O Novo Município: economia e política local

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O Novo Município: economia e política local
OS MUNICÍPIOS E OS DESAFIOS DA FEDERAÇÃO NO BRASIL
OS MUNICÍPIOS E OS DESAFIOS DA
FEDERAÇÃO NO BRASIL
Rui Affonso
Diretor técnico-científico do Instituto de Economia do Setor Público da Fundap, Professor do IE-Unicamp
D
urante os anos 80, os municípios passaram a desempenhar um papel de destaque na Federação
brasileira. A luta dos governos subnacionais pela
descentralização tributária iniciou-se no final dos anos 70,
com a emergência da crise econômica e com o processo
de redemocratização do país.
A crise econômica teve um duplo efeito sobre o processo de descentralização tributária: por um lado, impulsionou esse processo, pois contribuiu para a desagregação do pacto de poder sobre o qual se assentava o regime
político instaurado em 1964, e, por outro, constituiu-se
em freio às tendências descentralizadoras, uma vez que
impunha riscos maiores para a implementação de uma
estratégia de “transição por cima” ou “abertura gradual”
do regime militar, sob o controle das forças, na época hegemônicas.
O avanço da abertura estabeleceu uma contradição entre
a ampliação do espaço de liberdade política – e, portanto,
da importância das eleições como forma de acesso e preservação do poder – e a dependência financeira de estados e municípios em relação ao Governo central. Essa
contradição alimentou, em grande medida, o movimento
municipalista, que cresceu vigorosamente no período,
abrangendo setores de todo o espectro partidário.
A descentralização deu-se, principalmente, através de
sucessivas emendas constitucionais que ampliaram os
percentuais dos Fundos de Participação dos Estados e
Municípios.1 As Emendas Constitucionais no 23/83 e no
79/84, de autoria, respectivamente, do senador Passos
Porto (PDS-CE) e do deputado Airton Sandoval (PMDBSP), fizeram parte desses avanços descentralizadores anteriores à Constituição de 1988, que ratificou e aprofundou
esse movimento.2 A Tabela 1 mostra a progressiva am-
pliação da participação dos estados e municípios na receita do IR e do IPI.
Os principais beneficiários da descentralização fiscal
foram os municípios, que ampliaram sua participação na
receita disponível (consideradas as transferências intergovernamentais) de 9%, em 1980, para 15% em 1994. A
evolução da participação da receita própria dos governos
municipais no mesmo período (de 3% para 5%) evidencia que a ampliação da sua participação no bolo fiscal
decorreu, principalmente, das transferências federais
(Tabela 2).
Os estados aumentaram sua participação relativa no
total das receitas fiscais ao longo dos anos 80, com sua
receita própria evoluindo de 22% para 26% e sua receita
disponível de 22% para 27%, entre 1980 e 1988.
A nova Constituição propiciou as condições para uma
elevação de 3 pontos percentuais na receita própria dos
governos estaduais. Entretanto, ao aumentar também as
suas transferências obrigatórias aos municípios, praticamente congelou os resultados líquidos alcançados nos anos
anteriores (a participação da receita disponível dos estados no agregado das três esferas permaneceu constante).
Em suma, pode-se afirmar que os municípios obtiveram
seus ganhos fiscais basicamente com a vigência da Constituição de 1988, enquanto os estados os alcançaram antes de 1988.
A União perdeu posição relativa em todo o período,
uma vez que a sua participação na receita própria caiu de
75% em 1980 para 66% em 1994 e a sua participação na
receita disponível reduziu-se de 69% para 58%, no mesmo período.
Verificou-se, também, uma descentralização inter-regional da receita disponível, a qual cresceu a taxas mais
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SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 10(3) 1996
elevadas nas regiões menos desenvolvidas do país. Entre
1988 e 1994, a receita tributária disponível dos estados e
municípios da região Norte cresceu 42% e a do Nordeste
cresceu 13%, enquanto a de São Paulo, por exemplo, decresceu 2%.
Em virtude da ampliação da capacidade financeira dos
governos subnacionais, aumentou significativamente a sua
participação na despesa pública. De fato, os estados e
municípios respondiam, em 1994, por cerca de 78% da
inversão pública (FBKF) e por 62% do consumo corrente
(excluindo-se, evidentemente, as empresas estatais).
O governo federal, por sua vez, concentrava a responsabilidade dos gastos com a Previdência Social (83,1%
do total) e com o pagamento dos juros das dívidas interna
e externa (93,8% do total).
Mesmo computando todas as despesas correntes e de
capital (incluindo os juros da dívida pública e os benefícios previdenciários, mas excluindo as amortizações da
dívida), os estados e municípios respondiam por quase
metade da despesa total do setor público (49%), na média do período 1990-92, alcançando ou até superando a
participação dos governos subnacionais de países mais
desenvolvidos e com longa tradição de descentralização.
Embora a avaliação do gasto por funções não seja fácil
devido à carência de estatísticas, os indicadores físicos e
financeiros disponíveis mostram uma elevação importante da participação dos estados e municípios no gasto social total e uma diminuição da participação da União. No
período 1989 a 1991, essa participação foi de cerca de 44%
dos gastos com saúde e de 69% dos gastos com educação.3
Deve-se ainda ressaltar que, embora a descentralização fiscal tenha se apoiado fortemente no aumento das
transferências federais da União para os estados e municípios, essas transferências não possuem o mesmo caráter de dependência financeira em relação ao governo federal, como o tiveram no passado, pois atualmente
aproximadamente 65% desses recursos são “livres” ou
com escassa vinculação de aplicações.4
Em apoio à hipótese de que concomitantemente à descentralização de recursos fiscais em favor dos estados e
municípios teria havido, também, uma absorção maior de
encargos por parte destes níveis de governo, pode-se enumerar a evolução, pós-constituinte, dos indicadores físicos de prestação de serviços tipicamente locais. Estas
evidências no caso da Educação, Saúde e Saneamento
corroboram a percepção financeira de que as esferas subnacionais de governo passaram a assumir maiores encargos, embora de maneira descoordenada e diferenciada em
cada uma das regiões.5
A característica central do processo de descentralização no Brasil é a sua descoordenação. Ao contrário de
outros países da América Latina, a descentralização brasi-
TABELA 1
Destinação Constitucional da Arrecadação do IR
e IPI para os Fundos de Participação
Brasil – 1968-1993
Em porcentagem
Arrecadação IR + IPI
IPI
Total
Períodos
FPE
FPM
FEF
FFR
FPEx
IR
IPI
10,0
10,0
-
-
-
20,0
20,0
1969/1975
5,0
5,0
2,0
-
-
12,0
12,0
1976
6,0
6,0
2,0
-
-
14,0
14,0
1977
7,0
7,0
2,0
-
-
16,0
16,0
1978
8,0
8,0
2,0
-
-
18,0
18,0
1979/80
9,0
9,0
2,0
-
-
20,0
20,0
1981
10,0
10,0
2,0
-
-
22,0
22,0
1982/83
10,5
10,5
2,0
-
-
23,0
23,0
1984
12,5
13,5
2,0
-
-
28,0
28,0
1985
14,0
16,0
2,0
-
-
32,0
32,0
1986/set. 88
14,0
17,0
2,0
-
-
33,0
33,0
Out.-Dez./1988
18,0
20,0
-
3,0
10,0
41,0
51,0
1988
19,0
20,5
-
3,0
10,0
42,5
52,5
1990
19,5
21,0
-
3,0
10,0
43,5
53,5
1991
20,0
21,5
-
3,0
10,0
44,5
54,5
1992
20,5
22,0
-
3,0
10,0
45,5
55,5
A partir de 1993
21,5
22,5
-
3,0
10,0
47,0
57,0
1968
Fonte: Serra e Afonso (1991).
Nota: O FPE – Fundo de Participação dos Estados e Distrito Federal incluía, até 1988, também territórios federais.
TABELA 2
Distribuição de Receitas Entre as Três Esferas de Governo
Brasil – 1980-1994
Em porcentagem
Esferas de Governo
1980
1988
1994
Receita Própria
100,0
100,0
100,0
75,0
22,0
3,0
71,0
26,0
3,0
66,0
29,0
5,0
100,0
69,0
100,0
62,0
100,0
58,0
22,0
9,0
27,0
11,0
27,0
15,0
União
Estados
Municípios
Receita Disponível
União
Estados
Municípios
Fonte : Afonso e Senra (1994).
4
OS MUNICÍPIOS E OS DESAFIOS DA FEDERAÇÃO NO BRASIL
como um todo. Essa fragilização o torna cada vez mais
dependente dos adiantamentos de capital privado para a
realização de investimentos, aumentando sobremaneira o
comando privado sobre o gasto público, o que constitui,
para alguns autores, uma das facetas da “privatização do
Estado” e contribui para ampliar a sua descoordenação.6
Tudo se passa como se os capitais privados trouxessem a
sua lógica de mercado para dentro do Estado, passando a
concorrer através de suas estruturas, privatizando-o e
inviabilizando qualquer planejamento.
Como resultado desse movimento e contribuindo para
acentuá-lo, assistiu-se, ao longo dos anos 80 e principalmente no começo dos 90, a uma desestruturação dos mecanismos tradicionais de planejamento e regulação federativa, como a Sarem, o IBGE, o Ipea e o Confaz. Algo
semelhante ocorreu no âmbito da relação dos estados com
os seus municípios, com a desarticulação dos diferentes
arranjos institucionais que, nos anos 80, foram responsáveis pela coordenação da ação dos estados junto aos municípios.7
Por outro lado, assiste-se a uma progressiva generalização do conflito federativo. Enquanto nos anos 80 o
conflito federativo, tanto em sua dimensão vertical (relação entre a União e os estados e municípios) como em
sua dimensão horizontal (relação entre estados ou municípios entre si), esteve centrado na disputa por recursos
tributários, nos anos recentes passou a manifestar-se em
várias outras dimensões, do âmbito do aparelho estatal
ao da representação política.
No campo do setor produtivo estatal, proliferaram os
atritos entre as holdings federais e as concessionárias estaduais, entre os quais cabe destacar o que envolveu a
tarifação das empresas elétricas. Em termos prospectivos,
os interesses em conflito não são menores. Os grandes
projetos estratégicos dos sistemas de transporte e saneamento, assim como as alternativas de privatização, possuem importantes e diferenciados impactos regionais e
locais, ensejando reações diversas.
No que diz respeito ao sistema financeiro público, destacam-se as discussões em torno das condições de existência e operação dos bancos estaduais e regionais. Recentemente, o Banco Central tem ampliado as formas de
controle sobre essas instituições, reduzindo a autonomia
que gozavam no financiamento de seus governos. Nesse
mesmo sentido, o governo federal tornou as condições de
rolagem das dívidas dos estados mais restritivas, exigindo como contrapartida programas de saneamento fiscal
dos governos subnacionais. Em termos mais gerais, o
debate sobre a necessária reestruturação dos bancos estaduais pressupõe uma determinada visão acerca do grau
de autonomia financeira que devem possuir as esferas
subnacionais de governo e sobre a extensão das funções
TABELA 3
Receita Tributária Disponível dos Estados e Municípios
Brasil – 1988-1994
Variação (%)
1994/1988
Regiões
1988 (1)
1994 (1)
Brasil
47.472
52.544
11
Menos Desenvolvidas
Norte
Nordeste
Centro-Oeste
13.613
2.257
8.469
2.887
16.480
3.214
9.557
3.708
21
42
13
28
Mais Desenvolvidas
Sudeste
São Paulo
Sul
33.859
26.381
16.992
7.479
36.064
27.500
16.661
8.564
7
4
-2
15
Fonte: Ministério da Fazenda/STN; Confaz.
(1) Em milhões de reais.
leira não foi obra do Governo federal, mas sim dos estados e, principalmente, dos municípios. Em outros países,
a descentralização decorreu da crise fiscal do Estado ou
da perda acentuada de governabilidade, o que levou o
governo federal a desfazer-se de parte de seus encargos,
transferindo-os a estados e municípios, na tentativa de incorporar setores à margem do poder estatal com a promessa
da descentralização (como na Colômbia, por exemplo).
No caso do Brasil, a descentralização veio com a redemocratização, em meio ao aprofundamento da crise econômica. O fato decisivo, e que torna singular a experiência brasileira, é que a redemocratização ocorreu primeiro
nos governos subnacionais, com a eleição para governadores e prefeitos no início dos anos 80, e somente em 1988
chegou ao núcleo central do Estado, com a Assembléia
Nacional Constituinte e, em 1989, com a eleição direta
para presidente da República.
Dessa forma, ocorreu uma identificação entre a luta
contra o autoritarismo e a luta pela descentralização. A
União ficou sem defensores durante a elaboração da Constituição de 1988 e a descentralização processou-se de forma descoordenada, sem um projeto articulador.
É interessante notar que no Brasil, no período recente,
o termo “Federação” associa-se aos governos subnacionais – estados e municípios – e não ao conjunto das três
esferas de governo.
Em suma, no Brasil, a descentralização não foi comandada pelo Governo federal, ao contrário, esse se opôs a ela o
quanto pôde. Dessa forma, não existiu um plano nacional
para a descentralização e, mais do que isso, o processo encontra-se inconcluso e eivado de conflitos.
A descentralização ocorre, ademais, em um contexto
de progressiva fragilização financeira do setor público
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SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 10(3) 1996
reguladoras do governo federal. Ou seja, supõe um determinado projeto de Federação.
No plano político, as meras constatações acadêmicas
sobre a desproporcionalidade da representação dos estados no Congresso Nacional deram lugar a diferentes iniciativas de reforma.
No âmbito cultural e ideológico, a explicitação do separatismo como alternativa à crise federativa deixa de ser
encarada como um tabu e passa a assumir manifestações
variadas.
Com relação à divisão de competências, observa-se uma
intensa disputa entre o Executivo federal, o Legislativo
federal e os governos subnacionais pelo poder de comando sobre o gasto público no varejo, o qual tem grande
importância político-eleitoral.
No que diz respeito às receitas fiscais, o conflito que
antes se restringia à disputa entre o governo federal,
de um lado, e os estados e municípios, de outro, amplia-se para uma disputa entre estados e entre municípios de diferentes regiões, através da guerra fiscal. Premidos pela dificuldade de manter a arrecadação
tributária como conseqüência da recessão, da inflação
e da sonegação, os governos estaduais lançaram-se em
uma guerra de incentivos e benefícios fiscais através
do ICMS para atrair indústrias para suas regiões e fomentar a atividade econômica.
Mais preocupante do que a constatação da ampliação
dos conflitos federativos é o fato das atuais tendências
socioeconômicas, tanto internas como internacionais,
apontarem para o reforço da descoordenação federativa.
De fato, o aumento da heterogeneidade intra-regional, a
globalização das economias, a privatização, a desregulamentação dos mercados e a descentralização extremada
tendem, através de seus impactos muito diferenciados
sobre as regiões, a ampliar as forças fragmentadoras e
centrífugas no espaço nacional.
Nos últimos anos, em parte como decorrência das
transformações na dinâmica econômica inter e intra-regional, 8 generalizaram-se iniciativas que tinham o objetivo de redesenhar as fronteiras geopolíticas internas,
tanto dos estados quanto, e principalmente, dos municípios.
Além das tendências antes descritas, o estímulo à emancipação decorre :
- da possibilidade, facultada pela Constituição de 1988,
das novas unidades federativas passarem a dispor dos recursos dos fundos de participação (FPEM), repartindo-os
com o estado ou município dos quais se separaram;
- da opção pela solução fragmentadora e isolacionista. Ante
a dificuldade de enfrentar os problemas sociais colocados pela prolongada crise econômica, marcada por uma
inflação renitente, pela crise financeira do Estado e pelas
transformações estruturais em curso, algumas localidades
mais ricas optam por seccionar-se para, com isto, equacionar seus problemas sem o fardo da complexidade da
Nação ou mesmo da região.9 A generalização de políticas
de segregação ativa, proibindo ou dificultando o acesso
de imigrantes pobres, ou sem as qualificações estipuladas, constitui uma manifestação preocupante que aponta
na mesma direção;
- da tentativa de alguns setores de ampliarem o seu espaço de controle político-eleitoral, através do redesenho das
unidades federativas e da conseqüente criação de novas
máquinas político-administrativas.
As principais alterações nas fronteiras geopolíticas dos
níveis intermediários de governo foram: criação dos estados de Tocantins (a partir do desmembramento do Estado de Goiás), Amapá e Roraima (antigos territó-rios federais). Além destas, foram apresentadas as propostas de
criação dos estados do Triângulo Mineiro, Maranhão do
Sul, Carajás (a partir do Pará), Alto Solimões, Tapajós e
Alto Rio Negro (a partir do Amazonas) e Iguaçu (que seria
desmembrado dos estados do Paraná e Santa Catarina).
Se os fatores apontados anteriormente ensejaram um
processo de redesenho das fronteiras estaduais, com muito
maior intensidade determinaram um verdadeiro “furor”
emancipatório municipal.
De fato, entre 1980 e 1993, foram criados 1.000 novos
municípios, especialmente após a Constituição de 1988,
que não estabeleceu critérios para a criação de municípios e deu amplos poderes aos estados para legislarem
sobre a matéria.
Como se pode observar no Gráfico 1, a maior parte
das unidades municipais concentram-se nos estados mais
ricos da Federação (MG, SP, RS, PR). Um fato preocupante é a participação dos pequenos municípios no total.
Em 1993, haviam 1.067 municípios (21,45%) com menos de 5.000 habitantes, sendo que 109 não chegavam a
ter 2.000 habitantes (Tabela 4).
A possibilidade de acesso a uma receita não gerada no
local, ou seja, a dissociação dos atos de gastar e de tributar estimula a tendência à emancipação irresponsável,
fazendo com que se criem municípios sem base econômica própria, integralmente dependentes das transferências federais e/ou estaduais (Rezende, 1992).
A proliferação de municípios com estas características dificulta a divisão adequada de competências, bem
como a coordenação federativa.
O atual debate acerca do papel desempenhado pelos
estados e municípios após a Constituição de 1988 suscita
três ordens de questões referentes à relação da descentralização com a democracia, o desenvolvimento e a eficiência e eqüidade.
6
OS MUNICÍPIOS E OS DESAFIOS DA FEDERAÇÃO NO BRASIL
GRÁFICO 1
Número de Municípios por Estado
Brasil – 1993
Minas Gerais
756
São Paulo
625
Rio Grande do Sul
427
Bahia
415
Paraná
371
Santa Catarina
260
Goiás
232
Ceará
184
Pernambuco
177
Paraíba
171
Rio Grande do Norte
152
Piauí
148
Maranhão
136
Pará
128
Tocantins
123
Mato Grosso
117
Alagoas
100
Rio de Janeiro
81
Mato Grosso do Sul
77
Sergipe
75
Espírito Santo
71
Amazonas
62
Rondônia
40
Acre
Amapá
22
15
Roraima
8
Distrito Federal
1
Fonte: Fundação IBGE. Anuário Estatístico do Brasil – 1994. Rio de Janeiro, 1995 (dados de 1º de julho de 1993).
No que se refere à relação entre a descentralização
e a democracia, encontram-se dois pólos de opiniões:
para alguns, a descentralização seria um mecanismo de
redistribuição do poder político que permeabilizaria o
Estado às pressões e à participação dos setores populares; para outros, entretanto, a descentralização representaria uma estratégia de deslocamento da alternativa
popular para o plano local, macroeconômico, enquanto permanecem centralizados, com uma lógica transnacional, os espaços das principais decisões políticas.10
Quanto à relação entre descentralização e desenvolvimento, a polarização de posições é análoga. Para alguns,
a descentralização seria o instrumento por excelência para
se alcançar o desenvolvimento em favor das maiorias
sociais, mediante a redistribuição espacial de recursos;
para outros, entretanto, a descentralização representaria
o abandono de qualquer pretensão de equilibrar o desenvolvimento entre regiões e no interior delas. A descentralização seria, sob este ponto de vista, um dos eixos de
uma estratégia neoliberal de assignação de recursos, contrária, portanto, às políticas redistributivas.
A relação entre descentralização, eficiência e eqüidade está permeada por complexas redes de causalidade.
Em primeiro lugar, deve-se observar que ainda não
dispomos de uma avaliação acurada dos impactos da descentralização sobre a efetividade do funcionamento do
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SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 10(3) 1996
rências implicaria desestímulo à exploração de bases próprias de arrecadação, uma vez que estas possuem um elevado custo político. Entre 1988 e 1995, a receita própria
dos governos municipais cresceu 16,5% ao ano, em termos reais, enquanto as transferências para este nível de
governo (da União e dos estados) aumentaram 11,6% a.a.
Com este crescimento, a arrecadação própria dos municípios, que em 1988 era de apenas 0,66% do PIB, passou
a corresponder a 1,7% do PIB em 1995. Como mostra a
Tabela 5, a performance municipal superou o esforço relativo de arrecadação dos governos federal e estadual, que
apresentaram taxas de crescimento da receita própria inferiores às dos municípios (respectivamente 5,3% e 7,9%
ao ano, entre 1988 e 1995).
Alguns analistas argumentam que o desempenho dos
governos municipais deve ser relativizado, uma vez que
o patamar do qual se parte é muito baixo (menos de 1%
do PIB, contra 15,82% do Governo central e 5,95% dos
estados). O esforço relativo de arrecadação dos municípios, entretanto, possui uma importância política em si,
ou seja, o fato de estas esferas de governo passarem a
cobrar os impostos a elas atribuídos pela Constituição, sem
se “acomodarem” ao benefício do acréscimo de transferências estaduais e federais.12
A questão da eficiência dos governos subnacionais na
administração de seus gastos alude, em grande medida, à
TABELA 4
Número de Municípios e Participação
no Total, Segundo o Tamanho
Brasil - 1940-1993
Tamanho dos
Municípios
(Em habitantes)
1940
1950
1960
1970
1980
1993
Total
1.574
1.889
2.766
3.952
3.974
4.974
31
1,97
68
3,60
278
10,05
658
16,64
665
16,73
1.067
21,45
De 5.000 a 10.000
N os Abs.
Participação (%)
249
15,82
348
18,42
651
23,54
1.058
26,77
951
23,93
1.206
24,24
De 10.000 a 20.000
N os Abs.
Participação (%)
577
36,66
615
32,56
847
30,62
1.159
29,33
1.102
27,73
1.338
26,89
De 20.000 a 50.000
N os Abs.
Participação (%)
597
37,93
691
36,58
783
28,31
826
20,90
872
21,94
903
18,15
De 50.000 a 100.000
N os Abs.
Participação (%)
97
6,16
129
6,83
143
5,17
157
3,92
241
6,07
281
5,65
De 100.000 a 500.000
N os Abs.
Participação (%)
21
1,33
35
1,85
57
2,06
83
2,10
125
3,15
154
3,10
Até 5.000
N os Abs.
Participação (%)
De 500.000 a 1.000.000
N os Abs.
Participação (%)
Mais de 1.000.000
N os Abs.
Participação (%)
Número de Municípios
0
-
1
0,05
5
0,18
6
0,15
8
0,20
14
0,30
2
0,13
2
0,11
2
0,07
5
0,12
10
0,25
11
0,22
TABELA 5
Receita Tributária Global, Segundo o Nível de Governo
(Conceito das Contas Nacionais)
Brasil – 1988-1995
Em porcentagem
Nível de
Governo
Em % do PIB
1988
Fonte: Fundação IBGE. Anuário Estatístico do Brasil - 1994. Rio de Janeiro, 1995 (dados de
1º de julho de 1993).
Receita Própria
Central
Estadual
Local
aparelho de Estado e dos serviços por ele prestados, bem
como sobre os seus impactos redistributivos, em termos
tanto pessoais quanto inter-regionais. Contudo, as evidências existentes indicam que, em um país continental como
o Brasil, marcado por profundas disparidades regionais,
os custos de distribuição, intermediação e controle superam largamente os hipotéticos ganhos de escala da administração centralizada.11
No que se refere à eficiência na arrecadação das receitas tributárias, os dados disponíveis apontam uma melhoria
na performance dos governos municipais. De fato, os
municípios ampliaram expressivamente suas receitas próprias, contrariando a tese da “preguiça fiscal”, segundo a
qual a descentralização apoiada fortemente em transfe-
Repartição de Receitas
Concedidas pela União
Concedidas pelos Estados
Recebidas pelos Municípios
Receita Disponível (2)
Central
Estadual
Local
1995 (1)
Variação na
Participação
do PIB (1)
1995-1988
Variação
Real a.a.
1995/1988
22,43
15,82
5,95
0,66
30,58
20,09
8,81
1,68
8,15
4,27
2,86
1,02
6,4
5,3
7,9
16,5
1,84
0,09
1,76
3,04
(-)0,42
3,46
1,20
(-)0,51
1,70
8,0
-232,6
11,6
22,43
13,98
6,04
2,41
30,58
17,05
8,39
5,14
8,15
3,07
2,35
2,73
6,4
4,9
6,7
13,0
Fonte: Afonso (1996).
(1) Projeções preliminares para 1995.
(2) Arrecadação própria mais/menos transferências constitucionais para outros níveis de governo.
8
OS MUNICÍPIOS E OS DESAFIOS DA FEDERAÇÃO NO BRASIL
problemática da divisão de competências entre os três níveis de governo.
A Constituição de 1988 não foi suficientemente explícita
na atribuição de encargos. Isto decorreu da descoordenação do processo de descentralização e da
dificuldade de se estabelecer uma divisão estrita de
responsabilidades em uma federação tão heterogênea
quanto a nossa. Tal fato implicou a coexistência de lacunas
em alguns setores de diferentes regiões e a superposição
de funções em outras. Durante o período em que prevaleceu uma coordenação federativa centralizada (e
autoritária), as transferências negociadas ou não-constitucionais, os gastos diretos da União nas regiões, assim
como os dispêndios do setor produtivo estatal desempenharam o papel de soldagem dos interesses regionais. Com
o advento da descentralização fiscal e o processo de
privatização das empresas estatais, a União perde parte desses
instrumentos e a divisão de competências torna-se um
processo intrincado que supõe negociações complexas e
novas formas não-centralizadas de coordenação federativa.13
Como foi visto, apesar da indefinição da Constituição
quanto à divisão de competências, os estados e municípios acabaram assumindo novas responsabilidades em
decorrência do maior volume de recursos disponíveis e
da omissão da União em relação a alguns programas tradicionalmente administrados por ela (como conseqüência da sua menor disponibilidade de recursos) e, em última instância, devido às pressões de uma sociedade civil
mais organizada, que pode expressar com maior liberdade seus interesses.
A observação recorrente de que a reforma constitucional propiciou grandes ganhos fiscais aos estados e municípios, os quais foram absorvidos pelo aumento das despesas com pessoal, também deve ser ponderada. Estas
esferas de governo assumiram maiores responsabilidades
nas áreas da educação, saúde, habitação, saneamento e
segurança pública e seria de se esperar que aumentassem
os seus gastos relativos com pessoal, uma vez que estas
são áreas intensivas em mão-de-obra.
No que diz respeito à relação da descentralização com
a eqüidade, existem poucas evidências do impacto redistributivo do gasto público. Ao contrário de outros países
latino-americanos, pouca atenção é dada ao tema e as
parcas estatísticas disponíveis refletem esta lacuna em
nossa agenda de pesquisas.
Como já mencionado, a descentralização fiscal entre
esferas de governo também redundou em uma descentralização “horizontal”, das regiões mais desenvolvidas do
país para as menos desenvolvidas. Contudo, a ampliação
da receita e do gasto descentralizado nas regiões mais
carentes do país não significa, necessariamente, uma distribuição mais equitativa do dispêndio público.
O avanço na direção da maior eqüidade e eficiência
do gasto público requer, com certeza, mudanças institucionais mais profundas nas estruturas dos poderes das
esferas subnacionais de governo, bem como na sua interrelação. Alguns estudos recentes evidenciam, de forma
eloqüente, a hipertrofia centralista do Executivo dos
estados e municípios em detrimento dos poderes Legislativo e Judiciário. 14 Este fato, aliado às carências de
capacitação técnica dos governos subnacionais para
assumirem funções antes executadas pela União, à
inexistência de continuidade nas políticas desenvolvidas
e à ausência de mecanismos de avaliação, acentuam a
ineficiência e a iniqüidade do gasto público. A pulverização do dispêndio público, na ausência de mecanismos eficazes de coordenação, acarreta, por sua vez,
superposições ou, ainda, a impossibilidade de arcar com
obras e/ou atividades cuja escala supera a capacidade de
financiamento local.
Grande parte dos desafios enfrentados hoje pelos estados e municípios decorre da forma descoordenada pela
qual se efetivou a descentralização no Brasil, o que acentuou os problemas estruturais de uma federação constituída por gigantescas desigualdades socioeconômicas, inter e intra-regionalmente.
Normalmente, as arquiteturas federativas pressupõem
ou a existência de entes federados equipotentes (embora
com estruturas socioeconômicas diversificadas), o que
possibilita uma coordenação federativa mais descentralizada, ou então, no caso de entes federados muito desiguais e na presença de acentuada heterogeneidade estrutural, uma coordenação federativa mais centralizada e, não
raro, autoritária (como foi o caso do Brasil na maior parte de sua história recente). Assistimos, nas últimas décadas, a um aumento das disparidades socioeconômicas e,
simulta-neamente, a uma descentralização descoordenada.
Desta forma, o nosso desafio consiste em construir mecanismos de coordenação descentralizados e democráticos de maneira a enfrentar eficazmente as disparidades sociais que obstaculizam o desenvolvimento em
nosso país.
NOTAS
1. Uma análise detalhada a respeito é desenvolvida em Affonso (1988).
2. Além da elevação dos percentuais do IR e do IPI destinados aos Fundos de
Participação dos Municípios (FPM) e dos Estados (FPE) e da criação de um fundo de ressarcimento à isenção do ICMS concedido pelos estados exportadores
(10% do IPI), a nova Constituição concedeu ampla liberdade para cada estado
fixar, por leis próprias, as alíquotas do ICMS incidentes sobre as operações internas, antes limitadas pelo Senado Federal. Além disto, incorporou à base de
cálculo do ICMS as operações relativas ao transporte interestadual e intermunicipal e as operações referentes às comunicações, antes abarcadas pelos impostos
9
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 10(3) 1996
AFONSO, J.R. “Autarquias, fundações e empresas dos estados e municípios”.
Revista de Finanças Públicas. São Paulo, Minfaz, n.367, 1986, p.18-39.
únicos. A elevação da base do ICMS também beneficiou os municípios, uma vez
que as transferências deste imposto para os governos municipais aumentaram de
20% para 25%.
__________ . “Aspectos conceituais das relações financeiras intergovernamentais”.
Estudos Econômicos. São Paulo, Fipe/USP, v.22, n.1, jan./abr. 1992, p.5-34.
3. Estes dados apóiam-se em estimativas realizadas no âmbito do projeto ”Balanço e perspectivas do federalismo no Brasil”, em Affonso (1994).
__________ . Descentralização fiscal na América Latina: estudo do caso do Brasil. Chile, Cepal, 1994 (Série Política Fiscal, 61).
4. Segundo Shah (1994:40-42), o Brasil teria, em 1988, um dos maiores
índices de autonomia fiscal do mundo, acima dos vigentes nos Estados
Unidos, Alemanha e Canadá. Em Tanzi et alii (1992:11-16), considerase que “While Brazil is not the only country to have a federal structure,
it is unique in that Municipalities are granted full autonomy where as
they are under state tutelage in all other countries – at least in a legal
sense...the extent of fiscal federalism in Brazil is also unique among
countries at similar leves of income.”
__________ . Arrecadação tributária em 1995. S.l., abr. 1996.
__________ . “Descentralizar e depois estabilizar: a complexa experiência brasileira”. Revista do BNDES. Rio de Janeiro, BNDES, n.5, jun.1996.
AFONSO, J.R. e SENRA, N.C. Despesa pública – competências, serviços locais,
descentralização: o papel dos municípios. Rio de Janeiro, Cepp, 1994 (Texto
de discussão, 23).
5. Ver a respeito Afonso e Senra (1994).
DINIZ, C.C. e OLIVEIRA, F.A. de. Federalismo, sistema tributário e questão regional no Brasil. Belo Horizonte, Face/UFMG, 1993, mimeo.
6. Argumentação nesse sentido é desenvolvida em Affonso (1990).
DINIZ, C. C. e SANTOS, F.B.T. Região sudeste: desempenho econômico, heterogeneidade estrutural e perspectivas. S.l., 1993, mimeo. (Trabalho elaborado
para o projeto Balanço e Perspectivas do Federalismo Fiscal no Brasil).
FIORI, J.L. Globalização econômica e descentralização política: um primeiro
balanço. São Paulo, Fundap/Iesp, 1994, mimeo (Nota Técnica do Projeto
Balanço e Perspectivas do Federalismo Fiscal no Brasil).
7. Para uma avaliação das regiões administrativas e das regiões de governo ver
Proença Soares (1986).
8. Ver Guimarães Neto (1993); Diniz e Santos (1993); Diniz e Oliveira (1993).
9. Esta posição tem ensejado, inclusive, algumas manifestações de cunho separatista nos últimos anos. Ver a respeito Molon (1994).
10. Ver, a respeito Restrepo (1992).
GUIMARÃES NETO, L. “O grande capital vai à periferia (regiões, conglomerados, grandes empresas e o estado)”. In: Encontro Nacional de Economia, 21.
Anais... Belo Horizonte, 1993.
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uma análise dos anos oitenta ao nível regional. São Paulo, Fundap/Iesp, 1994
(Nota Técnica do Projeto Balanço e Perspectivas do Federalismo Fiscal no
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1994.
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ação regional”. São Paulo em Perspectiva. São Paulo, Fundação Seade, v.2,
n.3, maio/dez. 1986, p.23-30.
11. Os casos da merenda escolar e da compra de material didático são
emblemáticos a respeito.
12. É particularmente significativo o fato de o crescimento das receitas próprias
dos estados das três regiões menos desenvolvidas do país ter superado tanto o
crescimento das transferências a elas destinadas pela União, quanto a arrecadação própria nas regiões mais desenvolvidas (8,4% a.a.; 6,6% a.a. e 5,5% a.a.
respectivamente, entre 1988 e junho de 1995). Ver Afonso (1996).
13. Ver Afonso (1996:49).
14. Ver a respeito Abrucio (1994).
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10
CRISE FEDERATIVA, GUERRA FISCAL E “HOBBESIANISMO MUNICIPAL” ...
CRISE FEDERATIVA, GUERRA FISCAL E
“HOBBESIANISMO MUNICIPAL”
efeitos perversos da descentralização?
MARCUS ANDRÉ MELO
Professor de Ciência Política da Universidade Federal de Pernambuco
A
pós uma década de experiências descentralizantes, a agenda de discussão em torno do tema
adquiriu um novo formato. O debate público vem
assumindo um caráter menos apologético, típico do
consenso em que foi produzida a agenda da descentralização nas décadas de 70 e 80. Os constrangimentos e
vicissitudes da descentralização são postos agora em
discussão e os efeitos perversos de reformas passam a
ser apontados.
Observa-se forte polarização no debate público em
torno da questão. De um lado, estão aqueles que entendem o fortalecimento dos níveis subnacionais de governo como um processo virtuoso que não só robustece a
democracia, como também produz uma maior eficiência
alocativa no sistema de governo. A competição entre unidades federadas é vista como geradora de inovações no
sistema público. De outro lado, estão aqueles para quem os
estados e municípios são loci de clientelismo e ineficiência,
sendo que sua autonomização representa fonte importante de ingovernabilidade. Além disso, argumentam que a
irresponsabilidade fiscal nesses níveis compromete os
esforços de estabilização do Governo central. Nessa perspectiva, a guerra fiscal entre estados e municípios expressaria a perda de rumo e a ausência de coordenação quanto à estratégia nacional de desenvolvimento.
O presente texto mapeia essa mudança recente na agenda pública, explorando analiticamente – embora de forma preliminar – os termos do debate. Na primeira parte
do texto algumas das principais mudanças de agenda teórica em torno da questão da descentralização são perfiladas, com referências preliminares e rápidas à experiência
internacional. Na segunda parte, focaliza-se o caso brasileiro e discute-se a questão dos efeitos perversos da
descentralização. Na terceira parte, as relações entre federalismo e seguridade social são discutidas de forma
bastante breve e à luz dos efeitos perversos da descentralização.
DESCENTRALIZAÇÃO E MUDANÇAS
ESTRUTURAIS NA GESTÃO PÚBLICA
A partir da década de 80, a descentralização constituiu-se num princípio ordenador de reformas do setor público, que tiveram efetivamente abrangência internacional, difundindo-se dos países capitalistas avançados para
aqueles do mundo subdesenvolvido. A bandeira da descentralização passou assim a expressar um virtual consenso, sendo advogada simultaneamente por governos
conservadores e social-democratas. Nos países egressos
de experiências autoritárias – como é o caso da maioria
dos países latino-americanos – a descentralização passou
a ser entendida enquanto dimensão essencial da democratização.
Com efeito, a genealogia da descentralização enquanto
princípio político tem uma longa trajetória no pensamento
liberal. Desde Tocqueville, as virtudes do local selfgovernment, entendido sobretudo em relação à intervenção
do Estado central, tem sido reiteradamente enaltecida por
liberais. No campo do pensamento econômico, a descentralização, ao ser assimilada à idéia de mercado, também
é advogada por economistas conservadores, de Hayek a
Buchanan. A teoria organizacional contemporânea
também aponta para a emergência de um paradigma pósburocrático, que enfatiza estruturas horizontalizadas e
cooperativas de governance em lugar de estruturas
hierarquizadas (Barzelay, 1992).
11
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 10(3) 1996
Na esteira do pensamento político, a idéia da descentralização também encontra guarida na tradição socialdemocrata. No conjunto das ideologias socialistas, a questão da descentralização e autogestão comunal, e na unidade
de produção, representavam noções programáticas consolidadas de longa data. A idéia de socialismo municipal
se constituiu numa estratégia importante no início do século nos países europeus, da mesma forma que as virtudes de modelos autogestionários também foram apontadas por teóricos importantes do movimento socialista,
sobretudo no contexto das críticas ao modelo soviético.
Em seu conjunto, no entanto, a esquerda sempre privilegiou a centralização e não a descentralização.
A idéia de um setor público centralizado e intervencionista está efetivamente associada à tradição social-democrata, consubstanciando-se no chamado estado
keynesiano de bem-estar social do pós-guerra (com a exceção dos países escandinavos onde foram privilegiados
arranjos institucionais descentralizados ).1 Nesse tipo de
intervenção acreditava-se que a centralização era um requisito para a superação de problemas como desigualdade e pobreza. Como assinala Ashford, a história dos
welfare states, até pelo menos a década de 70, representou um movimento brutal de centralização administrativa e política, no qual os governos locais foram sendo progressivamente destituídos de seu (embora limitado) papel
de provedores de serviços sociais. Os dois pilares da seguridade social (a previdência social e a atenção à saúde)
exigiram para sua viabilização estruturas e mecanismos
nacionais centralizados de financiamento. Estes mecanismos permitem transferências horizontais e verticais
(intergeracionais) de renda que constituem, em parte, a
própria razão de ser das políticas sociais. 2
Vale lembrar que a descentralização tem sido advogada também no quadro da valorização recente de formas
de democracia direta e de mecanismos de controle social
mais efetivos, para além das instituições representativas
do chamado modelo de Westminster. Essa tendência também evidencia-se, ainda, na convergência que se observa, quanto a esse ponto, entre as tradições social-democrata e liberal. A descentralização é também um princípio
importante no quadro da renovação do pensamento político de esquerda, sobretudo da chamada nova esquerda
pós-industrial, além de ser consistente com a idéia de fragmentação social que informa o chamado pós-modernismo na teoria política.
A partir da década de 70, o paradigma centralizado de
organização do setor público mostrou sinais de esgotamento. Não é possível discutir neste artigo, em detalhes,
as razões desse processo. Interessa assinalar, entretanto,
que é nesse contexto que emerge o consenso em torno da
idéia de descentralização. Em alguns países, como na Fran-
ça, Itália e Espanha, importantes reformas descentralizadoras foram implementadas por governos socialistas. O
leitmotif do processo era o caráter democratizante das
reformas que estariam associadas à promoção da democracia direta e do fortalecimento de mecanismos de
accountability. Na Espanha, o ímpeto descentralizante foi
alimentado por clivagens étnicas ancoradas em fortes identidades territoriais. Na França, uma coalizão descentralizante formou-se entre setores da burocracia, socialistas
e notáveis locais, buscando-se desmontar estruturas
centralizadas criadas durante o período Napoleônico
(Rosanvallon, 1993). Na Itália, o processo de descentralização teve início em 1970 com a criação de 15 governos regionais e culminou com a reforma constitucional
de 1991, que extinguiu cerca de metade dos ministérios
nacionais do país – transferindo suas funções para entidades regionais – e com simultânea elevação da participação dessas entidades na receita nacional de 30% para
quase 70%. Este movimento descentralizante foi patrocinado pelos socialistas e setores reformistas modernizadores, levando a uma das mais audaciosas experiências de reorganização territorial em todo o mundo
(Putnam, 1993).
A idéia da descentralização também foi ingrediente
importante do elenco de reformas advogadas por governos neoliberais a partir da década dos 80. Com efeito, a
centralização é uma peça central do repertório político
conservador, que localiza no Governo central o objeto de
seu anti-estatismo. As instituições multilaterais, tais como
o Banco Mundial e o FMI e mais recentemente o Banco
Interamericano de Desenvolvimento, passaram a se constituir em veículos importantes de difusão em escala global da descentralização. O processo de descentralização
ganhou forte ímpeto especialmente na América Latina, que se tornou um laboratório de experiências reformistas. Na Europa – deve-se lembrar – o debate em
torno da União Européia alimentou a discussão em torno
das questões relativas à descentralização e ao federalismo, que passaram a ocupar uma parte importante da
agenda política.
A RATIONALE DA DESCENTRALIZAÇÃO
Embora as justificativas para as reformas descentralizantes na última década estejam informadas fundamentalmente pelo neoliberalismo, no qual, como assinalado, a descentralização é assimilada à idéia de desmonte
do estado central e de redução de sua atividade regulatória e produtiva, o consenso referido anteriormente está
ancorado num diagnóstico das patologias institucionais
encontradas em estruturas centralizadas e nas virtudes
econômicas da descentralização.
12
CRISE FEDERATIVA, GUERRA FISCAL E “HOBBESIANISMO MUNICIPAL” ...
Antes de discutir esse ponto cabe fazer aqui rapidamente
uma explicitação sobre o conceito de descentralização.
Com efeito, o conceito recentemente tem sido desagregado em várias dimensões ou noções correlatas, tais como:
desconcentração, delegação e devolução (IDB, 1994). No
sentido amplo, e que envolve as três dimensões, a devolução pode ser definida como a transferência ao nível intergovernamental de poder decisório sobre as esferas financeira, administrativa e programática. Neste sentido se
diferencia – e amplia – o conceito de desconcentração, que
descreve mecanismos de transferência de encargos e tarefas entre unidades administrativas ou políticas subnacionais; ou de delegação quando apenas algum grau de poder
decisório é transferido. Quando a descentralização ocorre
no âmbito de empresas, ou entre empresas e setor público, verifica-se um processo de terceirização.
Entendida enquanto transferência de poder decisório
a municípios ou entidades e órgãos locais, a descentralização expressa, por um lado, tendências democratizantes,
participativas e de responsabilização e, por outro, processos de modernização gerencial da gestão pública – em que
apenas a questão da eficiência é considerada. Essas duas
dimensões complementares estão presentes nos processos de descentralização, mas a importância relativa assumida por esses dois vetores depende da natureza da coalizão política que dá suporte às reformas. Coalizões com
predomínio de forças políticas liberais/conservadoras
enfatizam os aspectos relativos aos ganhos de eficiência
e de redução do setor público. Coalizões social-democratas, por outro lado, privilegiam os aspectos relativos ao
controle social e democratização da gestão local.
As justificativas de ordem política para a descentralização envolvem fatores políticos relacionados não só à
promoção da democracia participativa, como assinalado,
mas também à preservação de identidades territoriais,
sobretudo em países que apresentam importantes clivagens étnicas e culturais. Este argumento tem sido reiterado sobretudo nos países de tamanho continental e organizados em estruturas federalistas, tais como Brasil, China,
Índia, ou Canadá; e também nas chamadas “democracias
consorciativas” (Países Baixos).
As justificativas de ordem econômica para a descentralização estão relacionadas aos ganhos em termos de
eficiência alocativa que ela permite. A descentralização
intra-organizacional em agências ou setores possibilita
ganhos tais como: maior heterogeneidade e variabilidade
na provisão de serviços; maiores possibilidades de geração de inovações; e aprendizado organizacional devido à
competição intra-organizacional entre unidades administrativas. Neste último caso, a descentralização seria um
market ou competition surrogate, ou seja, criaria, à semelhança do mercado, incentivos que promovem competi-
ção e eficiência alocativa (Israel, 1989). A descentralização no sentido amplo permite o surgimento de mecanismos de controle sobre o governo que não estão presentes
no caso da descentralização intra-organizacional. A competição política funciona como um desses mecanismos de
controle, além de promover local policy entrepreneurship.
As vantagens da devolução e da promoção da autonomia local, inclusive financeira, são apontadas pelo modelo do federalismo fiscal. Segundo este modelo normativo das finanças públicas, cada tipo de bem público deve
ser provido pelo nível de governo que tiver maior vantagem comparativa em responder à diversidade de preferências dos grupos da população. A provisão centralizada de um pacote uniforme de bens e serviços públicos para
toda a população poderia levar a uma oferta inferior ou
superior ao nível Pareto-eficiente, que expressasse as preferências dos consumidores. Recentemente, surgiu na
Europa uma versão constitucional e administrativa dessa
teoria no debate em torno do princípio da subsidiariedade
que deve presidir as relações entre níveis de governo –
inclusive num nível supranacional.
Do ponto de vista do financiamento, a teoria do
federalismo fiscal tem como pressuposto que os bens
públicos possuem incidência espacial delimitada, circunscrevendo clientelas territorialmente definidas. Assim a
segurança nacional tem impacto nacional, enquanto a
iluminação pública tem impacto local. A incidência da
taxação para o financiamento desses bens deveria
corresponder ao impacto territorial dos benefícios
proporcionados com a provisão dos bens (nos exemplos
em pauta incidência nacional e local, respectivamente).3
A teoria do federalismo fiscal, portanto, justifica a
existência de um grande número de governos subnacionais,
de forma a expressar adequadamente a variedade de
preferências por bens públicos. Portanto, uma estrutura
governamental descentralizada minimizaria os riscos de
os tipos ou quantum de bens públicos ofertados não
corresponderem às preferências dos cidadãos ou ainda de
os benefícios relativos por um grupo (jurisdição) serem
arcados por outro grupo (jurisdição).4
Estes modelos teóricos oferecem uma justificativa conceitual e normativa para a superioridade alocativa de estruturas descentralizadas. Na seção que se segue são analisados os limites e constrangimentos à implantação de
reformas descentralizantes, bem como os efeitos perversos que podem resultar de estratégias reformistas.
LIMITES E POSSIBILIDADES DA
DESCENTRALIZAÇÃO
Após uma década de experimentos descentralizantes
em vários países e continentes, tornou-se possível reali-
13
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 10(3) 1996
zar uma avaliação mais realista e sistemática da descentralização. Embora a maioria das contribuições sobre a
questão ainda tendam a enfatizar as virtudes da descentralização, muitos trabalhos recentes têm explorado os
limites e os efeitos não antecipados das estratégias
descentralizantes. Alguns documentos analíticos das agências multilaterais têm adotado um tom mais cauteloso e
menos laudatório em relação a esse processo. Para o Banco
Interamericano, por exemplo, em seu Relatório sobre o
Progresso Sócio-Econômico na América Latina, “a questão central é ... sob que condições a opção descentralizada acarreta uma melhoria na qualidade da governança e
contribui para um gasto mais efetivo em bens públicos
locais como educação e saúde” (IDB, 1994:175-176).
Por sua vez, para o diretor de Assuntos Fiscais do FMI,
Victor Tanzi, “a questão central da discussão não é refutar a conclusão que a descentralização pode trazer benefícios, mas identificar situações nas quais essa política
pode não trazer os resultados esperados a menos que mudanças importantes sejam promovidas nas condições existentes” (Tanzi, 1995:8, grifo do autor).
Mais recentemente, a literatura produzida pelas agências multilaterais tem procurado identificar seqüências
virtuosas que poderiam explicar o sucesso de algumas
experiências. Assim, os processos de descentralização
implementados após programas de estabilização teriam
mais chances de ser exitosos.
Em síntese, a literatura tem destacado um conjunto de
efeitos não antecipados e perversos da descentralização
não só para o caso de países do Terceiro Mundo, mas também do Primeiro. Esses efeitos perversos são produzidos
em virtude da ausência de certos pré-requisitos para a
centralização e resultam de um conjunto de fatores apresentados a seguir:
- burocracias locais de baixa qualificação. Na maioria dos
países e especialmente na América Latina existe um hiato muito largo entre a qualificação das burocracias centrais e locais (provinciais e municipais) (Haggard, 1995 e
Tanzi, 1995). Da mesma forma, existe um contraste marcado entre a qualificação dos burocratas da área fazendária
e de planejamento e os da área social. O argumento freqüentemente utilizado é que as transferências de funções
e atribuições da esfera federal para os níveis subnacionais significaram, em muitos casos, perda de eficiência
gerencial. Os efeitos da descentralização seriam perversos à medida que as burocracias locais não têm capacidade institucional de prover adequadamente bens e serviços sociais;
- transferência de receitas públicas sem responsabilidades de geração de receitas, o que rompe o vínculo entre o
benefício (representado pela disponibilidade de recursos
para gasto) e o custo (o ônus político e administrativo de
gerar receita). O argumento é que recursos de transferências tendem a ser menos monitorados por atores locais do
que aqueles resultantes da taxação no nível local. Por outro
lado, as transferências de recursos, em muitos casos, teriam ocorrido antes que se fortalecesse a capacidade fiscal
local. As próprias transferências passariam assim a se
constituir em desincentivo ao esforço fiscal local (efeito
referido na literatura americana como o “flypaper effect”).
Ademais, os governos locais se mostram incapazes de arcar com o ônus político de gerar receita fiscal (IDB, 1994
e Tanzi, 1995). Esse ponto, para o caso brasileiro, tem
sido objeto de grande controvérsia;5
- indefinição e ambigüidade quanto à definição de competências entre esferas de governo, devido à generalização de competências concorrentes (Almeida, 1995 e
Aghon, 1995). Tal indefinição tenderia a gerar inércia e
paralisia institucional, uma vez que os mecanismos de responsabilização tornar-se-iam inoperantes;
- perda de capacidade regulatória e de formulação de políticas por parte do governo central pelo desmonte de estruturas setoriais centralizadas e relativamente insuladas
da competição política. O argumento central é que tais
estruturas constituem-se em loci de expertise e de memória técnica em políticas públicas (Melo, 1993b e Almeida,
1995) e dificilmente podem ser encontradas ou mesmo
construídas no nível local.
- descentralização fiscal com transferência de impostos
importantes para o nível dos estados e províncias, o que
minou a capacidade do Governo central de levar a cabo
políticas de estabilização e reformas fiscais. Incapacidade de ajuste fiscal a nível local (através de bancos controlados pelos governos locais) devido aos incentivos
existentes (bail out pelos bancos centrais) para a indisciplina fiscal (IDB, 1994; Afonso, 1995 e Tanzi, 1995).
Na literatura internacional os casos de endividamento
municipal e provincial de maior visibilidade são o argentino (Idep, 1995) e o brasileiro. No caso brasileiro, no entanto, as relações entre processo de estabilização e descentralização são bastante particulares devido à seqüência
dos processos no Brasil, onde a descentralização precedeu a estabilização (Afonso, 1996). Ademais, no plano
da arrecadação, observa-se aumento da receita local e não
redução. O que se nota, por outro lado, é que o processo
de estabilização acarretou um aumento sustentado da dívida mobiliária dos estados, convertendo-se, ele próprio,
em fator de agravamento dessa dívida (Afonso, 1996);
- porosidade do governo local em relação a elites locais e
provinciais, acarretando maior corrupção e clientelismo.
O risco de captura do Estado por elites locais também é
muito grande. Tais fenômenos foram assinalados para
países distintos como França (Rosanvallon, 1993) e Bra-
14
CRISE FEDERATIVA, GUERRA FISCAL E “HOBBESIANISMO MUNICIPAL” ...
sil. A idéia de que decisões e controle social não são noções que se equivalem foi apontada por Rosanvallon.6 Os
atores centrais nos processos de responsabilização política – como a imprensa, o Legislativo e Judiciário – são mais
efetivos e independentes no nível nacional. A representação de minorias também ocorre de forma mais efetiva
no plano nacional (sobretudo nos sistemas de voto proporcional);
- fragmentação institucional. Proliferação de municipalidades ou entes administrativos no âmbito local (Almeida,
1995). Esta tendência, segundo vários analistas, poderia
ser observada com grande força no Brasil, como será
discutido a seguir.
tão da gestão municipal converteu-se num ponto central
da agenda democrática. A oportunidade da discussão pública das Constituições estaduais e municipais (leis orgânicas municipais) e dos planos diretores (que se tornaram
obrigatórios após a Constituição) permitiu que fossem
aglutinadas forças que haviam se fragmentado.
As grandes iniciativas nesse plano são os mecanismos
institucionais criados para a participação popular, além
de novas práticas de gestão.8 Tais experiências adquiriram
grande visibilidade e colocaram em segundo plano na
agenda pública os efeitos perversos que o neomunicipalismo – ou mais acertadamente o “neolocalismo” –
produziu. Esse ponto, sobretudo a sua dimensão fiscal,
tem sido bastante enfatizado nas discussões sobre o
processo de estabilização. Observa-se, no quadro atual,
forte polarização do debate.
O neolocalismo tem repercussões predatórias sobre a
cidadania social, ou seja, o hobbesianismo municipal, que
se expressa, entre outras coisas, na disputa entre localidades por investimentos industriais – deslegitimando as prioridades sociais em lugar de benefícios fiscais e isenções
tributárias –, nas estratégias de exclusão e apartheid social, em que mendigos são expulsos ou impedidos de entrarem em municípios afluentes, etc. Pelos seus próprios
pressupostos, o neolocalismo consagra vantagens comparativas locais e as reproduz ou potencializa. Além disso, converte todas as questões relativas à desigualdade e
concentração de renda em questões ilegítimas: elas passam a ser vistas como obstáculos ao progresso.9 Investimentos sociais compensatórios tendem a ser pensados
como custos e/ou desincentivos à localização de empresas, o que debilita sua viabilidade política. Por outro lado,
tais incentivos enfraquecem as frágeis bases fiscais de tais
localidades, inviabilizando o financiamento de políticas
sociais. A geração de empregos no quadro de reestruturação produtiva não tem compensado as perdas ocorridas.
DESCENTRALIZAÇÃO E POLÍTICAS SOCIAIS
NO BRASIL PÓS-CONSTITUINTE
A descentralização constituiu-se numa peça central da
agenda reformista da Nova República em virtude de dois
desenvolvimentos. Em primeiro lugar, a centralização característica do autoritarismo burocrático do regime militar converteu a descentralização num princípio ordenador
das mudanças para os setores de esquerda. No caso específico da Nova República, também cumpriram um papel
destacado para certas elites intelectuais as experiências
espanhola e francesa de descentralização, devido à forte
visibilidade política que alcançaram. Para a descentralização da política de atenção à saúde – a política setorial
emblemática desse processo –, o modelo compreendeu as
reformas que ocorreram na Europa na década de 70.7 Por
outro lado, a descentralização constituía-se numa peça
também importante do pensamento liberal de oposição ao
regime. Na Nova República, as duas matrizes – a esquerda e a direita – engendraram uma coalizão frouxamente
articulada, mas que logrou conferir um forte viés municipalista não só à Constituição de 1988, como também às
diversas propostas de políticas. O mais significativo a ser
destacado aqui é que o denominador comum às duas posições é a visão de que a descentralização era um instrumento eficiente de engenharia político-institucional da
democracia emergente (Silva, 1995).
Os Efeitos Perversos do Federalismo Fiscal
A agenda atual da discussão pública sobre a questão
da autonomia dos estados e municípios contrasta fortemente com aquela que balizou as reformas de meados da
década de 80 (Lobo, 1993). Com a nova Constituição, os
governos locais aumentaram sua participação na receita
fiscal significativamente. A participação dos municípios
na receita total disponível aumentou de 9,5% em 1980
para 16,9% em 1992, enquanto para os estados elevou-se
de 24,3% para 31,0%, no mesmo período. A receita tributária disponível (inclusive transferências) dos municípios passou de 2,5% em 1980 para 4,1% do PIB já em
1990. Essa situação levou a União, num movimento defensivo, a criar impostos (na realidade impostos sob a
Efeitos Perversos da Descentralização:
Neolocalismo, Exclusão Social e
Desorganização Institucional
A cultura política fortemente municipalista da década
dos 80 produziu, como amplamente estudado, um ciclo
virtuoso de inovações na gestão pública, sobretudo na
esfera das políticas sociais. Importantes iniciativas inovadoras e democráticas surgiram em função da eleição
de prefeitos da oposição em vários municípios. A ques-
15
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 10(3) 1996
forma de contribuições sociais) que não estão sujeitos a
partilha com estados e municípios através dos Fundos de
Participação de Estados e Municípios (FPM e FPE) (Dain,
1993 e 1994). A União vem tentando também criar mecanismos que rompam a rigidez orçamentária e permitam
a ampliação dos graus de liberdade no plano fiscal e tributário resultante das chamadas “vinculações” do orçamento (recursos com destinação determinada). Desde
1990, a União entrou em guerra não-declarada com as entidades subnacionais, visando ampliar seu espaço fiscal e
tributário.
A história contemporânea da política de estabilização
brasileira tem sido permeada por tentativas de garantir
maior liberdade alocativa à União e coibir o gasto de
estados e municípios. As tentativas de revisão constitucional (o chamado “Emendão” do Governo Collor), a
criação do Fundo Social de Emergência e a revisão
constitucional de 1993-94 são exemplos dessas iniciativas.
Vale lembrar que, em geral, tais iniciativas malograram
devido às resistências do Congresso Nacional, sobretudo
do Senado Federal. Atualmente, a disputa federativa no
país atingiu um novo patamar e se expressa na bancarrota
fiscal dos estados e de alguns municípios. O plano de
estabilização iniciado no Governo Itamar Franco – e que
tem tido continuidade no Governo Fernando Henrique
Cardoso – tem implicado perdas significativas para estados
e municípios (devido inter alia ao desaparecimento do
“imposto inflacionário”). O Governo federal vem utilizando o reescalonamento da dívida de estados e municípios como moeda de troca na aprovação de reformas
constitucionais.
Portanto, o issue destacado na agenda dos anos 90 – e
em forte contraste com a década de 80 – constitui-se nos
efeitos perversos, até mesmo perversos para alguns, da
descentralização fiscal brasileira. A revisão constitucional em curso está claramente informada por uma estratégia global de recentralização, com base em supostos excessos descentralizatórios ocorridos.
Tais efeitos perversos expressam-se de várias formas.
Em primeiro lugar pela proliferação de municípios, pois
a nova Constituição brasileira transferiu a responsabilidade legal pela definição dos critérios de criação de novos municípios – que até era prerrogativa federal – para
o âmbito estadual. Em seu artigo 18, inciso 4o, a Constituição estabelece que as regras para a criação, a incorporação, a fusão e o desmembramento de municípios serão
objeto de lei estadual, e dependerão de consulta, mediante plebiscito, às populações diretamente interessadas. O
processo de emancipação de novos municípios adquiriu
um ritmo desenfreado nos últimos anos. Até fevereiro de
1995, cerca de 1.200 municípios haviam sido criados e
centenas de novos municípios estão sendo objeto de cria-
ção em todo o país. A questão adquiriu forte visibilidade política no período recente sinalizada em pronunciamentos recorrentes dos ministros da Justiça e do Planejamento em torno da necessidade do estabelecimento
de medidas que contenham a proliferação dos novos
municípios. A questão também foi objeto de projeto de
emenda constitucional do Executivo em 1994 e de dois
projetos em tramitação de emenda constitucional de
parlamentares. A multiplicação dos municípios no país
deve merecer reflexão sistemática por duas ordens de
consideração: pelo impacto fiscal causado pela multiplicação de estruturas administrativas e instâncias político-institucionais (secretarias municipais, câmaras de
vereadores, etc.) no âmbito local sem a contrapartida
de geração de riquezas; e pela existência de um número extremamente elevado de unidades subnacionais
supostamente potencializaria as dificuldades de coordenação federativa no país.
Esses dois argumentos, no entanto, devem ser relativizados ao se considerar que, do ponto de vista comparativo, o Brasil apresenta um número extremamente
reduzido não só de municípios per capita, como também de representantes no Legislativo local (Nickson
1995). Em relação à América Latina, observa-se forte
discrepância em relação à média no que se refere apenas às duas grandes metrópoles (Rio de Janeiro e São
Paulo). Os dados, no entanto, não autorizam a conclusão de que o número de cargos políticos é excessivo.
Porém, em comparação à situação dos países desenvolvidos, os dados para o Brasil revelam contrastes excepcionais, em que o número de representantes no país
mostra-se extremamente baixo (Tabela 2) . A crítica,
portanto, tem algum fundamento no caso de emancipação de alguns tipos de distritos: os muito pobres e os de
dimensão muito reduzida. Esse ponto exige minucioso
levantamento empírico para que generalizações mais
amplas possam ser feitas.
TABELA 1
Criação de Municípios
Brasil – 1940-1994
Décadas
1940
1950
1960
1970
1980
1990
1994
Total de Municípios
Municípios Criados
Crescimento (%)
1.574
1.889
2.760
3.952
3.974
4.491
4.974
315
877
1.186
22
715
483
20,0
46,4
42,8
0,5
13,0
10,7
Fonte: Fundação IBGE. Anuário Estatístico do Brasil 1995. Rio de Janeiro, 1996.
16
CRISE FEDERATIVA, GUERRA FISCAL E “HOBBESIANISMO MUNICIPAL” ...
Outro ponto que é objeto de forte controvérsia diz respeito à questão do balanço entre encargos e atribuições
dos estados e municípios e à nova repartição da receita
pública ocorrida. A crítica de que houve distribuição de
recursos a essas entidades sem a contrapartida de novos
encargos tem sido fortemente contestada por Affonso
(1993) e Afonso (1993). A redução da participação da
União no gasto social tem efetivamente levado os estados e municípios a atuarem de forma a suplementar essa
lacuna. O problema da perda da qualidade do gasto, no
entanto, permanece como uma questão aberta (Afonso,
1996).
Outro efeito perverso decorrente da maior autonomia
desfrutada por estados refere-se à “guerra fiscal”, que
adquiriu grande visibilidade recentemente (Azevedo e
Melo, 1996; Piancastelli e Perobelli, 1996 e Negri Neto,
1995). Com a Constituição de 1988, os estados passaram
a dispor de autonomia para fixar as bases dos impostos
de competência estadual, notadamente um imposto sobre
valor adicionado (o ICMS). Nos últimos anos, os estados
passaram a praticar a renúncia fiscal em escala massiva,
numa tentativa de atrair novos investimentos. A magnitude dessa “renúncia fiscal” e o que ela representa como
mecanismo diminuidor da carga tributária agregada, a
importância do ICMS (que representa quase um terço da
receita tributária do país), além da impossibilidade de
formulação de uma política de desenvolvimento regional
por parte do Governo federal apontam para a irracionalidade coletiva desse tipo de situação.
TABELA 2
Número de Vereadores, segundo Países Selecionados
1989-1991
Países
Número de
Vereadores
Habitantes/
Vereadores
Brasil (1991)
Recife
São Paulo
Porto Alegre
Rio de Janeiro
41
53
33
42
32.707
181.640
41.818
130.331
Chile (1991)
La Florida
Vina del Mar
Concepcion
10
10
10
39.125
31.231
31.154
México (1990)
Guadalajara
Nezahualcoyotl
Ecapetec
20
20
20
81.431
62.977
60.962
Argentina (1989)
Buenos Aires
60
48.347
Uruguai (1985)
Montevidéu
31
40.210
França (1)
...
110
EUA (1)
...
490
Japão (1)
...
1.600
Inglaterra (1)
...
1.800
Fonte: Nickson (1995:65).
(1) Os dados referem-se à década de 80.
A SEGURIDADE SOCIAL E A
DESCENTRALIZAÇÃO NO BRASIL
O federalismo fiscal brasileiro também apresentou algumas patologias associadas supostamente à indisciplina
fiscal de estados e municípios. Com efeito, o nível de
endividamento de estados e municípios, que atingiu 15%
do PIB, tem sido entendido como um impedimento importante para o programa de estabilização da economia.
Afonso (1996) argumentou, com bastante perspicácia, que
essa indisciplina fiscal é um mito. Na realidade, observase, no plano da arrecadação, aumento da receita local e
não sua redução. Além disso, o aumento do endividamento
de estados recentemente não tem origem fiscal, devendose ao crescimento das taxas de juros durante o Plano Real.
A capacidade de os governos estaduais se autofinanciarem através da compra de papéis do Tesouro Estadual
pelos seus bancos públicos – ou visto de outra forma as
dificuldades de controle dos bancos estaduais pelas autoridades monetárias – tem sido vista como um obstáculo
de grande monta para os programas de estabilização econômica (Banco Mundial, 1996). No entanto, embora o uso
clientelístico e político dos bancos seja um fato inegável,
o agravamento da crise dos bancos também está associado ao processo de estabilização.
No Brasil, na segunda metade da década de 80, uma
ampla reestruturação da seguridade social teve lugar.
Mudanças constitucionais em 1988 e programáticas entre 1987 e 1993 consagraram um projeto reformista ambicioso para a área da saúde e previdência social. Nos
principais textos legais que regulamentaram tardiamente
a implementação do projeto reformista – as Leis Orgânicas da Saúde (1990), da Seguridade Social (1991) e a da
Assistência Social (1993) –, o acesso universal à seguridade social e à saúde foi consagrado.
No entanto, o processo de implementação da descentralização da saúde, que foi deslanchado em 1987 com o
Sistema Único e Unificado de Saúde (Suds) – que com a
nova Constituição passa a ser denominado Sistema Único de Saúde (SUS) –, foi tortuoso por várias razões. A
implementação do SUS implicava uma transferência massiva de recursos humanos e instalações físicas da rede
pública a cargo do Governo federal e dos estados para a
esfera municipal. O até então poderoso Instituto Nacio-
17
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 10(3) 1996
nal de Assistência Médica da Previdência Social (Inamps)
foi extinto e os recursos que comandava deveriam, segundo o modelo, ser transferidos automaticamente para os
municípios, segundo critérios de população e carências,
e com a plena implementação do SUS, com base no perfil
epidemiológico das comunidades. A gestão dos recursos
do SUS estaria a cargo de comissões tripartites locais,
permitindo o controle social e a transparência das decisões de gasto.
Importa assinalar para os propósitos desse texto que o
projeto reformista passou a ser fortemente combatido, a
partir, sobretudo, de 1991, como uma das fontes de ingovernabilidade crescente do país. As iniciativas de reforma no campo social, em particular da previdência social,
que tiveram lugar nos últimos anos estão assentadas em
um diagnóstico comum. Em linhas gerais este diagnóstico aponta para os seguintes aspectos:
- inconsistência entre o princípio de seguridade social e o
de seguro que informam simultaneamente o capítulo social da Constituição. Se propõe, portanto, que os benefícios que não tenham base contributiva – a renda mensal
vitalícia e a saúde – sejam separados dos que tem um perfil contributivo, conforme plano atuarial. Nesse sentido,
preconiza-se uma especialização das fontes de financiamento do sistema: as contribuições sobre a folha de salário para as aposentadorias; e as contribuições sobre o lucro e o faturamento das empresas para a saúde e a
assistência social. Propõe-se também a expansão dos planos privados de saúde no modelo health maintenance
organizations (HMO), de forma a segmentar as clientelas dos sistemas público e privado, em que o primeiro
estaria voltado para a população de baixa renda. A universalização da cobertura e a equalização de benefícios
previdenciários urbanos e rurais (estes sem base contributiva), permitindo a incorporação de cerca de 40 milhões
de indivíduos à medicina previdenciária, são amplamente citadas como fontes de desequilíbrio fiscal de proporções gigantescas;10
e fiscal, tendo em vista processos em curso de reestruturação produtiva.
A área da saúde foi a mais afetada no quadro da implementação do novo modelo de seguridade social. Contestações no Judiciário sobre as contribuições previstas
na Constituição (sobre o faturamento das empresas) levaram à contestação por via judicial de valores correspondentes a mais de 2,0% do PIB (US$14 bilhões). Por
outro lado, esse problema foi exacerbado porque a característica incomprimível das aposentadorias e pensões –
pela sua natureza contratual – significou que a saúde foi
sendo fortemente marginalizada no gasto social federal.
A efetiva implantação do SUS enfrentou grandes obstáculos devido ao passo errático de desembolso – ou retenção de repasses pelo Tesouro.
A agenda da discussão pública em torno das questões
relacionadas à descentralização da seguridade social envolve fundamentalmente três pontos que são discutidos a
seguir: a perda de qualidade do gasto social em virtude
da descentralização; ambigüidades na definição de atribuições da seguridade social por nível de governo; e dificuldades de compatibilização entre a estrutura federativa
e a transferência automática de recursos da seguridade para
municípios.
Esses aspectos dizem respeito basicamente à saúde e à
assistência social, uma vez que a área previdenciária é na
sua quase totalidade centralizada. Registre-se, no entanto,
que a Constituição de 1988 permitiu a criação de entidades
municipais de previdência social, o que levou à criação de
cerca de 1.300 entidades municipais de previdência –, a vasta
maioria das quais sem bases atuariais. Na proposta de revisão constitucional em tramitação no Congresso Nacional, está proibida a criação dessas entidades. Os dados
escassos divulgados sobre essas entidades, revelam fortes
desequilíbrios atuariais e irregularidades administrativas.
- propostas de restrições à “generosidade pública” na concessão de benefícios sociais (auxílio maternidade de 120
dias, renda vitalícia de um salário mínimo, aposentadoria
por tempo de serviço, elegibilidades com tempo de contribuição exíguo, entre outros);
Com a nova Constituição de 1988, os governos locais
aumentaram significativamente sua participação na receita
fiscal. Os municípios tiveram sua participação na receita
total disponível aumentada de 9,5% em 1980 para 16,9%
em 1992. Para os estados, estes valores correspondiam a
24,3% e 31,0%, respectivamente. Essa expansão contrasta fortemente com a reconhecida deterioração na qualidade dos serviços sociais. A receita tributária disponível
(inclusive transferências) dos municípios, que havia permanecido estável na década de 80 em 2,5% do PIB, atingiu 4,1% do PIB já em 1990. A expansão observada quanto
ao gasto local refere-se às despesas com pessoal, que atingiram 6,8% do PIB em 1990 (enquanto este valor para o
Governo federal se reduziu). Os pontos controversos da
Perda de Qualidade do Gasto Social
- na linha da redefinição de direitos sociais, busca-se a
“desconstitucionalização” de matérias sociais, que passariam a ser tratadas por lei ordinária, obtendo-se maior
flexibilidade no tratamento dos problemas afetos a essas
áreas de intervenção;
- redução da carga tributária global e dos encargos sociais num tratamento unificado das questões do mercado
de trabalho, da previdência social e da política tributária
18
CRISE FEDERATIVA, GUERRA FISCAL E “HOBBESIANISMO MUNICIPAL” ...
discussão recente em torno do tema referem-se ao significado dessa expansão. Para analistas do Governo, no plano federal, ela revelaria o aumento do emprego público
de base clientelista e perda de qualidade do gasto público. Argumenta-se, em contrário, que o crescimento do
gasto em custeio e pessoal expressa, na realidade, a expansão do papel dos municípios enquanto provedores de
serviços sociais, em resposta à retirada da União. Affonso
(1993), com base na expansão observada da formação
bruta de capital fixo nos municípios, no período recente,
também critica o argumento. Em síntese, a questão acerca de qual a qualidade do gasto municipal, para além da
natureza da despesa, se custeio ou capital permanece sem
uma resposta conclusiva.
Após a aprovação da Lei Orgânica da Assistência Social em 1991, iniciou-se a um amplo processo de descentralização dos convênios de assistência social mantidos
pelo Governo federal (em particular por duas entidades
que foram extintas pelo governo Fernando Henrique Cardoso: a Fundação de Bem-Estar do Menor e a Legião Brasileira de Assistência). Os cerca de 8.000 convênios mantidos por essas entidades apresentavam graves distorções
e irregularidades, sendo que sua descentralização apresentou-se como a solução (Brasil, 1996). Nesse sentido,
à luz da experiência desses convênios, o questionamento
sobre a perda da qualidade do gasto social local parece
estar perdendo credibilidade.
recursos para os municípios é inconsistente com a distribuição espacial da rede de saúde. As localidades cujos
habitantes se dirigem a estabelecimentos de saúde em
municípios vizinhos recebem muitas vezes aportes de recursos no mesmo nível que estes últimos.
Embora circunscrita a alguns aspectos selecionados, a
discussão anterior sugere que a questão das relações entre estrutura federativa e políticas sociais é muito mais
complexa do que é freqüentemente apresentado na mídia
e nas propostas governamentais recentes.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A descentralização em curso em escala global, e mais
particularmente na América Latina e no Brasil, apresenta-se como uma idéia força importante e certamente constitui-se em processo irreversível. No entanto, decorrida
uma década de experiências descentralizantes, esse processo passa a ser visto com mais cautela. Essa mudança
ocorre em virtude da visibilidade que vem ganhando alguns efeitos perversos observados a partir de processos
de descentralização. No caso brasileiro, observa-se sobretudo no plano fiscal e tributário uma forte tendência de
reversão da descentralização alcançada. A agenda pública hoje está fortemente polarizada em torno dos efeitos
da descentralização – ao contrário do consenso ocorrido
na Nova República. A discussão também tornou-se ideologizada num claro esforço por parte do Governo central
de transferir os custos políticos do processo de descentralização para os estados e municípios. Os constrangimentos do jogo político e institucional democrático, no
entanto, têm limitado fortemente as tentativas do Governo federal de efetuar mudanças em um sentido recentralizante. A experiência descentralizante num contexto
democrático tem permitido, no entanto, um processo de
aprendizagem social em que seus limites e possibilidades
podem ser efetivamente compreendidos. A conjugação
entre reformas descentralizantes (que ocorrem em escala
global) e uma crise do pacto federativo confere ao caso
brasileiro singularidades que tornam esse país um rico
laboratório de experiências político-institucionais.
Ambigüidades na Definição de Atribuições
da Seguridade Social
Em larga medida, a estratégia do SUS, no Brasil, foi
claramente municipalista. Os estados, a despeito de sua
centralidade no arranjo político-institucional brasileiro,
não tiveram atribuições claramente definidas. A excepcional heterogeneidade dos cerca de 5 mil municípios brasileiros, no plano socioeconômico e no que se refere à
capacidade de gestão das prefeituras quanto a recursos
humanos, infra-estrutura material, tamanho e renda, constitui-se num impedimento formidável para a implantação
de um modelo único. Uma grande parcela desses municípios não tem condições de organizar isoladamente ou em
consórcios um sistema local de saúde, salvo com a interveniência dos estados.
NOTAS
Compatibilização entre a Estrutura Federativa e a
Transferência Automática de Recursos
Esse artigo foi escrito no âmbito do projeto Federalismo no Brasil, desenvolvido
no Instituto de Economia do Setor Público da Fundap.
1. Numa análise das tendências descentralizantes, Ashford (1992) aponta também para uma dimensão tecnológica da questão, ou seja, o recurso a entes locais
se faz necessário como um imperativo organizacional e técnico: “na medida em
que os welfare states se tornam mais avançados, é provável que eles também se
tornarão cada vez mais localizados. Enquanto as necessidades se tornam mais
diversificadas, os serviços se tornam cada vez mais especializados”. Ou seja,
progressivamente se faz necessário uma personalização dos serviços sociais, que
por sua natureza demandam uma esfera de governo próxima ao usuário para a
As dificuldades administrativas, informacionais e técnicas para a organização de distritos sanitários definidos
segundo perfis epidemiológicos da população mostraramse quase intransponíveis. A transferência automática de
19
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 10(3) 1996
AGHON, G. Procesos recientes de descentralizacióen América Latina: revision
de algunas experiencias. Cepal/GTZ, 1995.
sua provisão. Essa explicação se aplica em larga medida aos casos dos países de
tradição social-democrata. A especificidade dos vários casos de descentralização dos welfare states exigiria uma análise fina que não pode ser feita aqui. Para
uma discussão analiticamente sofisticada da relação estado/mercado, ver
Przeworski (1995).
ALMEIDA, M.H.T. de. “Federalismo e políticas sociais”. Revista Brasileira de
Ciências Sociais, n. 28, junho 1995, p.88-100.
ARRETCHE, M. “Mitos da descentralização: mais democracia e eficiência nas
políticas públicas?” Revista Brasileira de Ciências Sociais, n. 31, 1996.
ASHFORD, D. “Comparing local discretion”. International Review of
Comparative Public Policy, special issue on the Local Welfare State, v.2,
1990, p.1-24.
AZEVEDO, S. e MELO, M. A. Mudanças institucionais, reforma da seguridade social e reforma tributária. Ford/Anpocs, 1996 (Relatório de Pesquisa).
2. Com efeito, o welfare state pode ser adequadamente representado como uma gigantesca engrenagem de risk pooling e de transferências intergrupos. Vale assinalar
que a viabilidade política destas transferências requereu historicamente a solidificação
dos mecanismos de produção de identidades e solidariedades sociais (Melo, 1996).
3. No limite, o benefício marginal decorrente da provisão do bem deveria se igualar
ao seu custo marginal.
4. Os pressupostos sob as quais se assentam a teoria do federalismo fiscal são
frágeis. Em primeiro lugar,as jurisdições territoriais existentes não são historicamente criadas para refletir a incidência dos bens públicos. Em segundo lugar,
estas jurisdições não podem ser modificadas ao longo do tempo para refletir
mudanças na tecnologia de provisão dos bens públicos, ou no próprio tipo de
bem em questão (Tanzi, 1995). Uma variante clássica de um modelo de federalismo fiscal é aquela oferecida pelo conhecido modelo de Tiebout. Neste modelo, as preferências dos consumidores são reveladas pelo comportamento locacional dos consumidores de bens públicos entre localidades. Uma situação de
ótimo Paretiano é obtida quando os consumidores votando com seus pés escolhem localidades em que o mix benefício-taxas locais é maximizado.
BANCO MUNDIAL. Brasil: dívida estadual: crise e reforma. Relatório 14.842BR, 1996.
BARZELAY, M. Breaking through bureaucracy. University of California Press,
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FIGUEIREDO, R. e LAMOUNIER, B. As cidades que dão certo: experiências
inovadoras na administração pública brasileira. Brasília, MH Comunicação, 1996.
5. Uma refutação bastante consistente desse argumento pode ser encontrada em
Afonso (1996).
6. Rosanvallon (1993) argumenta de forma bastante arguta que “en décentralisant
on augmente aussi la capacité d’interférences corporatistes et d’intérêts particuliers
dans le champ de la décision”. E continua : “on s’aperçoit en outre qu’il ne faut pas
confondre à tout coup proximité et décentralisation. Un service public de l’État
peut être organisé de façon à être proche de l’usager. La proximité est aujourd’hui
un enjeu centrale pour l’État comme pour les collectivités locales. Il faut bien se
rendre compte à ces propos qu’on ne peut plus assimiler les collectivités locales et
la societé civile (ce que faisait de facto l’ideologie décentralisatrice en reduisant
toutes les questions à un grand affrontement entre ‘État et la societé civile).” Para
uma discussão refinada deste ponto, ver Arretche (1996).
IDB – Interamerican Development Bank. “Fiscal decentralization: the search for
equity and efficiency. Economic and Social Progress in Latin America, 1994
(Report).
HAGGARD, S. “The reform of the state in Latin America”. World Bank’s Annual
Conference on Development in Latin America and the Caribbean. Rio de
Janeiro, 12-13 June 1995.
7. Cabe assinalar, de passagem, que malgrado a centralização, a ideologia municipalista está fortemente enraizada no país e representava uma espécie de Leito de
Procusto, no qual fórmulas políticas distintas – e não raro antinômicas – se acomodavam (Melo, 1993c).
IDEP - Instituto de Estudios sobre Estado y Participación. Los nuevos contenidos
de las crisis provinciales, 1995, mimeo.
