O (s) - Jornada PPGA 2013
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O (s) - Jornada PPGA 2013
O (s) processo (s) de esportivização do jogo de malha no interior de um Clube situado no bairro de Madureira, cidade do Rio de Janeiro. Ingrid Ferreira Fonseca Doutoranda em antropologia no PPGA- UFF 1 Introdução No século XVIII, inicialmente na Inglaterra, e principalmente na segunda metade do século XIX, na França e nos EUA, os passatempos eram genericamente chamados de sport, tais como: corrida de cavalos, o boxe, a caça à raposa, jogos de bola. Esta influência advinha da propagação das práticas conhecidas como sport da Inglaterra e se espalharam para esses e outros países, adotando a nomenclatura usada na mesma, muitas vezes, por não terem ainda palavras correlatas (ElIAS, 1992). Nesse contexto, estas práticas corporais foram paulatinamente se sistematizando, marcadas pela uniformização, pela racionalidade, pela modernização e, além disso, com olhares de um “mercado” que se organizava em torno de interesses comerciais e financeiros da época. (MELO, 2010). [...] a nova dinâmica dos tempos sociais (uma decorrência do modo de produção fabril), com o crescimento das cidades e o desenvolvimento de uma cultura urbana, com o incremento das preocupações com o corpo, com a saúde e com a higiene, com a valorização das ideias de espetáculo e consumo na configuração dos novos imaginários; enfim, com as dimensões que marcam a modernidade. (MELO, 2009, p. 35) Segundo Victor Melo (2010), no Brasil, além do termo sport foram utilizados outros dois termos: desporto e esporte. No século XIX, utilizou-se o termo sport relacionado àquelas práticas corporais institucionalizadas que vieram conjuntamente com os navios a vapor ingleses. Uma suposta “importação” das novas sensibilidades modernas: racionalidade, emergência do mercado do entretenimento, com interesses econômicos e financeiros. Ao longo do século XX, além do uso do termo sport, o termo desporto foi se tornando cada vez mais comum, “importado” do português de Portugal. De acordo com a língua portuguesa, advinha do termo diporto que em italiano significa divertimento, recreação. E foi com este sentido que se introduziu o termo desporto no Brasil 1 (MELO, 2010). Passa-se a ter o termo sport (prática sistemática de exercícios físicos), usado no 1 O grande dicionário de língua portuguesa traz em 1945 o termo desporto como prática sistemática de exercícios físicos e seus derivados - desportista, desportivo. mesmo sentido de desporto. Então, aparece neste cenário o termo esporte, principalmente a partir da metade do século XX, como uma tradução do termo sport mesclado com os sentidos iniciais do termo desporto. Não tendo existido na Antiguidade, em determinado momento, se sistematiza uma palavra Sport que passou a expressar um determinado conceito. A palavra se manteve, os conceitos foram se alterando, até que se conformou o que chamamos de esporte moderno. Os conceitos seguiram se modificando, surgiram mesmo neologismos (ou adendos como esportes de quadra, esportes náuticos, esportes da natureza, esportes radicais). (MELO, 2010, p. 81). O que se percebe no Brasil é a superposição entre os termos, ocorrendo descontinuidades e rupturas nos conceitos e nos seus usos. Com a “importação dos modelos estrangeiros”, os passatempos e posteriormente as práticas esportivas vão adquirindo os contornos de acordo com os diálogos estabelecidos com as especificidades locais, com as diferentes formas de contatos vividos. Neste contexto, podemos trazer as reflexões de Bourdieu (1983) sobre os espaços esportivos para nos fazer pensar nas apropriações ou não dos usos dos conceitos e termos: Ainda que seguramente um esporte, uma obra musical, ou um texto filosófico definam, devido às suas propriedades intrínsecas, os limites dos usos sociais que podem ser feito deles, eles se prestam a uma diversidade de utilizações e são marcados a cada momento pelo uso dominante que é feito dele”. (Ibid. p. 214). Em cada momento histórico foi sendo feito uso de um determinado termo com sua hegemonia ou não de conceitos, e que se conectava com as influências sociais do seu tempo. Por exemplo, no caso da cidade do Rio de Janeiro, pela sua condição de capital do império, após a vinda da corte Portuguesa em 1808, foi possível ser o local pioneiro na construção do campo esportivo brasileiro. Junto com a corte portuguesa vieram usos e costumes que faziam alusão ao uso do termo e ao conceito atribuído