, o sujeito que ostenta uma aura excêntrica e que por isso tem o direito de se sentir excluído e de emitir comentários pseudo-irônicos, mas na verdade, de INDEPENDENTE eles não possuem PORRA nenhuma -- alguns indies de fato ainda dependem da mãe para se limpar quando vão ao banheiro); 8) Parecem râmsters, só que com piercings; 9) De maneira geral, se cagam de medo de skatistas e b-boys; 10) Não são vistos à luz do dia, não por estarem fazendo algo digno de nota, como uma festa psicotrópica caseira com a mulherada, ou mesmo escrevendo um livro, mas, essencialmente, porque DORMEM a maior parte do dia.) Isto posto, um leve desespero se abateu sobre minha espúria alma. Despenquei na cama por volta das três da matina, acordei ao meio-dia com a regulamentar cara engessada, a audição levemente prejudicada e disposto a testar o famoso ‘Capítulo 2’ da abordagem gonzojornalística: MUNIDO DE ALGUMA SUBSTÂNCIA ESTUPEFACIANTE, CRIE VOCÊ MESMO SUA PAUTA. Liguei para meu attorney oficial, o homem conhecido como Mr. Bigas. Bigas mede 1m65, tem a aparência de um porto-riquenho desbotado (imagine uma bizarra interseção entre Harvey Keitel e o Latino) e as boas intenções de um servo de Buda -- mas, estranhamente, desvios de conduta pavorosos se manifestam na superfície de sua alma mais rápido do que tu é capaz de dizer Francisco-de-Assis-Pereira. Bigas cultiva hobbies que beiram a bizarria completa, como fazer longas chamadas telefônicas interestaduais em meio à noite (RSES, por exemplo) e iniciar brigas de canivete na Av. Independência numa sexta ao entardecer. Bigas nunca botou um beck na boca, mas, em compensação vai à missa TODO DOMINGO, e nas poucas ocasiões em que bebe, torna-se uma mala tão pesada e execrável que chega ao ponto de ameaçar mijar no banco traseiro do teu carro. Bigas diz já ter me livrado a cara em uma ou duas ocasiões das quais particularmente não me lembro -- estava bêbado. Quanto perguntei a ele que situações foram essas, ele disse "Esquece, nem vale a pena falar". Pensando bem, foi justamente numa dessas ocasiões que todo meu dinheiro sumiu. De qualquer forma, o melhor de tudo é que, se Bigas puder ser classificado como indie, uma preá também pode, e isso é o que importa. Estávamos caminhando em direção ao centro de São Leopoldo no domingo de feriado. Explicava a ele o que teríamos de fazer, quando passamos por dois vira-latas trepando, e falei: "Faz muito tempo que não faço isso." "O quê? Trepar?", perguntou. "Não, fuder um cachorro." Expliquei a Bigas, em linhas gerais, o que teríamos de fazer (ressaltando o trecho concernente à quantidade industrial de álcool que teríamos de ingerir - Bigas é caretaço), e ele disse: "Sem problemas." De qualquer forma, fomos até o caixa eletrônico (sem merchandising pra esses putos), onde saquei dez contos e me aprofundei na zona negativa. O Mack estava fechado (1,50r$ a garrafa de Schincariol; depois que a gente se acostuma com as pulgas, até que vale a pena), o que nos conduziu a um bar-restaurante freqüentado por uns tiozinhos bem suspeitos (dica: não vá ao banheiro se não quiser ser currado e enforcado com os próprios cadarços). Tanto eu como Bigas estávamos com a pança cheia de carne vermelha, e a ceva simplesmente não estava desempenhando seu papel adequadamente. O dono do bar começou a ajeitar uns pacotes de salgadinho na estante, e o barulho dos saquinhos era um CRIQUE FLAPT FLOPT CRIQUE CRIQUE do caralho, não era possível ouvir o que Bigas me contava sobre sua balada na noite anterior, e eu estava curioso, e o cara lá CRIQUE FLAPT FLOPT CRIQUE CRIQUE e comecei a olhar pra ele. Era um gordo, um desses gordos que usam pochete. Quanto à pochete, podemos aí atribuir uma certa culpa ao Alexandre Frota, que faz aquilo parecer TÃO DESCOLADO. E, em geral, é um gordo. O cara é dono de três ou quatro salas comerciais na Independência, mas isso não dá ao sujeito o direito de usar uma POCHETE, ser GORDO e fazer CRIQUE FLAPT FLOPT CRIQUE CRIQUE -- enquanto Bigas, que tem um trampo noturno deplorável e sua seu suor portoriquenho miserável por uma grande corporação cujo ponto culminante é um sujeito que fuma charuto, joga golf e vendeu a alma ao demônio -- enquanto Bigas tentava me explicar como tinha conseguido terminar a noite na seca tendo basicamente coberto o circuito Portão-Bom Princípio de putaria por completo. Continuei olhando pro cara. Até que uma hora ele simplesmente se deu conta e parou de pé a me olhar de volta. Lançou um olhar rápido e telepático para os dois atendentes (caras recrutados através dos classificados do Presídio Municipal - "Ex-pederasta que embalsamou a própria avó para se masturbar procura emprego de garçom, turno integral, ótimos antecedentes"), como se dissesse "Certo. Certo. Parece que temos dois merda (sic) por aqui." Bigas ainda estava em seu estado de vigília benevolente - a distinção de quem nasceu nas quebradas. Tomamos mais duas ou três, mesmo com os olhares perniciosos daqueles putos chamuscando os pêlos do meu nariz. De algum modo, as coisas não tomavam um rumo disfuncional o suficiente. Confesso que achei que seria bem mais fácil. Concluímos que a ceva seria inútil - era provável que o dinheiro acabasse antes de sentirmos a mais leve vertigem. E foi isso, basicamente. Não conseguimos incitar qualquer rudimento de desordem no local, não havia nada que pudesse ser feito, porque nada mudaria. São Leopoldo é entropia. É um apêndice de Porto Alegre. É mais ou menos um parque de diversões, só que imagine um parque de diversões onde substituíram os brinquedos por traficantes, ladrões de bicicleta e travestis, e o algodão doce e as maçãs-do-amor por maconha e fluído de isqueiro, e as crianças por cachorros sarnentos. Ah, e os palhaços por hippies que bebem vinho de caixinha. De algum modo, tudo gravita em torno de Poa -- e Novo Hamburgo, a cidade co-irmã, é um lixo ainda mais escroto, porque lá as pessoas de fato TÊM um certo poder aquisitivo e isso não resulta em nada melhor do que São Leopoldo. Passamos no McDonald’s, que muito provavelmente é o lugar mais deprimente e recheado de maldade ectoplasmática da terra num domingo à tarde. Tinha uma gorda sentada na parte externa da lanchonete, me olhando de forma levemente insinuante (Anotação mental 1: NEM FUDENDO). O McDonald’s é o lugar mais propício da terra para se ter um impulso suicida inicial AUTÊNTICO. Bigas, no entanto, é um fdp frio e vicioso que simplesmente parece imune a esse tipo de consideração (Anotação mental 2: "O capitalismo é, basicamente, um Teletubbie fazendo sexo anal com Ronnie McDonald, os dois fumando crack.") O sol parecia estar escorrendo pelo céu em direção à linha do horizonte, então foi quando finalmente me dei conta de que, EI!, aquela ceva tinha batido de um jeito estranho. Comecei a divagar com Bigas a respeito de nada muito específico. Analisando em retrocesso, vejo que estava falando um pouco alto demais, tipo, quase berrando. Mas que diabos, essa franquia não é mais território neutro ou O QUÊ? CADÊ A FINESSE DESSES PUTOS? Fui ao banheiro, e me observei no espelho: aquela imagem não me passava a impressão de ser socialmente bem aceita, uma vez que meu cabelo no momento se assemelhava bastante a uma dessas bolas de pêlos que volta e meia os gatos vomitam. Voltei pra mesa, e, aos poucos, me concientizei de que não conseguia mais meter as batatas fritas com catchup na boca sem me lambuzar todo. Bigas persistia inalterado -- a distinção de quem se criou nas quebradas. O relógio digital da João Correia acusava 17:53. Considerei a possibilidade de ir à missa, aderindo ao hábito bizarro de Bigas de ter sua conduta social moldada por um sacerdote hipócrita que fatura a escriturária da paróquia. Descartei a hipótese sem nem ao menos pestanejar, porque, particularmente, preferiria ser devorado vivo por uma colônia de saúvas. Bigas se despediu solenemente, e cheguei à conclusão que o que os leopoldenses sentem em relação a Porto Alegre deve ser mais ou menos o que os escoceses sentem em relação à Inglaterra (Anotação Mental 3: Tatuar no braço "SCOTTISH MOTHERFUCKER HIGH ON DOPE"). Senti falta da minha namorada - fui até a casa dela e desejei um bom dia de trabalho e disse mais uma vez que a amava, porque isso é importante e é real - de fato, quero que a ela meu amor pareça tão sutil quanto um piano despencando calçada abaixo, quero que seja o suficiente para que ela sorria sem se preocupar -- e sei que às vezes minha conduta paranóide dá ampla margem a dúvidas. Aí passei na casa de um velho amigo cooptado pela namorada. Tinha