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LOBO, T. et alii. Descentralização: cenário brasileiro pós-Constituição. Rio
de Janeiro, Centro de Estudos de Políticas Públicas, 1993 (Texto para discussão).
8. No caso brasileiro tais práticas e mecanismos têm sido analisados em muitos
trabalhos. As mais citadas são: experiências de orçamento participativo introduzidas em algumas cidades – particularmente Porto Alegre; experiências de democratização ampla da gestão (prefeitura nos bairros em Recife); práticas diversas em Icapuí (Ceará) e Janduís (Rio Grande do Norte); experiências novas de
gestão de áreas de favelas (Prezeis em Recife, etc.); experiências e práticas novas nas políticas públicas incluindo consórcios municipais, etc. em Santo André,
Santos (São Paulo) (Figueiredo e Lamounier, 1996).
MEDICI, A. “Políticas sociais e federalismo no Brasil: problemas e perspectivas”. Seminário Internacional Impasses e Perspectivas da Federação no
Brasil. São Paulo, Iesp/Fundap, 1995.
MELO, M. A. “Democracia neolocalismo e mal-estar social: a geometria política da nova República”. Pobreza e desigualdade social. Agendas de políticas públicas. Rio de Janeiro, Iuperj, agosto, 1993a.
9. Como assinalou Peterson (1995), para o caso americano, estruturas muito descentralizadas dificultam a implementação de programas redistributivos (cuja
vocação é eminentemente nacional) voltados para a redução de desigualdades
entre regiões e grupos sociais. Para este autor o federalismo acentuado nos Estados Unidos constituiu-se num dos óbices mais relevantes para a implementação
de um estado amplo de bem-estar social.
__________ . “Anatomia do fracasso: intermediação de interesses e reforma da
política social na Nova República”. Dados. Rio de Janeiro, Iuperj, n.3 1993b.
__________ . “Municipalismo, nation-building e a modernização do Estado no
Brasil”. Revista Brasileira de Ciências Sociais, n.23, 1993c.
10. Dos 14 milhões de benefícios pagos pela previdência social em 1994, cerca
de 8 milhões têm caráter de seguro social e 6 milhões têm caráter assistencial.
__________ . “A seguridade social e a crise do mundo do trabalho”. São Paulo
em Perspectiva. São Paulo, Fundação Seade, v.9, 1996.
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20
GOVERNABILIDADE
E
DESCENTRALIZAÇÃO
GOVERNABILIDADE E DESCENTRALIZAÇÃO
LADISLAU DOWBOR
Economista, Professor da PUC-SP. Autor do livro O que é Poder Local?
e com algumas outras medidas, poderiam ser economizados uns 30% ou mais para aplicações mais amplas? E isto
significa dezenas de bilhões de dólares.
Porém, podemos também ir para um setor essencialmente privado, como o dos bancos, e constataremos que
a intermediação financeira nos custa cerca de 50 bilhões
de dólares por ano. Vamos clarificar isso: para estocar,
gerir, aplicar os recursos de todos nós, os bancos têm
custos que incluem desde salários até computadores e
lucros dos banqueiros. É o custo da máquina que ultrapassa 50 bilhões de dólares, algo entre 12% e 15% do PIB
do país, mais do que o valor total da produção agrícola
nacional. O banqueiro, para cobrir estes custos, cobra juros, pagos pelas empresas que tomam empréstimos. Estas, por sua vez, incluem os custos financeiros ao calcular o preço de venda dos seus produtos. Isto significa que
a massa de consumidores do país paga, ao comprar qualquer produto, os custos financeiros correspondentes, sustentando a gigantesca máquina de intermediação. Estes
12% a 15% de "imposto" financeiro cobrados pelos bancos encarecem todos os produtos, reduzem a capacidade
de investimentos do país e constituem uma gigantesca esterilização de poupança. É um cálculo conservador estimar que 30 bilhões de dólares são desperdiçados anualmente no Brasil por irracionalidades do sistema de
intermediação financeira.3
Vamos tomar o exemplo dos transportes em São Paulo. São 4,3 milhões de automóveis particulares em circulação na cidade e qualquer motorista que se encontre na
rua num dia de chuva pode constatar o alcance da nossa
incapacidade de gestão urbana: conseguimos nos paralisar por excesso de meios de transporte. Se calcularmos
que um carro vale em média 5 mil dólares, são 20 bilhões
Na prática, tanto o Estado como o mercado são
freqüentemente dominados pelas mesmas estruturas
de poder. Isto sugere uma terceira opção pragmática:
a de que o povo deveria guiar tanto o Estado como o
mercado, que precisam funcionar de maneira
articulada, com o povo recuperando suficiente poder
para exercer uma influência mais efetiva sobre ambos.
Nações Unidas,
Relatório sobre o Desenvolvimento Humano1
O
Brasil gasta mal. Só na área social gastam-se mais
de 100 bilhões de dólares por ano, entre recursos
públicos e privados, e muita coisa pode ser feita
com recursos deste porte. A desproporção entre o que se
gasta e os resultados levou o Banco Mundial a realizar
uma pesquisa no Brasil: "A proporção do PIB brasileiro
destinada aos serviços sociais parece ser mais elevada do
que a dos outros países em desenvolvimento de renda
média. Em comparação com os mesmos países, os indicadores do bem-estar social no Brasil são surpreendentemente inferiores".2
Não há dúvida de que temos recursos insuficientes, mas
também não há dúvida de que estes recursos encontramse, antes de tudo, mal utilizados. Imaginar que se trata de
uma característica do setor público é ilusão. Nas cifras
citadas anteriormente estão os gastos privados; e o estudo do Banco Mundial constata, por exemplo, que no conjunto cerca de 80% dos gastos em saúde situam-se na área
da saúde curativa, o que é simplesmente absurdo. Que
técnico com experiência em planejamento social duvidaria que, com prioridade à saúde preventiva, à educação
básica, à descentralização da gestão da seguridade social
21
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 10(3) 1996
de dólares imobilizados. É claro que não estamos computando o valor do combustível, dos pneus que se gastam
e da sinalização das ruas, nem os custos dos hospitais. Só
o valor dos carros permitiria construir mais de 500km de
metrô na cidade, resolvendo todos estes problemas. Mas
a nossa mão invisível é sábia: São Paulo tem apenas 40km
de metrô, sendo que o custo por quilômetro é duas vezes
e meia superior ao que custou a construção do metrô de
Montreal, no Canadá, para dar um exemplo. Podemos
fazer outro cálculo: a opção metrô em grande escala poderia economizar, em média, meia hora do tempo de transporte do trabalhador paulistano, e estamos sendo comedidos. Cinco milhões de trabalhadores, a meia hora por
dia, são 2,5 milhões de horas economizadas diariamente.
Como a produtividade média da hora de trabalho do brasileiro é da ordem de 3 dólares, teríamos uma economia
de 7,5 milhões de dólares por dia, ou 2,1 bilhões por ano,
suficiente para construir por ano o dobro de toda a rede
de metrô da cidade. Entretanto, a opção é derrubar mais
casas na Avenida Faria Lima para conseguir mais espaço
para carros, abrir túneis para o Morumbi, enquanto o projeto metrô surge em Brasília...
Outra área? Na área das infra-estruturas, em que as
decisões são dominantemente públicas, mas com influência determinante das empreiteiras, acumulamos gastos
gigantescos (a nossa dívida externa é hoje da ordem de
120 bilhões de dólares) para desenvolver um programa
atômico sem nenhum sentido, uma rodovia Transamazônica
entre o nada e o nada, uma ferrovia do aço que tem mais
túneis e pontes do que trechos normais e uma central hidrelétrica que arcou com todos os sobrecustos de querer
ser a maior do mundo. Só na central foram 18 bilhões de
dólares, dinheiro suficiente para comprar bons estabelecimentos agrícolas para todos os sem terra do país.4 O estudo do Banco Mundial sobre gestão de infra-estruturas no
mundo mostra que o sistema utilizado, em geral, é o chamado BOT, pelo qual empresas privadas constroem
(Build), por exemplo, uma estrada, depois operam
(Operate) durante algum tempo para recuperar o investimento e realizar lucros e, finalmente, transferem a estrada de volta ao setor público (Transfer). No nosso caso,
construímos a estrada com dinheiro público e depois entregamos para empresas privadas para que cobrem pedágio (Banco Mundial, 1994).
Na área agrícola, tão importante e tão subestimada,
temos no país 370 milhões de hectares de boa terra agrícola, lavramos anualmente cerca de 60 milhões e apresentamos um gigantesco desperdício de terra através do
que tem sido chamado pudicamente de pecuária extensiva (média nacional de 3 hectares por cabeça), enquanto
na realidade temos sólidos dois terços do nosso potencial
em terras imobilizados como reserva de valor, com pro-
prietários que nem cultivam nem deixam cultivar. Isto sem
falar das impressionantes estruturas de atravessadores que
provocam viagens absurdas dos produtos agrícolas entre
diversas "praças", simplesmente para pagar pedágio comercial. Trata-se, aqui também, da área privada, e não do
Estado. Em 1996, os produtores de tomate destruíram caixas de 30 quilos do produto por não conseguirem 3 reais
por caixa, que viabilizariam a produção. Na época, o quilo do tomate na feira estava a um real. Não se fala aqui de
margens de 30% ou 40% para os atravessadores, o que já
seria muito, mas de margens da ordem de mais de 600%
e de uma população que passa fome enquanto se destroem alimentos.5
Na área dos recursos humanos, em números redondos,
o Brasil tem uma população total da ordem de 160 milhões de pessoas, das quais cerca de 100 milhões em idade ativa. Destas, cerca de 65 milhões constituem a população economicamente ativa, ou seja, que trabalha ou está
procurando emprego, e cerca de 60 milhões trabalham
efetivamente, correspondendo à população ocupada. Basta
ver, pelos números, que mantemos uma gigantesca subutilização dos recursos humanos, da ordem de dezenas de
milhões de pessoas, isto em termos estritamente quantitativos, sem falar da imensa perda de produtividade representada pelo fato de a metade da nossa mão-de-obra
ter completado, no máximo, até o quarto ano primário,
formando uma gigantesca massa de analfabetos funcionais.6 Note-se bem que é o emprego que falta no país, e
não o trabalho: continuamos com dezenas de milhões de
pessoas sem comida, enquanto a terra está parada; com
um gigantesco déficit de habitações, que precisam ser
construídas; insuficiências dramáticas nas áreas de saneamento, educação e em tantas outras. Quando, por um lado,
há tanto trabalho por fazer no país e, por outro, tantas pessoas paradas, o problema é claramente institucional, de
organização política e social.
Um último exemplo relativo às telecomunicações: para
se obter uma linha telefônica no país, o custo médio é de
US$1.500 por linha, para usar uma cifra bem conservadora e do mercado oficial. O preço correspondente na
Argentina é de US$182, no Canadá de US$31, na
Venezuela de US$36 e em New York de US$136. Ao fixar um preço elevadíssimo para se adquirir uma linha, o
sistema exclui a ampla maioria da população, o que, em
termos de produtividade da Telebrás, é ótimo: a empresa
passa a trabalhar apenas com clientes de renda média e
alta, que usam interurbanos e outros serviços. Porém, em
termos de produtividade social, é uma catástrofe: para
marcar uma hora com um médico, ou para resolver qualquer pequeno problema familiar, o habitante pobre da
cidade de São Paulo perde, no mínimo, meio dia de trabalho, ocupa desnecessariamente lugar num ônibus e em
22
GOVERNABILIDADE
outros meios de transporte, transportando a si mesmo
quando poderia transportar alguns impulsos por fio telefônico. Estima-se que a demanda reprimida em São Paulo é de 6,4 milhões de linhas telefônicas (3,4 milhões de
convencionais e 3 milhões de celulares).7 Segundo o Banco
Mundial (1992b:vii e 44) “a imposição de taxas de instalação extremamente elevadas serviu claramente para excluir domicílios de baixa renda da obtenção de serviços
telefônicos, ainda que pudessem financiar a amortização
mensal equivalente.” Estes exemplos, tomados isoladamente, levam a explicações parciais e a culpas fáceis.
Tomados no seu conjunto, demonstram:
- que os volumes desperdiçados são simplesmente gigantescos, da ordem dos 100 bilhões de dólares ou mais, o
que representa um quarto do PIB anual. Em conseqüência, nosso problema central não é levantar recursos novos, mas sim utilizar corretamente o que temos, inclusive
recursos físicos subutilizados, como o solo e, sobretudo,
os recursos humanos;
- o problema não é de maneira nenhuma característico do
setor público, podendo ser constatado no conjunto da economia, permeando a cultura dos grandes grupos empresariais privados e criando uma situação global de baixa
produtividade social;
- como os diversos agentes econômicos, públicos ou privados, não sofrem de uma perversão generalizada de querer o seu próprio mal, o problema resulta essencialmente
de uma desordem institucional, que leva a uma cultura
organizacional centrada no curto prazo e no canibalismo
econômico;
E
DESCENTRALIZAÇÃO
A Revolução Tecnológica em Curso
As transformações mais significativas podem ser resumidas em alguns grandes eixos. A informática, que está
revolucionando todas as áreas – em particular as que lidam com informação e conhecimento –, multiplicou sua
capacidade por 100 em 10 anos. As telecomunicações, que
conhecem uma revolução tecnológica ainda mais profunda
e dinâmica do que a da informática, estão tornando possível e cada vez mais barato transmitir tudo – textos, imagens, som – em grandes volumes e com rapidez. Em 10
anos, estima-se que a capacidade foi multiplicada por mil
nos setores mais tradicionais e por um milhão nas áreas
que passaram para os sistemas óticos.9 As biotecnologias
ainda não invadiram nosso cotidiano, mas deverão constituir a principal força de transformação na agricultura,
na indústria farmacêutica e em outros setores na próxima
década. As novas formas de energia, em particular o laser, permitem aplicações que estão se generalizando na
medicina, no comércio, no setor de eletrodomésticos e em
outros. Finalmente, surge uma ampla gama de novos materiais, que incluem as novas cerâmicas, os supercondutores, novas formas de plástico, etc., que, por sua vez,
permitem novos avanços na eletrônica e na informática,
nas telecomunicações e assim por diante.
Não há provavelmente nada de novo nesta enumeração para o leitor; o que é novo é este ritmo de transformação. Basta lembrar que há uma estimativa de que nos últimos 20 anos dobraram nossos conhecimentos científicos,
relativamente à totalidade de conhecimentos técnicos acumulados ao longo da história da humanidade.
Por precárias que sejam avaliações deste tipo, o fato é
que estamos no meio de um gigantesco turbilhão de renovação científica e isto deve ocupar um lugar central nas
nossas reflexões sobre as formas de gestão econômica e
social. Acabou-se o tempo em que se geria uma realidade
relativamente estática. E gerir a mudança implica gerir
um processo permanente de ajustes dos diversos segmentos da reprodução social, que poderíamos definir como
gestão dinâmica.
- quando numerosos atores sociais buscam a vantagem a
curto prazo e a qualquer custo, inviabilizando o processo
de desenvolvimento em seu conjunto, as soluções devem
ser buscadas na recuperação da governabilidade no seu
sentido mais amplo, nas dinâmicas institucionais do país.
Estas constatações, por óbvias que sejam, são importantes para deixar claro que a racionalização institucional faz parte de um processo mais amplo, ultrapassando
as simplificações da privatização. Por outro lado, mostram que a reorganização do contexto institucional do
nosso desenvolvimento e a recuperação da governabilidade do país constituem um eixo de ação absolutamente
vital. Não se trata, portanto, de organogramas, mas sim
da lógica do processo, da cultura político-administrativa
herdada pela nação.
A Globalização10
O processo de globalização ou internacionalização do
espaço mundial resulta, em grande parte, dos avanços tecnológicos mencionados. Basta dizer que se transferem
hoje, diariamente, mais de 1 trilhão de dólares entre diversos países, por meios eletrônicos, para ver a que ponto a terra se transformou na "aldeia global".11 Hoje vemos as mesmas imagens na TV, compramos os mesmos
carros, lemos os mesmos artigos – ou quase – em qualquer lugar do mundo.
GERIR A MUDANÇA
É importante definir antes de tudo os grandes eixos de
mudança que atingem a sociedade neste fim de século e
que definem os parâmetros das novas formas de gestão.8
23
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 10(3) 1996
O movimento centrado na Qualidade e Produtividade
incide em todos os espaços econômicos do mundo, e ninguém pode se permitir ignorar seu impacto.
Uma implicação evidente para todos nós é que já não
há espaços para "ilhas" culturais ou econômicas, para
"Albânias" com experiências isoladas. Temos que fazer
frente à internacionalização, dado objetivo que independe dos nossos gostos, e dimensionar nossas propostas em
função desta realidade. Variações de cotação na bolsa de
cereais de Chicago provocam rápidas mudanças de comportamento de agentes econômicos de qualquer município, por distante que seja. A maior parte dos países, a
começar pelos Estados Unidos, estão empreendendo esforços amplos de modernização administrativa. Atrasos
nesta área são hoje mortais para a produtividade comparada dos países.
Por outro lado, é o conjunto da referência espacial do
desenvolvimento que hoje encontra-se deslocada, com a
redução do papel dos governos nacionais, reforço dos
"blocos" e do espaço supranacional em geral e um novo
papel das cidades na gestão descentralizada da sociedade.12
As Polarizações
A polarização entre ricos e pobres atinge neste fim de
século uma profundidade e um ritmo desconhecidos em
eras anteriores. Os dados do Relatório sobre o Desenvolvimento Mundial de 1992, do Banco Mundial, indicam
que éramos, em 1990, 5,3 bilhões de habitantes, para um
PIB mundial de 22 trilhões de dólares, o que significa
4.200 dólares de bens e serviços por ano e por habitante:
o planeta já produz amplamente o suficiente para uma vida
digna para toda a população mundial. No entanto, 16 trilhões destes recursos (72%) ficam com 800 milhões de
habitantes dos países do "Norte", que representam 15%
da população mundial. O efeito prático é que o nosso planeta tem 3 bilhões de pessoas com uma renda média de
350 dólares por ano e por pessoa, menos de metade do
salário mínimo brasileiro. O cidadão do "Norte" dispõe,
em média, de 60 vezes mais recursos do que os 3 bilhões
de pobres do planeta, ainda que, seguramente, não tenha
60 vezes mais filhos para educar. É fácil entender como
esta diferença, já catastrófica, se aprofunda: em 1990, por
exemplo, a renda per capita dos pobres aumentou 2,4%,
ou seja, 8 dólares, enquanto a dos ricos cresceu de 1,6%,
ou seja, 338 dólares. A população dos ricos tem um aumento de 4 milhões de habitantes por ano, enquanto a dos
pobres, de 59 milhões (Banco Mundial, 1992a:196).
Temos de encarar com frieza estas cifras. O impacto
sobre o mundo da educação, por exemplo, é imediato. Os
gastos mundiais em educação em 1988 foram de 1.024
bilhões de dólares, cerca de 5,5% do produto mundial. Os
países desenvolvidos gastaram 898 bilhões destes recursos, enquanto os países subdesenvolvidos se limitaram a
126 bilhões. Como a população dos países subdesenvolvidos ultrapassa 4 bilhões de habitantes, o resultado prático
é que, em 1988, o gasto médio anual por aluno foi de 2.888
dólares nos países ricos e de 129 dólares nos países subdesenvolvidos, ou seja, 22 vezes menos, quando quem tem que
recuperar o atraso somos nós (Unesco, 1992:36 e 40).
Em outros termos, a busca da produtividade social e
da gestão mais racional dos nossos parcos recursos não é
um luxo. Para os países do Terceiro Mundo, é uma condição vital para o desenvolvimento. Por outro lado, a polarização interna criou duas sociedades no país. As cifras
aqui são dramáticas: 1% das famílias mais ricas do país
dispõem de 17% da renda, cerca de 68 bilhões de dólares, algo como 45.000 dólares por ano por membro da
família. Enquanto isso, os 50% mais pobres, 75 milhões
de pessoas, sobrevivem com 12% da renda, algo como
640 dólares, 70 vezes menos que os mais ricos na média
e com um nível absoluto da ordem de 50 dólares por mês.
Só a mais completa cegueira social pode explicar a tranqüilidade com a qual as classes dirigentes do país limi-
A Urbanização
Os fenômenos demográficos são discretos porque os
processos regulares de mudança, que envolvem alguns
poucos percentuais ao ano, não chamam nossa atenção.
Porém, a realidade é que, em meio século, nossas sociedades deixaram de ser rurais para se tornarem urbanas, e
um país não é mais uma capital onde se tomam decisões,
cercado por massas rurais dispersas. Estamos apenas começando a avaliar o gigantesco impacto social e político
desta transformação. Basta lembrar que hoje no Brasil
quase 80% da população vive em cidades, invertendo as
proporções do início dos anos 50.
Uma implicação imediata desta nova realidade é que
não precisamos mais de um Estado tão centralizado, já
que a população que vive em núcleos urbanos pode resolver localmente grande parte dos seus problemas.
Esta nova realidade é que levou os países desenvolvidos a adotar uma estrutura de Estado profundamente diferente da nossa, com ampla participação dos governos
locais.
Isso significa, em outro nível, que já não podemos
nos deixar acuar pela eterna dicotomia entre privatizar
e estatizar, uma vez que adquire peso fundamental, em
termos de perspectivas, o espaço público comunitário,
refletindo a evolução da democracia representativa para
sistemas descentralizados e participativos, a chamada
democracia participativa. Voltaremos mais adiante a
esta questão central.
24
GOVERNABILIDADE
A FUNÇÃO DO ESTADO
Com a força natural que possuem os lugares comuns,
generalizou-se a visão de que a dimensão institucional
desta modernização se resume em privatizar. "A privatização não é uma panacéia", adverte o próprio Banco
Mundial, instituição insuspeita de "Estatismo" (Tabela 1).
TABELA 1
Participação dos Gastos do Governo no PIB ou PNB
Países Industrializados – 1880-1985
Em porcentagem
Alemanha
EUA
França
Japão
Suécia
Reino
Unido
1880
1929
10
8
15
11
6
10
31
10
19
19
8
24
1960
32
28
35
18
31
32
1985
47
37
52
33
65
48
DESCENTRALIZAÇÃO
Constatamos a forte progressão global da participação
do Estado, particularmente na fase mais recente, apesar
de todos os discursos em contrário. A progressão é muito
forte, inclusive nos Estados Unidos, depois de cinco anos
de governo Reagan, e no Reino Unido, numa fase que inclui quase 10 anos de governo de Margareth Thatcher.
Em termos de ordem de grandeza, nos países desenvolvidos o governo administra hoje a metade do produto social. Os dados mais recentes do Labor Department dos
Estados Unidos mostram o rápido crescimento do número de funcionários públicos nos últimos anos, ainda que
haja um forte deslocamento do peso principal do nível
federal de governo (cerca de 3 milhões de funcionários
em 1994) para o nível local (cerca de 16 milhões)
(Business Week, 1995:31).14
Apresentar este quadro é importante, na medida em segmentos significativos da sociedade passaram a raciocinar
em termos de um "Estado pequeno e eficiente", justificando na realidade um processo caótico de privatizações,
engavetando a questão essencial de como e a quem serve
o Estado. A realidade com a qual temos de trabalhar para
enfrentar os processos de mudança que vimos anteriormente é a de um Estado amplo, mas que tem de passar a
funcionar de forma diferente. É o conjunto dos espaços
diferenciados do desenvolvimento que têm de ser repensados em sua dimensão institucional.
Se as sociedades desenvolvidas se modernizaram de
fato (mesmo quando não no discurso), reforçando o Estado, e os dados acima não deixam dúvidas a respeito, o
eixo principal de ação não consiste em cortar segmentos
da administração pública, mas em buscar um melhor funcionamento e com outras finalidades. A uma pessoa gorda que se move mal não se corta a perna para que fique
mais leve: busca-se melhorar seu modo de vida. No nosso caso, trata-se de buscar soluções institucionais mais
flexíveis e sobretudo mais democráticas.15
Em termos da eficiência global com que a sociedade
gere seus recursos, um diretor da ENA (Ecole Nationale
d'Administration) de Paris tirava das cifras citadas anteriormente uma lição simples: se o Estado nas sociedades
modernas gere cerca de metade do produto social, racionalizar suas atividades constitui a maneira mais eficaz de
se elevar a produtividade do conjunto da sociedade.
tam-se a contratar mais policiais, quando o Brasil já atingiu o primeiro lugar no mundo em injustiça social. No
Rio de Janeiro, são assassinadas, diariamente, 21 pessoas
e em São Paulo esse número chega a cerca de 25. Os 400
automóveis roubados por dia em São Paulo representam
uma fila de 2km de veículos que têm de ser guardados,
transformados, documentados e revendidos, o que implica uma indústria envolvendo esferas policiais, administrativas, bancárias, além da própria criminalidade. Em
1993, os vigilantes, guardas e policiais militares ultrapassavam 160 mil só no Estado de São Paulo, custando-nos,
para atividades improdutivas, mais de um bilhão de dólares, para não falar de outras implicações.13
Formas patológicas de desenvolvimento econômico
levam a mecanismos perversos de sobrevivência e não
podemos voltar as costas para esta evidência. A reinserção digna das massas oprimidas deste país constitui um
objetivo central de qualquer reforma realista da forma de
governarmos. Não se pode gerir uma nação como se fossem dois países.
Vimos anteriormente a mudança profunda do contexto
da administração. A mudança tecnológica impõe uma gestão dinâmica que redimensiona em permanência os seus espaços; a globalização exige uma interação muito mais ágil
com o resto do mundo; a urbanização abre perspectivas para
uma reformulação global do funcionamento na forma como
a sociedade se governa; enquanto as polarizações econômicas nos colocam em situação de desigualdade em termos
internacionais e em situações explosivas em termos internos.
Anos
E
ESTADO DO SÉCULO XIX,
PROBLEMAS DO SÉCULO XXI
É importante levar em conta que somos um país de
urbanização tardia. Ademais, não se trata, como foi o caso
em grande parte nos países desenvolvidos, de uma urbanização por atração dos empregos gerados nas cidades,
mas sim por expulsão do campo. Nosso mundo rural foi
Fonte: Banco Mundial. Relatório sobre o Desenvolvimento Mundial 1991. Washington, 1991.
25
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 10(3) 1996
atravessado por uma poderosa corrente modernizadora,
que implantou a monocultura e a mecanização, reduzindo drasticamente o emprego, e por outra corrente profundamente conservadora, que transformou o solo agrícola em reserva de valor, que os proprietários não usam e
nem deixam usar. Sem emprego no campo, ou quando
muito com emprego sazonal característico da monocultura, e sem alternativa de acesso à terra, a população foi
literalmente expulsa para as cidades, originando periferias miseráveis, com bairros que tiveram freqüentemente
taxas de crescimento superiores a 10% ao ano. Este processo de expulsão é hoje agravado pelo impacto das novas tecnologias sobre a indústria e os serviços urbanos,
que se vêem obrigados a reduzir a mão-de-obra empregada, deixando para estes dois terços da população brasileira a alternativa do setor informal, do desemprego, dos
serviços domésticos, da segurança dos mais variados tipos e de outras atividades em que se sabe cada vez menos
quem está cuidando de quem.
Esta situação implica o surgimento de milhões de pequenos dramas locais no conjunto do país, problemas graves de habitação, saúde, poluição, necessidades adicionais de escolas, organização de sistemas de abastecimento,
programas especiais para pobreza crítica, elaboração de
projetos de saneamento básico e assim por diante.16
Desse modo, os municípios se vêem na linha de frente
de uma situação explosiva que exige intervenções ágeis
em áreas que extrapolam as tradicionais rotinas de cosmética urbana, já que se trata de amplos projetos de infraestruturas, de políticas sociais e de programas de emprego, envolvendo inclusive estratégias locais de dinamização
das atividades econômicas.
Os municípios situam-se na linha de frente dos problemas, mas no último escalão da administração pública.
O deslocamento generalizado dos problemas para a esfera local, enquanto as estruturas político-administrativas
continuam centralizadas, criou um tipo de impotência
institucional, que dificulta dramaticamente qualquer modernização da gestão local, enquanto favorece o tradicional caciquismo articulado com relações fisiológicas nos
escalões superiores.
Na Suécia, conforme vimos, o Estado gere dois terços
do produto social. Porém, o trabalho de Agne Gustafsson
sobre governo local na Suécia mostra que o governo gere
muito pouco no nível central. O país tem 9 milhões de
habitantes, dos quais cerca de 4,5 milhões ativos, sendo
que destes 1,2 milhão são funcionários públicos de municípios e condados. Ou seja, cerca de um trabalhador
em cada quatro é funcionário local. O resultado prático é
que o governo central na Suécia se contenta com 28% dos
recursos públicos do país, enquanto as estruturas locais
de gestão, que permitem participação muito mais direta
do cidadão, controlam cerca de 72%. Esta cifra corresponde a 5% na Costa Rica, 4% no Panamá e prováveis
13% no Brasil.
Quando um país era constituído por uma capital e mais
algumas cidades, rodeadas por uma massa dispersa de
camponeses, era natural que todas as decisões significativas e, sobretudo, o controle dos financiamentos passassem pelo nível central de governo. Com o processo de
urbanização, os problemas deslocaram-se, mas não o sistema de decisão correspondente. Assim, o que temos hoje
é um conjunto de problemas modernos e uma máquina
de governo característica das necessidades institucionais
da primeira metade do século.
UM NOVO PARADIGMA DE ESTADO
Uma das vantagens que resulta da desestruturação dos
regimes de partido único é o deslocamento da atenção para
as formas práticas de se democratizar o Estado realmente
existente, sem esperar a grande alternativa.
Não há muitas novidades no que tange à forma básica
de estruturação dos poderes em torno do Executivo, Legislativo e Judiciário. No entanto, há indiscutivelmente
uma compreensão diferente das formas como a sociedade civil se organiza para assegurar a sustentação política
do conjunto.
Estamos acostumados a ver o funcionamento do Estado embasado na organização partidária. Este eixo político-partidário de organização da sociedade em torno dos
seus interesses veiculou, em geral, as posições dos grandes grupos econômicos, da burguesia.17 Nos países do
Leste Europeu, com a agravante da opção pelo partido
único, ficou mais patente ainda que este eixo não é suficiente para sustentar um poder democrático.
O desenvolvimento dos sindicatos, instância de negociação do acesso ao produto social, fortaleceu outro eixo
de organização: o sindical-trabalhista, baseado no espaço de organização que constitui a empresa e centrado na
redistribuição mais justa do produto social. Quando analisamos países caracteristicamente social-democráticos,
constatamos que eles souberam desenvolver este segundo eixo, criando sistemas mais democráticos. Em termos
práticos, não há dúvida de que o fato de os agricultores,
metalúrgicos, bancários e outros segmentos estarem solidamente organizados permite que a sociedade se democratize e que negociações de cúpula características dos
partidos encontrem um contrapeso democrático nos diversos interesses profissionais organizados. Passamos
assim da democracia marcadamente burguesa para a social-democracia.
A organização dos interesses profissionais foi sem
dúvida facilitada pelo fato de os trabalhadores terem pas-
26
GOVERNABILIDADE
sado a trabalhar agrupados no espaço empresarial, conhecendo-se e constatando o que têm em comum. Também
não é surpreendente que as grandes empresas apresentem
em geral organizações de classe mais sólidas. Podemos
estender o mesmo raciocínio para os impactos do processo moderno de urbanização. É bom lembrar que a história da humanidade é essencialmente rural, que a formação de grandes espaços empresariais data de pouco mais
de um século e que a urbanização generalizada é ainda
mais recente. A idéia que queremos trazer aqui é que uma
sociedade, quando deixa de constituir um tecido descontínuo de trabalhadores rurais e passa a viver numa pirâmide complexa de vilas e cidades, começa naturalmente
a se organizar em torno dos "espaços locais", do local de
residência, do que John Friedmann chamou de "life space",
ou espaço de vida.
O impacto político da formação deste terceiro eixo de
organização da sociedade em torno dos seus interesses –
o eixo comunitário – marca a evolução de uma sociedade
governada por "representantes" para um sistema no qual
a participação direta do cidadão adquire um peso muito
mais importante.
O cidadão sueco participa hoje, em média, de quatro
organizações comunitárias. Participa da gestão da escola, do seu bairro, de decisões do seu município, de grupos culturais, etc. A descentralização dos recursos públicos constitui assim um processo articulado com uma
evolução do funcionamento do Estado: quando 72% dos
recursos financeiros do governo têm a decisão sobre seu
uso formulada no nível local de poder, as pessoas participam efetivamente, pois não vão numa reunião política para
bater palmas para um candidato, mas sim para decidir onde
ficará a escola, que tipos de centros de saúde serão criados, como será utilizado o solo da cidade e assim por
diante.
Não se trata, naturalmente, de reduzir a sociedade ao
"espaço local", na linha poética de um "small is
beautiful" generalizado. Trata-se, isto sim, de entender a evolução das formas de organização política que
dão sustento ao Estado: a modernidade exige, além dos
partidos, sindicatos organizados em torno dos seus interesses e comunidades organizadas para gerir o nosso
dia-a-dia. Este "tripé" de sustentação da gestão dos interesses públicos, que pode ser caracterizado como
"democracia participativa", é indiscutivelmente mais
firme do que o equilíbrio precário centrado apenas em
partidos políticos. 18
Em outros termos, estamos assistindo a um processo amplo de deslocamento dos espaços de administração pública e, portanto, devemos repensar de forma
geral a hierarquia de decisões que concernem ao nosso
desenvolvimento.
E
DESCENTRALIZAÇÃO
ESTILOS DE GOVERNO
As simplificações que consistem em gerir o espaço
público como se fosse uma empresa privada não têm muito
sentido, uma vez que o cliente da área pública, a população, é proprietário legítimo da empresa. A administração
pública tem de ser, por definição, democrática.
No entanto, é essencial hoje conhecer o que está acontecendo na administração empresarial e utilizar as experiências positivas que possam melhorar o desempenho da
administração pública. Tal como a administração pública, a área empresarial defronta-se com um universo em
mudança, envolvendo maior diversidade e maior complexidade no ambiente externo. Em termos empresariais, isto
implica sistemas de gestão muito mais flexíveis, com grande agilidade para se adaptar a situações novas, o que, por
sua vez, exige muito mais autonomia dos diferentes subsistemas da empresa, circulação muito mais ampla das
informações e redução do leque de hierarquias.
Em termos simplificados, gerir a mudança de forma
ágil implica uma descentralização ampla das decisões. Para
evitar a desarticulação e a falta de coordenação que a
descentralização pode gerar, a empresa passa a trabalhar
em "times" identificados com os objetivos globais, criando uma dinâmica participativa. Uma empresa moderna já
não pode trabalhar com a divisão tradicional entre a gerência que conhece e ordena e o peão que executa.
Porém, as empresas trabalham também inseridas num
tecido econômico muito mais interativo. Como trabalhar
em sistema "just in time", por exemplo, com níveis de
estoques de algumas horas, se a empresa não está articulada de forma muito precisa com os seus fornecedores?
Na prática, o que ocorre é a gradual substituição do mercado por um sistema articulado de dependências interempresariais, criando um contexto novo de organização da produção.
A tendência vai no sentido de um sistema complexo
de relações horizontais entre empresas e segmentos empresariais, as "redes interempresariais", em que unidades
formalmente independentes fazem parte de um tecido
econômico complexo, articuladas através de acordos tecnológicos, propriedade cruzada de ações, financiamentos
conjuntos, etc.19
O gigantesco potencial que este tipo de transformações
representa na área da administração pública é estudado
em detalhe, por exemplo, em Friedmann (1992) e em
Osborne e Gaebler (1992), trabalhos que estudam inclusive experiências práticas das novas tendências administrativas nas mais variadas áreas.
Trata-se evidentemente de repassar muito mais recursos públicos para o âmbito local, mas trata-se também de
deixar a sociedade gerir-se de forma mais flexível segun-
27
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 10(3) 1996
do as características de cada município. O novo estilo
passa, portanto, pela criação de mecanismos participativos simplificados e muito mais diretos dos atores-chave
do município, empresários, sindicatos, organizações comunitárias, instituições científicas e de informação e outros. Passa também pela criação de mecanismos de comunicação mais ágeis com a população, porque uma
sociedade tem de estar bem informada para poder participar. Passa pela flexibilização dos mecanismos financeiros, com menos regras e fiscais e mais controle direto de
comitês e conselhos da comunidade interessada. Passa pela
ampliação do espaço de interesse da prefeitura, que deverá ultrapassar as preocupações com a cosmética urbana e algumas áreas sociais, para se tornar o catalisador
das forças econômicas e sociais da região. Passa, finalmente, pela organização de redes horizontais de coordenação e cooperação entre municípios, tanto no plano geral como, sobretudo, em torno de programas setoriais.
Assim, mais do que discutir simplesmente a privatização, torna-se necessário ampliar o debate, na linha da
excelente formulação do estudo Ipea/Ibam (1993b:12). "A
questão da privatização deve ser compreendida num sentido mais amplo, qual seja, no papel do poder público local
em mobilizar os agentes da sociedade civil local – privados e comunitários – como um caminho para nova articulação Estado e sociedade. Por essa abordagem, democratização e privatização em serviços a nível local se
transformam em vertentes básicas para a descentralização e municipalização".
Resumindo, os principais pontos que poderiam caracterizar os enfoques propostos são os seguintes:
- o princípio da descentralização: na dúvida, ou salvo
necessidades claramente definidas de que as decisões
pertençam a escalões superiores na pirâmide da administração, estas devem ser tomadas no nível mais próximo
possível da população interessada. Referimo-nos aqui à
capacidade real de decisão, com descentralização dos encargos, atribuição de recursos e flexibilidade de aplicação. Este princípio da "proximidade" vale tanto para a
administração pública como para autarquias e o setor privado. Não se trata de dotar as administrações centrais de
"dedos mais longos", com a criação de representações locais, mas sim de deixar as administrações locais gerirem
efetivamente as atividades;
- papel mobilizador da administração local: independentemente das atribuições próprias nas áreas dos serviços
básicos, como limpeza urbana e serviços sociais, a administração local tem de assumir um papel catalisador das
forças sociais em torno dos grandes objetivos de médio e
longo prazos da comunidade. Para dar um exemplo, o Rio
de Janeiro perdeu espaço em três eixos-chave da sua sobrevivência econômica – a administração federal, a in-
dústria e as atividades portuárias –, constituindo hoje um
gigantesco cogumelo demográfico sem a base econômica correspondente. Bem antes da atual implosão social,
que torna qualquer alternativa difícil, a cidade devia realizar os investimentos de longo prazo e mobilização social para se tornar grande capital turística, preparando
assim um eixo econômico de desenvolvimento de mais
longo prazo. Não podemos mais continuar com administrações locais que se limitam à cosmética urbana e a algumas atividades sociais;
- organização dos atores sociais: a concepção de que as
câmaras de vereadores, que representam o aspecto político de alguns segmentos da sociedade local, podem representar efetivamente os interesses complexos e em plena
transformação dos principais atores sociais do município
é demasiado estreita. As administrações locais devem criar
foros de elaboração de consensos em torno dos problemas-chave do desenvolvimento, incluindo nestes foros
representações das empresas, dos sindicatos, das organizações comunitárias, das organizações não-governamentais, das instituições de pesquisa, dos diversos níveis de
administração pública presentes no município, de forma
a assegurar que a gestão se torne mais participativa. Os
exemplos bem-sucedidos de administrações locais mostram, antes de tudo, uma grande capacidade de "engenharia
social", no sentido de elaborar sistemas flexíveis de parcerias nos mais diversos níveis;
- enfoque da inovação: neste fim de século, que apresenta transformações tecnológicas profundas, com inovações
informáticas que permitem modernizar e dar transparência à administração, com a telemática que possibilita ao
munícipe o acesso instantâneo a dados de gestão referentes à sua cidade, com as fotos de satélite digitalizadas que
permitem o seguimento da situação ambiental, com novas tecnologias de reciclagem de resíduos sólidos ou
biodegradação de esgotos, com novos enfoques organizacionais mais horizontais e flexíveis, as administrações
devem perder o medo de inovar, ou ainda de introduzir
soluções em caráter experimental, deixando a própria
sociedade pronunciar-se sobre o acerto de determinadas
inovações;
- enfoque de eixos críticos de ação: além das rotinas setoriais, que asseguram a gestão dos serviços básicos, é
importante que as administrações locais trabalhem a definição dos eixos críticos de ação que permitam desencadear uma mobilização da sociedade em torno dos seus interesses de médio e longo prazos. Ações "desencadeadoras"
deste tipo podem ser vistas em Santos, com a recuperação da balneabilidade das praias, que vem mobilizando o
conjunto da sociedade em torno da modernização do turismo e da economia local; ou, em Penápolis, o programa
28
GOVERNABILIDADE
de saúde que resultou em forte estruturação local dos
municípios em torno dos seus interesses; ou ainda em
Curitiba, com o programa ambiental, que teve um grande
poder de agregação dos principais atores sociais da cidade em torno da modernização urbana em geral;
E
DESCENTRALIZAÇÃO
comunitária, particularmente visando a reintegração de
bairros pobres, que solicitam hoje apoio de formação em
auto-organização, tecnologias alternativas, cursos para
trabalho doméstico ou reinserção no mercado de trabalho e outros, constituindo uma alavanca fundamental do
"ensinar a pescar" e que representam hoje um espaço privilegiado de parcerias da administração municipal com
organizações comunitárias, ONGs e programas de âmbito nacional, como a campanha de combate à fome e outros; a criação de meios locais de comunicação, seguindo
a tendência moderna que hoje envolve televisões locais e
outros meios modernos de articulação comunicação/educação, exige parcerias que envolvem o município com as
faculdades, escolas e agentes de comunicação; a própria
educação formal, que foge hoje do modelo centralizado,
devendo basear-se cada vez mais na gestão participativa
das comunidades, na linha, por exemplo, do sistema já
implantado na cidade de São Paulo na gestão de Paulo
Freire na Secretaria da Educação. Na realidade, tanto a
educação como as outras áreas de desenvolvimento exigem a articulação flexível das áreas pública, privada e comunitária e dos três níveis de administração pública;
- enfoque da gestão intergovernamental: cruzam-se hoje
no espaço do município esferas administrativas de diversos níveis, cada uma reportando-se ao seu âmbito central. É freqüente que 30% a 40% dos funcionários públicos de um município pertençam a outras instâncias de
governo, sem que o prefeito tenha sequer condições de
conhecer o que as agências programaram para o município e sem que estas mesmas agências se coordenem entre
si. A racionalização da gestão intergovernamental, sob a
coordenação da autoridade efetivamente eleita pela população local, que é o prefeito, é essencial, pois não é
realista esperar que decisões tomadas em instâncias independentes e de diferentes níveis de governo formem espontaneamente programas coerentes no âmbito local. Com
isso, perdem-se as sinergias possíveis entre, por exemplo, programas de infra-estruturas de saneamento básico
com educação ambiental e programas locais de saúde, além
de desestimular a participação da comunidade local, transformada em espectadora de burocracias que não a consultam;
- recentrar as atividades nos objetivos humanos: o Relatório sobre o Desenvolvimento Humano de 1992 coloca
claramente o problema: "É possível que os mercados impressionem do ponto de vista econômico e tecnológico.
No entanto, são de pouco valor se não servem para melhorar o desenvolvimento humano. Os mercados constituem meios. O desenvolvimento humano é o fim" (PNUD,
1992). Por óbvio que possa parecer, é preciso lembrar ainda que toda a nossa atividade profissional, as atividades
administrativas e os esforços das comunidades não repre-
- enfoque dos recursos subutilizados: se temos no país
370 milhões de hectares de terras agrícolas, mas lavramos anualmente não mais que 60 milhões, em que pesem
as culturas permanentes e as necessidades da pecuária,
conhecemos uma impressionante subutilização do solo,
que se manifesta município por município. Conceito trabalhado por Ignacy Sachs e hoje desenvolvido pelo Banco Mundial, o enfoque da subutilização de recursos, implicando o esforço sistemático de identificação dos
recursos naturais, humanos e de capital, que poderiam ser
melhor mobilizados em nível local, constitui um eixo de
trabalho essencial para numerosas administrações;
- enfoque da pesquisa do potencial local: a mobilização
dos recursos subutilizados e a racionalização geral das
atividades locais implicam um esforço sistemático de
estudos e organização do conhecimento sobre o potencial
existente, enfocando o ciclo completo de atividades que
asseguram o desenvolvimento econômico e social. Tratase de ordenar o conhecimento das atividades de produção,
dos serviços de intermediação comercial e financeira, cuja
organização racional assegura vantagens indiscutíveis à
economia local, das infra-estruturas econômicas, que geram
economias externas (transportes, telecomunicações, energia
e água), das infra-estruturas sociais – como saúde, educação,
cultura, comunicação e lazer –, que permitem o investimento adequado no homem e na qualidade de vida,
constituindo hoje provavelmente o investimento mais
produtivo que possa ser realizado, e da própria capacidade
de gestão de desenvolvimento, identificando os pontos de
estrangulamento, as áreas de inércia administrativa e assim
por diante. A sólida organização do conhecimento da
comunidade sobre si mesma pode ser uma alavanca
poderosa para o desenvolvimento e é uma das mais
subestimadas;
- trabalhar a matriz de decisões: já é tempo de ultrapassarmos simplificações em torno da dicotomia estatização/
planejamento versus privatização/mercado. Para dar um
exemplo, a educação constitui hoje um sistema complexo e diversificado de espaços do conhecimento, como: a
formação nas empresas, hoje em pleno desenvolvimento
e que exige parcerias entre o setor público e o privado; a
formação em tecnologias emergentes, como cursos de
informática, de qualidade total, etc., que assumem grande importância com a dinâmica atual de inovação e exigem flexibilidade na aplicação, podendo-se organizar
parcerias entre universidade e setor privado; a formação
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SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 10(3) 1996
sentam nada se não se traduzem em última instância em
qualidade de vida, harmonia social, riqueza de convívio,
no que tem sido às vezes qualificado de Felicidade Interna Bruta, em oposição ao PIB. Não é mais possível resumir o desenvolvimento a fatores econômicos e tecnológicos, ficando as empresas livres de fazerem o que bem
entendem, esperando-se que o interesse humano seja contemplado por ações compensatórias da administração
pública, com coleta de lixo, policiamento repressivo e
assistência social. A organização das parcerias sociais
na gestão do nosso desenvolvimento implica justamente
que todos os atores sociais busquem na gestão compartilhada, e desde o início das ações, o objetivo humano
maior; 20
taxas imediatas de retorno. Estamos vivendo uma profunda
revolução tecnológica. Por um lado, este avanço nos abre
novos instrumentos de modernização, se formos capazes
de orientá-lo. Por outro lado, é inviável a manutenção da
presente desordem política, quando o ser humano dispõe
de tecnologias de impacto planetário, de moto-serras,
agrotóxicos, armas atômicas, capacidade de manipulação
genética, química fina para produção de drogas letais em
fundos de quintal, navios pesqueiros capazes de limpar a
biomassa de gigantescas regiões marítimas, impérios
de mídia capazes de atingir os nossos filhos dentro da
nossa casa. Sem um sólido reforço da nossa capacidade de organização social, é o próprio planeta que se
torna inviável.
Em outros termos, o ser humano, que demonstrou
uma impressionante capacidade técnica, e uma igualmente impressionante incapacidade de convívio civilizado, precisa buscar no espaço local organizado o
lastro político que lhe permita recuperar as rédeas do
seu desenvolvimento.
- a visão da sustentabilidade: demasiadas regiões hoje têm
o seu turismo e atividades econômicas comprometidas por
uma contabilidade que não contempla os custos ambientais, várias regiões têm seus solos esgotados pela monocultura predatória, muitas comunidades vivem um clima de fome, doença e insegurança. O município de
Cubatão é um exemplo destes absurdos, com uma indústria dependente do bombeamento dos esgotos do rio
Tietê, enfrentando hoje a escolha absurda entre o desemprego e a poluição da Baixada. Entre a "ecochatice"
e o "anarcocapitalismo", existe amplo espaço de ação
coordenada e planejada, envolvendo o conjunto dos
atores da comunidade local em torno dos interesses de
longo prazo;
NOTAS
Versão atualizada e ampliada do artigo com o mesmo nome publicado na Revista do Serviço Público, Enap, Brasília, 1994.
1. Ver: UNDP (1993:4).
2. Banco Mundial (1988:ii). O Banco Mundial calcula os gastos com a área social no Brasil em cerca de 25% do PIB, o que significaria 100 bilhões de dólares
para um PIB de 400 bilhões.
- enfoque da comunicação e da informação: a informação, a cultura, a educação, a mídia e as diversas formas
de acesso ao conhecimento constituem um eixo essencial
de recuperação da democracia. Não se pode esperar participação efetiva por parte de uma população à qual se
vedou o acesso aos instrumentos – educação, informação
– correspondentes. Em outros termos, o conjunto das áreas
que formam os novos espaços do conhecimento devem
assumir, numa gestão moderna, um papel essencial, traduzindo-se em programas ativos e dinâmicos, com os
meios correspondentes.
3. Ver o excelente artigo de capa da Veja, de 11 de agosto de 1993, Caixa Alta
na Terra da Inflação, bem como o estudo do caderno especial da Folha de S.Paulo,
de 26 de agosto de 1993, intitulado O Sistema Financeiro Mergulha nos Lucros.
Os custos da máquina de intermediação financeira têm oscilado em torno dos
10% do PIB. Com a drástica redução da inflação, os bancos perderam uma fonte
importante de lucros, mas a recuperaram com a elevação da taxa de juros e a
venda dos serviços. Em 1996, os juros reais brasileiros são cerca de 7 vezes maiores do que os dos países desenvolvidos. As tarifas cobradas dos clientes por serviços diversos custaram 6,5 bilhões de reais em 1995, cifra que deve aumentar
com a liberação das tarifas em agosto de 1996. Os lucros do primeiro semestre de 1996 aumentaram na faixa de 50% a 60% para uma série de grandes
bancos, relativamente a igual período de 1995. Isto não impede os banqueiros de ameaçar o governo com o caos financeiro de uma eventual quebradeira, choro que lhes valeu subvenções situadas na casa de dezenas de bilhões
de reais. Estas subvenções aumentam a dívida interna e obrigam o governo a
manter juros altos para empurrar os seus títulos, o que por sua vez melhora
ainda a rentabilidade dos bancos. A “ciranda” financeira nunca esteve tão
animada.
Visamos, neste artigo, desdobrar algumas implicações
mais amplas das propostas simplificadas da privatização.
A modernidade não se conquista com passes de mágica.
Implica uma visão política, de que participar na construção do seu espaço de vida, mais do que receber presentes
das "autoridades", constitui uma condição essencial da
cidadania. Implica uma visão institucional, menos centrada nas "pirâmides" de autoridade e mais aberta para a
colaboração, as redes, os espaços de elaboração de consensos e os processos horizontais de interação. Implica,
finalmente, uma visão centrada no homem, na qualidade
de vida, na felicidade do cotidiano e um pouco menos nas
4. Existiam na época várias alternativas para a construção de hidrelétricas
de porte médio, acompanhando assim o aumento da demanda de energia de
forma gradual.
5. Ver IBGE (1993:143) para dados do potencial dos solos. Para os dados do uso
agrícola do solo, ver IBGE (1990:292). (A partir desse ano o IBGE interrompeu
a publicação da informação básica sobre a estrutura agrária). Os 50.000 grandes
estabelecimentos agrícolas do país, que controlam 44% do solo, cultivam em
média 5% da área dos seus estabelecimentos, enquanto os pequenos proprietários cultivam 65%. A destruição das caixas de tomate e os dados correspondentes foram apresentados em vários jornais de televisão.
6. Para o debate desta situação, ver Dowbor (1991) e IBGE (1993:27l; 359 e
segs.).
7. Os dados referentes a São Paulo são de Morais (1996).
8. Os cinco pontos apresentados a seguir, referentes a explosão tecnológica, globalização, polarização entre ricos e pobres, urbanização e mudança do peso do
30
GOVERNABILIDADE
E
DESCENTRALIZAÇÃO
Estado, foram por nós estudados em detalhe em vários outros trabalhos, sendo
aqui reapresentados porque fazem também parte essencial do novo referencial
da governabilidade.
íram no Japão e, em menor escala, nos Estados Unidos, o autor conclui que o ambiente de funcionamento da empresa moderna deslocou-se "do mundo anônimo da
mão invisível" para "as esferas concretas do planejamento e da coordenação".
9. Os dados referentes à informática e telecomunicações são do relatório Pace
(Programme for Advanced Communications in Europe) da OCDE.
20. A área empresarial brasileira tem, de forma geral, pouca cultura de parceria
e é bastante avessa às formas modernas de trabalho baseadas no que o Centro
das Nações Unidas para Empresas Transnacionais (UNCTC) qualifica de
"collaborative arrangements". No entanto, surge já uma forte corrente modernizadora, na linha do PNBE e outros, que aponta novos rumos.
10. Ver Dowbor (1995).
11. Dados da Business Week; ver também o interessante estudo de Kurtzmann
(1993), que mostra como os governos e Bancos Centrais estão totalmente ultrapassados pela mundialização dos fluxos financeiros, enquanto a legislação e os
instrumentos de regulação continuam sendo de âmbito nacional.
12. Ver a este respeito o artigo precursor de Friedmann (1986); ver também os
estudos de Samir Amin sobre esta grande contradição do fim de século: a economia se mundializou enquanto os instrumentos de regulação continuam sendo
nacionais, e portanto cada vez menos operantes. O estudo do deslocamento dos
espaços do desenvolvimento não se presta a simplificações: uma cidade como
Shanghai hoje prepara ativamente a sua inserção no espaço mundial, onde grandes centros urbanos terão papel mais forte, enquanto minorias culturais freqüentemente encontram mais condições para florescer no espaço global do que no
espaço cultural mais homogêneo de uma nação.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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social. Washington, v.I, maio 1988.
__________ . Relatório sobre o Desenvolvimento Mundial 1992. Washington,
1992a.
__________ . Brazil – reforming the telecommunications sector: policy issues
and options for the 1990s. Washington, Report n.10.213-BR, december
1992b.
13. É interessante o estudo de Teixeira (1995), que estima que os gastos das empresas brasileiras com segurança atingem algo da ordem de 28 bilhões de dólares.
__________ . Relatório sobre o Desenvolvimento Mundial 1994. Washington,
1994.
14. O artigo ressalta que a distância entre o firme discurso de redução do Estado e
os resultados continua ampla (“Indeed, the gulf between bold downsizing talk and
results remains wide”). Dados da OCDE na Business Week de 9 de outubro de
1995 mostram que o emprego público como porcentagem do emprego total é de
24,6% na França, 16,5% na Grã-Bretanha, 16,1% na Itália, e 14,5% nos Estados
Unidos, para dar alguns exemplos. No Brasil a cifra deve ser da ordem de 10%.
BUSINESS WEEK, 23/01/1995.
DOWBOR, L. Aspectos econômicos da educação. 2a ed. São Paulo, Ed. Ática,
1991.
__________ . “Da globalização ao poder local”. São Paulo em Perspectiva. São
Paulo, Fundação Seade, v.9, n.3, jul./set. 1995.
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1992.
IBGE. Anuário Estatístico do Brasil 1989. Rio de Janeiro, 1990.
15. Ver Osborne e Gaebler (1994). Este estudo está causando uma pequena revolução nos Estados Unidos, em particular porque mostra que o problema não se
coloca em termos de privatizar/estatizar, mas sim de forma bem mais ampla, de
uma nova hierarquia de decisões, envolvendo, entre outros, a dimensão do espaço público-comunitário.
16. Um exemplo da área de saneamento: "A população beneficiada com serviço de
esgotamento sanitário no Brasil, em 1989, pelo sistema Planasa, era constituída de
28,8 milhões de pessoas, ou seja, 20,6% da população urbana. Segundo pesquisa do IBGE, em 1989, 2.092 municípios brasileiros, correspondentes a 47,2%,
possuíam rede coletora de esgotos e, desse total, cerca de 350, isto é, 8%, possuíam algum tipo de tratamento. Em apenas 51 municípios existia estação de
tratamento. O dado mais alarmante, todavia, é que 45,4% dos domicílios brasileiros não possuíam rede coletora ou fossa séptica" (Ipea/Ibam, 1993a:37, citando estudo de Edgard Bastos de Souza).
__________ . Anuário Estatístico do Brasil 1992. Rio de Janeiro, 1993.
IPEA/IBAM. Subsídios para uma política de descentralização de serviços públicos. Brasília, março 1993a.
__________ . Limites e possibilidades para a articulação público/privado na
gestão de serviços públicos urbanos municipais. Brasília, março 1993b.
KURTZMANN, J. The death of money. New York, Simon and Schuster, 1993.
17. Adam Smith, em A Riqueza das Nações já atentava para este desequilíbrio,
constatando que pela facilidade de sua organização, as áreas empresariais adquiriam peso desproporcional nas decisões políticas. No caso brasileiro, pelo
menos cinco setores econômicos dispõem de poderosas estruturas permanentes
de intervenção nos partidos e no próprio aparelho estatal: as empreiteiras, os
grandes bancos, os grandes proprietários rurais e usineiros, os grandes grupos
da mídia e as montadoras do setor automobilístico.
MORAIS, M. Folha de S.Paulo. São Paulo, Caderno Dinheiro 2/15, 29/08/1996.
OSBORNE, D. e GAEBLER, T. Reinventing Government. New York, Addison
Wesley, 1992.
__________ . Reinventando o Governo. Brasília, M-H Editora, 1994.
18. Na realidade, desponta com força um quarto eixo, cada dia mais importante
para uma forma madura de sustento do Estado: a descentralização e democratização dos meios de comunicação. Com partidos múltiplos, sindicatos representativos, fortes organizações comunitárias e uma mídia democratizada, teremos
bases institucionais razoáveis para uma gestão política equilibrada.
PNUD. Desarrollo humano: informe 1992. Bogotá, 1992.
TEIXEIRA, I. “A macroeconomia da violência”. Conjuntura Econômica. São
Paulo, Fundação Getúlio Vargas, maio 1995.
UNDP. Human Development Report. New York, 1993.
19. Um excelente estudo destas tendências pode ser encontrado em Gerlach (1992).
Ao analisar as redes interempresariais ("intercoporate networks") que se constitu-
UNESCO. Informe Mundial sobre la Educación. Paris, 1992.
31
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 10(3) 1996
PODER LOCAL, DESCENTRALIZAÇÃO
E DEMOCRATIZAÇÃO
um encontro difícil
EDISON NUNES
Professor do Departamento de Política da PUC-SP, Editor da revista Margem
U
ciências. Este é um tempo de ousar, em que o pensamento deve acertar as contas com sua própria instituição e o
pensador aceitar o risco do abandono do Caminho Suave
da ortodoxia em voga.
A incompreensão básica decorre diretamente do não
lugar das unidades subnacionais, em particular do município ou comuna, no pensamento político moderno. Esta
ciência, cuja paternidade é freqüentemente atribuída a
Maquiavel, surge precisamente nos albores do Estado
Moderno, respondendo à necessidade de refletir na questão prática da construção de um poder soberano capaz de
dominar um vasto território e imperar sobre um povo.
Nesse diapasão, os poderes locais são naturalmente vistos como inimigos, já que a soberania significa a reunião
de toda a potestas – sempre um atributo popular – na
figura do Estado nacional. Este poder reunido e incontrastável é, por sua vez, condição do império de lei isonômico
e, conseqüentemente, do sistema de cidadania baseado na
liberdade negativa dos modernos. Assim, a racionalização necessária da associação política moderna implica a
soberania popular, ao menos como fonte primeira de legitimidade, e encarna a promessa de que, por seu intermédio, o particular não oprimirá nem obrigará o particular pelo uso do seu poder privado.2
A construção do Estado Moderno implicou uma luta
permanente para a despotencialização dos poderosos locais, liberando os indivíduos das dominações tradicionais,
vistas agora como privadas, e submetendo-os apenas e,
igualmente de forma ideal, ao poder público. Note-se que
a imensa maioria das explicações do movimento político
das sociedades latino-americanas neste século chamam a
atenção precisamente para a passagem de uma sociedade
oligárquica, fundada no domínio que a propriedade da terra
m poderoso consenso em torno de descentralizar e desconcentrar os Estados está formado.
Contudo, os participantes deste acordo nem sempre concordam quanto aos fins pretendidos e, curioso,
falam de descentralização apenas em relação a processos
em que há também, concomitantemente, centralização e
re-centralização.1 A pretensão deste artigo é provocar um
pequeno ruído neste consenso: é com ele, e não com a
descentralização em si, que se põe em desacordo. Sua
preocupação central é tematizar as relações de poder e as
dificuldades do aprofundamento da democratização no
mundo contemporâneo.
O PODER LOCAL NA TEORIA
DO ESTADO MODERNO
O papel das unidades subnacionais como parte da ordem política tem sido sistematicamente subestimado. As
conseqüências disto se fazem sentir na enorme Babel que
constituem os escritos sobre municípios e regiões e, sobretudo, na facilidade com que a maioria dos analistas –
teóricos e práticos – aceitam como verdades os refrões da
moda. E o presente está povoado de slogans convergentes, ditados pelo desespero de uma esquerda sem perspectivas e pela euforia – se não irracional, de má-fé – de
uma direita neoliberal que já se depara com “as duras réplicas da história”. A valorização do poder local e da descentralização é o problemático consenso atual.
As dificuldades do tema são, todavia, enormes e estão
associadas às formas de fazer e analisar a política constitutiva da modernidade, quando esta, por seu lado, produz
dissonâncias e incongruências de vasta latitude, em um
tempo em que transformações globais se impõem às cons-
32
PODER LOCAL, DESCENTRALIZAÇÃO E DEMOCRATIZAÇÃO...
confere, para uma sociedade massiva, com o fortalecimento das estruturas do poder estatal. O processo de subsunção
dos poderes locais apresenta, inclusive, exemplos relativamente recentes em estados bastante consolidados. A
Campanha dos Direitos Civis nos Estados Unidos dos anos
50 e 60 é bastante eloqüente: nela a Federação emprega
seu poder, inclusive manu militari, contra as autoridades
e sociedades locais racistas. Mais recentemente, tem-se a
“ação afirmativa”, que visa resultados semelhantes por
outros meios. Da mesma forma devem ser entendidos projetos como os de “renda mínima”, inclusive no Brasil,
voltados ao combate de formas abjetas de exploração, como
o trabalho infantil. Nesses casos, o Estado intervém alterando a correlação de forças entre indivíduos da sociedade local através da atribuição de recursos de poder.
A “teoria do Estado” não se limita a figurar os poderes
locais como inimigos. Eles aparecem também como constituídos por uma natureza diferente, membros de outra
ordem que se quer ou pretérita, ou subordinada. Isto quer
dizer que a luta pela construção da soberania é vista como
um jogo de soma zero. Assim, a imagem teoricamente
constelada do Estado exclui a tematização do poder local
enquanto poder político: é um atavismo condenado a desaparecer com o advento da modernização. O seu lugar é
o lado negativo das dicotomias herdadas da Revolução
Francesa: particularismos, relações pessoais; domínio tradicional, comunidade; folclore, etc.
Se as teorias do Estado não constituem lugares para
pensar as unidades subnacionais – e mesmo os federalistas norte-americanos não fogem à regra, posto que seu
interesse maior é fundar a necessidade da União –as teorias do governo representativo apresentam um lugar subordinado para os municípios, mais freqüentemente como
níveis meramente administrativos. É o que se lê claramente
em Stuart Mill que defende, como os conservadores brasileiros, centralização política com descentralização administrativa. Tal conjunção, fundada na utilidade, teria o
mérito de aliar a coerência governamental a uma maior
eficiência e focalização dos atos administrativos. Assim,
a única tarefa claramente política das unidades subnacionais é a composição dos distritos eleitorais, sendo que os
mandatários oriundos destes devem orientar-se pela formação do governo nacional.
Mesmo Tocqueville, provavelmente o mais entusiasta
defensor do papel político do município na materialização da soberania popular, dentre os igualmente defensores da república representativa, não escapa à tentação de
minorar seu alcance teórico. Em primeiro lugar, porque a
“liberdade comunal” desenvolve-se no seio de uma comunidade “semibárbara”, escapando “por assim dizer ao
esforço do homem”. Ela é antitética à civilização e talvez
possa ser mantida se incorporada às leis e aos costumes,
somente o tempo dando-lhe solidez. Por outro lado, pode
ser facilmente destruída. Em segundo lugar, e mais importante, Tocqueville reconhece nos Estados Unidos um
extremo grau de centralização política, já que “a legislatura
de cada Estado não tem diante de si poder algum capaz
de lhe opor resistência”. Assim, a comuna de A Democracia na América é um caso raro e extremado de descentralização administrativa sob a centralização política
dos Estados, convergindo com os desejos de Stuart Mill.
A visão tocquevilleana da comuna, mesmo apresentada como subordinada, é bastante sugestiva para a análise
dos municípios no contexto de uma república representativa, em pelo menos dois pontos. O primeiro diz respeito
à formação do cidadão ativo que conhece os mecanismos
do governo por seu intermédio. Trata-se, então, da metáfora da escola primária da liberdade, contrapeso poderoso ao individualismo da sociedade democrática ou, como
se diz contemporaneamente, de massas. Esse argumento
tem sido retomado com alguma freqüência, algumas vezes com explícito reconhecimento da origem. O segundo
argumento refere-se a uma debilidade congênita da centralização administrativa: se ela pode reunir todas as forças da nação num dado momento e num dado projeto, ela
entrava a reprodução dessas forças. Esta idéia é um corolário de sua concepção de soberania popular e remete ao
fato de que a liberdade comunal fornece um consentimento
ativo da cidadania, construindo força pública.
Como pode-se ver, o poder local comparece, de forma
geral, na teoria política moderna, – ou como um poder
privado atávico ou como esfera meramente administrativa. Esse corpus teórico, por isso mesmo, deixa de considerar importantes conseqüências da necessária territorialização do poder político. Carece-se, portanto, de uma
teoria capaz de explicar, no plano do Estado, a “irrigação
dos efeitos de poder por todo o corpo social, até mesmo
em suas menores partículas”.3 De uma teoria que ilumine
o papel das práticas políticas locais na construção da ordem.
Um efeito desastroso dessas matrizes analíticas pode
ser observado, nos dias atuais, nas dificuldades de tratamento do “clientelismo”. Note-se, primeiramente, que a
maioria dos estudos de caso sobre poder local constatam
sua existência, e não apenas em países pobres ou em desenvolvimento. Esta recorrência deveria conduzir à suspeita de que se está diante de um fenômeno, se não constitutivo do governo representativo em geral, ao menos de
formas específicas deste. Mas essas constatações empíricas teimam com assustadora freqüência em empregar o
advérbio “ainda”, conotando estranheza com o tempo
presente. Frases como “o clientelismo permanecerá ainda por um bom tempo...” são bastante comuns na literatura, querendo dizer que, apesar dos incontáveis atesta-
33
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 10(3) 1996
dos de óbito, passados sempre por especialistas competentes, o finado ainda respira... e influencia decisões.4
Não sendo representado pela imagem do Estado (mesmo porque o clientelismo é apresentação e não representação), o fenômeno torna-se teoricamente invisível, como
pertence a outra ordem: quem olha um não vê o outro. E
o clientelismo só é notado no caso particular ou apenas
de soslaio nos estudos de maior grau de generalização. A
dificuldade teórica encontra-se, então, com um imperativo metodológico: só pode ser generalizado o que é legítimo para a teoria e, portanto, a observação concreta e a
prática sensível dos atores – por definição particulares –
tornam-se irrelevantes como fonte de explicações gerais.
Não deixa de ser curioso que apenas nas vertentes críticas da teoria política e do Estado, desgraçadamente hoje
em desuso, se possa encontrar a afirmação de um papel
essencial das unidades subnacionais na construção da liberdade, um embrião de teoria da capilaridade do poder
enquanto dimensão analítica do Estado, bem como um
projeto normativamente orientado. Trata-se do “federalismo”, esboçado por Proudhon e que recebe forma mais
acabada em Bakunine, que predica um complexo institucional baseado na autonomia comunal (Bakunine, 1975:
219-223). Esta forma de organização política orienta-se
para a dissolução do aparato repressor do Estado – todo
Estado é máquina de repressão e poder de classe organizado nessa tradição – na sociedade. Tal ponto de vista
teórico é o único que apresenta uma real consubstancialidade entre descentralização política e administrativa e liberdade, mas interessa assinalar que ela só se
materializa na recusa das soluções republicanas ao problema do poder.
ville, que este é um bom estágio para os estudos primários, mas que eles necessariamente prosseguirão em outra
parte; – reduz-se a submissão política a influência exercida diretamente sobre uma esfera de governo, de resto a
mais particularizada. Ocorre que, como se vive também
em um estado (ou região), em um país e no planeta simultaneamente, a real democratização depende, cada vez
mais, das decisões mais universais. Nas teorias do governo representativo, a função de canalizar capilarmente a
participação em esferas mais abrangentes cabe em primeiro lugar aos partidos políticos e, secundariamente, a outras macro instituições. Na vida prática, também movimentos de opinião e organizações não-governamentais
desempenham o papel de articuladores de interesses e
organizadores de demandas, capazes de estimular a participação; – finalmente, a proximidade do poder é no mínimo ambígua, pois é também o lugar da reprodução do
poder discricionário das oligarquias.
A segunda imagem que se deve deletar, bastante aderente à anterior, apresenta a descentralização e a democracia como partícipes da mesma substância. Essa imagem, apresentada por Jordi Borja, encontra-se bastante
difundida entre estudiosos latino-americanos e apresenta
o mérito de certa sofisticação teórica e muita precaução
com a crítica. Sua validade limita-se à atual situação de
crise econômica e do Estado e a relação entre os dois termos respalda-se na cômoda frase “hoje parece ser
consubstancial... (Borja, 1989:70)”. Borja lembra também
que nem sempre foi assim, rememorando o papel da centralização política para o desenvolvimento da democratização, concluindo que “el planteamiento moderno de la
descentralización tiende a integrar los benefícios del centralismo y a superar las tendencias autárquicas del
autonomismo tradicional”(p.92). Como o alcance da teoria pretende abranger apenas a fase mais contemporânea
do desenvolvimento do Estado Moderno, sua crítica devese concentrar nas possibilidades presentes de integrar os
benefícios da centralização, bem como na superação das
tendências autárquicas tradicionais. Trata-se de uma questão histórica.
O momento presente marca, de fato, uma ruptura com
os padrões políticos da modernidade. Infelizmente, numa
direção pouco desejada pela maioria. Simultaneamente à
elaboração da teoria do Estado, apresentada acima de forma muito resumida, o poder político real lança-se num
movimento de afirmação de um desenvolvimento desigual e assimétrico que privilegia certos setores da sociedade e certas localidades em detrimento de outros. Paralelamente, cria condições de mobilização social crescente,
fazendo comparecerem, com cada vez mais força, reivindicações de “direitos iguais” por parte das camadas marginalizadas. “É óbvio que existe uma contradição básica
DUAS FIGURAS DA DESCENTRALIZAÇÃO
Pelo que foi visto, deve-se descartar duas imagens paralelas bastante difundidas nos discursos sobre poder local. A primeira sustenta que por ser “mais próximo” do
cidadão, o poder local é mais factível de ser democratizado e de servir de palco a uma maior participação.5 Os mais
radicais argumentam, inclusive, que o município é a realidade onde o povo vive, enquanto o poder central mera
abstração. Aparece aqui uma confusão entre diversas ordens de problemas: – primeiramente, o município não é
nem mais nem menos abstrato que os demais níveis de
governo. O que acontece mais freqüentemente é que suas
pautas, geralmente administrativas, são mais concretas
apenas no sentido em que são mais facilmente compreendidas pela maioria da população, através da vivência cotidiana do meio urbano, que os problemas políticos submetidos a escrutínio em outras esferas de poder. Pode-se
argumentar, na melhor das hipóteses seguindo Tocque-
34
PODER LOCAL, DESCENTRALIZAÇÃO E DEMOCRATIZAÇÃO...
entre a tendência ao desenvolvimento desigual e a tendência ao aprofundamento da igualização” (Sakamoto,
1991:132). As tensões daí oriundas caracterizam a história política moderna, a balança pendendo para um dos
lados segundo coordenadas de espaço e tempo.
A conjuntura do pós-guerra assistiu a um incremento
considerável da democratização exatamente por estar
subditada pelo conflito entre dois blocos internacionais,
ambos disputando concepções distintas da única fonte de
legitimação viável: a “democracia”. Mas esse incremento é também a intensificação da contradição bipolar entre
o desenvolvimento econômico e tecnológico desigual, e
o político, tendente à igualização. Nesse contexto, a
finitude dos “recursos do planeta” torna-se evidente, enquanto o desenvolvimento das duas faces da modernidade provoca “aumentos sem precedentes nas demandas
político-econômicas por recursos”. Com o fim da guerrafria, esvanecem-se os suportes da democratização, explicitando-se as disputas por recursos. Difícil deixar de concordar que “as forças a favor do desenvolvimento global
desigual, como se exemplifica pelas empresas transnacionais, estão muito mais adiante das forças democráticas,
tentando colocar os recursos da Terra sob seu controle.
Não há dúvida de que as forças a favor da democratização, que tendem a aprofundar a democracia localmente
(sic), como resultado da penetração global das idéias
democráticas, estão ficando para trás” (Sakamoto,
1991:144).
Nesse registro cabem praticamente todas as tendências que conduzem à descentralização segundo o diagnóstico de Borja. São elas: 1) crise de representação política
do Estado moderno, apresentando-se demasiados estreitos os mecanismos representativos tradicionais, os partidos e os sindicatos; 2) caráter tecnocrático das administrações públicas; 3) desigualdades territoriais, sendo que
a demanda por descentralização parte de regiões em crise
e que não acreditam que possam ser atendidas pela autoridade central; 4) reação de culturas locais frente à uniformização da modernidade, exponenciada pelos meios
massivos de comunicação; 5) e a reação dos corporativismos (sic) sociais e territoriais sob a intensificação da
competição em situação de crise econômica (Borja,
1989:74-77). Com um certo espanto, conclui-se que estas são causas que induzem à forte erosão dos “benefícios da centralização”, mais que sua integração com as vantagens do poder descentralizado, desautorizando o
otimismo desavisado!
A análise coerente das cinco razões para o atual processo de descentralização, como entendidas por Borja,
indica uma série de tensões com a teoria e ação do Estado
e do governo representativo. Comparece em primeiro lugar o diagnóstico das promessas não cumpridas: sentimen-
to de exclusão das decisões e da representação (argumentos 1, 2 e 3); do favorecimento desigual da ação estatal
em relação às várias partes do território, “devido à especialização funcional e à segregação social no espaço” (argumento 3); assimilação das comunidades locais aos produtos culturais e pautas de comportamento massificados,
pela potência das novas tecnologias de comunicação e,
implicitamente, a idéia de que o Estado central favorece
esta última, por ação ou omissão (argumento 4). Por fim,
faz-se presente o diagnóstico de que a competição entre
unidades subnacionais, na situação da presente crise econômica, requer “um representante e um interlocutor próximo e diversificado” (argumento 5). Resta saber até que
ponto pode-se esperar que a descentralização venha, de
fato, a superar as mesmas tensões da forma Estado que a
impulsionam neste final de século. Saber se as esperanças depositadas na descentralização são realmente fundamentadas ou se ela é apenas parte dos efeitos da aplicação de uma força irresistível.
A resposta deve enfrentar o fato de que o diagnóstico
formulado por Borja apenas reitera o argumento de
Sakamoto: as forças em prol do desenvolvimento desigual levam vantagem. Essa vantagem pode ser, então,
contra-arrestada nas arenas subnacionais e, mais particularmente, nos municípios? Uma questão importante que
sobressai neste quadro diz respeito à distribuição dos recursos de poder na sociedade contemporânea.
A DISTRIBUIÇÃO DO PODER
A premissa de Tocqueville, depois repetida incansavelmente,6 de que “a igualdade é inevitável e está aumentando”, mostrou-se inteiramente equivocada. O “sistema
de capitalismo comercial e industrial... gerou enormes
desigualdades em riqueza, renda, status e poder”, de forma que constitui uma ameaça à igualdade política e à
democracia (Dahl, 1990:46). O problema do poder, congênito ao desenvolvimento desigual, torna-se mais agudo na medida em que se apresenta “uma disjuntiva entre
a autoridade formal do Estado e o sistema vigente de produção, distribuição e comércio que limita de várias maneiras o poder ou âmbito de ação das autoridades políticas nacionais” (Held, 1991:166). Isto é, quando o grau
de interconexão global das empresas econômicas puseram-nas em situação de quase exterioridade em relação à
jurisdição do poder público.
O problema assume uma dupla dimensão: uma quantitativa, referente à desigualdade na distribuição de recursos de poder entre as empresas, o Estado e seus cidadãos;
outra qualitativa, de explicitação mais recente, que diz
respeito aos limites territoriais da jurisdição estatal versus
a ação globalizada do capital. As duas dimensões rela-
35
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 10(3) 1996
tivizam a soberania dos Estados nacionais, sendo que a
segunda se destaca pela possibilidade de alocação de capitais, produtivos ou especulativos, entre fronteiras e conforme decisões exclusivas de seus gestores, transforma
os Estados, de reguladores, em competidores entre seus
semelhantes. A dificuldade reside no fato de a tramitação
política dos conflitos distributivos, pelas vias estatais, foi
o que permitiu o ritmo acelerado da democratização em
escala global neste século.
O lastimável quadro apresentado pela disputa entre
municípios brasileiros pela alocação de novas indústrias
é bem ilustrativo da real capacidade dos municípios, tal
como dos estados, de regular e planejar o desenvolvimento
de suas respectivas comunidades, face ao poder e à liberdade das grandes empresas. A guerra fiscal entre cidades
pela instalação de uma nova unidade da Volkswagen configurou-se como um verdadeiro leilão de incentivos fiscais e outros recursos públicos, contemplando muito mais
os interesses da empresa do que qualquer racionalidade
produzida pelas instituições políticas. Obviamente, os
governos que entraram na disputa não dispunham de poder sequer para negociar em bases iguais com a empresa,
que se manteve soberana como foro decisório. O que
importa enfatizar é que, contrariamente ao que acontecia, ao menos em parte, no “período desenvolvimentista”, o destino da comunidade local, regional e nacional
escapou-lhe das mãos. Mas “a crença de que os destinos
comunitários repousam nas mãos da cidadania não é, precisamente, um dos pressupostos da teoria do Estado e,
conseqüentemente, da democracia (Held, 1991)? Situação similar aconteceu em relação à decisão de se instalar
uma nova refinaria da Petrobrás na região Norte-Nordeste, se bem, neste caso, que a natureza dos recursos de poder para o exercício da influência tenham sido mais políticos, estando a decisão subordinada aos representantes
da cidadania.
A descentralização não pode, portanto, substituir com
vantagem, o combalido Estado nacional no que respeita à
nova correlação de forças entre agentes públicos e privados. Pode agir e, de fato, age em conformidade com o 5o
argumento de Borja, acima descrito: o da competição entre
os corporativismos sociais e territoriais. Não admira, pois,
que os defensores intransigentes da descentralização
elidam sistematicamente o tema do poder. Enquanto isso,
aumentam a polarização e a marginalização sociais, inclusive no contexto de países com alto PIB per capita
(Mingione, 1988; Boter et alii, 1988).
É bastante sintomático que as mesmas pessoas que há
duas décadas valorizavam, no plano socioeconômico, as
condições de reprodução da “força de trabalho” e de vida
da população, priorizem agora o tema do “desenvolvimento
econômico local”, da “economia social”, da “negociação
e cooperação entre atores públicos e privados”, etc. (Borja,
1989:76). Em outras palavras, ainda que a intenção seja
favorecer a população via a criação de empregos, a
tematização é refeita, levando-se em conta, prioritariamente, as necessidades do capital. Alguém suficientemente maldoso pode concluir que se confirma a tese dos
teóricos da “urbanização capitalista”, segundo a qual “a
progressiva concentração do capital e a subordinação mais
imediata da Administração aos objetivos deste... dá lugar
a uma política urbana... ao serviço cada vez mais exclusivo
e explícito das necessidades de acumulação capitalista e
em detrimento das condições... de vida da população
(Borja, 1975:14).
As razões apresentadas por Borja para a descentralização conduzem ainda a um problema mais delicado.
Trata-se da questão das “culturas locais” que desconfiam
da intervenção centralizada e burocrática do Estado e,
conseqüentemente, buscam autonomia (“autogestão, autogoverno”), inclusive conquistando posições no poder
local. Esta é, de fato, a questão central no pensamento
deste autor e é o que se depreende de sua definição de
descentralização como “um processo de caráter global que
supõe, por uma parte, o reconhecimento da existência de
um sujeito – uma sociedade ou coletividade de base territorial – capaz de assumir a gestão de interesse coletivos e
dotada de personalidade sociocultural e político-administrativa e, por outra parte, a transferência a este sujeito de
um conjunto de competência e recursos... que poderá gerir autonomamente, nos marcos da legalidade vigente
(Borja, 1989:78).
