À memória de Dom Jacques Dupont (1915

Transcrição

À memória de Dom Jacques Dupont (1915
TÍTULO ORIGINAL:
La première histoire du christianisme - Les Acres des Apôtres
© Les Édilions du Cerf, Paris, 1999
ISBN: 2-204-06293-6
© Labor et Fides, Genève, 1999
ISBN: 2-2309-0956-9
Maurício Balthazar Leal
Ronaldo Hideo Inoue
Rita de Cássia S. Lopes
PREPARAÇÃO:
DIAGRAMAÇÃO:
REVISÃO:
À memória de Dom Jacques Dupont
(1915-1998),
em gratidão pela envergadura teológica
de sua interpretação dos Atos dos Apóstolos.
Para Lucas teria sido, por certo,
uma "diaconia da Palavra" (At 6,4).
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© EDIÇÕES LOYOLA, São Paulo, Brasil, 2003
Capítulo
HI
A unidade
de Lucas-Atos,
um trabalho
da leitura
Escrevendo seus "Atos de apóstolos", Lucas oferece a seus
leitores u m "relato do começo". Esse relato do nascimento
do cristianismo faz parte de uma obra dupla (iniciada pela biografia
de Jesus), à qual Henryjoel Cadbury foi o primeiro a dar, em 1927,
o nome de "Lucas-Atos" .
E verdade que este rótulo precisou esperar pela crítica redacional {Redaktionsgeschichtè) para ser aceito na pesquisa; mas depois
de Conzelmann ele se impôs (quase) sem reserva. Que o Evangelho de Lucas e os Atos têm um só autor, já foi afinnado pela Igreja na
Antigüidade e nunca foi seriamente posto em dúvida, mas a pesquisa deve a Henry Cadbury, e depois a Martin Dibelius, o impulso para
explorar no plano literário c teológico a unidade do díplicu lucano.
1
2
1.
2.
Depois de ter usado a fórmula "Lucas-Atos" em vários artigos da revista JBL,
em 1925 e 1926, H. Cadbury ficou célebre por sua monografia de 1927, The
Making ofLuke-Acts. Ele se justifica alegando o exemplo veterotestamentário
dos dois livros de Samuel ou dos Reis, mas prefere deixar aos escritos lucanos
o seu nome, em vez de rebatizá-los como Ad Theophilum 1 e Ad Tbeophilum II. "Expressões compostas com hífen não são bonitas, tipograficamente,
nem propriamente compatíveis com a língua inglesa, mas para enfatizar a unidade histórica dos dois volumes dirigidos a Teófilo, a expressão Lucas-Atos
talvez seja justificável" (p. 11).
H. Conzelmann, DieMitte derZeil. Studien zurTbeologiedesLukas, 1954,1964
(5 ed.).
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A
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PRIMEIRA H I S T Ó R I A D O C R I S T I A N I S M O
Lucas-Atos, pois, representa uma entidade muito recente na história bimilenar
da leitura do Novo Testamento. Ora, essa entidade se impôs tão rapidamente, na
pesquisa, que hoje em dia ela pode ser saudada como um fato consumado '. Desde a década de 1960, considerar o Evangelho de Lucas e o livro dos Atos obra do mesmo escritor e cristalização de uma só teologia é o .postulado de toda pesquisa sobre o texto lucano. Fazendo isso. os exegetas tomaram uma decisão metodológica
considerável, sustentando que uma leitura correta da obra de Lucas requer que se
una o que o cânon do Novo Testamento separou. Essa medida heurística, é preciso dizê-lo, tem sido de incontestável fecundidade; ela penriitiu que, por intermédio de sua obra, se descobrisse a grandeza do Lucas historiador, do Lucas escritor
e do Lucas teólogo.
55
• O Evangelho e os Atos distinguem-se por um tratamento diferente das fontes (Dibelius
chamou a atenção para esse fenômeno desde 1923 ); do ponto de vista estilístico, o
desmembramento narrativo do Evangelho não oferece nenhum equivalente aos grandes discursos dos Atos ou a suas seqüências narrativas de grande amplitude (At 3-5;
6
1
Mas aí espreitam os mal-entendidos. Pois o que se entende por "unidade" em
matéria de narratividade? A unidade de pensamento na correspondência paulina pode ser deduzida de um vocabulário constante, de um uso homogêneo dos instnimentos conceptuais, de uma coerência nos roteiros argumentativos. Mas como ocorre isso
no gênero narrativo? Lá os mesmos sinais podem ser averiguados? Claro que não. Um
narrador não expõe sistematicamente suas idéias como no gênero argumeniativo; ele
as transmite obliquamente, por intennédio de seus personagens, ou destila-as à mercê
de seus comentários (implícitos ou explícitos). Um narrador como Lucas nem sempre revela claramente o que pensa. Em resumo: embora o caráter narrativo do texto
não exclua absolutamente no autor um sistema coerente de pensamento, este se subtrai a uma lógica do tipo argumentativo. Repito a pergunta: como se descobre a unidade de pensamento em narratividade?
UNIDADE D E L U C A S - A T O S , U M TRABALHO DA LEITURA
10-11; 13-H; 21-26).
• O leitor passa de uma temática centrada na PotoiAE ia TOO 0£oü (Lc) a um querigma
fundamentalmente cristológico (At).
• A dualidade justo-pecador (6ÍKaioç-ÒLiapTC0AÓO decisiva no Evangelho (Lc 5,32;
7,34s.39; 15,1-17; 18,9-14; 19,6-10), desaparece nos Atos.
!
• A autoridade da Torá é integralmente mantida em Lc 16,17; na soteriologia dos Atos,
porém, ela não domina mais (ver 15,10.28s.!).
• Palavras duras como a do Jesus lucano contra os ricos (Lc 6,24s.; 12,13-21; 20,47) e sobre os perigos da riqueza (Lc 12,33s.; 16,19-31; 18,18-20) não se encontram mais nos
Atos, e é dado todo valor a uma ética da partilha dos bens (At 2,42-45; 4,32-37) e a
uma grande atenção pelas pessoas afortunadas e de alto escalão (At 8,27; 9,36; 16,14;
17,34; 18,7 etc).
Com base nessas disparidades, Parsons e Pervo sugerem que se desatrelem Lc e
At. Não contestam a unicidade do autor, mas a homogeneidade da obra, tanto a literária
como a teológica ou a de gênero. Sem pleitear o divórcio entre os dois livros, eles
convidam a repensar o nexo entre eles. "As relações entre estes dois livros são relações entre dois livros, e não as correspondências dentro de um todo, partido em duas
partes por motivos de comodidade." Essa observação é boa. Ela nos alerta sobre o
perigo causado pelo caráter automático atribuído, na pesquisa, à entidade Lc-At; é o
risco de se atribuir ao autor de ad Tlieophilum um pensamento massificado, que se
encontrasse distribuído de acordo com os episódios do macrorrelato Lc 1-At 28, sem
levar em conta as discordancias . De outro lado, a proposta de desatrelar Lc e At é
suspeita de exacerbar-lhes as tensões internas, em detrimento de sua unidade. Como,
então, dar conta da relação entre os dois livros? Numa perspectiva narratológica, iremos nos perguntar se, apesar das tensões internas, o macrorrelato causa no leitor uma
opressão de unidade, e por quais meios.
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Tensões internas à obra
Recentemente levantaram-se vozes convidando a "repensar a unidade Lucas-Atos"
(título do livro de Parsons e Pervo) . Esses dois autores dão atenção a certas tensões
internas à obra; assinalarei as principais.
4
• O Evangelho e os Atos pertencem a dois gêneros literários diferentes; o primeiro é do
tipo biográfico; o segundo, do tipo historiográfico .
5
3-
4.
5.
Mareei Dumais, em sua resenha da pesquisa, considera a principal conquista da exegese dos Atos
Lc e At serem considerados "um livro em dois volumes" ("Les Actes des Apôtres. Bilan et orientations", 1995, p. 313)- Porém, em vez de "conquista" prefiro dizer "proposta heurística", sempre
questionável, sobretudo quanto a suas modalidades (é o que tentarei fazer).
M. V. Parsons e R. I. Pervo, Rethinking the Untíy ofLnke and Acts, 1993- Antes deles: J. M. Dawsey,
"The Literary Unity of Luke-Acts: Questions of Style — A Task for Literary Critics", 1989; M. C.
Parsons, "The Unity of Lukan Writings: Rethinking the Opinio Communis", 1990, pp. 29-53- Bem
anteriormente: A. C. Clark, The Acls of the Aposües, 1933, pp. 393-405.
Tentando sair do impasse em que se encontrava a identificação de um mesmo gênero literário para
Lc e At, R. J. Pervo propôs em 1989 uma pergunta melindrosa: é realmente preciso filiar os dois
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gênero literário? ("Must Luke an Acts belong to the Same Genre?", 1989); ver
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^ 'oelius. "Stilkritisches zur Apostelgeschichte", 1923,1968 (5 ed.). Dibelius tirou a conclusão
lado"
^ ^ ° querigmática primitiva excluía todo relato sobre os apóstolos, o que foi contes„jjj ' p
z ã o , por J. Jervell ("Zur Frage derTraditionsgrundlage der Apostelgeschichte", 1962;
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Traditions in Acts", 1972).
