O Performer Diante de uma Obra Aberta

Transcrição

O Performer Diante de uma Obra Aberta
O Performer diante de uma Obra Aberta1
Carol Marilyn Coelho2
Resumo: O presente texto faz parte da pesquisa do Trabalho de Conclusão de Curso – TCC
que vem sendo desenvolvido pela autora no Curso de Licenciatura em Música do
Departamento de Música – DEMUS do Instituto de Filosofia, Artes e Cultura – IFAC da
Universidade Federal de Ouro Preto – UFOP em Minas Gerais. Através desta pesquisa,
procura-se observar como se dá a relação de diálogo entre o performer e a obra musical,
partindo da minha própria experiência como estudante de música, sem deixar de considerar os
fatores que influenciam nessa relação. Traz uma abordagem de conceitos que relacionam
performance, estética contemporânea e a Flauta Doce.
Palavras-chave: Performer – Obra Aberta – Leitura – Flauta Doce - Meditation de Ryohei
Hirose.
Introdução
O presente texto faz parte da pesquisa do Trabalho de Conclusão de Curso – TCC que
vem sendo desenvolvido pela autora no Curso de Licenciatura em Música do Departamento
de Música – DEMUS do Instituto de Filosofia, Artes e Cultura – IFAC da Universidade
Federal de Ouro Preto – UFOP em Minas Gerais. Através desta pesquisa, procura-se observar
como se dá a relação de diálogo entre o performer e a obra musical, partindo da minha própria
experiência como estudante de música, sem deixar de considerar os fatores que influenciam
nessa relação. O objeto de estudo é a análise do lugar que este sujeito – com suas
idiossincrasias – definido como performer, irá ocupar enquanto exerce sua leitura de uma
obra aberta. Quando falamos de lugar não nos referimos ao espaço físico, que podem ser
1
Comunicação de Pesquisa em Andamento apresentada durante o IV Encontro Nacional de Flauta Doce
(Enflama) na Universidade Federal de Pernambuco, Recife - Outubro de 2010. Publicado em 2011 na revista do
Encontro, intitulada: Novos Caminhos da Flauta Doce: Palestras e Pesquisas, organizada por Daniele Cruz
Barros.
2
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muitos certamente; mas estamos dando um olhar para a atitude do performer enquanto
produtor da mensagem (música), e que importância este possui para a transmissão da mesma.
A pesquisa será realizada tomando como exemplo o enfrentamento da autora diante do
processo de leitura da peça Meditation do compositor japonês Ryohei Hirose; sendo esta uma
peça contemporânea datada de 1975, composta para flauta doce contralto. É importante
explicitar que a escolha desta peça se deu depois um processo de pesquisa e busca de
partituras contemporâneas para Flauta Doce, onde esta foi selecionada, a princípio, por um
“gosto pessoal” da autora, mas principalmente por apresentar características que propiciam
discutir os conceitos de abertura, indeterminação e mobilidade que serão abordados na
pesquisa.
Tem-se por certo de que o conteúdo desta pesquisa é muito abrangente, servindo às
outras formas de expressão artística, bem como, aos demais músicos que se preocupam com
as questões da performance e da estética contemporânea; mas este foi relacionado à Flauta
Doce e ao repertório dedicado a ela, por ser este o instrumento de expressão da autora para a
sua prática musical, e numa tentativa de contribuir na construção de conhecimentos que
contemplem o instrumento.
A fim de entendermos a natureza do diálogo entre essas variáveis, faz-se necessário, à
priori, apresentarmos o conceito de obra de arte que será adotado, para logo em seguida
compreendermos este lugar de atuação do performer.
A música em seus vários aspectos e manifestações, também pode ser entendida como
uma obra de arte. Mas o que é de fato uma obra de arte? A fim de fundamentar este conceito,
iremos nos ater aos estudos de Luigi Pareyson e em sua Teoria da Formatividade. De acordo
com os seus estudos, a obra é considerada, sobretudo, como uma forma. Todavia, essa forma
não diz respeito ao aspecto estrutural da obra de arte, embora ela seja válida em sua
fisicidade, mas em considerá-la como um organismo detentor de vida.
Podemos entender, então, formatividade como o todo de um processo constituído pela
forma formante (a obra de arte), o processo formativo (a ação de formar) e o formante (quem
exerce a ação de formar).