Ressalte-se, primeiramente, que a definição é profundamente ambígua quanto ao entendimento de que uma
sociedade local possa ser um sujeito. A dinâmica da sociedade contemporânea é crescentemente fragmentária,
complexa e multifacetada. A subsunção da complexidade
à idéia de um sujeito é, no mínimo, discutível. A confusão
aprofunda-se, pois em poucas linhas não se precisa se este
sujeito é a “sociedade” ou seu símile representado na figura de um Estado Local, e seu governo representativo.
Neste caso, estar-se-ia falando de uma nação dentro de
um Estado plurinacional e se poderia entender suas posições como as do deputado no Parlament de Catalunya (que
exerceu esse mandato entre 1980 e 1984, assumindo depois a função de teniente de alcalde de Barcelona), mas
sua pretensão à universalidade, sua militância intelectual
na América Latina e a aceitação de suas teses no subcontinente vetam, em alguma medida, tal entendimento.
Cabe então a pergunta sobre se a descentralização, assim entendida, não estaria fadada a reproduzir as mesmas
mazelas da forma Estado quanto à sua atual crise de poder e representação. Afinal, retoma o tradicional argumento da representação de todo o povo de um território, in-
36
PODER LOCAL, DESCENTRALIZAÇÃO E DEMOCRATIZAÇÃO...
dependentemente de suas reais clivagens, e reivindica parte
dos recursos de poder para o exercício da soberania em
sua jurisdição, somente respeitados os limites constitucionais. Terá esta esfera mais poder e legitimidade para
combater as causas do debilitamento dos Estados nacionais, como o seu próprio exemplo, a “rebelião fiscal”?
Mesmo em Estados latino-americanos descentralizados,
nos quais os municípios gozam de forte autonomia política e administrativa – e nesse aspecto, ao que se pode
saber, nenhum país supera o Brasil7 – apresenta-se com
igual força a “crise de representação” das autoridades locais e dos partidos políticos atuantes nesse nível de governo. As causas apontadas para essa crise estão associadas a uma certa oligarquização constitucional do poder
local, que faculta sistemas decisórios sem consulta popular, mesmo nos casos em que um legislativo eleito tem as
condições institucionais para tanto (Nunes, 1994:191194).
presentação de notáveis anterior aos partidos de massa).
Pensar um sujeito territorial na sua dupla face de “povo e
governo” pressupõe, então, pensar a organização desses
dois elementos, bem como a instituição do corpo representativo e a conseqüente formação ou ampliação de um
grupo social particularizado: os novos profissionais da
política. Até aqui, nada de novo. Apenas a retomada das
questões relativas ao Estado nacional em outra dimensão.
Ocorre que os recortes territoriais não são dados da realidade social, mas antes construções políticas. Da mesma
forma, a instituição de representantes através de regras
que devem ser estabelecidas – as escritas e as implícitas
na dinâmica criada – não são “naturais”. De forma que o
resultado do processo fica na dependência das soluções
escolhidas: a geração de interesses coletivos, suas modalidades de expressão, a latitude dos conflitos legítimos
nessas novas arenas, etc.
Uma pesquisa sobre governos locais em cidades de
porte médio, realizada em sete países da América Latina
(Nunes, 1994), observou uma transformação bastante
acentuada na natureza dos “sujeitos” políticos após processos de descentralização em países unitários (Bolívia,
Colômbia, Chile, Equador e Peru). Sólidas instituições
representativas nacionais esvaneceram-se, ainda que também por outras razões, abrindo espaço para a proliferação de novos atores locais, descentralizando-se também
os conflitos sociais e a força relativa dos atores subalternos sendo pulverizada.
Em países já federativos (Argentina e Brasil), pode-se
notar também a presença de “sujeitos” em grande medida
condicionados pelas maneiras específicas dos processos
decisórios locais; em outras palavras o que, quem, como,
onde e quando se decide causa um impacto sensivelmente sobre quem se organiza e o que constitui uma pauta de
reivindicações.
Essas constatações empíricas ressonam em um saber
político esquecido pelos modernos – o de que o caráter
do cidadão é atributo das leis fundamentais do corpo político e da maneira como estas são observadas no tempo.
Mas trata-se de uma amnésia necessária, pois é incompatível com a idéia mesma de representação: a de que os
interesses e opiniões são dados pré-políticos, atributos dos
“indivíduos naturais” e de suas associações voluntárias,
criadas pelas afinidades livremente identificadas. E são
precisamente estas que devem ser reapresentadas no contexto de um pacto voluntário. Esta é, talvez, a maior dificuldade da tradição “liberal democrática”, hoje hegemônica, em se conciliar com a experiência vivida e observada.
É esta dificuldade que obriga o liberal a sacrificar a liberdade política pela liberdade econômica, como faz Hayck.
E que impulsiona Dahl no caminho inverso: ambos são
incapazes de enxergar que a aporia não se resolve num
A CONSTITUIÇÃO POLÍTICA
DAS IDENTIDADES
A questão parece, então, ter raízes mais profundas, uma
das mais importantes o célebre argumento de Robert
Michells. Sua teoria das organizações políticas conclui
pela inevitável formação de oligarquias políticas por intermédio das instituições democráticas, quando a participação é franqueada às classes subalternas. É que o não
proprietário, por isso mesmo relativamente débil em recursos de poder, só pode fazer valer seus interesses e opiniões no espaço público através do número, massivamente.
Como quem diz reunião de muitos, diz organização, a
presença destes “cidadãos dependentes” na política implica, de forma necessária, organização. Esta, por sua vez,
exige burocracia, que se diferenciará fatalmente dos “nossos” e de suas aspirações precisamente devido à sua situação específica na divisão do trabalho. Ao maximizar seus
interesses de grupo, a burocracia sindical e partidária cria
uma relação assimétrica em relação às bases, de supremacia. O argumento de Michells, inconveniente e por isso
mesmo pouco lembrado, retoma a crítica do pensamento
marginal do século XIX, demonstrando a necessária não
universalidade do governo representativo. A constatação
de Borja do caráter tecnocrático das administrações públicas, bem como o paradoxo de Bobbio entre democracia representativa e burocracia (que ele relativiza mas não
resolve), recebe uma explicação que deveria ser objeto
de maior meditação.
Isto posto, pode-se precisar a delicadeza do problema
que a definição de descentralização de Borja suscita. A
representação política supõe, em sociedades de massa, a
organização. (Nem sempre foi assim! Vale lembrar a re-
37
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 10(3) 1996
plano metafísico. E ambos fazem opções políticas, isto é,
de valor.
públicas e privadas. O trabalho, aqui, é o repensar o sistema representativo, na tentativa de pavimentar o atual
fosso entre representantes e representados. Dois autores
aqui comentados – Dahl e Held – preocupam-se precisamente com essas questões. Resta saber se o problema é,
de fato, equacionável nos marcos da teoria do governo
representativo.
Finalmente, é preciso uma maior compreensão conceitual dos mecanismos de difusão e capilaridade dos efeitos de poder nas dimensões territoriais. Existe muita teoria sobre “as leis como devem ser”, mas muito pouca sobre
“os homens tais quais são”. Talvez com isso descubra-se
mais centralização na descentralização (e vice-versa) do
que se estaria disposto a admitir.
O pior serviço que se pode prestar à causa da democratização hoje é operar a metonímia que reduz um todo
complexo a uma solução unilateral e a uma panacéia universal.
DESCENTRALIZAÇÃO E DEMOCRATIZAÇÃO
Algumas conclusões emergem do que foi dito aqui e
apontam para a complexidade dos fenômenos entendidos
pelo termo “descentralização”. Complexidade que
desautoriza simplificações tanto analíticas como normativas. Infelizmente, ambas comparecem com desconcertante freqüência, fazendo crer que a adesão aos encantos supersticiosos está intimamente relacionada à fortuna
desfavorável e à incapacidade dos homens de dirigir seus
destinos, como ensinou Spinoza.
A teoria política e a fala do poder constelaram na figura do Estado-Nação exatamente a idéia de uma “comunidade de destino”, construída pela vontade e pela força
humanas, através da qual os indivíduos se habilitam a
tomar decisões sobre o seu futuro comum. Sem tal ponto
de partida, a teoria da democracia, enquanto forma de
governo, careceria de sentido. Ocorre que a ação dos Estados, neste tempo de relação de poder crescentemente
globalizadas, é fundamentalmente constrangida. Os determinismos, expiados milenaristicamente por uma esquerda que vê o fim do seu mundo e renasce purificada, engordam rijos e fortes dos discursos de chefes de Estado.
Estes, piedosamente abençoados pelos economistas, verdadeiros sacerdotes modernos, sacramentam a impotência dos homens e de seus representantes. Assim, aparece
como necessidade que, mesmo nações com cerca de trinta mil dólares de PIB per capita, sejam forçadas à redução de gastos sociais (ainda que o montante do gasto público não decresça!).
O primeiro acerto de contas a ser feito é o reconhecimento de que a atual onda de descentralização decorre
precisamente desse processo de crise das instituições públicas. Nesse sentido, rima com temas como “reforma do
Estado”, “diminuição dos gastos sociais”, “estado mínimo”, etc. Isto não significa que a descentralização não
tenha dimensões importantes para a retomada da democratização. Mas, certamente, acarreta a necessidade imperiosa, para quem esteja interessado nessa retomada, de
tentar responder às questões difíceis.
A primeira diz respeito à assimetria e à incongruência entre os poderes públicos e privados. A não se pensar conjuntamente um grau de centralização planetária, paralela ao reforço do poder local, aprofunda-se
um desequilíbrio apenas em prol do desenvolvimento
desigual.
Conexa a esta, uma segunda questão diz respeito à
natureza dos vínculos entre o local, o regional, o nacional e o global, permeados matricialmente em suas esferas
NOTAS
1. Um estudo acerca da descentralização de Londres revela um processo complexo que envolve também novas centralizações e recentralização de atividades
antes descentralizadas (Levy, p.262).
2. Parte da crítica de Marx ao “estado burguês”, talvez a fundamental, situa-se
precisamente neste ponto: a propriedade privada obriga e domina, sem que haja
recurso possível à comunidade política, convertida em “um comitê que administra os negócios comuns de toda a burguesia”. Numa vertente liberal contemporânea, realmente liberal, Robert Dahl recoloca o problema nos seguintes termos:
“...temos que nos esforçar para diminuir os efeitos adversos sobre a democracia
e a igualdade política que resultam quando a liberdade econômica engendra grande
desigualdade nas distribuições de recursos, e assim, direta e indiretamente, de
poder” (Dall, 1990:47). Contrariamente a algumas correntes, como por exemplo, a representada por Hayck, Dahl jamais consentiria em sacrificar a liberdade
política em nome do liberalismo.
3. “A burguesia compreende perfeitamente que uma nova legislação ou uma nova
constituição não serão suficientes para garantir sua hegemonia; ela compreende
que deve inventar uma nova tecnologia que assegurará a irrigação dos efeitos do
poder por todo o corpo social” (Foucault, 1984:220).
4. Mesmo um autor que procura entender o clientelismo e relativizar suas diferenças sem relação a uma institucionalidade público-representativa, conferindolhe “alguma dignidade”, não supera a lógica bipolar ao apresentá-la sob a forma
de um continuum e sugerindo que se analisem suas interpenetrações. A explicação continua a operar ex machina em decorrência de particularismo das sociedades onde o fenômeno é observado. Não escapa, pois, do “ainda” (Avelino,
1994:228 e 240).
5. “O municipalismo, que se sintetiza no princípio segundo o qual ‘o que pode
ser feito pelo município não deve ser feito nem pela União, nem pelo Estado’,
fundamenta-se na desconcentração do poder e na descentralização das decisões
e realizações, pressupondo, portanto (sic!), a completa democratização da sociedade e a participação efetiva da comunidade...” (Quércia, 1986:10).
6. A mesma premissa encontra-se desenvolvida em Marshall (1967), que enxerga uma “guerra” entre a cidadania e o sistema de classe capitalista. Também em
Bobbio (1979), que predica a democracia como o único caminho lícito ao socialismo, com o que concorda Weffort (1984). Nesses autores da segunda metade
do século XX, a premissa tocquevilleana é retrabalhada no sentido de conferir
maior importância ao Estado nos processos de igualitarização. O pressuposto
básico, portanto, é o de um estado crescentemente fortalecido e soberano.
7. As constituições brasileiras dotam os municípios de autonomia política ímpar, dando-lhes a capacidade legislativa em sentido próprio e consentindo que,
no caso do interesse específico municipal, a lei do município prevaleça à estadual
e, inclusive à federal, respeitada somente a constituição. Ele é virtualmente um
ente da federação que se desdobra, assim, em três níveis, contrariamente ao que
ocorre nos Estados Unidos, Argentina e México, cujos ordenamentos supõem
apenas dois: os Estados e a União (Grossi, 1989:87). Como se vê, a descentralização não garante nem democracia, nem participação, nem solidez na representação.
38
PODER LOCAL, DESCENTRALIZAÇÃO E DEMOCRATIZAÇÃO...
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39
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 10(3) 1996
A REDEFINIÇÃO DO PAPEL DO ESTADO
NO ÂMBITO LOCAL
FERNANDO LUIZ ABRUCIO
Professor do Departamento de Política da PUC-SP e da FGV-SP, Pesquisador do Cedec
CLÁUDIO GONÇALVES COUTO
Professor do Departamento de Política da PUC-SP, Pesquisador do Cedec
O
objetivo deste artigo é discutir o novo papel a
ser assumido pelos municípios brasileiros diante das mudanças por que passa o Estado nacional, no que se refere tanto à redefinição das funções do
setor público quanto à construção de um novo arranjo
federativo, delimitado pelas regras da Constituição de
1988. Os municípios hoje enfrentam um duplo desafio:
precisam assumir políticas antes a cargo da União ou,
secundariamente, dos estados, tanto para assegurar condições mínimas de bem-estar social às suas populações
(função de Welfare) como para promover o desenvolvimento econômico com base em ações de âmbito local, o que envolve o estabelecimento de um novo tipo
de relacionamento com o setor privado (função desenvolvimentista).
O enfrentamento desse duplo desafio está condicionado por três parâmetros: a estrutura fiscal da federação
brasileira; as diferentes características socioeconômicas
de cada ente local; e a dinâmica política interna aos municípios. Será discutido o quanto estes fatores influenciam a
construção de um novo modelo de Estado, no qual a esfera municipal passa a ter papel protagônico, no que isto
tem de potencial criador e de sérias limitações.
senvolvimento econômico. Para que se tenha uma idéia
da importância do papel estatal na alavancagem do investimento global, basta dizer que até 1983 cerca de 30%
a 50% das inversões totais cabiam ao setor público – sem
considerar a intermediação de “grande parte do investimento privado através da administração de importantes
fundos compulsórios de poupança” (Carneiro e Modiano,
1992:331). Com a crise financeira do Estado – vigente,
em grande medida, até os dias atuais –, o setor público
federal está redefinindo suas tarefas, com conseqüências
para os outros níveis de governo.
Por outro lado, a partir da Constituição de 1988, a União
perdeu boa parte de seus recursos financeiros para estados e municípios. Desta forma, sua capacidade de atuação na área das políticas públicas é reduzida drasticamente,
de modo que importantes tarefas, antes assumidas pelo
poder central, têm de ser incorporadas ao âmbito governamental subnacional, não só no que concerne às políticas sociais – como é freqüentemente levantado – mas também em outras esferas, como será discutido adiante.
Diante dessas duas ordens de fatores e num momento
em que ganha força a idéia de um Estado mais enxuto e
eficiente – cada vez mais próximo do modelo liberal do
“Estado mínimo” –, as políticas que ainda são tidas como
de responsabilidade governamental são justamente aquelas mais compatíveis às esferas subnacionais de governo,
especialmente no âmbito municipal: as áreas de saúde,
educação, saneamento, habitação, transporte público, etc.
Entretanto, mesmo as políticas governamentais postas de
lado pelo Governo federal em razão do desmantelamento
das bases do Estado nacional-desenvolvimentista não são,
em sua maior parte, simplesmente abandonadas, principalmente por conta da pressão social, e acabam sendo
O NOVO PAPEL DO ESTADO
NO ÂMBITO MUNICIPAL
O Estado brasileiro vem sofrendo duas ordens de problemas com implicações para a redefinição de seus papéis. Por um lado, no início da década de 80, entra em
crise o chamado Estado nacional-desenvolvimentista,
design estatal que vigorou por cerca de meio século e cuja
característica principal era alavancar o processo de de-
40
A REDEFINIÇÃO DO PAPEL DO ESTADO NO ÂMBITO LOCAL
incorporadas à nova dinâmica de governo assumida pelas esferas subnacionais. Trata-se agora não de um desenvolvimentismo como fora tipicamente o modelo
varguista, voltado à construção autárquica de uma estrutura industrial de grande porte; o que se constitui, atualmente, no âmbito estadual e, sobretudo, no municipal é
um tipo de política de cunho redistributivo e/ou anticíclico
para garantir, minimamente, a renda e o emprego dos
habitantes destas regiões.
Os municípios, portanto, precisam redesenhar sua atividade estatal. Na área social, ao contrário da impressão
geral presente na opinião pública, estados e, sobretudo,
municípios assumiram boa parte da responsabilidade por
estas políticas, que, de maneira geral, antes cabiam à
União. Aumentaram significativamente os gastos dos
municípios com saúde e educação, o que demonstra o
quanto essas unidades têm cada vez mais assumido o papel de welfare. A União, inversamente, tem se distanciado paulatinamente de sua atuação nesta área, exceto em
algumas políticas no setor educacional ou através de iniciativas isoladas, as quais, no mais das vezes, estão sendo malsucedidas no que se propõem, como é o caso do
Programa Comunidade Solidária (Pralon, 1996). E mesmo no caso da educação, os municípios e os estados gastaram, em 1995, um volume de recursos superior ao da
União, como mostra a Tabela 1.
Para assumir de forma mais abrangente as funções de
welfare, os municípios precisam modificar sua estrutura
administrativa e recapacitar-se financeiramente, alterando suas áreas de ação prioritária e incorporando estruturas de serviços antes pertencentes aos níveis superiores
de governo – este é o caso, por exemplo, da municipalização da saúde. Esta mudança ocorre de tal forma que a
área social ganha relevância no debate eleitoral municipal, como pôde ser visto na campanha à prefeitura de São
Paulo em 1996. Apesar do volume de recursos destinados pelo então prefeito Paulo Maluf à área social ter sido
bem menor do que o direcionado às obras viárias, os carros-chefes da campanha do candidato situacionista foram
dois programas sociais, um na área de saúde e outro na
de habitação popular – respectivamente, o Programa de
Assistência à Saúde (PAS) e o Projeto Cingapura, ambos
ausentes da campanha malufista à prefeitura em 1992.1
As funções de welfare, no entanto, estão ganhando
importância nos municípios ao lado de iniciativas em prol
do desenvolvimento econômico local, especialmente direcionadas à geração de emprego de renda. Talvez seja
essa a maior novidade em termos de redesenho do Estado
no nível local. Entre os bons exemplos desse tipo de política, podem ser citados os programas de renda mínima e
de fomento ao desenvolvimento e à geração de empregos. No caso da renda mínima, Campinas já obteve um
grande sucesso em sua implementação, constituindo-se
num exemplo que já vem sendo seguido por outros municípios. No que diz respeito a políticas anticíclicas (ou de
desenvolvimento), pode-se citar o “Banco do Povo”, de
Porto Alegre, voltado ao financiamento de pequenos negócios, ou ainda a cidade cearense de Quixadá e seu “Programa de Geração de Emprego e Renda”, voltado à capacitação de mão-de-obra, financiamento de pequenos
empreendimentos e formação de associações e cooperativas. Segundo o jornal Folha de S.Paulo (17/08/96:1-7),
esse programa já logrou reduzir pela metade o desemprego verificado na cidade em três anos, “capacitou 900 trabalhadores, fomentou a criação de 40 associações e uma
cooperativa e financiou 196 negócios”. Além disso, o
envolvimento dos trabalhadores participantes do programa nas obras da prefeitura reduziu o seu custo em até 50%,
segundo a secretária municipal de Ação Social.
Este tipo de atuação voltado ao desenvolvimento local
é, ao menos no caso brasileiro, uma ruptura com formas
tradicionais de ação governamental nos municípios. Trata-se de uma verdadeira reinvenção do governo,2 que envolve novos padrões de relacionamento entre o Estado e
a sociedade, superando as formas limitadas, porém indispensáveis de representação política da democracia liberal, através da criação de outros dispositivos políticos para
a agregação e a articulação de interesses – é o caso de
mecanismos de democracia direta, como o do orçamento
participativo (de grande sucesso em Porto Alegre), bem
como de arranjos neocorporativos (como em Sertãozinho),
os quais permitem conciliar os múltiplos interesses setoriais relevantes na sociedade local – o capital privado, os
trabalhadores e o setor público.
Para compreender melhor a redefinição do papel do
Estado no âmbito municipal, é preciso considerar não
apenas os casos vistos individualmente. Mais do que isso,
é necessário ter em vista as condições mais globais que
dão suporte à transformação do papel do governo no nível local, considerando de que maneira torna-se viável a
expansão de experiências isoladas para os municípios de
um modo geral. Caso contrário, a consideração de experiências inovadoras será a exaltação de sucessos gover-
TABELA 1
Gastos com Educação nas Três Esferas de Governo
Brasil – 1995
Esferas de Governo
União
Estados
Municípios
Em R$ bilhões
5.423
11.659
7.192
Em %
22,34
48,03
29,63
Fonte: Ministério da Educação, apud Gazeta Mercantil, São Paulo, 11/09/96, p.A-7.
41
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 10(3) 1996
Com a distensão política, o modelo de financiamento
vigente foi, pouco a pouco, perdendo força: os mecanismos centralizadores foram gradualmente erodidos, uma vez
que o Governo central era obrigado a barganhar com as
elites estaduais para obter apoio no Congresso, de modo
que estados e municípios obtiveram maior poder para determinar seus próprios tributos e políticas orçamentárias.
Este processo foi dramaticamente acelerado em 1982,
quando candidatos oposicionistas venceram a eleição para
governador nos principais estados. Nesse sentido, uma
mudança emblemática foi a aprovação da Emenda Passos
Porto, em 1983, que aumentou a participação dos governos subnacionais no bolo de recursos tributários do país.
De 1980 a 1986, durante o processo de transição, a
participação das entidades subnacionais nos fundos federais cresceu substancialmente. Os municípios aumentaram sua parcela de 9% para 17%, enquanto a participação dos estados passou de 9% para 14% no total das
transferências de recursos tributários (Serra e Affonso,
1991:48). A nova Constituição, promulgada em 1988,
gradualmente aprofundou a descentralização fiscal, já que
o novo sistema tributário foi implementado passo a passo
até 1993. É importante assinalar que a distribuição da
Receita Total da União entre 1980 e 1993 foi reduzida
em 16%, ao passo que a participação de estados e municípios aumentou em 18% e 78%, respectivamente
(Giambiagi, 1991:64). Após 1988, a União tentou reverter esta tendência sem obter sucesso.
As principais conseqüências das mudanças constitucionais com relação à taxação são o aumento do poder tributário das unidades subnacionais em sua própria jurisdição e o aumento dos recursos disponíveis de forma não
vinculada para os estados e municípios, como resultado
do incremento das transferências constitucionais. No que
se refere ao segundo aspecto, é importante observar que
a participação dos estados-membros no montante nacional de recursos é uma das mais descentralizadas entre os
sistemas federativos. De acordo com dados o Fundo Monetário Internacional (FMI), a participação dos estadosmembros brasileiros nos recursos nacionais é de 30%,
menor que a do Canadá (40%), mas superior à dos estados-membros dos EUA e da Alemanha – 20% e 22% respectivamente (Lageman e Bordin, 1993:29).
Após a promulgação da nova Constituição, aumentaram as transferências da União e dos estados para os
municípios. Incluindo o Fundo de Participação dos Municípios e a participação destes na receita do ICMS, as
transferências municipais passaram de R$ 9,84 bilhões,
em 1988, para R$ 21,20 bilhões, em 1995. Neste processo, a participação das receitas municipais em relação ao
PIB passou de 1,76%, em 1988, para 3,21%, em 1990,
atingindo 3,36%, em 1995.3
namentais em um ou outro município e não um passo para
que se efetive uma reforma do Estado em nível municipal. Essas condições dizem respeito à estrutura fiscal federativa, às diferenças socioeconômicas entre os municípios e à dinâmica política típica do âmbito municipal.
O CENÁRIO FINANCEIRO DA FEDERAÇÃO
Com o regime militar iniciado em 1964, ocorreu uma
grande centralização fiscal juntamente com o aumento do
poder da União relativamente aos outros entes federativos. Entre os atos implementados pelo Governo central,
podem ser destacados o Código Tributário Nacional
(1966), a nova Constituição (outorgada em 1967) e o Ato
Complementar no 40 (AC-40) de 1968. A Tabela 2 mostra o impacto das mudanças na distribuição de receita
nacional entre 1965 e 1974, quando o regime militar estava em seu apogeu.
O principal ponto é o significativo incremento da receita da União (11,5%), às expensas dos estados-membros (que perderam cerca de 12%), ao passo que os municípios permaneceram com quase a mesma fatia ao longo
do período – exceto para 1968, quando os ganhos anteriores dos governos locais foram reduzidos pelo AC-40,
o qual diminuiu em aproximadamente 50% a participação dos governos subnacionais em seus respectivos fundos de participação.
Juntamente com as mudanças apontadas na Tabela 2,
duas outras medidas contribuíram para aumentar a centralização financeira: em primeiro lugar, o aumento das
transferências vinculadas aos governos subnacionais; e, em
segundo, a restrição da autonomia tributária dos estados,
que deu ao Senado poder de definir as alíquotas do ICM
(Imposto sobre Circulação de Mercadorias). Uma vez que
o Senado, assim como todo o Congresso, era fortemente
controlado pelo Executivo Federal, tornou-se mais fácil
para a União determinar a política tributária dos estados.
TABELA 2
Participação na Receita Líquida dos Três Níveis de Governo
Brasil – 1965-1974
Em porcentagem
Anos
Receita da
União(1)
Receita dos
Estados(2)
Receita dos
Municípios (3)
1965
1968
1970
1972
1974
39,0
40,2
45,0
48,8
50,5
48,1
42,9
40,7
37,5
36,0
12,9
16,9
14,3
13,7
13,5
Fonte: Oliveira, 1980:51.
(1) Exclui transferências intergovernamentais para estados e municípios.
(2) Exclui transferências intergovernamentais para municípios mais ajudas da União.
(3) Inclui transferências intergovernamentais para União e estados.
42
A REDEFINIÇÃO DO PAPEL DO ESTADO NO ÂMBITO LOCAL
Mais importante ainda para a discussão aqui é o fato
de que o volume de recursos obtidos pela arrecadação de
tributos municipais próprios aumentou consideravelmente.
Em 1988, esse volume representava 0,66% do PIB, ao
passo que em 1995 passou a perfazer 1,70% (Folha de
S.Paulo, 31/08/96:1-7). A principal fonte arrecadadora de
recursos próprios é o ISS, o qual, em 1991, representava
um terço da receita municipal em nível nacional, 20% a
mais do que o segundo mais importante imposto municipal, o IPTU. A maior parte do ISS é coletada nas capitais
e nas grandes cidades, com os pequenos municípios tendo apenas uma pequena parte de sua receita composta pelo
ISS, porque esse imposto, incidindo sobre a prestação de
serviços, tende a encontrar uma maior base tributária nas
localidades economicamente mais dinâmicas. As cidades
mais pobres não têm aí, portanto, uma fonte significativa
de seus recursos.
Houve um considerável incremento também na arrecadação do IPTU desde 1988, mas este imposto ainda
arrecada menos do que o seu potencial permitiria. Como
o incremento verificado ocorreu por conta da elevação
de alíquotas e estas eram extremamente baixas, ainda
existe uma grande margem de crescimento. Há uma causa política que explica as baixas alíquotas do IPTU: ele é
um imposto direto e existe uma tendência das autoridades locais a mantê-lo num nível baixo, uma vez que qualquer incremento em impostos diretos é facilmente percebido pela população – isto é, pelos eleitores –, sendo
portanto uma medida, no mais das vezes, impopular.
Contudo, essa tendência tem sido atenuada nos últimos anos. Nas palavras do ex-secretário de Planejamento
de São Paulo, o economista Paul Singer, “os prefeitos
‘perderam o pudor’ de cobrar os impostos municipais”.
“Quando os valores do IPTU foram atualizados em
São Paulo durante o governo Jânio Quadros, houve
gritaria geral. Depois, houve uma tendência geral no
país de rever os valores dos impostos” (Folha de
S.Paulo, 31/08/96:1-7).
A causa dessa mudança reside na necessidade econômica dos municípios de fazer frente às duas dificuldades
que a eles se apresentam. Primeiro, a crise do Estado nacional-desenvolvimentista tornou inviável aos governos
locais recorrer à União em busca de ajuda financeira – a
velha política do “pires na mão” –, pois o Governo federal já não dispõe dos recursos de outrora, sequer para fazer frente a seus próprios problemas. Segundo, os estados estão imersos numa séria crise econômica desde 1995,
cuja maior evidência é o montante de sua dívida – nesse
mesmo ano ela perfazia o total de R$ 97 bilhões, segundo
o Banco Mundial ( Abrucio e Couto, 1996:18).
Diante desse quadro, torna-se imperioso aos municípios colocarem em prática uma política de responsabili-
dade fiscal, elevando sua arrecadação própria. Como é
prerrogativa do próprio poder local legislar sobre seus
tributos, a autonomia municipal não é obtida através da
peregrinação dos prefeitos aos níveis superiores de governo – quando estes últimos são os donos da “chave do
cofre”. A autonomia municipal é obtida transformandose a arrecadação local no próprio cofre, possível através
do estabelecimento de uma relação cooperativa entre as
autoridades executivas e legislativas municipais – o que
pode se dar nos moldes tradicionais ou através de um relacionamento de cunho republicano, como será discutido
mais adiante.
Embora boa parte dos municípios tenha aumentado sua
capacidade fiscal e também seus gastos na área social, esse
processo não ocorreu de forma homogênea em toda a federação e mesmo em municípios de um mesmo estado.
Tal fato indica que a mera municipalização dos problemas pode reproduzir a desigualdade social já existente,
ao invés de criar mecanismos para solucioná-la.
AS CONDIÇÕES DESIGUAIS
DA DESCENTRALIZAÇÃO
Mesmo ganhando novos recursos com a Constituição
de 1988, o fato é que os municípios brasileiros não partem de um mesmo patamar para a assunção dos encargos
antes de responsabilidade da União ou dos estados. Um
agravante a isto é a insuficiência dos mecanismos redistributivos existentes, sobretudo para o nível municipal.
O primeiro desses dispositivos é constituído pelos Fundos de Participação de Estados e Municípios. O Gráfico
1 indica a distribuição de recursos entre as regiões do país.
Através do Gráfico 1, verifica-se que o FPE é mais
efetivo no seu papel redistributivo entre as regiões. Isto
se deve ao fato de que o FPE considera a renda per capita
de cada estado como o principal critério de distribuição
dos recursos, ao passo que o FPM considera o critério de
renda apenas para as grandes cidades e as capitais estaduais, as quais representam somente 13,6% dos municípios brasileiros. Para os assim chamados “pequenos municípios” (aqueles que têm menos de 156.216 habitantes),
o FPM é distribuído considerando apenas a magnitude da
população. Esse conjunto de “pequenos municípios”, por
sua vez, é subdividido em diversas faixas, de acordo com
o tamanho da população: quanto maior a população, maior
a fatia de recursos. Isto significa que os estados com o
maior número de municípios deste tipo tendem a receber
uma fatia maior do bolo de recursos. Tendo em vista que
os estados mais ricos têm um número maior de “pequenos municípios” compreendidos pelas faixas populacionais mais altas, eles provavelmente receberão uma parcela proporcionalmente maior do FPM.
43
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 10(3) 1996
GRÁFICO 1
cursos, alternativa preferida às tentativas de coordenar a
descentralização de responsabilidades. Ainda assim, quase todas as iniciativas recentralizadoras foram infrutíferas. Isso pode ser constatado nas fracassadas negociações
das dívidas estaduais e nos esforços em vão para reduzir os
recursos de estados e municípios em seus respectivos Fundos de Participação. Não obstante todas essas restrições para
mudar a atual distribuição de recursos, o Governo central
tem obtido um relativo sucesso por meio do aumento das
alíquotas das Contribuições Sociais, do decréscimo do montante de transferências negociadas,4 da criação do Fundo
Social de Emergência (FSE) em 1994 – cuja aprovação foi
uma das maiores vitórias fiscais da União nos últimos anos
– e a sua recriação com novo nome em 1995.
Dado que não há mecanismos institucionais capazes
de tornar a descentralização mais eqüitativa e como o
Governo federal não possui uma política nacional voltada para este fim, uma reforma global do Estado nos municípios passaria pelo estabelecimento de uma ação coordenada entre eles com vistas a diminuir as disparidades.
O problema é que não há incentivos à cooperação entre
os municípios; ao contrário, o que vem ocorrendo é uma
acirrada competição por recursos e a configuração de um
relacionamento não-cooperativo entre as municipalidades.
Um exemplo disto é a multiplicação de unidades municipais através do país. Uma vez que cada novo município
tem direito a receber uma parte do FPM e uma quota do
ICMS, torna-se interessante a certos distritos transformarem-se em municípios – o que é facilitado pela legislação
permissiva. A Tabela 3 mostra a multiplicação de municípios desde 1988.
Além da permissividade legislativa no que diz respeito ao desmembramento de municípios, atualmente
inexistem mecanismos efetivos que propiciem a associação entre os entes locais. A formação de consórcios intermunicipais, por exemplo, encontra obstáculos na legislação, que os prevê apenas como instituição de direito
privado. Como para instituições de direito privado é inviável a obtenção de empréstimos junto a organismos internacionais de fomento, o instrumento do consórcio sofre enormes limitações, a não ser que a União dê o aval
aos participantes do consórcio. Aqui surge o primeiro nó
político: será que o presidente avalizaria um consórcio
formado por prefeitos adversários? Além disso, como a
figura do consórcio é um instrumento jurídico “fraco” (sua
dissolução pode ocorrer facilmente), os prefeitos não optam por consorciar-se com outros municípios, pois temem
que, com a troca de governo, a associação se desfaça.
Municípios que compõem regiões metropolitanas têm
na formação de um ente supramunicipal de governo outra forma de cooperação federativa de grande importância, pois há uma série de problemas nestas áreas cuja re-
Participação das Regiões no Fundo de Participação dos Estados (FPE)
e no Fundo de Participação dos Municípios (FPM)
Brasil - 1991
FPE
FPM
Fonte: Barrera e Roarelli, 1995.
A menor eficiência redistributiva do FPM é acentuada
pela inexistência de um mecanismo com a mesma finalidade dentro dos estados. Embora uma pequena parte do
ICMS arrecadado seja destinado de forma não proporcional
à contribuição fiscal dos vários municípios de um estado,
atuando como um mecanismo de redistribuição, a lógica
preponderante desse imposto é a de premiar os municípios economicamente mais bem-sucedidos. Desta forma,
aqueles que já partem de uma condição econômica melhor são beneficiados também pela partilha do principal
tributo estadual. Concluindo, no que se refere aos municípios, a lógica tributária brasileira, tanto no âmbito interestadual como no intra-estadual, mostra-se de baixa eficácia redistributiva.
Uma forma de amenizar o caráter desigual da descentralização brasileira seria o Governo Federal assumir, de
fato, a coordenação desse processo. Todavia, a União tem
sido incapaz de coordenar o processo de descentralização.
A principal preocupação do Executivo, desde o governo
do presidente José Sarney, tem sido recentralizar os re-
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A REDEFINIÇÃO DO PAPEL DO ESTADO NO ÂMBITO LOCAL
Estes incentivos à fragmentação presentes na federação brasileira vão contra a corrente internacional em prol
da descentralização que ganha força a partir da década de
80. Ao contrário da multiplicação dos municípios, o instrumento utilizado para fortalecer o poder local tem sido
o da redução do número de municipalidades. Países federativos, como a Alemanha, ou unitários, como a Suécia,
adotaram essa estratégia. Neste último, por exemplo, houve uma redução de 2.000 para 284 municípios (Mendoza,
1996:77). Caso os consórcios e outras formas associativas
intermunicipais tivessem maior efetividade no Brasil, seria possível obter um resultado semelhante ao da redução
dos entes locais; afinal de contas a unidade de ação alcançada por meio destes instrumentos, potencializando as
capacidades administrativas e financeiras de diversas
municipalidades – antes dispersas –, é o que se obteve
através da diminuição do número de municípios em vários países.
TABELA 3
Evolução do Número de Municípios
Brasil – 1988-1995
Número de Municípios
Estados
Total
Amapá
1988
1995
4.189
5.437
5
16
Acre
12
22
Rondônia
19
48
Roraima
Amazonas
2
8
60
62
Pará
88
137
Tocantins
83
148
Distrito Federal
1
1
184
234
Mato Grosso
93
130
Mato Grosso do Sul
72
77
Goiás
Piauí
48
148
Maranhão
136
213
Ceará
170
184
Rio Grande do Norte
152
166
97
102
Alagoas
Sergipe
74
74
Paraíba
171
221
Pernambuco
168
185
Bahia
367
460
Minas Gerais
722
853
Espírito Santo
58
71
Rio de Janeiro
66
93
572
636
São Paulo
Paraná
297
396
Santa Catarina
199
287
Rio Grande do Sul
273
465
A DINÂMICA POLÍTICA INTRAMUNICIPAL
Como foi dito anteriormente, uma das condições para
que os municípios obtenham sua autonomia financeira é
o estabelecimento de uma relação cooperativa entre os
atores políticos relevantes. Isto tem implicações não apenas para o relacionamento entre os Poderes Executivo e
Legislativo,5 mas também para a interação entre as autoridades governamentais (prefeito, secretários, vereadores,
etc.) e a sociedade civil. A obtenção de maioria na Câmara é uma condição necessária, porém insuficiente para que
o prefeito aprove as medidas que pretende implementar –
em nosso caso, o incremento tributário municipal. Se os
parlamentares sofrerem uma pressão muito grande de suas
bases no sentido de vetar a política de incremento tributário, dificilmente essa política logrará êxito. Por isso,
torna-se necessária também a institucionalização de formas de negociação que incorporem diretamente à discussão os setores a serem atingidos pelas políticas municipais, não apenas para que não ocorra o seu veto às políticas
de incremento tributário, mas também para incorporar sua
contribuição à designação e à formulação das políticas
públicas que serão encampadas pelo município.
Nesse sentido, a experiência do orçamento participativo mostra-se bastante positiva, assim como o são os conselhos municipais e outros eventuais fóruns de consulta
direta, seja à população de um modo geral, seja a setores
específicos – em particular àqueles dotados de grande poder de pressão. Note-se que se trata de implementar no
município não apenas formas mais democráticas de gestão, mas também mais eficazes para a tomada e implementação de decisões de governo. Se por vezes o funcionamento normal de um regime democrático pode constituir
Fonte: Gazeta Mercantil, 17/12/1995.
solução só pode se dar tendo em vista o seu caráter sistêmico. Entidades previstas na Constituição, as regiões
metropolitanas não se constituem, contudo, em organismos de cooperação efetiva entre os entes federativos. Estas
regiões acabaram tornando-se meras circunscrições administrativas, com as quais não se comprometem nem os
governos estaduais e tampouco os municípios que as compreendem. Em resumo, não há governos metropolitanos,
com autonomia política, administrativa e financeira para
atuar em termos de políticas públicas, assim como não há
dispositivos institucionais que incentivem a formação de
uma estrutura desse tipo por parte dos municípios.
45
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 10(3) 1996
um obstáculo à eficácia decisória, em parte devido à capacidade de constrangimento que têm as pressões exercidas sobre as autoridades governamentais, a instituição de
mecanismos de concertação com a sociedade cria condições para a redução das pressões. 6 Assim, tanto o processo decisório ocorre de forma menos turbulenta, como
a implementação das políticas encontra menores resistências.
A transformação política do município envolve, ainda, o estabelecimento de uma nova relação entre o Estado e o setor privado. Mesmo àqueles municípios que obtiveram significativos ganhos com a Constituição de 1988
– em particular as capitais –, a necessidade de não só assumir a função de welfare, mas também o estímulo ao
desenvolvimento econômico local, torna fundamental o
incremento das parcerias com a iniciativa privada. Porém,
para acrescentar recursos privados à receita municipal, é
preciso tornar republicana a relação entre os empresários
e o poder público, caracterizada historicamente por padrões patrimonialistas. Setores como os de coleta de lixo
e de transporte público são, na maior parte dos casos,
controlados nas capitais do país por seus próprios concessionários. Episódio recente na cidade do Rio de Janeiro ilustra bem essa situação. Lá, tanto o governador
Marcello Alencar como o prefeito César Maia admitiram,
resignadamente, que há um cartel de empresários de ônibus que controla as licitações públicas.7
Modificar a relação entre o empresariado local e a prefeitura, na verdade, poderia aumentar o número de interessados em realizar parcerias com o setor público, os quais
não o fazem hoje por conhecerem a forma tradicional e
excludente de relacionamento entre o setor público e a
iniciativa privada. Considerando principalmente a escassez de recursos públicos destinados ao investimento, estabelecer parcerias significa viabilizar inúmeros projetos
de interesse da sociedade.
A partir da análise das condições para a reforma do
Estado no nível municipal, constatamos que o enfrentamento do duplo desafio – o cumprimento das funções de
bem-estar e de desenvolvimento local – tende a ocorrer
de forma desigual ao longo do país. Isto, que pode parecer um truísmo, ocorre pela forma pouco cuidadosa com
que se vem realizando (ou se pretende realizar) o processo de descentralização. O debate em torno deste assunto
ou se concentrou de forma ideológica, por um lado, nas
supostas virtudes da descentralização e, por outro em seus
defeitos inatos; ou então se restringiu à discussão acerca
do caráter democrático e/ou eficaz desse processo. O que
se pretende ressaltar aqui é que, em primeiro lugar, a profunda crise financeira por que passam a União e os estados não permite mais pensar de forma realista em qualquer política de recentralização. É por isso que os
municípios assumem um papel tão relevante. Porém, em
segundo lugar, a descentralização, embora passe pelas discussões da democratização e da eficácia, tem como patamar inicial a necessidade de serem criados instrumentos
que coloquem os municípios em condições minimamente equânimes para execução das políticas que lhes são repassadas.
Os dois primeiros parâmetros da reforma do Estado
no âmbito municipal – a questão fiscal federativa e a
desigualdade econômica entre os municípios – apontam para a exigência de serem estabelecidos mecanismos de cooperação entre as unidades de governo. O fato
é que a atual escassez de recursos tem sido enfrentada
não através da cooperação, mas sim pela busca competitiva – e até mesmo predatória – de recursos. A única forma pela qual torna-se possível alterar este quadro é a institucionalização de mecanismos que incentivem
a ação cooperativa.
Para realizar uma reforma do Estado em âmbito municipal que garanta a eqüidade, é preciso fazê-la de
forma coordenada – conciliando as diferenças e carências locais, mas de um modo minimamente coerente.
A criação desses meios somente é possível através da
negociação política entre os entes federativos. É aí que
reside o maior obstáculo, pois mesmo com a retomada
da capacidade de investimento do Estado, não será
possível empreender projetos minimamente eficientes
caso não haja acordo sobre certos pontos. E, para construir tal acordo, são necessárias instituições políticas que
o permitam.
Esse problema institucional de ordem nacional também está presente no interior dos municípios. A empreitada política requer formas cooperativas e republicanas
de interação entre os agentes locais – as autoridades governamentais, o setor privado e os cidadãos de um modo
geral. A cooperação, aliás, é elemento central na viabili-
CONCLUSÃO
Demasiadamente centrado na discussão sobre os processos de mudança do aparato estatal da União, o debate acerca da reforma do Estado tem deixado de lado,
de um modo geral, o estudo da dimensão municipal
desse processo. Considerá-la sob este prisma não significa apenas transplantar para o âmbito municipal diagnósticos e soluções aplicados a outras esferas de
poder. Afinal de contas, é preciso lembrar que o Estado não se resume à sua dimensão central, de modo que
reformá-lo significa também redistribuir suas atribuições entre os três níveis de governo. Isto permite ir além
do maniqueísmo presente na opção entre Estado mínimo e Estado máximo.
46
A REDEFINIÇÃO DO PAPEL DO ESTADO NO ÂMBITO LOCAL
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
zação da reforma, uma vez que o cenário atual é caracterizado pela fragmentação, pela competição não-cooperativa, pelos padrões predatórios e pela combinação de esforços no mais das vezes precária, dentro e fora dos
municípios. E diante de um cenário como esse, o duplo
desafio dos municípios torna-se ainda maior.
ABRUCIO, F.L. Os Barões da federação: o poder dos governadores no Brasil
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reforma tributária e federação. São Paulo, Fundap, Unesp, 1995.
NOTAS
1. Segundo o Ministério Público paulista, a prefeitura de São Paulo gastou seis
vezes mais com vias públicas do que com programas sociais entre 1994 e 1995.
O novo discurso em prol da área social, adotado pelo malufismo, torna-se ainda
mais frágil quando se considera que o governo paulistano “deixou de construir
em dois anos 577 escolas previstas nos Orçamentos”, há “um déficit de 2 mil
professores e as escolas municipais não estão dando 20% das aulas previstas”,
ao passo que “em sete obras viárias foram gastos 738% a mais do que as previsões [orçamentárias]”. (Jornal da Tarde, 05/09/96:18-A).
ARRETCHE, M.T.S. “Mitos da descentralização: mais democracia e eficiência
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COUTO, C.G. e ABRUCIO, F.L. “Governando a cidade? a força e a fraqueza da
Câmara Municipal”. São Paulo em Perspectiva. São Paulo, Fundação Seade, v.9, n.2, abr.-jun. 1995, p.57-65.
2. A expressão “reinventar o governo” foi cunhada originalmente por (Osborne
e Gaebler, 1994), cujo trabalho é constituído basicamente pela análise de experiências municipais nos Estados Unidos.
3. Dados de pesquisa feita pelo economista José Roberto Afonso, do BNDES, e
publicados no jornal Folha de S.Paulo (31/08/96:1-7).
4. É importante frisar que a União não é constitucionalmente obrigada a conceder transferências negociadas aos governos subnacionais. Em virtude da atual
crise financeira por que passa o Governo federal, a diminuição do montante dessas transferências tem sido uma das estratégias adotadas para minimizar os problemas de caixa da União. No período 1988-90, a participação das transferências negociadas em relação ao PIB foi reduzida de 0,69% para 0,28% (Serra e
Affonso, 1991:40). Historicamente, essas transferências têm sido importantes
para obter apoio político no Congresso, quase sempre não obedecendo a critérios
técnicos. Muito embora tenha ocorrido a diminuição supramencionada, as características políticas ainda permanecem. Por exemplo, em 1992, os estados mais
favorecidos com as transferências negociadas foram Bahia e Pernambuco, cujos
governadores foram importantes aliados do presidente Fernando Collor de Mello
– Antônio Carlos Magalhães e Joaquim Francisco, ambos do PFL.
DAIN, S. “Visões equivocadas de uma reforma prematura”. In: AFFONSO, R. e
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FOLHA DE S.PAULO. São Paulo, 17/08/1996.
__________ . São Paulo, 31/08/1996.
GIAMBIAGI, S. “Impasse distributivo e paralisia fiscal – reflexão acerca da crise do setor público”. Planejamento de políticas públicas. Brasília, Ipea, n.6,
dezembro 1991.
IEI/UFRJ. Boletim de Conjuntura, diversos números.
JORNAL DA TARDE. São Paulo, 05/09/1996.
5. A este respeito ver Couto e Abrucio (1995).
6. Também a fragmentação de interesses existentes entre as autoridades governamentais num regime democrático de tipo consociativo (Lijphart, 1989) pode
se constituir num obstáculo à eficácia decisória. Neste caso, o estabelecimento
de formas de concertação societária pode contribuir de forma indireta, uma vez
que permite aos representantes de interesses sociais específicos formular acordos contando com um maior respaldo de suas bases.
LAGEMAN, E. e BORDIN, L.C.V. Federalismo fiscal no Mercosul. Porto Alegre, Governo do Rio Grande do Sul, Secretaria da Fazenda, 1993.
LIJPHART, A. As democracias contemporâneas. Lisboa, Gradiva, 1989.
MENDOZA, E. C. “Las políticas descentralizadoras en el ambito internacional”.
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PRALON, E.M. A assistência social e projetos de descentralização políticoadministrativo no Brasil. São Paulo, Cedec, 1996, mimeo.
SERRA, J. e AFFONSO, J.R. “Finanças públicas municipais: trajetórias e mitos”. Conjuntura Econômica. Rio de Janeiro, Fundação Getúlio Vargas,
outubro 1991.
7. O seguinte trecho de uma entrevista do prefeito César Maia dá uma demonstração desse fato (Jornal do Brasil, 09/04/1996).
“– Como o senhor avalia a influência dos empresários de ônibus no Legislativo
e no Executivo?
– A preocupação deles é maior com o Legislativo. Não querem nenhuma lei,
apenas o poder do veto.
– O senhor já tentou mudar a medida que reduziu a incidência do ISS sobre o
faturamento das empresas de ônibus?
– Já se tentou por várias vezes, mas na Câmara Municipal o jogo é pesado.
Se fizermos uma proposta dessas à Câmara, poderemos expor a instituição
ao vexame.”
__________ . “Vicissitudes dos investimentos públicos no Brasil”. Conjuntura
Econômica. Rio de Janeiro, Fundação Getúlio Vargas, março 1993.
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SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 10(3) 1996
EXPERIÊNCIAS MUNICIPAIS E
DESENVOLVIMENTO LOCAL
SILVIA REGINA DA COSTA SALGADO
Coordenadora de Documentação e Informação da Fundação Prefeito Faria Lima
A
s discussões e os debates, há poucos anos, tinham
como objeto a mudança da situação do município quanto ao seu papel no desenvolvimento do
país. Discutia-se, então, como os municípios participariam
do processo, já que o desenvolvimento deixara de estar
exclusivamente associado ao aumento do PIB, aos grandes projetos de construção de infra-estrutura básica, à
execução de obras e, sobretudo, ao crescimento da produção industrial, do comércio e do setor de serviços. Ou
seja, concluía-se que havia caído por terra a concepção
de que o crescimento econômico – sob a idéia do “desenvolvimento” – modificaria as condições de saúde, educação, habitação, transportes e outros serviços indicadores
da melhoria de vida das pessoas. Afinal, como a própria
realidade havia demonstrado, os resultados dessa concepção apontaram para uma imensa dívida social, a qual, ainda
hoje, está longe de ser resgatada.
Era comum, nesse contexto, a idéia de que o município
viria a ter função importante no desenvolvimento com a
realização de projetos de “menor porte”, o que, na prática, estaria representado pela prioridade nos investimentos
sociais como forma para sua ação: o governo municipal
deveria voltar suas atenções para a área social. Combate à
pobreza, atendimento à saúde, educação para o povo, habitação para os pobres e outros temas deveriam passar a ser,
progressivamente, a preocupação dos dirigentes municipais.
O “conceito” do desenvolvimento já não era mais o mesmo.
Era preciso também e, sobretudo, satisfazer as necessidades
básicas do ser humano. A acumulação deixava de ser, necessariamente, um indicador de desenvolvimento.
A própria Constituição de 1988, ao repartir as competências, deixou patenteado – muito mais que as anteriores – que
os municípios têm responsabilidade na prestação de alguns
serviços, bem como competência para atuar em determinadas áreas que representam maior enfoque no social.
É evidente que essa discussão não está invalidada hoje.
Porém, é apropriado, ou melhor, é atual o discurso que aposta
na administração municipal como a instância de governo que
só pode fazer aquilo que não está sujeito à interferência/decisão “de cima”. Para quem conhece um pouco (que seja!) a
vida municipal e tem compreensão da crescente complexidade que atinge a organização e o gerenciamento do município, é muito difícil praticar o raciocínio do “social”, como
ocorria há poucos anos, sem considerá-lo reducionista.
Haveria lucidez em apresentar uma atuação “limitada”
da gestão local quando ela faz parte de um mundo que assiste a progressos inimagináveis, em que temas misteriosos são
agora corriqueiros? Pode-se continuar tratando a administração do município com uma certa singeleza e muita boa
vontade, quando as telecomunicações respaldam uma “aldeia global”, muito menos romântica do que aquela descrita pelo filósofo da comunicação, há algumas décadas?
Pode-se esquecer que o mundo é, hoje, uma grande aldeia,
produto da internacionalização da economia, que promete cooperação internacional e ampliação de mercados?
Como pensar a relação do município com o desenvolvimento sem considerar situações “macro”, como o fato de
o mundo ser, hoje, feito de contrastes: a paz choca-se com
a intolerância; o progresso com a ameaça de destruição
do planeta; a riqueza com a exclusão?
UM PESO NA BALANÇA
A realidade é que o país que se acostumou a pensar
em ser o país do futuro, como já disse alguém, apresenta
indicadores econômicos que o situam entre as maiores
48
EXPERIÊNCIAS MUNICIPAIS
economias do mundo e indicadores sociais que o enquadram no conjunto dos países mais pobres da Terra. Entretanto, o país que se acostumou a pensar em ser o país
do futuro parece estar tentando enxergar os problemas sob
o enfoque do desenvolvimento humano, diferentemente
do que ocorreu até há pouco tempo. E é aí que o papel do
município pode/deve ser muito maior no que se refere ao
desenvolvimento, inclusive econômico.
O município é a instância em que se torna mais viável
a implementação de processo de gestão que gere bemestar, que permita acesso aos bens culturais, que melhore
a qualidade de vida, focalizando toda a atenção no cidadão. É no município que fica mais clara a estranha distribuição de riquezas, o papel deficiente do Estado/Poder
Público e a falta de articulação das políticas econômicas
e sociais. Foi no município que primeiramente deixou-se
de falar em confronto entre o Estado e a sociedade civil.
É nele que se tem buscado, com mais força, formas de interrelação para aumentar a capacidade de gestão efetiva.
Considerando essa situação como pano de fundo, não
se pode perder de vista que a questão do desenvolvimento econômico coloca-se para o município de maneira diferente, nesta década, implicando problemas e soluções
muito diversos daqueles que foram discutidos há pouco
tempo. Desenvolver o município, hoje, é gerenciar os
problemas fazendo frente à complexidade e à incerteza, é
melhorar a qualidade dos serviços aos cidadãos e procurar o desenvolvimento humano ao mesmo tempo em que
o econômico.
Atuar dessa forma e, simultaneamente, contribuir para
a melhoria dos mecanismos democráticos, harmonizando o que é feito com uma maior transparência, mais a
participação da sociedade civil, significa “construir” um
conjunto de ações distinto daquele praticado em outros
setores, que também estão enfrentando as atuais condições da economia. O papel do município não pode ser
revestido da pretensão de realizar o desenvolvimento. Ele
é um articulador que reconhece a existência de uma sociedade interessada na melhoria da qualidade de vida.
Nunca valeu tanto, nunca ficou tão “concreto” que se deve
repensar o modelo convencional de gestão baseado na
divisão do trabalho entre os que identificam os problemas e definem soluções e aqueles que sofrem as conseqüências de tais decisões.
Isso não significa que a administração municipal esteja isenta de suas responsabilidades e/ou possa funcionar
sem uma “profissionalização” de seus processos de gestão,
sobretudo nas questões complexas, como exercer seu papel
de articulador do desenvolvimento. Trata-se, aqui, do município assumir que houve incorporação ativa de um novo
ator social regulador nos processos econômicos tanto quanto nos processos políticos: a sociedade civil organizada.
E
DESENVOLVIMENTO LOCAL
A situação está exigindo respostas/soluções rápidas
para questões complexas e as informações sobre as experiências de gestão local, veiculadas, inclusive, pelos meios
de comunicação de massa, indicam que os poderes municipais estão compreendendo a dimensão de seu papel e
obtendo êxito em suas intervenções no desenvolvimento
local.
Considera-se, portanto, que são apropriadas algumas
reflexões sobre as denominadas experiências municipais,
que, se não são absoluta novidade, têm passado por transformações que as colocam como peso na balança da discussão “Novo Município: economia e política local”.
DESENVOLVIMENTO: DA TEORIA À
PRÁTICA MUNICIPAL
Principalmente para quem trabalha junto às administrações municipais, experiências de gestão fazem parte
do cotidiano. Estamos sempre atentos para ações que possam melhorar a administração, otimizar a máquina pública e atender às demandas. Há muito que os dirigentes
percebiam não ser possível a continuidade dos instrumentos e processos de gestão existentes em face das demandas da comunidade, que se organiza cada vez mais, e das
novas condições de comunicação geradas pelo avanço
técnico-científico e tecnológico.
O atual contexto passa a exigir novas soluções. Necessidade de reformas no plano constitucional, tributário
ou político-eleitoral tem sido debatida amplamente. Agrega-se a essa discussão a premência da introdução de práticas gerenciais diferentes, centradas na procura de qualidade e no exercício da participação. As experiências
municipais passam, sem dúvida, por aí.
Poder-se-ia dizer que as experiências municipais constituem um aspecto prático que emerge dos inúmeros debates, cujo centro é a transformação do Estado racionalista tecnocrático-autoritário em Estado democrático,
principalmente como reflexo de uma nova realidade econômica, política e social que evidencia, por um lado, o
fracasso do modelo centralizado e excludente dos regimes autoritários e, por outro, o crescente movimento de
busca de respostas que levem em consideração os “novos” objetivos do Estado, sua forma de organização e
gestão. Mas, seria este o caminho para as discussões? Seria, ainda, sob este enfoque que as ações locais e sua relação com o desenvolvimento dos municípios deveriam estar sendo apreendidas?
Até o final dos anos 70, o debate sobre a descentralização político-administrativa caracterizava-se muito mais
pela denúncia do centralismo como um aspecto do poder
autoritário do Executivo federal do que por ações concretas em favor da descentralização. É bem verdade que
49
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 10(3) 1996
a partir de 1978 podem ser observadas propostas isoladas, principalmente no Estado de São Paulo, no sentido
da adoção de alternativas ao modelo econômico vigente
e às políticas públicas distanciadas da realidade local e
decididas por tecnocratas. O processo de redemocratização, que tem as eleições diretas de 1982 como um marco,
conduziu a mudanças significativas, exigindo a descentralização e a municipalização como alternativas para a
consistência e a competência – eficácia técnica e eqüidade social – no atendimento das demandas. Porém, é discutindo a descentralização que se pode compreender as ações
locais no sentido de identificar e aproveitar a capacidade
que os municípios têm demonstrado em dar respostas ao
amplo conjunto de problemas, cujas soluções têm intervindo no desenvolvimento?
Seria, então, sob o aspecto do novo ordenamento jurídico, traduzido pela Constituição de 1988, que se poderia analisar o conjunto de experiências que têm ocorrido, uma vez
que se considere que a nova Constituição Federal definiu
caminhos para o processo de descentralização do município, definindo-o como uma esfera autônoma da Federação?
Independentemente das discussões teóricas, apesar de
não existir uma sistematização sobre o que é e como pode
ocorrer a intervenção do município numa área tão ligada
a variáveis macroeconômicas, as experiências municipais
têm demonstrado que ela tem sido empreendida, constituindo uma referência da capacidade local de dar respostas aos problemas de desenvolvimento, de colaborar com
o setor privado e com as organizações sociais e de influir
de forma significativa em ações aparentemente fora do
alcance dos governos locais, como é o caso, por exemplo, da adoção de programas que garantem uma renda
mínima, implicando mudanças na distribuição de renda.
A Fundação Prefeito Faria Lima (Cepam), que possui
como uma de suas diretrizes a promoção da qualidade de
vida das comunidades por meio de ações que propiciem
o desenvolvimento econômico-social e a melhoria das
condições ambientais, tem estado atenta para essas ações
no âmbito municipal, que contribuem para as mudanças
observadas na vida local/regional. O Cepam tem um acervo1 de experiências municipais que demonstra ter ocorrido uma transformação nos objetivos, métodos e gerenciamento dessas iniciativas. A comparação entre as
ocorrências dos anos 80 e as coletadas mais recentemente indica que hoje a instância municipal tem empreendido projetos que representam respostas às exigências contemporâneas de mudanças socioeconômicas.
Melhoria da qualidade de vida, democratização do
poder e defesa do meio ambiente constituem-se bandeiras que estão sendo assumidas com maior consistência,
gerando transformações na ação municipal. Observa-se,
primeiramente, maiores disposição e preocupação em atuar
nas políticas públicas e não apenas no pontual: a gestão
municipal na área de saúde é emblemática dessa “inovação” dos anos 90. Por outro lado, se há duas décadas discutia-se a melhoria da administração pública do ponto de
vista de sua organização, hoje a modernização dos processos gerenciais e administrativos pretende atingir objetivos mais amplos, como a eficácia na solução dos problemas e a democratização dos processos de gestão:
instrumentos como Conselhos Municipais e Consórcios
Intermunicipais são implementados nesse contexto. Um
outro aspecto que merece destaque refere-se ao foco na
chamada participação comunitária como processo – independentemente dos resultados –, que está sendo “substituído” por formas mais “amadurecidas” de cooperação
com organizações sociais e com a iniciativa privada.
Sem preocupação em “teorizar” sobre esses pontos ou
ordená-los, são apresentados, a seguir, alguns aspectos em
relação às experiências municipais.
Em primeiro lugar, por mais que se deva considerar
que ser eficiente/eficaz no atendimento das demandas seja
obrigação do poder público em qualquer esfera, não se
pode negar que a realidade brasileira fundamentou uma
prática e uma visão patrimonialistas em relação à gestão
da coisa pública, em que a “boa” ou a “má” gestão dos
negócios públicos tem sido mais relacionada ao perfil dos
que administram do que à aplicação de princípios de administração. Assim, o fato das atuais experiências de gestão caminharem para o abandono de uma cultura administrativa baseada no poder autoritário e centralizado e
na concepção da função pública “desprofissionalizada” é
uma característica a ser considerada.
Essa nova postura é fundamental para que o município possa assumir seu papel de agente articulador do desenvolvimento, principalmente se não for reduzida à idéia
de que a gestão local deve seguir “cegamente” “fórmulas” da empresa privada. Os objetivos e, sobretudo, a
missão da administração municipal são diferentes. Isso
não quer dizer que não se deva absorver métodos e técnicas de gestão que melhorem o desempenho para atender
às novas exigências, inclusive utilizando tecnologia de
informação e comunicação.
As experiências municipais têm demonstrado que existe
preocupação em atender a princípios como racionalização das atividades em função da presteza, da eficiência e
da economia de tempo e dinheiro; planejamento de atividades que atendam às peculiaridades locais; identificação da melhor forma para execução de obras e serviços
públicos; adoção de esquemas para prestação de serviços
públicos visando maior eficiência e redução de custos
operacionais; e outros fatores que distinguem o processo
de gestão dos municípios e facilitam seus procedimentos
como agente promotor de desenvolvimento.
50
EXPERIÊNCIAS MUNICIPAIS
Outra “lição” proporcionada pelas iniciativas locais
refere-se ao fato de que a administração municipal está
ultrapassando os limites das chamadas atribuições próprias – muito mais ligadas a serviços de “maquiagem” urbana – e assumindo questões de maior complexidade, que
também “lhes” são próprias. Exemplo disso são experiências significativas na área do abastecimento: das mais simples, como a feira do produtor, às mais complexas – algumas envolvendo produção, circulação, transformação,
comercialização e consumo. A relação direta entre o consumidor e o produtor melhora a qualidade de vida das
comunidades urbana e rural, interferindo, inclusive, na
distribuição de renda.
O abastecimento começa a ser concebido como componente da política de desenvolvimento municipal, que é
responsável pelas funções sociais das cidades e pela garantia do bem-estar de seus habitantes. Tende a passar a
ser foco da administração municipal, que tem autonomia
para legislar sobre ele e geri-lo, de forma complementar
às esferas estadual e federal, como ocorre com qualquer
outro assunto de interesse local. As experiências estão
evoluindo no sentido de não considerá-lo exclusivamente como um problema social de alimentação, mesmo que
se reconheça que grande parte da população tem acesso
ineficiente aos alimentos básicos pelos mecanismos de
mercado. Para muitos municípios, a combinação entre as
políticas de abastecimento e as medidas de apoio à produção agrícola local, por exemplo, está significando intervenção de impacto no desenvolvimento.
A atuação local na área do abastecimento é apenas um
dos inúmeros exemplos de intervenções que indicam a
ampliação de ações que estão contribuindo com o
desenvolvimento local/regional. É importante salientar,
inclusive, que há um declínio da idéia de que desenvolvimento econômico é a industrialização. Parece haver
reconhecimento de que muitos dos “negócios” atraídos
aos municípios estão mais ligados ao aumento do lucro
das empresas do que à geração ou ampliação da renda da
comunidade. Agricultura, comércio ou atividades turísticas passam a ser identificadas como “vocações” possíveis
de serem aproveitadas, sendo que o acesso ao emprego e
a distribuição de renda são fatores cada vez mais
considerados na perspectiva de melhoria da qualidade de
vida. Isso cria programas de geração de emprego e renda
que apóiam o trabalho de forma autônoma, em cooperação,
ou mesmo as empresas familiares de produção de bens e
serviços, fortalecendo a economia local.
Nesse contexto, tem surgido também um outro enfoque para a preservação do meio ambiente como fator de
desenvolvimento. Ainda de forma discreta, as experiências têm apresentado ações que contabilizam os custos da
degradação ambiental e atuam no sentido de evitá-la. Por
E
DESENVOLVIMENTO LOCAL
outro lado, há iniciativas específicas de projetos de defesa do meio ambiente marcados, principalmente, pelo fato
de o município estar sendo “pensado” além de sua limitação geográfica: bacias hidrográficas são adotadas como
unidade físico-territorial de planejamento e gerenciamento
e o consórcio intermunicipal passa a ser o principal instrumento dessas iniciativas.
O objetivo, aqui, é “enxergar” o papel do município
no desenvolvimento – conceituado além da visão economicista –, a partir das experiências municipais. Muitos
outros aspectos poderiam ser elencados (ou melhor, deveriam!), mas, para finalizar, é importante apontar a
característica principal dessas iniciativas: apresentam uma
comunidade com papel mais ativo frente à agenda pública. Ou seja, elas passam pela inserção de conceitos como
ator social e parceria e pelo fortalecimento da idéia do
poder público como um dos agentes do desenvolvimento
local, que deve ser, para maior eficácia, compartilhado
por toda a comunidade.
O projeto deve envolver desde outras instâncias de
governo que atuam no espaço local até representações
organizadas da sociedade civil, passando por instituições de pesquisa, empresários, etc.
“Olho clínico” para identificar as carências/necessidades e as potencialidades/viabilidades é meio caminho para
obtenção de parcerias nos mais diversos níveis – é o que
“ensinam” as experiências. As parcerias, nessas iniciativas, não têm como finalidade apenas obter recursos.
Muitas vezes, a parceria não está só na implantação/construção de um empreendimento, mas também em seu funcionamento e continuidade. O estabelecimento de parceria pressupõe que haja benefícios para a totalidade de
parceiros e demonstra que o setor público é capaz de ter
credibilidade e atrair a iniciativa privada como forma de
captar recursos e transformá-los em serviços.
SEM PASSE DE MÁGICA
Seria, no mínimo, ingênuo considerar que os governos municipais estejam produzindo interferências que
mudem completamente as condições locais, principalmente no que se refere à economia, fazendo desaparecer os
problemas da vida dos cidadãos. A crise é profunda e,
entre outras conseqüências, diminui os possíveis investimentos do poder público e tem impacto determinante
na questão da geração de emprego e renda. No entanto, é inegável que há ações que promovem o desenvolvimento e buscam a melhoria de condições de vida da
população, transformando a relação de dependência do
social ao financeiro e, ao mesmo tempo, procurando
implantar formas de intervenção no desenvolvimento
econômico.
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SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 10(3) 1996
NOTAS
Fatores como os citados são diferenciais que precisam
ser compreendidos no conjunto de iniciativas que oferecem soluções aos problemas de desenvolvimento local e
regional. É importante que esses subsídios sejam difundidos, ampliando, ao máximo, a ocorrência de ações que
melhorem o desempenho local e regional em questões que,
há pouco tempo, estavam totalmente atreladas ao sistema
macroeconômico.
As práticas municipais têm ocorrido continuamente,
sendo que conhecê-las, ao se buscar soluções para os problemas, pode levar ao maior êxito na resolução das questões de desenvolvimento local/regional, incluindo o econômico. Talvez não seja exagero dizer também que essas
ações “localizadas” colocam-nos mais aptos como Estado, como Federação, a enfrentar, inclusive, o tal sistema
econômico mundial, bem como alimentam nossa capacidade de interagir com o mundo no contexto da globalização.
1. Base de Dados: Rede de Comunicação de Experiências Municipais – Recem.
Neste ano, está sendo realizada coleta de informações das gestões 1993-1996,
que deverá resultar em catálogo a ser divulgado para as próximas gestões. A
Fundação Getúlio Vargas, que realizou, neste ano, o Concurso Gestão Pública e
Cidadania, e o Instituto Polis também possuem Banco de Dados de Experiências
de Gestão.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
DOWBOR, L. “Governabilidade e descentralização”. Revista do Serviço Público. Brasília, Enap, v.118, n.1, jan./jul. 1994, p.95-117.
JEHA, R. “O novo estado, gestão e governabilidade”. Revista do Serviço Público. Brasília, Enap, v.118, n.3, set./dez. 1994, p.59-63.
LOBO, T.L. “Descentralização: cenários e perspectivas”. Revista do Serviço
Público. Brasília, Enap, v.118, n.3, set./dez. 1994, p.123-127.
SILVA, S. “Descentralização e cidadania: desafio do poder local”. Revista do
Serviço Público. Brasília, Enap, v.118, n.3, set./dez. 1994, p.129-136.
FIGUEIREDO, R. e LAMOUNIER, B. As cidades que dão certo: experiências
inovadoras na administração pública brasileira. Brasília, MH Comunicação, 1996, p.214. (As cidades que dão certo, 1).
52
DESENVOLVIMENTO LOCAL: UMA ALTERNATIVA PARA A CRISE SOCIAL?
DESENVOLVIMENTO LOCAL
uma alternativa para a crise social?
SILVIO CACCIA BAVA
Sociólogo, Diretor do Pólis, Presidente da Associação Brasileira de Organizações Não-Governamentais
O
último encontro promovido pelas Nações Unidas para debater uma agenda social – o Habitat
II – fecha um ciclo de discussões que têm por
pano de fundo um processo de globalização dominado pela
integração mundial de mercados e pela progressiva deterioração da qualidade de vida que afeta os cidadãos, tanto nos países centrais do capitalismo quanto no hemisfério sul. Evidentemente, são diferentes os patamares de
direitos sociais reconhecidos no norte e no sul.
Esse processo de integração de mercados e de exclusão social é marcado também por uma tendência de urbanização que se mostra mais intensa justamente onde a
pobreza é mais acentuada: no hemisfério sul.
A problemática que se configura nesse cenário é a de tentar
garantir uma qualidade de vida que assegure formas solidárias de sociabilidade e de dignidade a todos os cidadãos,
principalmente àqueles que hoje encontram-se destituídos
de direitos e ameaçados pelos males decorrentes da pobreza.
cente urbanização, alguns eventos preparatórios da reunião de Istambul sugerem os limites e as possibilidades
presentes nesse debate.
A reunião internacional realizada no Recife e patrocinada pela ONU 1 trouxe especialistas de todos os continentes para debater as alternativas de combate à pobreza
urbana no cenário da globalização. O encontro deliberadamente evitou as discussões relativas às causas da pobreza urbana, buscando identificar, a partir de experiências pontuais e localizadas, exemplos de como as
iniciativas de governos locais associadas à participação
da sociedade civil podem enfrentar os problemas da exclusão social e da pobreza.
Uma contradição está presente nessa reunião: um organismo internacional integrado por governos nacionais
não pode atribuir a esses a responsabilidade pela execução de políticas que são geradoras da pobreza e da exclusão social.
Como resultado da reunião do Recife, surge a proposição de que cabe aos governos locais o maior papel no
combate à pobreza e à exclusão social. Arrolando um
conjunto de sugestões que incluem o fortalecimento do
processo de descentralização, o chamamento à participação da sociedade civil e o intercâmbio de experiências e
best practices que possam generalizar-se a partir de redes de informação, passa-se a atribuir às prefeituras um
novo papel, que tem uma marcada visão assistencialista,
orientada para uma ação pontual e dirigida aos principais
bolsões de pobreza nos seus municípios. Programas de
geração de emprego e renda, ações de solidariedade no
combate à fome, investimentos em infra-estrutura urbana, etc. aparecem como o novo caminho de resgate da
dignidade dos cidadãos.
UMA AGENDA EMERGENTE
NO CENÁRIO INTERNACIONAL
Na passagem dos seus 50 anos de existência, as Nações Unidas tentam construir uma agenda social mundial
e chamar para si um novo papel, centrado na procura de
novos paradigmas para o desenvolvimento. A busca desse objetivo ocorre por meio da realização das cúpulas
mundiais, que se iniciaram com a Rio 92, passando pela
discussão de temas como população, direitos da mulher e
desenvolvimento social e se encerram agora, na reunião
do Habitat II, em Istambul.
Tomando como referência a discussão sobre as alternativas de desenvolvimento nesse cenário mundial de cres-
53
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 10(3) 1996
Curiosamente, não há qualquer menção às responsabilidades dos governos nacionais no que diz respeito a
políticas tão importantes como a de emprego, previdência, assistência à saúde, educação e relações de trabalho.
Outra reunião preparatória ao Habitat II, realizada em
Miami e promovida pelo Banco Mundial,2 congregou um
importante conjunto de prefeitos da América Latina. Também nesse encontro os efeitos sociais perversos do processo de globalização são reconhecidos. Aprofunda-se a
discussão da revolução tecnológica que dispensa um volume cada vez maior de mão-de-obra, reconhece-se a incapacidade crescente dos Estados nacionais de implementarem políticas públicas que garantam a qualidade de vida
de todos os cidadãos, além da continuidade na América
Latina de um processo intenso de urbanização, com todas as implicações de deterioração do meio ambiente,
colapso nos serviços públicos, aumento da violência e da
criminalidade, desagregação do tecido social e das formas
de solidariedade no âmbito da sociedade civil.
Novamente o diagnóstico identifica os efeitos, mas não
são discutidas as causas do aprofundamento da crise social. Algumas poucas vozes que identificam, por exemplo, a questão do pagamento da dívida externa dos países
do sul aos países do norte como um dos problemas geradores dessa crise não encontram eco no conjunto dos prefeitos e nos representantes do Banco Mundial.
Como resultado desse encontro, tem-se a indicação de
que cabe ao Banco Mundial e aos organismos multilaterais de financiamento desenvolver linhas de crédito direto aos municípios, no sentido de reforçar sua capacidade
de enfrentar os desafios que lhes são crescentemente atribuídos em face da desobrigação dos Estados nacionais no
que diz respeito aos direitos sociais. Além dessa importante indicação, novamente se vê a preocupação em destacar as best practices e a capacidade de inovação dos
governos municipais em seus novos papéis.
Estes eventos preparatórios ao Habitat II já indicam
os resultados de Istambul. Discussões que se iniciaram
na Rio 92 reafirmam a importância de se buscar internacionalmente novos paradigmas para o desenvolvimento,
mas que é ainda entendido como crescimento econômico. Tais discussões também reforçam a perspectiva da
descentralização, que transfere dos governos centrais para
os governos locais a responsabilidade de gestão do habitat. Além disso, reafirmam uma perspectiva de tratamento pontual dos problemas sociais a partir dos municípios,
novamente negligenciando que esses problemas são gerados por uma lógica que escapa à governabilidade das
prefeituras.
Discussões como a que questiona se o direito à moradia é um direito humano ou não, que podem parecer bizarras à primeira vista, têm sua razão de ser. Em países
como os Estados Unidos e o Japão, o reconhecimento
formal desse direito possibilitaria a todo cidadão requerer que o Estado efetivamente lhe garantisse um teto.
O saldo desse encontro mundial foi uma declaração de
direitos, indicativa para os governos nacionais, sustentada basicamente pelos países do hemisfério sul. É de se
notar que, como bem observou Fidel Castro em seu discurso na ocasião, os chefes de Estado do G-7 – os sete
países mais ricos do mundo – não se fizeram presentes ao
evento.
Este conjunto de observações tem sua utilidade para
tentar situar as razões pelas quais o tema do desenvolvimento local ganha destaque no plano internacional e passa a constituir ponto importante das agendas das agências multilaterais e nacionais de desenvolvimento.
O modelo atual de organização global dos mercados e
da produção desconhece a importância de uma agenda
social. Esse fenômeno pode ser identificado também na
organização do Mercosul, que se estrutura a partir de tratados de livre comércio sem atentar para os efeitos sociais que sua implementação está a gerar. O que resulta
desse modelo é um projeto de reforma dos Estados nacionais que busca eximi-los das responsabilidades de atender conquistas sociais que se afirmaram como direitos
universais, consagrados inclusive na nossa Constituição.
Um dos traços dessa conjuntura e da hegemonia do pensamento neoliberal é que se vive sob o signo de um processo de destituição de direitos sociais.
Analisando os processos de descentralização ocorridos recentemente na América Latina, verifica-se que ainda é muito pequeno o repasse dos recursos federais e estaduais para que os municípios possam desempenhar os
novos papéis que lhes são atribuídos (Oficina Regional
para América Latina y El Caribe, 1995). Dessa perspectiva, a proposta do desenvolvimento local pode ser entendida como uma transferência de responsabilidades sem o
correspondente suporte financeiro e de capacidade de
gestão.
Uma leitura possível desse processo é que os Estados
nacionais passam a transferir a gestão do conflito social e
das carências para os governos municipais. Reconhece-se
assim como inexorável um sacrifício da qualidade de vida
decorrente do processo de globalização, a destituição de
direitos sociais e a deterioração da qualidade de vida.
O corte nos gastos públicos sociais e a destituição de
direitos provocam reações da parte da sociedade civil,
principalmente dos setores organizados que representam
as camadas mais pobres da população. Para impor uma
reforma do Estado com esse caráter, os governos nacionais confrontam-se com os movimentos sociais e buscam
a deslegitimação dos atores sociais coletivos, que representam os distintos interesses e demandas sociais. Dessa
54
DESENVOLVIMENTO LOCAL: UMA ALTERNATIVA PARA A CRISE SOCIAL?
forma, compreende-se a recusa, por parte dos governos,
da instituição de espaços públicos de negociação. Temse, portanto, outra característica da conjuntura: a fragmentação do espaço público e o retrocesso democrático.
É preciso reconhecer que esta situação poderia ser outra
se o projeto de desenvolvimento estivesse centrado na
busca do bem-estar e da participação dos cidadãos. Ao
Estado caberia disciplinar o processo de acumulação do
capital, garantir direitos sociais, e, frente à situação atual,
promover uma política redistributivista, capaz de enfrentar os problemas sociais.
Apenas para ilustrar a amplitude das possibilidades de
que o governo federal dispõe se quiser enfrentar esses
problemas, com apenas 0,8% do PIB eliminar-se-ia a pobreza absoluta no país. Utilizando como referência a renda nacional, isto significaria transferir cerca de 12% da
renda dos 10% mais ricos para atender aos mais pobres
(Camargo, 1995). Os 32 milhões de miseráveis que o mapa
da fome produzido pelo Ipea identificou superariam essa
condição, passando a ter o suficiente para sobreviver.
Mesmo na aplicação dos escassos recursos destinados
à área social, pode-se observar o tratamento privilegiado
das elites. Em recente estudo do Banco Mundial sobre a
pobreza no Brasil, suas conclusões são de que “todo o
sistema é enviesado em favor dos mais ricos... dividindose a população em cinco fatias, conforme a renda, a mais
pobre fica com 16% dos gastos, a segunda com 18%, a
terceira com 20%, a quarta com 22% e a quinta com 24%”
(Pinto, 1996). Se já não bastasse a distribuição desigual
que favorece justamente aqueles que menos necessitam,
os cortes no orçamento federal não deixam dúvidas quanto
aos propósitos do governo. De 1989 a 1993, os orçamentos das áreas de educação e saúde foram cortados, em
valores absolutos, em 27% e 22%, respectivamente. Entretanto, quando considerados como porcentagens do PIB,
seus valores foram reduzidos à metade nesse período.