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° ' Toole (The Unity ofLukes Theolog)>: An Analysis of Luke-Acts, 1984)
j (Luc-Actes. Lapromesse de Thistoire) não estão isentas deste risco.
8 r a f i a sc J e R o D e r t
A UNIDADE DE L U C A S - A T O S , UM TRABALHO DA LEI i URA
/A / - K l l / i f c l K A H I S T O R I A D O C R I S T I A N I S M O
Uma impressão de unidade
Defendo a seguinte idéia: o relato deLc-At visa realmente a causar uma impressão
de unidade, no plano teológico.; mas essa unidade não é explicitada no texto-, ela
tem de ser construída na leitura, como uma tarefa confiada ao leJtor.-.Comentário: do único metadiscuiso que Lucas apresenta sobre seu relato (Lc 1,1-4;
At l,ls.), podemos deduzir que o autor concebeu sua obra em duas partes, pois ele
chama o Evangelho de "primeira palavra" (npwTOç Àóyoç At 1,1a). Contudo, essa
articulação não decide a questão da coerência. A questão da unidade deve ser resolvida no nível da estratégia narrativa empregada. Ora, a composição de um relato duplo "Jesus + apóstolos" não prevê que a leitura se desenrole ad libitum. em virtude
da disposição linear do relato, a leitura dos Atos pressupõe a infonnação contida no
Evangelho. Por outro lado, o princípio teléológico da leitura implica que o sentido (e
a unidade) de uma obra sejam perceptíveis no fim, no momento ern que a obra aparece em sua totalidade. É. pois, por um jogo de ecos entre o acima e o abaixo do relato que o narrador provocará o leitor a construir a unidade da narrativa. Praticamente,
a tarefa do leitor consiste em inventariar os indícios que visam a unificar o mundo do
relato, e em averiguar que o fim do relato confirma a intenção unificadora.
Tensões intrínsecas à narratividade
Defendo outrossim a idéia de que a busca da unidade num relato deve integrara
presença de tensões e rupturas, inerentes ao fenômeno narrativo.
Comentário: Stephen Moore sustentou com razão que tensões e deslocamentos
são intrínsecos à narratividade, pois esta repugna a sistematização do discurso argumentativo ; podemos acrescentar que isso vale ainda mais para a narrativa histórica,
pois o relato histórico é destinado a prestar conta de uma evolução, de uma história que avança, de um projeto que se modifica. Sintomática desse ripo de mudanças
é a pneumatologia lucana, distribuída diferentemente conforme se trata da história
de Israel (os profetas), do Evangelho (Jesus) ou dos Atos (os apóstolos, depois os cristãos) . A questão, pois. é esta: Como o narrador, num relato destinado a registrar modiíii-âvOcb, consegue manter a coniinuidade, apesar das mudanças?
É importante também perguntarmo-nos como o narrador assinala em seu relato
os fatos que provocam conseqüências imprevistas. Quanto a isso, o p2pel desempenhado pela reviravolta da Páscoa (que é exatamente a articulação em tomo da qual
se dobra o díptico lucano) não deve ser subestimado. De todas as variações estilísticas e temiinológicas entre o Evangelho e os Atos. cuidadosamente observadas por
Albert Cark e James Dawsey", algumas se explicam pelo uso de fontes; muitas de9
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9.
10.
11
Si. .Moore, "Are lhe Gospel Unified Nanatives?", 1987.
Isso será esrudado no capitulo VI: 'A obra do Espírito".
A C Clark, The Acts oftbe Apostles, 1933, pp. 393-405. J. M. Dawsey. "The Literary Unity of LukeActs: Questions of Sryle — a Task for Literary Criiics", 1989.
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vem-se à reviravolta pascal. É d caso do termo \jaGqir]q (determinado por um pronome possessivo no Evangelho; sem pronome nos Atos) , ou da diferença entre
os úmlos cristológicos em Lucas (uso diferenciado) e nos Atos (uso cumulativo) .
partindo daí. procederei em três etapas: primeiro me interrogarei sobre os indícios literários que mostram que o narrador conta com uma só entidade narrativa
Lc-At (3-D- Num segundo passo, apresentarei três modalidades pelas quais o leitor
é levado a perceber que o mundo do relato de Lc-At é um só: a pjolepse. a cadeia
narrativa e o emprego de modelos (3.2). Em terceiro lugar, estudarei uma das modificações teológicas mais observadas da obra ôeàiczàa a TeóTilo: a mudança entre o Evangelho e os Atos quanto ao papel da Lei; quero mostrar, nesse caso muito
especial, como Lucas mantém a unidade de sua obra, apesar de registrar a grande
mudança trazida pelo acontecimento cristológico (3.3). A conclusão será sobre o
díptico lucano (3.4).
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3.1. Lucas-Atos, uma só entidade narrativa
Quais são os sinais que dào a entender lüerariamenteque o autor concebeu como
um todo os 52 capítulos de Lc-At?
Informações retidas
Inesperadamente, o primeiro indício vem do estudo das fontes. Em vários casos, o
exame dos paralelos sinóticos mostra realmente que o narrador Lucas reteve deliberadamente algum tema do Evangelho, para deslocá-lo em direção aos Atos. Todas
as vezes a razão da transferência é providenciar algum efeito, mais adiante, no relato.
Quando do processo de Jesus no Sinédrio, o tema do falso testemunho sobre a
destruição do santuário e sua reconsüTjção em três dias (Mc 14.58) é saltado por Lucas
(ver 23.66). que mais tarde o emprega num contexto sobre Estêvão (At 6.14). Desconheceria Lucas a presença de uma crítica ao Templo na tradição sobre Jesus? Um
detalhe d?, redação de Ar 6.4 nos prova o contrário, pois a acusação contra Estêvão
cita. sutilmente, não uma-pahvra direta, mas uma palavra transmitida: "Nós o ouvimos dizer que este Jesus, o nazoreu, destruiria este lugar e mudaria as normas que
Moisés nos transmitiu '. Lucas, portanto, não desconhece a origem da crítica, mas
transfere-a do Mestre para o discípulo. Por que esse deslocamento? A razão maisplau1
12.
13.
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Ao passo que no Evangelho, ua8ryTiíç °
determinado por um pronome posses-_
sivo (seralmente oi paBryTci CtÔToG), o termo aparece em sentido absoluto nos Atos, onde figura como uma designação eclesiológka, equivalente a oi moTeúovTEç (exceção: At 9,1.25).
O Evangelho de Lucas atesta uma aplicação diferenciada dos títulos cristológicos (tcupioç.
6 . & Ó O K C A O C . é nioTCTn.ç. uiòc. IOV óvÔpwnoú, XpiOTÓÇ), conforme os personagens do relato.
Os discursos dos Atos praticam a acumulação dos títulos, reflexo de uma concentração quengmatica pós-pascal (ver por exemplo At 3,13-21!).
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A
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A UNIDADE DE LUCAS-ATOS,
sível é que i ; >apel a i ribuído ao Templo em At 1-5 não se coadunaria com a degradação escatológica à qual o logion de Marcos o submete.
No mesmo sentido, a suspensão da Torá da pureza, ordenada em Mc 7,1-23. não
encontra seu lugar antes da visão de Pedro em At 10; Lucas adiou-a, para não antecipar a abolição da barreira entre o puro e o impuro, a ser revelada ao apóstolo ("Não
te atrevas, tu, a chamar impuro o que Deus tornou puro!" — Aí 10,15) . Outro exemplo: o peso atribuído pelo autor à questão da recusa de Israel, no fim do macrorrelato
(At 28,16-31), levou-o a reduzir a uma forma mais breve a citação de Is 6,9s. na pregação em parábolas (Lc 8,10b; dif. Mc 4,12 e Mt 13,l4s.) a finalidade é reservar para
os últimos versículos a versão integral e, por conseguinte, também o peso integral
do texto profético (At 28,26s.) .
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;
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Verificada por três vezes, essa retenção de informações denota, pelo menos, que
o narrador conta com um enredo cujo remate é colocado em At 28, e não em Lc 24.
Observando o procedimento retórico da inclusão, poderemos dar mais um passo.
•
Inclusões significativas
A inclusão, que no final lembra o tema inicial, é um conhecido procedimento retórico, tanto de narradores como de oradores, visando a realçar a unidade do assunto.
Podemos considerá-la uma maneira de encerrar o relato.
No caso do díptico lucano, cada Uma de suas metades é cercada por uma inclusão significativa. O Evangelho vai do Templo, onde a vinda do Salvador é anunciada
(Lc 1,5-25), ao Templo, onde os discípulos aguardam a vinda do Espírito (Lc 24,53);
dessa forma, o relato está ancorado na presença de Deus junto a seu povo, lembrada
pelo lugar simbólico que era o Templo. O livro dos Atos se desenrola entre a pregação do Ressuscitado sobre a fiaoiÂEÍo: TOO 0£oü (At 1,3) e a pregação de Paulo sobre
a paoiAeía TOU Oeoü (At 28,31); assim, a continuidade essencial do relato está colocada, mas Paulo ainda a completa pela menção a um ensinamento "sobre o que concerne ao Senhor Jesus Cristo" (continuidade e deslocamento).