ao desporto, vinculando-o às práticas de divertimento e vivências públicas, tais como: turfe e remo, corridas a pé, corrida de velocípedes realizadas pela sociedade portuguesa, principalmente àquelas vinculadas à monarquia. (MELO, 2009). Aprofundando tal questão, este autor descreve, através do exemplo da prática das touradas no Rio de Janeiro, que os passatempos tidos como rurais realizados muitas vezes em momentos de festa, ao longo do século XIX, vão se modificando em função das “novas sensibilidades” surgidas através da crescente urbanização em processo, remodelando práticas coletivas de divertimento. Pode-se pensar que o jogo de malha, de certa forma, também sofreu e ainda sofre efeito das “novas ou diferentes sensibilidades” trazidas para os campos dos passatempos, das atividades de lazer e entretenimento dos diferentes grupos sociais, principalmente ao longo do século XX. A partir do meu campo etnográfico que venho desenvolvendo desde 2011, mas de maneira mais contundente desde 2013, em um Clube de Malha chamado “Esporte Clube Malha Patriarca de Madureira” (ECMPM), e também através de leituras atreladas ao histórico do jogo de malha, estas modificações sofridas pelo jogo de malha, tido como tradicional por alguns, e àquele tido como “esportivizado” (SERRA, 2001), tem aparecido com nitidez. Já é possível identificar dois ou mais tipos de práticas de jogo de malha que já existiram ou ainda existem no referido Clube: o jogo de malha inicialmente praticado utilizava-se de uma peça de ferro, de bronze ou de outro material que era lançada pelo alto, fazendo uma curva e o objetivo era atingir um toco de madeira que ficava a metros de distância convencionados. Este jogo foi aprendido pelos jogadores com suas famílias, com seus vizinhos, principalmente entre as décadas de 1930-1950 2. Com a criação da Federação de Malha do Estado do Rio de Janeiro (FEMAERJ) em junho de 1956, vinculada a Confederação Brasileira de Desportos Terrestres, fundada em 1919, tem-se a esportivização oficial possibilitando a formalização e a universalização das regras e das formas de jogar. O Clube a qual me refiro passa a usar as regras federadas em 2001, quase dez anos após a criação do mesmo. Sendo assim, esse estudo tem como objetivo problematizar acerca dos significados atribuídos pelos sócios do “Esporte Clube de Malha Patriarca de Madureira” às transformações pelas quais o jogo de malha de cunho popular e tradicional tem sofrido com o (s) processo (s) de esportivização que o vem acometendo, desde o contato, principalmente, com a Federação de Malha do Rio de Janeiro. A partir disto discutir questões no campo esportivo, principalmente na relação entre esportivização e prática de jogos tidos como tradicionais, trazendo ao debate autores clássicos da sociologia: Elias e Dunning (1992) e Bourdieu (1983); Melo (2009, 2010) na educação física e na história brasileira e Serra (2001) na educação física e educação portuguesa. 2 A constituição do campo esportivo do jogo de malha: um breve panorama histórico. O jogo de malha surgiu como uma maneira de ocupar as horas de lazer nos acampamentos dos soldados romanos e esses aproveitavam as ferraduras já usadas, 2 Era uma época que ainda havia pouco calçamento nas ruas da cidade; jogava-se em terra batida. As metragens da pista eram combinadas por cada grupo, assim como as regras no dia a dia do jogo. atirando-as contra estacas. Com a difusão do jogo na Europa, o jogo se sistematiza e o seu objetivo tornou-se lançar as malhas – peças de aço, ferro, bronze em forma de disco, com peso em torno de 750 gramas, em direção ao pino que fica dentro de um círculo (CABRAL, 1986). Ao longo do tempo, o jogo de malha assume um lugar de destaque nas práticas de lazer dos portugueses3. Em relação ao jogo praticado no Brasil, acredita-se que o mesmo tenha sido trazido pelos portugueses à época da colonização. O jogo praticado aqui é baseado em arremessos de malhas, antigamente eram ferraduras, em direção aos pinos com o objetivo de derrubar o(s) taco(s) de madeira situados em uma área reservada para eles. As partidas são ganhas por contagem de pontos Segundo informações contidas no site da Federação Paulista de Malha4 o estado precursor do jogo foi São Paulo. Acredita-se que, em torno de 1890, ou até antes, os moradores da Rua 25 de março, na capital paulista, após um dia inteiro de trabalho, se reuniam para participar das competições. Como eram usadas peças bastante rudimentares (pedras, ferraduras e