O Plano Real melhorou um pouco a posição relativa
dos mais pobres. De setembro de 1994 a setembro de 1995,
os 50% mais pobres aumentaram 1,2% sua participação
na renda nacional e os 20% mais ricos perderam 2,3%.
Porém, considerando a concentração de renda nos anos
90, “o resultado líquido foi uma brutal deterioração dos
níveis de pobreza” (Revista Veja, 06/03/96). No que diz
respeito às políticas sociais, os dados de 1995 indicam
um maior investimento nessas áreas, mas ainda muito
aquém do que o governo federal destinou à saúde e à educação no final da década de 80.
Em recente discurso proferido no México, o presidente
Fernando Henrique Cardoso, analisando as conseqüências
da globalização, diz que não somente esse processo é inevitável, como “também são inevitáveis suas conseqüências, seus desastres, a exclusão e a regressão social. Nessa
situação, não surpreende que sua conclusão seja uma frustração. O presidente descreve uma pré-catástrofe, mas não
esboça um plano para evitá-la. Sua sugestão é ‘revitalizar
os valores do humanismo’. Outra proposta é ‘retomar os
AS CONSEQÜÊNCIAS SOCIAIS DO PROJETO
DE DESENVOLVIMENTO BRASILEIRO
O modelo de desenvolvimento que o Brasil implementa,
e que agora entra em sua fase de ajuste estrutural e de
maior integração ao processo de globalização das atividades econômicas e dos mercados, é de uma modernização perversa. Na busca de maior produtividade e competitividade internacionais, aprofunda a dualização de nossa
sociedade, a concentração da riqueza e a disseminação
da pobreza, o desemprego estrutural, a exclusão social, a
degradação ambiental, a perda das identidades culturais
da população, entre tantas outras nefastas conseqüências
para as maiorias.
Tomando como referência a dimensão do trabalho,
vive-se o impacto de transformações de ordem internacional que, combinadas com a violação histórica de direitos sociais, produzem uma situação que coloca o Brasil entre os mais injustos e desiguais países do mundo. O
desemprego hoje, mais do que os baixos salários, é a maior
preocupação do trabalhador brasileiro.
Dados gerais sobre o mercado de trabalho no Brasil
mostram uma contração brutal do emprego industrial. De
1989 a 1995, de cada quatro trabalhadores na indústria,
um foi demitido. Os postos de trabalho reduziram-se em
26% neste setor. Atualmente, os trabalhadores no mercado informal já são 57% do conjunto dos trabalhadores
brasileiros (Campos, 1996).
Ao se tomar a indústria automobilística como referência, verifica-se que sua produção, nos últimos dez anos,
aumentou em 54,8%, enquanto o número de empregos
diminuiu 15,2%. Processos semelhantes ocorreram também no setor de serviços, em que os grandes bancos privados nacionais, por exemplo, ampliaram enormemente
seus serviços, reduzindo nesse mesmo período seus postos de trabalho em mais de 40%. O aumento do desemprego, no entanto, não impede que, nas cadeias produtivas da indústria automobilística, por exemplo, se utilize
intensivamente o trabalho infantil. As crianças compõem
22% da força de trabalho em nosso país.
Em razão dessa lógica que impõe as razões de mercado e da fragilidade dos atores coletivos populares na defesa de seus salários e condições de trabalho, esta é a região do mundo, à exceção da China, que apresenta a maior
margem de lucro bruto para as empresas (Singer, 1995).
Como conseqüência deste processo, magnificam-se os
problemas sociais.
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SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 10(3) 1996
valores comunitários’ e também ‘recriar uma ética da solidariedade’, retomar ‘utopias parciais’. É difícil encontrar alguém que não aprecie a solidariedade e o humanismo. Mas é impossível imaginar que um sociólogo cultive
isso como saída, muito menos como ‘utopia parcial’. São
palavras, além de ocas e vãs, tenebrosas, já que o pressuposto, devidamente oculto, é uma visão excludente dos
excluídos que afirma que a miséria e o padecimento dos
humildes não têm solução na política” (Leite, 1996).
O programa de reformas encaminhado ao Congresso
por FHC ratifica e consolida a proposta de ajuste estrutural de nossa economia defendida pelo FMI e traz consigo
a decisão de aceitar o alto custo social decorrente dessas
medidas.
conquista (ativa) de uma pessoa – é o que ela consegue
fazer ou ser, e qualquer efetivação reflete uma parte do
estado dessa pessoa. As efetivações podem variar desde
as elementares (vitais), como alimentar-se adequadamente
e evitar doenças ou mortalidade precoce, até as mais complexas, como desenvolver o auto-respeito, participar da
vida da comunidade ou apresentar-se em público sem se
envergonhar. A vida é entendida como a combinação de
várias atividades e modos de ser. A capacidade reflete a
liberdade pessoal de escolher entre vários modos de ser/
viver.
O desenvolvimento é, então, “a expansão das capacidades humanas de efetivar formas de existência e de atividade. O objeto da ação pública pode ser entendido como
a ampliação da capacidade das pessoas de serem responsáveis por atividades e estados valiosos e valorizados”
(Amartya, 1993).
CIDADANIA E OS NOVOS PARADIGMAS
DO DESENVOLVIMENTO
As críticas ao modelo neoliberal de reforma do Estado
reconhecem na esfera estatal um papel redistributivista e
regulador dos conflitos sociais que a lógica do mercado
jamais seria capaz de realizar.
“Pretende-se uma visão de desenvolvimento que coloque o ser humano e os interesses coletivos e das maiorias
como ponto central, convergindo para a possibilidade de
potencialização das capacidades de todos os indivíduos”
(Dowbor, 1995).
Assumir essa definição implica reconhecer a necessidade da regulação democrática da sociedade na defesa de
direitos sociais universais que devem ser garantidos pelo
Estado e que não se resumem ao atendimento de carências materiais. Ao alargar o exercício da cidadania, as
necessidades sociais são formuladas pelos próprios atores do processo de desenvolvimento e não se circunscrevem ao atendimento das demandas sociais básicas.
“A dinâmica democrática não está unicamente, nem
fundamentalmente, centrada na resolução de demandas
sociais, mas sim na criação destas demandas. Uma modalidade de regulação política democrática se sustenta no
princípio de que o universo das necessidades sociais não
está fechado, mas sim aberto” (Marsiglia, 1995). Dessa
perspectiva, a cidadania é um processo em permanente
construção, que amplia suas demandas a partir do patamar de conquistas sociais já consolidado. É, portanto, um
processo histórico, datado no tempo e no espaço.
Segundo Amartya Sen (1993), “o desenvolvimento tem
por objetivo último melhorar os tipos de vida que os seres humanos estão vivendo. Tanto em teoria quanto na
prática o desenvolvimento deve ser definido em relação
àquilo que os seres humanos podem ser e devem fazer.”
Sen utiliza o termo efetivações para designar os diferentes modos de ser e atividades. Uma efetivação é uma
CIDADANIA E DESENVOLVIMENTO LOCAL
A discussão sobre um modelo alternativo de desenvolvimento que possa se contrapor ao atual modelo neoliberal talvez seja um dos maiores desafios de nossa época.
Envolve um complexo campo de relações e competências,
que requerem a combinação de políticas de âmbito nacional com projetos de desenvolvimento regionais e locais. Por essas razões, muitos não acreditam na possibilidade de realização de projetos de desenvolvimento local,
considerando as atuais determinações das políticas nacionais insuperáveis.
Essa visão crítica, que se baseia em uma análise macro da dinâmica de nossa economia e sociedade, desconhece um importante conjunto de iniciativas de governos
municipais e mesmo de consórcios intermunicipais que,
ao promoverem a melhoria da qualidade de vida e a valorização da ação cidadã, estão contribuindo também para
a constituição de novos atores coletivos e espaços públicos de negociação.
As reformas estruturais de âmbito nacional orientadas
para atender aos interesses coletivos e das maiorias são
ações desestabilizadoras do status quo, que necessitam
de atores sociais coletivos e alianças políticas com tamanha força e capacidade de mobilização que não surgem
nem se constituem da noite para o dia.
São de extrema relevância para esse processo de transformação social as práticas cotidianas de defesa da cidadania, o fortalecimento dos atores sociais coletivos enquanto agentes promotores do desenvolvimento, o
processo de descentralização das políticas públicas, o fortalecimento dos municípios enquanto esferas autônomas
de governo, etc. E isso em um duplo sentido: tais ações
articulam iniciativas que permitem uma efetiva melhora
56
DESENVOLVIMENTO LOCAL: UMA ALTERNATIVA PARA A CRISE SOCIAL?
na qualidade de vida dos cidadãos, ainda que sejam melhorias de um reduzido impacto social, e são também uma
escola de cidadania.
“As inovações na gestão municipal se devem à crise
do Estado de Bem-Estar e a uma atitude de maior
protagonismo de distintos atores da sociedade civil, desde empresários até distintas organizações de base territorial vinculadas a questões como moradia, saúde, consumo, recreação, etc. A dinâmica da descentralização em
nosso país é fundamentalmente o resultado da emergência de novos atores políticos paralelamente ao progressivo enfraquecimento da capacidade governativa do governo
federal” (Draibe e Arretche, 1995).
O fato é que os municípios já começam a enfrentar o
desafio de atender urgências sociais que transcendem, por
suas características, as intervenções limitadas e pontuais
que assumiam anteriormente. Os problemas de habitação, saúde, educação, emprego, alimentação, etc. começam a constituir preocupações cotidianas de muitas
prefeituras. As soluções que estão aparecendo, as iniciativas inovadoras que partem de governos municipais e os consórcios de municípios comprometidos
com os interesses das maiorias, que em muitos casos
incorporam a participação da sociedade civil, são uma
demonstração de que a questão do desenvolvimento,
vista de uma nova forma, não é de domínio exclusivo
do governo central nem está determinada por uma lógica nacional que desconhece as oportunidades locais
e neutraliza a ação cidadã.
É de se notar, no Brasil, a constituição de órgãos coletivos de representação de prefeitos e secretários municipais – Frente Nacional de Prefeitos, Fórum Nacional de
Secretários de Finanças, etc. –, que passam a negociar
coletivamente com outras instâncias governamentais, assumindo compromissos de fortalecimento da democracia
e da cidadania. Isso vem sensibilizando um número cada
vez maior de municípios para experiências exitosas, como
a do Orçamento Participativo.
“Os governos locais, em boa medida, entendem tradicionalmente sua função como uma fiscalização de normas que definem um projeto físico de cidade. Será fundamental transformar esta atitude burocrática controladora
por uma de promoção do desenvolvimento, mobilizadora
e de articulação de atores em prol de objetivos dinâmicos, entendendo que a construção da cidade é uma tarefa
permanente que requer o concurso e a participação da
cidadania e de todos os atores relevantes.” (PGU, 1995).
O tema do desenvolvimento local, por definir uma base
territorial, já chama a atenção para a questão das particularidades. Ao se considerar por local a menor unidade
política da federação, tem-se então que a base territorial
é o município.
A REALIDADE DOS MUNICÍPIOS BRASILEIROS
Hoje, no Brasil, de cada quatro pessoas, três vivem nas
cidades. O intenso processo de urbanização continua a se
afirmar como tendência. A população urbana passou de
50%, em 1970, para 75%, em 1991, esperando-se que no
ano 2000 atinja a marca dos 80%.
Nesse mundo urbano brasileiro – que compreendia cerca de 5 mil cidades em 1992 –, os espaços que mais crescem são os municípios médios e as periferias das regiões
metropolitanas.
A concentração populacional nas regiões metropolitanas é um fenômeno que tende a diminuir, mas já é extremamente elevada. Nas nove regiões metropolitanas existentes, vivem 43 milhões de pessoas, 29% do total de
brasileiros e 40% da população urbana. São 187 os municípios com mais de 100 mil habitantes, dos quais 55 integram as regiões metropolitanas. Embora representem apenas 4% do total, abrigam 48% da população brasileira.
As cidades com menos de 50 mil habitantes representam
90% do total de municípios e abrigam 36,2% do conjunto das famílias brasileiras.
Em 1989, 40% dos domicílios urbanos eram habitados por famílias pobres, sendo que 3,2 milhões de domicílios estavam abaixo da linha da pobreza absoluta (12,5%)
e, portanto, tinham suas necessidades básicas insatisfeitas; 5,4 milhões (21%) concentravam a pobreza recente,
ou seja, aquelas pessoas que, apesar da insuficiência da
renda, tinham alguma ou todas as necessidades básicas,
além da alimentar, satisfeitas; 1,6 milhão de domicílios
(6,3%) abrigavam famílias que, apesar de estarem acima
da linha da pobreza, encontravam-se em insuficientes condições básicas de vida. Nas cidades com menos de 50 mil
habitantes, concentravam-se 54,6% do total das famílias
indigentes brasileiras. Ao todo, eram cerca de 45 milhões
de brasileiros vivendo nos limites ou abaixo da linha da
pobreza nas cidades.
A pobreza é um fenômeno que se disseminou na sociedade e hoje é distribuída de maneira equilibrada entre o
meio urbano e o rural, com tendência a se concentrar na
zona rural nordestina e periferias das regiões metropolitanas e com incidência mais forte nos pequenos municípios.3
Há, além da renda, outros indicadores que permitem
identificar a deterioração da qualidade de vida nas cidades:
condições de moradia; quantidade e qualidade da oferta
de equipamentos e serviços públicos de caráter coletivo –
como os serviços de transporte, saneamento básico, coleta de lixo, saúde e educação –; violência urbana;
congestionamento de trânsito; contaminação hídrica,
atmosférica e sonora; destruição dos recursos naturais; desintegração social; desemprego; perda da identidade cultural
e da produtividade econômica; ingovernabilidade, etc.
57
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 10(3) 1996
Considerando-se que 75% da população brasileira é urbana e que a dinâmica do desenvolvimento local se define a
partir do locus e das condições em que vivem as pessoas,
um novo paradigma de desenvolvimento só pode ser construído se for assumida como central a vida nas cidades.
na qual se assenta o sentido de pertencimento das pessoas em relação à cidade, isto é, o sentido de cidadania
(Alva, 1995).
O grande desafio está em estabelecer uma relação entre a cidade subjetiva (o desejo, a utopia) e as condições
reais de produção e reprodução da vida em cidades concretas, com problemas particulares.
É importante assumir que o desenvolvimento local é
endógeno, nasce das forças internas da sociedade; ele
constitui um todo, com dimensões ecológicas, culturais,
sociais, econômicas, institucionais e políticas, sendo que
a ação a seu serviço deve integrar todas essas dimensões.
Qualidade de vida, socialização do poder, distribuição de
renda e acesso aos serviços públicos e aos benefícios da
tecnologia precisam ser considerados de forma integrada
(Araújo, Medeiros e Pontes, 1995).
Para construir propostas de intervenção, isto é, operar
no campo das políticas públicas, não basta o desejo, a
utopia. É preciso promover o diagnóstico das situações
concretas, reconhecer o que Franklin Dias Coelho chama
de espaço herdado, ou seja, as identidades regionais, a
história, o padrão de organização do território, a divisão
inter-regional do trabalho, as desigualdades sociais existentes, etc. (Coelho, 1995).
O que se destaca num projeto de desenvolvimento local é a possibilidade, por um lado, de articular, a partir de
iniciativas dos governos locais, um conjunto heterogêneo
de forças sociais locais em torno de um projeto comum e,
por outro, de direcionar essa energia para o aproveitamento
das oportunidades locais, viabilizando a produção de
specialities, eliminando atravessadores, estimulando micro e pequenas empresas, formas cooperadas de produção e comercialização de produtos e serviços, enfim, articulando e estimulando uma série de iniciativas que abram
novas oportunidades de trabalho, distribuição de renda,
mercado.
É importante identificar o município como essa unidade política que atua sobre uma base territorial por conta da questão da governabilidade. Um projeto de desenvolvimento local, que articule e mobilize os atores do
desenvolvimento, precisa se apoiar nas iniciativas da sociedade civil, mas necessita do estímulo e da articulação
dos governos locais para se viabilizar.
O DESENVOLVIMENTO LOCAL COMO
PROJETO DE MUDANÇA SOCIAL
O tema do desenvolvimento local está sendo elaborado, ultimamente, como uma possível resposta ao aprofundamento da dualização e da exclusão social no país. Essa
discussão é difícil e complexa porque envolve projetos
políticos em disputa, começando pela própria noção de
desenvolvimento, passando pela reforma do Estado e descentralização e terminando pela discussão dos limites e
competências dos governos locais. Seu ponto nevrálgico,
de uma perspectiva democrática, está no fato de que ela
toca a questão da concentração da propriedade e da renda. Até agora, as forças conservadoras que continuam
controlando este país não se dispuseram a viabilizar – a
partir do Estado – políticas redistributivistas.
Na verdade, os projetos de desenvolvimento que existiram até hoje submeteram a ação do Estado aos interesses privados e predatórios de distintos setores das classes
dominantes, cada um à sua época, imprimindo suas marcas na configuração da sociedade brasileira. Os governos
locais foram – e continuam sendo, em sua avassaladora
maioria – instrumentos de apropriação privada do espaço
público e de manutenção das oligarquias regionais e municipais no poder.
O tema do desenvolvimento local ganha importância
no cenário de redemocratização do país como uma alternativa de intervenção articulada de novos atores sociais e
políticos na reorientação da ação do Estado, no sentido
de atender aos objetivos de construção da cidadania e da
melhoria da qualidade de vida dos brasileiros. Nesse sentido, coloca-se como um novo patamar de um processo de
lutas sociais.
Trata-se de um esforço de mobilização de energias sociais que sejam capazes de enfrentar, de uma maneira combinada, por um lado, as violações históricas dos direitos sociais e, por outro, as conseqüências do ajuste estrutural da
economia brasileira e da reforma neoliberal do Estado.
CIDADE E CIDADANIA
OS VÁRIOS SIGNIFICADOS POSSÍVEIS DO
PROJETO DE DESENVOLVIMENTO LOCAL
Pensadores modernos como Italo Calvino e Félix
Guatari falam de uma cidade subjetiva que cada um leva
dentro de si e que se acomoda ou se rebela em contato
com a cidade objetiva construída pela sociedade, tocando assim a delicada relação subjetividade-objetividade,
O fato de o tema desenvolvimento local estar em evidência não significa que haja uma compreensão unívoca
em torno do seu sentido. Das discussões internacionais,
pode-se depreender uma expectativa de que, com a reforma neoliberal do Estado – que supõe o colapso da capa-
58
DESENVOLVIMENTO LOCAL: UMA ALTERNATIVA PARA A CRISE SOCIAL?
cidade de os Estados nacionais suprirem as demandas
sociais – possa se transferir essa responsabilidade para os
municípios. A timidez, entretanto, com que se promovem
os processos de descentralização, seja do ponto de vista
da governabilidade dos projetos, seja do financeiro, coloca sérios limites para que os governos municipais possam cumprir o papel que lhes é atribuído.
Se não se trata de enfrentar efetivamente o desafio de
resgatar a dívida social, o objetivo oculto desse projeto é
transferir para os governos locais as relações de conflito
social geradas a partir das demandas insatisfeitas.
Nesse projeto há um reconhecimento de que o processo de globalização leva inexoravelmente a um aprofundamento da dualização em nossa sociedade, com o crescimento da pobreza e da exclusão social.
Da perspectiva de um projeto de desenvolvimento humano e sustentável, a reforma do Estado coloca-se fundamentalmente no sentido da reorientação de seus objetivos e de sua ação. A discussão sobre sua organização e
seu tamanho está condicionada ao papel que os órgãos
públicos devem desempenhar na garantia dos direitos
sociais universais.
Francisco de Oliveira, com muita propriedade, aponta
a existência de um processo de reforma do Estado,
orientado de baixo para cima, a partir das pressões da
sociedade civil organizada que, quando encontra governos municipais sensíveis aos interesses populares e
comprometidos com uma abertura à participação popular,
desenvolve iniciativas que atestam a possibilidade de,
apesar dos escassos recursos disponíveis, serem promovidas, conjuntamente entre sociedade civil e governos
locais, iniciativas de alto impacto na melhoria da qualidade
de vida dos cidadãos.
Levando em conta que as possibilidades do desenvolvimento são substancialmente endógenas e requerem a
mobilização das forças sociais presentes localmente, é
preciso reconhecer que não existem modelos capazes de
orientar um governo nos aspectos específicos de cada realidade local. Tampouco é possível atribuir aos governos
locais uma capacidade que estes não têm. Como, por exemplo, enfrentar a questão do desemprego ou dos baixos salários? Como enfrentar o limite de crédito aos pequenos e
microempresários? Como enfrentar as políticas de preços
praticadas, por exemplo, pelos serviços públicos? Como
enfrentar a ação organizada de cartéis e monopólios que
impõem preços abusivos a insumos de produção ou bens
de consumo indispensáveis?
Essas perguntas levam a uma consideração final. As
experiências que estão em curso em alguns grandes e pequenos municípios brasileiros apresentam um horizonte
otimista nos seus resultados. Essas experiências confrontam-se com os interesses conservadores que buscam rea-
firmar seus privilégios e suas vantagens frente à coletividade. As possibilidades de ampla disseminação dessas
experiências dependem de um cenário nacional em que a
democracia não seja apenas entendida como o direito à
organização política e ao voto, mas também ganhe um
conteúdo econômico voltado para a redistribuição da riqueza e da renda. Daí o porquê de não poder adotar em
uma ótica democratizante a perspectiva de procurar apenas generalizar as best practices. Estas precisam de um
cenário que as potencialize e dissemine, o que implica uma
necessária relação entre o local e o nacional, em que a
interação das vontades possa criar novas condições de se
organizar um projeto de desenvolvimento democrático e
sustentável, que incida sobre o conjunto das políticas
públicas em todos os níveis.
NOTAS
1. Recife International Meeting on Urban Poverty; promovido pelo United Center
for Human Settlements de 17 a 21 de março de 1996.
2. Segunda Conferencia Interamericana de Alcaldes – una agenda emergente de
politicas para los gobiernos locales; promovido por Usaid/IAF/OEA/BID/Bird
em Miami, de 17 a 19 de abril de 1996.
3. Os dados apresentados aqui sobre as tendências da urbanização e da pobreza
foram extraídos de Draibe e Arretche (1995).
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59
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 10(3) 1996
AMBIENTE E CIDADES
em direção a uma nova agenda
LEILA DA COSTA FERREIRA
Professora do Departamento de Sociologia e Pesquisadora do Núcleo de Pesquisas Ambientais da Unicamp
SIMONE DE OLIVEIRA SIVIERO
Pesquisadora do Núcleo de Pesquisas Ambientais da Unicamp
A
literatura acerca do debate em torno da questão
do Estado e da problemática ambiental (Lester,
1989; Paehlke, 1989; Milbrath, 1989; Porter e
Brown, 1991; Orr, 1994; Vig e Kraft, 1994; Cahn,1995)
demonstra a importância da atuação de vários atores sociais no processo de formulação e implementação de políticas ambientais para a tentativa de buscas de soluções.
Entretanto, deve-se salientar que este debate é controverso.
Tendo em vista o objeto específico de análise – a política
ambiental – e a complexidade da temática, parece que somente a possibilidade de ação de diferentes atores sociais
não solucionaria a questão (Olphus, 1977 e Cahn, 1995).
Na última década, a dinâmica da ordem mundial tem
sido profundamente marcada, do ponto de vista ecológico, pela emergência ou intensificação dos problemas
socioambientais globais e locais (Porter e Brown, 1991;
Newton e Dillingham, 1994; Lanier-Grahan, 1993 e Viola, 1992). Estes autores enfatizam que o processo de consolidação do ambientalismo como movimento histórico produz impacto nas clivagens do sistema mundial.
Para Viola (1992), por exemplo, pode-se definir duas linhas na dinâmica da política internacional: a primeira
sendo as forças cujos interesses e orientação localizamse dentro do Estado-Nação (nacionalistas) versus as forças cujos interesses e orientação localizam-se na escala
mundial (globalistas); a segunda sendo entre as forças que
assumem a proteção ambiental como uma dimensão fundamental (globalistas ambientalistas) versus as forças indiferentes à proteção ambiental.
Vários autores têm analisado as políticas ambientais a
partir desta perspectiva (Lester, 1989; Vig e Kraft, 1994;
Newton e Dillingham, 1994; Cahn, 1995; Ferreira e Viola, 1996; dentre outros).
Contudo, a análise das políticas ambientais no nível
local é ainda bastante recente. Segundo Amy (1994),
estes estudos refletem o desenvolvimento do “estado
da arte”, ou seja, após algumas décadas de implementação de políticas ambientais, faz-se necessária a análise
pormenorizada deste processo, sendo que os estudos
no âmbito local são sugestivos para isto. Examinandose o desenvolvimento nas décadas de 70 e 80, pode-se
afirmar que os Estados Unidos e outros países altamente
industrializados adotaram dezenas de políticas ambientais e criaram novas instituições para desenvolver
programas na área. Entretanto, para os anos 90, a agenda
ambiental parece tornar-se mais complexa (Vig e Kraft,
1994).
Quando se considera a continuidade das políticas ambientais nesta década, é necessária uma avaliação cuidadosa. Na verdade, vários governos ainda não estão suficientemente equipados para resolver os problemas
ambientais globais e principalmente locais. Segundo Cahn
(1995), reformas institucionais e, principalmente, novos
métodos nos processos de decisão para buscas de novas
formas de gestão serão fundamentais para o real sucesso
destas políticas.
É importante definir, antes de tudo, os grandes eixos
de mudança que atingem a sociedade neste fim de século
e que deveriam influenciar os parâmetros de novas formas de gestão do Estado. As tranformações mais significativas podem ser resumidas em alguns grandes
eixos: a informática, que está revolucionando todas as
áreas e, em particular, aquelas que lidam com o conhecimento; a biotecnologia, que ainda não invadiu o nosso conhecimento, mas que deverá constituir a força
principal de transformação na agricultura, indústria
60
AMBIENTE E CIDADES: EM DIREÇÃO A UMA NOVA AGENDA
farmacêutica e outros setores na próxima década; as
novas formas de energia, as telecomunicações, que
conhecem uma revolução tecnológica ainda mais profunda e dinâmica do que a informática; e, finalmente,
os novos materiais, que permitem avanços na eletrônica e na informática e assim por diante.
O que é realmente novo neste processo é o ritmo destas transformações. Basta lembrar que um estudo da Comunidade Européia considera que, nos últimos 20 anos,
dobraram os conhecimentos científicos, relativamente à
totalidade de conhecimentos técnicos acumulados durante
a história da humanidade (Lidstone, 1995).
Por precárias que sejam avaliações deste tipo, o fato é
que se está no meio de uma gigantesca renovação científica. Isto deve ocupar um lugar central nas nossas reflexões sobre as formas de gestão econômica, social e ambiental. Acabou-se o tempo em que se geria uma realidade
relativamente estática. E gerir a mudança implica gerir
um processo permanente de ajustes dos diversos segmentos da reprodução social, que poderia ser definido como
gestão dinâmica.
O processo de globalização ou internacionalização do
espaço mundial resulta, em grande parte, dos avanços tecnológicos mencionados. Hoje são vistas as mesmas imagens na TV, compram-se os mesmos carros, lêem-se os
mesmos artigos (ou quase) em qualquer lugar do mundo.
No final do século XX, percebe-se que os problemas
socioambientais encontram-se interligados. Problemas de
ordem global atingem o cotidiano.
À primeira vista, uma reflexão sobre globalização e
meio ambiente, devido à sua amplitude, sugere que esta
se afaste das particularidades. Entretanto, ocorre justamente o contrário: uma reflexão sobre globalização e meio
ambiente, muitas vezes, revela-se exatamente através do
cotidiano. Este é um dos fios condutores deste trabalho.
Pode-se encontrar, ao longo da discussão sobre globalização e sustentabilidade, além das discussões mais gerais sobre globalização, um conjunto de problemas que
são muito familiares: a questão do poder local; a problemática das águas e dos diferentes tipos de poluição; a
questão da qualidade de vida; a questão do espaço público; a discussão sobre desenvolvimento; etc.
Na verdade, há várias interpretações sobre globalização, o que é mais um indício importante da originalidade,complexidade e urgência desta problemática.
(MacLuan e Bruce, 1989; Modelski, 1987; MacGrew e
Lewis, 1992, dentre outros).
Pensar a globalização das sociedades é afirmar a
existência de processos que envolvem os grupos, as
classes sociais, as nações e os indivíduos. A questão
que se coloca é como compreender este quadro tão
complexo e como caracterizá-lo.
Ao lado das dificuldades existentes, o tema da
globalização exige ainda contornar algumas armadilhas,
principalmente quando se fala de meio ambiente. Alguns
obstáculos deveriam ser evitados. Um é de natureza
metodológica, outro de cunho ideológico.
Na literatura existente sobre meio ambiente e globalização (Porter e Brown,1991, dentre outros) é comun encontrar, sob diversas formas, a problemática da homogeinização da questão ambiental. Por exemplo, a utilização
de um mesmo sistema tecnológico, em escala planetária,
poderia levar à homogeinização dos problemas ambientais. Este prognóstico pode articular-se segundo uma hierarquia distinta de valores. A visão otimista vê no progresso tecnológico a possibilidade de soluções de nossos
problemas ambientais.
O ponto de vista contrário revela uma outra dimensão.
Uma economia globalizada e o desenvolvimento tecnológico homogêneo eliminariam definitivamente possibilidades de modelos de sustentabilidade. Perspectiva comun
entre os analistas de mercado, para eles a globalização da
economia implicaria a emergência de uma sociedade na
qual os homens se comportam de maneira idêntica.
Esta visão coabita, porém, com outra, ou seja, a sua
negação. Agora, já não se trata mais da unidimensionalidade, mas sim da multiplicidade. Daí a insistência sobre
o ressurgimento das reivindicações locais, específicas,
movimento que atestaria o antagonismo a qualquer princípio unificador.
Poder-se-ia tentar aqui romper com esta visão dicotômica do processo de globalização, como se fossem dois
movimentos distintos, um tendendo para a totalidade,
outro para o particular.
Quando se fala de uma “sociedade global”, está-se referindo a uma totalidade que penetra, atravessa, as diversas formações sociais do planeta. Os limites “dentro” e
“fora” tornam-se assim insuficientes para a compreensão
desta nova realidade social. Há uma certa diluição das
fronteiras, fazendo com que as especificidades nacionais
e culturais sejam, de maneira diferenciada, atravessadas
pela modernidade-mundo (Ortiz, 1995).
É necessário entender que a modernidade-mundo realiza-se através da diversidade. Enquanto modernidade, esta
privilegia a individualização das relações sociais, a autonomia e a afirmação de aspectos específicos. No entanto,
esses elementos, aparentemente desconexos, serão envolvidos por uma malha mais ampla. A modernidade é constituída por um conjunto no qual o todo se expressa na individualidade das partes. A característica do momento
atual é que esta modernidade, que no século XIX confinava-se a alguns países, torna-se planetária.
A outra armadilha é fundamentalmente de caráter ideológico. Normalmente, a literatura que se ocupa da globa-
61
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 10(3) 1996
lização tende a compreendê-la de forma oblíqua, parcial.
Tudo se passa como se a expansão do mercado e da tecnologia obedecesse a uma lógica inexorável, levando as
pessoas a se conformarem com o quadro atual dos problemas que as envolvem. Globalização torna-se assim sinônimo de modernidade. Tudo o que não se encaixar dentro deste princípio torna-se suspeito, revelando um certo
gosto de arcaico.
A pergunta que se coloca é a seguinte: como reagir
diante dessas forças? Uma forma seria retroceder,
identificando globalização a uma visão de cunho puramente ideológico. Outra é considerá-la expressão da
mundialidade. Com isso sugere-se que a estrutura da
modernidade-mundo engloba os fatores de ordem política,
articulando, num processo histórico complexo, os
diferentes níveis da realidade social. Dentro desta
perspectiva, os grupos transnacionais são vistos como
atores políticos cujo campo de atuação é o planeta. Suas
idéias parecem impositivas porque traduzem a prevalência
de uma ideologia que se vincula às forças dominantes do
processo de globalização. Resta saber se essas idéias
devem ou não permanecer como se fossem a única
alternativa para o convívio entre os homens. Neste artigo,
considera-se que não e, portanto, neste caso, a política já
não pode ser mais pensada em base exclusivamente
nacional ou local.
Uma implicação evidente é que já não há espaço para
ilhas culturais ou econômicas. Variações de cotação na
bolsa americana provocam rápidas mudanças de comportamento de agentes econômicos de qualquer cidade, por
mais distante que seja.
Neste sentido, a maior parte dos países, a começar pelos
Estados Unidos, está empreendendo esforços amplos de
modernização nas formas de gestão do Estado (Ghai, 1995).
É o conjunto da referência espacial do desenvolvimento
que hoje encontra-se deslocado, com a redução do papel
dos governos nacionais, reforço dos “blocos” e do espaço supranacional em geral e um novo papel das cidades
na gestão descentralizada da sociedade.
Na verdade, os fenômenos demográficos são discretos
porque os processos regulares de mudança, que envolvem
alguns poucos percentuais ao ano, não chamam a atenção. Porém, a realidade é que em meio século as sociedades deixaram de ser rurais para se tornarem urbanas, e
um país não é mais uma capital, onde se tomam decisões,
cercada por massas rurais dispersas. Este é apenas o começo da avaliação do impacto social desta transformação. Basta lembrar que hoje, no Brasil, 80% da população vive em cidades, invertendo as proporções do início
dos anos 50 (Faria, 1984).
Uma implicação imediata desta nova realidade é que
não é mais necessário um Estado tão centralizado, já que
a população que vive em núcleos urbanos pode resolver
localmente grande parte de seus problemas. Esta nova
realidade é que levou os países altamente industrializados a adotarem uma estrutura de Estado profundamente
diferente da brasileira, com ampla participação dos governos locais (Castells, 1983; Wilson, 1994 e Cahn, 1995).
Isso significa, em outro nível, que já não se pode deixar
acuar diante da eterna dicotomia entre descentralização
ou não, uma vez que adquire peso fundamental, em termos de perspectivas, o espaço público comunitário, refletindo a evolução da democracia representativa para
sistemas descentralizados e participativos.
Do ponto de vista mais geral, esta literatura, no que
diz respeito à problemática ambiental, salienta a importância da construção de instituições de governabilidade
internacional e de uma forte redefinição do Estado, com
o objetivo de liderar uma transição gradual para uma sociedade sustentável e mais democrática, baseada na idéia
da convergência entre desenvolvimento econômico e proteção ambiental, através de novas tecnologias de eficiência energética, reciclagem de materiais e controle de poluição. A redefinição do Estado implicaria a redução de
suas funções econômicas e o fortalecimento de suas funções sociais e ambientais nos diferentes níveis, além de
um profundo processo de descentralização política.
Nesta perspectiva, a qualidade ambiental torna-se essencialmente um bem público que somente pode ser mantido
através de uma incisiva intervenção normativa e regulatória
do Estado complementada com incentivos de mercado.
De acordo com esta abordagem, os ambientalistas deveriam construir uma ampla coalisão sociopolítica. Sustenta-se ainda que as considerações de eqüidade devem
ser equilibradas com aquelas referentes à eficiência econômico-ambiental.
No caso brasileiro, certamente este processo é mais
recente e tem implicações políticas mais complexas, dado
que, só com o processo de democratização pelo qual passa a sociedade brasileira, o poder local tem conseguido
implementar iniciativas inovadoras, que incluem as políticas ambientais.
POLÍTICAS SIMBÓLICAS: CRIANDO E
ACOMODANDO DEMANDAS PÚBLICAS
Os rumos do desenvolvimento urbano têm sido alvo
crescente da atenção de órgãos governamentais, agências
financiadoras, entidades da sociedade civil e especialistas
de diversas áreas de conhecimento. Têm estimulado importantes articulações para uma gestão democrática das
cidades, um planejamento urbano ético, o direito à cidadania, ou seja, condições de vida urbana dignas para todos os cidadãos.
62
AMBIENTE E CIDADES: EM DIREÇÃO A UMA NOVA AGENDA
O que tem se apresentado como inovador, nos últimos
anos, é o tratamento destas questões específicas de forma
integrada e sistêmica, tendo a dinâmica urbana como eixo
de referência. Nessa perspectiva, o enfoque do sistema
urbano, como parte do ecossistema global, coloca em pauta
a discussão de como garantir o desenvolvimento urbano
sustentável. Essa visão, muito embora venha conquistando maior espaço, ainda deverá passar por um intenso embate com a concepção mais tradicional de desenvolvimento urbano, que trata a realidade de forma setorizada e
fragmentada.
As áreas urbanas em todo o mundo são consideradas
locais privilegiados para geração de emprego, inovação e
ampliação das oportunidades econômicas. Os centros urbanos revelam enorme agilidade na construção de uma
rede de relações no plano da economia, da política e da
cultura, conectando zonas rurais, pequenas, médias e grandes cidades. No marco destas transformações uma parcela significativa da população mundial passou a ter acesso
a um nível de consumo e riquezas sem precedentes
(Milbrath, 1989).
Obviamente, esta parcela da população que desfruta de um nível alto de consumo e a outra que desfruta
de um consumo moderado (satisfazendo suas necessidades básicas) devem às cidades o padrão de vida que
possuem.
Na outra face do espaço urbano estão os excluídos,
aqueles que não satisfazem suas necessidades materiais
básicas. Ainda que de forma diferenciada, cidades do
mundo inteiro defrontam-se com este quadro de inclusãoexclusão (Orr, 1994; Cahn, 1995).
Por um lado, criam-se espaços públicos e se socializa a
vida urbana e, por outro, crescem as zonas privatizadas.
Aumenta-se a oferta de serviços públicos e de equipamentos coletivos, mas também cresce o número de pessoas que
vivem ilhadas em áreas degradadas e periféricas, sem meios
para informar-se e ter acesso a estes equipamentos.
Neste sentido, muito importantes são as redes que integram representantes do movimento popular, sindical e
ambientalista e/ou incorporam em suas plataformas de luta
a questão socioambiental, tentando influenciar a implementação de políticas públicas.
Essa parceria expressa um avanço na compreensão da
problemática urbana, no sentido de superar a visão que
atribui estatuto diferenciado para a questão da pobreza e
da deterioração ambiental – quando ambos, na verdade,
originam-se de um estilo de desenvolvimento que gera
desigualdades sociais e desequilíbrio ambiental.
Ao abordar estes temas aqui, tenta-se direcionar a análise para o legado da racionalidade moderna, em que a
vida cotidiana, a reflexão, a ciência e a técnica confundem-se e, muitas vezes, nos confundem a ponto de duvi-
darmos da herança iluminista que tanto pregamos (Best e
Keller, 1991).
Boaventura (1995) comenta que talvez seja inútil convocar as promessas da modernidade para abrir os caminhos democráticos e emancipatórios da crise contemporânea deste final do século, pois não se trata, a seu ver, de
“mais uma” crise do mundo moderno. Na verdade, há uma
simultânea crise dos processos de regulação social e de
seu possível potencial emancipador, incluindo-se aí as
formas consagradas de se conceber e pensar a sua tensão
no interior das categorias da modernidade.
Concretamente, isto quer dizer que as soluções de compromisso já experimentadas historicamente entre Estado,
mercado e comunidade – e suas correspondentes racionalidades – levaram-nos invariavelmente a um oceano de
irracionalidades acumuladas, do qual são testemunhas a
degradação ambiental, o aumento da população, as disparidades e desigualdades entre centro e periferia, a miséria e a fome que convivem com a abundância, as guerras étnicas e religiosas, a dependência do indivíduo em
relação ao consumo mercantil, os modos selvagens de
destinação dos direitos do mercado de trabalho – a lista ,
na verdade, é enorme. Entretanto, há novas formas de ação
social que podem abrir caminho para alternativas
cognitivas, políticas e subjetivas no contexto contemporâneo.
No que diz respeito às alternativas políticas, o princípio único do mercado confina o Estado e deslegitima as
formas de sociabilidade. Porém, este movimento ao mesmo tempo oculta outras sociabilidades, práticas e culturas que a modernidade marginalizou, revelando-as como
espaços politizados (basicamente pelos movimentos sociais contemporâneos). São os espaços domésticos, o da
produção, o da cidadania, o espaço mundial, cada um deles
constituindo um feixe de relações sociais que, conectandose em suas várias interfaces pela ação política, rompem
com seu lugar amorfo e meramente interativo que o campo político institucional lhes havia designado. Em conjunto, tornam visível uma multiculturalidade atuante, que
se torna capaz, no tempo, de identificar relações de poder
e imaginar formas de transformá-las em relações de autoridade partilhada.
Reconhecer que estes campos de negociação e conflito
podem formar um “novo senso comum político” implica
reconhecer que não há saída no fortalecimento do princípio único do Estado, mas sim na sua relativa desregulação. Nem esta saída está na predominância do mercado
ou da comunidade, incapazes por si só de garantir uma
regulação social que não seja fragmentada e dispersa.
Nesta perspectiva, a política já não mais pode ser pensada em base exclusivamente nacional ou local. Deve-se
imaginar o mundo como um “espaço público” (como su-
63
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 10(3) 1996
gere Habermas), uma sociedade civil na qual se defrontam projetos e visões distintas, antagônicas ou complementares.
Habermas (1989) afirma que a razão e a verdade resultam da interação do indivíduo com o mundo dos objetos, das pessoas e da vida interior. Por isso, a razão e a
verdade só podem decorrer da organização social dos atores interagindo em situações dialógicas. A razão não tem
sua sede no sujeito epistêmico, como queria Kant, nem
no ser antropológico, ao mesmo tempo pulsional e razoável, como imaginava Marcuse, mas sim na organização
inter-subjetiva da fala. O que é razoável, para os indivíduos e a sociedade, brota portanto de um consenso, resultante da razão dialógica. O conceito de razão resulta
naquilo que em um contexto social, vivido e compartilhado por atores lingüisticamente competentes, pode ser
elaborado como querido e aceitado por todos.
Nessa acepção, razão e verdade deixam de ser valores
absolutos para se transformarem em valores temporariamente válidos, de acordo com o veredito dos atores envolvidos na situação, os quais estabelecem consensualmente o processo pelo qual a verdade e a razão podem
ser conquistadas em um contexto válido.
Reconhecer várias formas de conhecimento e práticas
que recusam o império da fragmentação e dispersão, ou
seja, a busca de alternativas políticas, cognitivas e subjetivas, como sugerido anteriormente, é um exercício sociológico que está presente em várias modalidades das
ações sociais, inclusive no campo das disputas institucionais, principalmente quando relacionadas à problemática
ecológica, por estar aí presente um campo simbólico que
inclui uma gama de valores, inclusive valores pós-materialistas, e portanto cria e acomoda novas demandas públicas bastante sofisticadas (Wallace e Alison, 1995; Roe,
1995).
Na opinião de Ortiz (1995), a questão ecológica
heuristicamente revela esse mundo que está se formando. A ecologia, não apenas o movimento, é um tema global, que revela algo a respeito de uma sociedade civil
mundial. Nesse sentido, o movimento perpassa países,
grupos e classes sociais articulados a um outro conceito
de natureza.
ciamento dos recursos naturais, como ar e solo, enquanto
os municípios estão mais inclinados para o tratamento da
água, resíduos, parques e reservas (Vig e Kraft, 1994;
Newton e Dillingham, 1994; e Cahn, 1995). Um pequeno
número de programas envolvem a sobreposição de responsabilidades, como por exemplo, programas de poluição atmosférica.
Nas últimas décadas, internacionalmente, um crescente número de legislações têm sido aprovadas para regular
o uso do solo nos governos locais (Agatiello, 1995;
Schoenbaum e Rosenberg, 1991).
Como conseqüência, tem-se um aumento na tensão e
conflito entre estados e governos locais sobre questões
de uso prioritário e autonomia decisória. Em cada caso, a
questão da implementação das políticas esbarra nos conflitos entre os diferentes níveis de governos e, principalmente, entre os diversos atores envolvidos.
No caso dos Estados Unidos (Newton e Dillingham,
1994), observa-se que as áreas de conflitos mais significativos poderiam ser localizadas na questão da ocupação
do solo. Para os autores, as autoridades tendem a priorizar
o aspecto econômico do desenvolvimento em detrimento
da conservação dos recursos.
O caso brasileiro não se diferencia muito deste processo. Os programas federais e estaduais (Guimarães,
1986; Viola, 1992 e Ferreira, 1992) têm priorizado as ações
voltadas aos aspectos mais conservacionistas da questão
ambiental e aos programas de controle de poluição do ar,
exatamente por estes não envolverem conflitos mais significativos nas relações entre os atores.
A montagem das agências públicas voltadas especialmente para a questão ambiental e a formulação da política ambiental são recentes no Brasil. A Secretaria Especial de Meio Ambiente, vinculada ao Ministério do
Interior, foi criada em 1973, tendo atribuições voltadas
para a conservação ambiental e o uso racional dos recursos naturais (Guimarães, 1986). Em 1981, foi promulgada a Política Nacional de Meio Ambiente. Esta política
marca um avanço na ação estatal porque explicita a necessidade de responsabilização dos causadores ambientais (Ferreira, 1992). Em 1985 é criado o Ministério do
Desenvolvimento Urbano e Meio Ambiente. Cria-se também o Conselho Nacional de Meio Ambiente (Conama) e
o Sistema Nacional de Meio Ambiente.
O principal marco da ação pública para a área ambiental é a Constituição Federal de 1988, pois foi resultado de
forte conscientização da população brasileira e mobilização. O capítulo de meio ambiente é inovador e avançado.
Considera-se que a efetividade dos direitos deve ser garantida pelo poder público e pela coletividade. É novidade também a ação concorrente entre as três esferas da
Federação: União, estados e municípios, como co-respon-
A PERSPECTIVA AMBIENTAL
NA POLÍTICA CONTEMPORÂNEA
Para muitos programas ambientais, no âmbito internacional, a questão da coordenação entre programas ambientais federais, estaduais e locais é discutível. Cada nível
tem mantido sob jurisdição propostas específicas. Os programas federais e estaduais, nos Estados Unidos, por
exemplo, têm enfatizado o desenvolvimento e o geren-
64
AMBIENTE E CIDADES: EM DIREÇÃO A UMA NOVA AGENDA
guns casos, o tratamento dos rumos do desenvolvimento
urbano foi discutido de forma mais integrada e sistêmica,
sendo que a política ambiental no nível local apresentouse mais realista com o quadro de exclusão social que caracteriza várias cidades do mundo, inclusive as brasileiras.
O crescimento das cidades está intrinsicamente relacionado ao aumento do número de pessoas que as escolhem para viver. A crescente concentração de população
no urbano vem acompanhada pela deterioração da qualidade de vida, especialmente em cidades da América Latina, África e Ásia (Lidstone, 1995). Por outro lado, a reestruturação da dinâmica urbana é um aspecto a ser
considerado, o que nos remete à questão da gestão das
cidades (Wilson, 1994).
Em algumas cidades do mundo já existem iniciativas
no sentido de promover um gerenciamento integrado das
atividades urbanas que aumente a qualidade de vida da
população e preserve o equilíbrio ambiental (Vig e Kraft,
1994).
Além disso, residir e trabalhar fora das grandes cidades vem se tornando possível para um maior número de
pessoas nos países centrais do processo de globalização,
graças às mudanças significativas nas estruturas de produção e consumo. Avanços nas áreas de comunicação e
transporte estariam permitindo esquemas mais ágeis e
descentralizados de participação no processo produtivo.
Mantidas as devidas proporções, poder-se-ia sugerir
que os padrões de redistribuição populacional e desconcentração industrial (Martine, 1995), recentemente observados na região Sudeste brasileira e particularmente em
torno de São Paulo, apresentam algumas características
análogas às que prevalecem nos países do Norte.
Com a chegada das indústrias, tem-se também o deslocamento de populações. Os dados do Censo Demográfico de 1991 mostram que a Região Metropolitana de São
Paulo passa a integrar o conjunto das regiões com taxas
negativas de migração, revertendo o sinal de seus saldos
migratórios. Seu parque industrial perde em força de atração populacional para os novos “paraísos” urbano industriais do interior.
A Região Administrativa de Campinas é a que apresenta a maior taxa de crescimento dos anos 80. Sua população registra um alto grau de urbanização, com mais de
90% de seus habitantes instalados no perímetro urbano.
Entretanto, no caso brasileiro, pelas características históricas, o processo de industrialização e urbanização trouxe para a Região Metropolitana de São Paulo – e atualmente, dado o processo de “contrametropolização”, vem
trazendo para a Região de Campinas e para a Baixada
Santista – a ampliação das carências sociais e dos serviços públicos, bem como a falência das políticas administrativas. Trouxe também a deterioração ambiental (prin-
sáveis pela garantia da qualidade ambiental. Na verdade
amplia o papel dos estados e municípios para exercitarem políticas ambientais.
O Estado de São Paulo foi precursor das ações voltadas para a questão ambiental (Ferreira, 1992). No âmbito
municipal, o crescimento expressivo da ação específica
para o meio ambiente ocorre após 1988. As leis orgânicas refletem este amadurecimento do tema nas agendas
dos governos locais.
A criação da maioria das agências governamentais das
três esferas de governo e da legislação fundamental, voltada para a questão ambiental, data dos anos 80. Contudo, foram criadas num período de crise do Estado, o que
significou escassez de recursos orçamentários e dificuldades de coordenação das diferentes políticas públicas.
No início dos anos 90, há uma séria crise de continuidade na política ambiental no âmbito federal, inscrita na
crise geral de governabilidade do país produzida pelo
processo de impeachment de Collor. A principal manifestação desta crise foi a existência de quatro secretários
de meio ambiente (Ferreira e Viola, 1996).
Com a ascensão de Itamar Franco à presidência, foi
criado o Ministério de Meio Ambiente, o que em nada
contribuiu para aumentar a importância da questão no
governo.
No governo Fernando Henrique Cardoso, o que ocorre, infelizmente, é que a política ambiental ainda não é
considerada uma política social – e, portanto, está desvinculada das demais políticas públicas – e nem mesmo uma
política de desenvolvimento – e conseqüentemente está
também desvinculada das demais políticas econômicas.
Todavia, na história recente, vários acontecimentos na
área das políticas ambientais podem ser considerados relevantes. O que tem se apresentado como inovador, na
área das políticas ambientais em nosso país, é o que vem
ocorrendo no âmbito do poder local.
Enquanto a política ambiental, no nível federal, declinou-se em termos de importância política, ocorreram, no
âmbito municipal, experiências de buscas de modelos de
sustentabilidade, em vários estados brasileiros.
Vários casos já são considerados emblemáticos, como
o da cidade de Curitiba, por exemplo. Contudo, parece
que o que é realmente inovador é que este processo estende-se por várias outras cidades brasileiras, podendose citar aqui o caso do Estado de São Paulo, como um
exemplo importante neste processo (Ferreira, 1996).
Sem o mesmo acesso aos recursos que Curitiba, em
várias cidades do Estado de São Paulo, tanto de pequeno
quanto de médio e grande portes, foram formuladas e
implementadas políticas municipais ambientais.
Neste processo, obviamente os conflitos entre os diferentes atores também foram acirrados, entretanto, em al-
65
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 10(3) 1996
No entanto, no âmbito municipal (Ferreira, 1996;
Jacobi, 1994), já existem vários mecanismos legais e institucionais para o poder local enfrentar o processo de degradação socioambiental, como visto anteriormente. Além
disso, o processo de democratização pelo qual passa a
sociedade brasileira permite experiências de planejamento
participativo, que no caso dos Estados Unidos (Vig e Kraft,
1994) por exemplo, facilitaram significativamente a implementação de políticas públicas com características
socioambientais no nível local.
A reconstituição do processo de participação dos movimentos sociais organizados no âmbito do Executivo e
Legislativo municipais permite, em primeiro lugar, ampliar os dados para uma análise mais aprofundada sobre
o processo de “reconhecimento” na construção de novos
sujeitos coletivos e na ampliação dos espaços públicos.
Estes elementos possibilitam a construção de uma institucionalidade ampliada, cujos reflexos podem nos levar a
superar o ciclo de fluxos e refluxos, normalmente presentes
nas lutas pela superação de carências imediatas.
Em uma sociedade extremamente excludente, como a
brasileira, não deixa de ter grande significado político o
fato de as entidades populares e ambientalistas estarem
sempre em pauta na grande imprensa, mesmo quando a
agenda refere-se tanto às questões urbanas imediatas quanto a propostas de mudanças mais estruturais. A base desta legitimidade encontra-se em largo sentido em função
do nível de reconhecimento em campos diversos (culturais, políticos e econômicos) que moldam a disputa pelo
poder local.
Do estágio de reconhecimento como interlocutor das
administrações, que marcam social e administrativamente a implementação de políticas ambientais municipais, o
movimento social poderia conseguir espaço para além dos
problemas urbanos mais imediatos.
Nesta direção, ao mesmo tempo em que exige uma
maior organicidade, a participação junto ao Legislativo e
ao Executivo abre perspectivas de amadurecimento político, possibilitando a combinação entre os limites das
demandas imediatas e um patamar que envolve diretrizes
e políticas estruturadoras mais gerais e, portanto, sujeitas
às oposições mais explicitadoras.
O jogo de reconhecimento nesta dimensão passa então
por filtros políticos mais sofisticados, que traduzem o
envolvimento de categorias mais amplas, como formadores de opinião, classes médias urbanas, técnicos do aparelho estatal, intelectuais, grupos e partidos políticos, lideranças políticas individuais, igreja, grupos empresariais,
imprensa e etc.
Neste confronto, os atores sociais precisariam adquirir uma organicidade capaz de ultrapassar os limites dos
conflitos localizados, para proporem programas e controles
cipalmente dos recursos hídricos) e o estrangulamento da
infra-estrutura das cidades (principalmente nos setores de
saneamento, habitação e transporte).
É importante levar em conta que o Brasil é um país de
urbanização tardia. Além disso, não se trata, como o foi
em grande parte no caso dos países do Norte, de uma urbanização por atração dos empregos gerados nas cidades,
mas sim por expulsão do campo. O mundo rural brasileiro foi atravessado por uma poderosa corrente modernizadora, que implantou a monocultura e a mecanização, reduzindo drasticamente o emprego e, por outra corrente
profundamente conservadora, transformando o solo agrícola em reserva de valor.
Sem emprego no campo ou, quando muito, com emprego sazonal característico da monocultura e sem alternativa de acesso à terra, a população foi expulsa para as
cidades, originando periferias miseráveis, com bairros que
tiveram freqüentemente taxas de crescimento superiores
a 10% ao ano (Ipea, 1995).
Este processo é hoje agravado pelo impacto das novas
tecnologias sobre a indústria e os serviços urbanos, que se
vêem obrigados a reduzir a mão-de-obra empregada, deixando para parte da população brasileira a alternativa do
setor informal, do desemprego e dos serviços domésticos.
Esta situação implica o surgimento de milhões de pequenos dramas locais no conjunto do país, problemas graves de habitação, saúde, poluição, necessidades adicionais de escolas, organização de sistemas de abastecimento,
programas especiais para pobreza crítica, elaboração de
projetos de saneamento básico e assim por diante.
Desse modo, os municípios passam a se defrontar com
uma situação grave que exige intervenções ágeis em áreas
que extrapolam as tradicionais políticas na área urbana.
Trata-se de amplos projetos de infra-estrutura, políticas
sociais, programas de emprego e políticas ambientais,
envolvendo inclusive estratégias locais de dinamização
das atividades econômicas.
Os municípios situam-se na linha de frente dos problemas, mas estão no último escalão da administração
pública. Há um deslocamento generalizado dos problemas para a esfera local, enquanto as estruturas políticoadministrativas continuam centralizadas.
Este processo criou um tipo de impotência institucional que dificulta dramaticamente qualquer modernização
da gestão local, enquanto favorece o tradicional “caciquismo” articulado com relações fisiológicas nos escalões superiores.
Com o processo de urbanização, os problemas deslocaram-se, mas não o sistema de decisão correspondente.
Assim, o que se tem hoje é um conjunto de problemas
modernos e uma máquina de governo característica das
necessidades institucionais dos anos 50.
66
AMBIENTE E CIDADES: EM DIREÇÃO A UMA NOVA AGENDA
cidades com mais de 4 milhões da habitantes que deverão existir no ano 2000, 81 estarão em países da América
Latina, África e Ásia; das 23 megacidades com mais de
10 milhões que existirão naquele ano, 17 serão nestes
países; e dentre as dez maiores cidades do mundo só figurarão duas (Tóquio e Nova York) do Norte.
Portanto, o que está ocorrendo é um processo de urbanização que pode acarretar pobreza e concentração de
renda e não fruto de desenvolvimento tecnológico que gera
desenvolvimento econômico sadio e equilibrado. Obviamente, essa não é uma questão só demográfica; ela está
inserida num contexto macroeconômico.
Segundo o documento do comitê preparatório da ONU
para a Conferência de 1992, no Rio de Janeiro, reunido
em Genebra em 1991, para os países em desenvolvimento, a década de 80 caracterizou-se por diminuição do fluxo de recursos externos, declínio no preço de seus produtos de exportação, aumento do peso da dívida externa e
crescentes barreiras alfandegárias para seus produtos
(ONU, 1991).
Isso fez com que, a partir de meados dos anos 80, segundo o mesmo documento, houvesse uma drenagem de
recursos dos países do Sul para os países do Norte, causada por uma conjunção de fatores, dentre os quais as taxas de juros dos países desenvolvidos. Neste sentido, a
discussão do ambiente urbano, principalmente dos países
do sul, adquire importância crucial para a Agenda 21. Daí
também a importância de se discutir os problemas ambientais e as estratégias para suas soluções nas cidades
brasileiras.
Em âmbito mais geral, poder-se-ia indicar algumas
questões que nortearam a reflexão sobre cidades e meio
ambiente, através das categorias de análise globalização,
descentralização e sustentabilidade.
Em primeiro lugar, uma parte da literatura acerca do
debate em torno da análise de modelos de sustentabilidade indica claramente a importância dos processos de descentralização na realidade contemporânea de um mundo
globalizado (Buttel e Larson, 1980; Friedman, 1987; Ghai,
1995; Morrison, 1995).
Estamos vivendo profundas transformações sociais. Por
um lado, este avanço abre novos instrumentos de modernização, se formos capazes de orientá-lo. Por outro, é inviável a manutenção da presente ordem política quando
o ser humano dispõe de tecnologias de impacto planetário. Sem um sólido reforço da nossa capacidade de organização social, é o próprio Planeta que se torna inviável.
Em outros termos, o ser humano, que demonstrou impressionante capacidade técnica e impotência em termos
de convívio civilizado, poderia buscar no espaço local
organizado o lastro político que lhe permitiria recuperar
as rédeas do seu desenvolvimento.
redefinidores da natureza dos mecanismos inerentes às
políticas públicas tradicionais.
Isso implicaria mudanças da natureza dos movimentos sociais, que, por suas características cíclicas, teriam
que transpor as condições de agentes meramente reativos
para se firmarem como sujeitos, também responsáveis pela
construção de uma sociedade social e politicamente democrática. Este processo é ainda bastante incipiente, indicando, entretanto, avanços políticos significativos no
processo de formulação e implementação das políticas
ambientais brasileiras.
Diferentemente da política ambiental estadual (Ferreira,
1992), em alguns municípios do Estado de São Paulo
houve uma real preocupação de vincular a questão ambiental à questão social, pelo menos no nível da formulação de seus Planos Diretores, ou ainda na formulação de
suas Leis Orgânicas. Além disso, a implementação de
Consórcios Intermunicipais em termos sociológicos e
políticos é muito relevante. Há aqui claramente a possibilidade empírica de um acordo político/social que ultrapasse a visão corporativista, geralmente presente nos partidos políticos, e que trabalhe em uma perspectiva mais
global.
Nos casos de pequenas cidades não deixa de ser interessante o fato de, legalmente, estas já estarem providas
de instrumentos para poderem implementar políticas ambientais a curto prazo.
O surpreendente é o caso da cidade de São Paulo, onde
haveria condições, inclusive em termos de recursos técnicos e humanos, para realmente se implementar uma
política municipal de meio ambiente. Entretanto, em uma
cidade globalizada, com Universidades altamente qualificadas, uma classe média intelectualizada, que tem uma
consciência ecológica bastante refinada, a questão ambiental tem tido papel totalmente secundário, como se os problemas sociais “prioritários”, segundo os “policy makers”
locais, não estivessem totalmente vinculados ao processo
de degradação ambiental da metrópole.
Na verdade, os problemas ambientais da cidade de São
Paulo são, ao mesmo tempo, particulares, pois localizamse numa determinada porção do território brasileiro muito
específico em função das características geográficas e de
sua herança histórica e social, e gerais, porque ilustram
um processo em curso em diversas partes do mundo.
O processo de urbanização em curso nessas últimas
décadas tem se concentrado particularmente na América
Latina. A taxa anual de crescimento da população urbana
nesses países é de 3,7% ao ano, enquanto na maioria dos
países do Norte é de 1,1% ao ano, segundo dados da ONU
(Lidstone, 1995).
Por outro lado, é principalmente nas grandes cidades
que esse processo demográfico está ocorrendo: das 82
67
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 10(3) 1996
Contudo, dada a complexidade de nosso objeto de estudo (políticas ambientais), somente a descentralização e
a participação de vários atores em ação não solucionariam o problema, como dito na introdução deste artigo.
O conceito de sociedade sustentável foi elaborado originalmente pelo Worldwatch Institute, liderado por Lester
Brown, no começo da década de 80. O conceito foi disseminado mundialmente pelos Relatórios Anuais sobre o
Estado do Mundo, produzidos pelo Worldwatch desde
1984, e pelo Relatório “Nosso Futuro Comum”, elaborado pela Comissão das Nações Unidas para o Meio Ambiente e Desenvolvimento, liderada por Brundtland, em
1987.
A partir da convocatória da Unced, em 1989, o conceito torna-se um ponto de referência obrigatório dos
debates acadêmicos, políticos e culturais. Na verdade,
passa a ser uma idéia com força poderosa sobre a ordem
social desejável e um campo de batalha simbólico sobre
o significado desse ideal normativo.
Neste sentido, o presente artigo associa fortemente a
idéia de sustentabilidade com outras três dimensões sociais já consagradas dentro do pensamento político do
século XX: democracia, eqüidade e eficiência (Ferreira e
Viola, 1996).
Em uma sociedade democrática, o governo é eleito em
eleições livres competitivas e as regras escritas da sociedade na forma de lei regulam efetivamente as relações
sociais. Numa sociedade democrática, os direitos individuais têm correlatos nos direitos coletivos e estes têm
predomínio sobre os interesses individuais.
Em uma sociedade equitativa, todos os indivíduos (independente de gênero, origem social, raça, idade, credo e
ideologia) têm as mesmas oportunidades para desenvolverem-se enquanto tais. Numa sociedade equitativa, o
herdado tem uma importância mínima e o adquirido tem
uma importância máxima.
As dimensões fundamentais da sociedade eficiente são:
a avaliação de custo-benefício na tomada de decisões, uma
equilibrada combinação de competição e cooperação nas
regras de jogo e uma promoção contínua do desenvolvimento tecnológico.
Uma sociedade sustentável é aquela que mantém o estoque de capital natural ou que compensa, pelo desenvolvimento tecnológico, uma redução do capital natural, permitindo assim o desenvolvimento das gerações futuras.
Numa sociedade sustentável, o progresso é medido pela
qualidade de vida (saúde, longevidade, maturidade psicológica, educação, ambiente limpo, espírito comunitário e
lazer criativo), ao invés do puro consumo material.
No início dos anos 90, no Brasil, as questões ambientais estavam bastante presentes nos debates da sociedade, entretanto, paradoxalmente, isso não acontecia no
âmbito dos partidos políticos. Parece que, para os partidos políticos brasileiros, a discussão sobre processos de
sustentabilidade, obviamente, acarretaria questionamentos mais profundos do nosso processo de democratização
e, portanto, não fazem parte de suas agendas.
Não há muitas novidades no que tange à forma básica
de estruturação dos poderes, em torno do Executivo, Legislativo e Judiciário. No entanto, há indiscutivelmente
uma compreensão diferente das formas como a sociedade civil organiza-se para assegurar a sustentação política
do conjunto.
Estamos acostumados a ver o funcionamento do Estado embasado na organização partidária. Este eixo político-partidário de organização da sociedade em torno dos
seus interesses veiculou, em geral, as posições dos grupos mais conservadores da sociedade.
O desenvolvimento dos sindicatos, instâncias de negociação do acesso ao produto social, fortaleceu outro eixo
de organização: sindical-trabalhista, baseado no espaço
de organização que constitui a empresa e centrado na redistribuição mais justa do produto social. Quando são
analisados os países caracteristicamente social-democráticos, constata-se que estes souberam desenvolver tal eixo
político, criando sistemas mais democráticos.
Em termos práticos, não há dúvida de que o fato de os
agricultores, metalúrgicos, bancários e outros segmentos
estarem solidamente organizados permite que a sociedade se democratize e que negociações de cúpula, características dos partidos, encontrem um contrapeso democrático nos diversos interesses profissionais organizados.
Pode-se estender o mesmo raciocínio para os impactos do processo moderno de urbanização. Quando uma
sociedade deixa de constituir um tecido descontínuo de
trabalhadores rurais e passa a viver em cidades, começa
naturalmente a se organizar em torno dos “espaços locais”,
do local de residência, do que Friedmann (1987) chamou
de “life space”, ou espaço da vida.
O impacto político da formação deste tipo de organização da sociedade em torno dos seus interesses (o eixo
comunitário) marca a evolução de uma sociedade governada por “representantes” para um sistema no qual a participação direta do cidadão adquire um peso mais importante.
O cidadão americano, por exemplo, participa hoje, em
média, de três ou quatro organizações comunitárias. Participa da gestão da escola, do seu bairro, de grupos culturais, de decisões do município, etc. A descentralização
dos recursos públicos constitui também um processo articulado com uma evolução do funcionamento do Estado. As pessoas participam efetivamente, pois não vão
numa reunião política para bater palmas para um candidato, mas sim para decidir onde ficará a escola, como re-
68
AMBIENTE E CIDADES: EM DIREÇÃO A UMA NOVA AGENDA
ciclar o lixo do seu bairro, como será utilizado o solo da
cidade e assim por diante.
Não se trata naturalmente de reduzir a sociedade ao
“espaço local”, como uma volta aos anos 60, do “small is
beautiful” generalizado. Trata-se de entender a evolução
das formas de organização política que dão sustento ao
Estado: a modernidade exige – além dos partidos – sindicatos organizados em torno dos seus interesses e comunidades organizadas para gerir o nosso dia-a-dia.
Este tipo de sustentação da gestão dos interesses públicos é indiscutivelmente mais firme do que o equilíbrio
precário centrado apenas nos partidos políticos. Também
é cada vez mais importante para uma forma madura de
sustento do Estado: a descentralização e a democratização dos meios de comunicação. Com partidos múltiplos,
sindicatos representativos, fortes organizações comunitárias e uma “mídia” democratizada, serão obtidas as bases institucionais razoáveis para uma gestão política equilibrada (LaMay e Dennis, 1991).
Friedmann (1992) e Osborne e Gaebler (1992) estudaram experiências práticas e implicações teóricas das novas tendências administrativas nas mais diversas áreas da
administração pública na era da globalização. Segundo
estes autores, trata-se evidentemente de repassar muito
mais recursos para o nível local, mas trata-se também de
deixar a sociedade gerir-se de forma mais flexível segundo as características de cada município.
O novo estilo passa, portanto, pela criação de mecanismos participativos simplificados e muito mais diretos
dos atores-chave das cidades: empresários, sindicatos,
organizações não-governamentais, instituições científicas
e de informação e outros. Passa também pela criação de
mecanismos de comunicação mais ágeis com a população, porque uma sociedade tem que estar bem informada
para poder participar. Passa pela flexibilização dos mecanismos financeiros, com menos regras, e mais controle
direto de comitês e conselhos da comunidade interessada. Passa pela ampliação do espaço de interesse da prefeitura, que deverá ultrapassar as preocupações com a
cosmética urbana para se tornar o catalisador das forças
econômicas e sociais da região. Passa, finalmente, pela
organização de redes horizontais de coordenação e cooperação entre municípios, tanto no plano geral quanto,
sobretudo, em torno de programas setoriais.
Neste sentido, a intenção maior deste artigo é justamente incorporar novos elementos a esta discussão, numa
tentativa de ampliar o mapeamento realizado por trabalhos recentes que se debruçam sobre o tema das políticas
ambientais, em patamares que contemplam reconhecimentos capazes de legitimar um novo recorte nas decisões
políticas, ou seja, participação que requer dos atores vinculados à problemática ecológica a capacidade de
incidirem sobre a definição de políticas públicas e do acesso direto à gestão do Estado.
Certamente, há problemas a serem enfrentados, no entanto, poder-se-ia dizer que muito se avançou, sendo que
as políticas municipais de meio ambiente são um exemplo disso.
NOTA
Agradeçemos a Eduardo Viola pelos comentários críticos à versão original deste
texto.
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70
ESTADO E MUNICÍPIOS: PARCEIROS NA EDUCAÇÃO
ESTADO E MUNICÍPIOS
parceiros na educação
ROSE NEUBAUER
Secretária de Estado da Educação
A
s Diretrizes do Plano do Governo Covas enfatizam o papel do Estado como articulador e
formulador de políticas, particularmente no setor social, preconizando a desconcentração e a descentralização. A estratégia implica a redistribuição das responsabilidades entre o Estado e os agentes sociais e a delegação, onde couber, da prestação de serviços ao público.
Com o objetivo de reduzir a desigualdade social, vêm
sendo desenvolvidas reformas que visam maximizar recursos, privilegiar um novo padrão de relacionamento com
o poder municipal e incentivar a indispensável participação municipal na promoção de soluções para os problemas da educação básica.
Para esta administração, municipalizar significa criar
e fortalecer a parceria com os governos municipais.
Estabelecidas as diretrizes gerais norteadoras da relação
Estado-Município e as específicas na prestação do serviço
ao cidadão, a relação direta com a população demandatária
compete ao município. Municipalizar, pois, vai além de
descentralizar, de desconcentrar: o município compartilha
responsabilidades a partir de negociações estabelecidas
caso a caso. Desconcentrar, descentralizar e municipalizar
são formas que se complementam, na distribuição do poder
e da decisão sobre os recursos financeiros que o sustentam.
A Educação constitui-se numa das áreas em que é mais
premente a necessidade, hoje, de descentralizar e
desconcentrar. O esforço de atender a todas as crianças e
jovens em idade de escolarização obrigatória traduziu-se,
nas administrações passadas, na expansão quantitativa da
rede de ensino estadual, que atualmente conta com cerca
de 6.700 escolas e 240 mil professores, atendendo mais
de 6,5 milhões de alunos. Do total dos alunos no Estado
de São Paulo, 80% estudam em escolas do Estado, o que,
por si só, representa, para a Secretaria de Estado da Educação, uma realidade inadministrável, independentemente
do volume de recursos disponíveis.
Universalizou-se o acesso à escola, porém, a política
de construção de salas de aula e a multiplicação de turnos,
com jornada escolar reduzida, tiveram um preço alto para
o aluno, para o professor e para a administração central.
O processo de ensino-aprendizagem foi seriamente
prejudicado, como o demonstram as altas taxas de evasão e reprovação – com problemas no fluxo escolar – e
os baixos índices de conclusão da escolarização básica. As medidas para melhorar a qualidade do ensino –
implantação do Ciclo Básico, e da Jornada Única no
Ciclo Básico, criação de Cefams, de Oficinas Pedagógicas e de Escolas-Padrão –, embora importantes, traduziram-se em ações que não afetaram o modelo adotado de gestão centralizada.
Não houve, também, a necessária modernização dos
mecanismos de gerenciamento da educação, com vistas a
aumentar a produtividade, a eficiência e a eficácia dos
serviços prestados. Ao contrário, o que se verificava era
o crescimento de órgãos ligados ao sistema, por meio da
criação de estruturas paralelas, que competiam entre si
para alcançar os seus objetivos. 1 Exemplo disso era a
superposição de ações de capacitação através da Coordenadoria de Estudos e Normas Pedagógicas (Cenp) e da
Fundação para o Desenvolvimento da Educação. Também
ocorreu a autonomização de órgãos da estrutura da Secretaria. Foi o caso da Fundação para o Desenvolvimento
da Educação (FDE), que, encarregada das construções
escolares, atendia a solicitações de obras independentemente de um planejamento racional de demanda, coordenado pelo Gabinete.
71
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 10(3) 1996
Além disso, tendo em vista que a rede estadual cresceu de forma desmesurada e adquiriu proporções gigantescas, tornou-se impossível resolver, no âmbito central,
todos os problemas que povoam o cotidiano do trabalho
escolar. Conseqüentemente, a descentralização, na medida em que permite um controle maior da escola pelas
comunidades locais, torna-se o caminho mais seguro para
aumentar significativamente a eficiência e a eficácia das
ações que estão sendo desencadeadas, com o objetivo de
superar a superposição de competências dos órgãos administrativos, bem como a ausência de mecanismos de
controle e a avaliação.
O governo do Estado e a Secretaria da Educação sabem que a descentralização não irá resolver todos os problemas do ensino público. Acredita-se também que o caminho da descentralização não dispensa o Estado e a
Secretaria da Educação de trabalharem pela melhoria da
educação básica. Ao contrário, o Estado deverá potencializar seu papel de planejador e coordenador de políticas
públicas, através do estabelecimento de diretrizes sobre
conteúdos curriculares básicos, uso racional dos recursos,
avaliação dos resultados de ensino, transferência de recursos e garantia de eqüidade, para compensar as desigualdades entre os municípios.
Nesta administração, o processo de descentralização
do ensino público tem origem na busca de se equacionar
os graves problemas que desqualificam a oferta da educação fundamental. Partiu-se do pressuposto de que o aluno não possui vinculação administrativa – não é aluno
municipal ou estadual – e tem o direito constitucional de
ser atendido pelos poderes públicos, de preferência em
regime de colaboração. Essa postura realçou a evidência
de que o envolver a representação municipal é essencial
no processo de melhoria do ensino. Assim, foi institucionalizado o Programa de Ação de Parceria Estado-Município (Decreto no 40.673, de 16/02/96) para Atendimento
ao Ensino Fundamental, envolvendo um processo de negociação na alocação dos recursos públicos estadual e
municipal. Este compromisso tem o propósito de estender o acesso de toda a população infanto-juvenil ao Ensino Fundamental, de ampliar os anos de permanência do
aluno na escola e de priorizar a melhoria da qualidade do
processo ensino-aprendizagem.
A parceria negociada tem propiciado, através da discussão com os administradores municipais, um processo
de implementação das propostas de mudança. O significativo número de convênios firmados nos primeiros seis
meses de negociação mostrou a convicção, de ambas as
partes, de que somente a ação conjunta Estado/Município possibilitará a melhoria da qualidade do ensino.
Antes de apresentar maiores detalhes sobre o processo
de municipalização, serão brevemente descritas algumas
ações da Secretaria de Educação desencadeadas a partir
de 1995, que se constituíram indispensáveis facilitadores
para a parceria Estado-Município.
CONDIÇÕES PARA A
DESCENTRALIZAÇÃO DO ENSINO
Uma proposta consistente de descentralização não
poderia lograr êxito em uma estrutura marcadamente
centralizada – clientelista – onde conviviam estruturas
“paralelas”, desempenhando as mesmas funções. Para
implementar uma proposta conseqüente de descentralização do ensino, era necessário iniciar um processo de
significativas mudanças nos padrões de gestão da máquina
pública e de organização da rede escolar, isto é, criar
condições à estruturação da política educacional do Estado.
Mudanças nos Padrões de Gestão
A atual administração tem buscado evitar a superposição de atribuições e competências entre órgãos administrativos, encurtar as distâncias decisórias, reduzir os níveis intermediários, desconcentrando recursos e decisões
no âmbito regional. O novo padrão de gestão tem como
princípio a desconcentração do poder decisório, com fortalecimento da autonomia da escola.
Nesse sentido, várias ações foram desencadeadas,
como, por exemplo, a extinção das dezoito Divisões Regionais de Ensino – instâncias intermediárias entre as Coordenadorias e as Delegacias de Ensino –, que ocorreu
no primeiro dia da gestão Mário Covas. Foram também
instaurados critérios democráticos para escolha dos 146
delegados de ensino. Além disso, órgãos centrais com
funções duplicadas ou praticamente “autônomas” sofreram um processo de enxugamento e tiveram suas ações
eventualmente redirecionadas.
Iniciou-se a reestruturação da Secretaria, visando a
descentralização e conseqüente aumento da agilidade nas
decisões decorrentes da diminuição de escalões hierárquicos. Alterações importantes na estrutura de poder e de
decisão da Secretaria ocorreram. Um exemplo: o Gabinete recuperou o papel de coordenação e articulação das
ações a serem desenvolvidas em conjunto com os órgãos
centrais, envolvendo as Delegacias de Ensino. Enquanto
isso a Fundação para o Desenvolvimento da Educação
(FDE), que vinha, inadequadamente, dividindo o poder
decisório com o Gabinete, assumiu o papel de executor
de políticas.
Nesse cenário remodelado, foi possível à Secretaria de
Estado da Educação dirigir suas ações para a questão pedagógica e para a estrutural. Priorizam-se a parceria educacional e a reforma institucional, que situam a Delega-
72
ESTADO E MUNICÍPIOS: PARCEIROS NA EDUCAÇÃO
TABELA 1
cia de Ensino como a unidade regional mais apta a assistir tecnicamente à unidade de gerência dos sistemas municipais de ensino. Da mesma forma, o repasse de recursos financeiros diretamente à escola para aquisição de
equipamentos e materiais de ensino e para conservação e
reparos aumentou a autonomia da unidade escolar na implementação de seu projeto pedagógico.
A autonomia, no âmbito da escola, deve reproduzir a
desconcentração do poder decisório, o que significa envolver a comunidade na gestão da qualidade do ensino.
A Secretaria de Educação vem repassando recursos para
a escola, parte dos quais são administrados diretamente
pela Associação de Pais e Mestres, a quem compete, em
conjunto com a equipe técnica, definir as prioridades de
aplicação dos mesmos: manutenção e reparação do prédio, aquisição de equipamentos e materiais pedagógicos.
Também o Conselho Estadual de Educação, ao disciplinar a aplicação dos gastos dos municípios com manutenção do ensino – limitando as possibilidades de aplicações oblíquas, em merenda, ações de saúde e construção
de quadras esportivas fora das escolas –, vem estimulando os municípios a despender com maior eficácia os recursos obrigatoriamente destinados ao ensino.
Essas mudanças no padrão de gestão sinalizam um novo
caminho e criam a credibilidade necessária para que os
governos municipais sintam-se motivados a aderir ao Programa de Parceria e, em regime de colaboração, possam
aperfeiçoar o atendimento às necessidades de educação
básica.
Número de Escolas e de Salas e Relação Sala/Escola,
segundo Data de Criação do Estabelecimento da Rede Estadual
Estado de São Paulo – 1969-90
Data de Criação
Escolas
Até 1969
1970 a 1974
1975 a 1979
1980 a 1984
1985 a Março/1990
3.167
213
744
766
1.440
Salas
38.703
2.475
8.042
6.378
8.558
Salas/Escola
12,2
11,6
10,8
8,3
5,9
Fonte: Secretaria de Estado da Educação.
pequena distância, outra escola oferecia as mesmas
oportunidades de acesso (Tabela 1). Esse modelo pedagógico, que atendia numa mesma escola diferentes modalidades e níveis de ensino, vinha exigindo, de modo contínuo, mais espaço físico e mais recursos materiais e
humanos.
O que a Secretaria propôs (e implementou a partir de
1995) foi um modelo de escola especializada no atendimento às crianças menores (1ª à 4ª série), separada fisicamente da outra escola onde se concentram os alunos de
5ª à 8ª série e do 2º grau (Secretaria de Estado da Educação, 1995).