O conjunto da obra, por sua vez, está dominado pelo arco narrativo esboçado
pelas duas referências de Lucas à "Salvação de Deus'" : é a salvação de Deus, predita pelo Batista com as palavras de Is 40,5 (Lc 3,6: KCU Ò ^ T O I n â o a oàpc; T Ò
acq I fjpiov i oü 9eoü); oferecida às nações (At 28,28: TOÍÇ Étíveoiv âncora An. T O U T O
U M T R A B A L H O DA LEITURA
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T Ò ocoTÓpiov TOO 0EOÜ), depois da longa citação de Is 6,9s. Entr . . . limi
arrativos instala-se um relato circular, que permite ao leitor verificar q: lal é o o; ijetivo da
narrativa lucana : ela se cristaliza numa história da salvação: predita, encarnada, anunciada, recusada pela maioria dos judeus, oferecida finalmente aos pagãos. "Esses, sim,
escutarão" (At 28,28b).
Tanto por via negativa (retenção de informações) como por via positiva (encerramento do relato por inclusão), vimos que a obra dedicada a Teófilo se apresenta ao
leitor como uma só entidade narrativa. Além disso, tal unidade deve ter influenciado
as intenções do autor. Que meios práticos ele usou para realizar a unidade de sua
"liistória da salvação"?
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3.2. Três procedimentos unífícadores
Comecemos com a prolepse, que é uma projeção, para o futuro, da história que está
sendo contada. O livro dos Atos abre-se com a gigantesca prolepse representada pela
promessa do Ressuscitado aos Onze: "Recebereis uma força, o Espírito Santo vindo
sobre vós, e sereis minhas testemunhas em Jerusalém, em toda a Judéia e Samaria,
e até as extremidades da terra" (At 1,8). O lugar desse pronunciamento, no limiar
dos Atos, confere-lhe o valor de um programa narrativo, indo até mais longe do que
At 28 (Roma ainda não é a extremidade da terra). Mais do que fornecer ao leitor um
plano do relato, 1,8 enuncia a origem cristológica da história que segue: por intermédio das boas (e sobretudo das más) vivências dos enviados, é a história de uma promessa que se torna fecunda. A antecipação de At 1,8, portanto, funciona com muita
clareza como chave de leitura para o conjunto do relato.
Mas o autor da obra ad Tbeophilum gosta de usar prolepses de uma forma não
muito clara, mais elíptica-, darei alguns exemplos.
18
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Prolepses elíptícas
6
14.
15.
16.
Quem viu isso muito bem foi C. K. Barrett, "The Third Gospel as a Preface to Acts? Some
Reflections", 1992, pp. 1456s.
Este procedimento, da transferência de um fragmento de uma perícope para outra, foi observado
por D. Hermant ("Un procede decriture de Luc: le transfen", 1997). Curiosamente, porém, esse
exegeta vê nisso apenas uma manipulação literária gratuita do autor, o "prazer malicioso que um
virtuoso sente quando, às vezes, exerce sua virtuosidade sem ninguém tomar consciência disso"
(p. 547). Os exemplos que acabo de dar assinalam que, além do capricho com que Lucas escreve
seu texto, as transferências podemser exigidas pelo desenrolar-se do enredo do macrorrelato.
A fórmula T Ò ocjTrpiov T O U 8eo0 não aparece em nenhum outro lugar de Lc-At. A terceira ocorrência de oojTqpiov na obra de Lucas é Lc 2,30 ("meus olhos viram a tua salvação").
No coração do Evangelho da infância, o oráculo de Simeâo ajunta à bênção dos pais
de Jesus (2,34a) um anúncio a Maria, cuja sombra paira sobre todo o relato que
segue: "Eis que este menino está aí para a queda e o soerguimento de muitos em
Israel, e como sinal de contradição; e a ti mesma uma espada traspassará a alma"
17. J. Dupont prestou muita atenção à importância do procedimento da inclusão na construção da
obra lucana, baseando-se principalmente na conclusão dos Atos. Em 28,16-31 ele vê condensados
um eco do processo de Paulo (At 21-28), mas também do discurso em Antioquia da Pisídia (At 13),
da pregação de Jesus em Nazaré (Lc 4) e do Evangelho da infância (Lc 1) ("La Conclusion des Actes
et son rapport à 1'ensemble de 1'ouvrage de Luc'", 1984).
18. Esmiuçando o Evangelho em busca de indícios apontando para os Atos, C. K. Barrett inventanou
41 referências possíveis ("The Third Gospel as a Preface do Acts? Some Reflections", 1992, pp. 14511466, sobretudo 1453-1461). Desse inventário escolhi as seguintes referências como potencialmente
60
A UNIDADE DE LUCAS-ATOS, UM TRABALHO DA LEITURA
A PRIMEIRA H I S T Ó R I A D O C R I S T I A N I S M O
6 1
i
(Lc 2,34b-35a). Esse choque entre a paz comemorada por Simeão (2,29) e o sofrimento anunciado deLxa essa predição totalmente imprecisa: em que consistirão a queda
e o soerguimento? Em que momento a alma de Maria será traspassada? O leitor somente os descobrirá ao avançar na leitura.
Mais adiante, em Lc 9,51, a grande peregrinaçâo.do Jesus lucano é introduzida
por um comentário do narrador em que os exegetas costumam tropeçar: "E aconteceu, quando se completaram os dias de sua elevação (TÓÇ qpépaç Trjç âvaAqfjycax;
aÜToO), que ele também endureceu sua face para caniinhar até Jerusalém". Os comentadores se interrogam sobre o sentido de "elevação" (âwArpYiç), hapaxlegomi-non
na forma substantivada, mas atestado em TestLev 18,3 e PsSal 4,18 . Indicaria o termo aqui a Ascensão de Jesus (o que teria apoio em At 1,2.11.22)? Ou se referiria mais
geralmente à subida de Jesus a Jerusalém, portanto à Paixão (o que seria reforçado
pelo uso de âvaAapPóvco em At 7,43; 10,16; 20,13s.; 23,3D? O plural TCXÇ ÓpEpaç
tende mais a esse último sentido, mais extensivo (cf. o singular ecoe, Trjç rpepaç
rjç áveÂqpcpÔq em At 2,21). Todavia, a conotação de "subida" (= ascensão) não está
ausente, de sorte que a decisão semântica fica por conta do leitor; somente os acontecimentos, narrados lá onde se ajuntam as duas panes da obra (Lc 24-At 1), hão de
elucidar o cumprimento desta àvaArpYiç que, do jeito como aí está, continua elíptica. O texto de Lucas, como se vê, usa a ambivalência do termo, para, em Lc 9,51,
deixar a decisão por conta do leitor ; à medida que o relato avança até a glorificação de Jesus, a incerteza semântica vai se reduzindo, mas também (e sobretudo) o
cenário Paixão-ressurreição vai se enraizando na resolução de Jesus ao "endurecer
sua face" para assumir um destino em que a vontade do Pai se há de cumprir .
=
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21
2
O fogo e o Pentecostes
Percebo o mesmo efeito de um sentido deliberadamente incerto em Lc 12,49s. É uma
declaração de Jesus sobre o "fogo" que ele veio lançar sobre a terra, e o "batismo"
com que ele deve ser batizado. Procurando o significado exato dessa prolepse fica-
dos O fogo, decerto, é uma metáfora muito usada no judaísmo para
PÍCO, coisa que o leitor sabe muito bem depois de Lc 3,9-17 e 9,54.
Jiüizo e- °
' í m i c o entre rtüp e fiónTiopa sugere uma referência ao
.
. s palavras do Batista em 3,16 também já pedem tal sentido. Quan%ú\o ^
relato do Pentecostes, o leitor poderá ler de novo a declaração
J cheg^.- j
i r nela a posteiioriuma predição da vinda do Espírito Santo, for! '
tennos inusitados, pois na boca do Ressuscitado a promessa não
g^V^ig^o o Espírito, mas que serão "revestidos de poder do alto" (È vSúoqofo
Que t e c ^ ^
2449. f
1 3 ) . Mais uma vez o próprio relato contém, nas
Parte^°anteriores, suas próprias chaves de interpretação: o uso de oúvapiç como
"fctífora do Espírito é um septuagintismo praticado pelo autor de Lc-At (Lc 1,17.35;
| ; A t p 10,38)".
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A t
Uma indecisão proposital
Outras prolepses, igualmente elípticas, marcam o destino de Paulo no livro dos Atos.
Ai9,15: "Eu mesmo lhe mostrarei quanto precisará sofrer por meu nome"; At 13,2:
'Reservai-me Barnabé e Saulo, em vista da obra (Èpyov) para a qual eu os chamei";
Ai 21,11: "O homem a quem pertence este cinto, eis como em Jerusalém os judeus
o amarrarão e entregarão às mãos dos pagãos". Nesses três casos o leitor é condenado à incerteza, até o momento em que o relato dará resposta a suas questões: O
que Paulo deverá sofrer pelo nome de Jesus? Qual é o EpYOV ao qual Barnabé e Saulo
são chamados? Como os judeus hão de apoderar-se de Paulo em Jerusalém?