pedaços de chapas de ferro) este jogo passa a ser corriqueiro na vida de pessoas mais humildes e principalmente dos homens. À medida que outros bairros também passaram a jogar o jogo, os praticantes foram se reunindo e formando associações esportivas. Posteriormente, com o aumento de números de adeptos ao jogo e com o empenho dos representantes das associações, funda-se em dezembro de 1933 a Federação Paulista de Malha, que segue atuante até os dias de hoje. Paralelamente, cria-se um departamento de jogo de malha na Confederação Brasileira de Desportos (CBD)5 - criado em 1919- para organização e difusão da sua prática. Posteriormente, o jogo passa a fazer parte da Confederação Brasileira de Desportos Terrestres (CBDT). A 1ª Taça Brasil de Malha começou a ser disputada em 1969 e era organizada pela CBD. Em 2003 foi fundada a Confederação Brasileira de Malha dinamizada pela Federação Paulista de Malha6. 3. 3 Em Portugal, o jogo de malha é tradicionalmente conhecido como chinquilho, mas há possíveis variações conhecidas como fito ou patela. O chinquilho é jogado por dois ou quatro parceiros. Tem como objetivo derrubar os paulitos (ou mecos) com malhas feitas de ferro, contabilizando dois pontos para cada derrubada do meco e um ponto para a malha que chegar mais perto dos mecos. A partida finaliza quando a dupla conseguir alcançar trinta e um pontos. 4 www.federacaodemalha.com.br. Acesso em 16 abril de 2013, 20:00:00. 5 Atualmente esta entidade é o Comitê Olímpico Brasileiro (COB). Hodiernamente, existe na região sudeste, principalmente no estado de São Paulo, em cidades como São José dos Campos, Taubaté, Santos, Bauru equipes que competem em vários torneios pela região7. No que se refere ao Rio de Janeiro, a partir de trabalhos anteriores: Fonseca e Telles (2006a) e Fonseca e Telles (2006b), e através também da minha observação empírica, é possível encontrar jogos de malha em diversos municípios do estado do Rio de Janeiro, tais como: Miguel Pereira, Paty dos Alferes, Pinheiral, Volta Redonda, São Gonçalo, Santo Antônio de Pádua, Rio de Janeiro. Sendo que, em alguns deles, como o praticado em São Gonçalo baseia-se prioritariamente nas regras advindas da Federação de Malha do Estado Rio de Janeiro. Enquanto em outros, como em Paty dos Alferes, tem-se as regras e formas de jogar de acordo com as especificações indicadas pelo grupo que joga. 3 Do “Clube de Malha” para “Esporte Clube de Malha”: a esportivização do jogo dentro do clube O jogo de malha surge na Praça do Patriarca, bairro de Madureira, zona norte da cidade do Rio de Janeiro entre os anos de 1992 e 1994 8. Jogava-se uma peça de aço ou de ferro, a fim de derrubar um toco de madeira que ficava a uma distância combinada entre eles. Naquela época aproveitaram um espaço ocioso, em uma das extremidades da praça, peneiravam a terra e a molhavam com água para não levantar poeira na hora das jogadas.9 Os jogadores contam que os jogos praticados inicialmente em rua ou praças eram realizados em terra batida, com um deslizamento mais “natural” da malha, mas por outro lado, os pesos da mesma eram variados. Tinham-se malhas feitas de ferro, mais pesadas e em alguns casos, de aço, de menor tamanho, mais leves. Os jogadores 6 Ainda não tenho dados do por que atualmente a Confederação Brasileira de Malha está vinculada diretamente a Federação Paulista de Malha e também os motivos pelos quais não tem ligação ou deixou de ter com o Comitê Olímpico Brasileiro. 7 Pesquisando no site da Federação Paulista de Malha é possível termos uma noção de como o esporte malha atualmente está sendo praticado no estado de São Paulo, principalmente nos campeonatos ligados aos jogos abertos do interior. Acesso em abril de 2013. 8 Os jogadores mais antigos do Clube, tal como senhor Carlito, me dizem que alguns homens, moradores da região, viram um espaço vazio na Praça do Patriarca e começaram a jogar o jogo que tinham aprendido, muitos deles na sua infância. Foram convidando outros homens, vizinhos, familiares, ou conhecidos que já sabiam jogar o jogo para participar também. Não sabem indicar com exatidão quem foi a pessoa que trouxe as informações referentes ao jogo de malha jogado pela Federação de Malha do Estado do Rio de Janeiro, mas tem na figura do senhor carlito, um dos primeiros presidentes do Clube, referência no desenvolvimento do mesmo. 