esperanças de conseguir uma ponta de beck que fosse, para engordar um pouco essa pauta freak. Toquei a campainha e nada. Acontece que a porta da casa do cara fica perpetuamente destrancada, só com uma grade REALMENTE bem chaveada na frente, e dei um empurrãozinho e uma espiada. Penumbra. Só isso. Olhei aquilo, toda aquela escuridão e desolação dominical, e vi que aquilo tudo estava adquirindo um significado metafórico DEMAIS, e concluí que precisava de um trago, o que me impeliu a voltar pra casa fazendo as curvas em duas rodas. Já em casa, me aprontei, ensaiando um aceno distante para o meu cérebro. Abri a geladeira e havia ainda meia garrafa de vodca e meia garrafa de Coca. Rumo à ilha do Dr. Fidel. Era o momento de descer e metralhar as teclas. Minha gata siamesa parecia estar agindo de maneira deliberadamente irrascível comigo, e perdi as contas do número de vezes que me atacou enquanto digitava o começo desse texto, até que uma hora ela me arranhou o braço todo e finalmente atirei ela numa pilha de caixas vazias. Percebi que na verdade havia trazido para casa resquícios dos eflúvios McEctoplasmáticosFelizes. Magia urbana -- essas coisas de gibi. Comecei a misturar em proporções claramente equivocadas a Coca e a vodka. À medida que o texto ia surgindo, eu ia gostando mais da coisa. Coloquei pra tocar um pouco de jazz e tentei me concentrar um pouco mais. As freqüências do baixo de Charles Mingus foderam com a minha percepção por completo. Começou a se tornar virtualmente impossível digitar uma palavra que não contivesse ao menos dois erros estruturais graves. Minha cabeça oscilava sobre o teclado como se eu estivesse tentando marcar o ritmo sincopado da música. O resultado foi um bloco de texto ininteligível que parecia ter sido escrito por um débil mental chapado de benzina e que removi desta matéria em consideração às pessoas de compleição frágil que possam vir a lê-la. Em algum ponto, me deitei no sofá e fiquei olhando para o teto e decidi que, embora nunca fosse revelar isso em público (ops), iria votar naquele cara que não tem todos os dedos. Aí ouvi uma algazarra incrível de sirenes e motores roncando alto através de toda a avenida (No outro dia, o jornal entregou a mesma nota batida de sempre: "Empresário rendido ao entrar em casa por homens armados ..."). Foi aí que eu saquei que tinha que ter alguma coisa acontecendo, ainda que de modo subjacente, em São Leopoldo. De modo que meti a garrafa de vodka por baixo do casaco e saí pela porta da garagem em direção a nenhum lugar muito específico, João Correia acima. Fui andando, e me sentia atroz. O mundo parecia não ser mais do que uma bolha de glicerina fácil de ser compreendida, mesmo à 01:17 da manhã. Quando passei em frente ao Fórum, cumprimentei o brigadiano que passa o turno da noite por ali desde que jogaram uma bomba incendiária no térreo (Espírito de Seattle, BOTA PRA FUDER!). "Aeh", falei. Ficou me olhando, provavelmente pensando alguma palavra de duas sílabas (‘viado’, todavia, tem três - pode contar). Quando estava mais ou menos na altura do prédio da Justiça do Trabalho (uma vianda oxidada gigante), saquei que, conforme eu andava, a garrafa ia pra frente e para trás (o bocal da garrafa apontava para os meus bagos), causando uma saliência no meu peito que poderia ser tanto provocada por uma garrafa de vodca quanto por uma doze cano cerrado enfiada no cinto. Alguns taxistas começaram a rir de alguma coisa engraçada que me escapou por completo. Passou um Gol da Brigada, devagarinho, CHEIO de meganhas. Me lembrei de Thomas Engel, o tenista que tomou um tiro no lombo e se fudeu sem nem ao menos entender o por quê dos brigadiano fazerem aquilo. Mas a porcada não tomou conhecimento de mim -- basicamente porque eu não aparentava ter dinheiro pelos bolsos e porque aquilo não era mais hora de se prender alguém, onde já se viu, porra? De modo que cheguei à casa do meu camarada novamente, constatando que AGORA SIM eu precisava de um beck. Quem me recebeu foi o irmão dele, um ex-hippie cujos hábitos fazem Bigas parecer uma irmã carmelita, e cujo hobbie atual envolve cristais de lítio. Não me lembro muito bem do que aconteceu a partir daí. Tinha uma cama no chão da sala, e me lembro dele ter dito que precisava trampar no outro dia. Eu estava a ponto de me deitar pela calçada mesmo. "O Tiago não tá por aí?", perguntei. " Não, foi pra Candiota. Vou confiar em ti, Diego", ele disse. "Mira reto. Vai pra CASA, vai RETO, não fala com NINGUÉM, entendeu?" Fui embora do mesmo jeito que cheguei, e saquei, MAIS OU MENOS, que estava perdido na jogada, e que isso era algo inacreditavelmente BOM. Ao menos tinha arranhado a superfície de... alguma coisa. Flertando com o desastre, pode-se chegar ao cerne do lirismo - ou pelo menos TOMAR NO CU de maneira irreversível. Quando cheguei em frente ao Fórum de novo, a suspeita gentil tinha sumido dos olhos nazistas do brigadiano. Alguém tinha pichado uma frase na fachada do Fórum: ‘O GRUPO VAI VOLTAR’ - muito embora eu possa estar enganado, sabe como é. O que fiz foi sentar pelas escadas e sacar a garrafa para dar um trago. "Tu tá tomando isso PURO, cara?" "Vou tocar isso fora." Derramei a garrafa toda do lado de um orelhão e toquei a garrafa longe. "Vou pra minha casal", falei. Ia dizer "Vou pra casa, tira", mas, MESMO naquelas condições, percebi que podia ser cagado a pau. (Agora sim: ‘Viado’.) Não tomei um tiro nas costas, nem tampouco fui preso. Já o resto não sei dizer. Acordei e era segunda, e minha mãe me deu o toque de que o rádiorelógio estava tocando haviam quinze minutos. A sensação era indescritível - parecia que, ao manusear uma arma de fogo, algo havia saído pela culatra e destruído minha cara, e uma colônia de abelhas tinha aproveitado o buraco remanescente para se instalar por lá. Minha cabeça parecia cheia de água suja e todo meu torso, do peito ao baixo-ventre, haviam se transformado numa massa disforme. Morgado, consegui pegar o ônibus e capotar no último banco. Acordava de vez em quando, flashes rápidos de placas pela estrada ("VENDE-SE LEITÃO"), aparentemente desconexos. Acordei em Gravataí já com o sol batendo na cara e era HORA DE TRABALHAR. O senso de ultraje em se chegar ao serviço levemente embriagado é um néctar raro, e qualquer ser humano deveria experimentar isso, mas, PUTA MERDA, uma vez, NO MÁXIMO. Pensando bem, acho que dá pra passar sem. É. Dá pra passar sem - tranqüilo. Mas ainda assim eu recomendo. Recomendo agir de maneira idiota por algum tempo - não muito. Vinte anos, no máximo. Como disse Burroughs, é necessário se fazer ver para se tornar invisível. Doía, e não só doía, como DOÍA FEITO O DIABO. Passei a maior parte da manhã dormindo pelos vestiários, e, heroicamente, não vomitei. Aí me ocorreu que QUEM DIABOS POSSIVELMENTE PRECISARIA DE UM LEITÃO? (Anotação Mental Final: a existência é amplamente aleatória. Vou dormir.) ANEXO 3 GRAMADO 100% FREE OU TIRANDO PROVEITO DE UM ASSÉDIO HOMOSSEXUAL - I por Giuseppe Zani e Emiliano Urbim com ilustrações de Nelson Azevedo e Luiz Monty Pellizzari Já faz três anos desde então e, mesmo assim, tenho a sensação de estar recordando acontecimentos de uma noite de excessos. Uma noite que se repete e que demora ainda a acabar. Primeiro vêm os vultos, como um hálito fresco a arder por dentro do nariz, um aroma que se insinua e logo escapa. Parecem destinados ao esquecimento, até que irrompem novamente num turbilhão de imagens. Tenho que anotá-los, papel papel papel... É preciso precaver-se contra novo esquecimento: a. o amigo equatoriano; b. eu mais urbim no tapete vermelho; c. eu mais emiliano mais Lucélia Santos - onde eu não lembro, o que me excita e apavora ao mesmo tempo: esse tipo de lembranças por vezes se deturpam, e não raro eu confundo lembrança de sonhos com fatos reais e, se tratando de um Festival de Cinema, a hipótese da Lucélia pode ser a única parte fantasiosa do relato. Ainda há d. dinheiro. Ou melhor, não houve. Lembro de descer na rodoviária de Gramado contar R$ 30,00 e guardá-los no bolso da calça. Por outro lado, lembro de estar acordando em Porto Alegre com os mesmos trinta intactos, as notas dobradas daquela forma peculiar: com os dois lados mais curtos dobrados em direção ao centro da cédula, e no mesmo bolso. Como explicar então o carpaccio, o ingresso no Palácio dos Festivais, a festa, o vinho... A história está escapando novamente. Costumo manter arquivo das matérias, porém como já faz tempo, provavelmente não tenho texto algum, mas a minha caderneta de notas ainda deve ter lá alguma coisa