Temos o direito de nos perguntar por que Lucas não anuncia as coisas mais
diretamente. Por que evita palavras claras? Aí tocamos num procedimento literário
típico de nosso autor, ao qual teremos oportunidade de voltar: a ambivalência semântica . Quando isso ocorre, as possibilidades de sentido, evocadas pela ambigüidade, deixam incerta alguma predição, cuja realização o relato mais tarde há de
apresentar. Narratologicamente isso funciona da seguinte maneira: o sentido semanlicamente vago abre no relato um espaço de indecisão que frustra o leitor, omitindo ou velando um elemento necessário â compreensão. O leitor, então, vai procurar no relato que segue o que possa preencher esse vazio infonnativo. Uma expressão elíptica, pois, pode ser (mas nem sempre é!) o resultado de uma estratégia com
vistas a excitar no leitor a busca da verificação.
A opressão elíptica não é o resultado de uma imperícia do escritor Lucas, mas
unia pr?tica conscientemente aplicada, que cria distância entre o anúncio e a realização. Esse procedimento é de capital importância, pois implica que o esquema
anúncio/realização,
outras palavras, promessa/cumprimento, se desenrola den24
prolépticas: Lc 3,6 (missão entre os pagãos); 4,16-30 (missão entre os pagãos); 7,1-10 (At 10-111;
9,52-56 e 17,11-19 (At 8); 10,11 (At 13,51); 10,19(At 28,6); 11.49 (os apóstolos); 12,8 (At 7,56); 12,lls.
(o sofrimento dos missionários); 19,45s. (papel do Templo); 21,12-19 (o sofrimento dos missionários); 22,15-20 e 24,30s.35 (partir o pão); 23,6-12 (At 4,27); 23,34-46 (At 7); 23,47 (título cristológiCO &ÍKC.IOÇ); 24,49 (At 2).
19. G. Delling, art. ^ AvCÂapficvoo", ThWNTTV, 1942, pp. 8s. G. Friedrich, "Lk 9,51 und die Entrückungschristologie des Lukas", 1973.
20. ^Debate exegético apresentado por G. Friedrich ("Lk 9,51 und die Entrückungschristologie des
Lukas", 1973, pp. 70-74); o autor se decide em favor de uma referência à Paixão.
21. Apóio-me aqui nas finas observações de Fr. Bovon em "Effet de rêel et fiou prophétique dans
e m
1'oeuvre de Luc" (1993; ver p. 71); ver também L Êvangile selon saint Luc 9,51-14,35, 1996, p. 33.
22. Na hora da Transfiguração o mesmo procedimento de ambivalência levou o nanador a fazer Moisés
e Elias (9,31) falar do "êxodo" (E^oooc.) de Jesus, e não de sua partida para Jerusalém, a fim de
23- S°
equivalência &úvapiç - nvcOpa), ver pp. 123-124.
dar à subida para a Paixão uma conotação de "êxodo". P. Doble vê nisso a retomada de um tema
24.
Q^stào da ambivalência semântica em Lucas será retomada por ocasião do próximo capítulo,
sapiencial (TheParadoxqf
Salvaiion, 1996, pp. 210-214).
U cristianismo entre Jerusalém e Roma".
;
hl<i
A
m
a
62
A
A U N I D A D E D E L U C A S - A T O S , U M T R A B A L H O D A LEI l URA
PRIMEIRA HISTÓRIA D O C R I S T I A N I S M O
tio do próprio díptico lucano . Avançando no macrorrelato, o leitor é levado, assim, a verificar a Habilidade das promessas e, dessa forma, a descobrir- a lógica unificadora da narrativa. E por conduzir o leitora constatar, posteriormente, a realização
das predições anunciadas que o relato funciona como uma prova da veracidade das
promessas divinas.
.25
•
*
Cadeias narrativas
Segundo procedimento de unificação do relato: a "cadeia narrativa'. Chamo assim
às linhas que o autor teceu entre as duas partes de seu diptico, e cuja constatação
permite ao leitor medir a continuidade e a progressão do relato.
Uma cadeia bem visível é a cadeia dos cenhiriões. Três centuriôes intervém em
momentos decisivos do relato lucano: o centurião de Cafarnaum (Lc 7,1-10) é o
primeiro não-judeu a implorar uma cura de Jesus; um centurião confessa sua fé ao
pé da cruz (Lc 23,47); e é também com um centurião, Comélio, que Pedro tem a
primeira experiência de concessão da salvação aos pagãos (At 10-11; 15,7-11). Essa
cadeia dos centuriôes não é anedótica; ela liga entre si três homens cuja fé, em cada
caso. é exemplar: o centurião de Cafarnaum indica como Jesus pode salvar o escravo doente, só pela palavra, passando por cima da insuperável distância que separava o judeu e o pagâo; a exemplar grandeza de sua fé é sublinhada expressamente
por Jesus: "Eu vos digo, mesmo em Israel não encontrei tamanha fé" (Lc 7,9b). Ao
pé da cruz, a profissão de fé do soldado é única (Lc 23,47). Quanto ao centurião Cornélio, cuja piedade é abundantemente frisada (piedoso, temente a Deus, generoso
nas esmolas e constantemente em oração: At 10,2), a graça que lhe é concedida, por
intermédio de Pedro, é explicitamente motivada por esta mensagem do anjo: "As
tuas orações e as tuas esmolas subiram como memorial diante de Deus" (10,4b). Entie
esses três militares o narrador tece a continuidade de uma graça surpreendente,
concedida à fé. Essa concatenaçào é mais do que necessária, porque o narrador deve
preparar a ruptura que representa, entre Pedro e Comélio, o desmoronamento da
barreira entre o puro e o impuro (At 10,9-16). A cadeia dos centuriôes exerce três
efeitos sobre o plano do relato: a) estabelece continuidade entre o encontro de Pedro
Comclio c uin gesto ae Jesus; b) legitima o olhar favorável de Deus sobre
Comélio pela consüução positiva do personagem "centurião" ; c) prepara o choque
da abertura da salvação aos pagãos.
26
25.
26.
Sem adoiar a perspectiva narratológica que desenvolvemos aqui, Fr. Bovon chegou ao mesmo resultado: '•Os exeget2s têm observado muito pouco que, condicionada pelo tema do cumprimento
do Antigo Testamento, também 2 estrutura de Lc-At está dominada por um jogo de promessas e realizações internas. Não perceberam tampouco que esse jogo funciona graças a profecias propositadamente vagas" ("Effet du réel et fiou prophétique dans 1'ceuvre de Luc", 1993, p. 70; grifos meus).
O caráter positivo do personagem ÈKCTOVTÓpxOÇ há d repercutir na figura dos centuriôes que
acompanharão as etapas do martírio de Paulo desde o capítulo 21 dos Atos, desempenhando sempre
o papel de protetores do apóstolo ameaçado: 21,32; 22,25s. 23,17.23; 24,23; 27,1.6.11.31.43; 28,16.
e
;
63
O acontecimento de Damasco
Sabe-se quanto espaço ganha nos Atos o acontecimento da estrada de Damasco, relatado pelo narrador em At 9,1-19a, depois contado de novo por Paulo diante do povo
de Jerusalém (22,1-21) e diante de Agripa (26,1-29). Ora, essa cadeia da conversão
de Saulo está preparada, antes, no Evangelho. A declaração do Cristo em At 9,15 ("Este
homem é um instrumento escolhido por mim para levar meu nome diante de nações e de reis [évcóniov éOvcôv TE KOI (BaoiÂewvl e diante dos filhos de Israel") é
um eco direto da predição de Jesus a seus discípulos: "eles vos arrastarão perante os
reis e os governantes (Èni fiaoiÂeiç KOU qyEpóvaç) por causa do meu nome". E antes
disso, no mesmo Evangelho, o Jesus lucano avisara seus discípulos sobie a necessidade de defender sua fé: "Quando vos conduzirem perante as sinagogas e os chefes
e as autoridades, não vos preocupeis com saber como vos defender e o que dizer.
Pois o Espírito Santo vos ensinará naquela hora o que é preciso dizer" (Lc 12,1 ls.).
Lucas atribuiu à conversão de Saulo uma importância fundamental: ela garante
à missão fora do judaísmo sua legitimidade como continuação da história dos antepassados. Mas. ao ancorar o destino de Paulo, aquém de At 9, nas palavras de Jesus,
preparando seus discípulos para o testemunho e o sofrimento, o narrador imprime
na missão de Paulo o selo do continuum.
A graça e a pureza
Terceira cadeia: Entre as parábolas de Lc 15 e o encontro de Jesus com Zaqueu (Lc
19,1-10), Jean-Noél Aletti destacou um interessante jogo de ecos. pela repetição de
um mesmo roteiro: a) contestação da acolhida dos pecadores (15,2) ou de Zaqueu
(19,5); b) declaração soteriológica (15.7.10.24.32: 19,9); c) manifestação de alegria
(15 6s. 10.23.32; 19,6) . Essa correspondência entre os cenários de Lc 15 e Lc 19 dá a
entender que em Zaqueu a afínnação da parábola encontra ao mesmo tempo sua concretização e sua confinnaçâo: a salvação chega aos pecadores apesar dos protestos
dos justos. O leitorficaatento, naturalmente, a essa retomada, quando a cadeia "graça
versus Torá ritual" aparece novamente, mas em outro contexto, na hora da assembléia
deJerusalém (At 15). A situação debuiu paia esse encontro na cúpula reitera de maneira fascinante a situação de Lc 15: cristãos da Judéia protestam que ninguém pode se
salvar sem a circuncisâo (v. 1), sendo que o relato da conversão dos gentios por Paulo
e Barnabé causa "uma grande alegria a todos os imiãos" (v. 3). A frente da contestação,
portanto, se deslocou para dentro da própria Igreja. Mensagem sugerida pela repetição
do enredo: novamente a graça será vitoriosa. O discurso de Tiago confirma: "Deus,
desde o início, cuidou de tirar dentre as nações um povo para o seu nome" (15,14) ."