Segundo Eco (1972, p. 16):
essas afirmações, e a definição de arte como pura formatividade, poderiam
gerar equívocos, sobretudo se se associar a palavra forma a velhas querelles
de forma-conteúdo ou forma-matéria: mas qualquer presunção de
formalismo estéril desaparece, quando nos referimos ao conceito de forma
na acepção de organismo, coisa estruturada que enquanto tal reconduz à
unidade elemento como sentimentos, pensamentos, realidades físicas,
coordenados por um ato que procura a harmonia da própria coordenação,
mas que procede em conformidade com leis que a própria obra – que não
pode ser abstraída desses mesmos pensamentos, sentimentos, realidades
físicas que a constituem – postula e manifesta ao fazer-se.
Diante disso, se a obra é constituída de “realidades físicas” e se “manifesta ao fazerse”, podemos dizer que a obra de arte se apresenta a nós de duas maneiras bem distintas: a
primeira no seu aspecto material e mais imediato, e a segunda no seu processo formativo.
A respeito do seu aspecto material, Pareyson (1997, p. 220) nos diz que “não se dirá,
deveras, que a poesia e a música vivem na página impressa, pois que só “vivem” naquele
complexo sonoro a que dá lugar a sonorização quer externa, quer interna [...]”. E quanto a sua
manifestação durante o processo formativo observa-se que:
a forma é o próprio processo em forma conclusiva e inclusiva, logo é algo
que não se pode separar do processo de que é a perfeição, a conclusão e a
totalidade. É memória atual e permanente reevocação do momento produtivo
que lhe deu vida. (ECO, 1972, p. 20)
Deste modo, no que tange a obra musical, percebemos que esta pode ser expressa
através da partitura e na multidão de suas execuções. Todas as características encontradas na
fisicidade de uma obra, unidas às idiossincrasias daqueles que a executam, possibilita-nos
considerada-lá como uma obra aberta.
Uma obra aberta nada mais é do que aquela que nos permite múltiplas leituras; sendo
assim, podemos dizer que toda obra de arte, e mais especificamente uma obra musical, na
verdade, é uma obra aberta, uma vez que cada leitor – performer – irá se relacionar com ela
de acordo com suas próprias concepções. Todavia, nesta pesquisa este conceito será definido
por Umberto Eco (2007, p. 40) e, para ele, esta seria aquela que é “esteticamente válida na
medida em que pode ser vista e compreendida segundo multíplices perspectivas,
manifestando riqueza de aspectos e ressonâncias, sem jamais deixar de ser ela própria [...]”.
Nota-se então, que o maior ou menor grau de abertura de uma obra será determinado,
primeiramente, pelo modo em que esta é manifestada em sua fisicidade. Quanto a isso, o uso
de novas notações desempenha papel importante. E em segundo lugar, pelas intervenções do
performer, que lhe imprimirá sua personalidade.
Para que haja o diálogo entre o performer e a obra musical, é necessária uma ação
deste sujeito, que denominamos de leitura. Para que esta ocorra, ela exige duas atividades
humanas: uma atividade formante e uma atividade interpretante.
A atividade formante pode ser entendida como o processo de produção e/ou execução.
Em suma, está relacionado ao processo mecânico, que na leitura de uma obra musical diz
respeito a sua execução, quer seja no âmbito do olhar do performer sobre a partitura, como
quem lê um texto; quer seja na sua expressão através da técnica instrumental. Já a atividade
interpretante é algo mais subjetivo, que exprime a personalidade de quem a interpreta.
De acordo com Pareyson (1997, p. 226):
a
interpretação ocorre quando se instaura uma simpatia, uma
congenialidade, uma sintonia, um encontro entre um dos infinitos aspectos
da forma e um dos infinitos pontos de vista da pessoa: interpretar significa
conseguir sintonizar toda a realidade de uma forma através da feliz
adequação entre um dos seus aspectos e a perspectiva pessoal de quem a
olha.
É importante ressaltar que, para que ocorra o processo formativo, necessita-se da ação
do formante – performer – aquele que irá formar a obra. Este sem dúvida é o artista que a
concebe, trazendo à fisicidade o que antes fora gerado ulteriormente; mas estes formantes
também são os muitos artistas que irão formar a obra, a partir da sua manifestação física,
através de suas próprias leituras.