apontada. Procuro pelo Festival: "Quarta-feira; Festival de Gramado; Mostra de Super-8; Assédio; A Vingança do Dr. Kali Gara; Emiliano; Bonitinha mas Ordinária" e na página ao lado o ingresso para o Festival, assento F-14. Ok, primeira providência: escrever ao Emiliano pedindo explicações. Ele com certeza está envolvido, seja comigo ou com a Lucélia. Agora deixa eu ver o que dá para reconstituir. O motivo deve ser essa Mostra de S-8, parece plausível. E, realmente, me recordo de ter assistido a vários curtas numa projeção minúscula sobre uma tela de 35mm, da sensação de fastio com tantos resultados semelhantes, todos pretensamente experimentais. Um evento até então marginal e paralelo à premiação oficial, mas que teve premiação especial. Tudo isso é bem nítido: Gabriel Moojen anunciando uma parceria da RBS com os superoitistas para exibição na TV, uma certa euforia entre os produtores e, não muito tempo depois, o fim do projeto Cinemeando no Garagem. Título de uma película, inclusive, que ganhou menção honrosa no Festival. Aliás, foram muitas as menções honrosas, porque A Vingança do Dr. Kali Gara arrebanhou praticamente todos os prêmios da categoria. Está lá no site da APTC: melhor filme, júri popular, direção, direção de arte e trilha sonora. Recordo todos comentando acerca da qualidade do filme. Era mudo, o que já driblava o problema que é trabalhar com som em S-8. Também falava-se do clima noir e das referências expressionistas, mas o que me conquistou a simpatia foi a trilha sonora executada ao vivo no piano. Lembro agora que o filme que eu fui ver acabou não passando e que esse filme era da turma do Alex, esse meu amigo equatoriano, que não estava lá, mas apareceu mais tarde, na festa. Na exibição tinha também esse cara que grudou em mim; era de São Paulo, lembro dos prefixos 11 antes dos números de telefone que tinha no cartão, lembro inclusive que ele era Produtor Comercial de um filme do Alain Fresnot. Eu conheci o Alain Fresnot, mas só soube que era ele depois dele ir embora. Foi o produtor quem me disse e eu não tinha por que duvidar, afinal ele tinha o cartão e a credencial colorida. Lembro que havia toda uma pantone de credenciais, restringindo ou liberando acessos e que a dele era verde. Um verde sinaleira, desses que fazem sinal para abrir caminho. Ele queria que eu fosse com ele assistir a uma sessão fechada de uns longas latinos, e eu me senti constrangido em dizer não. O sujeito já estava comigo há mais de duas horas, havia me pagado almoço, cerveja. Lembro de ter mencionado algo sobre acompanhar a exibição dos filmes à noite no Palácio dos Festivais. Eu não tinha a mínima noção de como faria para entrar lá. (Foi a primeira vez que eu notei a sua credencial.) Ele foi quem tomou a iniciativa. Fomos até a organização, eu ainda sem entender nada, foi então que ele pediu um ingresso da cota que ele tinha como cortesia de convidado do evento. Assim, em questão de minutos, ele tinha modificado toda a minha viagem. No entanto, mesmo me sentindo o ingrato por abandonar o amigo, resolvi ficar até o fim da Mostra de S-8. Ainda lembro dele rindo e balançando a cabeça de um lado para o outro na penumbra do cinema, enquanto eu tentava explicar que não se tratava de uma questão estética, mas de solidariedade com amigos meus - cujo filme eu ainda não sabia que não seria exibido - que não estavam lá. Ele me pediu o cartão de novo e anotou o número e o quarto do hotel em que ele estava hospedado e se despediu. Eu não consigo lembrar a cara que ele fez, mesmo por que eu não recordo um traço sequer de seu rosto. Eu ainda lembro do cartão, do carpaccio que ele pagou, da credencial verde, mas essas coisas todas surgem como adereços de uma sombra e eu não entendo como isso pôde se manter na minha cabeça senão pelas conseqüências que desencadeou. Ok, mas penso que me precipitei, e acabei num caminho sem saída. O jeito é voltar no labirinto dos acontecimentos e tomar outra direção: o saguão do centro de eventos do Hotel Serrano, o entroncamento mor da história. Foi ali que eu conheci o produtor paulista, ali aconteceria o coquetel, mas antes de tudo foi ali que encontrei o Furasté. Lembro que achei muita graça ao encontrá-lo no quiosque de informações do Governo do Estado. Afinal, percorrer cerca de 116 quilômetros, para então encontrar um conterrâneo, praticamente um vizinho e além de tudo colega de faculdade. No entanto, agora que as recordações vão se encadeando e tomando sentido, preciso fazer um breve parêntese (a partir de agora só irei me referir ao amigo como Acácio. Não para lhe preservar a identidade, que para isso já é tarde. Mas por que essa é a sua função na história). Sem que eu tivesse lhe contado nada, Acácio percebeu a minha situação. Provavelmente foi a mochila que me denunciou. Ele quis ser solidário e, como já era meio-dia e não havia muitas pessoas no Serrano, abriu a guarda de sobre o café e os chocolates. Os chocolates estavam num pequeno balaio de vime e cada vez que eu metia a mão ali, metia cinco envelopes daqueles no bolso - é de se notar que para essas coisas eu sou ambidestro. Assim que constituí um pequeno estoque, me dediquei à degustação. Nessas horas que a gente percebe que o chocolate é uma droga, e o sujeito ao consegui-lo tem momentos de consumo compulsivo. Principalmente se for desses chocolates de envelope. Eles são fininhos, do formato de uma hóstia, passam quase desapercebidos pela boca, e aí é que está o perigo. Há também uma explicação semiótica, um certo apelo erótico nestes chocolates que reside principalmente na forma como estes se assemelham a certos atributos das camisinhas (ou seria o inverso?). Ambos possuem uma embalagem de envelope quadrada que deve ser rasgada para ser aberta. Os dois também utilizam-se de sabores similares, quando não idênticos, em seus produtos como morango, abacaxi, laranja, menta etc., para torná-lo mais atrativo. E, por último, ambos remetem a um pecado capital (a gula ou a luxúria) ao mesmo tempo que se eximem dele: o chocolate, apesar de remeter à gula, vem embalado numa porção tão ínfima que é considerado produto de degustação. O mesmo acontece com a camisinha, ela é efêmera, descartável, serve para uma transa só - e quem se satisfaz com uma foda só? - Por outro lado, uma transa apenas também não implica compromisso, assim como a amostra do doce não implica na chocolatria. Mas eu só fui pensar nisso mais tarde, quando achei em meio ao coquetel a última das hóstias de chocolate no meu bolso. É verdade, havia um coquetel. E a exibição dos S-8 havia encerrado bem no seu início. Lembro a cena: uma turba de superoitistas jorrando da saída da sala de projeção, sedenta por estímulos de uma ordem diversa daquele plano visual. O vinho calhou-nos bem e, na minha paranóia, emborquei quatro cálices em seqüência antes de tocar meu plano adiante. Sim, agora havia um plano, depois da revelação que Acácio me fizera no cinema. A bem da verdade, não chega a ser bem uma revelação, porque se trata do óbvio, apesar de que, segundo Nelson Rodrigues, apenas os profetas enxergam o óbvio. Buenas, Acácio naquele momento foi o profeta e como profeta pôde fazer a revelação. A revelação: aconteceu na sala de projeção, logo após a saída do produtor, eu com um travo de remorso ainda na língua, quando Acácio aproximou-se perguntando quem era o sujeito. Expliquei-lhe a situação, o meu constrangimento e pedi seu conselho. Foi a resposta de Acácio que me surpreendeu: "Ele quer te comer". Acácio não conseguia segurar o riso, mas aconselhou-me: "Eu, se fosse tu, dava um jeito de pegar o ingresso e cair fora". Disse isso e me abandonou com o dilema - não havia o que pensar, segundo ele. Disto eu sabia, desde o momento da revelação, eu já sabia o que fazer. Mas antes tentei me colocar no lugar do sujeito e cheguei mesmo a sentir uma espécie de remorso por abusar dos sentimentos de um putinho apaixonado. Agora, no entanto, ao escrever isso eu não consigo deixar de rir. Há! e com certo escárnio, porque nessa bundinha que mamãe limpou, marmanjo nenhum toca, meu amigo. Dei umas três voltas no salão do centro de eventos até o produtor paulista me perder de vista e me encaminhei para o setor da organização. Boa parte daquela massa de superoitistas já estava bêbada e formava uma barricada ao redor do quiosque da organização responsável por distribuir os ingressos. Não havia como chegar até o balcão e, de acordo com a informação que o burburinho transmitia, o número de cortesias programadas para os superoitistas havia sido significativamente