:
27
28
27. J*-N. Aletti, QuandLuc raconte. Le récit com me tbéologie, 1998, pp. 260-263.
28. Topamos aí com um outro üpo de correspondência enue os Atos e o Evangelho: cabe ao relato
dos Atos verbalizar atitudes, implicitamente presentes no Evangelho, entre Jesus e seus interlocu-
/-\ miMtiKA
A UNIDADE DE L U C A S - A T O S , UM TRABALHO DA LEITURA
n i S I U K I A DO C R I S T I A N I S M O
Mencionemos também uma cadeiapentecostal, que conduz o leitor da predição do fogo iminente (do qual falávamos anteriormente), de Lc .12,49, às línguas de
fogo do Pentecostes (At 2,1-13) e às irrupções coletivas do Espírito em At 10,44-46
e 19,6. Assim, o rápido crescimento da Igreja se encontra marcado pelas surpreendentes intervenções de Deus, sacudindo sua Igreja, a fim de abri-la para o mundo.
Os efeitos da redundância
A presença das cadeias narrativas nos avisa que Lucas trabalha com o efeito da redundância. Seria interessante (mas não é nosso assunto no momento) observar as variações que o autor introduz entre um relato e outro — como todo bom narrador, Lucas
evita a monotonia. O que me interessa aqui é anotar os efeitos das cadeias narrativas
sobre a leitura de Lc-At. Destaco três: 1) O fenômeno da redundância narrativa tem
como primeiro efeito ajudar a memorização e estruturar a compreensão. As perspectivas que as cadeias narrativas organizam ao longo de um macrorrelato abundante
abrem eixos de interpretação, balizam caminhos, assinalam pontos capitais. Vistos a
partir dos Atos, os temas evidenciados são a abertura aos pagãos, o chamamento
para o testemunho, o dom do Espírito e a superioridade da graça em relação à Lei.
2) Quanto mais avançamos no macrorrelato, mais abundantes se tomam as redundâncias. Elas se multiplicam a partir de At 10 . Essas voltas mais freqüentes do relato
sobre si mesmo assinalam, da parte de Iíucas, a vontade de favorecer em seus leitores
urna leitura global, em que a significância dos acontecimentos citados se aprofunda
progressivamente. O caso mais impressionante é a releitura quádrupla apresentada
por Pedro sobre a sua conversão — pois At 10,9-29 pode com toda razão ser chamado de "a conversão de Pedro" . O apóstolo começa por transferir sua visão extática
para o plano ético ("Deus me mostrou que não se deve chamar ninguém de imundo
ou impuro": 10,28); depois ele deduz disso a imparcialidade de Deus (OÚK EOTIV
npootonoÂrprn-qç ó 0£Óç: 10,34), à qual dá uma base cristológica(10,36-43); segue
uma leitura pneumatológica. se Deus manda seu Espírito, é porque concede a sua
graça (11.16); finalmente, em Jerusalém, são tiradas as conseqüências soteríológicas
(15,9s.): se Deus purificou seus corações pela fé, por que lhes impor a LeP Da ética
65
à soteriologia, passando pela imagem de Deus. pela cristologia e pela pr.eumatologia:
este caminho de aprofundamento do sentido, ao qual a cadeia narrativa convida, é
uma verdadeira trajetória dogmática. 3) Na história da salvação, Deus também se repete, tanto quanto Lucas. O jogo de ecos que a cadeia narrativa realiza marca, de um
lado, a continuidade da presença de Deus junto aos seus; de outro lado, a diferença
entre Jesus e seus mensageiros quanto às modalidades dessa presença. Sem exceção,
a chave hermenêutica da cadeia narrativa encontra-se numa palavra de Jesus (Lc 7,9;
12,49; 15,7.10.32; 19,9; 21,12; At 11,16). A cadeia constrói assim uma continuidade fundamental dos Atos não com o judaísmo , mas com o agir de Deus em Jesus Cristo,
sendo que a continuidade com a tradição judaica passa através dele.
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32.
tores (aqui: Jesus, Zaqueu, a multidão). Zaqueu torna-se o protótipo de uma graça oferecida e de
um acolhimento, que em Jerusalém são defendidos pelos representantes da missão de Antioquia.
Os três relatos da conversão de Saulo (At 9: 22; 26) constituem um campo privilegiado para o exame
das variações introduzidas pelo narrador; para isso remeto o leitor ao capítulo X.
A redundância nanativa afeta as seguintes passagens: 11,1-18; 15,7-11; 20,18-35; 22,1-21; 25 10-2126.2-27; 28,17-20.
Ver sobre este assunto pp. 103-107.
Um estudo excelente sobre a construção da seqüência 10,1 a 11,18, com seus múltiplos efeitos de
volta do relato sobre si mesmo, é o de Louis Martin, "Essai d'analyse strucrurale dActes 10,1-11,18",
1971. Sobre o fenômeno da redundância em At 10,11, ver também R. Witherup, "Cornelius Over
and Over and Over Again: 'Functional Redundancy' in the Acts of the Aposdes", 1993, e W. S. Kurz,
"Effects of Variam Narrators in Acts 10-11", 1997.
Repetição de um modelo: a síncríse
Redundância narrativa e jogo de ecos são instrumentos sutis de um apelo à memória
que Lucas aprecia particularmente. Ele lhes dá um papel importante num outro procedimento de releitura em que é mestre: a imitação de um modelo, chamada síncríse,
nome dado a uma técnica retórica da mais alta Antigüidade, e que consiste em modelar a apresentação de um personagem imitando outro, a fim de os comparar ou, pelo
menos, de estabelecer entre eles uma correlação . A síncrise cria uma rede de correlações internas à obra de Lucas . Ele aproxima duas figuras do relato por ocasião de
um acontecimento análogo (como o martírio de Jesus e o de Estêvão: Lc 23,34-46 e
At 7,55-60) ou por meio de um mesmo roteiro narrativo (como o encontro de Emaús
e a conversão do Etíope: Lc 24,13-35; At 8.26-40) .
34
35
36
O exemplo mais perfeito de síncrise lucana é o paralelismo Jesus-Pedro-Paulo.
Visto que essas aproximações já foram demonstradas muitas vezes, não me paiece necessário repetir aqui os argumentos conhecidos . Em poucas palavras: Pedro e Paulo
37
33. Contra a opinião de J. Jervell, "The Future of the Past", 1996, p. 125.
34. A. George consagrou um belo estudo à imponente síncrise João Batista-Jesus, em torno da qual
Lucas construiu seu Evangelho da infância ("Le Parallèle entre Jean-Baptiste et Jesus en Luc 1-2",
1986). J.-N. Aletti dedicou às síncrises lucanas a maior pane de seu livro Quand Luc raconte, 1998
(ver especialmente pp. 69-166).
35 Sobre as correlaçôe*; interna -A I.c-Af, ver ns otísWaÇÔCS sugestivas
J R GfCgfl, <JU€ OTOStra
um paralelismo entre a inscrição da história da Igreja na de Jesus e a inscrição da história de Jesus
e da Igreja na de Israel.
36. Outros exemplos: a comparação entre a conversão de Saulo (At 9,3-19a) e o encontro de Pedro
com Cornélio (10,1-23), ou ainda entre a libertação de Pedro da prisão (At 12,12-17) e os relatos
das aparições pascais (Lc 24,5-36).
37. Literatura recente sobre o assunto: J. Dupont, "Pierre et Paul dans les Actes", 1967. C. H. Talbert,
Literary Pattems. tteological 'lhemes and the Genre of Luke-Acts, 1974, pp. 15-23. W. Radl, Paidus
undfesus im lukanischen Doppelwerk. Untersuchungen zu Parallclmotiven im Lukasevangeliwn
und in der Apostelgeschichte, 1975. R. F. OToole, "Parallels between Jesus and His Disciples in
Luke-Actes. A Funher Study", 1983- S. M. Praeder, "Jesus-Paul. Peter-Paul, and Jesus-Peter Parallelisms in Luke-Acts: A History of Reader response", 1984. D. P. Moessner, -The Christ must suffer', New Light on the Jesus-Peter, Stephen, Paul Parallels in Luke-Acts", 1986. J.-N. Aletti, Quand
Luc raconte, 1998, pp. 84-103.
•
A
PRIMEIRA HISTÓRIA D O CRISTIANISMO
curam como Jesus curava (exemplo: Lc 5,18-25; At 3,1-8; At 14,8-10); como Jesus
na hora de seu batismo, Pedro e Paulo recebem uma visão extatica no momentochave de seu ministério (At 9,3-9; 10,10-16); como Jesus, eles pregam, e suportam a
hostilidade dos judeus; como seu Mestre, eles sofrem e são ameaçados de morte;
Paulo é processado, assim como Jesus o foi (At 21-26); e, como Ele, Pedro e Paulo
são no fim de sua vida objeto de uma milagrosa libertação (At 12,6-17; 24,27-28,6).