Eco (1972, p. 18) afirma que:
de acordo com a estética da formatividade, o artista, formando, inventa
efetivamente leis e ritmos totalmente novos, mas esta novidade não surge do
nada, surge, como uma livre resolução de um conjunto de sugestões, que a
tradição cultural e o mundo físico propuseram ao artista sob forma inicial de
resistência e passividade codificada.
Ou seja, a fisicidade da obra torna-se o ponto de partida para a leitura do performer;
leitura esta que depende das atividades formantes e interpretantes deste sujeito. E esta mesma
fisicidade cria uma série de resistências e obstáculos para o performer. Isso nos leva a ter
como hipótese que: para que haja uma atividade interpretante precisa-se, primeiramente, da
realização de uma atividade formante.
Definido o objeto e suas variáveis e, partindo do pressuposto de que “a obra não tem
outro modo de viver a não ser aquela execução que somente quer viver de sua vida.”
(PAREYSON, 1997, p. 220), apresenta-se a problemática que orientará a pesquisa:
De que maneira o performer interfere no processo formativo de uma obra aberta?
E esta se desdobra nas seguintes questões: Que nível de atividade formante é necessário para
que se realize uma atividade interpretante? Que fatores propiciam uma maior liberdade de
intervenções e que resistências o performer encontra diante da leitura de uma obra aberta,
neste caso, Meditation de Ryohei Hirose?
Como objetivo geral da pesquisa procura-se compreender de que modo o performer
dialoga com determinada obra musical, além de observar o enfrentamento desse sujeito – que
será autora da presente pesquisa – identificar os fatores que influenciam na leitura dessa obra,
bem como, os que implicam em sua abertura.
Através de uma metodologia de caráter qualitativo, procurar-se-á seguir as seguintes
etapas: pesquisa bibliográfica que irá embasar os conceitos que serão abordados. Analisar a
obra no que diz respeito à sua compreensão estrutural, estudando os casos de notação
contemporânea, por exemplo. Reconhecer a obra por meio de sua execução e relacioná-la ao
performer, aos dados observados e ao referencial teórico, tantas vezes for necessário,
conforme o tempo disponível para tal.
Justificativa
Acredito na relevância desta pesquisa, na tentativa de contribuir para reflexão de uma
prática, como também, no sentido de fazer circular entre a Comunidade Acadêmica Brasileira,
saberes relacionados ao objeto de estudo e às suas variáveis.
Nesse sentido, busca-se produzir novos conhecimentos acerca da flauta doce através
da música contemporânea, uma vez que, quando há estudos referentes ao instrumento, em sua
maioria, estes são voltados à sua utilização enquanto instrumento musicalizador ou à prática
da Música Antiga.
Considerações Finais
Certa vez ouvi alguém dizer que nós temos experiência estética com tudo o que nos é
significativo3. Ora, nada mais óbvio que nos relacionarmos mais facilmente com coisas ou
pessoas com quem temos mais afinidade. Deste modo, o diálogo é espontâneo e flui
naturalmente. Não poderia ser diferente em se tratando de uma pesquisa acadêmica, na qual se
procura exprimir através das palavras, das idéias e – como trabalhamos com música – através
do som e da performance que desejamos apresentar, tudo aquilo que nos foi compartilhado
durante 4 anos de uma relação de ensino-aprendizagem, onde o conhecimento vai sendo
construído de maneira viva e orgânica através das experiências conjuntas entre alunos e
professores.
Em virtude disso, só poderia falar neste trabalho de coisas que são significativas para
mim, e acreditar que esta pode contribuir para circulação de um conhecimento que não
pretende ser um acúmulo de dados, mas fazer relações com outros conhecimentos de modo a
ter valor para outrem.
Por se tratar de uma pesquisa em andamento, até o presente momento construiu-se a
base teórica que fundamenta a pesquisa; entretanto, ainda não é possível abordar aqui os
resultados observados da interação da autora com a peça Meditation de Ryohei Hirose, por
estar ainda em processo de formação, ficando sua demonstração para o próximo ano.
3
Professor Doutor Eduardo Seincman – Durante o Evento “Diálogos Musicais – Encontro de Musicologia” do
Festival de Inverno de Ouro Preto e Mariana – Fórum das Artes 2009.
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