reduzido e muita gente ia ficar de fora bem na noite da premiação do S-8. E cada vez que chegava um cineasta alternativo, a indignação era a mesma, inclusive na afetação acentuada pelo vinho. A cena era comovente: quinze, vinte pessoas com pose de movimento social protestando em frente a um quiosque no local mais obscuro de todo o festival, na companhia apenas do pessoal da organização e da assessoria de imprensa. E dirigiam suas queixas para uma funcionária que, pela falta de respostas, devia ser a subordinada da subordinada da subordinada: uma subordinada ao cubo; só faltava distribuírem formulários padrões para recurso. Mesmo sem muitas esperanças, resolvi atacar uma das assessoras do evento. Perguntei pelos ingressos e ela respondeu que a quota do S-8 estava esgotada. Já se virava para ir embora quando eu resmunguei algo do gênero: "fodam-se os superoitistas, eu não sou superoitista". Ela revelou então que havia uma lista paralela, dos "outros convidados". Percebi que os superoitistas não eram tão convidados quanto os "outros convidados" e lhe pedi que procurasse o meu nome. Estava eufórico com o ingresso na mão e... Enfim, acho que foi aí que eu encontrei o Emiliano pela primeira vez. E um amigo que se encontra em viagem é sempre um refúgio. A minha paranóia apazigou-se um pouco. Se o puto viesse para cima de mim, o Urbim fazia às vezes de meu namorado. Lembro de quando eu o encontrei: ele estava disfarçado de assessor de imprensa, não suspeitava que eu fosse usá-lo como matéria de memória tanto tempo depois. From: "Emiliano Urbim" ([email protected]) To: "Zani" ([email protected]) Sent: Friday, April 19, 2002 10:29 PM Subject: texto Tentei, mas não achei na minha agenda de 1999 - sou desses que carrega consigo uma agenda de 1999 - a data exata do Festival de Cinema de Gramado daquele ano. Podia procurar na Internet, claro, mas aí ia perder a graça. Vou chutar tudo aconteceu numa quarta-feira. Tudo desde que eu encontrei até desencontrar Giuseppe Zani. Eu, na esplendorosa forma dos meus 20 anos e meio, estava na cidade serrana trabalhando como assessor de imprensa do festival. Eu tinha de redigir o boletim informativo para os jornalistas e quem mais aparecesse, além de passar o dia pendurando cartazes, correndo atrás de gente, trazendo café, resolvendo diversos problemas e ouvindo piadas imbecis sobre o fim do mundo, que algum imbecil havia dito (cara, eu acho que era o Paco Rabane!) seria naquela semana. Na real sempre tinha uma hora de tarde em que eu dava umas passeadas, ficava dando uma banda pelo Centro de Informações, que funcionava do lado do Hotel Serrano - hoje é lá embaixo, na rua do Palácio dos Festivais mesmo. Num desses passeios contra-produtivos e pró-vadiagem eu te encontrei. Aqui eu não sei se me refiro diretamente a ti, Giuseppe, ou se faço média com os outros leitores e escrevo: "encontrei o Giuseppe". Isso seria ferir meus princípios estéticos, minha integridade artística, me vender para o sistema. Encontrei o Giuseppe. Numa sala de cinema onde acontecia a mostra de filmes gaúchos ou se fora dela, ele estava lá, mas não sozinho. Acompanhava meu colega de faculdade de jornalismo um magrão alto de sotaque carioca. Eu, que não conhecia o Giuseppe direito, pensei: viadagem. E era quase: o Giuseppe tinha encontrado o cara horas antes, e havia ganho ingressos, almoço, hospedagem, papo, tudo porque havia contado o seu drama. O drama do Giuseppe: tinha uma guria com quem ele tinha uma história, na real muito mais que uma história, ele era apaixonado por ela, apaixonado o suficiente para ir a Gramado sem bagagem sem dinheiro sem hospedagem e com muito frio, só para vê-la. Fim do drama do Giuseppe. Apagam-se as lâmpadas começaram os filmes, uns bons, uns ruins - lembro de um documentário em 16mm particularmente pavoroso sobre um rio, uma floresta, umas árvores caindo, ah! que nojo. Aí eu não lembro direito do que aconteceu depois: tive de sair do cinema para voltar ao trabalho e acho que combinei alguma coisa com ele, de se encontrar na frente do Pavilhão de Mídia (cada hora eu vou chamar o lugar de um jeito) para irmos ao cinema. Corta para eu e o Giuseppe de noite na frente do Fórum Cinematográfico, é noite, venta e tem muita gente buscando entrar em uma das vans (se você vier a estar precisando, pode chamar de peruas) que levavam para o Palácio dos Festivais, lá embaixo. Acho que nessa espera por transporte que nós conversamos, não foi Zani?, que eu te contei de como estava sendo e tu me contou da guria, da viagem, do carioca, do drama. Pra ser sincero, nem prestei muita atenção na hora em que ele me contou, fui compor um quadro coerente ao longo dos anos - já foram três, gurizada - depois de muito ouvir a mesma história da boca dele para os ouvidos de outros. Depois de alguma espera embarcamos em uma camioneta junto com um bando de hispanohablantes. O Giuseppe nem poderia estar ali dentro, clandestino que era, mas eu andava muito cheio de mim naqueles dias e disse autoritariamente "entra!", querendo dizer "tá comigo tá com Deus!" ou "malandro é o gato, que já nasce de bigode". Foi uma decida curiosa, nós dois tentando prestar atenção na conversa dos companheiros de viagem, sem entender muita coisa. Se tinha alguém naquela van que fez alguma coisa no filme espanhol que assistiríamos mais além, meus parabéns pelo bom trabalho, se não, desculpe pelos gases incessantes - "eu andava muito cheio de mim" pode ser interpretado de várias maneiras. Descemos de kombi na frente do Palácio, gente nas arquibancadas, burburinho. Tentação. Abanamos e recebemos gritos e flashes de quem conseguimos enganar com nossa pose de galã. Posso estar lembrando errado, mas acho que o meu ingresso e o do Giuseppe não eram para a mesma parte do cinema, obstáculo driblado através de uma conversinha com uma das gurias que cuidavam dos corredores, irmã da Mônica. Ah, a Mônica. Trabalhava comigo na assessoria, já haviamos trabalho uma ou duas semanas juntos em Porto Alegre. Ela e a irmã tinham os olhos verdes e eram muito, muito gatas. Com a minha sorte, devem estar casadas e com filhos, já. Tateando lugar, procuramos um ali pela intermediária, aquela linha imaginária que divide a frente e os fundos do cinema. Não estava nem cheio nem vazio. Não lembro se foram exibidos curtas naquela noite, se foram não me causaram nenhuma impressão. O primeiro longa era o documentário Santo Forte, de Eduardo Coutinho. Muito afudê, uma das melhores coisas que eu já havia assistido até então - mostrava como os moradores de uma comunidade pobre do Rio de Janeiro lidavam com a religião, com depoimentos surpreendentes, e uma edição por vezes até meio irônica. Bom, se quiserem ler sobre o filme o Merten deve ter escrito qualquer coisa muito boa no Estadão. O interessante foi que no meio do filme uma guria que estava do lado do Giuseppe começou a cutucá-lo, e comentava algumas coisas. No terceiro comentário ela já estava falando comigo também, "bárbaro!" "que maravilha!", ou só umas risadas altas e desajeitadas acompanhadas de olhares buscando a nossa aprovação. Em um desses olhares eu me dei conta de quem era a tal guria. Cutuquei o Zani: "Tu viu quem tá do teu lado?" "Não é uma guria da Fabico?" Eu rindo: "Não!" "Quem é?" "É A LUCÉLIA SANTOS!" E ela batia palma, ria, pegava no braço do Giuseppe, grande companhia. Terminou o filme nós dois saímos pelo corredor rindo e comentando o acontecido, a viagem, a Lucélia Santos em Santo Forte. Aí tem aquele intervalinho, fica todo mundo feliz de estar lá dentro no quentinho do cinema e não lá fora naquele frio (acho que foi o último inverno digno do nome, depois só El Niño e La Niña empatando a foda). Encontramos uma amiga, a Gaby, que estava com umas amigas, e agora eu confesso que não sei se entre esses estava a guria que o Giuseppe havia viajado para ver. Talvez sim. Então tá, sim, vamos por molho nessa história. De volta ao cinema, agora com mais gente, nos sentamos em um canto esquerdo, onde estava todo o pessoal do SUPER-8, aguardando a premiação da categoria. Foi o ano em que A Vingança de Kali Gara levou tudo, sobrando lá uns prêmios de consolação pro Spolidoro e um pessoal da PUC. Um troço que me chamou muita atenção é que logo depois que acabou a cerimônia toda a tribo superoitista debandou. Tudo bem, a gurizada queria mais era comemorar e chamar toda a organização de velhos, caretas e pá e coisa, mas pegou mal. Pude entreouvir Lucélia sussurar uma admoestação. O filme era do caralho. Du-ca-ra-lho. Os Amantes do Círculo Polar, sei lá de quem, do caralho