De tudo isso vou guardar somente o aspecto que aqui me interessa: os efeitos que
o narrador espera disso para o leitor compreender sua obra.
A UNIDADE D E L U C A S - A T O S , U M T R A B A L H O DA LEITURA
67
Paulo, do paralítico de Listra (At 14,8*11): T I Ç ôvqp [...] xcoÂòç i< KOIÂÍCXÇ j j q T p ó ç
a Ü T o ü v. 2, cf. At 14,8; ÓTevíoaç [...] eínev v. 4, cf. At I4,9s.; Ê£O<ÀAÓLJ£VOÇ Ê O T q
<ai n£pi£naT£iv.8a,cf.Atl4,10bqAaTO icoti nspienaTei: v. KkdÔEv nâç ó Aaòç
v. 9a, cf. At 14,11b: oi Ò X A O I ISÓVTEÇ.
Antes de mais nada, quero salientar que os discípulos seguem o modelo do Mestre
quanto às ações (o agir e o sofrer), não quanto ao dizer: a palavra das testemunhas
não substitui a do Mestre, nem a imita, mas reenvia ao querigma cristológico (At 2,2236; 3,13-26; 4,10-12; 7,52; 10,37-43; 13,26-39; etc). O Evangelho é o pressuposto indispensável para a leitura dos discursos nos Atos, mas, estranhamente, nunca os atores do relato citam o Evangelho: das duas palavras atribuídas a Jesus nos Atos (11,16
e 20,35), a primeira remonta a At 1,5; a segunda o Evangelho desconhece. Resultado:
a relação dos Atos com o Evangelho não é da ordem do comentário, mas da reinterpretação por continuação; nas categorias de Genette, falar-se-ia em hipertextualidade,
não em metatextualidade . Os Atos não são um peshersobre o Evangelho; relatam
as suas seqüelas na história.
Observemos como esse relato de At 3 se enxerta no modelo cristológico de Lc 5.
A Pedro e João, que sobem ao Templo para a oração da nona hora, o aleijado pede
uma esmola (3,3). Pedro fixa nele os olhos e declara: "Ouro e prata não tenho, mas o
que tenho, isso te dou: em nome de Jesus Cristo (èv TOJ óvópcm IqooO XpioToü),
o nazoreu, anda!" (3,6). Nesse momento do relato começam a aparecer os indícios
de correlação, isto é, no exato momento em que os apóstolos assinalam que algo lhes
falta. O que falta é dinheiro; isso revela a impotência das testemunhas para socorrer
a necessidade expressa pelo aleijado. Suprindo sua incapacidade, o òvopa Iqooü
XpiOToü torna-se agora o agente executor do milagre, por intermédio de uma palavra decalcada (parcialmente) sobre aquela do Mestre: "Anda!" (nepinÓTEi: 3,6). O comentário de Pedro, em seu discurso, não é nada ambíguo: "seu nome fortificou-o, e a
fé que vem dele restituiu-lhe toda a saúde" (3,16). Os indícios de correlação vêm, pois,
ratificar lilerariamente o discurso sobre a ação do "nome de Jesus Cristo": o Ressuscitado confirma e continua sua ação terapêutica pela mediação dos apóstolos. O cenário, o lugar e os protagonistas mudaram: o leitor dos Atos recebe um sinal que lhe
lembra o Evangelho, a fim de que possa entender que a cura na Bela Porta nada inovou, mas é um sinal que lembra um precedente cristológico que lhe dá sentido.
Sinais que lembram o Evangelho
Nem imitação, nem confusão
Ressalto em segundo lugar que Lucas fixou o ponto de partida da síncrise num agir
de Cristo que socorre a impotência dos apóstolos. De fato, a técnica da imitação do
modelo aparece pela primeira vez na cura do aleijado na "Bela Porta" do Templo
Em terceiro lugar insisto no fato de que a técnica literária de Lucas extrapola as qualificações esquemáticas. Tem-se ressaltado a discrição dos indícios de conelaçào entre
At 3 e Lc 5. Da mesma maneira, o destino de Pedro e Paulo como sofredores evoca a
paixão de Jesus, mas sem se lhe igualar. Por isso hesito em falar, ainda que seja em
termos de tipologia, numa "ressurreição de Pedro" (At 12) ou numa "paixão-ressurreição de Paulo" (At 27,9-28,6) . A própria morte dos dois heróis foi até escamoteada
oelo narrador (At 12 17: 28 .^Os.) ', como separa evitar que se duvidasse da morte de
Jesus como a única morte salvadora. A síncrise não é uma cópia; ela aproxima, numa
base de diferenciação. É digno de nota que no caminho da identificação do apóstolo
O agir e o sofrer
38
(At 3,1-10).
No texto de At 3,1-10 alguns sinais lingüísticos lembram ao leitor a cura do paralítico
?9
He lc 5,17-26: TUpinóiTS! «yv.çz
KGi ó secundário neste texto) v. 6, cf. Lc 5,23;
napaxpqLia v. 7, cf. Lc 5,25a £OTq v. 8a, cf. Lc 5,25a á v a o T Ó ç ; aivcôv T Ò V 9eóv
v. 8s., cf. Lc 5,25s. oo£,á£cov éôóE,a(ov T Ò V 9EÒV n â ç ò Âaòç v. 9, cf. Lc 5,26a
cínavTaç; exoTaoiç, 6áp(3oç V. 10, cf. Lc 5,26 ÊKOTaoiç, cpópoç. Outros sinais, mais
numerosos e mais insistentes, sugerem uma correlação entre este relato e a cura, por
;
40
4
;
38.
39.
G. Genene distingue essas duas variantes de relação entre textos, falando em hipenextualidade
quando um texto é enxertado num outro por referência ou alusão e reservando o nome metatextualidade para comentário explícito sobre um primeiro texto por um segundo (exemplo: o
pesher) (Palimpsestes. La littéralure au second degré, 1992, pp. 7-12).
Devo o que segue à análise de G. Muhlack, Die Parallelen von Lukas-Evangelium und Apostelgeschichte, 1979, pp. 27-36.
40.
41.
M. D. Goulder (Type and Histoiy in Acts, 1964, pp. 62s.) defendeu energicamente essa interpretação tipológica, seguido por W. Radl, Pauhts und Jesus im lukanischen Doppehverk, 1975. pp222-251, eJ.-N. Aletti, Quand Luc raconte, 1998, pp. 69-103.
Apesar de uma breve reaparição por ocasião da assembléia de Jerusalém (At 15,7-11), onde ele
dá uma interpretação soteriológica de seu encontro com Cornélio, Pedro desaparece do relato em
12,17, com um comentário sibilino (e pesadamente metafórico) do narrador: teci ££,£A0cbv
ènopEÚSq eiç rrepov TÓrrov ("e saindo, ele se foi para um outro destino"). O enigma clássico
do silêncio de Lucas sobre a mone de Paulo (28,30s.l será abordado no capítulo XI, "O enigma do
fim dos Atos (At 28,16-3D".
68
A
A UNIDADE D E LUCAS-ATOS,
PRIMEIRA HISTÓRIA D O CRISTIANISMO
com o Cristo Lucas não vá além de um limite que os Atos apócrifos não hesitaram em
ultrapassar; nos Atos de Paulo e Tecla (3,21), o Cristo aparece corh os traços de Paulo,
e nos Atos de Tome (151-153 e 154s.) ele tem o rosto de Tomé.
A teologia lucana evita essas coisas: seguir um modelo não significa nem imitação nem confusão; supõe sempre o fator da diferença. Assinala semelhança com o
modelo fundador e uma assistência divina permanente junto às testemunhas maltratadas. Em suma, ela corresponde a uma repercussão daquela tipologia veterotestamentária que marca o Evangelho: assim como a cristologia do Evangelho se
constrói com a ajuda de modelos tipológicos (Elias-Eliseu e Moisés), o destino das
testemunhas se inscreve, nos Atos, numa tipologia cristológica que amolda a vida
das testemunhas à mensagem que anunciam.
Balanço. Até aqui, três procedimentos nos pareceram indicar que o autor de
Lc-At quer levar seu leitor a descobrir a lógica da maneira como Deus conduz a história: a prolepse elíptica, a cadeia narrativa e a síncrise. Esses procedimentos têm
todos o mesmo efeito: impelem o leitor/ouvinte a percorrer as duas panes do díptico
lucano, a circular no relato de cima para baixo e de baixo para cima. Conduzem a
ler os Atos a partir do Evangelho, c a reler o Evangelho do ponto de vista do avanço
da história notificado nos Atos. Esses procedimentos narrativos querem antes sugerir do que impor, antes evocar uma precedência cristológica do que a apontar.
Convidando o leitor a descobrir a lógica do plano salvífico de Deus, eles o impelem
a tecer fios de uma extremidade do escrito à outra; numa palavra: eles o solicitam a
ver Lc-At como uma unidade.
3.3. Permanência e suspensão da L e i
Dizíamos acima que tensões e choques não ameaçam em nada a unidade de enredo
de um relato; para ser cativante, uma narrativa até precisa dessas coisas. Resta-nos
examinar a validade dessa afirmação com relação à posição de Lucas diante da Torá' ,
posição que, ao se passar do Evangelho aos Atos, não parece claramente coerente .
2
43
42.