9 Ainda não consegui registro de fotos ou vídeos para tal forma de jogar o jogo na praça do Patriarca. podiam jogar a malha de várias maneiras, escolhendo a que lhe cabia melhor. Jogava-se a malha para o alto, a malha batia no chão. “Antigamente a pista era de saibro, e ai a malha era mais leve, ou com pesos variados, e eles jogavam ela alta (até batia no galho da árvore)”. (Diário de campo, 18 de agosto de 2013- fala do senhor José). Corroborando com tal questão, o autor português Mario Serra (2001) ao falar dos episódios lúdico-festivos das antigas ocupações agrícolas e pastoris coletivas, faz menção ao jogo de malha português e destaca que: “Os jogos de tradição ainda hoje praticados ou conhecidos, muitos provém das práticas lúdicas e rituais dos primeiros homens, como a luta, os lançamentos de pedras e paus, o manejo dos cajados, os saltos e as corridas.” (p. 14). À medida que novos integrantes foram participando das partidas e trazendo consigo formas diferentes de jogar10 criaram o Clube de Malha Patriarca de Madureira e ao mesmo tempo fizeram a marcação de linhas em cima da terra batida. Não havia proteção lateral que separasse a mesma das outras atividades da praça e até mesmo da passagem dos pedestres, então eles improvisaram uma corda lateralmente a fim de exercer tal função. (Foto 1 – Pista de malha em terra batida, em 1998. Uso lateral da Praça do Patriarca; as bolas doadas por um comerciante local para os campeonatos) Com o desenvolvimento do jogo e com o maior número de adeptos em 26 de abril de 1996 o Clube de Malha passa a se chamar “Esporte Clube de Malha Patriarca de 10 Por exemplo, um dos jogadores que foi fazer parte do grupo, aprendeu a jogar o jogo no estado do Espírito Santo, e, além disso, como funcionário da General Eletric, participava dos campeonatos promovidos pelo Servicço Social da Indústria (SESI), na década de 1980. Madureira”. Os sócios são divididos em duas categorias 11: contribuintes que são aqueles que não jogam por diversos motivos, porém desejam participar das atividades geradas e vividas no clube da malha. Esses têm livre acesso ao campo de jogo e as festividades no local. Ficam geralmente na lateral da pista “jogando conversa fora” (como dizem) e falando coisas que provoquem o jogador, principalmente no que diz respeito a sua performance no jogo - “aquele ali não tem jeito não, a barriga não sai mais”. (Diário de campo, outubro de 2012). E há os sócios jogadores, e que se autointitulam atletas, que são efetivamente aqueles que jogam o jogo e também participam dos campeonatos. Nesta nova configuração, o Esporte Clube passa a ter um presidente, diretor de esportes, tesoureiro e se filia à Confederação Brasileira de Malha. Adota, também, o uso de uniforme quando há campeonatos promovidos pela Federação e/ou em torneios promovidos pelos próprios clubes. A cor do uniforme faz alusão à cor do Madureira Futebol Clube. (Foto 2- Atletas do “Esporte Clube de Malha Patriarca de Madureira” ano de 2010) Tanto os sócios jogadores quanto os contribuintes são homens com idade aproximada entre 60 e 80 anos, com escolaridade variando entre o ensino fundamental e o ensino médio. Aposentados de diferentes ramos, tais como: Corpo de Bombeiros, 11 As duas categorias de sócios pagam uma taxa mensal para manutenção da pista, para a compra de uniformes, para a compra da alimentação para as festividades no local e também para ajudar na participação de campeonatos em outros locais no município do Rio de Janeiro e no estado do Rio de Janeiro. Os jogadores pagam R$ 6,00 reais e os contribuintes R$ 3,00 reais. Valores do ano de 2013. Aeronáutica, comerciantes, caminhoneiros, funcionários da área de saúde, etc. São moradores da região, exceto dois deles que moram em bairros um pouco mais distantes. Esta mudança de Clube de Malha para Esporte Clube de Malha, com a confecção de um estatuto, por exemplo, era necessária para que eles pudessem participar dos campeonatos promovidos pela federação, situação que já vinha ocorrendo com outros clubes da região, como Bom Conselho e Bangu. Porém, para que esta situação se efetivasse, era fundamental que o espaço de jogo também fosse modificado e seguisse as medidas determinadas pela Federação. Sendo assim, o então presidente da época, senhor Carlito, começou a fazer contato com a prefeitura com objetivo de conseguir obras para pista de malha. Coincidência ou não12 em 2001 a praça foi totalmente reformada pela prefeitura da cidade do Rio de Janeiro e dialogando com a mesma, não sem tensão, como dizem os sócios13, conseguiram manter a pista e ainda aumentaram sua metragem, tornando-a mais próxima das exigidas pela Federação de Malha do Estado do Rio de Janeiro 14. Fora cercada com alambrado, colocando um portão e um cadeado, sob responsabilidades do Esporte Clube de Malha15. 