talvez. Uma história de amor, e tudo o que eu queria naquela, noite, naquela semana, naquela estação, nessa vida, era uma história de amor. Bah, me emocionei, mesmo, de trincar as batatas. E acho que Giuseppe também, porque uns dois anos depois, respondendo um questionário por e-mail, uma brincadeira que andou circulando entre amigos, ele falou desse como sendo o filme que marcou sua vida. Depois, nova saída do cinema, novo bate-papo, agora com vias a já saber o que fazer na noite eu tinha que trabalhar todos os dias de manhã bem cedo, o que não me impedia de me acabar até bem tarde. Uma fuzarca, uma legítima e recalcitrante fuzarca. Montes de gente foram embora, mas não sei porque cargas d'água achamos que seria uma boa ver um filme que vinha a seguir. O filme, chamado O Cu-de-Ostra dos Abustres no meu mundo, era assim uma coisa indescritível de tão chato. O público que havia se decidido a ficar foi indo embora aos poucos. Depois de uns vinte minutos eu a Gaby e o Giuseppe nos olhamos e também fomos embora do cinema quase vazio. Porque essas coisas são assim, foi o vencedor do Festival. De novo lá fora, uma proposta real e concreta de noite: um bar chamado Casino, onde o pessoal do Super-8 estava fazendo sua festa. Aí apareceu sei lá de onde a apresentadora de um programa juvenil da repetidora da maior rede nacional e uma guria muito querida por quem eu me apaixonei na hora. Na hora, na horita, na horaça, no horêra. De supetão. Também não lembro porquê, mas logo estávamos eu, minha amada, a apresentadora e o Giuseppe em um carro, indo para não sei onde. Demos umas bandas até chegar no bar - aí eu lembro de bater com a cabeça no teto depois que a motorista ignorou um quebra-mola, fato que ocorreria um ano depois de dia no caminho de Canela para Gramado, com o Zani na direção, e teria consequências desastrosas para minha lata de fitas. Por caminhos muito tortos, chegamos no Casino. Bebedeira, gritaria, cheiração, putedo e fuzarca, agnóstica e nababesca fuzarca. Larguei o Giuseppe de mão e fui investir no amor da minha vida. Não sei nem se dei tchau pra ele, só fui saber o que aconteceu com o cara depois. Mas, bah, foi uma senhora noite, para mim, que não interessa, e para ele, o que ele conta melhor. E aqui acaba o meu relato programado para hoje, desde a hora em que encontrei o Giuseppe até me perder dele, conforme tu pediu, Zani. Por hoje é só pessoal. Não deixem de escrever. Vamos manter contato. Vocês são dez! Vocês é que fazem isso aqui acontecer! Senta e rodopia! Olha a curra! Pisão no pescoço e canela nas paleta! Fui. Emiliano Urbim Ah, então havia uma garota... Agora muita coisa ficou clara. Conhecendo a mim mesmo, posso até dizer que esta é uma hipótese sustentável. De qualquer forma, a única guria de quem eu me lembro surgiu no Casino junto com o Alex: a Deise. Lembro também que depois do Palácio dos Festivais, a quantidade de conhecidos que aportaram na cidade foi gigantesca. Acho que tinha muita gente envolvida com a produção de curtas e S-8; um fenômeno cultural quantitativo ainda a ser abordado. Como conseqüência imediata, todos acabaram indo para o mesmo bar, criando um gueto portoalegrense em Gramado com praticamente todas as mesmas pessoas que freqüentavam naquela época o Garagem Hermética, à exceção de uns poucos como o ator Caio Blat, que fracassou na tentativa de integrar-se ao pessoal do cinema alternativo e passou a noite jururu num canto, tendo crises de estrela anã. Quanto a mim, cada conhecido que encontrava, era uma cerveja ganha. No entanto, eu ainda não sabia como voltar para Porto Alegre. Não havia mais ônibus, a rodoviária estava fechada, e o frio na rua o Urbim já descreveu. A minha sorte foi que a Deise tinha que trabalhar no dia seguinte e sairia no meio da madrugada. Ela me ofereceu carona: tinha medo de dormir na direção. Queria que eu lhe fizesse companhia, eu topei mas apaguei antes mesmo do primeiro pedágio e só fui acordar em Porto Alegre com outras duas gurias que eu nunca tinha visto antes no banco de trás. ANEXO 4 FGTS: AS LETRAS DO DEMÔNIO ou BUROCRACIA É OCULTISMO DE POBRE por Paula Pó com ilustrações de Eduf e Nelson Azevedo Eu achava que já sabia tudo sobre ocultismo até conhecer as assustadoras letras: FGTS. São quatro inocentes sinais gráficos que ganham um poder demoníaco quando juntos, comparável ao 666. Só que enquanto o tal número da besta atrai as elites, eruditos, diretores de cinema e metaleiros, o FGTS manipula uma massa desdentada, quasímoda, sedenta por alguns centavos a mais nas suas contas bancárias. A iniciação Segundo a imprensa, eu teria uma grana a receber do governo. Desde que participasse de alguns rituais estranhos. Seduzido pelas promessas de consumo, sucesso e poder, resolvi encarar. Preenchi alguns papeis que são fornecidos descaradamente pelos Correios. Pelo jeito, as autoridades são coniventes com a burocracia-negra. Estranhei as palavras de ordem, os sinais esotéricos dos formulários e, principalmente, o ar sombrio das autoridades daquela estranha seita, chamados de "funcionários". Mas estava disposto a vender minha alma. Nem que fosse fiado. Disseram que eu deveria ir a um templo conhecido como Caixa Econômica e aguardar mais instruções. A expectativa me deixava mais vivo e forte: segui imediatamente para o local. O templo da perdição A aparência do templo era impressionante: gigante, todo de vidro, cercado de pessoas com roupas cerimoniais. Aproximei-me com cuidado e evitei encarar as pessoas. Esperava que alguém gritasse "Tulsa Doom" e denunciasse que eu era um estranho ali. Mas parece que não havia iniciados, todos estávamos apenas no primeiro passo da aquisição da (des)graça. Revolucionários de fila Logo na entrada do templo, anões, mulheres barbadas, gordos, faquires, cegos, mulheres da República das Raízes Pretas, todo tipo de gente formava uma imensa fila. Posicionei-me e fiquei em silêncio. Um dos rituais de iniciação era reclamar do mundo. Havia dezenas de oradores de fila: todos revolucionários, conscientes dos problemas do país, críticos, eloqüentes. Exalavam litros de perdigotos. Perguntava-me porque, afinal, Lênin começou a revolução na Rússia. Fidel Castro então foi de uma obtusidade bushiana: com a ajuda de uma fila brasileira sua revolução seria uma quermesse de vila. Nossas fileiras são mais revolucionárias do que as do Império Romano. Peregrinação Nossa peregrinação começou às 10h00. Consegui andar cerca de 3 metros até as 14h00. Depois é que as coisas ficaram lentas. Só entrei no templo às 17h40: quase 4 horas para andar um metro. Muitas pessoas não suportaram jejuar por todo esse tempo e desistiram. Outras tentaram encurtar o caminho. Mas, como disse Jesus, a porta é estreita. E tem detector de metais. Sacrifícios O sacrifício físico não era o único obstáculo a ser vencido. Ao meu lado, uma garota era evidentemente testada em sua capacidade de calar a boca. Olhava desesperadamente para os lados, tentava conversar. Mas, surpreendentemente, todos a ignoravam. Em todos os pontos da fila as pessoas gritavam, reclamavam, já estavam íntimas. A solidão parecia lhe pesar tanto que começou a bufar, grunhir, soltar sons estranhos (por sorte, não havia cheiros). Mexia-se com nervosismo e passava as mãos no rosto. Eu estava preparado para lhe aplicar uma injeção no peito, como um gangster de filme do Tarantino. Ou talvez conversar. Mas quem sou eu para atrapalhar a iluminação de alguém? O Último Portal No portal de entrada do templo, tive de me desapegar de todos os bens materiais: celular, óculos, chaves, moedas etc. Por mais que fizesse, não era aceito: sempre tinha que voltar e humildemente me submeter ao julgamento dos funcionários de batinas. Este é o momento mais difícil do processo de eliminação do ego: você está a poucos passos do objetivo, mas tem que se controlar e demonstrar várias vezes que é confiável, dócil, persistente. Porém, sou forte: consegui entrar no templo. Mestres yogues Por dentro, o templo também é de uma beleza quase indescritível: branco, com tons de cinza e azul calcinha. Funcionárias lindas, com maquiagens carregadas, peitos murchos, sardas e óculos de lentes grossas. Esperaríamos mais algumas horas em confortáveis poltronas, contemplando o equilíbrio das sinalizações e os anúncios das maravilhas que se obtém ao participar daquela instituição. Teríamos consultas individuais com mestres yogues. Eles atendiam com movimentos lentos e estudados: demoravam uma eternidade para completar cada ação. Nada ali tinha a pressa e o desespero da vida cotidiana. A cara do