43.
Os últimos a se debruçar sobre a questão da Lei em Lc-At foram: T. G. Downing, "Freedom from
the Law in Luke-Acts", 1984; M. Klinghardt, Gesetz und Volk Gottes. Das lukanische Verstándnis
des Gesetzes nach Herkunft, Funktion und seinem Ort in der Gescbichte des Urchristentums, 1988;
J. A. Fitzmyer, Luke the Ttjeologian. Aspects of bis Teaching, 1989, pp- 175-202; K. Saio, Lukes
Treatment of the Law. A Redaction-Critical Investigation, 1991; H. Merkel, Das Gesetz im
lukanischen Doppeluerk, 1996; Fr. Bovon, "La Loi dans 1'ceuvre de Luc", 1997.
A ética lucana quanto à atitude diante dos bens materiais coloca um problema idêntico: depois
das imprecaçòes do Jesus lucano contra os ricos ("Infelizes vós, os ricos; já tendes a vossa consolação", Lc 6,24), como entender o interesse complacente do autor pela conversão de "senhoras
da alta sociedade" (At 17,4.12)? A análise narrativa se recusa a reduzir a contradição com argumentos literários (o redator não subscreveria suas fontes evangélicas); ela observa os meios empregados pelo autor para transpor o leitor do ideal prescritivo do Evangelho (que o relato nunca
invalida) para a realidade vivida nos Atos; isto é, precisamente, do imperativo evangélico do desa-
Uma validade integral
m
U M T R A B A L H O DA LEITURA
(19
>
Segundo o Evangelho, a Lei continua a valer, sem nenhuma ambigüidade: "É mais fácil
passarem o céu e a terra do que cair da Lei uma só vírgula" (Lc 16,17). Mesmo sendo
"pessoalmente um defensor da concentração espiritual da Lei' , Lucas não tem nenhuma atitude negativa diante de seus componentes rituais. No limiar do Evangelho, a
mãe de Jesus respeita a prescrição mosaica a respeito da purificação, e oferece o sacrifício exigido (Lc 2,22-24). Lucas retoma, sem enfraquecê-lo, o logion de Q que censura
os fariseus por pagarem o dízimo das ervas do quintal, negligenciando a justiça e o
amor de Deus, e acrescenta: "é isto que era preciso fazer, sem omitir aquilo" (Lc 11,42).
O Jesus lucano comenta a Tora (6,27-42), remete um legista a um resumo da Lei para
ele receber a vida eterna (10,25-28) e responde com um compêndio do decálogo à
pergunta do homem rico (18,18-20). A Lei continua em vigor, em sua integralidade.
144
Observância e rejeição
Como fica isso ao passannos para o segundo volume da obra de Lucas? O resultado
da análise é dupla: observância e rejeição. Aqui, como alhures, Lucas diferencia. Esboçarei as duas posições.
De um lado, o êxtase de Pedro abriu a brecha: se Deus acabou com a separação
milenar entre o puro e o impuro (At 10,10-16.28), ele invalidou de uma vez a Torá
ritual. Pedro, na assembléia de Jerusalém, tira logo a conseqüência mais radical: "Por
que tentar a Deus, impondo à nuca dos discípulos um jugo que nem os nossos pais
nem nós mesmos fomos capazes de suportar?" (15,10). Antes disso, Estêvão já falara
na "Lei que vós recebestes, promulgada por anjos, e que não observastes" (7,53), e
Paulo, pregando na sinagoga da Pisídia, anunciara que, graças ao Cristo ressuscitado,
seria concedido "o perdão dos pecados e a justificação que não pudestes obter na
Lei de Moisés" (13,37s). Pedro e Paulo — notemos a união das autoridades em tomo
do assunto — constatam uma dupla impotência com relação à Lei: ela não fora respeitada por Israel e não tinha condições de outorgar o perdão.
De outro lado, a Lei ritual continuava a ditar os costumes. O Paulo dos Atos circuncida Timóteo no momento de fazer dele seu colaborador (16,3). Diante do Sinédrio
ele exclama: "Eu sou um fariseu" (23,6), e o leitor sem dúvida sabe apreciar o peso
do tempo presente êycb Qapioaíóç dpi. Diante dos representantes dos judeus de
Roma. sua defesa concentra-se numa fónnula arrojada: "Não tenho feito nada contra
P°y,° ° contra os costumes dos antepassados" (oúoèv èvavríov noiqoaç TCÒ Âacô
0 ^ '^ °i Toiç naTpcóoiç: 28,17). É digno de nota que nem no Evangelho da infância (Lc 1-2), nem tampouco nos Atos, o autor teça qualquer crítica aos ritos judaicos.
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pego (Lc 12,13-21 18,18-30) para o modelo da partilha dos bens (At 2,42-45; 4,32-37) e para a consideração da presença de ricos na comunidade (At l6,l4s.; 17,4.12). Desenvolvi essa análise numa
contribuição, "Luc-Actes: une unité à construire", 1999, pp. 57-81.
Fr. Bovon, "La Loi dans 1'ceuvre de Luc", 1997, p. 208.
;
44.
70
A
A U N I D A D E D E L U C A S - A T O S , U M T R A B A L H O D A LEITURA
PRIMEIRA HISTÓRIA D O CRISTIANISMO
Devemos concluir que aos olhos de Lucas a Torá perdera sua razão de ser para
os cristãos de origem nào-judaica. ao passo que guardaria sua autoridade, inclusive
ritual, para os judeu-eristâos? Um comentário do narrador poderia ter tal sentido:
Paulo circuncida Timóteo "por causa dos judeus que se encontravam naqueles lugares, pois todos sabiam que seu pai era grego" (16,3b). A circuncisâo vem, pois. selar
a filiação judaica de Timóteo, o mestiço (mãe judia, pai grego), que, conforme a imagem da cristandade que resultou da missão paulina. é de origem mista. Mas essa
solução bipartida não é a solução lucana. Prova-o o decreto apostólico de At 15,29,
que impõe aos gentio-cristãos algumas prescrições rituais.
Dois pontos de vista: o soteríológíco e o histórico
O posicionamento lucano é mais sutil ou, para dizê-lo de modo mais adequado: Lucas
acumula sobre a questão da Lei dois pontos de vista, que ele não liga sistematicamente entre si: o aspecto soteríológíco e o aspecto histórico.
Do ponto de vista soteriológico, o acontecimento cristológico significa o fim da
Lei: não porque Deus a tivesse desaprovado, mas porque ela se verificou incapaz
de outorgar o perdão dos pecados; Pedro (13,38) e Paulo (22.16) estão de acordo
sobre isso. Com respeito à salvação, a Lei é caduca* e Lucas, para dizê-lo — em que
pese a Vielhauer —, encontra acentos bem paulinos: "É nele (Jesus) que todo o
que crê é justificado (nâç ó nioTEÚojv oiKaioÜTai)" (13,39).
Mas Lucas fala também como historiador, e ele é um historiador da continuidade,
que salvaguarda tudo o que pode ser salvaguardado. A Lei governou o tempo de Is-rael, e ainda que o povo não a tenha respeitado ela continua a ser aqueles "oráculos
vivos (AÓyioc £CÔVTCO" (7,38), recebidos de Deus. Diferente de Paulo, Lucas não desvincula a Lei da promessa. Já que a função de definir o povo de Deus (esta função
"identitária" como dizjacobJervell ) continua inerente à Lei, Lucas não se sente mais
do que Paulo com direito a declará-la anulada. Ela continuará, pois, a imprimir o seu
sinal nos gestos de Paulo (a circuncisâo: 16,3; o rito da purificação: 21,20-26), certificando sua incontestável judaicidade.
A função identitária da Torá
71
,
O argumento da continuidade e a função identitária estão em jogo também para a Igreja
composta de judeu-cristãos e gentio-cristãos. à qual Lucas se refere: a Torá continua
a existir, mas espiritualizada, concentrada em suas prescrições morais: o duplo mandamento do amor (Lc 10,27) e a segunda tábua do decálogo (Lc 18,20). São aqueles
valores que Lucas admira em Comélio, o temente a Deus de Cesaréia: "Tuas orações
e tuas doações subiram como memorial diante de Deus" (At 10,4). Oração e esmola,
amor de Deus e do próximo, são as duas mamas de uma Lei que não mone. Para Lucas,
o reconhecimento dessa Torá delineia os contornos de um povo que se recruta também fora do judaísmo. Esse povo é reconhecível pela "purificação do coração" (15,9)
de que fala Pedro, uma purificação que Deus concede pela fé em Jesus.
É bom anotar também que o famoso decreto apostólico (15,28s.) adotado durante a assembléia de Jerusalém impõe as quatro abstenções não em nome da Torá,
mas em nome do Espírito Santo e dos apóstolos: "Ao Espírito Santo e a nós pareceu
bem [...]". Isso significa, em regime cristão, que o decreto recebe autoridade, não
como substrato da Lei, mas como didaqué dos apóstolos.
O Lucas historiador e o Lucas teólogo
45
46
45-
Num artigo célebre e radical, Ph. Vielhauer negou ao autor dos Atos todo certificado de autêntico
paulinismo ("Zum Paulinismus" der Apostelgeschichte", [1950-19511, 1965, p. 26; trad. "On the
'Paulinisnr of Acts", 1966): "não se encontra nele nenhum pensamento especificamente paulino".