Este modelo, uma vez implantado, permite a otimização de recursos pedagógicos, equipamentos didáticos,
material de instrução adequado a cada faixa etária, programas específicos de aperfeiçoamento de pessoal e maior
homogeneidade dos alunos, proporcionando ganhos favoráveis à melhoria da qualidade do ensino. Além disso,
tais medidas de racionalização geram economia em equipamentos físicos e infra-estrutura e permitem canalizar
maiores somas de recursos para melhor remunerar o professor e equipar salas de aula. As modificações promovidas na estrutura das escolas da rede pública estadual
possibilitam:
- melhoria das condições de realização do trabalho pedagógico – maior adequação do processo de ensino às faixas etárias dos alunos;
A Reorganização do Ensino
A unificação dos antigos primário e ginásio, feita em
meados da década de 70, não garantiu a escola de oito
anos para todos os alunos. Houve duplicação de trabalho
e recursos. Estudos feitos na Secretaria da Educação a
respeito das políticas de atendimento à demanda encontram no documento “Exercício Analítico de Política Educacional: o caso do Estado de São Paulo” (Perez, 1991)
os elementos demonstrativos da irracionalidade da construção e ocupação dos prédios escolares, gerando desperdício de recursos materiais e humanos. Havia tanto
um excesso de turnos, pela ausência de planejamento e
distribuição mais adequada das classes e dos alunos, quanto uma pulverização de classes da mesma série em diferentes estabelecimentos escolares. Isso contribuía fortemente para a crescente dificuldade de os professores
completarem a jornada normal de trabalho num único estabelecimento. Um prédio de pequeno porte (e este tipo
de construção passou a ser o mais freqüente) atendia aos
vários tipos de ensino: pré-escolar, educação especial,
1o grau completo (de 1ª à 8ª série), 2o grau. Não raro, a
- composição da jornada de trabalho do professor em
uma única escola e conseqüente maior fixação do corpo
docente;
- adequação dos espaços físicos e equipamentos a cada nível de ensino, segundo a faixa etária da clientela atendida;
- funcionamento da maioria das escolas em dois turnos
diurnos e, no caso de 5ª à 8ª série e 2º grau, também utilizando o noturno. As escolas que mantêm classes de Ciclo Básico à 4ª série funcionando, preferencialmente, em
dois turnos diurnos garantem a ampliação da jornada dos
alunos de quatro para cinco horas de trabalho diário.
73
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 10(3) 1996
Esta situação tem sua origem no poderio econômico do
Estado de São Paulo, em que o processo de urbanização,
a industrialização e a modernização contribuíram decisivamente para que a educação, em geral, ficasse centralizada quase integralmente nas mãos do governo estadual.2
Avaliando, talvez, que a municipalização só ocorreria
em São Paulo por um processo de negociação que incluiria repasse de recursos, os diferentes governos de São
Paulo nunca abdicaram da responsabilidade de cuidar do
ensino de 1o grau. Ao mesmo tempo – gradativamente,
no início, e totalmente, mais tarde – incentivaram os municípios a assumirem a responsabilidade pela oferta e manutenção de educação pré-escolar.
Em 1995, apenas 72 dos 625 municípios paulistas
mantinham rede de escolas de Ensino Fundamental. A
participação dos municípios nesse grau de ensino não atingia 10% do alunado do Estado de São Paulo, e sua distribuição era irregular no conjunto dos municípios. A Prefeitura de São Paulo, tomada isoladamente, atendia a
77,5% de todos os alunos “municipais” do Estado. Dos
demais 71 municípios, Campinas, Santos, São José dos
Campos, Guarujá, Cubatão e Ribeirão Preto atendiam a
14,8% da demanda, somando, com o município de São
Paulo, 92,3% do universo do alunado no Ensino Fundamental municipal. Dos 65 restantes, quatro municípios
mantinham, exclusivamente, escola unidocente e atendiam,
somados, a uma centena de alunos.
Não obstante a exigüidade das experiências de municipalização e uma certa “resistência” cultural dos educadores paulistas em tratar do tema, é possível afirmar
que, na década de 80, em certos aspectos, ocorreram
alguns avanços.
Até o advento da Lei no 5.692/71, Estado e Municípios respondiam, na mesma proporção, pela insignificante
oferta de vagas na educação pré-escolar, ao mesmo tempo em que o governo estadual respondia quase integralmente pelo Ensino Fundamental, cujo ritmo de expansão
era intenso. A questão da descentralização da Educação
Básica no Estado de São Paulo só começa a ganhar força
a partir dos anos 80.
Por um lado, tiveram lugar amplas discussões sobre o
tema. Conceitos, propostas de participação e políticas de
descentralização foram colocados em debate. Houve, nesse
breve período, uma socialização da temática da descentralização para amplos segmentos da sociedade civil. Por
outro lado, em muitos municípios do estado, foram instituídas as Comissões Municipais de Educação, apontando
para a necessidade de se descentralizar o ensino e de redistribuir o poder local, com maior envolvimento da sociedade civil. Como diz Azanha (1990), este foi o momento de “municipalizar a preocupação com o problema
educacional”, e ele foi especialmente importante porque
TABELA 2
Número de Escolas e Classes no Programa de Reorganização
da Rede Pública Estadual, segundo o Número de Turnos
Estado de São Paulo – 1995-96
Número de
Turnos
Situação
em 1995
Escolas
Total
Situação
em 1996 (1)
Classes
Escolas
Classes
Diferença (%)
Escolas Classes
6.783
186.223
6.706
178.207
5
214
8.429
150
6.682
-30
-21
4
825
30.569
388
15.316
-53
-50
3 Diurnos
254
3.732
124
2.720
-51
-27
2 Diurnos +
Noturno
4.344
133.594
3.385
115.377
-22
-14
2
999
8.935
2.360
36.577
+136
+309
1
147
964
299
1.535
+103
+59
Fonte: Secretaria de Estado da Educação.
(1) Situação em 14/05/96.
A redução significativa no número de escolas que funcionavam com mais de três turnos e a ampliação das que
passaram a contar com dois e mesmo um turno terão inegáveis reflexos positivos sobre as condições de ensino
(Tabela 2).
A reorganização da rede pública estadual, dentro do
contexto de um modelo pedagógico de separação física
de crianças e jovens pré-adolescentes e adolescentes, resultou em condições mais propícias à municipalização do
ensino de 1ª à 4ª série do 1o grau.
Além disso, a reorganização tornou possível transferir
aos municípios uma escola mais bem organizada, com
corpo docente fixo, recursos materiais e didáticos adequados e salas ambiente apropriadas às crianças de 1ª à 4ª série.
Uma escola na qual o município pode dar continuidade ao
trabalho que já vem desenvolvendo na pré-escola.
A unidade pedagógica representada por este segmento
e as primeiras séries do 1º grau é uma realidade em número significativo de países. Para o governo estadual,
passar para o município uma escola bem estruturada é
essencial para alicerçar as pré-condições necessárias à
consolidação de uma parceria eficiente e eficaz, que resulte na melhoria qualitativa da educação básica.
A INCIPIENTE MUNICIPALIZAÇÃO
DO ENSINO OCORRIDA ATÉ 1994
A responsabilidade pela manutenção e gestão do Ensino Fundamental coube, historicamente, ao governo estadual, que tem arcado, ao longo dos últimos anos, com
praticamente 80% das matrículas desse grau de ensino.
74
ESTADO E MUNICÍPIOS: PARCEIROS NA EDUCAÇÃO
a municipalização só terá êxito, ou seja, só possibilitará
um salto de qualidade nos atuais padrões de ensino, se
for discutida e assumida responsavelmente pelas comunidades locais.
Entretanto, a natureza intrínseca dos programas colocados em prática, nas décadas de 80 e 90, bem como a
falta de “vontade política” das autoridades estaduais em
transferir, de fato, recursos e responsabilidades, fizeram
com que a descentralização do ensino de 1o grau caminhasse a passos lentos. Os resultados alcançados até final
de 1994 podem ser considerados decepcionantes. Entretanto, pequenos avanços merecem ser destacados:
- em 1984, foi criado o Programa de Municipalização da
Merenda Escolar (Decreto no 4.021, de 22/05/84), único
programa deste período universalizado em mais de 90%
dos municípios, com o objetivo de fornecer alimentação
escolar a todos os alunos das redes estadual e municipal;
- em 1989, foi instituído o Programa de Municipalização
do Ensino Oficial no Estado de São Paulo – PME (Decreto no 30.375, de 13/09/89), expressando em suas considerações iniciais que o Estado devia participar do esforço
cooperativo para criar condições reais para melhorar o
ensino. Reconhecia também que a ação integrada Estado-Prefeitura e Comunidade poderia melhorar, significativamente, a aplicação dos seus recursos na escola pública, em razão da maior agilidade na identificação dos
problemas, proposição de soluções e tomada de decisão
em nível local. Foram assinados 346 convênios, em geral
com pequenos municípios. Por outro lado, foi implantado em 165 dos municípios que celebraram Termo de Aditamento ao Convênio do PME, o Centro Integral de Material de Apoio Didático e Pedagógico – CIMADP. A
permissão de uso, pelas prefeituras municipais, dos equipamentos e materiais didático-pedagógicos foi realizada
a título precário, sem qualquer ônus para o Estado. Cabia
ao município a responsabilidade pelos encargos advindos
de assistência técnica e de pessoal necessário à utilização
dos mesmos. Com a exceção da distribuição desses “kits
pedagógicos”, nada foi feito para resolver as questões relativas ao ensino propriamente dito. Os convênios assinados contemplaram, basicamente, construções escolares.
Mesmo assim, é possível afirmar que algum ganho resultou no que concerne à idéia de descentralização, ou seja,
passou a existir um maior envolvimento das autoridades
municipais, em parceria com o Estado, na construção,
reforma e ampliação dos prédios escolares;
- em 1990, a Secretaria criou o Termo de Cooperação
Intergovernamental – TCI (Decreto no 32.292, de 24/09/90),
visando integrar e articular as relações governamentais.
Caberia ao Município providenciar terreno de sua
propriedade enquanto o Estado executaria a construção
do prédio e equiparia a escola para atender à demanda de
Ensino Fundamental. Caberia ao Estado, ainda, prestar
orientação técnico-pedagógica e administrativa para a
implantação e/ou desenvolvimento dos sistemas municipais de educação. O TCI, de fato, tal como proposto,
caminhava no sentido de estimular e encorajar os
municípios a assumirem as suas responsabilidades
constitucionais. O fato de ter sido concebido em final de
governo fez com que nascesse praticamente morto.
Nenhum convênio foi assinado, apesar do interesse de
dezenas de municípios. Por fim, em 15 de março de 1991,
a Comissão Especial para Cooperação, encarregada de
analisar os pedidos dos municípios, formada por representantes dos diferentes órgãos da Secretaria, teve os seus
trabalhos suspensos em razão da mudança de governo;
- por fim, em 1993, foi instituído o Programa de Ação
Cooperativa Estado-Município – PAC (Decreto no 36.546,
de 15/03/93) para construções escolares. O objetivo principal do Programa era o de contribuir para a expansão e
melhoria do ensino e propiciar a todas as crianças condições reais de acesso à escola, assim como nela garantir
sua permanência e progressão.
O PAC e o PME eram muito semelhantes, pois na essência os dois possuíam como foco principal as construções escolares. O PAC, entretanto, significou um retrocesso em relação ao TCI, que tinha um caráter mais
abrangente e municipalizante.
As propostas de municipalização, colocadas em prática a partir de 1989, isto é, a partir das recomendações da
Constituição de 1988 relativas à responsabilidade do
Município pelo Ensino Fundamental, ao limitarem a descentralização da educação básica a repasses de recursos
para construções, reformas e/ou ampliações de prédios
escolares, coadunavam-se muito mais com práticas clientelistas e de troca de favores do que com novos modelos
de gestão mais ágeis e efetivos, que se faziam necessários no cenário educacional.
As críticas a tais propostas são muitas e de diferentes
ordens. Elas dizem respeito ao fato de que o processo
ocorreu de forma desarticulada, pois não existia um Plano de Educação que estabelecesse as diretrizes mais gerais da política educacional e articulasse as ações do Estado e dos Municípios paulistas. Apontam, também, o fato
de que os Programas de Municipalização do Ensino não
conseguiram ir além do repasse de recursos para as prefeituras.
Tais propostas, portanto, não redundaram na ampliação de tarefas e responsabilidades pelos municípios, para
as atividades-fins da educação fundamental e tampouco
fortaleceram seu poder de decisão sobre a gestão das
escolas. Restringiram a ações típicas de função-meio –
merenda, construção, reforma, ampliação –, não atingindo a finalidade substantiva, ou seja, o ensino. As
75
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 10(3) 1996
propostas eram, portanto, parciais, com efeitos pontuais e não promoviam a assunção integral das escolas
pelos municípios.
Dessa maneira, incentivam-se as ações e os esforços
municipais que já caminhavam no sentido da descentralização e, ao mesmo tempo, os demais municípios são convencidos e encorajados e assumirem responsabilidades cada vez
maiores quanto à gestão do Ensino Fundamental.
O NOVO PADRÃO DE PARCERIA
PROPOSTO A PARTIR DE 1995
Da Proposta à Ação
Segundo as diretrizes da Secretaria de Estado da Educação, todo o processo de transferência para os municípios da responsabilidade gerencial e financeira quanto à
oferta de ensino de 1a à 4a série do 1o grau deve levar em
conta as profundas desigualdades entre os municípios do
Estado de São Paulo. Tais desigualdades evidenciam-se
nos indicadores demográficos, sociais, econômicos e educacionais e nas condições técnico-administrativas e financeiras dos municípios.
O Programa de Parceria Estado-Município está pautado pelo princípio básico da flexibilidade: negociar a decisão “caso a caso“, dialogando com os prefeitos e/ou
autoridades municipais e considerando sempre a realidade local. Para ampliar o conhecimento das realidades
municipais, estruturou-se um banco de dados, por município, contendo as informações essenciais que devem
embasar o processo de negociação. Isto foi conseguido
graças aos dados provenientes da Fundação Estadual de
Análise de Dados – Seade e aos estudos analíticos sob a
responsabilidade da Fundação do Desenvolvimento Administrativo – Fundap.
Com tais elementos, foi possível identificar municípios
com capacidade técnica, administrativa e financeira para
assumir integral ou parcialmente o ensino das primeiras
séries do Ensino Fundamental e, inversamente, municípios sem infra-estrutura técnico-administrativa e, portanto,
com enormes dificuldades para participar da parceria.
Ficou claro, desde o início, que para estes últimos, ao invés de se transferir “encargos”, seria necessário repassar
mais recursos, além de oferecer assistência técnico-pedagógica permanente. Pouco sentido faria municipalizar o
ensino se, sob a gestão municipal, por carências técnicas,
financeiras e administrativas, houvesse o risco de se degradar o serviço oferecido.
A descentralização, portanto, só poderia desenvolver-se
por etapas, isto é, de maneira gradual e flexível, de modo a
permitir que a Secretaria e os municípios se organizassem
para enfrentar conjuntamente esse desafio. Em todas as etapas do processo, considera-se que as ações ocorrem no âmbito de dois poderes públicos autônomos. Por isso, ao iniciar o processo, a Secretaria ofereceu um leque amplo de formas
de parceria, contemplando as desigualdades socioeconômicas e culturais entre os municípios, sua capacidade financeira e de arrecadação, além da “vontade política” municipal
para assumir as quatro primeiras séries do 1o grau.
Ao implementar o Programa de Parceria EstadoMunicípio para o atendimento das quatro primeiras séries
do 1o grau, a Secretaria estava ciente dos desafios a serem
superados: administrativos, gerenciais, financeiros,
pedagógicos, além dos desafios políticos propriamente
ditos. Para enfrentá-los, foi desenvolvido um trabalho
sistemático de divulgação e discussão do Programa de
Parceria, no contexto das mudanças dos padrões de gestão
propostos pela nova política educacional. Era preciso
colocar em discussão a importância da gestão descentralizada numa máquina administrativa em processo de
enxugamento, objetivando torná-la ágil e moderna.
A administração iniciou diálogo com prefeitos, secretários municipais de Educação, deputados e vereadores,
visando esclarecer o objetivo do Programa. Paralelamente, buscou assegurar instrumentos normativos consistentes, técnica e legalmente, que possuíssem credibilidade
para os parceiros ao assumirem os novos encargos educacionais. Dessa forma, a Secretaria da Educação passou
a conhecer melhor as realidades municipais, bem como as
expectativas dos prefeitos em relação à municipalização.
O processo de negociação, por um lado, constituiu-se
em instrumento essencial para reverter a imagem negativa que muitos prefeitos tinham da municipalização do
ensino e, por outro, foi fundamental para a Secretaria assegurar aos prefeitos e/ou outras autoridades locais de que
a municipalização não se restringia a acertos de gabinete.
Ao contrário, o assunto deveria ser público e abranger a
comunidade local. Com isso, a futura escola municipalizada teria melhores condições de se transformar em um
organismo vivo e atuante na vida dos seus cidadãos.
Esse procedimento possibilitou divulgar o Programa
de Parceria a cerca de 60% dos municípios do Estado de
São Paulo, esclarecendo-os acerca das suas novas responsabilidades e encargos educacionais, e apontando soluções para problemas administrativo-operacionais.
Formalização da Parceria Estado-Município
A necessidade de realizar estudos preliminares e levantamentos socioeconômicos, definir instrumentos
para apoiar e sistematizar o processo de negociação, além
de implementar a reorganização da rede de ensino, fez
com que o Programa de Municipalização do Ensino fosse
76
ESTADO E MUNICÍPIOS: PARCEIROS NA EDUCAÇÃO
TABELA 3
TABELA 4
Municípios Conveniados no Programa de Ação de Parceria
Educacional Estado-Município para o Atendimento ao Ensino
Fundamental, segundo Porte dos Municípios
Estado de São Paulo – 1996 (1)
Número de Escolas, Classes e Alunos, segundo os Municípios do
Programa de Ação de Parceria Educacional Estado-Município para o
Atendimento ao Ensino Fudamental, com Ônus para o Governo do Estado
Estado de São Paulo – 1996 (1)
Municípios
Municípios
Total
Porte do Municípios
(habitantes)
Total
os
N Abs.
Escolas
Classes
Alunos
96
1.225
42.157
Conveniados
%
os
N Abs.
%
1
Ariranha
1
18
630
625
100,0
46
100,0
2
Bady Bassitt
1
21
761
Muito Grandes (mais de 100 mil)
48
7,7
7
15,2
3
Bertioga
6
33
1.180
Grandes (de 50 a 100 mil)
54
8,6
1
2,2
4
Braúna
1
13
455
108
17,3
7
15,2
5
Brodósqui
3
45
1.456
Pequenos (de 10 a 20 mil)
128
20,5
11
23,9
Muito Pequenos (até 10 mil)
287
45,9
20
43,5
6
Canitar
1
11
346
7
Cardoso
1
10
314
8
Coroados
1
13
369
9
Descalvado
4
62
2.004
1
14
388
Total
Médios (de 20 a 50 mil)
Fonte: Fundação IBGE. Censo Demográfico 1991. Rio de Janeiro, 1992; Secretaria de Estado da Educação.
(1) Refere-se ao primeiro semestre.
10 Glicério
instituído formalmente somente no dia 25 de março de
1996. Nessa ocasião, foram prestados esclarecimentos
sobre o Programa e sua sistemática e assinados convênios com os municípios de Jundiaí, Santos e Ilha Solteira.
Além disso, 90 prefeitos manifestaram sua adesão, firmando Protocolo de Intenção.
Dessa data até 28 de junho, foram firmados 46 convênios (Tabela 3).Tendo em vista que a Lei Eleitoral
impede a transferência de recursos de qualquer natureza aos municípios no período de 90 dias antes e após
as eleições, vários municípios defrontaram-se com um
prazo exíguo para completarem todas as etapas relativas à assinatura de convênios. Isto impossibilitou a execução de novos convênios com várias Prefeituras interessadas.
Nas 46 prefeituras onde a parceria já está firmada, foram municipalizadas 151 escolas, que oferecem Ensino
Fundamental de Ciclo Básico até a 4a série. Ou seja, 1.460
classes com cerca de 50 mil alunos já passaram para os
municípios, envolvendo a cessão de cerca de mil professores I efetivos. Nesta etapa, os compromissos financeiros do Estado neste Programa, concernentes a 34 municípios, somam R$ 13,2 milhões e aqueles referentes às
prefeituras totalizam R$ 17,1 milhões (Tabela 3). Os demais (doze) aderiram ao Programa, assumindo escolas –
ainda que fosse apenas uma – sem qualquer ônus para o
Estado, o que indica o sucesso da proposta, iniciando a
reversão da política até hoje praticada de concentração,
no Estado, das responsabilidades pelo atendimento à educação básica, em que pese as recomendações da Constituição de trabalhar em regime de parceria.
11 Ilha Comprida
1
5
175
12 Ilha Solteira
2
53
1.820
13 Irapuã
2
22
706
14 Itajobi
1
8
280
15 Itapevi
5
63
2.123
16 Itatiba
72
108
3.639
17 Jales
1
6
210
27
381
14.010
19 Lençóis Paulista
1
6
427
20 Marapoama
1
6
180
21 Mesópolis
1
6
187
22 Miguelópolis
2
52
1.783
23 Miracatu
1
4
150
18 Jundiaí
24 Orindiúva
1
12
399
25 Palmares Paulista
2
12
420
26 Palmeira d’Oeste
2
31
894
27 Pontes Gestal
1
6
192
28 Restinga
1
12
280
29 Rubinéia
1
7
207
30 Sales
1
8
256
31 Santa Rita d’Oeste
1
9
233
10
136
4.706
33 Tabapuã
2
22
632
34 Tarumã
2
10
345
32 Santos
Fonte: Secretaria de Estado da Educação.
(1) Refere-se ao primeiro semestre.
77
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 10(3) 1996
- quanto aos objetivos:
• estabelecer um processo de parceria técnico-administrativa entre o Estado e os municípios, para que estes
possam assumir integral ou parcialmente os serviços
concernentes à condução do Ensino Fundamental;
• fortalecer a autonomia do poder local na busca de uma
escola pública de qualidade para todos.
- quanto às obrigações do Estado:
• cooperar com os municípios, quanto a recursos humanos, materiais e financeiros, para que os mesmos
assumam de forma integrada e racional as responsabilidades pelo Ensino Fundamental;
• prestar assistência técnica, pedagógica, administrativa e gerencial aos municípios, para que os mesmos
assumam o Ensino Fundamental com o máximo de
competência;
• supervisionar as redes municipais de ensino, visando
a manutenção de um padrão de qualidade de ensino e
eqüidade para todas as escolas;
• capacitar os municípios para o planejamento, a gestão
e a avaliação dos sistemas municipais de educação;
• criar mecanismos de compensação que superem as desigualdades financeiras, administrativas e técnicas dos
municípios na implementação dos seus programas educacionais;
• instituir uma sistemática de avaliação do sistema de
ensino com a finalidade de proceder às correções necessárias.
- quanto às obrigações do Município:
• criar e instalar o Conselho Municipal de Educação;
• providenciar a elaboração do Plano Municipal de Educação;
• elaborar o Estatuto do Magistério Municipal e o Plano de Carreira;
• realizar concurso público para ingresso em quadros
próprios do Município, de profissionais do magistério e pessoal técnico e administrativo;
• garantir a continuidade da Associação de Pais e Mestres ou associação similar.
- quanto ao processo de implantação:
• o processo de implantação do Programa será gradativo, conforme a adesão dos municípios, para a assunção total ou parcial do Ensino Fundamental da Rede
Pública estadual e da gestão educacional;
- quanto à pactuação:
• o processo levará em conta as peculiaridades locais e
regionais, adequando-se à capacidade técnico-administrativo-financeira de cada município;
- quanto a outras parcerias:
• garantir a possibilidade de sua realização quando se
fizerem necessárias, para o pleno cumprimento das atividades educacionais.
TABELA 5
Número de Escolas, Classes e Alunos, segundo os Municípios do
Programa de Ação de Parceria Educacional Estado-Município para o
Atendimento ao Ensino Fundamental, Sem Ônus para o Governo do Estado
Estado de São Paulo – 1996 (1)
Municípios
Total
1
2
Barueri
Embu
3
4
5
Itatinga
Mogi das Cruzes
Paranapanema
6
7
8
Paulínia
Pedreira
Porto Ferreira
9 Santa Gertrudes
10 São Caetano
11 São José do Barreiro
12 Silveiras
Escolas
Classes
Alunos
55
235
7.267
2
1
60
8
2.050
280
13
20
1
16
29
1
394
653
30
1
1
1
6
16
20
136
500
800
1
3
10
8
60
10
280
2.040
94
1
1
10
Fonte: Secretaria de Estado da Educação.
(1) Refere-se ao primeiro semestre.
Os Termos da Parceria
Desde o início do processo de municipalização, a Secretaria procurou obter informações seguras sobre as características socioeconômicas e educacionais municipais.
Sem isso, era praticamente impossível pensar em transferência do patrimônio, ou em garantir a situação funcional
dos recursos humanos. Essas precauções, embora necessárias, não eram suficientes para garantir a qualidade da
proposta de municipalização da atual gestão.
No campo jurídico-legal, peça fundamental, a
administração encontrou tudo por fazer. Como transferir o patrimônio? Como transferir o pessoal? Como
equacionar a carreira do magistério com o ensino
municipalizado? Caberia aos municípios realizarem
concursos públicos para o magistério e demais cargos
técnicos e administrativos? Respostas a essas questões
eram fundamentais para realizar a transferência de
serviços, encargos e recursos aos municípios. Era
preciso garantir que o Sistema de Ensino Público
municipalizado fosse resguardado de práticas que
pudessem colocar em risco a qualidade do ensino e os
direitos dos alunos.
Neste sentido, o Termo de Convênio, que entre si celebram o Município e o Estado de São Paulo – este representado pela Secretaria da Educação – objetivando a implantação e o desenvolvimento do referido Programa de
Ação, contempla os seguintes itens:
78
ESTADO E MUNICÍPIOS: PARCEIROS NA EDUCAÇÃO
O Programa de Ação de Parceria Educacional EstadoMunicípio para atendimento ao Ensino Fundamental apresenta a característica de flexibilidade porque respeita as
diversidades socioeconômicas, institucionais e culturais
existentes entre os municípios.
É preciso ressaltar que o Termo assegura a obrigação
da Secretaria de Estado da Educação de prestar assistência técnica ao Município para a gestão da rede escolar,
estruturação do órgão municipal de educação e do Conselho Municipal de Educação, elaboração do Plano Municipal de Educação, Estatuto do Magistério Municipal e
Plano de Carreira.
Finalmente, cabe lembrar que o Termo de Convênio
reforça o entendimento de que o Programa possibilitará,
às comunidades locais, maior controle sobre a escola e
sobre o trabalho dos educadores.
A continuidade da implantação dos demais programas
da Secretaria de Estado da Educação é garantida pelo compromisso município-parceiro, de observar as medidas decorrentes da reorganização da Rede Pública estadual.
e da prática da descentralização, num processo participativo;
- a ampla divulgação das condições de parceria entre os
principais interessados: novos prefeitos, autoridades locais e regionais, entidades ligadas à educação e aos interesses municipalistas.
Apoio Institucional e Gerencial
O objetivo deste programa é fornecer subsídios para o
gerenciamento do processo de descentralização, envolvendo todos os órgãos da estrutura central e descentralizada da Secretaria, com a finalidade, em última instância, de definir recursos, meios e procedimentos para
assessorar, implantar, acompanhar e avaliar a assistência
técnica aos municípios:
- aperfeiçoar as condições de planejamento, prosseguindo
nos estudos de caracterização do atendimento educacional
dos municípios, com vistas à definição de prioridades, como
base para negociação e acompanhamento dos resultados;
- demandar e dar prosseguimento a estudos para o apoio
institucional e gerencial aos municípios, bem como incorporar seus resultados na construção do processo de
gerenciamento da Rede Pública municipalizada;
- preparar a máquina administrativa para, no âmbito central e descentralizado, promover, acompanhar e dar assistência técnica aos municípios parceiros.
A CONTINUIDADE DO TRABALHO EM 1996
A operacionalização do Programa de Municipalização,
até o final do primeiro semestre de 1996, o processo de
desconcentração administrativa e a reorganização da rede
escolar, visando o novo modelo pedagógico estabelecido
pela Secretaria, representam passos de um longo caminho em direção à descentralização da gestão do ensino
básico e à autonomia da escola. Abrangem algumas condições que permeiam todas as etapas de um processo que
busca a melhoria do ensino público, em forte medida ancorada na municipalização do Ensino Fundamental. A
seguir são apresentadas ações que continuarão a ser implementadas até o final de 1996.
1997 E OS IMPACTOS DO FUNDO
Em 1997, as negociações da parceria Estado-Município irão prosseguir em um novo contexto institucional,
mais favorável à adesão dos municípios, devido a mudanças na Constituição federal.
Visando corrigir as grandes desigualdades existentes no
país quanto ao atendimento ao ensino fundamental, a Proposta de Emenda à Constituição (PEC, no 233), recém-aprovada pela Câmara Federal e Senado, cria um Fundo de Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do
Magistério,3 para homogeneizar a redistribuição de recursos entre o Estado e os municípios, levando em conta o número de alunos existentes nas respectivas redes de ensino.
A efetivação da Proposta de Emenda à Constituição4
irá ampliar as verbas aplicadas no Ensino Fundamental
ao redistribuir os recursos fiscais estaduais e municipais
a ele destinados. Por um período de dez anos, a aplicação
obrigatória, hoje de 50%, será estendida para 60%. Uma
parte dessa receita será administrada através de um Fundo, a ser instituído em cada estado e seus municípios. A
partir dos recursos do Fundo, será estabelecido o valor
do investimento estadual mínimo por aluno, a ser obtido
Sensibilização dos Futuros Parceiros
Este amplo programa de esclarecimentos visa a mobilização das autoridades municipais (inclusive os futuros
prefeitos e vereadores) e de grupos organizados de munícipes para o Programa de Parceria e Municipalização do
Ensino Fundamental. Para tanto, dados e informações são
oferecidos aos diferentes atores municipais, para sensibilizá-los a participarem, instalarem e ampliarem o debate local e com outras agências e instituições em âmbito
regional, sobre a temática da municipalização e descentralização. As ações de sensibilização enfatizam, entre
outros:
- o redimensionamento e a reorganização das forças
político-institucionais, na defesa da melhoria da gestão
da escola pública, através do fortalecimento do conceito
79
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 10(3) 1996
mediante a divisão do montante do Fundo pelo total de
alunos públicos no estado. Do total do Fundo, 60%, pelo
menos, deverão ser destinados ao pagamento do pessoal
do magistério.
Os recursos do Fundo serão constituídos por 15%
do total de transferências federais a estados e municípios e de transferências estaduais a municípios. 5 Definido um custo-aluno/ano eqüitativo, independente da
rede mantenedora ser municipal ou estadual, retira recursos do Fundo quem estiver administrando o ensino
fundamental.
Os municípios, atualmente, vêm aplicando uma parte
de seus recursos vinculados na educação fundamental,
embora não tenham sua própria rede. Na maioria das vezes,
despendem esses recursos, ao sabor das demandas das
escolas estaduais ou de outra natureza, cedendo funcionários, realizando pequenas reformas ou reparos, e
fornecendo transporte escolar. Com a aprovação do Fundo,
terão o desafio de aplicar 60% em educação fundamental,
porém num programa integrado e contínuo, com o
propósito definido de cuidar da educação de suas crianças,
numa rede própria, observando de perto os resultados do
sucesso de seus alunos munícipes.
A operacionalização do Fundo, conseqüentemente, virá
ao encontro da proposta de municipalização apresentada
pela Secretaria de Educação e reforçará ainda mais a parceria Estado-Município, recém-iniciada.
Neste novo cenário, o governo do Estado e a Secretaria de Educação, a partir da institucionalização do Fundo, pretendem:
- desenvolver estudos com as áreas competentes visando
a aplicação dos recursos do Fundo e verificar sua repercussão nos diversos municípios, agrupando-os segundo
certas características pertinentes às questões de receita e
seus reflexos;
- dar prosseguimento à mobilização para a parceria, estabelecendo, como meta, a adesão de 40% a 50% dos municípios paulistas, até o final de 1997;
- fornecer assistência técnica necessária aos municípios
que já assinaram o Termo de Parceria, nos diferentes aspectos que envolvem tanto a administração da educação
quanto os seus aspectos pedagógicos.
O processo de parceria deverá promover, a médio
prazo, a construção de uma administração autônoma da
rede escolar de 1 o grau, liberando paulatinamente o
Estado da tutela dessas escolas. Enquanto esse caminho vai sendo construído, é necessário acompanhar os
procedimentos legais, administrativos e as ações realizadas, para que o repasse de recursos e responsabilida-
des ocorra sem tropeços, e aperfeiçoando os serviços
educacionais oferecidos. Além disso, o Estado deverá
comprometer-se a realizar, periodicamente, a avaliação da aprendizagem em todas as escolas públicas, o
que lhe permitirá definir parâmetros para a implementação de ações de equalização.
Pretende-se alcançar, a médio prazo, um ensino público de qualidade, sob responsabilidade das autoridades locais e com apoio do Estado. Estamos convictos de que a
maioria dos problemas costuma ter soluções mais rápidas
quando enfrentados na base. Dificilmente uma organização gigantesca, como a rede estadual atual, tem condições
de oferecer respostas ágeis e adequadas às demandas locais. Ao Estado caberá estruturar os meios e efetivar a
coordenação de políticas e diretrizes que embasem a assistência técnica, administrativa, pedagógica aos municípios.
A escola municipalizada, com maior presença na e da comunidade e maior liberdade de utilização dos recursos para
enriquecer a sua proposta pedagógica, deverá representar o
ponto de partida e de chegada do processo educacional.
NOTAS
Texto baseado no relatório preliminar Estado e municípios: parceiros na Educação – municipalização: avaliação do processo. São Paulo, Secretaria Estadual de Educação, Assessoria Técnica de Planejamento e Controle Educacional,
Grupo de Estudos e Análises, agosto 1996.
Colaboraram, neste artigo, Luiz Antonio Carvalho Franco, Lia Reismann Pruks,
Alice Irene Hirschberg.
1. Vide estudos realizados pelo Núcleo de Políticas Públicas (NEPP) da Unicamp, contendo diagnósticos sobre a máquina administrativa da Secretaria de
Estado da Educação, acompanhamento e desempenho no âmbito do Projeto Inovações do Ensino Básico (IEB), financiado pelo Banco Mundial (Bird).
2. Não é por acaso que o Estado de São Paulo mantém três Universidades Públicas.
3. Ver, a esse respeito, Costa (1996) e Souza e Maluf (1995).
4. PEC 233, que altera, entre outros, a redação do Art.60 das Disposições Transitórias.
5. Trata-se dos seguintes: ICMS, FPE, FPM, IPI-Exportação.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
AZANHA, J.M.P. Uma idéia sobre a municipalização do ensino. São Paulo,
Fundap, v.3, 1990 (Relatório Final).
COSTA, V.L.C. “O Fundo para o Desenvolvimento do Ensino Fundamental e
Valorização do Magistério: questões federativas e impactos no Estado de
São Paulo”. Boletim de Conjuntura/Política Social. São Paulo, Fundap, n.
21, jan./abr. 1996, p.81-86.
PEREZ, M.C.R.C. (coord.). Exercício analítico da política educacional: o caso
do Estado de São Paulo. São Paulo, SEE, ATPCE/Centro de Informações
Educacionais, 1991.
SECRETARIA DE ESTADO DA EDUCAÇÃO. “Uma escola para a criança,
outra para o adolescente”. Educação paulista: corrigindo rumos - mudar
para melhorar. São Paulo, novembro 1995.
SOUZA, A.N e MALUF, M.M.B. “Plano de Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério”. Boletim de Conjuntura/Política
Social. São Paulo, Fundap, n.20, out./dez. 1995, p.18-26.
80
O MUNICÍPIO E A DESCENTRALIZAÇÃO DA SAÚDE
O MUNICÍPIO E A DESCENTRALIZAÇÃO
DA SAÚDE
ZILDA PEREIRA DA SILVA
Socióloga, Analista da Fundação Seade
A
redefinição do papel do Estado, nas últimas décadas, tem como uma de suas características a revalorização do poder local, através de inúmeras propostas de descentralização, que assumiram contornos diferentes em cada um dos países em que foram implantadas. De forma geral, a descentralização pode ser definida
como a transferência de poder do nível nacional para instâncias subnacionais, para planejar, gerir, executar e tomar decisões. No âmbito das políticas públicas, a descentralização significa um processo de reestruturação interna
ao aparelho de Estado, que perpassa as várias esferas de
governo, envolvendo aspectos políticos, administrativos,
técnicos e financeiros. Como parte desse processo, a municipalização tem ocupado espaço privilegiado nessa discussão, marcadamente na área de saúde.
Nesse sentido, cresce, cada vez mais, a idéia de que é
preciso conferir mais poder àqueles que estão perto dos
cidadãos e de suas necessidades. O município tem sido
identificado como espaço privilegiado para a satisfação
das demandas locais.
Compreender o papel que o município vem assumindo hoje, no Estado de São Paulo, requer o conhecimento
das características do processo de descentralização e os
antecedentes históricos na experiência brasileira.
como sinônimos da descentralização, outros como formas
ou etapas do processo de descentralização. Aqui, serão
tratadas apenas as condições que interessam ao tema.
Há consenso de que o conceito da descentralização é
complexo, pois envolve uma série de aspectos complementares e interdependentes – a direcionalidade do processo, a condição de meio ou fim e a participação social –
e deve ser sempre analisado a partir de sua associação a
um determinado objeto. “Se esse objeto é a administração pública, ou ainda, as políticas sociais, e estas são administradas/executadas por níveis ou esferas de Governo
(Central, Intermediário e Local), a descentralização pode
ser traduzida como a transmissão do comando, execução
ou financiamento desta política do nível Central para o
Intermediário ou Local” (Medici, 1994), com correspondente autonomia política, financeira e institucional.
O termo desconcentração traz em si também a idéia de
deslocamento do centro: transferir competências para
autoridades subordinadas, dentro da mesma esfera de
governo; ou retirar do centro as tarefas de execução, sem
que seja transferida a correspondente autonomia para
outras esferas de governo. Na área de saúde, esse modelo
pode ser traduzido como aquele em que, embora a execução dos serviços e as ações estejam a cargo da esfera regional ou local, os recursos, sejam financeiros ou gerenciais, continuam nas mãos do Governo central.
O importante a ressaltar é que a descentralização refere-se à redistribuição de poder político, ou seja, a transferência do centro das decisões para outras esferas, com
personalidades jurídicas distintas e autoridades eleitas
localmente, enquanto a desconcentração diz respeito à
distribuição territorial de atividades, com a delegação de
atribuições sem o deslocamento do poder decisório sobre
O PROCESSO DE DESCENTRALIZAÇÃO
O termo descentralização tem sido usado com diferentes significados, sendo preocupação de alguns autores1
tentar precisar o conceito. O termo tem sido relacionado,
com certa divergência, a outros conceitos como desconcentração, delegação, privatização, estadualização e municipalização. Alguns autores utilizam essas expressões
81
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 10(3) 1996
as mesmas. Pode-se dizer que a primeira tem, intrinsecamente, um caráter mais político e a segunda mais administrativo. Nesse sentido, do ponto de vista formal, a
municipalização se ajusta perfeitamente ao conceito de
descentralização.
Outra questão em que há concordância é quanto a descartar a dicotomia entre descentralização e centralização,
considerando-se mais útil tratar o processo como movimento entre dois pólos.
Em qualquer sistema de saúde, por exemplo, são necessários elementos centrais e locais; o que é preciso é
estabelecer o equilíbrio que convém conseguir, a direção
em que determinado país deve avançar e os meios de que
dispõe para alterar o equilíbrio existente (Mills, 1990).
Difícil é demarcar as tarefas dos diferentes níveis de governo. Não há muita dúvida sobre a atribuição às esferas
locais dos serviços de prevenção, promoção e atenção à
saúde, porém, no Brasil, ainda permanece alguma discussão sobre quem deva gerenciar os serviços que envolvem
consultas, exames e internações em especialidades médicas de alta complexidade. Muitos defendem que estes fiquem como atribuição das esferas regionais, no geral sob
o comando dos governos estaduais, apesar de alguns
municípios terem capacidade para geri-los. O que vem
crescendo como tendência é a visão de que à União deva
ficar o papel de “regular, fiscalizar e financiar o investimento e a eqüidade quanto ao custeio, fixando padrões
de cobertura e qualidade e evitando que Estados e Municípios sem recursos não tenham como realizar as ações
básicas exigidas pelo nível central do sistema de saúde”
(Medici, 1994).
A questão da autonomia financeira é outro fator importante na análise dos processos de descentralização, uma
vez que a forma como se darão as transferências determina o grau de liberdade que os níveis locais têm para a
operacionalização das políticas envolvidas.
Medici (1994) acrescenta alguns conceitos para a classificação dos processos de financiamento da política de
saúde. A desconcentração financeira significa que a responsabilidade pelo gasto mantém-se sob o poder da esfera central, embora a execução é feita por uma agência sua
no nível local. A descentralização, que ocorre quando há
a passagem de responsabilidade do Governo federal para
o estadual ou municipal, pode ser classificada em dois
tipos quanto ao financiamento: a dependente e a autônoma. Na primeira, os recursos arrecadados pela esfera central são transferidos para a regional ou local e, na segunda, os recursos para financiar as ações descentralizadas
são próprios da esfera que irá executá-las. Nessa situação, obviamente, há maior flexibilidade para a utilização
dos recursos. Ainda em relação à descentralização dependente, esta pode ser de duas formas: a tutelada, ou
seja, quando as transferências são negociadas; e a vinculada, com transferências automáticas, em que os recursos
estão vinculados a critérios legalmente estabelecidos nas
legislações constitucional, complementar e ordinária.
Estas formas são complementares e, no geral, ocorrem
simultaneamente. No caso dos municípios, dificilmente
eles têm deixado de colocar recursos próprios, apesar dos
repasses da União e dos Estados.
A DESCENTRALIZAÇÃO NA ÁREA DE SAÚDE
E A EXPERIÊNCIA BRASILEIRA
A descentralização tem sido colocada como uma questão-chave para os países que desejam atingir a meta de
saúde para todos no ano 2000. A transferência e o controle dos serviços de saúde para os níveis locais vêm sendo recomendados como uma das principais estratégias para
o aumento da cobertura assistencial. A Organização
Panamericana de Saúde – OPS (1994) tem incentivado
os governos membros para que “continuem e reforcem
suas definições de política, estratégias, programas e atividades tendentes à transformação dos sistemas nacionais
com base no desenvolvimento de sistemas locais de saúde”, com vistas a conseguir a eqüidade, a qualidade e a
eficiência nos sistemas de saúde.
A avaliação da OPS conclui que quase todos os países
das Américas organizaram Sistemas Locais de Saúde (Silos), com significativos progressos, adequando o nível de
ação às divisões político-administrativas mínimas da organização do Estado (OPS, 1994). Em alguns países, como
o Brasil, os processos recentes de descentralização privilegiaram o fortalecimento e o desenvolvimento das esferas municipais.
A Constituição Federal de 1988 estabelece as bases
legais quanto ao novo papel do município no cenário institucional brasileiro. No seu art. 18, o texto constitucional evidencia a autonomia municipal, quando define que
“a organização político-administrativa da República Federativa do Brasil compreende a União, os Estados, o
Distrito Federal e os Municípios, todos autônomos, nos
termos desta Constituição”. O mesmo texto define a saúde como direito de todos e dever do Estado (art. 196) e
atribui aos municípios a competência de “prestar, com a
cooperação técnica e financeira da União e do Estado,
serviços de atendimento à saúde da população” (art. 30,
VII).
A idéia de descentralização, de uma forma geral, permeia esta Constituição, diferentemente da anterior (1967
e emenda de 1969), que tinha uma vocação centralizadora, própria do regime político em que foi imposta. Neste
particular, na área de saúde, a atual Lei Magna estabelece, no art. 198, inciso I, que “as ações e serviços públicos
82
O MUNICÍPIO E A DESCENTRALIZAÇÃO DA SAÚDE
de saúde integram uma rede regionalizada e hierarquizada e constituem um sistema único (...)” que tem como uma
de suas diretrizes “a descentralização, com direção única
em cada esfera de governo”. Isto conjuga, de forma lógica e sem conflito com outros dispositivos constitucionais,
o sistema de saúde com uma estrutura de federação integrada por esferas autônomas. Neste caso, a instituição da
descentralização da gestão e execução dos serviços, enquanto um dispositivo legal, consolida uma das bandeiras do movimento da Reforma Sanitária no Brasil.
Os caminhos que levaram à consolidação do atual sistema de saúde, o SUS, foram traçados de longa data, buscando modificar radicalmente o modelo assistencial anterior. A sobreposição de clientelas e de competências,
com pulverização de recursos, foi uma das principais características das políticas sociais em geral, e da saúde em
especial, nas últimas décadas. O Sistema Nacional de
Saúde2 não se configurava exatamente como um sistema,
uma vez que se apresentava como um conjunto de partes
que não se inter-relacionavam, nem se articulavam. Não
era nacional, porque as organizações e práticas de saúde
não atingiam o país como um todo; o atendimento era
diferenciado para a população urbana e rural; e existiam
órgãos que atendiam clientelas específicas. Outra característica do sistema era o enfoque no atendimento médico-hospitalar, não trabalhando com o epidemiológico. Do
ponto de vista político-administrativo, era centralizado,
com a decisão e a execução concentradas nos âmbitos
federal e estadual.
A partir de 1963, quando foi levantada a bandeira da
municipalização dos serviços de saúde, na III Conferência Nacional de Saúde, o pensamento de uma reforma no
sistema de saúde foi crescendo. Diversas foram as forças
sociais que, nas décadas seguintes, continuaram lutando
por uma Reforma Sanitária, contribuindo para a formação de uma consciência sanitária no Brasil. Departamentos universitários ligados à medicina social e à saúde pública, associações de profissionais de saúde, movimentos
populares e um conjunto de prefeitos com atuação voltada para as áreas sociais foram importantes atores nessa
luta (Carvalho, 1993).
A década de 80 foi particularmente efervescente. Idéias
e práticas foram crescendo e constituíram o que ficou
conhecida como a Proposta da Reforma Sanitária. Legítima pela sua origem de baixo para cima, foi consagrada
na VIII Conferência Nacional de Saúde (CNS), em 1986,
que foi precedida por amplo processo de discussão – inovador em relação às conferências anteriores –, com préconferências estaduais realizadas em 23 estados. A VIII
Conferência – um marco importante nos caminhos percorridos pelo movimento sanitário – tinha como finalidade contribuir para a reformulação do Sistema Nacional
de Saúde e proporcionar subsídios para a Assembléia Nacional Constituinte. “A VIII CNS aponta para a garantia
da saúde como direito inerente à cidadania; e em relação
à organização dos serviços propõe: descentralização da
gestão; integralidade das ações; regionalização e hierarquização; participação da comunidade e fortalecimento
do Município. Em relação ao financiamento propõe a criação dos Fundos Únicos de Saúde – federal, estadual e municipal – geridos com participação da comunidade; e préfixação de um percentual mínimo sobre as receitas
públicas, sendo que o Estado deveria financiar integralmente o setor, e os recursos da Previdência deveriam destinar-se exclusivamente para custear o seguro social dos
trabalhadores” (Pimenta, 1993). Intensas atividades, com
mobilização de forças políticas, durante a Constituinte de
1987, levaram à consolidação dessas propostas, com exceção do financiamento, numa seção exclusiva destinada
à área de saúde e integrante do capítulo que trata da Seguridade Social na Constituição de 1988.
Algumas iniciativas do Governo federal ocorriam paralelamente, no sentido de alterar o sistema de saúde. Nesta
mesma década, tem destaque a implantação das Ações
Integradas de Saúde (AIS), em 1983, e do Sistema Unificado e Descentralizado de Saúde (Suds), em 1987.
As AIS propunham a integração e a descentralização
dos serviços, com a expansão da cobertura assistencial e
o redirecionamento dos recursos para estados e municípios. A sua implantação foi diferenciada, dependendo das
realidades regionais e municipais, obtendo maior êxito
naqueles municípios com experiência acumulada na organização dos serviços de saúde.
O Suds, “criado com o objetivo de contribuir para a
consolidação e o desenvolvimento qualitativo das AIS”,3
avançava em relação à idéia de descentralização, na medida em que propunha a “estadualização” do Inamps,
unificando as suas agências regionais com as Secretarias
Estaduais de Saúde, criando, assim, condições objetivas
para que a política de saúde tivesse um comando único
no nível estadual. Outro objetivo era a “municipalização”
dos serviços básicos de saúde. A implantação dessas diretrizes, nos âmbitos estadual e municipal, também foi
distinta. Houve situações em que nada se alterou e outras, como o caso do Estado de São Paulo, em que foram
assumidas integralmente as estruturas do Inamps e
municipalizou-se grande parte da rede básica estadual.
A transferência de recursos, no caso das AIS e do Suds,
dava-se através da assinatura de convênios, negociados
entre as esferas de governo.
A criação do SUS, em 1988, com as características já
citadas, representou avanços institucionais no sentido da
descentralização. No entanto, na questão dos recursos financeiros, a Constituição estabelece que o financiamen-
83
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 10(3) 1996
to, por um lado, passa a ser co-responsabilidade das três
esferas de poder, com contrapartida de estados e municípios, sem, no entanto, definir regras para garantir essa
participação; e, por outro, que os recursos para a área de
saúde serão aqueles integrantes do Orçamento da Seguridade Social, sem a vinculação de fontes de custeio para a
saúde e nem critérios para a partilha dos recursos entre
saúde, assistência e previdência social. Estes fatos causaram, posteriormente, alguns entraves no financiamento das
ações do setor saúde.
Em 1990, as Leis Orgânicas de Saúde (n os 8.080 e
8.142) vêm regulamentar os dispositivos constitucionais,
definindo as atribuições comuns e exclusivas de cada esfera de governo, sem, no entanto, avançar na definição
de critérios para a divisão dos recursos da Seguridade
Social.
O Inamps estabeleceu, em 1991, a Norma Operacional Básica (NOB 01/91) que definia nova sistemática de
repasse para estados e municípios, através do pagamento
por produção de serviços, a partir da assinatura de convênios. Com esta norma, os municípios passam a ser tratados como meros prestadores de serviços (Pimenta, 1993).
Na década de 90, apesar das conquistas, faltavam os
instrumentos e as estratégias mais adequados para a implementação do que já estava amplamente definido em
lei. Em 1992, depois de muito postergada, realizou-se a
IX CNS, convocada com o tema “Municipalização é o
Caminho”, onde foram reafirmadas as linhas macroestruturais para a política de saúde nacional, procurando centrar a discussão na busca dos caminhos para o avanço da
municipalização da saúde e exigindo o estrito cumprimento da lei na implementação do SUS.
Os novos papéis atribuídos a cada esfera de governo
exigiam ajustes institucionais e reformulação de práticas.
No final de 1992, o Ministério da Saúde tomou a decisão
de procurar os caminhos para a real implantação do SUS,
debatendo suas propostas pelo Brasil afora. É apresentado, pelo Ministério, o documento A Descentralização das
Ações e Serviços de Saúde – A Ousadia de Cumprir e Fazer Cumprir a Lei, que retoma os princípios constitucionais e propõe mecanismos para se efetivar a descentralização das ações e serviços, levando em consideração as
diferentes realidades dos estados e municípios brasileiros. A proposta prevê a descentralização de maneira gradual, com responsabilidades e formas de financiamento
diferentes, rumo a uma gestão plena em cada esfera de
governo.
As bases dessa proposta, com a aprovação do Conselho Nacional de Saúde, são consolidadas na Norma Operacional Básica do SUS (NOB 01/93),4 em que se reconhece a construção do SUS como um processo, bem como
as complexas dimensões que a descentralização das ações
e serviços de saúde vêm assumindo. Diagnostica-se que
a implantação do SUS é heterogênea, que estados e municípios, e até mesmo os próprios órgãos do Ministério
da Saúde, encontram-se em estágios e condições diferentes de descentralização do sistema e que, portanto, são
necessários procedimentos e instrumentos operacionais
diferenciados para que possam ser ampliadas e aprimoradas as condições de gestão, visando a efetivação do comando único do SUS, em cada esfera de governo.
A norma fundamenta-se no pressuposto de que a descentralização é um processo que implica redistribuição
de poder, redefinição de papéis e de novas relações entre
as três esferas de governo, com reorganização institucional, reformulação de práticas e controle social. Para tanto, reformula os instrumentos existentes, cria mecanismos
de articulação entre estados e municípios (as comissões
bipartites), incentiva a criação dos Conselhos de Saúde
paritários e deliberativos e define sistemáticas diferenciadas de gestão e financiamento. No âmbito municipal, isso
significa criar condições para que o município passe de
um simples prestador de serviços para um gestor pleno
das ações e serviços de saúde, transitando por três tipos
de sistemática de relacionamento entre as esferas de governo: incipiente, parcial e semiplena.
Na condição de gestão incipiente, os municípios passam a ampliar seu nível de gerenciamento, assumindo,
imediata ou progressivamente, a responsabilidade sobre
a rede de serviços no que diz respeito ao planejamento, à
programação, à contratação, ao controle e à avaliação dos
serviços ambulatoriais e hospitalares. Além disso, mostram disposição e condições de assumir as unidades
ambulatoriais públicas, bem como incorporar à rede as
ações básicas e de vigilância à saúde, inclusive a do trabalhador. Numa segunda fase, a parcial, os municípios
assumem de imediato as responsabilidades da fase anterior e recebem mensalmente recursos financeiros correspondentes à diferença entre o teto financeiro estabelecido e o pagamento efetuado diretamente pela esfera federal
às unidades hospitalares e ambulatoriais públicas e privadas. Na semiplena, a Secretaria Municipal de Saúde
passa a ter a completa responsabilidade sobre a gestão da
prestação de serviços – do planejamento à contratação e
pagamento dos prestadores da rede ambulatorial e hospitalar –, assumindo o gerenciamento de toda a rede pública, exceto hospitais de referência sob gestão estadual, e
recebendo mensalmente o total de recursos financeiros
para custeio correspondentes aos tetos ambulatorial e
hospitalar estabelecidos.
A adesão por parte dos Governos estaduais e municipais começou em 1993. Dados do Ministério da Saúde
mostram a distribuição dos municípios brasileiros, por região, segundo os modelos de gestão no período de 1994-96
84
O MUNICÍPIO E A DESCENTRALIZAÇÃO DA SAÚDE
(Tabela 1). Em 1994, estavam habilitados 2.397 municípios, passando para 2.962, em junho de 1996, o que significa 60% dos 4.974 municípios brasileiros. Dos habilitados, a concentração, por gestão, está na incipiente (76%)
e, por região, no Sudeste (38%), sendo que neste último
caso, os 1.125 municípios que optaram por algum tipo de
gestão representam 73% dos municípios da região.
O modelo vigente (NOB 01/93) de descentralização e
municipalização apresenta as situações progressivas de
gestão de estados e municípios, no Sistema Único de Saúde, convivendo simultaneamente. Atualmente, o Ministério da Saúde tem promovido a discussão de uma nova
Norma Operacional, que procura avançar em relação à
anterior.
TABELA 1
Número de Municípios Habilitados, por Condição de
Gestão Municipal do Sistema de Saúde(1)
Brasil – 1994-96
Regiões
Anos
Incipiente
Parcial
Semiplena
Total
Total
1994(2)
1995(2)
1996(3)
1.836
2.131
2.240
537
612
620
24
56
102
2.397
2.799
2.962
Norte
1994(2)
1995(2)
1996(3)
20
25
28
11
14
14
0
1
2
31
40
44
Nordeste
1994(2)
1995(2)
1996(3)
595
733
811
26
34
39
7
17
25
628
784
875
UM OLHAR SOBRE OS
MUNICÍPIOS PAULISTAS
Sudeste
1994(2)
1995(2)
1996(3)
724
800
804
248
270
261
13
29
60
985
1.099
1.125
Alguns dados referentes ao Estado de São Paulo mostram a participação das esferas municipais na área de saúde. Dados sobre a rede ambulatorial cadastrada em 1980
e 1985 indicam o crescimento da rede mantida pelas prefeituras municipais, com significativa expansão no interior paulista. Em 1980, das 123 unidades municipais cadastrados como ambulatórios e prontos-socorros isolados,
91 estavam na Região Metropolitana de São Paulo e 32
no interior. Em 1985, esses números subiram para 144 e
215, respectivamente, perfazendo um total de 359 unidades de saúde municipais no estado (Fundação Seade, 1981
e 1987).
Passados quase dez anos, o número de unidades municipais cadastradas junto ao SUS, em 1994, mostra não só
a extraordinária expansão da rede de serviços no estado,
como também a direção do processo de descentralização,
com a municipalização das unidades estaduais e federais
(Tabela 2). Predominam sob o comando do poder municipal as unidades destinadas aos atendimentos básicos e,
com menor participação, os serviços médicos especializados, os de apoio à diagnose e terapia e os referentes à
recuperação e reabilitação.
As mais de 3.000 unidades da rede municipal têm sido
responsáveis por parcela significativa do atendimento
ambulatorial prestado pelo SUS. Em 1994, foram realizados 55 milhões de atendimentos médicos e 18 milhões
de atendimentos odontológicos por prestadores municipais, no Estado de São Paulo, representando 56% e 87%,
respectivamente, do total de atendimentos efetuados. Esses dados evidenciam o predomínio do município na execução desses serviços no âmbito do SUS.5
Quanto ao financiamento, dados da Fundação Seade,
disponíveis para alguns municípios do Estado de São Paulo, mostram que o percentual de gasto no programa saú-
Sul
1994(2)
1995(2)
1996(3)
373
429
438
192
228
239
4
7
9
569
664
686
Centro-Oeste
1994(2)
1995(2)
1996(3)
124
144
159
60
66
67
0
2
6
184
212
232
Fonte: Ministério da Saúde – MS, 1996.
(1) Referentes à habilitação definida na NOB 01/93.
(2) Situação em dezembro.
(3) Situação em junho.
TABELA 2
Unidades Ambulatoriais Municipais Cadastradas no Sistema
Único de Saúde de São Paulo – SUS/SP, segundo o Tipo
Estado de São Paulo – 1994
Prestador Municipal
Tipos de
Unidades
Posto de Saúde
Centro de Saúde
Posto de
Assistência Médica
Policlínica
Clínica Especializada
Clínica de Psiquiatria
Unidade Mista de Saúde
Pronto-Socorro
Clínica/Consultório
Odontológico
Centro/Núcleo
de Reabilitação
Serviço Auxiliar de
Diagnose e Terapia
Total
Números
Absolutos
%
Números
Absolutos
%
455
2.054
91,73
89,50
496
2.295
100,00
100,00
94
91
78
10
71
182
87,85
53,22
42,86
66,67
97,26
81,61
107
171
182
15
73
223
100,00
100,00
100,00
100,00
100,00
100,00
152
69,09
220
100,00
26
65,00
40
100,00
62
14,25
435
100,00
Fonte: Secretaria de Estado da Saúde/Centro de Informações de Saúde – CIS; Fundação Seade.
85
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 10(3) 1996
TABELA 4
de – abrangendo todas as fontes de recursos, inclusive as
transferências estaduais e federais – vem aumentando
(Tabela 3). Na Região Metropolitana de São Paulo, observa-se uma elevação do percentual das despesas efetuadas em saúde, em relação ao gasto total das prefeituras, de
7,07%, em 1985, para 12,98%, em 1991. O mesmo fenômeno pode ser verificado quanto aos gastos em saúde per
capita. A média para a Região Metropolitana – síntese de
muitas disparidades – passou de R$19,00, em 1985, para
R$54,59, em 1991. Apesar da variação do ritmo de crescimento, todos os municípios-sede das regiões administrativas apresentaram crescimento no período, em relação tanto
ao gasto per capita quanto à participação percentual, com
única exceção, neste último caso, de São José do Rio Preto.
Análise feita por Medici (1994) destaca o predomínio
dos recursos da União nos gastos públicos totais do setor
saúde no Brasil, que, onde entre 1980 e 1992, tiveram
participação nunca inferior a 70%. Observa também que
a participação dos recursos dos estados tem ficado estacionária e em alguns casos até diminuída, enquanto a par-
Número de Municípios Habilitados e População,
por Condição de Gestão Municipal do Sistema de Saúde (1)
Estado de São Paulo – 1996 (2)
Municípios
Condição
de Gestão
Gasto Municipal
per Capita (2)
1985
1988
1991
1985
1988
1991
de São Paulo
7,07
8,63
12,98
19,00
30,15
54,59
São Paulo
7,69
9,04
13,98
23,58
37,86
63,84
Santos
4,55
3,09
9,61
11,94
8,39
47,27
São José dos Campos
5,52
8,51
15,69
15,86
28,02
69,33
Região Metropolitana
Sorocaba
2,89
...
10,16
5,33
...
32,37
Campinas
4,29
3,08
14,28
10,73
19,09
52,40
Ribeirão Preto
5,90
12,01
13,48
7,43
18,10
31,04
Bauru
2,34
8,44
12,06
2,84
12,09
26,51
São José do Rio Preto
8,82
4,00
5,88
14,27
6,50
18,41
Araçatuba
4,43
9,94
6,94
7,67
18,44
22,75
Presidente Prudente
0,37
7,91
6,52
0,52
14,67
14,32
Marília
1,68
6,97
6,62
2,06
10,63
13,49
Araraquara
4,87
6,89
14,29
9,99
12,65
34,37
São Carlos
2,99
...
5,56
4,85
...
16,43
Barretos
2,24
4,87
10,99
3,14
7,27
17,83
Franca
5,13
12,16
11,95
5,62
15,19
22,27
Números
Absolutos
%
Total
349
100,00
15.104.383
100,00
Semiplena
Parcial
Incipiente
45
44
260
12,89
12,61
74,50
6.655.974
2.319.793
6.128.616
44,07
15,36
40,57
ticipação dos recursos próprios dos municípios no financiamento da saúde tem aumentado. Entre 1980 e 1990, “a
participação dos gastos municipais com saúde, como percentagens das receitas próprias destas esferas (incluindo
o FPM), passou de 6,3% para 8,2%. Essa participação
aumentou num contexto onde as receitas próprias municipais e estaduais se expandiam como resultado dos dispositivos tributários contidos na Constituição de 1988”
(Medici, 1994).
Sabe-se que os municípios, dependendo de suas receitas e prioridades políticas, têm capacidade financeira diferenciada para alocar recursos na área de saúde e podem
investir maior ou menor parcela dos seus recursos próprios.
O setor saúde tem passado por fortes turbulências e a
questão do financiamento é sempre recorrente. Autoridades diversas, federais, estaduais e municipais têm dito que
os recursos são insuficientes e reinvidicam um maior aporte dos mesmos, causando intenso debate. Nesse sentido,
várias propostas de financiamento para a área de saúde
estão em curso, com estratégias diferenciadas de arrecadação, vinculação e redistribuição dos recursos.
Quanto à adesão à NOB 01/93, no Estado de São Paulo, 55% dos 625 municípios estão habilitados em um dos
modelos de gestão – cobrindo 45% da população residente –, sendo 45 em semiplena, que permite maior flexibilidade no uso dos recursos repassados pela União (Tabela 4).
TABELA 3
Gasto em
Saúde (%)
%
Fonte: Secretaria de Estado da Saúde/Centro de Informações de Saúde - CIS; Fundação
Seade.
(1) Referentes à habilitação definida na NOB 01/93.
(2) Situação em julho.
(3) Refere-se à população projetada para 01/07/95.
Gasto Municipal em Saúde
Região Metropolitana de São Paulo e MunicípiosSedes das Regiões Administrativas (1) – 1985-1991
Região Metropolitana
e Municípios-Sedes
Números
Absolutos
População (3)
EXPERIÊNCIAS MUNICIPAIS
Diversos municípios têm conseguido avanços na área
de saúde, desempenhando papel relevante no desenvolvimento de programas destinados à melhoria da qualidade de vida de sua população. Há uma diversidade de situações que permitem o surgimento de experiências
Fonte: Fundação Seade.
(1) Excluem o município de Registro.
(2) Em reais. Os valores monetários estão a preços de dezembro de 1994, atualizados pelo
Índice Geral de Preços – Disponibilidade Interna – IGP-DI, da Fundação Getúlio Vargas .
Nota: Inclui recursos oriundos de todas as fontes.
86
O MUNICÍPIO E A DESCENTRALIZAÇÃO DA SAÚDE
des7 de serviços de referência (ambulatórios de hospitais,
clínicas especializadas e laboratórios), cujas entidades
mantenedoras eram consórcios.
A extrema centralização das políticas sociais vivida no
país por muitos anos impediu o desenvolvimento de capacidades técnicas-gerenciais em grande parte dos municípios brasileiros. No entanto, processos como os que vêm
ocorrendo na área de saúde têm mostrado a viabilidade
de as esferas municipais assumirem o comando dessas
políticas. Nesse sentido, o apoio da União e do Estado é
fundamental para que, com co-responsabilidade das esferas governamentais, a saúde se viabilize como um bem
público.
diferenciadas, algumas com características inovadoras.
São expressões de governantes e comunidades que demonstram maior clareza do papel do município enquanto
instância de governo, com novas atribuições, e como espaço para exercício da cidadania. Não são poucas as administrações municipais que foram capazes de produzir
experiências na área de saúde, com impacto na atenção
final e nos mecanismos de controle social.
São muitos os exemplos de programas visando reduzir a mortalidade infantil e aprimorar a saúde bucal, de
criação de comitês para a redução da mortalidade materna, da melhor utilização de recursos, com a criação de
consórcios intermunicipais, do incentivo à participação
popular, entre outros. No Estado de São Paulo, podem ser
destacados alguns casos.
A cidade de Santos, antes considerada a capital brasileira da Aids, conseguiu, através de programas de prevenção e campanhas de esclarecimento, reduzir o número de casos da doença. Participa também, junto com o
Ministério da Saúde, de projeto pioneiro que visa reduzir
o número de bebês com Aids. Além disso, teve vários de
seus projetos selecionados para a 2a Conferência das Nações Unidas sobre Assentamentos Humanos – o Habitat
II –, dos quais destacam-se o programa de vigilância ao
recém-nascido de risco e o de saúde bucal, que já obtiveram impacto na melhoria dos seus indicadores.
Campinas, como outros municípios brasileiros, faz
parte da Rede Município Saudável, programa desenvolvido em parceria com a OPS, em que o foco não está nas
ações exclusivas dos serviços de saúde, mas sim na promoção da saúde como um conjunto de ações inter-setoriais, que visam repercutir na qualidade de vida dos munícipes. A associação entre autoridades e a sociedade,
fortalecendo a participação comunitária, tem papel estratégico na concepção desse projeto.
As dificuldades encontradas quanto à disponibilidade
de recursos e utilização de serviços têm sido enfrentadas
com a parceria entre prefeituras, através da constituição
de consórcios intermunicipais. Pioneiro, já em 1986, o
município de Penapólis teve a iniciativa de propor a mais
seis municípios6 da sua região um plano de ação conjunta, tendo a saúde como prioridade. Criado em 1987, o
Consórcio Intermunicipal de Saúde (Cisa) assumia a responsabilidade pelos serviços secundários de referência
para os municípios integrantes.
Em 1995, dados do SIA/SUS permitem observar a disseminação dessa prática. Estavam cadastradas 13 unida-
NOTAS
1. Ver a respeito Dallari (1992), Medici (1994), Mills (1990), Teixeira (1991) e
Tobar (1991).
2. A Lei n o 6.229, de 17/07/75, dispõe sobre sua organização.
3. Ver Decreto n o 94.657, de 20/07/87.
4. Estabelecida pela Portaria MS n o 545, de 20/05/93.
5. Dados obtidos através do Sistema de Informações Ambulatoriais do Sistema
Único de Saúde – SIA/SUS, divulgados pela Secretaria de Estado da Saúde.
6. Alto Alegre, Avanhandava, Barbosa, Braúna, Glicério e Luiziânia.
7. Localizadas nos municípios de Capão Bonito, Conchas, Divinolândia, Embu,
Itapetininga, Lupércio, Pariquera-Açu, Registro, além de Penapólis.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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cumprir a lei”. Saúde e Sociedade. São Paulo, FSP/APSP, v.2, n.1, 1993,
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perspectivas do processo de descentralização. São Paulo, Faculdade de Saúde Pública/USP, 1994.
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TOBAR, F. O conceito de descentralização: usos e abusos. Planejamento e Políticas Públicas. Brasília, Ipea, n.5, jun. 1991, p.31-51.
87
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 10(3) 1996
O MUNICÍPIO E A GESTÃO URBANA
novas exigências
SARAH MARIA MONTEIRO DOS SANTOS
Engenheira, Analista da Fundação Seade
MARIA CONCEIÇÃO SILVÉRIO PIRES
Arquiteta, Analista da Fundação Seade
A
discussão que se coloca hoje com relação ao planejamento urbano passa pela necessidade de gerir espaços cada vez mais complexos, cuja velocidade de mudança e transformações geradas pelo avanço tecnológico e pela evolução econômica mundial atropela a maioria das administrações municipais.
O reconhecimento da complexidade da cidade e da diversidade de que ela é constituída, bem como da necessidade da participação da população nas decisões sobre sua
evolução, garantindo as salvaguardas ambientais e a qualidade necessária dos serviços urbanos, é o desafio a ser
enfrentado não só pelos governos locais, mas também por
toda a comunidade.
No Brasil, com a Constituição Federal de 1988, o município cresce em importância, tendo seu papel valorizado frente às demais esferas de poder. A atividade de planejamento urbano, embora tratada em apenas dois artigos,
foi revalorizada. Retomou-se o discurso do Plano Diretor, definido na Constituição como instrumento básico
da política de desenvolvimento e expansão urbana, tornando-se obrigatório para cidades com mais de 20.000
habitantes e devendo fixar diretrizes gerais a serem executadas pelo poder municipal, com o objetivo de "ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da
cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes". A
partir de então, muitos municípios retomaram, ou iniciaram, a atividade de planejamento, com ênfase na
aplicação dos novos instrumentos urbanísticos definidos na Constituição. A exigência constitucional atingiu muitos municípios com pequena capacidade técnica e financeira. Os meios acadêmicos externaram seu
temor de um retorno à produção em larga escala de planos diretores tecnocráticos e vazios de objetividade e
aplicabilidade, quase sempre elaborados por equipes
técnicas externas às prefeituras.
Com efeito, muitos municípios brasileiros ressentem
da precariedade das informações existentes em suas prefeituras e passam a se preocupar em organizá-las e
sistematizá-las, ao se defrontarem com a tarefa de gerir a
cidade e com a necessidade de elaborar ou rever a legislação urbanística e de formular planos para orientar suas
ações.
Neste artigo, procura-se discutir a importância da sistematização e organização de informações municipais,
exemplificando a situação dos municípios paulistas quanto
à existência de informações sistematizadas em cadastros
(físico-territoriais e cadastros de serviços) e de legislação municipal, com base nos dados da Pesquisa Municipal Unificada, realizada pela Fundação Seade em 1993 –
ano base 1992.
PLANEJAMENTO E GESTÃO
MUNICIPAL NO BRASIL
A prática do planejamento municipal no Brasil esteve
marcada, nas últimas três décadas, por diferentes formas
de abordagem dos problemas locais, a saber: “a elaboração de planos diretores da cidade, o planejamento local
integrado e os planos de desenvolvimento com participação da comunidade” (Oliveira, 1991:17).
Nos anos 60 e 70, tanto os planos diretores urbanos,
elaborados quase sempre por equipes de profissionais externos às prefeituras, como os PDLI (Planos de Desenvolvimento Local Integrado) eram tratados freqüentemente apenas como instrumentos tecnocráticos para obtenção
de financiamentos, sem rebatimentos na realidade do pla-
88
O MUNICÍPIO E A GESTÃO URBANA: NOVAS EXIGÊNCIAS
nejamento e da gestão municipal. As experiências de planejamento democrático, com participação popular, no
âmbito municipal, surgiram em meados dos anos 70 e até
hoje constituem um número reduzido em relação ao total
de municípios brasileiros.
A questão do planejamento urbano, nos anos 80, ficou
relegada a uma questão menor, enquanto os planos diretores cederam lugar a projetos setoriais e esparsos na pauta
das administrações municipais.
A discussão que ganha corpo, nos anos 90, passa pelo
entendimento do planejamento urbano enquanto um processo e do plano diretor com uma nova configuração, não
mais identificado com as experiências passadas, mas sim
encarado como uma atividade cíclica, de aproximações
sucessivas. "O plano não mais o território onde tudo estava previsto e tinha lugar. O plano é cada vez mais um
conjunto de lugares disponíveis para aquilo que se venha
discutir e negociar mais tarde" (Portas, 1993).
Coloca-se a necessidade de uma gestão urbana democrática que articule a participação dos diferentes atores
que produzem e vivem no espaço urbano e, especialmente no caso de nossas cidades, a premência de incorporar a
cidade "ilegal" nas formulações de propostas que busquem
atingir "a função social da cidade".
Entretanto, para grande parte dos municípios brasileiros, a legislação urbanística resume-se aos códigos de
obras, de posturas e tributário, muitas vezes desatualizados.
Por outro lado, as preocupações com a elaboração e a
definição de novos instrumentos de controle urbanístico
e de intervenção urbana nem sempre estão acompanhadas da implementação das condições necessárias para sua
aplicação à realidade do município.1
Na maioria das prefeituras brasileiras, as informações
existentes são produzidas e armazenadas em diferentes
setores da administração municipal e trabalhadas com
vistas a atender aos objetivos imediatos de cada setor, quais
sejam: arrecadação, controle, planejamento, etc. Quando
estes dados estão organizados, muitas vezes a estrutura
empregada dificulta sua utilização para outros fins que
não aqueles para os quais foram produzidos.
As dificuldades no tratamento de informações dispersas, não articuláveis, de difícil manuseio, muitas
vezes não mapeadas, e o desconhecimento das informações existentes nos diversos setores da administração municipal engendram freqüentemente longos prazos nas respostas a demandas de informações, pouca
objetividade no estabelecimento de prioridades, metas
e alocação de recursos e sobreposição de esforços e altos custos com a produção de informações já existentes, notadamente quando da elaboração de diagnósticos dos problemas municipais, da programação das
ações e da elaboração da legislação urbanística. 2
As prefeituras funcionam quase sempre com base no
conhecimento e na memória acumulada do corpo técnico, sendo muitos procedimentos cativos da condução de
funcionários antigos com conhecimento histórico dos mesmos. Cada setor organiza-se como pode, com bases
cartográficas que não são compatíveis, mapeamentos que
não se sobrepõem, trabalhos que se duplicam.
AS INFORMAÇÕES MUNICIPAIS
NO ESTADO DE SÃO PAULO
A dificuldade por parte das prefeituras em organizar e
manter atualizadas informações relevantes sobre os problemas e demandas municipais e sobre as ações públicas
voltadas para o seu equacionamento torna a pesquisa de
dados com base municipal uma tarefa problemática não
só para as prefeituras e secretarias de Estado, mas também para instituições tais como universidades, fundações
e institutos especializados que produzem informações
municipais e regionais de interesse para a gestão municipal, e que podem contribuir para completar um sistema
de informações para o planejamento municipal.
As mudanças na dinâmica econômica, social e urbana
dos municípios paulistas, e ainda as exigências oriundas
da Constituição Federal de 1988 e da Constituição Estadual, têm obrigado a investigação de novos temas e a reorganização da produção de dados de base municipal, com
vistas à compreensão dos processos estruturadores da realidade atual dos municípios do Estado de São Paulo.
A Fundação Seade tem realizado, ao longo dos últimos anos, um grande número de pesquisas municipais,
acumulando experiência relevante no levantamento de
dados e informações, bem como na produção de estatísticas sobre os municípios do Estado de São Paulo.
Dois são os objetivos básicos que têm norteado atualmente as pesquisas municipais da Fundação Seade: “a)
obter dados e informações reveladores da capacidade organizacional, administrativa e financeira das Prefeituras
Municipais para definir, implantar e gerir políticas públicas globais e/ou setoriais; b) pesquisar dados e informações que indiquem a realidade socioeconômica e urbana
municipal, possibilitando um cotejamento das políticas e
ações municipais com as demandas sociais urbanas emergentes em municípios de diferentes portes e também com
dinâmicas econômicas, sociais e urbanas distintas” (Fundação Seade, 1995).
Nesse sentido, a rotinização das pesquisas municipais,
visando a montagem e a manutenção de um banco de dados básico sobre todos os municípios paulistas, passou
também a ser um desafio.
Em 1993, realizou-se a Pesquisa Municipal Unificada
– PMU que procurou coletar dados e informações bási-
89
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 10(3) 1996
cas relativos às estruturas administrativas e de recursos humanos e financeiros das administrações municipais, bem
como captar elementos referentes à gestão municipal das
políticas e dos serviços públicos para o ano base de 1992.
Esta pesquisa, de caráter censitário, investiga uma
ampla gama de temas: estrutura administrativa, estrutura
urbana, habitação, saneamento básico, limpeza pública,
transporte municipal, saúde, educação, cultura, esporte,
turismo, abastecimento e finanças municipais, devendo
ser aplicada a cada três anos.3
A partir da PMU, criou-se um instrumento de coleta e
lançou-se mão de métodos de investigação que deram
suporte ao equacionamento de duas preocupações de
fundo, a saber: “a) apreender o aprofundamento da
pronunciada diferenciação econômica, social e urbana dos
municípios paulistas, os quais foram afetados de maneira
diversa pelo processo de desenvolvimento econômico das
últimas duas décadas e pelo conseqüente processo de
urbanização; b) captar a capacidade de resposta dos
municípios diante da tendência de descentralização
político-institucional, que vem ocorrendo em direção dos
municípios e que tem como raiz a perda de expressão
histórica do centralismo federal, reforçada pela Constituição de 1988” (Fundação Seade, 1995).
Estas duas dimensões tornaram estratégicas as pesquisas de âmbito municipal, seja no sentido de contemplar a
profunda diferenciação das realidades municipais, seja
pela emergência da instância municipal na gestão das
políticas públicas.
Uma primeira exploração de alguns dados da PMU/93,
relativos à política urbana, que serão apresentados a seguir,
ainda que limitada apenas às informações consistidas e já
disponibilizadas em produto eletrônico pela Fundação Seade, mostra o potencial desta pesquisa para o conhecimento e
a análise da realidade dos municípios paulistas.
Buscando identificar o nível de organização das prefeituras para o enfrentamento das novas exigências da gestão urbana, dois grupos de informações foram analisados:
legislação municipal e cadastros técnicos municipais, físico-territoriais e de serviços.
A Tabela 1 apresenta o número de municípios por classe
de tamanho, segundo a existência das seguintes leis municipais: Lei Orgânica; Plano Diretor; Código de Obras;
Lei de Zoneamento; Lei de Parcelamento e Lei de Perímetro Urbano.4
Observa-se que a lei mais freqüente nos municípios do
Estado de São Paulo é a Lei Orgânica Municipal, existente em 71,3% dos mesmos, sendo que apenas 14 municípios (2,4%) não a possuem.5
Somente dois municípios de porte significativo, Birigüi e Poá, com população em torno de 70 mil habitantes,
afirmam não possuir Lei Orgânica, que existe em mais de
TABELA 1
Distribuição dos Municípios, por Classe de Tamanho,
segundo a Existência de Legislação Municipal
Estado de São Paulo – 1992
Classes de Tamanho
(número de habitantes)
Legislação
Municipal
Menos
de 20 Mil
20 a 50
Mil
50 a 100 100 a 500
Mil
Mil
Mais de
500 Mil
Total
Nº de Municípios
Total (Nº Abs.)
NR (1) (Em %)
367
2,2
106
1,9
50
0,0
43
0,0
6
0,0
572
1,7
Legislação
Municipal (Em %)
Lei Orgânica
Sim
Não
ND(2)
69,2
3,0
25,6
71,7
0,9
25,5
76,0
4,0
20,0
79,1
0,0
20,9
100,0
0,0
0,0
71,3
2,4
24,5
Plano Diretor
Sim
Não
ND(2)
7,6
59,4
30,8
18,9
49,1
30,2
36,0
46,0
18,0
46,5
25,6
27,9
33,3
66,7
0,0
15,4
53,8
29,0
Código de Obras
Sim
Não
ND(2)
15,3
52,3
30,2
51,9
21,7
24,5
54,0
26,0
20,0
58,1
18,6
23,3
83,3
0,0
16,7
29,4
41,3
27,6
Zoneamento
Sim
Não
ND(2)
8,7
58,6
30,5
34,0
35,8
28,3
46,0
38,0
16,0
69,8
9,3
20,9
100,0
0,0
0,0
22,2
48,3
27,8
Parcelamento
Sim
Não
ND(2)
13,9
52,0
31,9
49,1
21,7
27,4
64,0
20,0
16,0
65,1
11,6
23,3
66,7
16,7
16,7
29,2
40,2
28,8
Perímetro Urbano
Sim
Não
ND(2)
51,5
15,8
30,5
62,3
10,4
25,5
76,0
8,0
16,0
65,1
7,0
27,9
66,7
0,0
33,3
56,8
13,3
28,1
Fonte: Fundação Seade. Pesquisa Municipal Unificada 1993 – PMU/93 (ano base 1992).