Demo Estava em profunda meditação quando chegou a minha vez. Levantei-me e, um pouco nervoso, espalhei os documentos na mesa do mestre. Ele me olhou com um ar ameaçador, de quem julga os vivos e os mortos. Só então me lembrei de que estava num ritual satânico. O cristianismo me ensinou a associar o branco, a leveza e os peitos murchos ao paraíso. E eu precisava entender que o diabo sempre aparece em dez vias carbonadas e protocoladas. Crise de identidade O mestre pegou minha carteira de identidade. Súbito, suas veias saltaram e sua voz ficou gutural: "não pode dar entrada no FGTS com este RG". Tentei convence-lo de que aquele era um RG à David Carson, desconstrucionista. Mas a temperatura subiu e a pele do mestre ficou vermelha e escamosa: "você tem um problema de identidade. Ela está manchada, castigada pela idade. Você precisa renova-la, livra-la dos buracos e rasgos do tempo". Quase pulei no seu colo e o chamei de psicanalista. Mas ali estava a personificação do demônio. Quer dizer: teria de chamá-lo de psiquiatra. O problema é que não haveria tempo para gentilezas: meus documentos foram rejeitados, minha iniciação fora recusada. Alma à venda Todo sonho de poder e consumo desmantelado. De nada adiantaram as 10 horas de fila. Eu teria de ir além e passar pelos umbrais de um lugar chamado Poupa Tempo. Recuperar a prova do meu nascimento, imprimir minhas digitais, enfrentar novas filas e gurus. Decifrar novos caminhos para guichês ainda mais distantes, pagar novas taxas e, principalmente, testar minha persistência. Chego em casa, olho para o espelho e me pergunto: será que minha alma vale todo esse esforço? Não seria mais fácil anuncia-la no Shop Tour? Aí está a saída: vou vende-la ao Grupo Imagem. Quem sabe eu ganho um Ambervision debrinde? ANEXO 5 O ET DE VAGINA por Paula Pó com ilustrações de Nelson Azevedo e Luiz Monty Pellizzari Quase um mês sem sexo. O sol gritava lá fora. Estava vestindo rosa. E pra variar, sou jornalista. Jornalismo é uma daquelas profissões fantasiosas que enganam desde os primórdios da pena. No curso entre um baseado e outros, entendi que matérias como Política de Comunicação, Interfaces de Programação Visual e Novas Tecnologias de Comunicação têm o mesmo fim, o abismo profundo e inacabado do meu cérebro, caíram há muitos anos e ainda não fizeram o barulho surdo de quem cai no chão. E pra quê? Pra atender o telefone e ouvir isso. Eles me levaram e me possuíram. Quem? Eles são perigosos. O senhor está falando de quem? Do comando vermelho? Do homem do saco? Do FÊO, o pagodeiro fugitivo? Não. Dos ETs. Hã. Diga mais. Só pessoalmente. Fui na casa dele. Paredes azuis, alguns quadros de anjos, poucos livros, enya rolando. Aceita um suco? Meu deus, é o inferno. Tomei um suco de morango com leite que fez meu fígado, cuidadosamente destruído pelos anos de pinga se retorcer de dor. Maldito emprego. Isso aí começou com um dos e-mails mais bizarros da minha vida, mais que os da minha mãe. Entrarei em contato. Assim que eles permitirem. Tá. Em seguida um alfabeto supostamente alienígena numa planilha do Excel. Que merda de tecnologia avançada é essa que ainda usa o Windows? Então ele vomitou sua experiência. Entre uma lágrima, um soluço e uma gorfada me contou que estava na estrada, voltando para casa depois de uma festinha. O senhor bebeu quanto? Ah, não? Desde quando? NUNCA? Ah, EU SINTO MUITO, quer dizer, continue por favor. Bem, eu estava dirigindo de volta pra casa, quando meu carro começou a falhar. Verifiquei as horas, três da manhã. Minha vó ficaria preocupado comigo. Primeiro parou o motor, em seguida o som e finalmente os faróis e enfim veio a luz. Uma luz forte que clareou tudo em volta. Coloquei meus braços sobre o rosto para proteger meus olhos e quando saí dessa posição havia se passado cinco horas. * suspiro * E?... Depois desse dia, passei a sonhar com uma etéia. Bonitinha até. Tinha longos cabelos loiros, alta e magra. Só tinha três dedos, que usava como ninguém. Vestia uma espécie de macacão espacial, com uns desenhos estranhos. Ao contrário daqueles cinzas, tinha lábios, nariz ou orelhas. E dois olhos imensos. Desde esse dia nunca dormi em paz. Sempre a ouço dizer que queria um filho meu. Procurei o jornal pra ver se vocês me ajudam com o DNA. - * silêncio * Esse é o problema de ser um tablóide. Não é porque publicamos corpos e resenhas de música na primeira página que se pode zombar assim. Mas então vi a prova. Concreta, firme e ereta. No prepúcio havia uma espécie de bolinha, como um grão de ervilha, que se mexia de acordo com o toque. Depois de três gozadas, digo, testes, me convenci da verdade. Iria publicar a matéria. Corri pra redação e fui procurar por embasamento, informações ou o recheio da lingüiça. O que achei me preocupou e muito. Em 1950 começou o que se pode chamar de era moderna da Ufologia. Depois que um piloto avistou nove sondas de uma única vez. Sondas podem ser comparados como carrinhos de controle remoto, pequenas naves não tripuladas que fazem o serviço sujo da nave mãe, reconhecendo e filmando pessoas e lugares. São aquelas luzes que as pessoas afirmam ver rodopiando pelo céu. Depois disso houve o famosos caso Roswell que deu origem à área 51, muito mais popular que a própria Ufologia. Um similar brasileiro seria o caso do ET de Varginha, reconhecido mundialmente como uns dos mais importantes dessa era. O interessante é que a América Latina, apesar da fama de seus homens, é uma das áreas com o menor índice de envolvimento sexual entre espécies. Os Estados Unidos se encontram na liderança absoluta dos casos de sexo com alienígenas, inclusive com registros de crianças e/ou seres híbridos. Isso explica muitas coisas, entre elas o Michael Jackson. Outro dado interessante, é que das pessoas que tiveram contatos avançados menos de 5% chega a saber o que aconteceu. Muito pior que amnésia alcoólica. Me espantei ao saber que a pequena ervilha erótica é um implante. Esses pequenos objetos são considerados a prova física e incontestável da presença alienígena. Indivíduos implantados são as cobaias registradas. E sempre voltam para a continuidade da experiência. Liguei para minha melhor matéria nos últimos anos de redação. Ele não estava. Tinha sumido. Corri até sua casa e o encontrei jogado na lama, desmaiado. Depois de muito tempo me contou que tinha sido seqüestrado novamente. Desta vez não houve nenhum contato sexual, apenas foi levado para que conhecesse sua filha. A aparência era de uma garota de dez anos. Segundo os alienígenas o desenvolvimento deles é bem mais avançado, justificando a idade daquela criança de seis meses. Minha cara. Os olhos são da mãe, mas é a minha cara. Conversamos sobre tudo o que envolvia a experiencia. A nave era um lugar frio. Não havia cores ou som, qualquer coisa que desse algum amparo emocional. As paredes pareciam de ferro. Não havia indícios de quartos ou salas. Apenas uma maca de ferro com restos de sangue e um cilindro com um recém-nascido. Indícios de que houve um parto humano há pouco tempo. Não quis falar sobre a filha ou a mãe da garota. Não nos beijamos. Nem da outra, sabe. Agora me fizeram gozar num potinho e levaram embora. Acho que vou ser pai. Tomara que seja menino. Meu deus, preciso de um pega. Corri pra redação e fiz a matéria. Expliquei tudo pro editor. Cortes, cicatrizes e brancos podem ser sintomas de uma abdução. Perdi tempo com aquela besta de suéter que vetou minha matéria. Disse que ninguém acreditaria num homem de quase quarenta anos e dois metros de altura tenha sofrido algum tipo de violência sexual de uma criatura cinza de 1,20. Mas ela parecia a Fernanda Lima. Ninguém. Essa incredulidade é que mata. Se os indies existem, porque não alienígenas? Voltei pra minha sala e olhei para o relógio. Dez pra cinco. Resolvi sair dez minutos mais cedo. Antes conferi o resultado do teste que peguei na Internet. 