Omens sem H

Transcrição

Omens sem H
Omens sem H
Espantam-se? Não se espantem. Lá chegaremos. No Brasil, pelo
menos, já se escreve "umidade". Para facilitar? Não parece. A Bahia,
felizmente, mantém orgulhosa o seu H (sem o qual seria uma baía
qualquer), Itamar Assumpção ainda não perdeu o P e até Adriana
Calcanhotto duplicou o T do nome porque fica bonito e porque sim.
Isto de tirar e pôr letras não é bem como fazer lego, embora pareça.
Há uma poética na grafia que pode estragar-se com demasiadas
lavagens a seco. Por exemplo: no Brasil há dois diários que ostentam
no título esta antiguidade: Jornal do Commercio. Com duplo M, como
o genial Drummond. Datam ambos dos anos 1820 e não actualizaram
o nome até hoje. Comércio vem do latim commercium e na primeira
vaga simplificadora perdeu, como se sabe, um M. Nivelando por baixo,
temendo talvez que o povo ignaro não conseguisse nunca escrever
como a minoria culta, a língua portuguesa foi perdendo parte das suas
raízes latinas. Outras línguas, obviamente atrasadas, viraram a cara à
modernização. É por isso que, hoje em dia, idiomas tão medievais
quanto o inglês ou o francês consagram pharmacy e pharmacie (do
grego pharmakeia e do latim pharmacïa) em lugar de farmácia;
ou commerce em vez de comércio. O português tem andado, assim,
satisfeito, a "limpar" acentos e consoantes espúrias. Até à lavagem de
1990, a mais recente, que permite até ao mais analfabeto dos
analfabetos escrever sem nenhum medo de errar. Até porque,
felicidade suprema, pode errar que ninguém nota. "É positivo para as
crianças", diz o iluminado Bechara, uma das inteligências que
empunha, feliz, o facho do Acordo Ortográfico.
É verdade, as crianças, como ninguém se lembrou delas? O que
passarão as pobres crianças inglesas, francesas, holandesas, alemãs,
italianas, espanholas, em países onde há tantas consoantes duplas,
tremas e hífens? A escrever summer, bibliographie,
tappezzería, damnificar, mitteleuropäischen? Já viram o que é ter de
escrever Abschnitt für sonnenschirme nas praias em vez de "zona de
chapéus de sol"? Por isso é que nesses países com línguas tão
complicadas (já para não falar na China, no Japão ou nas Arábias,
valha-nos Deus) as crianças sofrem tanto para escrever nas línguas
maternas. Portugal, lavador-mor de grafias antigas, dá agora primazia
à fonética, pois, disse-o um dia outra das inteligências pró-Acordo, "a
oralidade precede a escrita". Se é assim, tirem o H a homem ou a
humanidade que não faz falta nenhuma. E escrevam Oliúde quando
falarem de cinema. A etimologia foi uma invenção de loucos, tornemo-
nos compulsivamente fonéticos.
Mas há mais: sabem que acabou o café-da-manhã? Agora é café da
manhã. Pois é, as palavras compostas por justaposição (com hífens)
são outro estorvo. Por isso os "acordistas" advogam cor de rosa (sem
hífens) em vez de cor-de-rosa. Mas não pensaram, ó míseros, que há
rosas de várias cores? Vermelhas? Amarelas? Brancas? Até cu-dejudas deixou, para eles, de ser lugar remoto para ser o cu do próprio
Judas, com caixa alta, assim mesmo. Só omens sem H podem ter
inventado isto, é garantido.
Por Nuno Pacheco
Jornalista

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