(1) Municípios que não responderam à PMU.
(2) Dado não disponível.
70% dos municípios da Região Metropolitana de São
Paulo e dos municípios de oito das 14 regiões administrativas do Estado, a saber: Registro, Santos, Campinas,
Bauru, Presidente Prudente, Marília, Central e Barretos.
Nas outras RAs, o percentual de municípios com Lei Orgânica nunca é inferior a 55%.
Com relação às demais leis pesquisadas, verifica-se que,
em geral, as regiões mais urbanizadas e em processo de
metropolização destacam-se no conjunto do estado.
O Plano Diretor, exigido pela Constituição Federal de
1988 para os municípios com população superior a 20 mil
90
O MUNICÍPIO E A GESTÃO URBANA: NOVAS EXIGÊNCIAS
habitantes e pela Constituição do Estado de São Paulo para
todos os municípios paulistas, existe apenas em 15,4%
dos municípios do estado. Mais da metade (53,8%) dos
municípios afirmaram não possuir e quase 30% responderam dado não disponível.
Dos seis municípios com mais de 500 mil habitantes,
apenas dois afirmaram ter Plano Diretor em 1992. Na
Região Metropolitana de São Paulo e nas RAs de Santos
e de Campinas, encontram-se os maiores percentuais de
municípios com Planos Diretores (42,1%, 37,5% e 28,9%,
respectivamente).6 Ao se destacar a RG de Campinas, verifica-se que 12 dos 18 municípios possuem Planos Diretores. Vale lembrar que vários Planos Diretores em vigor
nos municípios paulistas são anteriores à Constituição de
1988.
Essas três regiões também se destacam com relação às
leis de zoneamento e parcelamento, com percentuais que
variam entre 52,6% dos municípios da RMSP com Lei de
Parcelamento e 87,5% dos municípios da região de Santos com Lei de Zoneamento (sete dos oito municípios da
região).
Do conjunto dos municípios paulistas, 29,2% possuem
Lei de Parcelamento e 22,2% Lei de Zoneamento, sendo
que 230 municípios (40,2%) afirmaram não possuir a primeira e cerca de 50% não possuir a segunda.
É baixo o percentual de municípios com população até
20 mil habitantes que possuem essas duas leis, cuja freqüência aumenta para os municípios maiores, atingindo
64% dos municípios com população superior a 100 mil
habitantes. Na verdade, em muitos municípios, as normas
de parcelamento e de zoneamento aparecem em capítulos de outras leis, tais como o código de obras. O surgimento de legislação específica está freqüentemente associado à complexificação dos problemas da cidade e à
exigência de maior controle.
A lei de Perímetro Urbano, exigência da Lei federal
no 6.766/79, que regulamenta o parcelamento do solo urbano, está presente em 56,8% dos municípios paulistas,
sendo alto o percentual de respostas de dado não disponível para essa questão (28,1%). A distribuição por classe
de tamanho dos municípios acompanha aquelas das demais leis e, quanto à distribuição regional, observa-se que
70% dos municípios da Região Metropolitana e das RAs
de Campinas, Central, Bauru e Barretos possuem tal lei.
Verifica-se que com a aceleração do crescimento urbano
nos anos 70, em muitos municípios, a expansão da ocupação extrapolou os limites urbanos então definidos, criando a necessidade de revisão do perímetro urbano para
possibilitar a cobrança de impostos e taxas urbanas e conseqüentemente aumentar a arrecadação municipal.
O Código de Obras, que tradicionalmente serviu como
legislação urbanística básica, agrupando, muitas vezes,
não só as regras relativas às edificações mas também aquelas de parcelamento e zoneamento, existe em apenas
29,4% dos municípios do estado, com grandes diferenças
segundo as classes de tamanho. Nos municípios com população inferior a 20 mil habitantes, apenas 15,3% afirmaram possuir Código de Obras. Dos seis municípios
maiores, com mais de 500 mil habitantes, cinco (83,3%)
possuem o referido código e um apresenta dado não disponível. Para as outras classes de tamanho de municípios,
o percentual de respostas positivas é sempre superior a
50% e as negativas não ultrapassam 26%. Não foi possível disponibilizar o dado para 158 municípios, ou seja,
27,6% do total do estado, o que contribui para a distorção
do resultado.
A Tabela 2 mostra o número de municípios por classe de
tamanho, segundo a existência dos seguintes instrumentos
urbanísticos: intervenção urbana, lei do solo criado, concessão de direito real de uso, imposto progressivo sobre vazios
urbanos e leis de proteção e controle ambiental.
Com efeito, a Constituição Federal de 1988, no Capítulo de Desenvolvimento Urbano, abre novas possibilidades para a gestão urbana dos municípios. No entanto, a
introdução de novos instrumentos legais baseados na
Constituição ocorreu em poucos municípios do Estado de
Paulo, bem como ainda é incipiente a existência de novos instrumentos de intervenção urbana. De fato, esses
instrumentos dependem, para sua aplicação, de uma preparação das prefeituras, notadamente com relação à organização das informações e à capacitação técnica.
Segundo as respostas das prefeituras, a legislação municipal de proteção e controle ambiental existe apenas em
46 municípios (8%), sendo a mais freqüente do conjunto
de instrumentos da Tabela 2. Mais da metade dos municípios paulistas (57,5%) não possuem legislação ambiental de nível municipal. No entanto, normas relativas a este
tema existem, ainda que de forma genérica, em algumas
leis de parcelamento, leis de uso e ocupação e em Planos
Diretores.
A legislação específica de proteção e controle ambiental
aparece em 14 municípios com população entre 100 e 500
mil habitantes e em dez com população entre 50 e 100
mil habitantes. Apenas um município com mais de 500
mil possui lei municipal de proteção e controle ambiental. Nos pequenos municípios, apenas oito (2,2%) responderam positivamente.
Destaca-se a RA de Campinas, onde 21,7% dos municípios possuem leis de proteção e controle ambiental e,
em seguida, as RAs de São José dos Campos, Santos e a
RMSP, onde este tipo de lei está presente, em média, em
17% dos municípios. Nas RAs de Registro, Presidente
Prudente e Central, nenhum município declarou possuir
esse tipo de legislação. 7
91
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 10(3) 1996
naqueles com mais de 500 mil habitantes (dois municípios). Nessa faixa, metade dos municípios declararam o
dado não disponível. Nas faixas entre 50 e 100 mil e entre 100 e 500 mil habitantes, a resposta é afirmativa em
cerca de 16% dos municípios.
Já o imposto progressivo sobre vazios urbanos, é
mais freqüente nos municípios com população entre 50
e 500 mil habitantes, em torno de 11%. Nas faixas inferiores, não atinge 5% dos municípios e nenhum município com população acima de 500 mil afirmou possuí-lo. Este imposto está presente entre 10% e 13% dos
municípios das RAs Santos, Araçatuba e Franca, sendo que apenas na RA de Registro nenhum município
respondeu afirmativamente.
Apenas dez municípios (1,7%) do estado afirmaram
possuir instrumento de intervenção urbana, sendo dois com
até 20 mil habitantes (0,5%), um na faixa entre 20 e 50
mil (0,9%), três em cada uma das faixas seguintes (6% e
7%, respectivamente) e um município com mais de 500
mil habitantes (16,7%).
Instrumentos de intervenção urbana só constam em
cinco regiões – RMSP e RAs de Santos, Campinas, São
José do Rio Preto e Marília –, sendo que apenas nas duas
primeiras em mais de 10% dos municípios. A pesquisa
considerou leis de intervenção urbana aquelas que tratavam de operações urbanas, operações interligadas e instrumentos semelhantes.
A lei do solo criado estava presente em apenas quatro
municípios do estado (0,7%), distribuídos em quatro classes de tamanho, com exceção da faixa de municípios com
população acima de 500 mil. Esses municípios encontramse na RMSP e nas RAs de Santos, Sorocaba e Ribeirão
Preto. Mais de 60% dos municípios afirmaram não possuir esta lei e entre 26% e 34% declararam dado não disponível. Entretanto, algumas prefeituras adotam práticas
que já utilizam o princípio do solo criado, ainda que não
regulamentadas e muitas vezes de difícil regulamentação.
O segundo grupo de informações analisado diz respeito aos cadastros técnicos municipais. Na grande maioria
das prefeituras, não existe a organização das informações
em “cadastros” temáticos, gerando dificuldades na obtenção de séries históricas.
A Tabela 3 mostra o número de municípios paulistas,
por classe de tamanho, que possuem os seguintes Cadastros Técnicos Físico-Territoriais: Aerolevantamento, Logradouros, Próprios Municipais, Estradas Municipais e
Cadastro Imobiliário.
Do total de municípios do estado, somente 49 (8,6%)
declararam possuir todos os cinco cadastros físico-territoriais, sendo a proporção dos mesmos crescente segundo as classes de tamanho. Dos 31 municípios que afirmam não possuir nenhum cadastro, 27 têm população
TABELA 2
Distribuição dos Municípios, por Classe de Tamanho,
segundo a Existência de Legislação Municipal
Estado de São Paulo – 1992
Classes de Tamanho
(número de habitantes)
Legislação
Municipal
Menos
de 20 Mil
20 a 50
Mil
50 a 100 100 a 500
Mil
Mil
Mais de
500 Mil
Total
Nº de Municípios
Total (Nº Abs.)
NR (1) (Em %)
367
2,2
106
1,9
50
0,0
43
0,0
6
0,0
572
1,7
Legislação
Municipal (Em %)
Direito Real Uso
Sim
Não
ND(2)
1,9
61,6
34,3
5,7
55,7
36,8
16,0
62,0
22,0
16,3
48,8
34,9
33,3
16,7
50,0
5,2
59,1
33,9
Imposto Progressivo
sobre Vazios
Sim
Não
ND(2)
4,1
59,9
33,8
4,7
59,4
34,0
10,0
66,0
24,0
11,6
51,2
37,2
0,0
50,0
50,0
5,2
59,6
33,4
Proteção e
Controle Ambiental
Sim
Não
ND(2)
2,2
61,6
34,1
12,3
54,7
31,1
20,0
54,0
26,0
32,6
34,9
32,6
16,7
50,0
33,3
8,0
57,5
32,7
Intervenção Urbana
Sim
Não
ND(2)
0,5
63,2
34,1
0,9
63,2
34,0
6,0
72,0
22,0
7,0
58,1
34,9
16,7
66,7
16,7
1,7
63,6
32,9
Solo Criado
Sim
Não
ND(2)
0,3
63,5
34,1
0,9
63,2
34,0
2,0
72,0
26,0
2,3
65,1
32,6
0,0
66,7
33,3
0,7
64,3
33,2
Fonte: Fundação Seade. Pesquisa Municipal Unificada 1993 – PMU/93 (ano base 1992).
(1) Municípios que não responderam à PMU.
(2) Dado não disponível.
A concessão de direito real de uso e o imposto progressivo sobre vazios urbanos estão presentes em apenas 5,2% dos municípios do Estado de São Paulo. A
distribuição regional mostra que, com relação à concessão de direito real de uso, a RMSP e as RAs de Santos e Campinas destacam-se com 15,8%, 12,5% e 10%
dos municípios possuindo essa lei. Nas RAs de Registro, Central, Barretos e Franca nenhum município declarou possuir esse instrumento.
A existência de concessão de direito real de uso aumenta à medida que cresce a classe de tamanho dos municípios: está presente em apenas 1,9% daqueles com
população inferior a 20 mil habitantes e chega a 33,3%
92
O MUNICÍPIO E A GESTÃO URBANA: NOVAS EXIGÊNCIAS
Para os demais cadastros apresentados na Tabela 3, a
freqüência é significativamente menor. Apenas 19,8% dos
municípios afirmaram possuir aerolevantamento, sendo
que os cadastros de logradouros, estradas municipais e
próprios municipais existem em 45%, 38% e 36% dos
municípios, respectivamente.
A situação quanto à sistematização dos dados físico-territoriais é mais precária nos municípios menores,
o que deve estar relacionado ao menor volume e complexidade das informações neles produzidas. Obter informações nesses municípios depende, em maior grau
do que nos municípios maiores, de funcionários antigos que detêm a memória de várias administrações.
Mesmo assim, não deixa de ser uma situação preocupante, tendo em vista que muitos municípios pequenos
têm crescido a uma taxa bastante elevada, correndo o
risco de, além de não registrarem a memória das transformações físico-territoriais, encontrarem maiores dificuldades para se organizar quando aumentar o volume de informações e quando os problemas tornarem-se
mais complexos.
É bom lembrar que, mesmo nos municípios maiores, o
fato de terem cadastros técnicos não significa, em geral,
que os mesmos sejam atualizados e amplamente utilizados para fins de planejamento.
A Tabela 4 mostra o número de municípios por classe
de tamanho que possuem os seguintes cadastros de serviços urbanos: águas pluviais, abastecimento de água, rede
de esgoto, energia elétrica, sistema viário e iluminação
pública.
Do total de municípios do Estado de São Paulo, que
responderam a este questionário da PMU/93, 26%
possuem cadastro de abastecimento de água, sendo essa
a maior freqüência entre os cadastros de serviços urbanos. Segue o cadastro de rede de esgoto, com 23%, o de
sistema viário, com 22%, ficando os demais cadastros com
percentuais variando entre 11% e 13%.
A distribuição por classe de tamanho dos municípios
mostra que, para aqueles com até 50 mil habitantes, a
existência de cadastros de serviços urbanos é mais rara,
sendo que os percentuais maiores são registrados para os
cadastros de abastecimento de água e coleta de esgoto,
com cerca de 25% dos municípios possuindo tais cadastros. Destaca-se, para os municípios com população superior a 500 mil habitantes, que o cadastro de abastecimento de água atinge 100% dos municípios.
Vale lembrar que para os municípios menores, a
necessidade de cadastros nem sempre é colocada pela
rotina da administração. De acordo com os resultados da
pesquisa, a existência ou não de cadastros técnicos físicoterritoriais está menos relacionada ao porte do município
do que à existência dos cadastros de serviços.
TABELA 3
Distribuição dos Municípios, por Classe de Tamanho, segundo a
Existência de Cadastros Técnicos Físico-Territoriais
Estado de São Paulo – 1992
Cadastros
Técnicos
FísicoTerritoriais
Classes de Tamanho
(número de habitantes)
Menos
de 20 Mil
20 a 50
Mil
50 a 100 100 a 500
Mil
Mil
Mais de
500 Mil
Total
Nº de Municípios
Total (Nº Abs.)
NR (1) (Em %)
367
2,2
106
1,9
50
0,0
43
0,0
6
0,0
572
1,7
Cadastros
Técnicos (Em %)
Aerolevantamento
Sim
Não
ND(2)
6,3
57,8
33,8
25,5
38,7
34,0
54,0
22,0
24,0
72,1
4,7
23,3
83,3
0,0
16,7
19,8
46,5
32,0
Logradouros
Sim
Não
ND(2)
43,9
33,8
20,2
39,6
16,0
42,5
50,0
24,0
26,0
67,4
4,7
27,9
66,7
0,0
33,3
45,6
27,1
25,5
Próprios Municipais
Sim
Não
ND(2)
29,4
36,2
32,2
38,7
19,8
39,6
50,0
24,0
26,0
55,8
11,6
32,6
33,3
33,3
33,3
35,0
30,2
33,0
Estradas Municipais
Sim
Não
ND(2)
34,6
30,2
33,0
41,5
19,8
36,8
48,0
28,0
24,0
44,2
23,3
32,6
33,3
16,7
50,0
37,8
27,4
33,0
Imobiliário
Sim
Não
ND(2)
56,4
11,7
29,7
54,7
6,6
36,8
66,0
2,0
32,0
67,4
2,3
30,2
66,7
0,0
33,3
57,9
9,1
31,3
Fonte: Fundação Seade. Pesquisa Municipal Unificada 1993 – PMU/93 (ano base 1992).
(1) Municípios que não responderam à PMU.
(2) Dado não disponível.
inferior a 20 mil habitantes. Para mais de um quarto dos
municípios, o dado foi declarado não disponível para todos os cadastros, o que pode ser um indício do baixo grau
de atualização, acesso e utilização dos mesmos.
O cadastro imobiliário, que na maioria das vezes é
montado apenas para fins tributários, está presente em
quase 60% dos municípios paulistas, em todas as classes
de tamanho. Nos municípios com menos de 20 mil habitantes, 43 (11,7%) não possuem cadastro imobiliário. Na
classe de tamanho imediatamente acima, apenas sete declararam a ausência deste cadastro. Dos municípios com população entre 50 e 500 mil habitantes, somente Várzea Paulista (da classe de 50 a 100 mil) e Mogi-Guaçu (da classe de
100 a 500 mil ) não têm cadastro imobiliário. Em todas as
faixas, mais de 30% responderam dado não disponível.
93
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 10(3) 1996
O cadastro imobiliário existe em pelo menos 47% dos
municípios de todas as regiões do estado, enquanto para
o aerolevantamento existe uma grande variação: de 5,6%
a 36,1% para o conjunto das regiões, exceto a Região
Metropolitana de São Paulo, com 57,9% dos municípios
possuindo aerolevantamento, e a RA de Santos, onde 75%
dos municípios o possuem.
Quanto aos cadastros de serviços urbanos, vale ressaltar as RGs de Itapeva (RA de Sorocaba) e Catanduva (RA
de São José do Rio Preto), que não possuem nenhum dos
cadastros pesquisados.
Essa primeira abordagem da situação dos municípios
paulistas relativa à existência de legislação municipal
e de cadastros técnicos municipais, físico-territoriais e
de serviços indica que, embora os mais altos percentuais
de respostas afirmativas correspondam aos municípios
maiores e mais urbanizados, muitos dados destes
mesmos municípios não puderam ser disponibilizados.
Somente para um pequeno número dentre eles registrase a existência das leis mais tradicionais. A introdução
de novos instrumentos urbanísticos é ainda incipiente.
A prática de sistematizar informações através de cadastros, apesar de ser mais freqüente do que a legislação,
não existe em parcela significativa dos municípios do
estado. Por outro lado, a utilização desses cadastros para
o planejamento e sua atualização periódica nem sempre
estão presentes na rotina das administrações municipais.
TABELA 4
Distribuição dos Municípios, por Classe de Tamanho,
segundo a Existência de Cadastros de Serviços Urbanos
Estado de São Paulo – 1992
Cadastros de
Serviços
Urbanos
Classes de Tamanho
(número de habitantes)
Menos
de 20 Mil
20 a 50
Mil
Mais de
500 Mil
Total
367
2,2
106
1,9
50
0,0
43
0,0
6
0,0
572
1,7
Cadastros de Serviços
Urbanos (Em %)
Águas Pluviais
Sim
8,0
Não
57,0
ND(2)
33,0
10,4
50,9
36,8
22,0
52,0
26,0
23,3
41,9
34,9
33,3
33,3
33,3
13,0
52,0
33,0
Abastecimento
de Água
Sim
Não
ND(2)
22,0
44,0
32,0
25,5
32,1
40,6
34,0
40,0
26,0
41,9
23,3
34,9
100,0
0,0
0,0
28,0
37,0
33,0
Rede de Esgoto
Sim
Não
ND(2)
18,0
47,0
33,0
26,4
33,0
38,7
34,0
40,0
26,0
39,5
25,6
34,9
83,3
16,7
0,0
26,0
40,0
33,0
Energia Elétrica
Sim
Não
ND(2)
8,0
57,0
33,0
17,0
42,5
38,7
30,0
46,0
24,0
23,3
37,2
39,5
33,3
50,0
16,7
16,0
49,0
34,0
Sistema Viário
Sim
Não
ND(2)
17,0
47,0
34,0
23,6
34,9
39,6
40,0
36,0
24,0
39,5
23,3
37,2
66,7
33,3
0,0
25,0
39,0
34,0
Iluminação Pública
Sim
Não
ND(2)
7,0
57,0
33,0
16,0
43,4
39,0
34,0
42,0
24,0
28,0
34,9
37,0
50,0
33,3
17,0
17,0
49,0
33,0
Nº de Municípios
Total (Nº Abs.)
NR (1) (Em %)
50 a 100 100 a 500
Mil
Mil
ALGUMAS CONSIDERAÇÕES
A análise, ainda que embrionária e exploratória, desses dados obtidos na PMU/93 mostra um amplo leque
de possibilidades que a pesquisa hoje oferece com relação à análise dos municípios e das regiões do Estado
de São Paulo e que ainda pode vir a oferecer quando
da sua rotinização, possibilitando a elaboração de séries históricas sobre os diferentes temas pesquisados.
A amplitude dos temas e das questões investigados
permite vários desdobramentos, análises setoriais,
bem como recortes analíticos temporais sobre a ação
municipal. 8
Vale ressaltar que a vasta gama de informações produzidas nas prefeituras, em geral, está dispersa em diferentes setores. São dados que não se articulam e poucos
estão mapeados. Também as informações produzidas e
organizadas em outras esferas são pouco exploradas, ou
utilizadas apenas de maneira pontual e parcial pelas administrações municipais.
Essas informações, se forem organizadas e sistematizadas, podem tornar-se extremamente úteis e fundamentais para o planejamento das ações públicas. Nesse processo, a introdução da informática e a possibilidade de
Fonte: Fundação Seade. Pesquisa Municipal Unificada 1993 – PMU/93 (ano base 1992).
(1) Municípios que não responderam à PMU.
(2) Dado não disponível.
Os cadastros de serviços são de grande importância
para a manutenção e a programação da expansão das
redes, evitando superposição de esforços e gastos desnecessários.
A Região Metropolitana de São Paulo destaca-se na distribuição dos municípios que possuem cadastros. Os percentuais de respostas positivas na RMSP são, em geral, superiores a 50% para os cadastros físico-territoriais e maiores que
26% para os cadastros de serviços urbanos. A performance
dos municípios da Região Metropolitana de São Paulo é sempre superior à média estadual.
94
O MUNICÍPIO E A GESTÃO URBANA: NOVAS EXIGÊNCIAS
5. Exigência constitucional - artigo 29 da Constituição Federal e artigo 144 da
Constituição do Estado de São Paulo.
utilização de sistemas georeferenciados na análise das
informações para o planejamento podem ser ferramentas
valiosas, permitindo melhorar a capacidade de gestão e
planejamento das administrações municipais, não sendo,
no entanto, uma solução em si mesmo (Santos e Pires,
1996).
Enfrentar o desafio de assumir o planejamento urbano
enquanto um processo que permita acompanhar a dinâmica de transformação da cidade exige, hoje, ainda mais
do que no passado, o apoio de um sistema de informações que auxilie no acompanhamento da evolução da realidade urbana e registre as ações/decisões do poder público, no sentido de informar e subsidiar o planejamento
de novas ações e o gerenciamento da cidade. Entretanto,
a despeito da crescente demanda por informações no
âmbito municipal, principalmente pelas próprias prefeituras, são poucos os administradores municipais que investem nessa área.
Neste sentido, verifica-se que a PMU tem desempenhado também o papel de fomentar nas prefeituras o interesse pela organização, sistematização e constante atualização dos dados produzidos.
6. A Região Metropolitana de Santos foi instituída recentemente e o projeto de
lei transformando a RG de Campinas em região metropolitana está em tramitação.
7. Vale lembrar que muitos municípios paulistas possuem unidades de proteção
ambiental (APAs, Reservas, Parques, etc.) regidos por legislação federal e estadual.
8. A Pesquisa Municipal Unificada/96 referente ao ano base de 1995, atualmente em campo teve seus instrumentos de coleta reestruturados e aperfeiçoados com
base na avaliação da PMU/93 e em necessidades novas colocadas pela dinâmica
da realidade do planejamento municipal, a exemplo das questões sobre informática que foram acrescidas.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
FUNDAÇÃO SEADE. PMU – Pesquisa Municipal Unificada. Produto Eletrônico. São Paulo, 1995.
__________ . Pesquisa Municipal Unificada 1993 – Relatório de Metodologia
e Avaliação. São Paulo, 1995.
GRAZIA DE GRAZIA (org.). Plano Diretor – instrumento de reforma urbana.
Rio de Janeiro, Ed. Fase, 1990.
JANNUZZI, P. M. “Fontes de informação sociodemográfica para o planejamento do setor público”. Revista de Administração Pública – FGV. São Paulo,
v.29, n.3, jul./set.1995, p.197-210.
LIMA, M. de L.C.A. de. “A materialização das cidades através da Legislação
Urbanística Municipal (1955-1995)”. Seminário Internacional “Avaliação
dos Instrumentos de Intervenção Urbana”. São Paulo, FAU/USP-Fupam,
1993.
OLIVEIRA, D. de S. Planejamento Municipal. Textos de Administração Municipal 4. Rio de Janeiro, Ibam, 1991.
NOTAS
PORTAS, N. “Tendências do urbanismo na Europa – planos territorial e local”.
Revista Oculum. São Paulo, n. 3, 1993, p. 4-13.
1. Ver a esse respeito Lima (1993) e Smolka (1994).
3. Vale ressaltar que dos 572 municípios pesquisados em 1993, apenas dez não
responderam os questionários da pesquisa, sendo oito deles com população inferior a 20 mil habitantes e dois com população entre 20 a 50 mil habitantes.
RIBEIRO, L.C. de Q. e SANTOS Jr., O.A. dos (orgs.). Globalização, fragmentação e reforma urbana. O futuro das cidades brasileiras na crise. Rio de
Janeiro, Ed. Civilização Brasileira, 1994.
SANTOS, S.M.M. e PIRES, M.C.S. “Informações para o Planejamento Municipal. Algumas considerações”. Encontro Nacional de Produtores e Usuários
de Informações Sociais, Econômicas e Territoriais. Anais... Rio de Janeiro,
IBGE, 1996.
SEPLAMA/Prefeitura de Campinas. Plano Diretor de Campinas. Campinas, 1995.
4. Vale destacar que os dados não disponíveis, que para algumas questões alcançam percentuais elevados, dizem respeito a informações reprovadas no processo
de crítica e consistência da pesquisa e que dependem de avaliação mais apurada.
Esta situação contribui para mostrar as dificuldades de muitas prefeituras em
dispor de dados e informações atualizadas.
SMOLKA, M.O. “Problematizando a intervenção urbana: falácias, desafios e
constrangimentos”. Cadernos IPPUR/UFRJ. Rio de Janeiro, ano VIII, n.1,
abril de 1994, p.29-42.
VILLAÇA, F. “A crise do planejamento urbano”. São Paulo em Perspectiva.
São Paulo, Fundação Seade, v.9, n.2, abr./jun.1995, p.45-51.
2. Ver a respeito Santos e Pires (1996). Neste encontro, várias foram as comunicações que exemplificam situações de carência de organização das informações
em diferentes prefeituras brasileiras, bem como exposições que mostraram experiências municipais exitosas e inovadoras nesta área.
95
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 10(3) 1996
ORÇAMENTOS MUNICIPAIS PAULISTAS
GUSTAVO ZIMMERMANN
Economista, Professor do Instituto de Economia da Unicamp, Consultor da Fundação Seade
O
meçou a ser contestada antes mesmo de entrar plenamente em vigência. Por um lado, o governo federal
buscou imediatamente desincumbir-se de dispêndios até
então sob sua responsabilidade, usando para isso
instrumentos administrativos (operação desmonte). Por
outro lado, diante da falta de respaldo das forças
políticas locais e regionais, as propostas federais para
reversão ou atenuação da descentralização passaram a
ser veiculadas camufladamente dentro de proposições
mais abrangentes. Exemplos marcantes desta camuflagem são os projetos de simplificação da estrutura
tributária.
Apesar de a história recente de nosso sistema tributário registrar sucessivas alternâncias entre desenhos
centralizados e descentralizados, esta última reação
federal contrária à descentralização foi inédita tanto
pela rapidez com que se apresentou quanto pela fragilidade das forças políticas que a apoiaram (e em parte
ainda a apóiam). Mesmo antes da vigência dos novos
dispositivos constitucionais, forças do governo central,
que haviam se mantido no mais absoluto silêncio durante todo o processo constituinte, passaram a clamar
contra o que consideraram “excessos descentralizantes”, “o mesmo erro da centralização com sinal trocado”, “ingovernabilidade provocada pela descentralização exagerada”, etc.
Diversas são as razões que explicam a fragilidade
das forças políticas e sociais defensoras da re-centralização da receita tributária, mas pode-se destacar a ausência de um projeto amplo capaz de aglutinar interesses diversos, como ocorreu nas centralizações dos anos
30 e 60. De fato, enquanto estas centralizações resultaram de rupturas políticas, nas quais a concentração
capítulo tributário da Constituição de 1988 deu
novo reforço às finanças municipais e estaduais, consolidando o longo processo de descentralização tributária iniciado na segunda metade dos
anos 70. O atual texto constitucional repassou aos municípios a competência sobre dois novos impostos e
ampliou as participações municipais nas receitas estaduais do ICMS e do IPI-exportações e nas receitas federais através do FPM. Os impostos únicos, o imposto
sobre os serviços de telecomunicações e aquele sobre
os serviços de transportes interestaduais foram retirados da esfera federal e incorporados à base tributada
pelo ICM, sendo ampliada a participação estadual nas
receitas da União através do FPE.
Estas mudanças diminuíram a receita tributária efetivamente disponível para a União e aumentaram os recursos colocados à disposição dos estados e municípios. Em 1990, a receita tributária federal, após
concretizadas as transferências intergovernamentais,
passou a representar 54% do total da receita tributária
nacional, contra 57% no biênio 1988-89. No mesmo
período, a receita municipal aumentou de 14% para 16%
e a estadual passou de 29% para 30%. Contudo, a receita real efetivamente disponível para a União não
diminuiu, ao contrário, experimentou inclusive um
pequeno aumento devido à expansão da carga tributária geral que saltou de 21,9% do PIB para 27,4%, mantendo-se neste patamar até o presente. 1
Com os reforços das receitas estaduais e municipais,
o sistema tributário nacional transformou-se num dos
mais descentralizados do mundo, conforme têm destacado diversos autores, dentre eles Dain (1994) e Afonso
e Raimundo (1995). Esta descentralização, porém, co-
96
ORÇAMENTOS MUNICIPAIS PAULISTAS
de recursos na esfera federal respondia a objetivos
amplos que catalisaram politicamente expressivos segmentos sociais, as atuais propostas não apontam para
nenhum projeto de longo alcance.
res incrementos contemplaram os municípios menores
que, em geral, estavam perdendo ou vinham mantendo
relativamente estáveis suas populações e para os quais
eram estáveis ou declinantes suas respectivas demandas sociais urbanas. Por outro lado, aos grandes municípios que, na sua maioria, experimentavam aumentos
populacionais explosivos e conseqüentemente sofriam
aumentos em suas demandas sociais urbanas couberam
os menores incrementos. 5 Convém ainda salientar que
este é um período no qual a modernização industrial,
que vinha ocorrendo desde o início dos anos 50, aumentava a pressão sobre a infra-estrutura das cidades
e alterava substancialmente a natureza da demanda
social urbana. 6
Rapidamente este desencontro gerou protestos e, devido à posição destes centros urbanos no cenário político nacional, suas manifestações passaram a ecoar por
toda sociedade. Num primeiro momento, exatamente
nestas grandes cidades do interior paulista, as forças
políticas do regime militar passaram a sofrer derrotas
eleitorais que se reproduziram nos grandes centros de
outros estados, comprometendo a legitimidade do regime.
Na primeira metade dos anos 70, a insatisfação nas
capitais estaduais e nos grandes centros interioranos ganhou nova dimensão devido à falta de investimentos
em saneamento básico, o que provocou a proliferação
de surtos de doenças infecto-contagiosas, como a meningite, a paralisia infantil, etc., e pela falta de investimentos em alternativas para o transporte de massa associados e pela deterioração da malha ferroviária
suburbana, que ensejaram depredações de estações de
trens e terminais de ônibus (principalmente em São
Paulo e no Rio de Janeiro).
Estas reações inegavelmente contribuíram para acelerar o processo de abertura da fechada estrutura política do regime. Neste processo, a busca por maior respaldo político promoveu a alteração dos critérios das
representações estaduais no Legislativo federal em favor das regiões economicamente mais atrasadas, nas
quais as forças políticas do regime ainda contabilizavam vitórias eleitorais.
Dentre os desdobramentos provocados pela abertura, interessa destacar a progressiva desvinculação dos
recursos transferidos e a descentralização da receita
tributária através do aumento dos montantes repassados pelo Fundo de Participação dos Estados e Municípios, privilegiando exatamente as regiões cujas representações haviam ganho peso no Congresso Nacional.
O esvaziamento das finanças federais continuou à
medida que o regime militar foi perdendo poder frente
ao esgotamento da capacidade de ação do Estado Na-
EVOLUÇÃO E PERFIL ATUAL DA RECEITA
As principais características da receita pública municipal em nossos dias são a pequena dimensão dos recursos próprios e o grande peso que os recursos transferidos têm na maioria dos orçamentos municipais.
Estas características foram implementadas em 1966 com
o objetivo de transformar o sistema tributário num instrumento para o planejamento e orientação do processo de industrialização. 2 Para o sucesso deste objetivo
seria fundamental criar mecanismos que compelissem
as esferas inferiores do governo a seguirem as determinações centrais. Exatamente para isso, a autonomia
financeira dos governos estaduais e municipais foi reduzida e, para compensá-los pela perda de receitas,
foram incrementados os recursos a eles transferidos e,
coerentemente com o projeto e implantação do planejamento centralizado, estas transferências passaram a
ter destinações determinadas pelo governo federal, através de vinculações compulsórias. 3
Ademais, de seu caráter compensatório e das vinculações a que foram submetidas, as transferências federais para estados e municípios referentes aos Fundos
de Participação dos Estados e Municípios (FPE e FPM)
ganharam ainda funções mitigadoras das diferenças interestaduais e intermunicipais de renda, passando a
privilegiar os estados economicamente mais atrasados
e, dentro dos estados, os municípios menores. Por seu
turno, as receitas estaduais do Imposto sobre a Circulação de Mercadorias – ICM passaram a ser partilhadas com os municípios onde foram arrecadadas, buscando propiciar adequado e permanente financiamento
à infra-estrutura dos espaços nos quais se localizava a
produção industrial ou comercialização.
Consolidadas as alterações introduzidas no sistema tributário e ampliada a carga tributária geral, a distribuição
dos recursos adicionais entre os municípios paulistas ficou assim disposta: à capital coube a maior parcela de incremento; aos municípios pequenos (justamente os que
perdiam ou vinham mantendo relativamente constantes
seus contingentes populacionais) couberam os maiores
acréscimos de recursos;4 aos maiores centros urbanos do
interior (aqueles com mais de 100.000 moradores e que
recebiam os maiores fluxos migratórios dentro do estado)
foram reservados os menores incrementos de recursos.
Em suma, a distribuição final dos recursos aos municípios paulistas foi paradoxal. Por um lado, os maio-
97
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 10(3) 1996
cional. Para tanto, contribuíram as pressões das mesmas elites regionais sobre-representadas no Congresso
Nacional, às quais se juntaram as pressões de representantes das regiões economicamente mais adiantadas.
Esta junção de interesses parece ter sido subproduto do progressivo esgotamento da capacidade de ação
do Estado central, frente ao qual a descentralização da
receita, via aumentos das transferências do Fundo de
Participação dos Estados e do Fundo de Participação
dos Municípios, constituía-se uma opção para garantir
investimentos regionais. Independente desta consideração, o certo é que o reforço das finanças locais e regionais, por esta via, passou a catalisar os interesses
de todos os representantes das regiões menos desenvolvidas, pois estas seriam as maiores beneficiadas pelo
incremento dos montantes federais transferidos através
do FPE.
Em outra vertente do mesmo movimento, os aumentos nas transferências do FPM beneficiavam privilegiadamente os menores municípios, independentemente
do estado no qual se situassem. Este fato explica por
que os representantes ligados aos pequenos centros das
regiões mais desenvolvidas também aderiram a este caminho para promoverem a descentralização. Contra esta
aliança, os representantes legislativos dos grandes centros das regiões mais desenvolvidas pouco teriam a
fazer, senão apoiá-la. 7 E, de fato, ganha força o “movimento” municipalista formado por parlamentares de
todas as regiões, notadamente aqueles ligados a bases
interioranas de seus estados.
Nesta “demarche” do sistema de repartição da receita pública, os municípios de menor porte foram os
mais beneficiados, pois as transferências do FPM respondiam por cerca de 30% de suas receitas, enquanto
nos orçamentos das grandes cidades este peso reduziase para menos de 3%. Isto ajuda a entender por que,
apesar de os municípios em geral beneficiarem-se com
os novos recursos, persistia a demanda dos maiores
centros por mais reforços. 8
Paralelamente a este processo de âmbito nacional,
ocorria no território paulista um importante deslocamento da produção industrial da capital para outros
centros urbanos, fazendo com que a participação do
valor adicionado pela produção e circulação de bens
na capital caísse de 45,4% do total estadual, em 1970,
para 34,2%, em 1982.
O governo estadual, visando recompor o orçamento
paulistano sem comprometer seus próprios recursos,
submeteu à Assembléia Legislativa uma proposta de alteração dos critérios de distribuição do ICM, privilegiando a capital em detrimento dos grandes municípios.
Para viabilizar politicamente o projeto, além do muni-
cípio de São Paulo, foram contemplados também os
micros e pequenos centros, reproduzindo assim (internamente no estado) o mesmo movimento de aumento
das transferências para os pequenos municípios. No
caso paulista, o favorecimento aos pequenos municípios teve a agravante de diminuir concomitantemente,
em termos absolutos, os recursos destinados aos grandes centros urbanos do interior.
Em abril de 1982, exclusivamente por conta destas
alterações, o índice de participação da capital no ICM
aumentou 9,4%, passando de 34,3% para 37,5% do total estadual, sendo que a participação dos municípios
menores saltou 85,7% (de 0,8% para 1,5% do total estadual), enquanto a dos maiores municípios sofria uma
brusca redução de 42,5% para 38,5%.
Concluindo, entre 1980 e 1988, a distribuição das
receitas municipais no Estado de São Paulo sofreu mudanças produzidas concomitantemente pelas transferências federais e pelas estaduais, ambas reforçando os orçamentos dos menores municípios. Em 1988, as receitas
efetivamente disponíveis, isto é, as receitas totais exclusive os empréstimos obtidos, dos micromunicípios
paulistas correspondiam a quase o dobro do valor de
1980. As dos municípios médios cresceram em média
36% e as dos grandes centros e da capital eram respectivamente 5% e 23% menores. Ou seja, a descentralização, nos anos 80 anteriores à reforma constitucional,
não alterou o perfil da distribuição intermunicipal da
receita, mas apenas acentuou os traços definidos, em
1966, e o desencontro entre os recursos e a demanda
social urbana.
O processo constituinte de 1988 aumentou as receitas estaduais e municipais, incrementando tanto os recursos para eles transferidos quanto suas receitas próprias. Os principais impactos destas alterações nos
municípios paulistas, vistos em termos per capita entre
a média dos triênios anterior e posterior a reforma
(1986-88 e 1989-91), foram os seguintes:
- os ganhos na receita efetiva total (receita total menos
os empréstimos realizados) no estado foram em média
de 31%. À capital coube um incremento de cerca de
45%, o maior dentre os centros urbanos. Os percentuais
de ganho dos outros municípios foram menores, com
acréscimos decrescentes e proporcionais à população.
Os maiores centros urbanos tiveram incrementos da
ordem de 35% e as menores localidades foram de 16%;
- a ampliação da base tributada pelo ICM/ICMS e o aumento de 20% para 25% da participação municipal na
sua receita fizeram com que, pela primeira vez desde
os anos 60, os acréscimos nas transferências contemplassem principalmente os grandes municípios. À capital coube um acréscimo de 30% e aos centros com
98
ORÇAMENTOS MUNICIPAIS PAULISTAS
mais de 250.000 habitantes de 25% em média. Os centros com população entre 10.000 e 50.000 tiveram ganhos de, em média, 18% e para aqueles com menos de
10.000 moradores o aumento médio correspondeu a
12%;
- os incrementos propiciados nas arrecadações próprias
pela ampliação das competências tributárias municipais,
de um modo geral, fortaleceram privilegiadamente as
localidades menores. Contudo, dado que no geral eram
pequenas as participações destas receitas nos respectivos orçamentos e pequenos foram os acréscimos nas
arrecadações próprias, igualmente pequenos foram os
impactos nas respectivas receitas disponíveis.
último ano até 1994, passando a comprometer cerca de
80% das receitas disponíveis para os municípios paulistas, exclusive a capital, para a qual este comprometimento ficou perto de 65%. 10 No entanto, apesar deste
comprometimento, as despesas diversificaram-se significativamente, apresentando expressivo dinamismo,
como se constata nos dados dos balanços no período.
Durante todo o período analisado, o conjunto dos
bens e serviços públicos e a infra-estrutura colocada à
disposição dos munícipes aumentaram ininterruptamente. Os níveis dos investimentos mantiveram-se, nos 15
anos estudados, em patamares elevados e semelhantes
aos do início da década. Por duas vezes somente eles
se retraíram: a primeira durante a crise 1982-85 e a
segunda em 1989, frente ao alarmante descontrole inflacionário do último ano do governo Sarney.
Ainda através dos dados agregados, observa-se nitidamente que, apesar do progressivo comprometimento
orçamentário com despesa de pessoal, a partir de 1985,
diminuíram em termos percentuais os recursos destinados a cobrir o funcionamento da “máquina pública”,
ou seja, as atividades administrativas e de planejamento
das prefeituras em geral absorveram, em 1993-94, parcelas menores das receitas disponíveis do que as absorvidas em meados da década de 80 ou no ano da reforma constitucional.
Também de um modo geral, os municípios aumentaram seus dispêndios com atividades sociais (educação/cultura e saúde/saneamento) e com atividades ligadas a segurança pública, comunicações, agricultura,
indústria, comércio e serviços e relações de trabalho.
Em contrapartida, acompanhando a queda nas taxas de
crescimento demográfico, ocorreram discretas reduções
nos recursos orçamentários dedicados ao urbanismo e
ao sistema de transportes.
Dados um pouco mais detalhados, extraídos de uma
amostra selecionada de municípios, 11 permitem conclusões ligeiramente diferentes, porém, perfeitamente compatíveis com estas obtidas a partir das despesas agregadas para o total dos municípios agrupados segundo
seus portes populacionais.
O investimento per capita (apesar de apresentar variações) manteve-se em patamares próximos aos de
1980-82 em cerca de metade dos balanços. Para 20%
dos balanços, os investimentos declinaram ligeiramente
e para os restantes 30% diminuíram acentuadamente,
nos últimos anos.
Na mesma amostra, para o conjunto dos municípios
que, na década passada, perderam população ou cujas
populações mantiveram-se relativamente estáveis, notou-se uma discreta preponderância de níveis mais baixos de investimentos do que os prevalecentes nos muni-
TRAÇOS RELEVANTES DOS
GASTOS MUNICIPAIS
Estas modificações aparentemente esgotaram a descentralização através de ampliações das participações
estaduais e municipais nas receitas federais e despertaram críticas diversas e reações contrárias à descentralização. Dentre estas, destacam-se, não pela rapidez
com que foram formuladas, mas sim pelo caráter oficial que assumiram, as realizadas pela comissão executiva nomeada em 1992, pelo presidente Fernando
Collor, para apresentar uma proposta de reforma fiscal
a ser encaminhada ao Congresso Nacional.
O relatório final desta comissão enfatizou as inconveniências da grande variedade de tributos então vigentes e propôs a eliminação de alguns deles, que deveria ser acompanhada de uma nova repartição da
receita tributária em favor da União, ou da transferência para os estados e municípios de vários encargos até
então sob responsabilidade federal, ou de uma combinação das duas alternativas. Estas propostas foram, em
grande medida, justificadas pela rigidez orçamentária
que os elevados gastos com o funcionalismo público
provocava. Esta rigidez foi identificada como um dos
maiores entraves para a realocação dos recursos e redirecionamento dos gastos governamentais e para uma
maior eficácia da ação estatal sobre as carências sociais (Mattos Filho, s.d.). Segundo a comissão, este
comprometimento e seus prejuízos à ação governamental seriam particularmente danosos na esfera municipal, cujos gastos com pessoal haviam passado de 0,99%
do PIB em 1980 para 1,25% em 1987 e para 1,84% em
1990. 9
De fato, para os municípios paulistas os gastos com
pessoal aumentaram significativamente, em termos reais, entre 1980 e 1994. O total dos gastos com pessoal
e com os bens e serviços de consumo corrente aumentou em média 47% entre 1980 e 1988 e duplicou deste
99
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 10(3) 1996
cípios com elevado crescimento populacional.12 Nos municípios mais estáveis do ponto de vista populacional, à
menor propensão a investir correspondeu maiores gastos
na área social (saúde, proteção ao meio ambiente, educação e cultura, abastecimento agrícola, etc.).
Entre os municípios selecionados, a diminuição das
parcelas orçamentárias destinadas a cobrir despesas com
a administração e planejamento das atividades públicas predominou nos maiores centros (aqueles com população superior a 250.000 habitantes, inclusive a capital), justamente os que mais têm comprometidos seus
gastos com pessoal. Nos menores centros, o peso da
“máquina administrativa” manteve-se aproximadamente nos mesmos patamares anteriores ou aumentou.
Em 1993-94, para pouco mais de 80% dos centros
da amostra, os totais per capita destinados às funções
de educação, cultura, saúde e saneamento eram mais
de 30% superiores aos destinados em 1980-81.
Esta reordenação dos gastos em favor das atividades predominantemente sociais, além de generalizada
foi acompanhada de discreta contração de gastos em
infra-estrutura urbana. Com certa coerência, esta contração dos gastos com a infra-estrutura urbana foi discretamente mais elevada nos municípios cujas populações apresentaram menores taxas de crescimento e
foram discretamente menores nos municípios que ganharam população. O município de Santos, por exemplo, que cresceu apenas 2,7% na década de 80, apresentou gastos orçamentários com infra-estrutura urbana
permanentemente decrescentes entre 1980 e 1994.
Estes mesmos indicadores podem ser um pouco mais
refinados para 1992 (único ano para o qual há dados
mais desagregados por função). 13 A análise destes dados mostra que os municípios paulistas cumprem uma
série de funções que não são constitucionalmente de
sua responsabilidade. 14 Em uma determinada função,
estas atividades, atípicas ou não tradicionais aqui consideradas, tiveram seus montantes estimados subtraindo-se, do total das despesas contabilizadas, aquelas
despendidas com atividades constitucionalmente definidas como de responsabilidade dos governos municipais. Por exemplo, do total referente à função educação e cultura, foram subtraídas as despesas referentes
aos programas de educação da criança de 0 a 6 anos e
ao ensino fundamental.
Com isso restaram como gastos de educação considerados atípicos ou não tradicionais, os gastos com o
ensino médio, o ensino superior, o ensino supletivo, o
ensino especial, os subprogramas referentes ao desporto
amador e profissional, a bolsas de estudo, a residência
para educandos, ao transporte escolar e ao restaurante
universitário.
Dos municípios selecionados para esta análise mais
detalhada, 40% despenderam mais de 5% de seus orçamentos com atividades atípicas ou não tradicionais
da esfera municipal, pouco mais de 15% gastaram algo
superior a 10%, nestas mesmas atividades, enquanto
apenas dois, dos 60 municípios selecionados, despenderam seus recursos exclusivamente em programas tipicamente municipais.
As atividades educacionais e de saúde atípicas foram as que mais absorveram recursos orçamentários.
Na saúde, provavelmente foram destinados recursos
para alimentação e nutrição infantil, ou ainda para a
distribuição de remédios e outros produtos farmacêuticos. Nos programas educacionais atípicos, provavelmente foram implementados o ensino médio, estimularam a formação superior, forneceram ensino supletivo
ou educação para excepcionais, ou cursos profissionalizantes, ou ainda foram concedidas bolsas de estudo
ou ajuda para a locomoção de estudantes.
Cerca de 10% dos municípios selecionados aplicaram mais de 5% de seus recursos em programas atípicos de transportes, ou seja, em transportes não urbanos. Possivelmente em terminais de ônibus interurbanos
ou campos de pouso para aviação de pequeno alcance.
Pouco mais de 1/3 das localidades da amostra fomentaram as atividades industriais, comerciais e de serviços. Em 10% destas localidades, os gastos desta natureza absorveram mais de 3% de seus orçamentos.
Dos municípios estudados, cerca de 30% destinaram
mais do que o mínimo legal aos programas educacionais que constitucionalmente cabem à esfera municipal, em 5% estes gastos superaram 30% do total orçamentário. Igual número de municípios (grandes, médios
e pequenos) dedicaram mais de 1% de seus orçamentos para atividades estritamente culturais.
Finalmente, vale destacar que 23, dos 60 municípios
selecionados, dedicaram, em 1992, mais de 20% de seus
recursos em suas malhas viárias, isto é, em infra-estrutura física. Destes municípios, 19 vinham registrando
crescimento populacional acima da média estadual e
em nove deles a taxa de crescimento superou o dobro
da estadual. Os maiores gastos com saneamento básico também foram majoritariamente realizados por municípios com elevado crescimento populacional, e discretamente menores nas localidades populacionalmente
mais estáveis.
Em suma, com diferenças devido ao tamanho e à
dinâmica populacional, foi possível para uma parcela
significativa de municípios paulistas, entre 1980 e 1994,
manterem relativamente estáveis os patamares de seus
investimentos, diminuírem (frente ao aumento de suas
receitas) o peso de suas atividades legislativas, judiciárias
100
ORÇAMENTOS MUNICIPAIS PAULISTAS
e administrativas e aumentarem os recursos destinados
às atividades educacionais, culturais, de saúde e
saneamento básico. Parte significativa de seus orçamentos (5,7% do total dos orçamentos da amostra) foi
despendida em atividades que extrapolam as competências locais definidas na Constituição, tais como
segurança pública, relações trabalhistas, estímulos às
atividades industriais, comerciais ou de serviços em
geral.
Enfim, ficou patente certa flexibilidade na destinação dos recursos que variaram segundo os tamanhos e
dinâmicas populacionais dos diversos centros analisados e certamente, em alguma medida, em função de
atendimento aos desejos e reclamos específicos de cada
comunidade. Neste sentido, foram expressivas as correlações entre crescimento populacional e despesas com
a infra-estrutura física e rede de abastecimento e saneamento básico. É, portanto, razoável se supor que os
investimentos seguiram, em grande parte dos municípios, o ritmo da demanda social urbana específica de
cada centro urbano.
Esta performance, no entanto, elevou o comprometimento dos orçamentos com as dívidas fundadas, principalmente no final do período analisado. Em 1993-94,
o total dos desembolsos com amortizações e encargos
dos empréstimos tomados voltou para o mesmo patamar que se encontrava no início da década. Tais resultados, porém, escondem déficits orçamentários crescentes que em 1994 foram, em média, cerca de cinco vezes
superiores aos de 1980, tendo dobrado de volume entre 1988 e 1994.
Contudo, não há como dissociar este comportamento explosivo daquele inflacionário, das indexações (formais ou não) estabelecidas por pressões trabalhistas ou
dos principais fornecedores e da liberalidade com que
foram tratados os limites de endividamento municipal,
principalmente, a partir das vésperas da Constituinte e
na luta do presidente Sarney para ampliar em um ano
seu próprio mandato.
Em 1988, as operações de crédito ampliaram em 25%
a receita efetiva dos municípios paulistas. O déficit global dos municípios paulistas, que representava 8% da
receita disponível em 1988, saltou para 24% em 1994,
mantendo-se, na média, num patamar três vezes superior ao prevalecente de 1980 a 1987.
Em suma, pelos mais diversos itens orçamentários
das administrações municipais paulistas, é possível se
vislumbrar a fragilidade dos argumentos baseados em
suposta incongruência dos gastos realizados sem diretrizes comuns, como se as demandas, ou vontades locais e específicas, fossem insuficientes para o atendimento das necessidades locais.
O que os dados mostram é uma diversidade de comportamentos ditada pelas diferentes dinâmicas populacionais e pelos diversos portes urbanos. Assim sendo, aos
críticos da descentralização da receita pública, que clamam serem desordenados os gastos municipais, fica demonstrado que, numa sociedade extremamente heterogênea e desigual como a brasileira, a centralização do poder
político e da receita pública é que teria dificuldades para
implementar uma racionalidade tão diversa.
Com a centralização é que se perdem a agudeza, a
sensibilidade local e a capacidade de apreensão das melhores formas de atendimento apropriado das demandas
específicas. É exatamente isso que resulta da maioria das
análises feitas sobre os planos nacionais que objetivaram
equacionar problemas locais como habitação, saneamento, analfabetismo, mortalidade infantil e geral, etc.
NOTAS
1. Dados extraídos de Mattos Filho (s.d.:32).
2. Detalhes em Oliveira (1981).
3. Detalhes em Varsano (1982:568).
4. Comumente é ignorado o fato de as modificações introduzidas em 66 nas transferências federais compensatórias praticamente não terem alterado a distribuição horizontal dos recursos, isto é, a distribuição entre municípios dentro de um
mesmo estado. Apesar da retórica racionalizadora e redistributivista dos mentores da reforma, parece ter prevalecido a necessidade de diminuir os atritos com
os governos locais em favor de uma menor resistência ao projeto centralizador.
5. A título de ilustração, na década de 70, o impacto populacional provocado pelo
saldo migratório no município de Campinas foi exatamente o dobro do experimentado pela metrópole paulista, enquanto o incremento de recursos atribuído ao município foi, proporcionalmente, cerca de metade do destinado à capital.
6. Entre inúmeros exemplos do que foi dito, destacam-se as pressões exercidas
sobre a malha viária urbana, pela produção automobilística, e sobre as redes de
abastecimento de água e de esgotos, pelo fluxo migratório.
7. Para entender estas alianças deve-se lembrar que, via de regra, quanto menor
o município, mais fortes são os laços que unem a representação legislativa e os
executivos locais (“currais eleitorais”). Inversamente, quanto maior a localidade
mais tênues são estes laços e menor o poder de influência dos executivos dos
grandes municípios sobre a representação legislativa de sua base territorial. Por
conseqüência, este caminho da descentralização era o que menos resistência
encontrava e o que mais amplo espectro de forças aglutinava.
8. Mais detalhes em Zimmermann (1989).
9. FGV/Ibre/CEF (até 1987) e IBGE/Decma (de 1988 a 1990), citados por Mattos
Filho, s.d.
10. Os dados referentes à evolução dos gastos, entre 1980 e 1994, foram extraídos de uma versão do produto “Finanças Públicas dos Municípios Paulistas 19801994”, da Fundação Seade, que se encontra em etapa final de testes, devendo
tornar-se pública nos próximos meses.
11. Os dados de despesas citados nesta parte referem-se a uma amostra com os
seguintes 60 municípios: Alto Alegre, Álvares Florence, Araras, Arujá, Bady
Bassitt, Buritizal, Campo Limpo Paulista, Capão Bonito, Capivari, Cubatão,
Espírito Santo do Pinhal, Fernando Prestes, Flórida Paulista, Francisco Morato,
General Salgado, Guaimbê, Guarulhos, Inúbia Paulista, Itaquaquecetuba, Itupeva,
Jundiaí, Junqueirópolis, Juquiá, Lençóis Paulista, Limeira, Luís Antônio, Marília, Monte Alegre do Sul, Nhandeara, Nova Luzitânia, Nuporanga, Palestina,
Piracaia, Pirajuí, Pongaí, Presidente Prudente, Rinópolis, Sales, Santa Bárbara
d’Oeste, Santana de Parnaíba, Santo Anastácio, Santo André, Santos, São Bernardo do Campo, São Caetano do Sul, São José dos Campos, São Paulo, Sud
Menucci, Sumaré, Tabatinga, Tarabaí, Tatuí, Taubaté, Tupã. Para compor esta
amostra, os municípios paulistas foram divididos por faixas de tamanho populacional e, dentro delas, subdivididos pela evolução demográfica da década de 80.
Finalmente, para cada faixa e tipo de comportamento foram selecionados, sempre que possível, dois municípios.
101
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 10(3) 1996
12. Na amostra, 17 municípios perderam população ou apresentaram saldo populacional positivo menor que 1,5% durante a década de 80. Em dez deles, não houve
investimento em saneamento básico, em 1992, único ano para o qual há dados mais
abertos por função. Em dois destes municípios, o total gasto não ultrapassa 1% de
seus orçamentos. Por outro lado, nos orçamentos de oito dos 11 municípios com
mais de 100.000 habitantes e cujas populações cresceram substancialmente, mais
de 10% dos orçamentos destinaram-se a gastos com saneamento.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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e FERRAZ, J.C. Estudo da competitividade da indústria brasileira. Campinas, IE/Unicamp, 1994, mimeo.
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AFONSO, J.R.R. e RAMUNDO, J.C.M. “Coletânea de estatísticas recentes
e breves notas sobre o federalismo fiscal no Brasil”. Documento apresentado no Seminário sobre Federalismo Fiscal. Salvador, Minfaz,
Confaz, governo da Bahia e FMI, 1995, mimeo.
LEAL, V.N. Coronelismo, enxada e voto. Rio de Janeiro, Ed. Revista Forense, 1948.
ZIMMERMANN, G. “O município no sistema tributário: os municípios paulistas e o caso de Campinas”. A interiorização do desenvolvimento econômico no Estado de São Paulo (1920-1980). São Paulo, Fundação
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OLIVEIRA, F.A. de. A reforma tributária de 1966 e a acumulação de capital no Brasil. São Paulo, Ed. Brasil Debates, 1981.
VARSANO, R. “Simpósio sobre o Sistema Tributário Nacional”. Anais... Brasília, Câmara dos Deputados, Comissão de Finanças, 1982.
13. As referências mais detalhadas das despesas em 1992 foram extraídas de
resumos dos balanços anuais, levantados, a partir de 1994, pela Fundação Seade
através da Pesquisa Municipal Unificada – PMU. Nesta pesquisa, além de um
maior detalhamento das informações fiscais, também passaram a ser coletadas
informações gerais sobre as administrações direta e indireta. Estes últimos dados já estão disponíveis, numa versão simplificada e informatizada, no produto
“Pesquisa Municipal Unificada – 1992”.
14. As atividades atípicas ou não tradicionais aqui consideradas são as obtidas
subtraindo-se do total das despesas contabilizadas numa função, aquelas despesas despendidas com atividades constitucionalmente definidas como de responsabilidade dos governos municipais. Por exemplo, na do total referente à função
educação e cultura, foram subtraídas as despesas com os programas de educação
da criança de 0 a 6 anos, ensino fundamental. Com isso, restaram como gastos
de educação considerados como atípicos ou não tradicionais aqueles com os ensinos médio, superior, supletivo e especial, os subprogramas referentes ao desporto amador e profissional, a bolsas de estudo, residência para educandos, transporte escolar e restaurante universitário.
102
REINVENTANDO
O
PODER LOCAL: LIMITES E POSSIBILIDADES DO FEDERALISMO...
REINVENTANDO O PODER LOCAL
limites e possibilidades do federalismo
e da descentralização
CELINA SOUZA
Professora do Departamento de Finanças e Políticas Públicas e do
Núcleo de Pós-Graduação em Administração da Universidade Federal da Bahia
D
esde a democratização e a promulgação da Constituição de 1988, o Brasil passou a ser um dos
países mais descentralizados na distribuição de
recursos tributários e de poder político (Souza, 1992 e
1994). A Constituição também expressou um compromisso com a institucionalização de valores democráticos, em
que a descentralização política, financeira e administrativa assumiu papel relevante. Essas questões emergiram no
Brasil e na América Latina no momento em que as chamadas democracias ocidentais começavam a questionar
a capacidade de seus sistemas políticos de encontrarem
soluções para crescentes problemas políticos, econômicos e sociais, como discutido por Dunleavy (1980).
Apesar dos compromissos assumidos no Brasil a favor de valores voltados para a democracia política e social e onde a descentralização se inscreve, inúmeros constrangimentos têm dificultado o alcance dos objetivos
constitucionais e o equacionamento dos vários problemas
que a Constituição procurou enfrentar. Além disso, profundas mudanças estão transformando o papel do Estado
como provedor de políticas econômicas e sociais, ao mesmo tempo em que se enfatiza a importância dos mecanismos de mercado. Completando esse ciclo de transformações, reformas econômicas, especialmente as voltadas para
o controle da inflação, têm reduzido o apoio do governo
federal na provisão de infra-estrutura e de serviços públicos locais e regionais. Na esfera federal, os resultados da
descentralização são bastante visíveis: o governo federal
tem sido particularmente afetado por dificuldades financeiras e tem encontrado impedimentos, embora não intransponíveis, para a montagem e sustentação de coalizões que lhe permitam governar. Na esfera subnacional,
todavia, os resultados da descentralização são menos cla-
ros, especialmente o conhecimento sobre como a descentralização afetou cada município e cada estado em particular, bem como o comportamento de suas lideranças em
face do aumento de recursos financeiros e de poder político. Como resultado desse quadro, gera-se um novo ciclo
de transformações, que reescrevem as tradicionais formas
federativas de distribuição de poder político e financeiro.
Esse novo formato do Estado modifica a agenda tradicional de integração social e regional e de coesão política,
especialmente o papel de cada nível de governo no pacto
federativo, gerando o desafio de redesenhar novas formas
de organização e de gestão públicas. Tais mudanças apontam para a necessidade de reinventar o federalismo, ao mesmo tempo em que trazem novas tensões no arranjo federativo desenhado pela Constituição de 1988.
Este artigo objetiva investigar se a descentralização e
a democratização introduzidas no Brasil na última década mudaram a forma como os bens locais (políticos e
materiais) e os serviços são distribuídos entre diferentes
grupos sociais e políticos. Indaga-se se a descentralização praticada dentro das regras democráticas mudou a
agenda da despesa pública na esfera local.
O artigo apresenta, primeiramente, uma sucinta revisão da literatura internacional, principalmente anglosaxônica, sobre o federalismo e a descentralização. Em
seguida, faz-se uma retrospectiva do desenvolvimento político e financeiro dos municípios brasileiros. As seções
seguintes discutem os casos de Salvador e Camaçari, com
o objetivo de investigar os efeitos da descentralização
política e tributária sobre o processo político local e sobre a alocação de recursos orçamentários, tomando como
base os resultados dos balanços desses dois municípios
no período 1981-91.
103
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 10(3) 1996
FEDERALISMO E DESCENTRALIZAÇÃO:
BREVE QUADRO TEÓRICO
ralismo como valores, atitudes, crenças e interesses que
se articulam no sentido de fazer com que ações sejam
apoiadas em propósitos e compromissos (Burgess, 1993b:
104). A importância de se incorporar na discussão sobre
federalismo a abordagem da ideologia política deve-se ao
fato de que mudanças e práticas diversas dentro de cada
federação têm se constituído no aspecto mais difícil para
explicar e compreender o funcionamento dos sistemas
políticos federais para além de seus aspectos meramente
formais e legais.
A contribuição de Burgess ao debate sobre federalismo abre caminho para a investigação das motivações que
embasam a existência de cada federação em particular.
Cada federalismo – e também cada federação – incorpora
um número variado de atributos econômicos, políticos e
socioculturais, que se inter-relacionam para produzirem
padrões complexos de interesses e identidades. Assim,
cada federalismo é guiado por um leitmotif, que também
pode se expressar de diferentes formas de acordo com as
peculiaridades de cada tempo histórico. O federalismo
norte-americano foi, e continua sendo, dominado pela
busca de mecanismos de “pesos e contrapesos” (os
“checks-and-balances”). No Canadá, Índia, Paquistão,
Malásia, Nigéria e Suíça, a razão de ser do federalismo
tem sido a preservação de minorias lingüísticas, étnicas e
religiosas, conforme discutido por Gagnon (1993). Na
Alemanha, o impulso federativo voltou-se primeiramente para a construção e depois para a consolidação de instituições capazes de evitar as duas derrotas da democracia naquele país: a primeira em 1933 e a segunda pela
ditadura nazista (Sontheimer, 1988). O federalismo da
Austrália tem sido creditado às vantagens comerciais advindas de um mercado unificado (Else-Mitchell, 1983) e/
ou à necessidade de contrabalançar, via os estados, as tendências centralistas do governo federal (Rydon, 1993).
Para os argentinos, como sugerido por Shapira (1992), o
federalismo legitima a luta das províncias contra o excessivo poder da capital. Argumenta-se, neste artigo, que
a razão de ser do federalismo brasileiro sempre foi, e continua sendo, uma forma de acomodação das demandas de
elites com objetivos conflitantes, bem como um meio para
amortecer as enormes disparidades regionais.
No que se refere à descentralização, apesar de políticas descentralizadas estarem em voga na maioria dos
países, o conceito de descentralização é vago e ambíguo.
A popularidade da descentralização respalda-se em vários fatores, como, por exemplo, nos ataques da direita e
da esquerda contra o poder excessivo dos governos centrais e na capacidade que o conceito traz embutida de prometer mais do que pode cumprir. Enquanto alguns autores enfatizam a desconcentração administrativa, outros
vêem a descentralização como uma questão política que
Em países federais é de fundamental importância discutir a questão do poder local, tomando como base os
postulados teóricos que conformam o federalismo e a
descentralização. Sistemas políticos federais baseiam-se
em teorias políticas e sociais do federalismo. A existência de um sistema federal implica cooperação política e
financeira entre o governo federal e as demais esferas da
federação. Esta é a razão pela qual o grau de descentralização entre unidades governamentais é de importância
crucial para o entendimento de como um dado sistema
federal funciona na prática. Por isso, a ciência política e
a administração passaram a dedicar atenção não apenas
às teorias do federalismo e à aplicação dos princípios federativos nas constituições e na legislação, mas também
à forma pela qual os diferentes sistemas federais são operacionalizados.
Apesar de o federalismo estar, em geral, acompanhado da descentralização, isto é, de substancial autonomia
entre os membros da federação, a descentralização não é
uma condição necessária nem suficiente para o federalismo, como discutido por Lijphart (1984).
O federalismo, no seu conceito amplo, refere-se aos
laços constitutivos de um povo e de suas instituições construídos através de consentimento mútuo e voltados para
objetivos específicos, sem, contudo, significar a perda de
identidades individuais (Harman, 1992:337). O conceito
de federalismo tem sido exaustivamente discutido na literatura, bem como existe acirrada disputa sobre as suas
principais características.1 Nesse terreno de disputas conceituais, optou-se por tomar como referência a visão de
Burgess (1993a:8), em que o federalismo é tratado como
um conceito de valor, como a recomendação e a promoção de apoio à federação. Partindo-se dessa visão, podese concluir que a lógica das federações é o federalismo,
que é a percepção ideológica do que deve acontecer após
a federalização. Mais do que uma distinção semântica, a
importância de se distinguir federação de federalismo
deve-se a dois fatores: a emergência de formas federativas em países e em instituições que não são uma federação, sendo a Bélgica e a Comunidade Européia os exemplos mais citados; e a existência de grande variedade na
prática dos princípios federais dentro de cada federação.
Assim, para os propósitos deste artigo, a dimensão adotada é a do federalismo como ideologia política, tal como
desenvolvido por Burgess. Essa visão preenche uma importante lacuna na literatura sobre federalismo, mais usualmente preocupada com as praticalidades dos arranjos
territoriais e governamentais, ou então excessivamente
formalista. Burgess definiu a ideologia política do fede-
104
REINVENTANDO
envolve uma efetiva transferência de autoridade para setores, parcelas da população ou espaços territoriais antes
excluídos do processo decisório.
Vários são os problemas que envolvem as formulações
teóricas sobre a descentralização. O primeiro encontrase no fato de que a literatura passou a enfatizar o slogan
“pense global e aja localmente”, ignorando a importância de outras esferas, tais como, no caso dos países federais, os estados-membros.2 O segundo problema é que a
descentralização tem significado, especialmente na literatura anglo-saxônica, um redirecionamento para o mercado e para os atores locais, reduzindo as instâncias de
politização.3
Em terceiro lugar, as formulações teóricas sobre a descentralização levam em conta a realidade dos países industrializados, tornando suas bases conceituais e metodológicas difíceis de serem aplicadas em outros países.
Como exemplo dessa limitação, pode-se apontar o fato
de que as formulações marxistas sobre a descentralização explicam a centralização e a descentralização como
correspondentes aos movimentos mundiais do capitalismo. Tal explicação encontra-se hoje sem base empírica,
dado que tendências divergentes não estão claramente ligadas aos atuais regimes políticos. Este é o caso de países como a França e os EUA, que vêm mostrando uma
tendência à descentralização, enquanto a Grã-Bretanha
está tomando o caminho de maior centralização. Para a
teoria oposta ao marxismo – a da escolha pública (public
choice) –, a descentralização é vista como fator importante na limitação da voracidade dos burocratas como
maximizadores de despesas, estimulando a opção dos
consumidores em escolherem livremente suas prioridades. Assim, se um município não atende às demandas de
um consumidor, este se muda para outro onde suas preferências serão melhor atendidas. Essas duas visões da descentralização são difíceis de se aplicar em países em desenvolvimento. A visão marxista por causa do papel
proeminente que o Estado sempre teve nos países em desenvolvimento e, também, porque, como lembrado por
Mouzelis (1986), a teoria marxista é de difícil aplicação
no mundo em desenvolvimento, uma vez que não considera o papel do clientelismo na configuração do sistema
político. Já a teoria da escolha pública também se mostra
de difícil aplicação porque cidadãos (ou consumidores)
pobres não parecem ter o direito de escolha de moradia
baseado em nada além do que a disponibilidade de emprego. Os estudos sobre migrações no Terceiro Mundo
têm mostrado, com exaustão, a importância central do
emprego na decisão de migrar.
A descentralização tem sido o foco central da literatura sobre desenvolvimento. Dentro dessa ótica, é vista como
um dos principais instrumentos do desenvolvimento e
O
PODER LOCAL: LIMITES E POSSIBILIDADES DO FEDERALISMO...
como estratégia para a redução do papel do Estado. Vários problemas teóricos não-resolvidos pela literatura sobre desenvolvimento podem ser apontados, tais como:
- para cada princípio a favor da descentralização, podese igualmente identificar outro que o contrarie;
- as vantagens e as limitações da descentralização são, em
geral, apresentadas em termos normativos sem relacionálas com contextos políticos e econômicos mais amplos,
gerando, portanto, uma despolitização do debate;
- a linguagem usada na literatura é a da “eficiência”, “efetividade” e “controle”, sugerindo, implicitamente, que
países centralizados carecem dessas três capacidades;
- a literatura trata a descentralização como uma política
concedida do centro para as esferas subnacionais, o que
não se aplica a países como o Brasil, onde a decisão de
expandir a descentralização foi tomada pelos parlamentares durante a Constituinte de 1986-88;
- a literatura tende a ignorar níveis intermediários de governo, focalizando apenas nas relações entre o centro e
as esferas locais;
- não existem garantias de que os benefícios de políticas
descentralizadoras serão eqüitativamente distribuídos,
como argumentam Prud’homme (1994), Slater (1989) e
Smith (1985).
O sumário aqui apresentado sobre o tratamento conceitual e teórico da literatura sobre descentralização teve
o objetivo de apoiar o argumento de que discutir a descentralização em termos gerais parece não significar muito
nos dias atuais. Torna-se fundamental refletir sobre a descentralização a partir de experiências concretas. É por esta
razão que o estudo dos municípios de Salvador e Camaçari são aqui apresentados como ilustrativos dos limites e
das possibilidades do federalismo e da descentralização
no Brasil pós-1988.
O objetivo dos estudos de caso é analisar o impacto da
descentralização em dois níveis: o político e o financeiro. Assim, a descentralização não é tratada, na sua dimensão administrativa ou econômica, nem como uma política decidida pelo centro – como em geral a trata a literatura
internacional –, nem como uma questão de prestação de
serviços públicos. Este artigo limita a discussão das questões teóricas da descentralização através da busca do
melhor entendimento de dois aspectos: as mudanças políticas ocorridas nesses municípios como resultado da
democratização e da descentralização; e a alocação de
recursos públicos na esfera local. Esses dois aspectos da
descentralização podem ajudar o entendimento sobre a
estrutura do poder local e da cota de poder à disposição
de cada esfera de governo. A necessidade dessa abordagem justifica-se pelo fato de que a descentralização não
105
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 10(3) 1996
ocorre em um vazio político-institucional. Além disso, a
descentralização promove novos conflitos entre diferentes grupos sociais e afeta a distribuição de poder político
e de bens a diferentes grupos da sociedade local. Dessa
forma, análises baseadas em evidências empíricas sobre
o desenvolvimento político e tributário das esferas subnacionais na última década podem contribuir para o desenvolvimento de questões mais precisas sobre as conseqüências da descentralização e da democratização no pacto
federativo brasileiro.
que os políticos locais, principalmente os das capitais, e
os políticos estaduais têm espaço de manobra próprio e
são parcialmente responsáveis pela capacidade de governar do governo federal. Esta constatação, todavia, não se
aplica a todos os municípios nem a todos os estados brasileiros, como se verá adiante.
Do ponto de vista tributário, a literatura sobre descentralização fiscal argumenta que, apesar do desenvolvimento de vários métodos para medir o grau de centralização/
descentralização dos recursos públicos, ainda existem
reservas quanto ao rigor dessas mensurações (Levin,
1991). Apesar desse reconhecimento, não existem dúvidas quanto ao fato de que os municípios brasileiros foram, do ponto de vista estritamente tributário, os maiores
beneficiários da descentralização promovida pela abertura política do final dos anos 70 e, posteriormente, pelas
medidas descentralizadoras introduzidas pela Constituição de 1988. Além do mais, os municípios possuem uma
margem relativa de liberdade para determinar a alocação
de seus recursos próprios e para financiar e administrar
seus recursos, especialmente a partir de 1988.4 Os municípios brasileiros são também relativamente capitalizados
quando comparados com outros, de países em desenvolvimento. Em 1992, a estimativa era a de que nenhum
município brasileiro teria recebido menos de US$ 400 mil
por ano apenas por conta do FPM (Bremaeker, 1994). Na
América Latina, no entanto, grande número de municípios tem um orçamento anual que varia entre US$ 5.000
e US$ 20.000 (Lordello de Mello, 1991). No Brasil, somente a transferência de recursos federais representou,
em 1993, US$ 5,5 bilhões (Bremaeker, 1994).
Apesar dessa força política e tributária, nem todos os
municípios e estados brasileiros encontram-se em posição mais favorável a partir da descentralização. Trabalho
realizado pelo Ipea/Ibam (1994) mostrou que cinco estados brasileiros arrecadam menos de 0,5% de todo o ICMS
coletado no país. Bremaeker (1994) mostrou que mais de
duzentos municípios do Nordeste não têm condições de
arrecadar recursos próprios. Tais situações mostram que,
em função da inexistência de indústrias e/ou do tamanho
da população pobre, esses estados e municípios não podem prescindir de ajuda financeira externa. As profundas
desigualdades regionais do Brasil desnudam uma das principais limitações da descentralização, qual seja, a de reduzir o papel do governo federal de transferir recursos
das regiões mais desenvolvidas para as menos desenvolvidas. Mesmo em países como o Brasil, onde existem
mecanismos de distribuição vertical da receita pública tipo
FPE e FPM, tais mecanismos mostram-se insuficientes em
face das sérias desigualdades inter e intra-regionais. Tal
constatação expõe os limites da descentralização financeira em países marcados por profundas desigualdades
MUNICÍPIOS NO BRASIL
Uma breve retrospectiva sobre o desenvolvimento das
municipalidades torna-se necessária para um melhor entendimento de suas posições atuais e tendências. Muitos
estudos trataram do papel histórico do governo e da política locais, mas poucos consideram sua posição nos anos
recentes. Esses estudos podem ser agrupados em três conjuntos. O primeiro grupo enfatiza a hegemonia da política local e dos grupos privados na estrutura de poder do
Brasil. Alinham-se, nesse grupo, os trabalhos de Nestor
Duarte (1939), Gilberto Freyre (1964), Oliveira Viana
(1949) e Maria Isaura Queiroz (1976). Uma variante desse grupo é representada pelo estudo clássico de Victor
Nunes Leal (1975), que mostrou as contradições entre a
adoção de formas modernas de representação política, tais
como o sufrágio universal, num contexto de pobreza, centralização de poder e de recursos nas esferas estadual e
federal, e de um poder privado local, o dos coronéis, que
já estava em decadência. O segundo grupo assume que o
governo central sempre desempenhou o papel principal
na política brasileira. O maior expoente desse grupo é o
trabalho, também clássico, de Raymundo Faoro (1958).
As interpretações de ambos os grupos levavam o debate
sobre a inserção do governo local vis-à-vis o central para
o terreno da polarização.
Nos anos 80, uma posição intermediária foi assumida
por um terceiro grupo, representado pelos trabalhos de
Ames (1987), Bursztyn (1985), Medeiros (1986) e
Schwartzman (1988), que concluíram que a polarização
desse debate era apenas aparente. Esses autores identificaram uma forte interdependência entre os níveis local e
central geradora de uma mútua legitimidade. Argumenta-se, todavia, que essa interdependência, apropriadamente
identificada pelos estudos que integram o terceiro grupo,
deve ser agora relativizada. A relação entre a esfera federal e as subnacionais mudou com a nova correlação de
forças promovida pela democratização e pela descentralização. A política e a federação brasileiras, assim como
as relações intergovernamentais, apresentam hoje um caráter difuso, gerador de uma fragmentação de poder, em
106
REINVENTANDO
regionais. Assim, os casos de Salvador e Camaçari inscrevem-se dentre aqueles em que a descentralização política e tributária teve escassa capacidade de transformação, seja nas práticas políticas, seja na alocação de recursos
locais para a melhoria das condições de vida de suas comunidades.
O
PODER LOCAL: LIMITES E POSSIBILIDADES DO FEDERALISMO...
mensal era de US$ 440. Valores médios, todavia, escondem desigualdades salariais entre os funcionários públicos, já que os fiscais tinham um salário médio de
US$ 1.360, enquanto o dos professores ficava em torno de US$ 360. 5
O segundo problema é o bloqueio de parte da receita
municipal autorizado pela Justiça para pagamento de
débitos contraídos junto a empreiteiras. A dívida de
Salvador com as empreiteiras só deve terminar em 2014
e estava estimada em US$ 200 milhões. Em 1991, sete
empreiteiras conseguiram da Justiça o reconhecimento de
um acordo por elas firmado com o prefeito Mário Kertész,
possibilitando-lhes o bloqueio de 20% da quota mensal
do FPM. Negociações para encontrar uma forma de
pagamento que diminuísse esse bloqueio foram abertas
em 1993, conseguindo a prefeitura a redução do bloqueio
de 20% para 5% do FPM (Gazeta Mercantil, 1993).
O terceiro refere-se ao débito total. O problema não
está no tamanho do débito, mas sim na relação entre débito e receita líquida. O débito de Salvador representava
453% da receita líquida da prefeitura em 1989, 220% em
1988, 200% em 1987 e 37% em 1986.6 Esses números
mostram um aumento exponencial do débito na gestão do
prefeito Mário Kertész. Entre 1989 e 1988, a taxa de aumento anual da dívida da prefeitura de Salvador situouse em 45%, o que coloca a cidade na posição de quarta
capital com a maior taxa de aumento de débito (Meneghetti
Neto, 1991).
As tentativas da cidade de aumentar a arrecadação de
recursos próprios são bloqueadas por razões não apenas
econômicas, mas também políticas. Os prefeitos encontram dificuldades para aumentar o IPTU devido a resistências da Câmara de Vereadores e da imprensa local.
Assim, Salvador tornou-se a cidade onde o aumento do
IPTU foi o mais baixo dentre as capitais das regiões metropolitanas. Entre 1988 e 1991, o aumento do IPTU de
Salvador foi de 34% ao ano, enquanto a média das capitais foi de 51% (Abrasf, 1992).
Constrangimentos legais e políticos, aliados à ausência de indústrias e ao tamanho da população pobre, fazem com que a arrecadação de impostos locais em Salvador represente 2,5% do total da receita arrecadada nas
capitais brasileiras, número muito abaixo de cidades com
população menor do que Salvador, como Belo Horizonte
e Recife (Abrasf, 1992). Como a margem de aumento da
arrecadação é baixa, a cidade vem usando duas formas
perversas para financiar o pagamento de suas despesas: a
tomada de empréstimos junto a bancos privados a juros
de mercado, que são, como se sabe, extremamente altos;
e o apelo à “boa vontade” do governador do estado para a
antecipação da quota mensal do ICMS ou até mesmo para
a assunção de serviços eminentemente locais. A primeira
O CASO DE SALVADOR
Salvador é a terceira cidade mais populosa do Brasil,
com 2,1 milhões de habitantes, e acumulou um número
considerável de problemas, para os quais não tem conseguido encaminhar soluções. Em 1991, apenas 23% da
população tinha acesso a serviços de esgoto e metade à
coleta de lixo; 39% eram analfabetos e 300 mil eram
desempregados. Apesar desses números, Salvador está
se transformando em importante cidade turística, com
a visita de aproximadamente 400 mil turistas, em cada
verão.