80% de chance de ser abduzida. Imagina. Abaixei pra amarrar meu tênis. Uma luz forte passava por debaixo da porta. Ia ficando cada vez mais forte. Meu coração não estava mais. Pus os braços no rosto numa tentativa desesperada de proteger os olhos. Quando a luz não tinha mais o que invadir, a porta se abriu e eu gritei. Não era um alien, mas quase. Carvão, o uébi que vinha me mostrar sua geringonça nova de rave. Maldito emprego, malditos indies. Malditas raves. Elas fodem tudo. ANEXO 6 RAOUL DUKE EXPLICA: COGUMELOS ALUCINÓGENOS por Marcelo Träsel com ilustrações de Nelson Azevedo, Luiz Monty Pellizzari e Cardoso Num serviço de utilidade pública, um intrépido membro da indômita comunidade Raoul Duke submeteu-se a um ousado experimento com cogumelos. Caso alguém já queira processá-lo no primeiro parágrafo, é bom lembrar que cogumelos não são drogas ilegais. Até porque nascem nos pastos e seria preciso encarcerar todas as vacas do mundo para dar cabo deles. Antes de mais nada, qualquer interessado em usar o cogumelo semelhante ao Stropharia cubensis que cresce nas bostas de vaca do Brasil deveria preencher os seguintes requisitos: 1. Bom conhecimento em filosofia 2. Mente saudável 3. Conhecer algo da história da psicodelia, em especial a biografia de Timothy Leary, Flashbacks. Como em geral são adolescentes imbecis que usam drogas diferentes de cocaína ou maconha, é aconselhável que tomem os cogumelos ao menos acompanhados de algum amigo sóbrio e, se possível, em casa, numa sala confortável, sem decoração agressiva, com música decente e calma tocando. Uma boa opção de ambiente é um monte de almofadas no chão, meia-luz e mogwai na vitrola. NÃO TOME COGUMELOS SEM TER CERTEZA DE QUE SÃO OS QUE ESTÁ PROCURANDO. É evidentemente perigoso. Procurar cogumelos alucinógenos sem nunca ter visto um é besteira, mas pelos mesmos motivos de antes, aqui vão algumas dicas de como reconhecer o bicho: 1. Crescem sobre as bostas de vaca, após uma chuva ou garoa. 2. Os mais altos tem cerca de 10cm, com uma cabeça circular de até 5cm de diâmetro, de coloração branco-dourada. Às vezes, há um anel preto no caule branco. A consistência é carnosa e ele se despedaça com facilidade. 3. Mais importante: ao entrar em contato com o ar, a parte interna do caule fica roxo-azulada. Abra o caule, para verificar, e espere alguns minutos. Há várias formas de ingestão. A mais popular é a infusão. Basta ferver os cogumelos durante alguns minutos, podendo-se acrescentar vinho, cachaça, sucos, ervas, qualquer coisa. O gosto é tenebroso, em compensação bate mais rápido. Minha forma preferida é lavar e comê-los dentro de um pão, cabeças e caule. Dá menos trabalho, a onda chega de forma mais suave, dura mais e é mais forte. Café ou cerveja ajudam a tirar o gosto ruim da boca. A dose, no caso de ingestão dos cogumelos inteiros, é de 4 ou 5 grandes por pessoa. Tenha em mente que a viagem é muito potente, e o risco de bad trip é alto. Quanto a riscos físicos, além dos possíveis acidentes (atropelamentos, quedas, etc.), há a possibilidade de um surto psicótico. Algumas pessoas jamais retornam dele. O motivo para isso é simples: a psilocibina e seus parentes ativam a psicose básica do sujeito. Ou seja, se você tiver delírios paranóicos, é porque vai ser paranóico se um dia enlouquecer. Se já for um tanto desequilibrado e faltar apenas um estalo para surtar, não é difícil que o uso de cogumelos provoque o surto. 23:00, dia 15.02.2002 - Comi cerca de 5 cogumelos grandes, dentro de um pão, e saí de casa junto com duas amigas que também haviam comido os docinhos. Íamos até a praça central de Garopaba/SC, pegar um ônibus para a ferrugem, um tipo de shopping etílico a céu aberto, freqüentado por mauricinhos e surfistas adolescentes da pior espécie. Má escolha, como verificaríamos mais tarde. 23:30 - Ao contrário de minhas expectativas, a onda chegou em apenas meia hora. Começou com uma sensação de anestesia pelo corpo, em especial nas pernas. A pessoa sente-se flutuando. Não sente cansaço, por mais que caminhe, corra ou pule - o que não siginifica que não vai sentir dores musculares no dia seguinte. Penso que esta característica da psilocibina era responsável pelos aparentes superpoderes do xamã. Ele poderia dançar a noite inteira, sem cansar. Correr, levar porrada. Segue-se à anestesia uma sensação de euforia. Rimos por nada. 24:00 - Esperando pelo ônibus, sinto os primeiros efeitos visuais. As sombras de algumas árvores se movem pela grama, e uma das casuarinas parece-se demais com uma lula gigante. Algum desconforto no estômago. Minhas amigas não param de fazer piadas, estou muito ocupado com os efeitos visuais, mas não consigo conter um sorriso permanente. Nas pernas, sinto como se mosquitos estivessem me picando, ou formigas caminhando por elas. Não estão. 24:30 - É difícil descobrir quanto custa o ônibus e também contar o dinheiro. As moedas todas se parecem. Não reconheço mais a estrada. Quando estou 100m adiante, vejo à minha frente os 100m anteriores da estrada. Difícil descobrir onde estou. A luz de um carro bate no pára-brisa, explode e meu campo de visão fica cheio de pedrinhas de luz. Desço do ônibus com certa dificuldade. Tenho medo de atravessar a estrada, porque estou tendo alucinações e posso não ver um carro. Atravesso. Olhando para o céu, fico surpreso com o tamanho dele. As estrelas ficam mais brilhantes, e a cor é esquisita. Ao caminhar, sinto como se estivesse chapinhando num charco. Um sujeito nos manda subir na caçamba de sua caminhonete, ganhamos uma carona. No caminho, muita poeira. Fico em dúvida se estou alucinando algumas nuvens de poeira, se estou mesmo coberto de areia. É cada vez mais complicado dialogar. 1:00 - Chegamos ao lugar. Meu corpo parece mais alto e magro enquanto caminho. Alguém fala sobre uma rave, bem no momento em que passamos por um estacionamento. Abismado com a qualidade da luz e do espaço, digo que a rave deveria ser ali. Parece muito apropriado. A sensação de anestesia agora dá lugar ao que poderia-se definir como separação do corpo. Os sentidos não necessariamente comunicam mais o que está se passando, ou fazem isto de forma confusa. Por causa disso mesmo, os movimentos exigem cada vez maior concentração. A luminosidade e as cores da avenida de terra cercada por bares é interessante. Pareço estar dentro do filme Delicatessen. Jeunet é, com certeza, o diretor de arte das viagens de cogumelo. Um guindaste de bungee-jump chama minha atenção. Tudo é novo, imenso. E tudo parece se encaixar no seu exato lugar, tudo parece apropriado e conveniente. Sentamos em um bar, mesa da rua. Não calamos a boca. Rimos. Enrolamos a língua. Toca um axé. Procuro um banheiro, e ao fazer isso, cruzo por caixas de som tocando Metallica. A trilha sonora parece muito adequada ao local em volta, escuro. Está fechado, então volto para a mesa e digo, rindo, que não consegui mijar. Indicam um banheiro e vou até ele, no setor em que toca Enter Sandman. O banheiro é infecto, mas acho ele bastante bonito, as cores da merda e do barro e as paredes sujas. A adequação da música ao local me deixa alegre, sinto-me seguro no universo. Saio dali e compro uma cerveja. Kaiser Summer. No momento em que retiro o dinheiro do bolso para pagar, desço à terra e tomo consciência de como estão meus movimentos. Tiro o dinheiro do bolso como um mendigo o faria. Devagar, levantando a camiseta para expor o bolso - e a barriga por tabela. Fico preocupado, pensando que as pessoas devem estranhar isso. Volto para a mesa e converso com as meninas. Não é preciso terminar as frases para entendê-las. A cerveja brilha amarela, radioativa. Estou muito, muito feliz. Nunca estive tão feliz. Qualquer movimento dá prazer, por isso passo a língua pelos lábios e mexo os dedos. Penso em tomar cogumelos todos os dias da minha vida. Minhas amigas concordam. Uma delas jura não estar sentindo nada, mas nota-se a euforia dela. A outra me acompanha em uma discussão sobre os efeitos intelectuais do cogumelo. Digo que agora entendo do que as letras dos Doors falavam, a estética psicodélica toda. Segue-se o seguinte diálogo: EU: Quando tomei ácido, olhei para uma concha e compreendi como funcionava a acústica dela, porque fazia aquele barulho. ELA: E como funciona? Lembrou agora, com os cogumelos? EU: Não. Eu teria de olhar para a concha, para compreendê-la. (Pego a garrafa na mão) No máximo, posso compreender o princípio da acústica das garrafas, porque tenho esta garrafa aqui. Escrevo isto num caderninho da guria. A letra é uma mistura da minha letra atual com letras emendadas dos meus tempos de alfabetização no colégio. Um dos efeitos do cogumelo é a impossibilidade de entender letras e símbolos gráficos. Talvez seja conseqüência das alterações visuais. Cuidado com seu dinheiro. A euforia torna difícil ficar parado. Tenho vontade de ir à praia. Uma das meninas - a que diz não sentir nada de mais - sai para ir ao banheiro. Não volta mais. Convido a outra para ir à praia, mas ela não quer. Sinto a mente cada vez mais descolada do corpo, e lembro de pensar algo como "estou me tornando totalmente simbólico". Talvez por ter lido recentemente "A Negação da Morte", em que Ernest Becker divide o ser humano em animal e