12 Ainda não tenho dados de como a prefeitura estabeleceu este diálogo com eles, só tenho, por enquanto, a visão deles sobre a situação. Será um passo mais a frente na tese de doutorado. 13 Explorar ao longo da tese as possíveis posições da prefeitura com relação a essas tensões apontadas pelos jogadores e de que maneira o poder público da época visualizava a prática de lazer daquele grupo. 14 O objetivo do jogo é lançar as malhas – peças de aço em forma de disco, com peso em torno de 750 gramas, em direção ao pino que fica dentro dos círculos. Os pontos são efetuados pela derrubada do pino e pelo local onde a malha cai dentro do espaço do jogo. Ganha o jogo quem fizer o maior número de pontos. Nos jogos organizados pela Federação de Malha do Estado do Rio de Janeiro são 12 arremessos, A pista é retangular, em torno de 36 metros de comprimento e 2,5m de largura, cimentado, com piso plano, firme e pintado. Os círculos ficam situados nas extremidades da pista (cabeceiras), dentro do espaço interno, sendo que em seus centros há um pino. Esse é feito de madeira, de forma cilíndrica, com ponta arredondada, comprimento em torno de 18 centímetros e diâmetro de 3 ( três) centímetros. Por fim, há duas cabeceiras onde ficam em cada um deles dois jogadores, caso o jogo seja em duplas, ou um em cada cabeceira, caso o jogo seja jogado individualmente. Se for em dupla, por exemplo, um de cada dupla fica em uma cabeceira. Nos jogos organizados pela Federação de Malha do Estado do Rio de Janeiro são 12 arremessos e cada jogador tem direito a lançar duas malhas por arremesso, seguidamente. 15 Como se deu esta questão da privatização do espaço público na relação direta com a administração pública? O que isto significou para os sócios do Clube e para as suas relações de sociabilidade? Questões a serem discutidas ao longo da tese (Foto 3 – ano de 2001, reforma da pista de malha pela prefeitura) Barth (2000) discorre que é necessário analisar um determinado contexto, sem perder de vista que o mesmo está em constante contato com outras realidades sociais, promovendo uma rede de relações entre si. “Assim, as redes de relações de que participei estendia-se consideravelmente para além da comunidade, e envolvia várias diferenças culturais e circunstâncias físicas e significativas para os próprios Baktaman [...]” (ibid. p. 191). Sendo assim, foi através do contato que os jogadores do Clube de malha tiveram com outros Clube do estado do Rio de Janeiro, e também com a entrada de novos jogadores no próprio clube, que começaram a pensar em modificar o seu espaço de jogo a fim de possibilitar a introdução da dinâmica das regras da Federação de Malha do Estado do Rio de Janeiro. Como dizem, passaram a ser despertados para outras formas de jogar o jogo de malha e a partir daí optaram em modificar as suas formas de praticá-lo. Encontra-se neste caso o que Elias e Dunning (1992) chamam de processo de esportivização cuja ideia está centrada na prática da regulamentação de jogos/passatempos tradicionais em grupos locais/ou gerais com o ideário da competição, noções de trabalho, de mercado, com pressupostos da prática esportiva moderna, com processo cada vez maior de estabelecimento de regras. Sendo assim, eles discorrem que os desportos na Inglaterra iniciarem-se sob a forma de passatempos e foram, no seu processo de desenvolvimento, adquirindo características de maior regulamentação dos comportamentos e unificação das regras regionais. Com isto, paulatinamente, os jogos vão ganhando mais autonomia em relação ao jogador, situação que ele chama de “[...] desenvolvimento organizativo” (p. 67). O que se deve ter cuidado é de que partindo desta análise do processo de esportivização não caiemos na armadilha de situacionar o jogo dentro de uma esfera de menor evolução, em uma suposta linha de desenvolvimento. Seja apontando o jogo como menos organizado do que o esporte, seja indicando possuir um nível de desenvolvimento menor do que o esporte ou vendo o jogo como primeiro passo na evolução para os esportes, como por vezes, parece que Elias e Dunning (1992) nos fazem pensar. O processo de esportivização encontrado no Clube de malha me faz problematizar se não há imbricações de características dos passatempos com aquelas vindas dos jogos esportivizados, onde