Financeiramente, Salvador apresenta-se como uma
das capitais mais problemáticas do país, devido à ausência de indústrias e ao tamanho da sua população de
baixa renda. A contribuição da cidade para a renda e a
receita do Estado da Bahia é baixa, de acordo com os
dados da Abrasf (1992). A estrutura da receita reflete
a dependência da cidade das transferências intergovernamentais. Os dados dos balanços da prefeitura de
Salvador, entre 1981 e 1991, mostram que apenas 38%
dos recursos da cidade provêm de receitas próprias. A
principal receita era extraída das transferências estaduais do ICMS, a segunda de receitas próprias do ISS
e a terceira de transferências do FPM.
As capitais brasileiras, em geral, aumentaram suas receitas a partir de 1988, não apenas via transferências federal e estadual, mas também através do aumento da receita própria e ajustamento de suas finanças, mas Salvador
permanece como uma exceção. As possibilidades da cidade de superar suas limitações financeiras são bloqueadas por três fatores.
O primeiro é o tamanho da folha de pagamento. Em
1991, com a implantação de um plano de carreira para o
servidor público municipal, Salvador gastou entre 80% a
90% da receita total com a folha de pagamento, enquanto
a média histórica anterior era de 50%, segundo dados da
Gazeta Mercantil (1993). Apesar desse significativo aumento, a despesa per capita com a folha de pessoal (US$
24) era a mais baixa dentre as principais capitais, inclusive nordestinas: Recife, com US$ 56, e Aracaju, com US$
70 (Abrasf, 1992). A pequena participação da folha de
pessoal na despesa per capita mostra que os salários recebidos pelos funcionários municipais são baixos. Em 1994,
a prefeitura tinha 21.660 funcionários e o salário médio
107
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 10(3) 1996
forma é parcialmente responsável pelo aumento da dívida e a segunda significa que os prefeitos têm que se submeter aos governadores para poderem arcar com as despesas cotidianas da cidade, gerando a dependência da
capital à administração estadual para gerir minimamente
a cidade.
Esse lamentável quadro financeiro faz com que Salvador tenha uma receita per capita de recursos próprios da
ordem de US$ 34, menor do que Fortaleza, e abaixo de
cidades com população semelhante, tais como Belo Horizonte, que tem uma receita per capita de recursos próprios em torno de US$ 68 e bastante distante de capitais
como Rio de Janeiro, com US$ 139, Florianópolis, com
US$ 122, São Paulo e Vitória, ambas com US$ 114, e
Curitiba, com US$ 77 (Abrasf, 1992), cidades que abrigam um número significativo de moradores de classe
média, bem como indústrias. Em 1993, a receita total de
Salvador foi de US$ 229,8 milhões e a receita per capita
de US$ 106.7
Do lado da despesa, os dados dos balanços entre 1981
e 1991 mostram que Salvador apresenta um quadro marcado pela pulverização de recursos em diversos itens
de despesas, contrário ao observado nas demais capitais.8 A prioridade de despesa mais clara em Salvador
está no item habitação e urbanismo, especialmente em
anos eleitorais. Os dados também mostram que a descentralização financeira introduzida nos anos 80 e a
volta das eleições diretas não afetaram o padrão da
despesa pública em Salvador.
Apesar de registrar uma tendência à pulverização dos
recursos, algumas funções registraram um aumento relativo no período, como é o caso das despesas com o Legislativo e com Assistência e Previdência, tendência que
também foi registrada nas demais capitais. Diferentemente
das demais capitais, onde o perfil da despesa mostra uma
tensão, de um lado, entre as funções habitação e urbanismo e, de outro, com serviços sociais, Salvador não registra essa tensão, uma vez que a despesa com serviços sociais tem sido historicamente baixa.
Entre 1970 e final dos anos 80, Salvador teve cinco
prefeitos. Entre 1979 e 1982, a cidade foi governada por
Mário Kertész e Renan Baleeiro; de 1983 a 1985 por
Manuel Castro; em 1986, Kertész, então no MDB, retornou ao cargo de prefeito pelo voto direto. Em 1989
Fernando José, um ex-radialista, foi eleito prefeito pelo
PMDB e nas eleições de 1992 os eleitores elegeram Lidice
da Mata, ex-membro do PC do B e agora no PSDB. Apesar de pertencerem a grupos políticos relativamente distintos, os prefeitos de Salvador têm uma marca comum
trazida pela precariedade das finanças públicas locais: eles
têm pouca margem para tomar decisões próprias e para
definir a agenda política e administrativa da cidade, já que
a situação financeira faz com que a prefeitura tenha que
recorrer a financiadores externos, ora aos governos estadual e federal, ora às empreiteiras.
A fragilidade financeira de Salvador faz com que seja
impossível administrar a cidade sem a ajuda financeira
de atores externos, tais como os governadores, as empreiteiras e o aparato das agências federais. Esse ônus tem
selado o destino dos políticos locais, qual seja, o de perderem o controle das decisões sobre a cidade e o de tornarem-se prisioneiros dos seus financiadores.
Apesar de sua importância política como capital do
estado, os líderes políticos locais são limitados por
constrangimentos tributários.9 A falta de recursos financeiros impede os prefeitos de governarem, o que
torna o eleitorado insatisfeito e volátil. Isto é confirmado pelo fato de todo prefeito que governou Salvador, nos últimos vinte anos, estar fora da cena política,
apesar de tentativas de retorno. A única exceção é Antônio Carlos Magalhães. 10
Sintetizando, Salvador é uma cidade que apresenta
profundos e recorrentes problemas políticos e financeiros. Os constrangimentos financeiros são responsáveis pela
perda de controle dos prefeitos sobre os destinos da cidade e também estão impedindo a cidade de ter uma face
política própria, apesar de o eleitorado ter, até agora,
mostrado uma vontade de romper com os laços de dependência da cidade com o principal grupo político estadual
representado pelo atual senador Antônio Carlos Magalhães.
Diferentemente das outras capitais, Salvador não se
beneficiou da descentralização política e financeira que
tem caracterizado o Brasil na democratização. A ausência
de aporte de recursos federais via transferências negociadas tem forçado a cidade a aumentar sua dependência
do governo do estado e das empreiteiras. O caso de
Salvador apresenta-se como uma exceção à regra de que
a descentralização financeira promoveu efeitos positivos
nas capitais brasileiras. Assim, Salvador pode ser apontada
como uma das cidades que não podem sobreviver sem o
aporte de recursos adicionais e onde a descentralização
financeira provou ter pouco impacto no aumento da
eficiência dos prefeitos e na sua capacidade de governar.
O caso de Salvador mostra que existem fatores políticos
e econômicos que influenciam os resultados da descentralização, mostrando, assim, os limites da descentralização em situações de grande disparidade inter e intraregional.
O CASO DE CAMAÇARI
Até os anos 70, Camaçari era um município isolado
que mantinha escassa ligação com as demais cidades da
108
REINVENTANDO
região metropolitana de Salvador. Quatro acontecimentos mudaram substancialmente a face da cidade: a implantação do parque petroquímico de Camaçari (Copec); a
construção da Estrada do Coco, que liga Salvador à área
costeira de Camaçari, transformando-a na principal fonte
de turismo e veraneio para os moradores de classe média
de Salvador e do seu entorno; a estipulação do município, em 1972, como área de segurança nacional, o que
trouxe para a prefeitura um prefeito nomeado, que governou a cidade durante 11 anos; e a delegação do planejamento das áreas industrial e urbana de Camaçari ao
Estado, que passou a tomar decisões em nome do município.
Em 1991, Camaçari tinha 108.865 habitantes. Do ponto
de vista físico, a cidade mostra as contradições e a falta
de relação entre as diferentes ocupações urbanas. Parte
do município é ocupado por indústrias, a área costeira por
confortáveis casas de veraneio e a sede do município é
habitada por uma população pobre de trabalhadores sem
qualificação que chagaram nos anos 70 para a construção
das fábricas. Essas três “cidades” não são visíveis entre
si, o que faz de Camaçari um território de mundos desconexos e contraditórios. No Copec existem indústrias sofisticadas e com alta tecnologia, que fornecem ao Estado
a sua principal fonte de arrecadação de tributos. Essas
indústrias, intensivas em capital, empregam pouca mãode-obra constituída de trabalhadores qualificados e bempagos, que moram em Salvador devido à pequena distância entre os dois municípios. Na área costeira estão grandes
loteamentos, com excelente infra-estrutura usada em geral apenas durante o verão. Na sede do município, 52%
da PEA está empregada no setor informal. Os que estão
no mercado formal são funcionários públicos ou empregados de empresas que prestam serviços não-especializados ao Copec. Em 1989, 90% da população da sede do
município tinha uma renda mensal máxima de três salários mínimos e 90% eram ou analfabetos ou não tinham
completado o segundo grau (Prefeitura Municipal de Camaçari, 1992).
Devido à presença das indústrias petroquímicas, Camaçari é um município financeiramente privilegiado se
comparado com as demais cidades baianas, mas tem por
residentes regulares uma população pobre e de baixa escolaridade. A principal fonte de receita do município é a
transferência do ICMS devido às indústrias do Copec. Em
1993 a receita per capita total era de US$ 406, bastante
distante da de Salvador (US$ 106). Apesar de ser um
município privilegiado financeiramente, o orçamento de
Camaçari foi deficitário na maior parte do período estudado. O desequilíbrio fiscal foi provocado por uma agressiva política de investimentos e pelo tamanho da folha de
pessoal. Em 1993 Camaçari tinha aproximadamente 5 mil
O
PODER LOCAL: LIMITES E POSSIBILIDADES DO FEDERALISMO...
funcionários, significando 5% da população da cidade. O
salário médio era de US$ 300, semelhante ao de Salvador.11
A despesa por função extraída dos balanços entre
1981 e 1991 mostra que nos últimos dois anos da década analisada a despesa com administração e planejamento decresceu em termos relativos, o que sugere que
a prefeitura diminuiu o ritmo dos empréstimos. Após
cinco anos de baixa despesa em educação, a administração de Luiz Caetano aumentou o item em quase 50%,
uma tendência que se manteve constante a partir de
1986. As despesas com habitação e urbanismo apresentam a mesma tendência de Salvador, ou seja, crescem
exponencialmente em anos eleitorais. Despesas com
saúde e saneamento também cresceram na gestão de
Caetano, mas diminuíram depois.
Diferentemente de Salvador, a distribuição percentual
dos itens de despesa de Camaçari mantém-se relativamente
constante. Essa estabilidade mostra que o padrão do gasto público local não foi afetado pela natureza do regime
político, ou seja, pelo fim do regime militar e retorno das
eleições diretas, nem por mudanças nos grupos políticos
que governaram a cidade durante a década analisada. A
descentralização financeira e o retorno das eleições diretas aumentaram relativamente a despesa com educação e
saúde.
Três prefeitos governaram Camaçari na década analisada: Humberto Ellery, um militar reformado, a governou até 1985; Luiz Caetano, então no PMDB, mas militante do PC do B, foi eleito diretamente para o período
1986-88; e José Tude, do PFL, para 1989-92. Posteriormente, Ellery foi eleito pelo voto direto, com o apoio
de Caetano e de uma coligação de 19 partidos. A cada
eleição, o eleitor de Camaçari demonstrava sua desaprovação à gestão do prefeito através da eleição de um
opositor.
Apesar de pertencerem a grupos políticos divergentes,
todos os prefeitos de Camaçari tiveram que administrar a
cidade promovendo políticas clientelistas e assistencialistas, a fim de proverem seus eleitores com condições
mínimas de sobrevivência. Do depoimento dos prefeitos,
conclui-se que as demandas dos eleitores não passavam
pela melhoria dos serviços públicos, mas sim pelo emprego público e pela ajuda financeira pessoal para a melhoria de suas precárias habitações.12 Também através do
depoimento dos prefeitos, verifica-se que eles tinham
pouca margem de manobra para realizar seus projetos
administrativos e mudar a agenda política local, devido
às pressões da comunidade por ações voltadas para a sua
sobrevivência imediata.
O caso de Camaçari mostra que a falta de soluções
nacionais capazes de minimizar a pobreza no Brasil
109
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 10(3) 1996
promove um ciclo vicioso que conserva os pobres em
situação de dependência dos governos locais a fim de
conseguirem um patamar mínimo de sobrevivência.
Como os recursos são limitados, mesmo uma prefeitura financeiramente privilegiada não consegue impor
uma agenda de despesa que priorize melhoria das condições de vida da população, devido ao tamanho da sua
população pobre.
as cidades, sendo, na maior parte das vezes, o principal
decisor. Entretanto, e como uma corrente da literatura
sobre governo local sugere, os políticos locais estão mais
próximos das demandas das comunidades. Como os municípios analisados são constituídos de eleitores pobres,
de baixa escolaridade e baixa qualificação profissional,
os prefeitos passam a ser responsáveis por provê-los com
os meios de sobrevivência e não com o acesso a bens e
serviços públicos, enquanto o governo do estado provém
a infra-estrutura para o crescimento econômico. Portanto, acesso a bens e serviços públicos locais permanece em
um limbo governamental.
Em relação aos efeitos da descentralização no padrão
da despesa pública local, embora Camaçari tenha aumentado a despesa em educação, saúde e saneamento, o percentual de cada item de despesa em relação ao gasto total
não mudou substancialmente. A despesa local é provavelmente mais afetada pelas eleições e por objetivos de
curto prazo do que por compromissos em prover serviços
sociais à população. Em Salvador, nenhuma mudança
qualitativa foi observada.
Na operacionalização do sistema político, duas características podem ser apontadas. Primeiro, os políticos locais têm escasso controle sobre os destinos da cidade, seja
porque são prisioneiros de outras instituições, seja porque a população local é tão pobre que a única política
possível é a de prover os eleitores com os meios de sobrevivência. Segundo, a política é vista pela população
como pertencendo ao território do estado, mas, ao mesmo tempo, a população espera que os políticos locais resolvam seus problemas de desemprego e pobreza. Essas
características reforçam o argumento de que os políticos
locais têm poucas chances de atuarem como líderes
definidores e implementadores de uma agenda política
local própria.
Este artigo investigou alguns dos resultados da democratização e da descentralização na esfera local.
Ambos os processos fortaleceram o poder político e os
recursos financeiros dos governos subnacionais, especialmente dos estados e de suas capitais. Apesar desse
fortalecimento, isso não significa que os benefícios da
descentralização distribuem-se uniformemente. Ademais, em um país de vasta dimensão territorial e marcado por desigualdades sociais e regionais, o compromisso com a implementação da descentralização pode
variar substancialmente e vai depender, em muitos casos, das forças políticas locais. A diversidade política,
econômica e social do Brasil pode provocar grandes
diferenças entre os municípios, que acabam prejudicando os próprios objetivos da descentralização, uma vez
que a descentralização financeira a favor das esferas
subnacionais reduz as possibilidades de ajuda federal
CONCLUSÕES
Os casos de Salvador e de Camaçari trazem para o debate da descentralização e do federalismo dois paradoxos. Em Salvador, a força política da cidade não tem sido
suficiente para libertar seus políticos da dependência de
outros níveis de governo e das empreiteiras. Em Camaçari, a força financeira da cidade não é suficiente para
livrá-la do papel de provedor de emprego público para a
sua população sem escolaridade. Apesar de o Brasil ser
um país de contrastes, as experiências desses dois municípios apresentam padrões comuns, que são encontrados nos aspectos econômicos, nas relações intergovernamentais, nos efeitos da descentralização sobre o
padrão da despesa pública e na forma de funcionamento
do sistema político.
Do ponto de vista econômico, as duas cidades beneficiaram-se da desconcentração econômica do Sudeste. Ambas receberam um aporte considerável de recursos federais e privados nas duas últimas décadas.
Camaçari foi beneficiada pela instalação do Copec e
Salvador por seu papel de centro terciário. Apesar disso, essas mudanças não foram suficientes para melhorar as condições de vida e de trabalho das populações
historicamente excluídas dos benefícios do crescimento econômico. A distância entre os resultados econômicos positivos e as condições de vida da maioria da
população não só penaliza os excluídos do processo de
crescimento, como também impede a ação dos políticos locais. Eles têm que renunciar a objetivos de longo
prazo, tais como a melhoria dos serviços sociais locais
para atender às demandas de curto prazo dos seus eleitores voltadas para a sobrevivência imediata. As demandas dos eleitores são, portanto, por ações de sobrevivência, deixando os políticos locais diante do
seguinte paradoxo: eles não têm condições nem de criar
empregos na economia, nem de diretamente enfrentar
os fatores que impulsionam a população para a pobreza, mas são obrigados a despender recursos para prover seus eleitores com empregos e com a melhoria de
suas habitações.
No campo das relações intergovernamentais, o governo do estado tem tido uma presença marcante em ambas
110
REINVENTANDO
a estas esferas com o objetivo de minimizar os efeitos
das referidas desigualdades.
Os casos de Salvador e de Camaçari mostram que políticas como a descentralização não podem ser vistas como
panacéia para a solução de problemas que ultrapassam suas
possibilidades. A descentralização no Brasil parece ter
contribuído para os avanços da democracia e do pluralismo político pela incorporação de diferentes grupos na cena
política local, mas seu impacto sobre as políticas públicas é ainda limitado e não se faz sentir em todas as cidades, inclusive em algumas de importância regional, como
Salvador e Camaçari. As evidências apontam para o fato
de que a descentralização e a democratização trazem uma
fragmentação do poder sem necessariamente mudar qualitativamente a alocação dos recursos públicos locais.
Pode-se concluir, a partir daí, que existem vários fatores
políticos e econômicos que influenciam os resultados da
descentralização e que afetam o pacto federativo, reforçando, assim, o argumento desenvolvido inicialmente
neste artigo sobre a importância de tais fatores nos resultados das políticas públicas, aspecto em geral pouco considerado na literatura.
O
PODER LOCAL: LIMITES E POSSIBILIDADES DO FEDERALISMO...
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1. Stewart (1984) mapeou a existência de 497 representações tanto literais quanto figurativas do federalismo. No território da ciência política, os trabalhos mais
divulgados são os desenvolvidos nos EUA, tais como os de Elazar (1984) e
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2. Para uma análise do papel dos estados-membros no Brasil após a Constituição
de 1988, ver Souza (1996b).
GAZETA MERCANTIL. São Paulo, 12/07/1993.
3. A literatura francesa sobre descentralização segue caminho diverso, tratando
o tema como parte da discussão sobre a reestruturação do papel do Estado. Ver,
a respeito, Preteceille (1991).
HARMAN, G. “Intergovernmental relations: federal systems”, In: HAWKESWORTH,
M. e KOGAN, M. (eds.). Encyclopedia of government and politics. London,
Routledge, 1992, p.336-350.
4. A única restrição nas transferências constitucionais imposta aos municípios é o percentual de 25% da sua receita total que deve ser despendido em
educação.
IPEA – Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada e IBAM – Instituto Brasileiro
de Administração Municipal. O novo pacto federativo. Rio de Janeiro, Ibam,
1994.
5. Números fornecidos pela Secretaria de Administração da Prefeitura de Salvador.
LEAL, V.N. Coronelismo, enxada e voto: o município e o regime representativo no Brasil. 2a ed. São Paulo, Alfa-Omega, 1975.
6. Dados de relatório não-publicado da Secretaria de Finanças de Salvador.
LEVIN, J. Measuring the role of subnational governments. IMF Working Paper.
Washington, DC, IMF, 1991.
7. Dados de 1993 calculados por José Pinheiro.
LIJPHART, A. Democracies: patterns of majoritarian and consensus government
in twenty-one countries. New Haven, Yale University Press, 1984.
8. Para maiores detalhes sobre a despesa de Salvador e das demais capitais, ver
Souza (1996a).
LORDELLO DE MELLO, D. “Descentralização, papel dos governos locais
no processo de desenvolvimento nacional e recursos financeiros necessários para que os governos locais possam cumprir seu papel”. Revista
de Administração Pública. Rio de Janeiro, v.25, n.4, 1991, p.199-217.
9. Do ponto de vista do papel do legislativo local no debate sobre as políticas e
os destinos da cidade, os casos de Salvador e de Camaçari guardam alguma similaridade com a tipologia desenvolvida por Couto e Abrucio (1995). No entanto, apenas em momentos de alta divergência ideológica entre o prefeito e a maioria
da Câmara de Vereadores, é que os vereadores assumiram um papel mais agressivo. Tais momentos ocorreram, em Salvador, durante o mandato de Manoel
Castro e, em Camaçari, na gestão de Luiz Caetano. Para maiores detalhes, ver
Souza (1996a).
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10. Depois de ter sido prefeito nomeado, Manoel Castro foi várias vezes eleito
para a Câmara Federal, mas foi derrotado nas duas vezes em que concorreu à
prefeitura pelo voto direto. Os votos de Manoel Castro para a Câmara devem ser
creditados mais ao apoio de Antônio Carlos Magalhães do que ao eleitorado de
Salvador.
MOUZELIS, N. Politics in the semi-periphery: early parliamentarism and late
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11. Dados de Camaçari fornecidos pelo servidor Paulo Silva.
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12. As entrevistas com os três prefeitos mencionados foram realizadas em
1992.
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A RESSIGNIFICAÇÃO DO LOCAL: O IMAGINÁRIO POLÍTICO
BRASILEIRO PÓS-80
A RESSIGNIFICAÇÃO DO LOCAL
o imaginário político brasileiro pós-80
JOÃO BOSCO ARAUJO DA COSTA
Professor da Faculdade de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Regional do Rio Grande do Norte
N
as últimas duas décadas, operou-se no imaginário político brasileiro uma ressignificação do estatuto das estruturas de poder local. De espaço por
excelência das relações coronelísticas de poder no âmbito dos pequenos e médios municípios, de relações clientelísticas e populistas nas médias e grandes cidades, as
estruturas de poder local passaram a espaço de possibilidades de experimentos democráticos inovadores e do exercício da cidadania ativa. Da condição de importância diante do crescente desafio de oferecer bens e serviços públicos
eficientes e de qualidade e da incapacidade de formular
saídas econômicas, o poder local passou a ser portador
de possibilidades de gerenciamento eficiente dos recursos públicos e protagonista de iniciativas de desenvolvimento da vida econômica e social.
Essa mudança da imagem do local é evidenciada nos
crescentes estudos de experiências de gestões municipais
inovadoras e na reflexão sobre as possibilidades de ação
das estruturas locais de poder, no sentido de viabilizar
mudanças políticas, econômicas, sociais e culturais. Mudança que traduz a descoberta do local como portador
de positividades, no momento em que solidificam-se
uma percepção mais aguda do processo de mundialização e uma crescente descrença na capacidade de respostas políticas e econômicas globais a partir dos Estados nacionais.
Como toda significação imaginária, a nova imagem do
poder local no Brasil contemporâneo é a expressão simbólica instituída e instituinte de um longo processo
multifacetado, não linear, com ambigüidades e diferenças a partir das situações e multiplicidade de cenários que
apresentam as localidades brasileiras. Este processo, que
espera por um balanço crítico, é perceptível num conjun-
to de mudanças ocorridas em diversos níveis, em relação
aos sistemas de poder local.
Este artigo objetiva discutir, em linhas gerais, os diversos aspectos constitutivos da descoberta do poder local como espaço privilegiado para a realização da democracia, da participação cidadã e de iniciativas econômicas
e sociais, bem como sua ressonância nos atores políticos.
Para tanto, são levantados os aspectos que configuram este
processo no cenário político nacional. Além disso, são
apontadas as especificidades desta ressignificação nas
formas concretas de realização da política no Rio Grande
do Norte, no sentido de refletir sobre a circulação de significantes entre os distintos discursos políticos e a capacidade dos atores dominantes em desarticular e absorver
formulações discursivas adversárias.
A partir de experiências de gestões municipais, democratização, participação e inversão de prioridades são proposições que passam a compor o discurso da esquerda. No
oposto do espectro ideológico, ocorre uma reapropriação
pelos atores oriundos do regime militar, que passam a adquirir um discurso “democrático e participativo”, mesmo
que reproduzindo práticas políticas tradicionais. Com isso,
têm-se tanto um consenso em relação às virtualidades do
poder local, quanto uma disputa de sentido no que se refere ao tema da democracia e da participação.
A RESSIGNIFICAÇÃO DO PODER LOCAL
O tema do poder local tem sido recorrente no pensamento político brasileiro. As significações instituídas em cada
quadra histórica estão articuladas às conjunturas teóricopolíticas, ou seja, ao tema que ocupa a centralidade da
agenda política de cada momento histórico. São exem-
113
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 10(3) 1996
plos dessa situação a constituição da nação, o tema do
desenvolvimento e, a partir dos anos 70, a questão da
democracia (Costa, 1993). Em cada fase do nosso processo histórico, o estatuto do local é instituído de forma
dicotômica em relação ao nacional, ressonando em polaridades tais como centralização/descentralização, público/privado, desenvolvimento/subdesenvolvimento, Estado/sociedade civil, moderno/tradicional.
Até os anos 80, no imaginário e no discurso político,
nas elaborações acadêmicas e nos meios de comunicação,
a imagem do local, geralmente ancorada numa percepção
da realidade dos pequenos e médios municípios, tinha o
estatuto instituído pela negatividade: lugar de captura da
esfera pública pela esfera privada, de práticas coronelísticas, patrimonialistas e clientelísticas, do primado das
relações de reciprocidades hierárquicas.
As elaborações acadêmicas e os estudos sobre poder local no Brasil, até os anos 80, têm em comum, não obstante
diferentes registros e distintas perspectivas de abordagens,
a confirmação dessa imagem de negatividade do local.
Esta situação parecia imanente à própria realidade presente na maioria dos municípios, pois, como aponta
DaMatta (1990), se a sociedade brasileira é permeada por
dois domínios distintos de relações, um impessoal, racional e das leis e outro de lealdades pessoais, de amizades,
de favores e relações familiares, nos pequenos e médios
municípios as segundas relações parecem predominar.
Autores antifederalistas, como Oliveira Viana (1930)
e Nestor Duarte (1966), são marcos nesta elaboração negativa do poder local e instituem uma tradição que foi reafirmando-se até os estudos mais recentes, da década de 80.
Mesmo que Nunes Leal (1978) tenha desmontado a
noção de dicotomia, apontando existência de um binômio, de uma simbiose entre o local e o nacional a partir
das alianças políticas entre os chefes locais e as elites
políticas urbanas, regionais e nacional, o local continua a
ser o espaço do coronel, das relações privadas e do clientelismo político, em detrimento do sistema representativo republicano. O estudo de Nunes Leal, apesar de se
constituir num importante avanço, ao apontar para uma
análise não simplificadora do papel dos chefes políticos
locais, reafirma, no entanto, a imagem do local como negatividade, uma vez que não o reconhece como palco onde
atuam forças e interesses conflitivos, sendo este pensado
como entrave ao desenvolvimento político e econômico.
Os estudos influenciados pela sociologia urbana de
matriz marxista deslocam para os centros urbanos o foco
empírico de suas elaborações. Com isso, as estruturas de
poder local são pensadas a partir das determinações gerais do Estado capitalista, da reprodução espacial do capital, produzindo análises globalizantes, que identificam
no espaço local apenas a forma específica da reprodução
da sociedade capitalista. O local era pensado a partir das
determinações gerais da consolidação do capitalismo no
Brasil, de suas formas de reprodução desiguais e combinadas, configuradoras dos cenários urbanos.
A partir dos anos 80, o local passa a ter uma imagem
representativa ancorada na positividade, expressando
mudanças em diversas áreas: um novo estatuto jurídicoinstitucional com a Constituição de 1989; na discursividade dos atores políticos; nas abordagens teórico-metodológicas que, se não constituem ainda um novo paradigma,
apresentam importantes deslocamentos nas matérias veiculadas pelos órgãos da mídia, que têm destacado as inovações e soluções criativas das prefeituras nos campos da saúde, educação, moradia e participação cidadã.
A gênese dessa ressignificação ocorreu durante a transição do regime autoritário para a democracia política, em
que, impulsionado pelos novos atores sociais e políticos
que emergiram no período, o tema do poder local incorporou-se à agenda política, articulado aos temas da democracia, da descentralização e da participação popular. Com
a emergência de novos atores na década de 70 – comunidades eclesiais de base da Igreja Católica, novo sindicalismo
do ABC paulista, associações de moradores disseminados
pelo país –, verifica-se uma polarização entre o Estado autoritário e estes atores, que expressam uma sociedade civil
emergente e instituem novas práticas e espaços da política
(Sader, 1989). As demandas e proposições destes atores terão ressonância na emergência de gestões democratizadoras
e fomentadoras da participação popular, a exemplo de Boa
Esperança (ES), Lages (SC) e Piracicaba (SP).
O esgotamento do regime autoritário, as imensas contradições urbanas geradas pelo ciclo do próprio regime e
um Estado pouco acessível às demandas das classes populares compõem o contexto de emergência de uma fase
de mobilização e reivindicações, originando o que ficou
conhecido, pela literatura acadêmica, como “novos movimentos sociais”. Como aponta Doimo (1995:27), “ainda que tais movimentos tenham frustrado o prognóstico
transformador de muitas análises (...) é inegável que deram origem a um expressivo campo ético-político, com
importantes rebatimentos no processo político brasileiro”.
Um desses rebatimentos foi a influência desses “novos movimentos sociais” no atual significado do poder
local no Brasil: primeiro, porque deram visibilidade às
demandas que instituíram a trilogia democracia, descentralização e participação popular; segundo porque estavam presentes nas disputas em torno do estatuto jurídicopolítico do município, na elaboração da Constituição de
1988, e na “febre de constituintes municipais, quando
foram elaboradas as leis orgânicas municipais; terceiro,
pela influência no acolhimento do tema da participação
pelos partidos políticos.
114
A RESSIGNIFICAÇÃO DO LOCAL: O IMAGINÁRIO POLÍTICO
Não se trata de afirmar a primazia destes movimentos
para a constituição de uma nova imagem do local, pois
outros fatores foram se incorporando neste processo. Particularmente as experiências de gestões democráticas inovadoras, através de um número significativo de administrações petistas a partir de 1989, vão constituir-se num
novo patamar para a reflexão sobre o poder local. São estes
novos atores que vão flexionar a agenda política da resistência ao regime autoritário, deslocando para o nível das
estruturas de poder local o debate sobre o tema da democracia. É a partir de suas demandas que os espaços e as
estruturas de poder local passam a ser vistos como arenas
de disputas entre atores distintos, espaços de virtualidades transformativas, quebrando a imagem homogênea do
poder local que terminava favorecendo as elites locais ao
identificá-las com a história e a vida das localidades.
Ao longo de nossa história, tanto na constituição da
Nação e do Estado quanto no Império e na história republicana, as reivindicações de autonomia política, jurídica
e financeira para os municípios expressaram, quase sempre, interesses e lógicas oligárquicas e localistas, em que
as elites reafirmavam a sua percepção de “portadoras das
tradições locais, responsáveis por sua condução e futuro” (Daniel, 1994: 30). Das lutas reivindicativas dos anos
70 e 80, resultaram as recentes reflexões sobre as estruturas de poder local, que passam a ser reconhecidas, como
palco onde agem atores em relação de conflitividade, produzindo alteridades e identidades políticas.
Quando a Constituição de 1988 afirmou os princípios
descentralizadores, ampliando, de forma significativa em
relação ao passado constitucional, a autonomia jurídicopolítica e financeira dos municípios brasileiros, pareceu
à primeira vista reafirmar a imagem de uma história pendular de nossos ordenamentos constitucionais, em que
constituições “centralizadoras” são sucedidas por “descentralizadoras”. No entanto, uma análise mais atenta e
menos formalista mostrará que a Constituição de 1988 é
emblemática de um deslocamento mais profundo, ou seja,
de mudanças que vinham ocorrendo na sociedade brasileira em relação ao poder local.
Sadek aponta para o fato de que a Constituição de 1988,
quando comparada às anteriores, “reflete mais que uma
nova ordem jurídica, podendo ser entendida como resultante de uma realidade complexa, em tudo distante do país
que fundou a república ou o período redemocratizante após
o término do Estado Novo (...) apenas formalmente se aproxima dos parâmetros descentralizadores das Constituições
de 1891 e de 1946” (Sadek, 1991:9).
A Constituição de 1988, ao consagrar nos capítulos
referentes ao ordenamento jurídico-político dos municípios mudanças qualitativas em relação às Constituições
anteriores que ficaram conhecidas como “descentraliza-
BRASILEIRO PÓS-80
doras” ou “municipalistas”, expressou alterações importantes no que se refere à questão da autonomia políticoadministrativa e ao reconhecimento do local como esfera
substantiva de poder. Considerando o fato de que mudanças nos ordenamentos institucionais de uma sociedade
expressam alterações materiais e simbólicas que vêm se
processando em diversas esferas da realidade, traduzindo um certo consenso alcançado entre os atores políticos
relevantes, a Constituição de 1988 manifestou e potencializou um processo mais amplo, do qual a própria alteração constitucional foi parte.
Historicamente, o processo de constituição da nação e
principalmente do Estado, reproduzindo a lógica clássica
do processo de instituição das sociedades capitalistas,
imprimiu um progressivo esvaziamento dos municípios e
localidades. Assim, a capital e o interior, o coronel e o
empresário, o caipira e o citadino não apenas remetem
para hierarquias de status e diferenciação espacial, mas
também inscrevem-se no simbólico, nas formas diferenciadas de sociabilidades e relações de contratualidades,
permeando as imagens instituintes de nossa identidade
fragmentada. As diversas constituições acabam refletindo esse processo e expressando as polarizações de cada
conjuntura. É nesse sentido que a Constituição de 1988
deve ser considerada parte de um processo mais amplo
de mudanças sociais e políticas ocorrido na sociedade e
da ressignificação do poder local no Brasil. Isso fica evidente quando se faz uma rápida recuperação histórica do
estatuto jurídico-político do município nas Constituições
brasileiras, em que se verificam tanto a insuficiência de
uma análise que se atenha ao ordenamento institucional
quanto as mudanças qualitativas ocorridas na sociedade
brasileira em relação ao poder local. Deste ponto de vista, o texto constitucional de 1988 distancia-se dos anteriores, que consagram prerrogativas de autonomia aos municípios.
No período colonial as câmaras municipais, não obstante as ordenações legais, “chegavam a exercer grande
poder, à margem dos textos legais ou mesmo contra eles”
(Sadek, 1991:10). No Império, mesmo que a Constituição de 1824 previsse eleições nas vilas e cidades, as instituições locais eram subordinadas aos presidentes das
províncias e ao governo central, não tendo autonomia.
Porém, mesmo assim, os chefes políticos locais, com imenso poderio privado, tornavam o governo central do Império impotente para exercer de fato maiores controles sobre o mando dos chefes locais.
A Constituição republicana de 1891, inspirada pelas
idéias liberais-federativas, procurava ter como princípio
a autonomia dos municípios. Entretanto, na maioria dos
municípios o prefeito era nomeado pelos governadores
estaduais, acarretando concentração de poder na esfera
115
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 10(3) 1996
estadual e tutela dos municípios. No entanto, estranha
tutela e concentração, pois este é o período em que Nunes
Leal aponta a simbiose entre sistema representativo e ordenamento jurídico republicano, sobreposto ao mando
privado dos coronéis como base de apoio e sustentação
política dos governadores. Os governos estaduais não intervinham na política local, tendo como seu aliado a famosa figura do coronel, que determinava desde a nomeação do delegado de polícia até a do pequeno funcionário
das repartições estaduais nos municípios.
A Constituição de 1934, contraditoriamente defendia
a autonomia municipal, mas através do departamento das
municipalidades exercia forte controle político-administrativo sobre os prefeitos. Com o Estado Novo, a
subordinação ao Estado central foi ostensiva, ampliando
a centralização, pois “não apenas se conservavam os departamentos de municipalidades como a estes se acrescentava
um departamento administrativo, destinado a controlar os
governos estaduais e municipais” (Sadek, 1991:10).
A Constituição democratizante de 1946 fez um movimento de recuperação da autonomia, reduzindo as situações em que poderia haver intervenção nos municípios.
Com o regime militar, volta o pêndulo para a centralização: criação de novos municípios, ampliação de possibilidades de intervenção e dependência dos fundos federais foram emblemáticos desse movimento centralizador.
O importante a ser retido é que todos esses momentos
de afrouxamento e centralização institucional do estatuto
jurídico-político dos municípios não afetaram o que neste artigo está sendo apontado como principal: as estruturas de poder, as formas de sociabilidades e lealdades e o
mando privado das elites locais sobreposto aos ordenamentos constitucionais, que foi uma constante, ao lado
do seu esvaziamento enquanto palco substantivo da política, de protagonista econômico e social e do aumento do
peso do Estado central.
Por esse motivo na esfera do ordenamento institucional, na Constituição de 1988, a discussão sobre descentralização e autonomia dos municípios, diferentemente de
temas como reforma agrária, nacionalização do subsolo
e estatização, pareceu menos polêmica e disputada, devido ao consenso alcançado. Dessa forma, expressaram-se
no ordenamento institucional mudanças concretas na percepção política no âmbito local, com a visibilidade do que
antes era percebido como passivo pelos estudos e imagens do local: a pluralidade de atores sociais e políticos
que compõem a vida local.
Nestes meados dos anos 90, é visível um longo e multifacetado processo, que acumulou uma série de experiências e colocou novas e complexas questões em relação
ao tema do poder local. Ao longo desse processo, operou-se uma série de desdobramentos: a mudança na cen-
tralidade da agenda política, ganhando destaque a questão do esgotamento do Estado e da inserção no mercado
mundial; refluxo da fase movimentalista dos movimentos sociais e sua reavaliação crítica; experiências democráticas e inovadoras de gestões municipais capitaneadas
pela esquerda; incorporação pelos diversos atores do espectro político do discurso centrado no local; reavaliação
do tema da participação nos termos antes colocados nos
anos 70 e início dos 80; e tratamento positivo nos meios
de comunicação. Quando estes elementos se fazem presentes, quando aumenta a descrença na capacidade de o
Estado responder aos desafios da inclusão social, quando
há o descrédito nos grandes atores e macroestruturas e
quando se percebe uma crescente mundialização dos processos econômicos, políticos e culturais, é no âmbito do
poder local que desenham-se espaços de manobra e descobrem-se virtualidades para projetos democráticos, de
participação e desenvolvimento.
Outro aspecto deste processo de descoberta do poder
local refere-se aos impactos que as experiências governativas
municipais produziram nas práticas e na cultura política
da esquerda brasileira. É verdade que uma série de questionamentos já vinha se avolumando desde os anos 70, em
relação à cultura tradicional da esquerda de matriz marxista-leninista. Porém, ao assumirem a gestão de várias e
importantes cidades brasileiras, as esquerdas, especialmente o Partido dos Trabalhadores, sofrem dois tipos de impactos: uma reelaboração da ótica pela qual eram tratados os
temas da democracia, da institucionalidade, da participação
popular, da negociação e da governabilidade; e a obrigatoriedade de passarem para uma fase propositiva, de respostas
aos desafios colocados pela condição de governo.
Já os atores políticos dominantes – desde os oriundos
do regime militar que constituíram o setor liberalizante
deste, até os da oposição conservadora ao regime – incorporaram em seus discursos de proposições e noções
em relação ao poder local que originalmente foram formuladas pelos atores e no contexto antes discutido. Nestas eleições municipais, percebe-se a circularidade de proposições em relação aos programas de governo, que à
primeira vista não se diferenciam muito entre atores distintos do espectro político ideológico.
Os Desdobramentos da Ressignificação
do Local no Rio Grande do Norte
Diferente das regiões Sul e Sudeste, onde os movimentos sociais e populares que se constituíram nos processos
de mobilização, reivindicação e resistência ao regime autoritário adquiriram maior visibilidade e referência política, no Nordeste, e particularmente no Rio Grande do Norte, a fragilidade da sociedade civil e a pouca expressividade
116
A RESSIGNIFICAÇÃO DO LOCAL: O IMAGINÁRIO POLÍTICO
dos movimentos sociais e populares facilitaram a tarefa
dos setores liberalizantes do regime militar, posto que são
estes que, em grande medida, vão implementar “governos
participativos”. É o caso de José Agripino Maia que, nomeado prefeito de Natal em 1979, construiu para sua administração a imagem de uma gestão participativa.
O Nordeste, durante o regime militar, vivenciou a chamada fase pós-Sudene de sua economia, a qual, como
aponta Oliveira (1990), caracterizou-se pelo financiamento do setor privado através dos fundos públicos estatais.
Deu-se, então, a “desregionalização” da economia nordestina, que passou a produzir insumos intermediários
destinados aos mercados nacional e internacional, gerando algumas ilhas de industrialização de ponta. Dessa forma, ocorre uma redefinição espacial, com um acelerado
processo de urbanização. Na esfera política, a reprodução das práticas tradicionais foi favorecida devido à repressão sobre as experiências de organização popular
anteriores a 1964, sendo o Nordeste a região onde a Arena obteve maior apoio popular.
O Rio Grande do Norte situa-se numa posição intermédia, pois, apesar de os impactos da fase pós-Sudene
não terem ocorrido de forma tão intensa como na Bahia e
em Pernambuco, o estado não deixou de passar por mudanças econômicas e sociais importantes (Costa, 1993).
No entanto, as alterações econômicas e sociais verificadas não refletiram-se na esfera política, em que a tradição familiar e a polaridade entre famílias aprisionadora
da instituição da esfera pública e constrangedora da constituição de novas identidades e alteridades políticas constituem realidade ainda hoje presente.
No final dos anos 70, acompanhando os movimentos
mobilizadores das regiões mais desenvolvidas, o Rio Grande do Norte vivenciou a emergência da organização e de
movimentos reivindicativos de algumas categorias, quase exclusivamente das camadas médias urbanas circunscritas a Natal, de pouca relevância no sentido de alterar o
padrão da política local (Domingos Sobrinho, 1987).
O tema da participação e as questões apontadas anteriormente em relação ao poder local, no Rio Grande do Norte,
circunscrevem-se a Natal, a capital do estado, e a uma experiência de gestão democrática na pequena cidade interiorana de Janduis, administrada por um ex-membro do PCB e
posteriormente pelo PT. Entretanto, termos como participação e organização comunitária vão se apresentar no discurso político como iniciativa dos governos de Lavoisier Maia
e de José Agripino Maia, respectivamente, governador e
prefeito da capital indicados pelo regime militar.
Em Natal, até os anos 50, as experiências associativas
das classes subalternas não tiveram maiores expressões.
Foram vivenciados uma fase associativa impulsionada pela
igreja, conhecida como “movimento de Natal”, e um pro-
BRASILEIRO PÓS-80
cesso de mobilização e de constituições de associações
comunitárias populares na gestão do prefeito Djalma
Maranhão, da esquerda nacionalista dos anos 60. Essas
experiências foram interrompidas com o golpe de 64.
Foi a partir de programas econômicos e sociais do governo federal, que previam a integração e a participação
da população através do chamado planejamento participativo, que surgiram os “governos participativos” em
várias capitais do Nordeste, antecipando-se ao cenário de
mobilizações, reivindicações e instituições de formas
organizativas, que vinham ocorrendo nas regiões mais
desenvolvidas. Como assinala Paiva (1994:35), surgem
“na arena política os prefeitos, indicados para as capitais
nordestinas. Estes teriam que atender aos requisitos previstos para a execução do planejamento participativo”.
O governo estadual de Lavoisier Maia e, particularmente, a gestão municipal de José Agripino Maia em Natal
foram marcadas por programas de criação de associações
de bairros, conselhos comunitários e pelo discurso participativo. Como aponta Azevedo (1996:62), “esta concepção de participação (...) não concebia outro lugar de participação que não aqueles legitimados e sob controle do
estado”. Trata-se da antecipação da virtualidade de iniciativas da população, de legitimar-se como moderno, democrático e empreendedor, preparando-se para as disputas
eleitorais com a liberação do regime. Além disso, constitui uma estratégia de legitimação e antecipação que tornou-se vitoriosa devido à fragilidade dos movimentos
sociais e da oposição não oligárquica no Estado. Para
Andrade, “a relação estado comunidade na experiência
de Natal não contemplava a idéia de automonia das comunidades envolvidas(...) o que existia era um forte controle da situação pelo aparato governamental (...) dessa
forma realizava-se uma pseudoparticipação e legitimavase através dela as ações do governo” (Andrade, 1994:185).
A especificidade que surge no Rio Grande do Norte em
relação ao Sul e ao Sudeste refere-se ao fato de que, nestas duas regiões, os agentes liberalizantes do regime ou
mesmo os primeiros governos da oposição parlamentar (do
PMDB), quando tentaram patrocinar experiências participativas com graus variados de instrumentalização, encontraram um acúmulo de organização e elaboração dos movimentos sociais. Já no Rio Grande do Norte, por precariedade
destes, foi mais fácil para os agentes oriundos do regime
constituírem-se em promotores de “governos participativos”,
interpelando um discurso democrático e participativo, que
se instituiu a partir da sociedade civil, reproduzindo as práticas da política tradicional do Nordeste.
A discussão feita até aqui, de forma bastante parcial,
aponta para duas questões sinalizadas no início deste artigo. Em primeiro lugar, quando todos os atores políticos
relevantes passam a adotar um mesmo dispositivo discursi-
117
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 10(3) 1996
vo, expressam mudanças reais na sociedade em relação a
valores instituintes da ordem social, o que neste caso representa um novo patamar de disputa por seu sentido. Isto
ocorre no Brasil atual quanto aos temas da democracia, da
participação e do papel do poder local. Por outro lado,
verifica-se que é em torno destes temas que ocorreu o que
Landi (1983:182) aponta como “a circulação dos significantes entre diferentes discursos políticos e sua permanente
ressignificação (...) a eficácia hegemônica das diferentes
correntes políticas (...) sua capacidade de desarticular as
formações discursivas adversárias e absorver as interpelações que estas continham em outra matriz doutrinária,
em outra problemática”.
listas –, mais que nos grandes centros urbanos, as gestões
de esquerda, apesar dos limites estruturais do aporte de
recursos (a maioria tem apenas o FPM como fonte de receita), têm modificado o cenário local no sentido da democratização, da eficiência administrativa, do encaminhamento de soluções para as carências mais urgentes da
população e principalmente na funcionalidade do sistema
representativo, incorporando novos padrões de relacionamento entre público e privado, administração e população.
Entretanto, se esse processo nomeado como ressignificação do poder local no Brasil aponta, em vários níveis, elementos extremamente importantes para o fortalecimento da democracia e de uma cultura democrática,
torna-se necessário um balanço crítico tanto das experiências em curso quanto das próprias virtualidades celebradas,
sob o risco de tornar-se prisioneiro da apologia. Não era intenção fazer esse balanço aqui, mas apenas apontar para esse
novo lugar do local no imaginário político brasileiro.
CONCLUSÕES
Como mostra Castells, tem ocorrido a nível mundial,
nas últimas décadas, a descoberta das cidades como “protagonista na vida política, econômica, social, cultural e nos
meios de comunicação”, sendo que “a inovação democrática é, provavelmente, o aspecto mais excitante do papel assumido, progressivamente pelos governos locais” (Castells
e Borja, 1996:160), o que aponta um processo que extrapola
as nossas fronteiras. Porém, o que se procura sinalizar é a
especificidade no Brasil, pois trata-se de uma mudança significativa na imagem do local na nossa cultura política.
As experiências em curso de gestões democráticas e reformadoras, como Porto Alegre, Belo Horizonte, Rio Branco e Santos entre outras, têm apontado que no âmbito local vem ocorrendo uma prática crítica referente à fetichização
tanto do mercado quanto do Estado, viabilizando alternativas concretas e exeqüíveis de gestão eficientes dos serviços públicos, de exercício da cidadania ativa.
Tem também causado impacto a cultura da esquerda
brasileira, pois como mostra Utzig (1996:210) “O governo
do PT em Porto Alegre aprendeu que o grande desafio
(é) operar políticas práticas capazes de reformar a
sociedade e o estado existentes sem esperar a grande
mudança”. A esquerda no exercício do poder local tem
desenvolvido, não sem tensões e conflitos, uma nova
sensibilidade para o tema da democracia (Costa, 1995).
Ao mesmo tempo, e o exemplo do Rio Grande do Norte
expressa isso, quando a noção de participação e de política local é acolhida pelo conjunto dos atores políticos relevantes, ganha centralidade a disputa pelo seu sentido.
Ou seja, se deve ser entendido como instrumento de melhoria da eficiência dos governos, aceitação das políticas
públicas e legitimação dos governantes, ou se é “o centro
de uma estratégia de reforma e democratização radical do
estado e da sociedade” (Utzig, 1996:124).
Nos pequenos municípios – em especial do Nordeste,
geralmente dominados por práticas políticas patrimonia-
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118
ORÇAMENTO PARTICIPATIVO:
CO-RESPONSABILIDADE NA GESTÃO DAS CIDADES
ORÇAMENTO PARTICIPATIVO
co-responsabilidade na gestão das cidades
PEDRO JACOBI
Sociólogo, Professor da Faculdade de Educação da USP, Pesquisador do Cedec
MARCO ANTONIO CARVALHO TEIXEIRA
Sociólogo, Pesquisador do Cedec
A
reflexão em torno do tema da participação popular tem uma estreita vinculação com os processos de descentralização político-administrativa e de ampliação das possibilidades de democratização da gestão local.
O tema da participação converge com o debate sobre a
descentralização que, por sua vez, tem se tornado cada
vez mais fundamental ao processo de democratização da
ação do Estado e das suas práticas institucionalizadoras.
A descentralização representa em teoria a possibilidade
de ampliação para o exercício dos direitos dos cidadãos,
a autonomia da gestão, a participação cotidiana dos cidadãos na gestão pública e uma potencialização de instrumentos adequados para um uso e redistribuição mais eficientes dos recursos públicos.
No contexto brasileiro, o tema da participação e da
integração da comunidade no processo de tomada de decisões vem assumindo importância crescente na compatibilização entre as transformações político-institucionais
e o fortalecimento dos direitos de cidadania.
O objetivo principal é o de concretizar de forma mais
direta e cotidiana o contato entre os cidadãos e as instituições públicas, de forma a possibilitar que essas considerem os interesses e as concepções político-sociais no
processo decisório. O que está em jogo neste processo é
o estímulo ao protagonismo crescente da população, em
geral, e dos setores mais carentes, em especial.
O desafio é ampliar as condições de apropriação dos
bens e serviços públicos para uma vasta parcela da população, notadamente aquela que habita as regiões periféricas. Entretanto, a administração pública deve estar voltada para a implantação de canais de participação que permitam
um amplo envolvimento de todos os grupos sociais.
A legitimação do Orçamento Participativo no cotidiano da gestão de um número crescente de prefeituras progressistas no Brasil, que inclusive reelegem o partido ou
coalizão no poder, abre um estimulante campo de reflexão em torno do tema da participação popular e sua estreita vinculação com os processos de descentralização
administrativa e de ampliação das possibilidades de democratização da gestão local.
Ao se falar em participação, fica explícita a potencial
ruptura com a distância quase sempre existente entre o poder centralizado e as realidades sociais mutantes e heterogêneas, que evidenciam os limites dos mecanismos existentes – formais, verticais, corporativos e clientelistas,
construídos para dificultar ou desestimular e inclusive não
permitir a participação dos cidadãos nos assuntos públicos.
A institucionalização da participação popular representa mudanças político-culturais que envolvem a própria
prática do movimento popular na sua relação com o Poder Executivo e o Poder Legislativo.
Estes limites vêm sendo crescentemente mostrados e
transgredidos pelos diversos e heterogêneos movimentos
sociais e pelos novos atores políticos que desafiam a tutela e lutam pelos seus direitos e pela possibilidade de
intervir na construção de novas formas de representação,
organização e cooperação.
PORTO ALEGRE: O ÊXITO, O SALTO
QUALITATIVO E SEU EFEITO MULTIPLICADOR
O Contexto da Experiência
A cidade de Porto Alegre, com uma população estimada em 1.400.000 habitantes, tornou-se emblemática
119
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 10(3) 1996
pela importância do processo implantado e pela legitimidade obtida. Desde 1989, o governo municipal implantou o Orçamento Participativo enfrentando sérias resistências dos setores conservadores da cidade.
O caso de Porto Alegre é referência nacional, pela importância que assume o processo de reeleição numa prefeitura progressista no Brasil. O PT está às vésperas de
completar oito anos à frente da prefeitura municipal e, de
acordo com os dados de pesquisas eleitorais, tem grandes
possibilidades de reeleger-se para mais um mandato de
quatro anos. Trata-se de uma experiência que mostra um
efetivo equacionamento da relação partido-governo-sociedade, uma vez que a gestão ampliou sua base de apoio
junto aos setores médios e empresariais. Os resultados de
pesquisas de opinião mostram uma avaliação muito positiva da gestão.
Deve lembrar-se que o início da gestão, de um partido
de esquerda que chegou ao governo com 35% dos votos,
foi tenso, marcado pelas demandas da população, pelo
desafio de controlar a máquina burocrática e definir uma
priorização das ações de governo baseadas numa perspectiva de “inversão de prioridades”, conforme o ideário
programático do partido. Assim como em outras cidades
em que o PT foi vitorioso, assumiu-se o governo, mas não
se detinha o poder.
O sucesso da experiência tem a ver não só com a história oposicionista da cidade, mas principalmente com a
capacidade de definição de uma nova esfera pública nãoestatal, como elemento central para a ampliação da participação da população na gestão da coisa pública.
Desde o início existiu um enorme esforço no sentido
de estruturar tendo como referencial o Orçamento Participativo, um processo político-administrativo de fortalecimento da cidadania e de concretização de um ideário de
democratização da gestão local e de participação da comunidade. Em 1989, o governo municipal de Porto Alegre implantou o Orçamento Participativo e diversos fóruns de debate sobre os problemas da cidade com a
população. Há uma preocupação, por parte da Administração, voltada para a motivação dos cidadãos, através de
sessões plenárias abertas à participação direta junto ao poder público, para discutir a receita e a despesa do município.
A equipe de governo considerou que a inexistência de
sistemas de acompanhamento e de controle das reivindicações populares só poderia ser revertida a partir de um
processo que atraísse a sociedade civil para a arena
decisória, através da discussão pública do Orçamento e
dos recursos destinados a investimentos.
A estratégia pautou-se pela implantação de diversas
formas de debate com a população. Trata-se de um complexo e demorado processo, uma corrente de participação que deveria engajar diversos atores representativos e
que propiciaria a constituição de uma nova esfera pública de controle e pressão sobre o Estado.
A principal dificuldade no primeiro ano referia-se à falta
de metodologia e à incapacidade do Estado em atender às
demandas, quando o processo era coordenado pela Secretaria do Planejamento Municipal. A partir do segundo ano,
em virtude das deficiências percebidas na relação com a
população, passou a ser responsabilidade da Coordenação
de Relações com a Comunidade (CRC) conjuntamente com
o Gabinete de Planejamento. O grande desafio era abrir a
“caixa preta” do orçamento e alterar as estruturas preexistentes – tanto internas quanto de organização de canais de
interação entre a administração e o poder público.
A introdução da proposta ocorreu a partir do objetivo
de se criar as condições para pôr em prática um ideário
de democratização e participação popular, rompendo com
uma relação instrumentalizada, que se baseava na reprodução do clientelismo. Se bem existiam obstáculos muito
grandes para viabilizar uma proposta inovadora, principalmente a necessidade de enfrentar a inexperiência, a
ausência de um projeto mais global e o comprometimento de mais de 90% do orçamento no pagamento do quadro de pessoal; a cidade tinha uma tradição participativa
que tinha potencialidade de ser canalizada. A opção foi a
descentralização do processo decisório, sendo que o primeiro passo foi substituir a organização existente.
Tratava-se de criar uma nova forma de relacionamento com uma sociedade organizada, segundo Genro
(1995:20), “sob os moldes de um clientelismo altamente
articulado, eficiente e populista e que trazia, inclusive,
respostas para ansiedades e necessidades de determinados setores da população”.
O grande problema que se colocava era a forma de
organização político-administrativa da cidade, que, segundo o Plano Diretor, estava dividida em quatro regiões (zonas comunitárias), sendo considerada por todos uma regionalização artificial. Após debates com lideranças
comunitárias com o objetivo de definir uma nova regionalização que não fosse apenas uma medida de superfície, mas sim uma configuração territorial-espacial, política e administrativamente, e ainda no plano das intenções,
a administração pensou em ampliar para cinco as regiões
da cidade. Entretanto, esta proposta foi rejeitada pelas lideranças populares, pois não correspondia às necessidades de organização e participação da comunidade.
Depois de um longo processo de discussão e negociação com as lideranças comunitárias, chegou-se a um denominador comum, fixando-se a divisão da cidade em 16
regiões e sua subdivisão em 28 microrregiões, dentro de
uma perspectiva de levar em conta os fatores territoriais,
sociopolíticos e de acesso aos bens públicos, garantindo
uma representatividade adequada. Aproximadamente 400
120
ORÇAMENTO PARTICIPATIVO:
pessoas participaram nas 16 assembléias regionais que
escolheram os dois representantes e os dois suplentes de
cada região da cidade para serem membros do Conselho
do Orçamento Participativo (COP), que tem reuniões periódicas e que é composto por representantes da administração e da comunidade.
No primeiro ano, a implementação do processo era
extremamente adversa, pois 98% do orçamento do município estava comprometido com o pagamento do quadro
de pessoal. A administração enfrentou o desafio e formulou um método de elaboração do Plano de Investimentos
baseado em critérios gerais para a distribuição de recursos. As assembléias de 1989 reuniram 403 participantes
que representavam 250 entidades. A comunidade começou então a eleger prioridades, mesmo sabendo das restrições orçamentárias. Criaram-se enormes expectativas,
uma vez que a administração, imprevidentemente, recolheu as demandas represadas ao longo dos anos, sem critérios e metodologia adequados de seleção.
CO-RESPONSABILIDADE NA GESTÃO DAS CIDADES
des. O trabalho desenvolvido pelos coordenadores regionais contribuiu para a implantação gradual do Programa
de Descentralização Administrativa.
A dinâmica implantada vai sendo modificada, buscando-se um aperfeiçoamento da complexa engenharia institucional que está sendo posta em prática. Ainda no segundo semestre, são estabelecidos os primeiros critérios
para a eleição dos delegados das regiões junto ao Orçamento Participativo – um para cada cinco pessoas presentes nas assembléias. Em 1992 a proporção foi alterada
para um delegado para cada dez participantes, enquanto
canal de articulação das demandas da comunidade e fiscalizador da aplicação das verbas públicas em obras priorizadas pelo Orçamento Participativo para cada região.
Em 1989, a prefeitura realizou uma reforma tributária,
destacando-se o polêmico projeto que introduziu a progressividade no pagamento do IPTU, o que acarretou um
crescimento de 132% em relação ao ano anterior, possibilitando o saneamento financeiro e elevando a capacidade
de investimento. Entre 1990 e 1991, aumentou-se a
capacidade de investimento para 13% do orçamento, criando,
assim, condições de credibilidade para sustentar as propostas
da administração, o que repercutiu positivamente, pois
materializou-se uma inversão de prioridades visando atender
à população mais carente da cidade, que representa 40% da
população total. No terceiro ano de governo, começam a se
tornar visíveis as obras pautadas pelo primeiro ano de
participação e o início das obras do segundo ano, sendo que
a partir desse momento o processo começou a se reverter. A
discussão do Orçamento Participativo tornou-se pública. Em
1990, participaram 976 pessoas nas Plenárias Regionais,
representando 467 entidades. Este número subiu para 3.694
(representando 503 entidades), em 1991, e para 7.610
participantes (representando 572 entidades), em 1992, último
ano da gestão de Olívio Dutra na prefeitura. O desafio que
se colocava desde o princípio referia-se ao fato de que a
discussão do orçamento, ao mesmo tempo em que permitia
a emergência de disputas entre a população, também
estimulava a busca de negociações como solução política
de caráter distributivista.
A metodologia é consolidada em três etapas. Inicialmente, a prefeitura elaborou uma proposta, discutiu com
as regiões de forma descentralizada e definiu as prioridades para o investimento. Numa segunda etapa, a administração formulou a compatibilização entre as prioridades e os recursos previstos para cada Secretaria numa
plenária geral com todos os delegados representantes das
16 regiões e, finalmente, foi elaborado um amplo plano
de investimentos e obras que seriam supervisionados por
um Fórum Regional do Orçamento, constituído como um
canal de controle e fiscalização da população organizada
sobre os investimentos da cidade. Os fóruns assumiram
A Engenharia Institucional Inovadora
A comunidade tinha a expectativa de que a administração pudesse priorizar demandas e realizar obras, o que
não ocorreu. Isto provocou uma tensão na relação com a
comunidade, resultando num refluxo de 80% na participação em 1990, colocando em risco a consolidação de uma
proposta inovadora. A administração buscou respostas e
mudanças, visando legitimar a proposta de governo. Nesse
ano, a condução do processo saiu da Secretaria do Planejamento e, através de alterações organizacionais significativas, passou para a Coordenação das Relações com a
Comunidade (CRC) sustentada numa concepção de atendimento global. No segundo semestre de 1990, a administração criou o Gabinete de Planejamento (Gaplan) que,
junto com o CRC, é vinculado ao Gabinete do Prefeito.
Dessa forma, passaram a trabalhar de maneira integrada,
demonstrando a importância dada ao Orçamento Participativo. À CRC cabia coordenar todo o processo político
organizativo com as comunidades e ao Gaplan a elaboração do Plano de Investimentos.
A engenharia institucional proposta representava uma
escolha por criar condições políticas e administrativas para
legitimar uma discussão pública e participativa, possibilitando um salto de qualidade à medida que existia uma
estrutura para garantir a legitimidade do processo. A prefeitura definiu a função de Coordenador Regional do Orçamento Participativo (Crop), que é um representante do
poder público que acompanha cada uma das 16 regiões,
com o objetivo de garantir intervenções integradas nas
regiões dando sustentação política e desenvolvendo um
acompanhamento das práticas cotidianas das comunida-
121
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 10(3) 1996
um papel estratégico tanto na articulação como na negociação das demandas de cada região, tendo um papel decisivo enquanto instância de pressão sobre a administração. O orçamento passou a ser a mola propulsora de todos
os embates populares, sendo que o processo implantado
foi sofrendo mudanças em virtude dos problemas que
surgiram na engenharia institucional proposta na busca
de sua legitimação.
A frustração de expectativas no primeiro ano de funcionamento provocou questionamentos e uma retração
popular. Na busca do aperfeiçoamento da proposta, a prefeitura agilizou o trabalho da estrutura administrativa e
utilizou instrumentos de comunicação mais amplos para
envolver a população, buscando um maior nível de participação nos diversos fóruns. Já em 1990, o Conselho do
Orçamento Participativo optou por uma política de concentração dos investimentos, sendo que cinco regiões ficaram com 70% dos investimentos, o que gerou controvérsias no próprio Conselho. Em 1991, foi implantada uma
nova sistemática, adotando-se a distribuição dos recursos por setor de atividade no lugar da política de concentração dos investimentos nas áreas de carência máxima.
Em 1994, o Plano de Investimentos representou 22,67%
do total da despesa da prefeitura, sendo que 75% dos recursos foram destinados à regularização fundiária/habitação, áreas de risco, pavimentação e saneamento básico
e os outros 25% para investimentos em educação, saúde,
transporte e outras atividades. As mudanças na dinâmica
de funcionamento são a marca do processo. O crescimento
das Plenárias Temáticas abriram um outro campo de discussão do Orçamento, aprofundando o debate do planejamento estratégico tanto nas obras como nas políticas
setoriais. As plenárias temáticas foram introduzidas em
1994, visando incluir os setores – sindicatos, movimentos sociais específicos e instituições da sociedade civil –
que não se sentiam atraídos pelo processo existente nas
regiões, composto basicamente por moradores, associações comunitárias e instituições locais.
Em 1996, as quatro principais prioridades foram pavimentação comunitária, saneamento básico, habitação e
regularização fundiária e equipamentos sociais.
O Orçamento Participativo vai gradualmente adquirindo legitimidade como um instrumento de controle, fiscalização e indução das práticas do Executivo na definição
das prioridades de investimento, apoiado numa estratégia fortemente ancorada na valorização dos instrumentos
de comunicação com os munícipes. Os diversos meios de
divulgação e de informação sobre as atividades programadas, os resultados obtidos e o papel dos conselheiros
refletem a importância dada pela gestão ao fortalecimento de um processo interativo e de diálogo com a população, baseado numa relação muito qualificada.
A engenharia institucional foi sofisticando-se e um dos
aspectos mais relevantes na viabilização do Orçamento
Participativo refere-se aos critérios básicos para a distribuição de recursos que nortearam o processo. Todos estes contemplam os aspectos carência de serviços ou infraestrutura urbana no contexto de um debate em torno dos
investimentos necessários, da receita do município, da
globalidade das despesas e das políticas.
As normas definidas são contextualizadas obedecendo a uma escala de valores representada por pesos e pontuações, de forma a garantir uma repartição equitativa e
criteriosa das verbas disponíveis, seguindo um cronograma
que se inicia em março de cada ano, quando são realizadas assembléias gerais em cada região, nas quais é feita
uma avaliação do ano anterior e se inicia uma discussão
em torno da eleição de delegados e das demandas da região. Além disso, o governo presta contas do plano de
investimentos do ano anterior e apresenta o novo. Seguemse, a esta assembléia, reuniões intermediárias que, entre
março e junho, mobilizam muito a população dos bairros
ou microrregiões para discutir as prioridades de obras que
serão apresentadas à administração.
Nos meses de junho e julho, ocorre uma segunda rodada tanto das plenárias regionais como das temáticas para
uma apresentação do quadro financeiro do município,
escolha dos conselheiros no COP e dos delegados e para
a entrega das prioridades de investimentos de cada região.
No mês de julho as secretarias municipais elaboram sua
proposta orçamentária, que é entregue ao COP no início
do mês de agosto. Nos meses de julho e agosto iniciamse as reuniões do Conselho do Orçamento Participativo,
que é composto por 84 membros que foram eleitos nas 16
regiões da cidade e nas cinco plenárias temáticas (na proporção de dois titulares e dois suplentes). Entre agosto e
setembro, o COP discute a proposta orçamentária, que é
encaminhada ao prefeito e à Câmara dos Vereadores em
setembro. Entre outubro e dezembro, o Conselho reúnese com as secretarias para discutir os planos de investimentos, baseando-se nos critérios de distribuição de recursos para as regiões e nas prioridades temáticas
estabelecidas pela comunidade e pelo governo. Elaborase, então, o Plano de Investimento, que é aprovado no mês
de dezembro pelo Conselho do Orçamento Participativo.
Entre janeiro e junho, quando o novo COP assume, este
reduz o seu ritmo, limitando-se principalmente a discutir
a dinâmica do processo e buscando seu aperfeiçoamento.
Alcances e Limites da Experiência
O Conselho representa a síntese de um complexo e
demorado processo, baseado numa lógica de permanente
interação entre o regional e o global, em que ambos ato-
122
ORÇAMENTO PARTICIPATIVO:
res interagem permanentemente com base num calendário de decisões a partir das demandas hierarquizadas nos
fóruns de delegados. A crescente participação – 10.735
pessoas em 1993, 11.247 em 1994 e 14.267 em 1995 –
demonstra a vitalidade do processo e os desafios que estão colocados para garantir a sua continuidade. Observase uma integração na relação da comunidade com a administração através do COP pautada pelo fortalecimento
de uma concepção de governo mais globalizante e unitária. A regionalização existente é um elemento de estruturação para outras políticas e atividades na cidade, além
do Orçamento Participativo.
Um dos problemas destacados pelo governo é o insuficiente engajamento do funcionalismo dentro deste paradigma inovador, uma vez que ainda existem conflitos
no relacionamento destes com a população. Outra questão constatada pelo governo está relacionada à falta de
auto-regulamentação do Orçamento Participativo. Segundo Lima e Lucena (1996:27), “o que está na lei Orgânica
está sendo visto por parte do conselho como insuficiente,
pois não assegura o direito à auto-regulamentação, não
reconhece o autonomeado Conselho tanto na relação com
o Executivo como no estabelecimento de suas próprias
normas de funcionamento”.
A democratização do Orçamento Participativo, de acordo com os atores intervenientes, abre um estimulante campo para:
- possibilitar o estabelecimento de um canal propício à
discussão e à negociação entre a prefeitura e a população
através de diversos fóruns;
- democratizar a informação, tornando mais transparentes as ações e estimulando o controle popular dos negócios públicos;
- estimular a regionalização, a descentralização e a autoorganização popular, bem como possibilitar um entendimento
mais global da cidade pelos movimentos comunitários.
A dinâmica do Orçamento Participativo busca democratizar a gestão enquanto uma nova prática de gestão da
coisa pública. Este espaço de decisão estabeleceu “um tipo
de contrato social onde direitos e cidadania são os elementos mais centrais para atingir um objetivo coletivo: a busca constante do término das exclusões e desigualdades na
cidade, com inversão de prioridades através do atendimento
preferencial de demandas sociais das camadas mais pobres” (Prefeitura Municipal de Porto Alegre, 1996a).
O processo de participação adquire uma linguagem e
uma prática de ruptura com o corporativismo territorialmente determinado, com ênfase numa lógica presidida por
uma abordagem universal da cidade. A concepção de gestão implantada é legitimada pela própria população e traz
à tona a complexa construção de um processo em que o
CO-RESPONSABILIDADE NA GESTÃO DAS CIDADES
método e o regulamento são elementos chaves, pois bloqueiam o clientelismo e obrigam as lideranças comunitárias a pensar a sua região num contexto mais abrangente.
Isto implica, basicamente, a necessidade de ruptura com a
sua visão “geográfico-corporativa, que tende a abordar a
cidade de modo completamente fragmentário” (Genro,
1995:23).
A experiência de Porto Alegre mostra que tanto o Executivo quanto o Legislativo perdem parte do seu poder de
intervir no orçamento: o primeiro ao ver-se informalmente obrigado a seguir as diretrizes de uma iniciativa que ele
próprio propôs; e o segundo, por não poder contrariar frontalmente uma decisão em boa medida representativa dos
anseios da população, rompendo com uma tradição clientelista e tornando o orçamento transparente.
Esta dinâmica de participação permite, como parte integrante do planejamento da cidade, o surgimento de espaços reais de explicitação dos direitos coletivos, que, por
sua vez, ampliam o espaço de legitimidade da administração e garante a continuidade de uma proposta políticoadministrativa progressista, quebrando a espinha dorsal
do clientelismo e do populismo.
Os resultados de pesquisas realizadas sobre as formas
de participação da população (Fase; Cidade; CRC/CMPA,
1995) mostram que existe uma avaliação positiva do processo decisório sobre as obras e serviços, assim como sobre
a dinâmica de prestação de contas pelo governo municipal. O aperfeiçoamento do processo resulta das tensões
que surgiram na relação do Executivo municipal com os
movimentos mais organizados nos primeiros anos da primeira gestão, à medida que não se concretizavam os objetivos acordados.
Atualmente, a legitimidade do Orçamento Participativo é inquestionável, inclusive internacionalmente,1 configurando-se como um espaço participativo democrático,
representando um ponto de inflexão na própria cultura
política da vida associativa. Trata-se de uma nova vivência das práticas comunitárias, em que a população tem
um envolvimento pedagógico com atitudes democráticas
no processo decisório, desvinculando-se da dependência
de posturas tutelares convencionais. A população aprende não só a se articular na defesa dos interesses locais,
como também a negociar numa perspectiva de fortalecimento da cidadania ativa.
BELO HORIZONTE: A REPRODUÇÃO
DE UMA EXPERIÊNCIA BEM-SUCEDIDA
O Contexto da Experiência
Com uma plataforma baseada na abertura da administração à participação popular, o Partido dos Trabalhado-
123
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 10(3) 1996
sencadeiam um processo pelo qual, de posse das reivindicações apontadas nos questionários, percorre cada uma
das microrregiões para se certificarem da emergência e
importância social de cada uma das necessidades demandadas pela população.
Após essas etapas, a administração regional processa
as demandas recolhidas e visitadas nas microrregiões.
Nesse momento, com base nos recursos disponíveis, os
delegados definem as necessidades que serão atendidas.
É nesse espaço que ocorre a negociação de prioridades
entre as microrregiões. Trata-se de um momento em que
as situações ganham visibilidade, possibilitando acordos
com base no significado social de cada uma das reivindicações.
Nos Fóruns Regionais elegem-se os delegados para o
“Encontro Municipal de Prioridades Orçamentárias”,3 bem
como uma comissão que não só se encarregará de acompanhar o andamento das obras na sua região,4 como também estará junto à Câmara Municipal para acompanhar a
execução da peça orçamentária e a prestação de contas
que será efetuada pelo Governo.
O processo de elaboração do Orçamento Participativo
encerra-se com a realização do “Encontro Municipal de
Prioridades Orçamentárias”, onde os delegados eleitos nos
Fóruns Regionais discutem, no âmbito municipal, todas
as demandas definidas em cada uma das nove regiões.
Nesse momento, articula-se a visão setorial/regional com
uma visão ampliada da cidade, com suas carências e com
as intervenções necessárias para a melhoria de qualidade
de vida e ampliação do exercício da cidadania. É a população orientando o Estado a atuar de forma mais eficaz
no atendimento de suas reivindicações.
A etapa seguinte é a de submeter a peça orçamentária
à Câmara Municipal. Convém lembrar que o orçamento
público historicamente vem sendo alvo de barganha entre parlamentares e poder público. A forma tradicional de
manipulação do orçamento é uma fonte de subsistência
de práticas de clientelismo e uma forma de se constituir
base de apoio de governos no Legislativo.
Porém, no caso de Belo Horizonte, a mobilização popular e a repercussão desta iniciativa acabaram criando
uma clima de constrangimento para os vereadores avessos à nova experiência. Desde o seu início, o Orçamento
Participativo vem sendo aprovado integralmente pela
Câmara Municipal.
res assumiu, em 1993, a prefeitura de Belo Horizonte.
Neste contexto, a proposta de implementação do Orçamento Participativo ganhou uma importância estratégica
não só por ter sido uma das principais bandeiras de campanha, mas também por ser uma iniciativa que vai de encontro às inovações administrativas que buscam uma
maior aproximação entre o poder público e a população.
Cumprir esse objetivo significava, segundo o prefeito eleito, “desmontar a idéia das forças conservadoras, de que
democracia, participação popular e descentralização são
contrários à ação de um governo eficaz” (Ananias,
1995:32).
Na gestão anterior, houve uma tentativa de abertura à
participação na elaboração da peça orçamentária, porém
o método adotado pecava pela falta de ousadia e por repetir práticas políticas conservadoras, já que estava restrito à influência de líderes comunitários, o que, segundo
Avritzer e Azevedo (1994:14), “terminou por levar ao
clientelismo e gerar fortes pressões particularistas”.
Diante deste cenário, a prefeitura de Belo Horizonte,
tendo “como referência a experiência desenvolvida em
Porto Alegre” (Ananias, 1995:33), implantou, já no seu
primeiro ano de governo, o Orçamento Participativo.
Para que a iniciativa envolvesse toda a cidade e cumprisse sua meta de criar canais em que a população fosse
o ator privilegiado no desenvolvimento do processo, foi
necessário pensar numa estrutura administrativa descentralizada, para informar a população sobre a situação financeira do município, sua limitação orçamentária e os
recursos disponíveis para a execução das demandas que
serão apresentadas pelos moradores. Para a viabilização
destes objetivos, aproveitou-se a divisão da cidade em
administrações regionais.2
Estas administrações regionais subvidiram-se em microrregiões, às quais cabia mobilizar os seus moradores
para apresentarem e discutirem suas demandas, num processo desenvolvido em três etapas:
- na primeira, são apresentados os dados referentes à situação financeira do município. Neste momento é passado
um quadro rigoroso das despesas e receitas manipuladas
pela administração municipal, bem como dos recursos
disponíveis para a realização dos investimentos;
- na segunda, ocorre a apresentação do quadro socioeconômico de cada região, com relação à sua infra-estrutura
urbana e de serviços, sob a responsabilidade da administração municipal. Ainda nesse momento, distribui-se um
questionário, em que a população envolvida aponta suas
demandas sociais;
Uma Cronologia da Participação e
os Resultados da Experiência
- na terceira e última etapa, discutem-se as obras elencadas nos questionários e são eleitos os delegados que farão parte do Fórum Regional. Os delegados eleitos de-
A implantação do Orçamento Participativo pode ser
considerada um sucesso em se tratando do envolvimento
da população e da destinação de recursos para as iniciati-
124
ORÇAMENTO PARTICIPATIVO:
vas demandadas. Os números alcançados desde a primeira experiência apontam que, em 1993, envolveu-se nas
rodadas de discussão do orçamento previsto para o ano
de 1994 um total de 15.716 pessoas, representando em
torno de 800 entidades organizadas. Neste primeiro ano,
o volume de recursos distribuídos entre as nove regiões
foi em torno de US$15.000.000,00 (Prefeitura Municipal
de Belo Horizonte, 1993 e 1996a).
No segundo ano (1994), 28.263 pessoas participaram
da discussão do orçamento para o exercício em 1995,
incluindo novamente em torno de 800 entidades organizadas. Neste momento, o volume de recursos destinados
alcançou R$18.000.000,00 (Prefeitura Municipal de Belo
Horizonte, 1993 e 1996a).
No terceiro ano da experiência, quando discutiu-se a
peça orçamentária para 1996, o número de pessoas envolvidas chegou a 38.508, significando um considerável
crescimento em relação ao primeiro ano. O volume de
recursos destinados é de R$33.000.000,00, o que representa 83% acima daquele referente ao ano anterior.
Neste ano, ocorre também a experiência do Orçamento Participativo para a área de habitação, que se
estrutura à imagem e semelhança do Orçamento Participativo geral. Para essa iniciativa, destinaram-se R$
6.000.000,00, que foram utilizados na construção de
moradias e na urbanização de lotes através do Movimento dos Sem-Casa.
A discussão do Orçamento Participativo para a área
de habitação aglutinou 13.762 pessoas nas administrações
regionais, que, somadas às outras 38.508 do orçamento
geral, totalizaram 52.900 pessoas, representando um crescimento de 236,5% em relação ao primeiro ano da experiência.
No quadro de atendimento às demandas oriundas da
participação popular, o resultado do levantamento feito
pela Prefeitura Municipal de Belo Horizonte (1996b) até
o dia 13 de março de 1996 revela que, do total de reivindicações em 1993 – aprovadas para o ano de 1994 –, 92,4%
já foram atendidas ou estão em fase de conclusão, sendo
que o restante enfrenta entraves legais referentes à licitação ou à elaboração de projetos.
Do que foi demandado em 1994 – aprovado para o Orçamento de 1995 –,75% já foram atendidos ou estão em
fase final, enquanto o restante ainda enfrenta os percalços relativos à licitação e à elaboração dos projetos. Das
prioridades aprovadas no Orçamento para o ano de 1996,
de acordo com dados levantados até o mês de março, 77%
encontram-se em fase de execução.
Do total demandado nos três primeiros anos da experiência de Orçamento Participativo, podem ser destacados, por ordem: saneamento, pavimentação e drenagem,
urbanização de vilas e favelas, saúde e educação.
CO-RESPONSABILIDADE NA GESTÃO DAS CIDADES
Dificuldades e Alcances da Experiência
A limitação dos recursos frente às necessidades da
população é, sem dúvida, a maior dificuldade enfrentada
na experiência de elaboração do Orçamento com Participação Popular. Muitas são as demandas prioritárias, sendo que a ausência de um volume de recursos que se adeque
às demandas faz com que se definam critérios que selecionem, dentro do quadro de pauperização social, os investimentos prioritários.
No caso de Belo Horizonte, esse problema soma-se ao
que Patrus Ananias (1995:34) chamou de “falta de uma
visão estratégica de cidade”, que está sendo superado com
a elaboração de “um plano de prioridades que a própria
Prefeitura estabelece em função de algumas obras fundamentais”.
Com relação ao comportamento do Legislativo, o sucesso da experiência acabou obrigando os parlamentares
resistentes à idéia a não só aprová-la, como também a se
incorporarem à nova prática de elaboração orçamentária.
Estes parlamentares tinham anteriormente na elaboração
do orçamento municipal uma fonte de barganha para práticas clientelistas com o atendimento de demandas pontuais em locais de influência de seu grupo político.