simbólico. Enfim, quando respiro fundo, consigo "descer" para o corpo e manter um pouco a linha. Estou realmente preocupado com o que os outros estão pensando a meu respeito, porque tenho a impressão de estar falando muito alto e agindo de forma muito teatral. Minha amiga concorda. Um sujeito, que veio de carona na mesma caminhonete e sentou na mesa conosco, diz que parecemos alegres, mas normais. Começa a chover. Forte. Todos se levantam, somos os únicos dois sentados em uma mesa na rua. Não sinto a chuva, mas começo a me sentir ridículo e comento que "somos aqueles caras no fundo do bar, podres de bêbados, que todo mundo fica criticando e desprezando". Estou, evidentemente, ficando paranóico. Decidimos caminhar, porque não conseguimos mais ficar sentados. Na primeira esquina, decido que PRECISO ir à praia, ver o mar, porque ele tem algo a me dizer. Minha amiga vai para outro lado. A chuva engrossa, mas não me importo. Sinto-me orgulhoso de não ter medo da natureza, de andar em comunhão com ela. Ao chegar na trilha que dá na praia, o caminho muda constantemente. Parece muito mais longo. Receio me perder. Ao chegar na areia, os morros parecem enormes, bem mais altos do que são na realidade. O mar nasce das brumas escuras no horizonte. Há luzes em alguns locais sem casas. A água não avança para a areia, faz o movimento contrário e parece se desdobrar sobre si mesma. Estou realmente abismado. O mundo é imenso, infinito. Não há nada nem ninguém por perto. As pessoas do outro lado do mundo, na rua, não existem. A praia é um mundo separado, é algo além, a fonte de toda criação. Aquela praia. Resolvo caminha um pouco, e quando me viro, posso vislumbrar o mar batendo na areia, um morro atrás, uma floresta escura e então a rua, iluminada como uma disneylândia. Parece um cenário do jogo The Secret of the Monkey Island nas cores e formas das casas e paisagem. Ao longe, um dinossauro forma-se das brumas. Então, compreendo TUDO. Sim, agora eu sei porque estou aqui. O mar está me dizendo que sim, a vida tem um sentido, a seqüência mar, areia, floresta e cidade é um resumo da evolução. E eu estou pairando sobre ela. Eu sou deus. Não, eu não sou deus. Sou parte dele e ele é parte de mim. Sou o mar, o vento, as montanhas, a floresta e a cidade. Tudo está em seu lugar, tudo tem um porquê, tudo é adequado e necessário. Amo tudo. Não sei o que fazer com tanta alegria. Quase choro. Minha vida está justificada, não há mais lugar para angústias existenciais. Neste momento, lembro que estou NO MEIO DA PRAIA, DURANTE UMA CHUVARADA. A existência pode me amar, mas também pode mandar um raio na minha cabeça. Corro. Quando estou saindo da praia, caio na trilha para um bar onde tomei meu primeiro ácido. É de uns uruguaios, é meio hippie, tem redes e sofás. Resolvo ir pra lá. Fica dentro da floresta escura, mas não tenho medo. Sou um xamã, a floresta é minha amiga. Na porta do bar, me dou conta de que sou um magrão encharcado e com os pés cheios de areia. Lavo os tênis na água que cai do telhado. Quando piso dentro do lugar, um cachorro late. Um pastor preto. É mescalito. Não, não é. Mas os cachorros, uns 3, me olham de maneira esquisita, cheiram. O bar brilha com luz intensa. Peço uma cerveja. Custa R$ 3,00, eu dou duas notas de 10, mas o sujeito do bar é legal e me devolve direitinho. Percebo que é muito fácil me roubarem. Fico meio desconfiado do sujeito ao lado. Puxa papo, diz que é de Porto Alegre e está em Ibiraquera. Suspeito que seja um foragido da polícia. Do outro lado do balcão, há uns hippies. Mas, na verdade, são piratas. O chefe deles é ruivo e tem feições norueguesas. Fala algumas frases de efeito e me manda ficar à vontade. Estou satisfeito. Feliz. As pessoas do bar cuidam de mim. Demoro para tomar a cerveja, ou acho que demoro. O tempo se alarga muito sob efeito dos cogumelos. Não tenho idéia de que horas sejam, parece ser umas 3 e meia. De repente, a deusa indiana Kali aparece perguntando se a cerveja é minha. Hesitante, respondo que sim. Kali é má. Ela quer abusar de mim. Todos querem. Quero sair correndo, mas começo a me achar imbecil e tomo o resto da cerveja. Até porque, o foragido pode desconfiar. Quero esperar ele ir embora. Não vai, então vou logo embora, deixando Kali por lá. Andando na rua, todos olham para meu estado deplorável. Olham mesmo? Não tenho como saber, mas isto me incomoda muito. Quase esbarro em mesas e carros. As pessoas naquele lugar são malditos mauricinhos horríveis. Não conseguem perceber, como eu, a existência, o sentido da criação, enfim, tudo. Vivem inconscientemente. Penso em matá-los, mas resolvo me refugiar na praia, onde não posso fazer mal a ninguém e ninguém pode me alcançar. O mar é meu amigo. A floresta também. Eu sou um xamã. Mas desta vez, a praia e todo o universo parecem imensos demais. Sinto frio. Alguns arbustos parecem guerreiros indígenas. O fato de os arbustos parecerem guerreiros explicaria as tais conversas dos xamãs com espíritos e animais míticos? Não admira que índios e acadêmicos de harvard tenham endeusado os cogumelos, a experiência psicodélica. A psilocibina dá a impressão de ARROMBAR os filtros que o cérebro usa para não submergir em uma profusão de estímulos e sensações. O sujeito pensa mais rápido, e não por lógica, mas intuição. Não sente cansaço. Compreende coisas apenas olhando para elas. Tem respostas. É mágico, é poderoso. O que mais poderiam pensar índios sem nenhum refinamento acadêmico, além de que haviam passado para outro mundo, o mundo dos espíritos e guerreiros ancestrais? Um mundo terrível, mas imenso, mas ao mesmo tempo familiar, aconchegante? A experiência psicodélica suscita uma questão intelectual importante sobre epistemologia: até que ponto nossos sentidos são uma forma razoável de conhecer o mundo? Tudo o que eu vi sob efeito da psilocibina EXISTIA. Quem poderia negar? Eu FALEI com o mar, eu VI a criação e a evolução. Se uma substância qualquer pode confundir assim os sentidos, por que uma variação normal em nosso cérebro não poderia nos fazer ver coisas que não existem o tempo inteiro? Pode-se confiar realmente na realidade que vemos? O equilíbrio químico do cérebro é, afinal, delicado. Não seria tudo um grande embuste? Neste instante, percebo o quanto a civilização é imbecil, como ideologias e culturas inteiras podem ser baseadas em erros de interpretação da realidade ou de realidades induzidas por drogas. Há alguma certeza? Há? E todo caso, o mar ruge ameaçador, como o vento e a chuva, eu estou perdido dentro deste meu novo mundo de símbolos e começo a temer ter surtado com uma dose excessiva. A idéia de ficar com os sentidos confusos o resto da vida me inspira um terror verdadeiro. Decido ficar sentado e não fazer nenhum movimento, esperar até de manhã, para o efeito passar. Quero, mais do que tudo na vida, sair da viagem. Quero voltar ao meu corpo, ao mundo real. O medo é avassalador. Além de qualquer explicação. Tenho medo que meu ego se dissolva em símbolos e eu nunca mais volte. Sinto culpa, prometo nunca mais usar drogas e expiar todos os meus pecados e contar tudo para a minha mãe, quando voltar a mim. No fim, algumas racionalizações me convencem que é melhor ir para casa, onde ao menos minha mãe pode me encontrar e cuidar de mim. Resoluto, começo a caminhar os 10km que me separam de casa, debaixo de chuva e cheio de areia. Num boteco de quinta categoria, encontro as duas amigas perdidas. Fico feliz, porque falar com outras pessoas me prende ao corpo e impede meu ego de se dissipar. Mas elas estão entornando cachaça e gritam e riem e parecem realmente sensuais. A galera que joga sinuca delira, e pelo jeito elas estão fazendo a alegria deles há um bom tempo. Só consigo balbuciar "que bom que eu voltei". Uma delas havia tirado a blusa em público, mas neste momento estava vestida. Tomava chuva de propósito, e o dono do bar olhava para elas com pena. Comecei a me preocupar com a atitude feminina agressiva delas em meio a uns estivadores, e também queria ir embora. Num rasgo de lucidez, peguei o número de telefone de uma das duas e fui embora, dizendo "desculpem, meninas, mas eu não posso cuidar de vocês". Senti-me um xamã fracassado por isso. E, na verdade, precisava eu mesmo de tanto cuidado quanto elas. Andei um ou dois quilômetros e comecei a sentir frio. Saí da chuva, tremendo, mas dei graças a deus por ter voltado da viagem. Depois de algum tempo, voltei para procurar elas, bastante preocupado. Estavam melhores do que eu. Fomos embora. Pensei que fossem umas cinco da matina, mas eram apenas 3:00.