possa haver nem o seguimento total das regras esportivizadas, ou só quando for conveniente ao grupo, e nem tão pouco abandonando completamente as formas de jogar tidas por alguns deles como “ultrapassadas”. Concordo que o enfraquecimento dos jogos tradicionais tenham se dado com a adoção do modelo inglês de esporte que preconizava a unificação, a tipificação e normalização das práticas corporais como aponta Serra (2001). Segundo ELIAS (1992) só é possível falar em esportes a partir do momento em que há o estabelecimento de regras cuja função é a contenção da violência e a introdução do tempo regrado para garantir uma competição justa. Porém acredito que outras questões também tenham vindo conjuntamente com esta perspectiva, modificando as formas de sociabilidade urbana. O crescimento do urbano e da diminuição de espaços para práticas coletivas, o processo de individualização cada vez mais crescente, modificando as motivações para as vivências de sociabilidade coletiva, a variedade de interesses trazidos com os o ideário da modernidade etc. Ao mesmo tempo, a esportivização dos jogos tradicionais (SERRA, 2001) trazem a cena as dificuldades do esporte moderno no que diz respeito à divisão das pessoas em caminhos que são destrutivos e antisociais. “Sports divides people against themselves16” (BURSTYN, 1999, p. 27). Ela indica que os esportes modernos exacerbam os conflitos sociais, os valores anti-sociais e também antidemocráticos. A fim de celebrar o encerramento do ano de 2012, Esporte Clube de Malha organizou um churrasco comemorativo com a montagem de um campeonato interno com entrega de troféu e medalhas e posteriormente, um churrasco com refrigerante e cerveja para confraternização do grupo. Para este dia convidaram jogadores do clube Bangu. Porém, o que presenciei lá foram comportamentos totalmente distintos do que já 16 Tradução: Os esportes dividem as pessoas contra elas mesmas. vera ou ouvira antes, exemplicando o que Burstyn destaca sobre um dos lados do jogo esportivizado. Quando os jogadores passaram a dar destaque à competição, suas falas, suas faces e suas ações mudaram completamente. Houve bate boca sobre se a partida seria individual ou em duplas (sempre jogam em duplas), este dia foi individual; se colocariam ou não a camisa oficial do time e quem a colocaria; a organização das regras, delegando ao presidente da malha a “ordem da casa”. Neste momento, o presidente do Clube tentando falar, outro sócio jogador solicitando atenção – “eles são muito indisciplinados” e um jogador muito assíduo no Clube disse – “Se continuar assim, vou embora”. O jogo começou tenso, com discussões verbais, em tons mais agressivos e os jogadores muito irritados. – “então vem aqui e marca aqui”, por exemplo, em tom de ordem. Com o passar do tempo, os ânimos foram se acalmando... (Diário de campo, 16 de dezembro de 2012). Hodiernamente, no Esporte Clube de Malha Patriarca de Madureira existem duas maneiras de se praticar o jogo de malha. No primeiro caso, o jogo é entendido como uma atividade voluntária, dotada tanto do espírito lúdico quanto do agonístico, que acontece dentro de um tempo e espaço próprio, com regras e que está vinculado a fatores de ordem cultural, política e social da comunidade (HUIZINGA, 1980). Posso dizer que neste jogo de malha, os jogadores o fazem mais à vontade, sem estar valendo “nada” apostado, conversam sobre diferentes assuntos durante as partidas e seguem de maneira adaptada as normas da Federação de Malha do Estado do Rio de Janeiro. No segundo caso, o esporte malha, são em geral mais tensos, tem-se uma preocupação mais focada com os sentimentos de derrota e fracasso. É organizado e dinamizado segundo as regras propostas pela Federação de Malha do Estado do Rio de Janeiro e se configura como atividade esportiva regida por regras universalizadas, que possibilitam a busca por resultados, podendo receber como premiação medalhas e/ou troféus (STIGGER, 2005). Além disto, gera um mercado ao seu redor, lojas especializadas, por exemplo, em vender as malhas, com a pesagem oficial. Quando há competição entre Clubes federados demanda-se a contratação de um corpo especializado para aplicação das regras. Pode-se encontrar neste caso as ideias de Melo (2010) quando discorre sobre a mudança do conceito de sport. Visto inicialmente como divertimento, recreação, o termo, vai ao longo dos séculos, modificando seus sentidos, até que no final do século XIX e início do século XX: [...] constitui-se