Até o momento, os orçamentos que foram discutidos e
definidos nas plenárias populares foram aprovados integralmente pelos vereadores. A mudança de cultura e um
certo enquadramento pela pressão popular são revelados
na voz de João Paulo Gomes, vereador de oposição e atual
presidente da Câmara Municipal de Belo Horizonte: “ninguém é bobo de ir contra a vontade popular” (Revista Veja,
1996:35).
O constrangimento e a oposição inicial de parte significativa dos vereadores foram substituídos pela necessidade de se integrarem ao processo para não correrem o
risco do isolamento político. Para tanto, estimulam os seus
aliados a participarem das plenárias e a negociarem previamente suas demandas com alguns setores organizados.
Avritzer e Azevedo (1994:25) analisam que “esta busca de adaptação a um novo cenário indica também uma
certa mudança nas práticas tradicionais. O resultado desse processo não é simplesmente a substituição de práticas clientelistas por relações políticas democráticas, mas
formas de relacionamento do Estado com a sociedade civil, que, apesar de ‘novas’ oferecem espaços para ‘velhas’
práticas tradicionais”.
A Câmara Municipal de Belo Horizonte não se colocou como barreira à iniciativa devido à repercussão popular. Os setores avessos à inovação, ao invés de se contraporem como tradicionalmente fazem, acabaram por se
integrar ao debate nas próprias plenárias, o que é saudável para a democracia, já que nessas arenas públicas há
125
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 10(3) 1996
espaços para a comparação de práticas e objetivos políticos por intermédio do debate de idéias, quando colocadas de maneira transparente.
Com relação às mudanças no comportamento da população, o Fórum Regional – última etapa após a discussão nas microrregiões –, vem se constituindo num espaço
de criação de uma nova cultura política na relação do poder
público com os moradores de diferentes camadas sociais
(Revista Veja, 1996).5 Um fator significativo é que as
pessoas estão passando a ver a cidade como um espaço
de todos e não mais de forma regionalizada e compartimentada socialmente.
compreensão pedagógica da sua lógica de intervenção para
a maioria da população.
A experiência de Porto Alegre mostra que o nível
de contradições e de complexidade existente em relação aos diferentes agentes envolvidos não pode ser escamoteado com soluções de conveniência política numa
perspectiva apenas classista e particularizada. Isto foi
sendo sedimentado numa estratégia que, se por um lado
não exclui os setores organizados, tampouco lhes dá
um tratamento diferenciado. Existe uma preocupação
da administração no sentido de articular e compensar
os aspectos tanto objetivos – carências – como aqueles
marcados pela subjetividade, que é inerente a um processo participativo.
A experiência multiplicadora de Porto Alegre, que vem
obtendo resultados positivos na política de inversão de
prioridades através da implantação do Orçamento Participativo, está diretamente vinculada à capacidade das
administrações de criarem canais legítimos de participação, combinando elementos da democracia representativa e da participativa.
A ênfase das diversas prefeituras que assumem o Orçamento Participativo enquanto instrumento de democratização da gestão está na necessidade de garantir um acesso
permanente à informação a toda a população para assegurar o controle social da administração pública e ampliar o nível de co-responsabilização dos cidadãos, a partir
da definição conjunta de um calendário e de um planejamento das etapas do processo.
Deve-se considerar também que, em virtude da fragilidade do tecido associativo, parece bastante lógico que
os processos participativos tenham ainda pouca ressonância junto à população e a muitos movimentos sociais, em
relação tanto à divulgação de informações quanto à discussão de problemas locais. A dinâmica do processo depende, principalmente, dos mecanismos de comunicação
utilizados pelo poder público e das estratégias de relacionamento, bem como das metodologias participativas. Tratase de um processo freqüentemente marcado por tensões,
pois, devido à ditadura das carências e das urgências,
emergem contradições e incompreensões não somente entre
os habitantes, mas também com os membros do Legislativo Municipal, que muitas vezes sentem sua representatividade junto à comunidade onde atuam ameaçada.
O que se observa nas administrações de Porto Alegre
e Belo Horizonte, aqui analisadas, é que seu sucesso relaciona-se ao fato de atuarem no sentido de induzir a organização da população em todos os níveis, de modo que
sua relação com o poder público seja a mais qualificada
possível.
Este processo de gestão através do ingresso da cidadania organizada na máquina do Estado possibilita conhe-
O DESAFIO DE FORTALECER UMA
CIDADANIA ATIVA NA GESTÃO DAS CIDADES
Esta análise centrada nas bem-sucedidas experiências
de Porto Alegre (duas gestões) e Belo Horizonte (1ª gestão) traz à tona os desafios enfrentados na consolidação e
legitimação pelos cidadãos do Orçamento Participativo.
O efeito multiplicador do Orçamento Participativo é inegável, pois, atualmente, já são diversas as administrações
municipais que estão adotando esta dinâmica de gestão.
A experiência consolidada de Porto Alegre é emblemática, trazendo para o centro do debate provavelmente um
dos componentes de maior complexidade na consolidação de propostas descentralizadoras para uma administração municipal.
O crescimento da experiência de cidadania, propiciado pela consolidação do Orçamento Participativo, é uma
ferramenta de democratização da gestão pública dentro
de uma ética comunitária que rompe com os velhos padrões de relação de interesses. A dinâmica estabelecida,
tanto em Porto Alegre como naquelas cidades onde a administração assume o Orçamento Participativo como parte
estratégica de sua forma de governo, busca também romper com as características de cumplicidade que freqüentemente se estabelecem entre administrações progressistas e movimentos organizados, e que podem gerar tensões
de relacionamento.
O processo de participação implantado adquire gradualmente uma linguagem e uma prática de ruptura com
o corporativismo territorialmente determinado, enfatizando uma lógica presidida por uma abordagem universal da
cidade.
O tema da participação passa a ser tratado de forma
cada vez menos voluntarista, ao se definir as diferenças
existentes na própria dinâmica implantada pelas políticas
setoriais. Para estas administrações, torna-se cada vez mais
claro o fato de que a consolidação de instâncias de participação exige um longo e complexo processo de fortalecimento da engenharia institucional, necessária para a
126
ORÇAMENTO PARTICIPATIVO:
cer seu funcionamento e suas limitações e estimula a
construção de uma relação de co-responsabilização e
de debates para produzir consensos cada vez mais qualificados.
Conforme Avritzer e Azevedo (1994), os saldos do
Orçamento Participativo, enquanto processo político, são
o aprendizado de exercício da democracia pelos participantes do processo, a divulgação das formas de decisão
do orçamento ao nível da Administração e do Legislativo
Municipal e até mesmo a incorporação de uma preocupação com a transparência por parte dos técnicos da administração municipal.
As transformações político-institucionais aqui apresentadas abrem um estimulante espaço para a construção de uma nova institucionalidade que tem na participação um componente importante para o fortalecimento
da oferta citadina na gestão da coisa pública. As dimensões diferenciadas de participação mostram a necessidade de superar ou conviver com certos condicionantes sociopolíticos e culturais, à medida que o salto
qualitativo começa a ocorrer a partir de diferentes engenharias institucionais que “têm uma progressiva penetração de formas públicas de negociação dentro da
lógica da administração pública, renovando os potenciais do exercício da democracia” (Avritzer e Azevedo, 1994:28). Isto também reforça a importância de
pensar a participação como um método de governo que
pressupõe a realização de certas precondições necessárias à sua viabilização dentro do possível, dadas as
características da cultura política brasileira.
Os complexos e desiguais avanços revelam que estas
engenharias institucionais, baseadas na criação de condições efetivas para multiplicar experiências de gestão participativa que reforçam o significado da divulgação das
formas de decisão e de consolidação de espaços públicos
democráticos, ocorrem pela superação das assimetrias de
informação e pela afirmação de uma nova cultura de direitos. Estas experiências que denominamos inovadoras,
fortalecem a capacidade de crítica e de interveniência dos
setores de baixa renda, através de um processo pedagógico e informativo de base relacional, assim como a capacidade de multiplicação e aproveitamento do potencial dos
cidadãos no processo decisório dentro de uma lógica não
cooptativa.
Entretanto, estas experiências que inovam na relação
Estado e sociedade civil ainda estão longe de representar
um paradigma de significativa repercussão no atual quadro
brasileiro, principalmente em virtude da falta de vontade
política dos governantes e da fragilidade do tecido
associativo. Os grupos organizados que interagem e
pressionam representam iniciativas fragmentárias que não
atingem o cerne de uma sociedade refratária a práticas
CO-RESPONSABILIDADE NA GESTÃO DAS CIDADES
coletivas.6 A realidade brasileira é marcada por configurar
um contexto de baixa institucionalização, em que a maioria
da população pouco se mobiliza para explicitar sua
disposição de utilizar os instrumentos da democracia
participativa, visando romper com o autoritarismo social
que prevalece. Além disso, destaque-se o fato de a maioria
das organizações sociais serem ou relativamente frágeis
ou extremamente especializadas, tendendo a estabelecer
relações particularizadas e diretas com a administração
pública local.
Os desafios para ampliar a participação estão intrinsecamente vinculados à predisposição dos governos
locais de criar espaços públicos e plurais de articulação e participação, nos quais os conflitos se tornam
visíveis e as diferenças se confrontam, enquanto base
constitutiva da legitimidade dos diversos interesses em
jogo. Isto nos remete à necessidade de ter como referência, não só suficiente mas necessária, uma engenharia institucional legítima aos olhos da população, que
garanta espaços participativos transparentes e pluralistas, numa perspectiva de busca de eqüidade e justiça
social configurada pela articulação entre complexidade administrativa e democracia.
O que estas experiências também mostram é que o alargamento da cidadania está associado a uma proposta de
garantia da governabilidade, como atestam as reeleições
em prefeituras progressistas.7
NOTAS
1. Porto Alegre foi uma das 40 cidades escolhidas para apresentar sua prática de
administração pública na Conferência Habitat II – 3 a 14 de junho em Istambul
na Turquia. Na ocasião a prefeitura apresentou a experiência do Orçamento Participativo, que foi selecionada entre 600 práticas urbanas de diversos países.
2. São nove no total e essa estrutura já existia no governo anterior. As regionais são: Barreiro, Centro-Sul, Leste, Nordeste, Noroeste, Norte, Oeste,
Pampulha e Venda Nova. O critério adotado pela prefeitura para destinar os
recursos que serão disponibilizados para a elaboração do orçamento participativo em cada uma das regiões é de 50% distribuídos igualmente entre elas
e os outros 50% distribuídos conforme o tamanho e a renda da população de
cada uma das regiões.
3. Neste fórum os delegados trocam experiências e tomam conhecimento de todas as demandas por região. Aqui também os participantes entregam formalmente
ao prefeito os planos de obras da região.
4. Esta comissão denomina-se Comforça – Comissões Regionais de Acompanhamento e Fiscalização do Orçamento Participativo.
5. Segundo a reportagem, uma psicóloga moradora de um bairro de classe média
conta que perdeu seu tempo percorrendo gabinetes oficiais na tentativa de conseguir obras de urbanização no local onde possui um terreno. Só conseguiu sucesso organizando seus vizinhos e indo às plenárias do orçamento participativo.
No primeiro ano conseguiram levar sua reivindicação até o Fórum Regional, porém o grupo abriu mão em função de outras com emergência social mais relevante. No segundo ano conseguiram aprovar a demanda no orçamento e a obra
já foi realizada.
6. Santos (1993) desenvolve uma provocante reflexão (notadamente no capítulo
III – Fronteiras do Estado Mínimo) sobre as mazelas da cultura política brasileira e as barreiras a uma participação mais ativa .
7. Em 1992, onze prefeituras administradas pelo PT foram reeleitas, dentre as
quais Porto Alegre e Santos.
127
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 10(3) 1996
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128
GESTÃO PÚBLICA E PARTICIPAÇÃO: A EXPERIÊNCIA DO ORÇAMENTO...
GESTÃO PÚBLICA E PARTICIPAÇÃO
a experiência do orçamento participativo
em Porto Alegre
SÔNIA M. G. LARANGEIRA
Professora do Departamento de Sociologia e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da UFRGS
A
revisão conceitual que vem ocorrendo na Sociologia há, pelo menos, duas décadas e que emerge da crítica ao centralismo e autoritarismo presentes no socialismo real produz alterações em termos não
só dos conceitos, mas também do que se deveria considerar a boa sociedade. Nesse sentido, observa-se o deslocamento de conceitos como desenvolvimento, classes sociais, planejamento e Estado do Bem-Estar, sendo estes
substituídos por outros, tais como movimentos sociais, autonomia, sociedade civil, poder local, democracia participativa e descentralização, que passam a ocupar lugar
central nas Ciências Sociais dos anos 80. O conflito Estado versus sociedade civil assume centralidade na explicação das lutas sociais. Rejeitam-se, porém, abordagens
racionalista-totalizantes – responsáveis, segundo alguns,
por engendrarem perspectivas de intervenção social de
caráter centralizador via maior participação, através da
negociação, do consenso e da racionalização da interação. Rejeitam-se, sobretudo, fórmulas tecnocráticas, já que
caracterizariam o privilegiamento da esfera estatal e a
forma correspondente de planejamento baseada na abordagem técnica assentada no domínio monopolístico da informação e do saber.
Destaca-se, assim, o delineamento de uma nova forma
de conceber a relação Estado-sociedade. Ao se privilegiar o pólo sociedade civil, busca-se mostrar as suas virtudes, capacidade de mobilização e de autonomia e, principalmente, seu potencial democratizador.
Contribuição significativa da nova abordagem é, precisamente, o desafio à concepção pessimista, expressa no
velho dilema proposto por Weber, de que à crescente complexificação social seguem-se crescente burocratização/
centralização e a conseqüente restrição da cidadania e das
possibilidades democráticas, ou seja, supõe-se que a única via para a racionalização da política seria a da complexificação da administração pública (Azevedo e Avritzer,
1994:3).
Habermas tenta escapar de tal dilema, argumentando
que o problema da complexificação social é distinto daquele referente à democratização. O problema da racionalização administrativa, decorrente da burocratização,
poderia ser compensado através da concomitante racionalização dos processos interativos e comunicativos, sendo
que, para tanto, a ação dos movimentos sociais tornar-seia fundamental como instância mediadora entre Estado e
sociedade. Dessa forma, seria possível alcançar um nível
mais elevado de participação ativa da cidadania, produzindo tensão positiva entre burocracia e participação (apud
Azevedo e Avritzer, 1994:4-5). Acredita-se, portanto, na
possibilidade de superar os limites da democracia representativa, através de mecanismos que ampliem a mobilização da sociedade civil em diferentes dimensões da vida
social, com o objetivo de aumentar a participação sistemática dos cidadãos organizados em movimentos sociais
movidos por princípios não meramente corporativos, integrando espaços de discussão e de negociação capazes
de manifestarem-se não apenas no âmbito de consultas,
mas também no de definição de demandas e de sua problematização.
Esta formulação acompanha a tendência epistemológica dominante nas últimas décadas, afastando-se das
abordagens abrangentes em direção às analíticas. Estas,
por sua vez, acham-se, em geral, associadas a uma concepção da política em que a transformação social é concebida como resultado não de rupturas, mas, ao contrário, de mudanças permanentes que operam no âmbito da
129
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 10(3) 1996
esfera local/individual. Neste sentido, emerge uma nova
concepção de democracia que visa superar os evidentes
limites da democracia formal, expressos na apatia/alienação política dos cidadãos no contexto de crescente distanciamento entre governo e sociedade. A proposta seria,
portanto, a de estender o conceito de cidadania, tendo em
vista não só incorporar novos atores sociais tradicionalmente excluídos da participação social mais ampla, mas
também ampliar a natureza da participação no sentido de
integrar os cidadãos aos diferentes níveis do processo de
decisão político-administrativa. Nessa perspectiva, o local constituir-se-ia em espaço privilegiado, uma vez que
permite viabilizar de forma mais concreta a relação entre
governo e sociedade. Como já afirmara Castells: “O município... é o órgão do Estado mais permeável a uma representação política das classes dominadas... Foi essa permeabilidade na oposição das esquerdas que deu à política
municipal seu caráter de vanguarda na longa marcha da
esquerda através das instituições democráticas” (Castells,
1980:1.269).
A preocupação com o local corresponde igualmente
ao desejo de ruptura com as formas centralizadas de gestão que, a despeito de caracterizarem-se, em geral, por
padrões tecnoburocráticos/autoritários de gestão, não raro,
permitem o surgimento de padrões paternalistas/clientelistas, quando não corruptos, de conduta na administração pública.
De outro lado, a preocupação com a gestão local decorre da reivindicação de autonomia das cidades, a partir
do pressuposto de que as mesmas devem desenvolver
competência própria, especialmente no que se refere à
execução de programas sociais – tais como os de moradia, de saúde, de educação e de meio ambiente –, em face
da crise que atinge os Estados centrais e da qual não escapam as próprias cidades, expressa na crise fiscal e de
serviços, na degradação das condições de vida e na presença constante da violência.
Algumas experiências ilustrativas, especialmente na
Europa – casos de Bolonha, na Itália, de Barcelona, na
Espanha, de Lyon, na França –, surgidas com a ascensão
de grupos de esquerda ao governo comprometidos com a
perspectiva de descentralização administrativa e participação popular, têm-se constituído em objeto privilegiado
de observação e análise, permitindo uma discussão mais
consistente em torno das possibilidades de implementação dos novos princípios, os quais, precisamente pela novidade, oferecem oportunidade para debates e controvérsias. Nesse sentido, merecem atenção questões que
discutem, por exemplo, a forma e a natureza da participação da sociedade civil. Ou seja, busca-se responder a
uma série de questões, tais como: qual deve ser a forma
de participação dos cidadãos, direta ou representativa?
Qual a natureza dessa participação – consultiva ou deliberativa –, ou seja, deverá assumir um caráter definidor
de políticas ou apenas de orientação/influência no processo de tomada de decisão? Quais devem ser, ao excluírem-se as máquinas partidárias, os canais e as formas de
acesso ao aparato administrativo? De que forma tornar
viável a participação dos cidadãos, além das divisões partidárias? Qual deve ser a extensão daquela participação,
ou seja, que setores da administração (e em que medida)
poderiam ser submetidos à influência/decisão da sociedade civil?
Junto a essas questões, emergem outras que decorrem
de orientação político-administrativa e que se referem à
relação administração municipal e partido político que lhe
dá sustentação. No caso das administrações de esquerda,
surge a questão “para quem governar”, ou seja, deve o
governo orientar-se pelas demandas dos setores populares ou pelas da sociedade como um todo? Em conseqüência, quais deveriam ser as prioridades de governo e quem
as define? Além dessas, poder-se-ia igualmente citar as
questões que envolvem a relação Estado central e estado
local, bem como aquelas relativas aos problemas de financiamento necessários à implementação do novo projeto.
O presente artigo tem como objetivo levantar algumas
dessas questões, tendo como foco de análise o Orçamento Participativo implantado pela prefeitura de Porto Alegre na administração do Partido dos Trabalhadores, nos
períodos de 1989-92 e 1993-95.
GESTÃO PARTICIPATIVA
A concepção do Orçamento Participativo em Porto Alegre, instituído em 1989 pela administração municipal que
foi eleita por uma frente popular liderada pelo Partido dos
Trabalhadores, fundamenta-se teoricamente no movimento
de renovação/revisão conceitual anteriormente referido.
Nessa perspectiva, a implementação do Orçamento
Participativo tem como um dos princípios orientadores a
ampliação da democracia, através de mecanismos capazes
de superar os limites restritos da democracia representativa
– que se expressariam na apatia/alienação política dos
cidadãos num contexto de crescente distanciamento entre
governo e sociedade. A proposta seria, portanto, a de
estender o conceito de cidadania, tendo em vista não só
incorporar novos atores sociais tradicionalmente excluídos
da participação social, mas também ampliar a natureza
da participação no sentido de integrar os cidadãos aos
diferentes níveis do processo de decisão políticoadministrativa.
A esfera do orçamento público enquadra-se de forma
exemplar no espírito daqueles objetivos, uma vez que o
130
GESTÃO PÚBLICA E PARTICIPAÇÃO: A EXPERIÊNCIA DO ORÇAMENTO...
orçamento constitui-se em instrumento de importância
fundamental para a gestão estatal, como expressão da produção do fundo público (política tributária e de receitas)
e da forma como tal produto é apropriado e distribuído.
No Brasil, o orçamento público constitui-se em peça formal, cujo acesso é restrito a pequenos grupos de técnicos
que justificam o monopólio das decisões através da
pseudo-objetividade/neutralidade. A ausência de transparência e de fiscalização favorece a manipulação de recursos em benefício de grupos, expressando exemplarmente
as práticas patrimonialistas de gestão do Estado e o acesso clientelístico aos recursos públicos. Intervir, portanto,
na elaboração da peça orçamentária supõe intervir no
âmago de uma cultura política, por um lado, rompendo
com o clientelismo e, por outro, desmitificando o saber
tecnocrático, desvendando o funcionamento da máquina
do Estado e as formas de captação e de aplicação de recursos, bem como demonstrando as possibilidades de distribuição mais equitativa.
Além disso, a intervenção na elaboração do orçamento permitiria proceder a uma pretendida inversão de prioridades, no sentido de proporcionar às populações mais
carentes – às vilas sem infra-estrutura de serviços de
água, esgoto, transporte, pavimentação – acesso prioritário às suas demandas, não através de favorecimentos, mas sim a partir do estabelecimento de critérios
objetivos.
O Orçamento Participativo passa então a ser visto pela
administração como elemento crucial na transformação
das relações Estado-sociedade: a participação da população organizada no processo de planejamento do investimento municipal permitiria maior transparência à ação
governamental, ao mesmo tempo em que contribuiria para
a constituição de novos sujeitos políticos. Dessa forma,
seria possível superar a consciência clientelística vigente
nos dois pólos da relação Estado-sociedade.
Conforme citado anteriormente, o Orçamento Participativo foi implantado em Porto Alegre em 1989, num
contexto de completa inexperiência com iniciativas que
envolvessem a participação popular. Para sua consecução, a cidade foi dividida em 16 regiões, cujos limites foram traçados em função da presença de entidades
de moradores e da geografia dos movimentos sociais.
Nesse sentido, uma região não seria uma medida de
superfície, “mas um espaço de uso social e de organização comunitária” (Orçamento Participativo de Porto
Alegre, 1995:18). Nesse aspecto, verifica-se clara disparidade na proporcionalidade populacional das referidas áreas, uma vez que, por exemplo, a região 01-Ilhas
– com uma população de 5.163 habitantes (dos quais
quase a totalidade é classificada como população carente) – tem o mesmo peso de decisão da região 16-
Centro – com 306.595 habitantes (dos quais apenas
7.586 são considerados carentes).
Em 1994, buscando superar alguns dos limites desse
tipo de participação, a prefeitura alterou substantivamente a constituição do Orçamento Participativo, introduzindo a participação das Plenárias Temáticas, representando
cinco esferas relevantes da vida social: Saúde e Assistência Social; Transporte e Circulação; Educação, Lazer e
Cultura; Desenvolvimento Econômico e Tributação; e
Organização da Cidade e Desenvolvimento Urbano (subtemas Meio Ambiente e Saneamento; e Urbanismo e Habitação). Criaram-se, assim, possibilidades de participação a outros segmentos sociais – sindicalistas, organizações
governamentais e não-governamentais, partidos políticos, empresários, estudantes, movimentos culturais e
cidadãos –, não necessariamente organizados no movimento comunitário e com demandas distintas daquelas imediatas, próprias das populações carentes. O objetivo foi o de ampliar o âmbito das discussões do
Orçamento Participativo, no sentido da formulação de
um planejamento estratégico para a cidade e de políticas setoriais, por áreas. A operacionalização do processo do Orçamento Participativo verifica-se basicamente em três etapas:
- debate nas reuniões regionais e nas plenárias temáticas: realiza-se, em cada região (mês de abril) e em
reuniões plenárias temáticas (mês de maio), uma primeira rodada de reuniões plenárias abertas ao público, com
direito a voto, desde que maiores de 16 anos e moradores
da região. Nestas reuniões, a administração municipal, com
a presença do prefeito e demais membros do governo,
comparece para apresentar a prestação de contas do Plano de Investimentos do ano anterior e o Plano de Investimentos do ano em curso, bem como para esclarecer sobre
os critérios e métodos para a elaboração do Orçamento
Participativo. Entre as chamadas primeira e segunda rodadas, ocorrem reuniões intermediárias, contando com a
presença de assessores comunitários da administração, nas
regiões (mês de maio) e nas plenárias temáticas (mês de
junho), quando a população define prioridades, hierarquiza
obras, define políticas setoriais e elege os delegados (um
delegado eleito para cada dez moradores presentes na reunião preparatória de cada região ou temática e que constituirá o Fórum dos Delegados do Orçamento Participativo, com atribuições fiscalizadoras e consultivas). O
Executivo participa apresentando informações técnicas,
assim como suas demandas institucionais (Plano de Investimentos-1995, Prefeitura Municipal de Porto Alegre,
Orçamento Participativo-1996). A seguir, realiza-se a
segunda rodada de assembléias regionais ou temáticas
(mês de junho e julho), quando, de um lado, o Executivo
apresenta a estimativa de receita e de despesa (pessoal,
131
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 10(3) 1996
custeio dos serviços e investimentos) e, de outro, a comunidade encaminha suas prioridades com obras hierarquizadas de cada região, enquanto as temáticas mostram
as propostas de obras estruturais e prioridades de serviços e políticas setoriais. Neste momento, constitui-se também o Conselho do Orçamento Participativo (COP), integrado por representantes eleitos em cada região e em
cada temática (dois representantes titulares e dois suplentes
para cada região e para cada temática, num total de 42,
além de dois representantes da administração municipal,
um do Sindicato dos Municipários de Porto Alegre e um
da União das Associações dos Moradores de Porto Alegre), com atribuições de propor, fiscalizar e deliberar sobre receita e despesa do Poder Municipal;
- compatibilização do orçamento: após a discussão com
as plenárias regionais e temáticas, cada órgão da Administração elabora a sua proposta orçamentária. O conjunto dessas propostas e as prioridades apresentadas pela
população são compatibilizadas para formar a primeira
versão da matriz orçamentária a ser discutida pelo COP.
A proposta final é entregue à Câmara de Vereadores no
mês de setembro;
- detalhamento do orçamento: nos meses finais do ano
são detalhados os diversos investimentos por regiões e
os investimentos gerais propostos pelas plenárias temáticas.
Nesse processo, destaca-se como um dos aspectos fundamentais do Orçamento Participativo a erradicação de
práticas clientelistas e patrimonialistas na alocação de
recursos públicos. Este objetivo definiu a preocupação
central da administração em estabelecer critérios para a
eleição das prioridades das diferentes regiões a serem incorporadas no orçamento. Dessa forma, depois de anos
de experiência concreta, em que alguns critérios foram
abandonados (grau de mobilização popular e importância da região para a organização da cidade), enquanto
outros foram integrados (prioridade da região), estão,
hoje, em vigor quatro critérios básicos: carência de
serviços ou infra-estrutura urbana da região; população em área de carência máxima de serviço ou de infraestrutura da região; população total da região; prioridades da região.
A preocupação com a objetividade na distribuição de
recursos acarretou a utilização de uma escala de valores
representada por pesos e pontuações, no sentido de garantir uma distribuição justa e criteriosa das verbas disponíveis, entre as regiões. Assim, a cada critério é atribuída
uma nota de 1 a 4 (por exemplo, se a região tem alta carência em pavimentação, recebe nota 4 em carência de
infra-estrutura). Além disso, é atribuído um peso (de 1
a 3) a cada critério, representando sua importância relati-
QUADRO 1
Critérios e Notas
Carências de Serviços ou Infra-Estrutura
Peso 3
Até 25%
Nota 1
De 26% a 50%
Nota 2
De 51% a 75%
Nota 3
De 76% em Adiante
Nota 4
População em Áreas de Carência Máxima
Peso 2
de Serviços ou Infra-Estrutura
Até 4.999 Habitantes
Nota 1
De 5.000 a 14.999 Habitantes
Nota 2
De 15.000 a 29.999 Habitantes
Nota 3
Acima de 30.000 Habitantes
Nota 4
População Total da Região
Peso 1
Até 49.999 Habitantes
Nota 1
De 50.000 a 99.999 Habitantes
Nota 2
De 100.000 a 199.999 Habitantes
Nota 3
Acima de 200.000 Habitantes
Nota 4
Prioridade da Região
Peso 3
Da Quarta Prioridade em Diante
Nota 1
Terceira Prioridade
Nota 2
Segunda Prioridade
Nota 3
Primeira Prioridade
Nota 4
Fonte: Prefeitura Municipal de Porto Alegre/Gabinete de Planejamento da Prefeitura – Gaplan.
va, segundo a avaliação do Orçamento Participativo (o
critério carência de serviços ou infra-estrutura urbana
da região tem recebido peso máximo). Ao final, computam-se as notas e os pesos, que são confrontados com as
prioridades de cada região, formando a base de cálculo
para a distribuição dos investimentos (Orçamento Participativo de Porto Alegre, 1995:30-5). Tais critérios, mais
ou menos consagrados, podem, no entanto, ser revistos a cada
ano, por ocasião da constituição de um novo Conselho.
O processo de tomada de decisões quanto ao orçamento
realiza-se num contexto de negociação e de consenso entre
o COP e o Executivo. As decisões no COP são aprovadas
por maioria simples e posteriormente encaminhadas ao
Executivo. Em caso de veto, retornam ao Conselho para
nova apreciação. A rejeição do veto do prefeito exige o
voto de dois terços dos conselheiros, sendo a decisão final do prefeito municipal (Orçamento Participativo de
Porto Alegre, 1995:55). O Conselho se reúne no mínimo
132
GESTÃO PÚBLICA E PARTICIPAÇÃO: A EXPERIÊNCIA DO ORÇAMENTO...
uma vez por semana; os mandatos têm duração de um ano,
sendo passíveis de revogação a qualquer momento.
Apesar de ter como um de seus objetivos centrais a inversão de prioridades, o Executivo mantém sua autonomia no sentido de garantir a execução de obras consideradas necessárias e que estariam fora das demandas
priorizadas a partir de critérios estabelecidos pelo Conselho do Orçamento Participativo. Nesse sentido, a administração reconhece sua função enquanto governo de
toda a cidade, devendo, portanto, atender a interesses de
outros segmentos sociais, distintos daqueles populares.
Ilustra essa posição a manifestação do atual prefeito Tarso
Genro: “precisamos realizar reformas na rede de água
em determinados bairros de alta classe média da cidade. Se os conselheiros populares disserem não, nós devemos implementar mesmo assim essa decisão” (Genro,
1995:170).
A experiência do Orçamento Participativo tem sido
avaliada de forma bastante otimista pelas administrações
envolvidas, sob o argumento de que o mesmo procedeu a
uma ruptura com uma longa tradição de clientelismo e de
decisões tecnocráticas, que tendia a beneficiar os setores
sociais privilegiados, em detrimento dos setores pobres
da população. Sem dúvidas, há elementos realmente positivos nessa experiência, como o combate à tendência de
oligarquização através do desenvolvimento de um processo de sentido educativo, em que o cidadão responsabiliza-se pela coisa pública participando e exercendo fiscalização e controle sobre os recursos públicos. Em relação a
essa questão, deve-se considerar que a constituição do
Orçamento Participativo em 1989 ocorreu num contexto
econômico-financeiro pouco favorável. Nos anos 80, comparando-se com a década anterior, verifica-se sensível redução da receita municipal em relação à renda da cidade.
Apesar da queda significativa das receitas correntes da
prefeitura, houve um acréscimo expressivo do número de
servidores ativos e inativos da administração, reduzindo,
portanto, sua capacidade de investimento. A real implementação do Orçamento Participativo dependia, assim, de
uma reversão da situação econômica da prefeitura. Em
ORGANOGRAMA DO ORÇAMENTO PARTICIPATIVO
Secretarias
Gaplan
Prefeito
Assembléias
Municipal
(Rodadas)
CRC
COP
16 Fóruns de
Delegados
Asseplas
CROP
Conselhos Populares
Entidades Comunitárias
CT
Moradores da Região
Fascom
Entidades de Classe
Plenárias
Temáticas
Outros Movimentos
Comunitários
Gaplan – Gabinete de Planejamento da Prefeitura
Asseplas – Assessorias de Planejamento dos Órgãos de Governo
CRC – Coordenação das Relações com a Comunidade
CROP – Coordenadores Regionais do Orçamento Participativo
CT – Coordenadores Temáticos
COP – Conselho do Orçamento Participativo
Fascom – Fórum de Assessorias Comunitárias
133
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 10(3) 1996
periência na administração pública, que resultaram na fixação de metas muito superiores aos recursos financeiros
a ela destinados e mesmo à capacidade operacional da
Prefeitura” (Augustin, 1994:53).
Quanto aos desencontros internos da administração,
estes referem-se, entre outros, à existência de discordâncias entre a Secretaria do Planejamento (inicialmente responsável pela implementação do Orçamento Participativo, “ainda com a hegemonia das concepções tradicionais”)
e a Secretaria da Fazenda. Havia, bem como à insatisfação por parte dos setores responsáveis pela relação entre
Governo e movimentos populares, que sentiam-se enfraquecidos na tarefa de efetivar a experiência do Orçamento Participativo.
Tais problemas levaram a uma alteração na estrutura
organizacional da prefeitura: a responsabilidade pela elaboração do orçamento foi retirada da Secretaria de Planejamento e deslocada para o Gabinete de Planejamento
da Prefeitura (Gaplan) e para a Coordenação das Relações com a Comunidade (CRC), ambos vinculados diretamente ao Gabinete do Prefeito. Criaram-se, então, “condições políticas e administrativas para avançar na
discussão sobre concepção de planejamento, hierarquia
de prioridades e estratégias de governo” (Orçamento Participativo, 1995:20). Dessa forma, “O Orçamento Participativo adquiriu maior visibilidade para a sociedade e
para o interior do próprio Governo, respaldado diretamente
na autoridade do Prefeito” (Augustin, 1994:54).
Se, por um lado, tal reestruturação contribuiu para o
melhor funcionamento do Orçamento Participativo, por
outro, devem ser consideradas também as possíveis conseqüências para a autonomia do movimento popular, tendo em vista a proximidade com o Gabinete do Prefeito.2
Em relação a essas dificuldades, deve-se mencionar que
a chamada administração popular inicia a implementação
de um instrumento de participação direta da população,
sem definir uma política em termos de sua proposta, de
TABELA 1
Investimentos na Despesa Total da
Administração Centralizada(1)
Porto Alegre – 1989-95
Anos
1989
1990
1991
1992
1993
1994
1995
Proporção dos Investimentos (%)
3,2
10,0
16,3
17,0
9,7
15,0
13,4
Fonte: Prefeitura Municipal de Porto Alegre, Secretaria Municipal da Fazenda.
(1) Dados referentes ao orçamento.
1989, ao assumir a prefeitura, a administração contava
com apenas 3,2% do orçamento para investimentos. O
baixo patamar desse percentual colocava em risco a pretensão de sustentar uma estratégia de intervenção popular e deveria ser, portanto, revertido.
A administração partiu então para uma política de recuperação financeira com base na reforma tributária, orientada pelo princípio de justiça fiscal. O foco dessa política
foi a alteração de alíquotas, introduzindo a progressividade no pagamento das taxas do Imposto Territorial Urbano (IPTU), a atualização de outras taxas municipais –
como a coleta de lixo e a indexação mensal de tributos
anteriormente pagos em parcelas fixas –, bem como o aumento da eficiência da fiscalização tributária. Nos anos
seguintes, a prefeitura conseguiu colher os frutos do saneamento financeiro empreendido.1 Somente com a alteração da alíquota do IPTU, houve um crescimento de sua
receita de 132%.
Entretanto, os problemas surgidos na operacionalização do Orçamento Participativo não se devem apenas às
dificuldades econômico-financeiras que atingiam a prefeitura. Segundo avaliações credenciadas, a experiência
do primeiro ano de funcionamento do Orçamento Participativo mostrou-se frustrante: “muito pouco do plano de
obras foi realizado. Por exemplo, dos 42km de pavimentação comunitária previstos nenhum foi completado naquele ano” (Augustin, 1994:53; grifado no original). Tarso
Genro refere-se ao ano de 1990 como representativo de
“uma queda trágica” na experiência do Orçamento Participativo (Genro, 1992:42). Segundo depoimento de
liderança da União de Vilas da Grande Cruzeiro, zona
sul de Porto Alegre, “as obras planejadas não aconteceram, a coisa nesse aspecto piorou...”(Prates e Pereira,
1992:28).
Tais problemas teriam sido gerados por “uma série de
desencontros internos à Administração... e à própria inex-
TABELA 2
Participação do IPTU na Composição da Receita da Prefeitura
Porto Alegre – 1989-92
Anos
IPTU
1989
1990
1991
1992
1993
1994
1995
8,74
6,34
13.77
15,93
12,90
11,71
12,52
Fonte: Prefeitura Municipal de Porto Alegre, Secretaria Municipal da Fazenda.
134
GESTÃO PÚBLICA E PARTICIPAÇÃO: A EXPERIÊNCIA DO ORÇAMENTO...
seus objetivos, das possíveis alternativas de participação
e, principalmente, sem definir sua posição em face da relação classes populares e demais segmentos sociais. Esse
último aspecto constitui-se em permanente dilema para
as chamadas administrações populares, já que impõe a resposta à questão: qual é a natureza do governo? Trata-se
de um governo dos e para os trabalhadores, ou um governo que representa os trabalhadores e que governa a cidade
no interesse de toda a sociedade? A avaliação sobre o grau
de democracia alcançado depende da resposta a essa
questão. Se a proposta for definida em termos de governo para toda a cidade, a restrição de participação
apenas aos setores populares pode excluir amplos segmentos sociais.
No caso em análise, a constituição do processo de participação da sociedade civil verifica-se de forma restrita,
a partir da integração de grupos já mobilizados em movimentos sociais de periferia. Tal critério condicionou a
divisão da cidade nas 16 regiões, conforme anteriormente descrito. O fato de ter partido de uma concepção de
participação social restrita tem implicações.
A proposta que no discurso fundamenta-se na idéia de
ampliação das práticas democráticas através da transformação das relações Estado-sociedade, de fato, limita-se
ao atendimento de reivindicações pontuais de movimentos comunitários de áreas carentes, o que se traduz na realização de obras de necessidade imediata. Conforme opinião insuspeita de um dos responsáveis pelo funcionamento
atual do Orçamento Participativo: “As próprias comunidades aumentam ou reduzem a sua participação de ano
para ano, havendo clara tendência à redução da participação após a conquista das reivindicações mais emergenciais.”
Por outro lado, tal abordagem mantém o risco do corporativismo quanto à conduta do Conselho, o que muitas
vezes se expressa pela preocupação restrita à “minha rua”,
ao “meu bairro”, ao “meu grupo”, deixando de lado problemas mais gerais da cidade e do país. Como afirma
Bobbio, “a dimensão do grupo não pode deixar de corresponder à dimensão dos problemas: os problemas que
competem ao comitê de bairro não podem ser, não digo
os grandes problemas nacionais, mas nem mesmo os problemas gerais da cidade” (Bobbio, 1987:70).
A atual administração buscou superar esse tipo de problema através de iniciativas como o projeto denominado
Cidade Constituinte (1993), o qual propunha-se a discutir, com amplos setores da população, os rumos de longo
prazo para o município. Outra iniciativa no sentido de
ampliar a abrangência de atuação do Orçamento Participativo diz respeito à sua intervenção na área de gastos
públicos compulsórios, como o Gasto com Pessoal (cerca de 62% do orçamento). Para tanto, foi constituída uma
135
comissão paritária formada pelo Sindicato dos Municipários, pelo Conselho do Orçamento Participativo e pela
administração, tendo em vista definir a política de pessoal e a política salarial do município, em relação a funcionários e vereadores.
Outro aspecto que está sendo considerado refere-se ao
fato de que os recursos públicos estaduais venham também a ser objeto de discussão, a partir da utilização de
espaços existentes como as emendas populares e os
Conselhos Regionais de Desenvolvimento, previstos
pela Constituição Estadual e que poderiam intervir na
definição quanto à captação e à distribuição de recursos públicos.
Na verdade, ao apontar-se a abrangência restrita do Orçamento Participativo em Porto Alegre, bem como o
imediatismo das demandas dos setores que dele participam, devem se ser considerados a extrema desigualdade da sociedade brasileira e, em conseqüência, o
contexto de carências e de exclusão em que vivem os
setores populares.
Outra questão a ser referida nesta apreciação diz respeito às relações do Conselho do Orçamento Participativo e da Câmara Municipal, a qual detém atribuições relativas à discussão, votação e aprovação do orçamento
municipal.3 Como bem destaca Daniel (1994), torna-se
necessário evitar que as tarefas do Conselho sobreponhamse às competências da Câmara, especialmente no momento
em que a consolidação do sistema democrático exige o
fortalecimento do poder Legislativo em face do Executivo. No caso de Porto Alegre, o Orçamento Participativo
não está regulamentado por lei e, segundo Augustin
(1994), a prefeitura encontraria forte resistência da Câmara para fazê-lo, já que a consolidação do Orçamento
Participativo constituir-se-ia “em ameaça aos agentes
políticos tradicionais”.
De fato, a experiência do Orçamento Participativo,
abrindo canais de comunicação entre a administração e a
população, provocou um esvaziamento do papel desempenhado por alguns vereadores de agenciadores de clientelas junto ao Poder Público, atuando através do encaminhamento de reivindicações, acompanhamento de
processos e outras formas de exercício de influência e tutelagem. Segundo Fedozzi, tal resultado justifica o clima de confronto (“às vezes quase ‘físicos’”) crescente entre
“grande parte dos Vereadores e setores dos movimentos
comunitários” (Fedozzi, 1996:245).
Entretanto, a polêmica sobre o Orçamento Participativo estende-se também a setores no interior do próprio Partido dos Trabalhadores e refere-se a divergências sobre a
questão da legalização daquela experiência.
A administração atual (ao contrário da anterior) opõese à sua legalização, sob o argumento de que a relevância
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 10(3) 1996
de tal experiência estaria no seu auto-regramento, na ação
espontânea direta, não delegada e “cujas regras forjaramse na ação conjunta do movimento e da administração
pública. Legalizá-lo seria subordiná-lo a uma maioria
hostil da Câmara de Vereadores, aprisioná-lo em regras
demandando disputas e querelas judiciais, quebrando a
espontaneidade e sua renovação anual que lhe dá uma
saudável e constante tensão” (Pont, s/d:4).
Os que discordam dessa posição argumentam que a
manutenção da espontaneidade poderia, ao contrário, representar um risco de criar distorções próximas às práticas patrimonialistas.
Quanto aos movimentos populares, suas reações parecem responder às influências do poder municipal: ao final da primeira administração houve mobilização dos
movimentos comunitários em favor da legalização; hoje,
no entanto, há adesão dos movimentos à posição contrária da administração (Fedozzi, 1996:290).4
cas, que dizem respeito a demandas específicas de necessidades básicas de populações carentes. Não respondem,
portanto, a questões fundamentais e cujas respostas exigem um maior esforço de abstração. Uma dessas questões deveria inquirir sobre razões que explicassem um suposto melhor desempenho do Orçamento Participativo em
face do desempenho da Câmara de Vereadores. Uma possível resposta poderia considerar a condição político-social de seus membros: o fato de não serem políticos profissionais, de serem pessoas de origem social humilde,5
sendo seus representantes eleitos a cada ano, com mandato revogável. Se argumentos desse tipo viessem a ser
aceitos, seríamos obrigados a reconhecer uma suposta
superioridade da moralidade popular, o que não se sustentaria como explicação. Além disso, sob tal argumento, colocar-se-ia em questão o próprio valor das instituições políticas modernas, representadas pelos partidos, pela
organização em função de idéias e não de simples necessidades.
Qualquer avaliação exige, portanto, um nível mais
abstrato de considerações e, principalmente, o abandono
da dimensão da satisfação das necessidades básicas.
Nesse sentido, caberia retomar a questão da cidadania
– freqüentemente invocada a partir de um argumento virtuoso. Numa abordagem mais complexa, estudos têm
mostrado que o conceito de cidadania contém, hoje, um
claro dilema: a questão da responsabilidade cívica e da
igualdade choca-se com o individualismo dominante das
sociedades pós-industriais, dominadas pelo consumerismo
hedonista. Neste sentido, talvez fosse relevante considerar de que forma os interesses individuais podem ser satisfeitos na arena social e, da mesma forma, de que maneira as responsabilidades sociais mantêm-se na vida
privada.
Essas considerações não têm outro objetivo senão o
de manter uma postura indagadora e crítica, afastada,
portanto, das disputas políticas imediatas, que se expressam em otimismo ingênuo ou oposição irresponsável, frente a experiências inovadoras.
CONCLUSÕES
O Orçamento Participativo constitui-se um exemplo de
importantes inovações para a administração pública brasileira, como, por exemplo, a instituição da transparência
na gestão dos recursos públicos e, em conseqüência, o
abandono de práticas clientelísticas, responsáveis pelo
atraso político-social da sociedade. Rompe, também, com
a visão estatista-assistencialista que caracteriza a concepção do Estado do Bem-Estar, rejeitando, ao mesmo tempo, a tese neoliberal do Estado mínimo. Ao contrário, torna
o Estado público no sentido de permitir formas diretas de
participação da população.
Igualmente relevante nesse processo tem sido a proposta de inversão de prioridades, que favorece o atendimento às demandas de populações mais carentes. Nesse
processo, cabe destacar o papel importante desempenhado pela população na definição de suas próprias prioridades. Ao assumir o governo em 1989, a administração tinha como prioridade o transporte coletivo – o que
determinou a intervenção da prefeitura nas empresas privadas de transporte coletivo logo no início da gestão.
Chamada a manifestar-se através do Orçamento Participativo, não foi essa a escolha da população, sendo que
suas prioridades têm sido saneamento, pavimentação e
regularização fundiária. Nesse aspecto, cabe destacar que
a ênfase no saneamento (também manifesta, por exemplo,
pela população de Belo Horizonte) constitui-se contribuição importante da participação popular, já que essa é uma
área pouco atraente aos políticos profissionais (Azevedo
e Avritzer, 1994:22).
No entanto, o otimismo na avaliação desse instrumento de democratização está baseado em evidências empíri-
NOTAS
Esta é uma versão revisada do texto apresentado no workshop da Sociedade Brasileira de Sociologia, realizado durante a 48 a. Reunião Anual da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, ocorrida em São Paulo, de 07 a 12 de julho
de 1996.
1. Deve-se considerar que a situação financeira das prefeituras, em geral, foi beneficiada com a reforma tributária da Constituição de 1988, que fez retornar aos
municípios a arrecadação tributária referente a impostos federais e municipais.
2. Nesse sentido, é importante distinguir a esfera do Estado da esfera da sociedade. Para tanto, os conselhos populares deveriam constituir-se com independência em face do Estado, conquistando espaços próprios por sua legitimidade
social, disputando em igualdade de condições com outras instituições ou articulações de cidadãos (Daniel, 1994:27).
136
GESTÃO PÚBLICA E PARTICIPAÇÃO: A EXPERIÊNCIA DO ORÇAMENTO...
3. A Constituição de 1988 restabeleceu o direito da Câmara de propor emendas de
despesa, desde que indicada a previsão de recursos. O Executivo detém a competência de elaboração do orçamento, respeitando as despesas orçamentárias obrigatórias, as quais, no caso da Lei Orgânica de Porto Alegre, são de 13% da receita
de impostos para a área de saúde, 30% da despesa para a educação e 65% (teto
máximo) das receitas correntes para gastos com pessoal.
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CASTELLS, M. Cidade, democracia e socialismo. Rio de Janeiro, Paz e Terra,
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4. A Lei Orgânica Municipal, de 1990, garante a participação da comunidade na
elaboração do orçamento anual.
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5. Dados relativos à população participante do processo do Orçamento Participativo indicam que a mesma possui, em sua maioria, renda de até cinco
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SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 10(3) 1996
UMA ESTRATÉGIA ECONÔMICA
PARA O GRANDE ABC
CELSO DANIEL
Professor de Administração Pública da FGV-SP. Foi prefeito de Santo André. É deputado federal por São Paulo
A
inda é expressivo, entre lideranças e acadêmicos,
o número dos que só têm olhos para as "grandes
questões" nacionais e internacionais. Ao considerarem o quotidiano e a localidade apenas reflexos de
uma grande lógica – ou âmbitos de manifestação pouco
relevantes da vida social – contribuem, na verdade, para
deixá-los nas mãos do bairrismo e do atraso. Crescem,
todavia, em particular no Grande ABC, as vozes dos que
apostam na eficácia de uma ação regional que, ao contrário de dar as costas para os grandes temas, aproveite de
suas tendências as melhores oportunidades.
Desde logo, convém deixar bastante claro: não se trata
de cair no “small is beautifull” (o negócio é ser pequeno), nem tampouco de negar que a realidade local seja
fortemente condicionada pelo que ocorre nos níveis internacional e nacional, mas sim de reafirmar que, dados
estes últimos, a sorte da localidade será determinada pela
especificidade da dinâmica local. De mais a mais, modelos de ação locais podem, perfeitamente, trazer em seu
bojo elementos nucleares para soluções mais gerais, servindo como referências concretas para a reinvenção de
um modelo de desenvolvimento nacional.
É com certeza bastante difícil romper a letargia e a
passividade predominantes na História do Grande ABC
com referência às ações voltadas ao desenvolvimento com
emprego, na medida em que se trata de um traço cultural,
adquirido como resultado do fato de que as decisões mais
importantes, a esse respeito, vinham sendo tomadas por
agentes não enraizados na vida regional (grande empresa
e governos estadual e federal). Num momento em que tais
decisões não favorecem mais a região, é fundamental estabelecer os eixos centrais de uma estratégia regional eficaz, articulados a partir de duas dimensões simultâneas:
a constituição de uma vontade coletiva regional e a elaboração e implementação de um plano estratégico de desenvolvimento sustentado com emprego para o Grande
ABC.
A ampliação da consciência regional se expressa, por
exemplo, na existência do Fórum da Cidadania e do Consórcio Intermunicipal, ambas entidades plurais de alcance regional, que envolvem, de um lado, representantes das
classes médias, dos trabalhadores e do pequeno e médio
empresariado (excepcionalmente, também da grande
empresa) e, de outro, prefeitos e vereadores.
A constituição de uma vontade coletiva regional, partindo do que já se acumulou, significa um salto de qualidade indispensável para o enfrentamento dos desafios
postos pela economia regional, expresso na criação de um
arranjo institucional de novo tipo, fruto de uma coalizão
ampla que integre, num mesmo espaço público não puramente estatal, os poderes públicos e a sociedade civil locais.
A vocação de uma vontade pública única, capaz de falar
pelo Grande ABC com legitimidade, remete a dois aspectos complementares: em primeiro lugar, a condensação
de um poder regional com força suficiente para interagir
positivamente com a grande empresa e com os governos
estadual e federal; em segundo lugar, a geração de unidade para a elaboração e colocação em prática de um plano
estratégico regional.
Importa destacar que a correta configuração de um
arranjo institucional regional deve partir de uma avaliação crítica da experiência acumulada das regiões metropolitanas. A reconhecida ineficácia destas acarreta um
conjunto de aspectos que cabe recordar: centralização do
poder em torno do governo estadual (em detrimento dos
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UMA ESTRATÉGIA ECONÔMICA PARA O GRANDE ABC
municípios); ausência de participação da sociedade civil;
e rigidez da estrutura institucional (em face da qual o
Grande ABC desaparece, com suas peculiaridades). Infelizmente, a nova legislação, proveniente da Constituição
de 1988, incorre nos mesmos vícios, razão pela qual é
necessário inovar, se o que se deseja é uma ação estratégica regional dotada de eficácia.
Nesse sentido, ao lado das características já apontadas
(espaço público integrando os poderes públicos e a sociedade civil da região), um arranjo institucional de novo
tipo deve ser flexível o suficiente para dar conta de problemáticas diferenciadas, que requerem o concurso de
distintos níveis espaciais e de poder. Isto poderia ser alcançado a partir da construção de um núcleo central (composto a partir do Fórum da Cidadania e do Consórcio lntermunicipal), em torno do qual arranjos versáteis se
encarregassem de abordar problemas específicos, demandando variados recortes institucionais. Desse modo, alguns assuntos exigiriam a participação da região em conjunto com a prefeitura da capital ou com o governo de
Estado, enquanto outros contariam, talvez, com a presença apenas de parte dos municípios do Grande ABC.
Um planejamento estratégico do Grande ABC dotado
de eficácia (e não mero estudo técnico encomendado a
uma consultoria) exige, antes de mais nada, um método
adequado, composto em torno da articulação de um triângulo básico, cujos vértices são o conjunto de propostas
para a região, as condições de governabilidade (isto é, de
correlação de forças favorável à coalizão responsável pela
implementação das propostas) e a capacidade técnica,
política e gerencial necessária à colocação em prática
dessas propostas. Obter o equilíbrio de tal triângulo –
propostas regionais, governabilidade e capacidade para
implementá-las – é crucial para fazer desse planejamento
uma verdadeira estratégia de ação.
Já se disse que o segredo para a solução de um problema consiste em enunciar corretamente tal problema. Em
outras palavras, a eficácia de um plano regional é função,
também, da abordagem adequada dos problemas da economia do Grande ABC. Convém, nesse sentido, precisar
três pontos relevantes: sua dinâmica econômica presente, a relação entre o pequeno e o grande empreendimento
e os fatores relativos à competitividade regional.
A economia do Grande ABC está deixando de ser industrial para se transformar em uma economia baseada
no terciário? Ao invés de tentar responder a essa indagação, é muito mais interessante reformulá-la, uma vez que
não dá conta de um elemento essencial, ou seja, da interação dinâmica entre os setores industrial e de serviços
no presente momento.
A visível expansão do terciário demanda uma melhor
qualificação de seu perfil e dos determinantes de seu cres-
cimento. O perfil do setor terciário é muito pouco conhecido, posto que não há estudos suficientemente desagregados a respeito de sua composição interna, que, por natureza, é bastante heterogênea: comércio atacadista e
varejista (além disso, qual a relação entre o pequeno e o
grande estabelecimento varejista?), serviços pessoais,
serviços financeiros, serviços de apoio à produção industrial, etc.
Em linhas gerais, o crescimento do terciário depende
do tamanho do mercado. Este, por sua vez, deve-se à da
renda per capita e à sua amplitude espacial. Assim, dada
a renda per capita, a expansão do terciário pode ser obtida a partir da ampliação de seu raio de abrangência espacial, incorporando novas “zonas tributárias” (no caso do
Grande ABC, por exemplo, a integração de áreas da periferia de São Paulo, ou a exportação de serviços culturais
para a capital). Na situação específica da região (que não
apresenta vocação para o turismo), o campo para esse tipo
de crescimento do terciário apresenta claros limites.
Por outro lado, também dada a amplitude espacial, a
expansão do comércio e dos serviços depende da renda
per capita. Com isso, não pode restar qualquer dúvida a
respeito do papel central do emprego e da renda industriais
para a dinâmica do terciário regional. Por isso, o futuro
do comércio e dos serviços (sejam pessoais, financeiros
ou produtivos) está intimamente ligado ao destino da indústria regional, em particular o complexo automotivo (em
face de seu potencial de geração de emprego direto e indireto).
A DUPLA CONVERGÊNCIA
Freqüentemente retorna ao debate uma contraposição
entre os defensores da grande empresa e os partidários da
pequena empresa, quanto às questões do desenvolvimento e emprego. Tendências recentes, ligadas às mudanças tecnológicas, às relações de trabalho e ao comportamento do
mercado, evidenciam a emergência de articulações de nova
qualidade entre o pequeno e o grande capital industrial.
Uma série de estudos empíricos, envolvendo regiões
de várias partes do mundo e publicados na revista Economy
and Society, apontam para três direções principais. Em
primeiro lugar, há um crescimento rápido e bem-sucedido de distritos industriais baseados em redes interdependentes de pequenas empresas, que apresentam respostas
ágeis e inovadoras frente aos requerimentos do mercado,
sustentadas numa combinação de cooperação e conflito
entre as firmas individuais.
Em segundo lugar, a busca de produtos mais especializados e processos de produção mais flexíveis tem levado grandes multinacionais a descentralizar sua operação e estreitar
laços com fornecedores, em geral espacialmente próximos
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SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 10(3) 1996
em função da facilidade de contatos, interações quotidianas
e possibilidade de redução do custo dos estoques.
Esses desenvolvimentos – procura sintetizar Zeitlin
(1989) – “vêm produzindo uma dupla convergência das
estruturas de grandes e pequenas firmas, na medida em
que pequenas firmas nos distritos industriais constroem
formas mais amplas de serviços comuns, freqüentemente inspirados pelos modelos das grandes firmas, enquanto as próprias grandes firmas crescentemente procuram
recriar entre suas subsidiárias e subcontratadas as relações de colaboração características dos distritos industriais. A tendência final é o papel crescentemente
ativo dos governos locais na promoção do emprego, no
fornecimento de serviços industriais e na orquestração
de desenvolvimento econômico regional, em parte como
resposta às duas primeiras tendências, em parte em função da eficácia declinante da gestão macroeconômica
e da crescente retração do Estado de Bem-Estar nacional em muitos países".
As referidas experiências internacionais, em sua diversidade, sugerem ainda que o sucesso das estratégias locais requer um grau elevado de confiança mútua e de consenso social entre os vários setores envolvidos (governos,
empresas e sindicatos de trabalhadores).
Tudo indica que tais orientações são bastante apropriadas para o setor industrial do Grande ABC, exigindo a
constituição de uma coalizão ampla que, partindo dos
interesses conflitantes, permita produzir consensos relevantes entre os atores públicos e privados envolvidos.
Esses consensos devem basear-se, de um lado, no estreitamento das relações da grande empresa com fornecedores locais e nas negociações com seus trabalhadores e, de
outro, na criação de estruturas cooperativas de serviços
comuns para que a pequena empresa tenha acesso a financiamento, informações e economias de escala, capacitando-a para respostas flexíveis e inovadoras às exigências mutáveis dos mercados local, nacional e internacional.
Convém observar, nesse sentido, um desdobramento
de importância no que tange à política industrial: o interesse do conjunto da região aponta para a exigência de
uma política solidária no âmbito das cadeias produtivas
locais. Tal é o caso do complexo automotivo, no qual é
preciso compatibilizar os estímulos à produção de veículos, bens de capital, partes e peças. Propiciar vantagens
às montadoras em detrimento de suas fornecedoras locais
– como vem ocorrendo pelas medidas do governo federal
– corresponde a “cobrir um santo descobrindo outro”, pois
desestrutura uma parcela da cadeia produtiva e produz
desemprego regional irreversível, que se agrega ao desemprego tecnológico.
As transformações tecnológicas e gerenciais, num quadro de manutenção da jornada de trabalho e de estagna-
ção ou crescimento lento da produção, vêm acarretando
um aumento no número de trabalhadores desempregados,
excluídos do setor industrial moderno. Parte destes pode
encontrar emprego – provavelmente de menor qualidade
– no setor terciário em expansão. Viabilizar alternativas
para os restantes é condição necessária para manter sua
qualidade de vida e, mais do que isso, para que a região
não perca seu valioso patrimônio de força-de-trabalho
qualificada.
Portanto, é fundamental, por um lado, garantir, educação e capacitação profissional capazes de permitir a reconversão e a atualização desses trabalhadores e, por outro, implementar políticas públicas que estimulem a
criação de pequenas empresas e cooperativas autogestionárias de trabalhadores, agregando às habilidades já existentes mecanismos de capacitação gerencial e financiamento de atividades que explorem os nichos de mercado
não ocupados na região do Grande ABC.
CUSTOS, BENEFÍCIOS E COMPETITIVIDADE
A economia urbana ensina que uma cidade, após atingir certo tamanho, passa a apresentar efeitos úteis (vantagens econômicas) associados à aglomeração urbana, isto
é, à proximidade espacial de atividades e pessoas. Porém,
na medida em que a cidade continua a crescer, movida
por tais economias de aglomeração, atinge-se um patamar a partir do qual passam a se manifestar determinadas
desvantagens econômicas, denominadas deseconomias de
aglomeração.
Tanto as economias quanto as deseconomias de aglomeração compõem-se de custos e benefícios. As primeiras envolvem, por exemplo, redução de custos de transportes e comunicação (fruto da proximidade espacial) e
criação de benefícios como porte de mercado (que viabiliza novas atividades), oferta de mão-de-obra em qualidade e quantidade ou melhoria de qualidade de vida (acesso dos moradores a novos bens e serviços). Já as
deseconomias, além de anular certos benefícios – a exemplo da qualidade de vida –, incluem a escassez de terrenos, a elevação de seus preços, congestionamentos, poluição, enchentes, etc.
Convém recordar, neste ponto, que a perda relativa de
participação do Grande ABC nas economias paulista e
brasileira remonta à década de 70 (conforme mostram os
dados do IBGE), derivada justamente da ocorrência de
algumas deseconomias de aglomeração (a mais importante das quais parece ter sido a escassez e o alto custo dos terrenos). Tal tendência, por conseguinte, inicia-se antes da
emergência das grandes greves que originaram o novo sindicalismo brasileiro a partir da região (algo que os críticos
desse sindicalismo preferem convenientemente omitir).
140
UMA ESTRATÉGIA ECONÔMICA PARA O GRANDE ABC
Portanto, um dos fatores que explica o crescimento de
uma cidade ou, ao contrário, a reversão de tal tendência, é
o balanço, em dado momento, entre as economias e deseconomias de aglomeração, do qual deriva uma composição de custos e benefícios que tende a atrair atividades e
pessoas ou a repeli-los. Na perspectiva de uma empresa
ou indivíduo, a decisão a respeito de sua localização espacial é função – de modo análogo – de sua percepção a propósito das vantagens e desvantagens locacionais apresentadas pelas cidades (suas economias e deseconomias de
aglomeração) e pela sua posição e função no sistema urbano, cujo resultado é maior ou menor acessibilidade a insumos produtivos ou a mercado consumidor. Aqui também,
por conseguinte, um balanço entre custos e benefícios.
Dados certos requisitos locacionais, a atratividade de
uma aglomeração urbana depende do balanço entre vantagens e desvantagens que ela apresenta, em termos de
custos e benefícios. Por isso, o uso da expressão "Custo
ABC" para designar as condições de competitividade da
região é rigorosamente equivocado, por captar apenas um
lado das referidas vantagens e desvantagens (o dos custos), omitindo os benefícios.
Tal engano expressa uma fragilidade conceitual que não
é, contudo, inocente: a mistificação da realidade – através
do realce dos custos e da omissão dos benefícios – serve ao
propósito de justificar, de um prisma unilateral, toda redução de custos salariais e tributários inspirada nas teses neoliberais da liberdade de mercado e do Estado mínimo.
É indispensável, a bem do rigor conceitual, abordar os
fatores que definem a maior ou a menor atratividade de
uma região urbana a partir de uma visão sistêmica, e não
parcial. A noção de competitividade sistêmica regional,
que associa seus custos aos benefícios, responde de maneira adequada a essa exigência. Nessas condições, passar do diagnóstico – a constatação de uma tendência à
perda de atratividade na indústria e a ganhos no terciário
– para a proposição de ações, visando a melhoria das condições de competitividade sistêmica, supõe uma estratégia orientada, simultaneamente, para a redução dos custos regionais e para o aproveitamento do potencial de
benefícios econômicos que a região possa apresentar.
Os requisitos locacionais para a instalação de empresas e a geração de empregos variam no espaço e no tempo. Em termos espaciais, eles são condicionados à posição e à função da região no sistema urbano, remetendo à
sua dinâmica econômica: os requisitos de localização
numa aglomeração urbana com vocação industrial distinguem-se daqueles onde predominem atividades de turismo, comerciais, etc.
Do ponto de vista temporal, os requisitos locacionais
variam de acordo com fatores como o padrão tecnológico e as relações de trabalho prevalecentes. Assim, as ne-
cessidades de localização industrial durante o período nacional-desenvolvimentista – marcado pela produção em
massa (padronizada) a partir das tecnologias oriundas da
2a Revolução Industrial e da divisão de trabalho taylorista
– diferem daquelas postas pelas tendências recentes, em
que se destaca a produção pós-fordista, voltada ao atendimento de demandas diferenciadas no mercado, articulada
à nova revolução tecnológica (na informática, na biotecnologia, etc.) e a modelos de gestão que redefinem relações com fornecedores e requerem uma força-de-trabalho
mais qualificada e versátil.
Nesses termos, portanto, é fundamental o acesso à mãode-obra com o perfil de qualificação exigido. Do mesmo
modo, a proximidade espacial de fornecedores (alternativa
ao fornecimento "global") ou a existência de estruturas
cooperativas que – ao oferecer serviços administrativos,
financeiros ou mercadológicos – viabilizem o acesso da
pequena empresa a mercados mais amplos, constituem
vantagens locacionais de novo tipo. Isso não significa, é
claro, que todos os requisitos de localização se alterem
de uma hora para outra. Deseconomias de aglomeração,
como congestionamentos ou escassez e alto custo de
terrenos, por exemplo, mantêm sua relevância. O essencial,
em face dessas continuidades, é não perder de vista as
importantes transformações em curso.
O exame sistêmico dos custos e benefícios relativos
ao grau de atratividade econômica do Grande ABC coloca em relevo a existência de contradições entre eles. Assim, a redução de custos salariais (tida por muitos como
condição para a competitividade regional) conflita com a
preservação e a expansão do mercado regional, fonte do
dinamismo do terciário, que demanda elevação do nível
de renda e emprego e, portanto, do poder de compra dos
assalariados da indústria.
De modo análogo, a priorização exclusiva das montadoras de veículos – expressa pela redução dos custos de
importação de insumos e bens de capital, por meio de alíquotas de importação muito baixas, valorização cambial
ou juros altos – contradiz uma política industrial voltada
à sustentação de todo o complexo automotivo (e, por conseguinte, das montadoras, bem como de seus fornecedores locais, responsáveis por parcela importante da renda
e do emprego gerados). A diminuição dos custos tributários locais (com vistas à atração de empresas e ao estímulo à competitividade), por sua vez, conflita com a manutenção de um nível de investimento público compatível
com a produção de vantagens locacionais de relevo, também responsáveis pela competitividade (educação, transporte, renovação de centros comerciais, apoio à pequena
e à média empresas, etc.).
Em outras palavras, é impossível garantir, simultaneamente, todas as reduções de custos e criação de benefíci-
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SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 10(3) 1996
os capazes de aprimorar as vantagens regionais de localização. Por isso, é necessário efetuar escolhas – ainda que
estas correspondam a soluções de compromisso ante as
contradições existentes.
do da atividade no setor terciário, o que, por seu turno,
produziria nova redução da renda e do emprego.
Ao lado de tal círculo vicioso, haveria também uma
perda em termos da qualidade de vida e outros benefícios
econômicos (capacitação profissional, combate a congestionamentos e enchentes, etc.), fruto da diminuição dos
recursos orçamentários. Em outras palavras, o Grande ABC
seria composto por limitadas "ilhas de excelência" cercadas por um amplo mar de miséria e exclusão. Do ponto de
vista macroeconômico, a generalização desse modelo aprofundaria a guerra predatória entre municípios e regiões,
acarretando apenas um jogo de soma zero (isto é, o que
alguns ganhassem corresponderia à perda dos outros).
Importa acrescentar, afinal, que as novas tendências conservadoras, no Brasil e no mundo, agregam ao individualismo econômico um corte cultural de rejeição aos não-nativos, isto é, aos imigrantes pobres, jogando água no moinho
da exclusão social. Nesse caso, a construção, no imaginário
social, da identidade local, é posta a serviço da idéia (negativa) de que os males da localidade derivam da presença indevida dos não-locais (imigrantes, nordestinos, etc.).
A alternativa à crença irrestrita na liberdade de mercado aposta, por contraste, na valorização dos direitos de
cidadania. Ao invés da soberania do mercado, trata-se de
colocar as relações econômicas a serviço de um modelo
de desenvolvimento regional que modernize a economia
do Grande ABC, defendendo o emprego e a qualidade de
vida. No lugar da "mão invisível", a regulação social do
mercado alicerçada em novos espaços públicos constituídos com base em uma coalizão regional ampla e plural.
Resgata-se, nessa perspectiva, a noção de competitividade sistêmica regional, considerando iniciativas de redução de custos, mas priorizando a busca dos benefícios
potenciais que a região oferece. Ou seja, diante de conflitos entre custos e benefícios, trata-se, como regra geral,
de optar pelos últimos.
Em termos gerais, tal estratégia persegue: o fortalecimento dos fornecedores locais da grande empresa (em
sintonia com uma política industrial voltada à preservação do complexo industrial); a participação ativa dos sindicatos em processos de negociação de salários, emprego, jornada de trabalho, modernização tecnológica e
democratização das relações de trabalho; a melhoria da
qualidade de vida; o combate a deseconomias de aglomeração (congestionamentos, enchentes); e a ações ligadas à busca de benefícios regionais (educação para o trabalho, apoio à pequena empresa e ao setor informal),
pressupondo capacidade de investimento público e, portanto, os correspondentes recursos tributários.
Um modelo de desenvolvimento nesses moldes é capaz de produzir um círculo virtuoso na economia regional, pois a sustentação da renda e do emprego industriais, ao
MODELOS DE DESENVOLVIMENTO
Frente aos condicionamentos mais amplos, ditados pela
globalização dos mercados e por inovações tecnológicas
ou de gestão, abre-se um campo de possibilidades que torna não apenas viável, mas necessária uma opção entre
rumos possíveis. Assim como, no plano nacional, o esgotamento da estratégia desenvolvimentista exige a implementação de outra, a partir do debate plural entre diferentes caminhos (pois não é verdade que haja apenas o
neoliberal), no nível regional a superação do tradicional
imobilismo dos atores públicos e privados (condição para
escapar do sucateamento da economia do Grande ABC)
torna inescapável a adoção de um modelo de desenvolvimento regional calcado em ações inovadoras.
Tendo em vista a existência de contradições entre determinados custos e benefícios econômicos da região, a
necessidade de escolhas torna clara a possibilidade de
optar por modelos de desenvolvimento distintos, sustentados em princípios e valores específicos. Uma das alternativas, que pode ser chamada de "solução de mercado",
funda-se no valor da liberdade econômica. A outra, que
passa pela constituição de uma coalizão regional ampla e
pluralista, ancora-se no valor da cidadania.
Um modelo de desenvolvimento regional orientado por
"soluções de mercado" busca inspiração na idéia de "Custo
ABC" e, portanto, na defesa de medidas que permitam
reduzir os custos regionais, omitindo ou tornando secundários os benefícios potenciais do Grande ABC. Nessa
linha, seria imprescindível a redução dos custos salariais
e tributários, através da neutralização das formas clássicas de "intervenção" sobre o mercado (e, portanto, sobre
a liberdade econômica): os sindicatos e o Estado – no caso,
os governos locais.
Um componente importante de tal modelo consiste na
crença de que, para manter a grande empresa (sobretudo
as montadoras) na região, seria preciso concentrar esforços, antes de tudo, na redução de seus custos, o que, além
dos já citados, significaria baratear o fornecimento global de insumos e bens de capital. Não é difícil antever os
resultados de uma estratégia que jogasse todas as suas fichas na "modernização" das montadoras através da redução dos custos regionais: permanência da grande empresa, com queda drástica de fornecedores locais, do número
de trabalhadores, de seus salários e dos tributos locais.
Como resultado da diminuição do nível de renda e emprego do setor industrial, ocorreria um declínio acentua-
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UMA ESTRATÉGIA ECONÔMICA PARA O GRANDE ABC
doviário e ferroviário e ao porto de Santos, todos fora do
âmbito de atuação direta da região. O essencial, neste caso,
é a constituição de uma coalizão regional com força política para negociar com os governos estadual e federal
medidas concernentes ao interesse local.
As deseconomias de aglomeração incluem congestionamentos, enchentes e oferta escassa e alto preço da terra.
No campo do mercado imobiliário, não há como reverter
radicalmente a situação, dados os investimentos já efetuados em infra-estrutura e o nível de ocupação do solo. Apesar disso, alterações na legislação de uso e ocupação do
solo e na própria lei de proteção aos mananciais (respeitada a preservação do meio ambiente) poderiam abrir novas
possibilidades, sobretudo a pequenas empresas. A redução dos custos provocados por enchentes passa por investimento público local e, principalmente, estadual. Já o
controle dos congestionamentos exige, em especial, ações
nas áreas de trânsito (em função de sua elevada relação
benefício-custo) e de transporte coletivo (de modo que a
melhoria de sua qualidade permita substituir o transporte
individual). Intervenções no sistema viário, embora também necessárias, são limitadas (em face do custo proibitivo)
e insuficientes (conforme demonstra a frustrada aposta do
atual governo da capital na abertura de túneis e avenidas).
Um modelo de desenvolvimento que procure avançar
na competitividade sistêmica regional a partir da defesa
do nível de renda e emprego deve se apoiar, centralmente, na obtenção de benefícios econômicos, mais do que
na redução de custos do Grande ABC. A realização de
parte ponderável de tais benefícios, desde logo, depende
da implementação de ações coletivas baseadas na cooperação entre os diversos agentes públicos e privados e da
garantia de um nível adequado de investimento público
local para o financiamento integral ou em parcerias de
um conjunto de ações definidas pela estratégia regional.
O elenco de benefícios econômicos potenciais do Grande ABC é composto por cinco grupos de fatores: a produtividade da força-de-trabalho; os espaços existentes para a complementação da matriz interindustrial regional; o tamanho
do mercado; a configuração de um ambiente empreendedor
em torno dos diferentes tomadores de decisão (empresários,
setor público e sindicatos); e a qualidade de vida.
O mercado de trabalho da região já é, hoje, um valioso
patrimônio, em face de sua quantidade e qualidade. É
preciso, contudo, reconhecer que as novas demandas colocadas pelo processo produtivo exigem um salto qualitativo em termos de capacitação da mão-de-obra, a qual
deve estar familiarizada com as novas tecnologias e modelos de gestão. Isso é condição, inclusive, para a obtenção de aumentos de produtividade compatíveis com a
sustentação do nível de renda e emprego industrial. Para
tanto, o Grande ABC necessita de investimentos expres-
lado do investimento público, constitui um estímulo imprescindível à expansão do setor terciário e, por isso, à geração
de mais renda e emprego no interior do Grande ABC. Tal
círculo virtuoso – expressão de um dinamismo próprio da
região – responde pelo fato de que a eventual generalização
desse modelo para outras localidades teria como produto
macroeconômico um jogo de soma positiva, no qual o que
alguns ganham não representa perda para outros.
Ademais, a ênfase na geração de renda e emprego para
todos (inclusive, portanto, os excluídos) e na melhoria da
qualidade de vida (a partir do investimento social) cria
condições para a elaboração de uma identidade local positiva, de caráter inclusivo, baseada na valorização das
vantagens regionais.
Uma vez definidos os termos desse modelo regional, é
possível explicitar de maneira consistente as diretrizes para
redução de custos e ganhos de benefícios que aperfeiçoem a
atratividade econômica da região.
CUSTOS E BENEFÍCIOS REGIONAIS
São relevantes para a competitividade da região os
custos salarial, tributário, dos fatores logísticos e das deseconomias de aglomeração. Conforme já se apontou antes, a questão do custo da mão-de-obra na região não deve
ser vista de maneira simplista. Por um lado, salários mais
elevados podem perfeitamente ser compensados por maior
produtividade do trabalho e, por outro, altos níveis de
renda e emprego na indústria do Grande ABC constituem
motores de expansão do terciário local. Enfim, o movimento sindical – em função de sua representatividade e
de sua orientação voltada aos desafios do presente e do
futuro – pode ser legitimamente considerado hoje uma
vantagem da região (muito ao contrário do que alguns,
ainda presos ao passado, insistem em divulgar).
Outro tema que exige tratamento coerente é o dos custos tributários específicos do Grande ABC, pois aqui estão em jogo também relevantes benefícios regionais. É
necessário corrigir distorções (por exemplo, convém caminhar para a unificação regional de alíquotas do ISS) e,
inclusive, definir incentivos à atração de investimentos de
modo seletivo (a partir da fixação clara dos setores a serem estimulados e das condições para tal, como metas de
geração de emprego). Porém, ao mesmo tempo, é imprescindível manter a carga tributária local num nível compatível com o investimento público voltado à qualidade de vida
e ao desenvolvimento regional. É claro que, para o adequado retorno a esse investimento, os poderes públicos municipais precisam passar por uma reforma administrativa a fim
de melhorar a eficiência e a qualidade do serviço público.
Dentre os fatores logísticos importantes para o Grande ABC, destacam-se os custos ligados ao transporte ro-
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SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 10(3) 1996
sivos na área de educação voltada ao trabalho, envolvendo diferentes dimensões: ensino básico (inclusive educação de jovens e adultos); capacitação profissional (em
cursos da estrutura formal de ensino ou cursos mais rápidos voltados diretamente a habilidades profissionais, no
ensino médio ou de terceiro grau); capacitação gerencial
(sobretudo para pequenos negócios); pesquisa e desenvolvimento; etc. Daí a importância da Universidade do
ABC, sem prejuízo de ações imediatas envolvendo as instituições de ensino existentes.
Em segundo lugar, a implementação de uma política
regional que localize espaços potenciais de complementação da matriz produtiva do Grande ABC, estabelecendo
estímulos objetivos para investimentos em tais espaços,
pode se constituir numa relevante vantagem locacional,
sobretudo para pequenas e médias empresas, e até para a
modernização do setor informal. Tal diretriz inclui estímulos à implantação de fornecedores locais de bens e serviços às grandes empresas, o aproveitamento de profissionais vítimas de desemprego industrial (estrutural ou
conjuntural), a integração de empresas informais ao mercado formal ou a criação de cooperativas autogestionárias
de trabalhadores. Os estímulos envolvem, por exemplo, o
estabelecimento de estruturas de financiamento, de capacitação (gerencial, de marketing, etc.) ou de oferta, à pequena empresa, de serviços que exigem economias de escala hoje ao alcance apenas da empresa de grande porte.
Em terceiro lugar, a dinâmica da economia regional –
em que se destaca a expansão do terciário – evidencia o
papel de relevo cumprido pelas dimensões do mercado
regional. Sua sustentação, conforme já se asseverou, é
função, em primeira instância, do nível de renda e emprego da indústria local. Seu crescimento, por outro lado,
depende do alargamento das fronteiras espaciais do mercado regional para além do Grande ABC, integrando novas zonas tributárias da periferia de São Paulo, ou mesmo das áreas mais centrais da capital (no caso da
constituição de um pólo cultural de peso na região).
Em quarto lugar, a criação de um verdadeiro ambiente
inovador, calcado na internalização de uma cultura empreendedora permeando os mais diferentes atores locais
– não apenas empresários, mas sindicalistas, governantes, parlamentares, lideranças comunitárias – pode se constituir em benefício econômico regional de monta. Parcela crescente (mesmo que não majoritária) dessas lideranças
tem demonstrado vocação para tal, o que, por si só, evidencia o potencial existente para a criação de uma sinergia positiva fundada no espírito inovador.
Por último, mas não menos importante, os ganhos em
termos de qualidade de vida (derivados da geração de renda
e emprego e dos investimentos públicos sociais) viabilizam
a constituição de uma imagem regional positiva, capaz de
atrair novos empreendedores (empresários e trabalhadores).
Cabe recordar, aqui, a necessidade de um novo arranjo institucional de caráter regional, compatível com a adoção de
ações conjuntas em temas como o meio ambiente (haja vista
a presença dos mananciais da Billings ou a problemática do
lixo urbano), o uso e a ocupação do solo, o transporte coletivo intermunicipal intra-Grande ABC, etc.
CONCLUSÃO: MARKETING REGIONAL
O coroamento de uma estratégia regional, inspirada na
defesa do nível de renda e emprego e materializada em
ações visando redução de custos e, sobretudo, aperfeiçoamento e criação de benefícios econômicos, consiste na
gestação de uma imagem pública positiva do Grande ABC
(seja do ponto de vista do conjunto dos moradores, seja
do ângulo dos formadores de opinião e tomadores de decisão internos e externos à região).
Para tanto, não bastam apenas ações concretas, pois o
que importa, na prática, é a percepção que as pessoas adquiram dessas ações. Nesse sentido, a reversão da imagem econômica dominantemente negativa de hoje, bem
como sua substituição por uma imagem positiva, que destaque as vantagens regionais, passa pela implementação
de um marketing público regional capaz de fortalecer a
identidade positiva da região e, com isso, dar sustentação
às ações integradas de interesse coletivo.
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