A constatação (correta) dos deslocamentos teológicos entre Paulo das cartas e o Paulo dos Atos
deve. hoje, ser recolocada num paradigma histórico que conte com a recepção da tradição paulina e com o fenômeno da formação de "escolas". Em outras palavras: não devemos ficar insistindo
em que Lucas foi um (mau) aluno do apóstolo dos gentios; devemos nos perguntar por que e como
a figura de Paulo como missionário foi recebida numa linha narrativa (Lc-At; Atos de Paulo e Tecla), enquanto a dimensão pastoral e institucional se conservou numa linha argumentativa (cartas
deuteropaulinas, Pastorais, correspondência de Paulo e Séneca).
46. J. Jervell, Luke and tbe People of God, 1972, pp. 141-143. Todavia, quando ele afirma que a Lei é
marca identiiária da Igreja, por ser character indelebilis de Israel, Jervell subestima a reviravolta
crisiológica da história da salvação.
Percorrendo a obra dedicada a Teófilo para ver o que ela diz sobre a Lei, descobrimos
que o Lucas teólogo e o Lucas historiador nem sempre falam a mesma linguagem.
O teólogo marca a continuidade do agir de Deus na história, ao passo que o historiador é consciente de que a história evolui. Aí deparamo-nos novamente com a dificuldade anotada no início deste capítulo: a coerência é difícil de se perceber, porquanto o pensamento do autor não se exprime em sistematização, mas em narratividade. Devemos pensar, com Matthias Klinghardt , que a solução está na diversidade dos leitores visados pelo autor, a obra de Lucas se apresentando a dois públicos
(o judeu-cristão e o gentio-cristão), dos quais cada um escolhe a sua pista pieferida?
Ou deve-se antes julgar que, diante da ruptura consumada entre a cristandade lucana
e a Sinagoga, o apego que o Paulo dos Atos manifesta com relação à Torá ritual tem
apenas o valor de uma legitimação? Essa segunda posição me parece mais confoime
à dimensão historiográfica da obra ad Tloeophilum.
47
3.4. C o n c l u s ã o : Lucas-Atos, u m díptico
A partir do caso da Lei fica claro que os Atos sucedem ao Evangelho à maneira de
uma história continuada, com os seus inevitáveis deslocamentos. O temio "díptico",
portanto, convém à entidade Lc-At, se tivermos em mente dois painéis, unidos por
47.
M. Klinghardt, Gesetz und Volk Gottes, 1988 (esp. pp. 306-309).
72
A
PRIMEIRA H I S T Ó R I A D O CRISTIANISMO
meio de uma dobradiça central (Lc 24-At 1, a glorificaçâo de Jesus). Em vez de atribuii
a Lucas um pensamento teológico massivo, distribuído por ele de acordo com os episódios do relato, é melhor considerar os Atos uma seqüência , ou melhor, um efeito
do Evangelho-, isso prove entre os dois relatos um jogo de espelhos, por causa das
necessárias retomadas, deslocamentos e recomposições- O vaivém do Evangelho aos
Atos e dos Atos ao Evangelho que esse jogo de espelhos provoca é o trabalho da leitura; desse trabalho nasce a tinidade de Lc-At.
48
A tese defendida neste capítulo é exatamente esta: a unidade da obra ad Tljeophilum não está pronta no texto; ela acontece no ato da leitura. Ela é obra do leitor,
guiado por uma série de indícios, colocados ali pelo autor a seu serviço: inclusões,
prolepses, cadeias narrativas e syncrisis. Porque apela constantemente a sua memória, porque o obriga a perscnitar as duas partes do díptico lucano, esse dispositivo
narrativo leva o leitor a reler o Evangelho a partir dos Atos e a desvendar nos Atos a
realização das prediçôes do Evangelho. A precedência cristológica em que se apoia
o destino dos apóstolos é constantemente evocada, mais do que designada, pelo
relato dos Atos. Ela pede ao leitor uma lembrança do Evangelho que o convoca a
fazer 2. unidade de Lc-At. Os Atos dos Apóstolos se oferecem assim ao leitor como
um campo de verificação das promessas do Evangelho; o autor, em seu prefácio, não
advertiu ao excelentíssimo Teófilo que seu relato lhe permitiria verificar "a solidez
((XxpáÀEia) dos ensinamentos" recebidos (Lc 1,4)?
48.
"Literariamente a melhor caracterização dos Atos é: uma seqüência" (M. C. Parsons e R I Pervo
Rethinking the Unity ofLuke and Acts, 1993, p. 126). O termo "seqüência" é preferível a considerar At uma "confirmação do Evangelho" (W. C. van Unnik, "The Book of Acts: The Confirmation
of the Gospel", 1960), ou Lc "um prefácio dos Atos" (C. K. Barrett, "The third Gospel as a Preface
to Acts? Some Reflections", 1992).
Um cristianismo
entre Jerusalém
e Roma
A obra de Lucas conduz o leitor ao longo de u m eixo que
vai de Jerusalém, onde se desenrola o Evangelho da infância
(Lc 1-2), a Roma, onde Paulo chega algemado (At 28). O enredo do
relato lucano, portanto, liga Jerusalém, narrativamente, a Roma. Ninguém ignora a dimensão teológica dessa geografia. Mas como a obra
de Lucas articula teologicamente essas duas metrópoles culturais e
religiosas? Como Lucas situa o cristianismo entre Jerusalém e Roma
ou, se se preferir, entre Israel e o Império romano?
Sem exagero, podemos dizer que toda a história da interpretação de Lc-At pode ser contada a partir dessa problemática. Quem
quiser estabelecer a finalidade teológica do escrito lucano deve
necessariamente dctcnriir.ar como o autor situa o cristianismo diante do judaísmo e diante do mundo pagão.
Ora, parece-me que a pesquisa sempre vê a relação entre Jerusalém e Roma dentro de uma polaridade, uma alternativa: a opção em
favor de Roma teria levado Lucas a romper com o judaísmo; do lado
oposto: os que o vêem manter uma abertura para o judaísmo estimam
que essa posição o levou a distanciar-se do Império. Alguns exemplos: Alfred Loisy, em seu monumental comentário de 1920', defen1. ' Les Actes 'des ApÔtres,1920; ver também LesActes desApótres, nova trad. com
introd. e notas, 1925-
Daniel Marguerat
BÍBLICA LOYOLA
Sob a responsabilidade da Faculdade de Teologia do CES,
Centro de Estudos Superiores da Companhia de Jesus
Belo Horizonte - MG
1. Os Evangelhos I, G. Barbaglio, R. Fabris e B. Maggiõni, 2 ed.
2. Os Evangelhos II, R. Fabris e B. Maggiõni, 3 "fed.
3. Os Atos dos Apóstolos, R. Fabris
4. Cartas de Paulo I, G. Barbaglio
5. Cartas de Paulo II, G. Barbaglio
6. Cartas de Paulo III, R. Fabris
7a. A Carta de Tiago, F. Vouga
7b. As Cartas de Pedro, João e Judas, G. Weuissen et al.
8. O Apocalipse, P. Prigent, 2- ed.
9. A Palavra inspirada, L. Alonso Schòkel
10. A Bíblia como literatura, / B. Gabei e C. B. Wljeeler
11. Cântico dos Cânticos, /. L. Stadehnann, 2- ed.
12. Metodologia do Novo Testamento, Egger W.
13- Leitura do Evangelho segundo João I , X. Léon-Dufour
14. Leitura do Evangelho segundo João II, X. Léon-Dufour
15.. Leitura do Evangelho segundo João III, X. Léon-Dufour
16. Leitura do Evangelho segundo João IV, X. Léon-Dufour
17. Jesus e o mundo do judaísmo, G. Vermes
18. A Galiléia, Jesus e os Evangelhos, S. Freyne
19- As duas fases da pregação de Paulo, M. Pesce
20. O Evangelho de Mateus e o judaísmo formativo, /. A. Overman
21. A Bíblia na Igreja, /. A. Fitzmyer
22. O pensamento do Templo. De Jerusalém a Qumran, F. Schmidt
23. As formas literárias do Novo Testamento, K. Berger
24. Procurais o Jesus histórico?, R. Zuurmond
a
a
25. SabpHnria e çáhin<; em Israel, /. Vflrhez
26.
21.
28.
2930.
31.
32.
33.
34.
35.
A PRIMEIRA HISTORIA
DO CRISTIANISMO
OS ATOS DOS APÓSTOLOS
Tradução
Ficdciicus Antonius Sicin
tívdez
Mulher e homem em Paulo: superação de um mal-entendido, N. Baumeü
Evolução do pensamento paulino, U. Schnelle
Metodologia do Antigo Testamento, H. Simian-Yofre (org.)
A mensagem e o Reino, R. A. Horsley e N. A. Silberman
Abraão e sua lenda, W. Vogels
Israel e seu Deus, F. Graat e F. J. Slendebach
Sacrifício e culto no Israel do Antigo Testamento, Ina Willi-Plein
O Jesus histórico, Gerd Theissen e Annette Merz
A tríade fé, esperança e amor em Paulo, Thomas Sõding
A primeira história do cristianismo, Daniel Marguerat
BÍBLICA
LOYOLA 3 5
PAULUS
Edições
Loyola