em poderosa representação de valores, sensibilidades e desejos que permeiam o ideário e imaginário da modernidade: a necessidade de superação de limites, o extremo de determinadas situações ( comuns em um cenário em que a tensão e a violência foram constantes), a valorização da tecnologia, a consolidação das identidades nacionais, a busca de uma emoção controlada, o exaltar de um certo conceito de beleza. ( p. 94) Desde o início do meu trabalho de campo no Esporte Clube no ano de 2011 nunca vi nenhuma partida que seguisse fielmente as regras da Federação de Malha, pois a medida que deixaram de ser federados, foram se afastando da rigidez de condutas que a mesma exige e foram construindo formas de jogar que aliam as heranças do jogo tradicional com aquelas advindas da prática do esporte malha. Por exemplo, nas regras da federação os jogos são constituídos de 12 arremessos, e no dia a dia de treino, termo usado por eles para designar a prática esportiva, eles executam 6 arremessos, argumentando que se sentem mas cansados com 12 . Há ainda as composições e os rearranjos locais quando fazem campeonatos entre clubes, certo hibridismo do esporte malha com o jogo de malha tradicional, não havendo a interferência direta da Federação de Malha do Estado do Rio de janeiro. Exemplificando, em dia de treino, segundo eles, jogam de uma maneira, com menos regras, e em dia de campeonatos entre eles próprios, colocam juiz, bandeirinha, com regras mais complexas. Dentro desta dinâmica, criam regulamentos próprios para estas competições, porém identifico que seguem a lógica esportivizante do jogo, contudo construindo diferentes formas de diálogo com as situações vividas. Faz-se mister salientar que a(s) cultura (s) possuem uma capacidade de se reinventar, através de movimentos contínuos e descontínuos. Há determinados ajustamentos culturais em função dos contatos estabelecidos com outros enfoques culturais, que muitas vezes, como antropólogos nos “fogem as vistas”. Faz parte do nosso trabalho, identificar e reconhecer a capacidade inventiva e de ressignificações dos atores sociais que se desenvolvem ao entrar em contato com outras formas de relações de sociabilidade, seja no caso do meu estudo, com diferentes maneiras de jogar um mesmo jogo. (WAGNER, 2010). Se nossa cultura é criativa, então as culturas que estudamos, assim como outros casos desse fenômeno têm, de sê-lo. Pois toda vez que fazemos com que outros se tornem parte de uma “realidade” que inventamos sozinhos, negando-lhes sua criatividade ao usurpar seu direito de criar, usamos essas pessoas e seu modo de vida e as tornamos subservientes a nós ( ibid., p. 46). Como mais um exemplo destes ressignificados produzidos pelos jogadores ao se depararem com situações provocadas, no caso deles, pela esportivização do jogo, tem-se a criação de um regulamento. Tive acesso a um regulamento confeccionado por um dos jogadores para organizar um campeonato intitulado por eles de: “Campeonato de malha Zona Oeste” no ano de 2010 cuja participação era baseada em três Clubes: Madureira, Bangu e Vila Olímpica. No corpo do texto, encontravam-se os seguintes parágrafos: 1) “quando um jogador for lançar sua malha, seu adversário deverá ficar á sua esquerda para que esse não se sinta pressionado”. 2) “se o bandeira tiver um apito, vai ser bom, pois todos ouvem com mais nitidez”; 3) “ a digníssima senhora _________ deverá ser bem tratada por todos os presentes”. Ao ler as regras oficiais não encontro pontos que sejam confluentes com os descritos acima, contudo no geral, os jogadores não se desvencilham da lógica uniformizante que o esporte moderno preconiza. Criam regulamentos, mas avançam no sentido de demonstrar que constroem suas lógicas internas, baseadas em suas necessidades e motivações. Mesmo participando do campo esportivo sistematizado, o Esporte Clube de Malha não absorveu linearmente os significados da ideia de esporte que as federações geralmente trazem consigo (uma complexificação das ideias de esporte trazidas pelos ingleses, como descritos na introdução do artigo). No que diz respeito a esta “certa” hibridação das regras trazidas pela Federação de Malha do Estado do Rio de Janeiro com àquelas vindas das práticas culturais já habituais do grupo há uma problemática em terno de uma espécie de vala/trilha que é construída na pista com o intuito de facilitar o deslizamento da malha, e batida dela no pino. Consultando as regras oficiais, esta vala/trilha não está prevista, tal como descreve o parágrafo 17: “O campo deverá se apresentar plano e firme, não sendo permitido lombadas, costeletas e jacarés que desviem a malha em sua trajetória de atingir o pino e que impossibilite ou dificulte o atleta em seus arremessos”. Porém, quando conheci o Clube de Malha, em 2009, existia esta vala/trilha e era motivo de muitas discordâncias, pois uns achavam que facilitava demais o arremesso, perdendo as características mais genuínas do jogo (jogo com maior graça e maior inventividade, como era no “passado” quando se batia a malha no chão de várias maneiras, rodadas por exemplo). Por outro lado, os defensores da vala/trilha o faziam, pois como a distância entre um pino e outro tinha se tornado maior, era necessário esta marcação para que imprimissem menos força ao lançarem a malha (por serem jogadores de mais idade). Quando retornei ao campo em 2013, a vala/trilha não estava mais lá17. Um dos que era contra a esta vala/trilha é sócio jogador chamado José. Ele sempre quer jogar o jogo de malha similar como se jogava antigamente: jogar de cima para baixo, batendo-a no chão e depois a deslizando (rodando a malha). Porém, com a vala/trilha é impossível fazê-lo, pois é obrigatório jogar a malha dentro deste espaço. Diz que quando a pista era de terra batida era possível fazer isto, mas com a pista acimentada fica mais difícil, mas ele sempre tenta. Percebo claramente que há uma tensão na maneira de jogar a malha entre o José e os outros jogadores (sua conduta exemplifica e problematiza o novo e velho, o jogo esportivizado e jogo tradicional, o avançado e o ultrapassado). Muitas vezes ele é exaustivamente desafiado na sua forma de jogar e visto por muitos deles, como um jogador ruim. Pude presenciar tal ênfase na figura do jogador José quando outro jogador, em um bate papo comigo, estava debruçado na grade e fez um comentário para mim sobre o José: - “O José é o pior daqui, ele joga “rodando a malha”. Interrompe a nossa conversa e faz um comentário direto para o próprio José que estava na pista jogando: “O José ficou no ovo” e logo em seguida fala de novo: - “José, coloca para quebrar”. (Diário de campo, 19 de setembro de 2012). 4 Considerações finais: De certa forma, a esportivização ocorrida com o jogo de malha no interior do Esporte Clube de malha acompanhou as reestruturações que a pista do jogo fora sofrendo ao longo do tempo. À medida que melhorias eram feitas na praça e, por consequência na pista, foi ficando cada vez mais fácil se adaptar as regras advindas da Federação de Malha do Estado do Rio de Janeiro. Uma situação ajudou a retroalimentar a outra. A formalização, a metrificação, a homogeneidade do espaço foi facilitando a entrada da esportivização do jogo. Por outro lado, a demanda por quererem jogar um jogo esportivo os fez “lutar” por um espaço que permitisse dar vazão as suas expectativas, e assim ocorreu ao longo dos anos de 1990 e 2000. Refiro-me aqui novamente as reflexões realizadas por Bourdieu (1983) acerca da percepção de que o campo esportivo é um espaço fechado, mas que na realidade está em contato direto com as questões sociais, econômicas, culturais do seu tempo. 17 Ainda não tive oportunidade de no campo problematizar acerca da retirada da vala da pista. Neste contexto, Serra (2001) nos aponta a existência de dois objetos em diálogo (jogo tradicional e jogo esportivo) como que num campo de forças, onde os dois estão “brigando” pelas suas colocações. Discordo desta afirmativa, pois a etnografia que venho desenvolvendo tem construído dados, assim como as minhas argumentações e exemplos que discorri neste texto, que vão na contramão do exposto pelo autor. O Esporte Clube Malha de Madureira apresenta internamente interlocuções entre o jogo e o jogador cujos desdobramentos são a interferência dos jogadores na construção dos significados atribuídos as situações e objetos, fazendo construções e reconstruções destas relações, num continnum entre o tradicional e o oficial. Referências BARTH, F. O guru, o iniciador e outras variações antropológicas. Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria, 2000. BOURDIEU. P. Programa para uma sociologia do esporte. In: Coisas ditas. São Paulo: brasiliense, 1983, p. 207- 220. CABRAL, A. Jogos populares portugueses (Coleção Coisas novas). Porto: Editorial Domingos Barreira, 1986. ELIAS, N. e DUNNING, E. A busca da excitação. Lisboa: Difel, 1992. MELO, V. A. Esporte e Lazer. 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