O design por não-designers (dnd)
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O design por não-designers (dnd)
UNIVERSIDADE DO ESTADO DE MINAS GERAIS Programa de Pós-graduação em Design María Cristina Ibarra Hernández O DESIGN POR NÃO-DESIGNERS (DND): AS RUAS DE BELO HORIZONTE COMO INSPIRAÇÃO PARA O DESIGN Belo Horizonte 2014 María Cristina Ibarra Hernández O DESIGN POR NÃO-DESIGNERS (DND): AS RUAS DE BELO HORIZONTE COMO INSPIRAÇÃO PARA O DESIGN Dissertação apresentada ao programa de Pós-Graduação em Design da Universidade Estadual de Minas Gerais, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Design. Orientadora: Profa. Dra. Rita A. C. Ribeiro Belo Horizonte 2014 A Frank, Toñita, Hilda P. e Frank A. AGRADECIMENTOS Agradeço enormemente a meu pai, Frank Ibarra Scharberg, por me motivar, escutar e contribuir com suas ideias incondicionalmente cada vez que eu precisei, por sua visão abrangente e questionadora, por todo seu grande amor e por seu incomensurável suporte em todos os aspectos para que eu viesse estudar ao Brasil. A minha mãe, Antônia Hernández, e aos meus irmãos Hilda e Frank, pelo amor, apoio, suporte e incentivo incondicional. Pensar em vocês sempre traz coisas boas. A minha orientadora, Rita Ribeiro, por seu apoio profissional, sua confiança em mim, sua paciência com meu português, sua dedicação, sua aceitação e seu carinho. Sem ela, nada disto seria possível. À CAPES (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior) pela concessão da bolsa durante todo o período de realização deste mestrado. Aos meus colegas do mestrado, especialmente à Lili, que tem sido um grande e importante suporte durante este processo. Ao André por sua amizade e à Aline por seu carinho e hospitalidade. A todos os meus professores, especialmente à Regina Álvares, Marcelina Almeida e Lia Krucken, por seus conselhos, seu carinho e suporte. Aos funcionários da Escola de Design da UEMG, especialmente ao Rodrigo Stenner e ao pessoal da biblioteca por sua amabilidade, disposição e colaboração neste processo. À Mischa, à Choy e a todos os meus amigos pelo apoio emocional e especialmente aos meus amigos e designers da Colômbia com quem discuti o tema antes de apresentá-lo no processo seletivo: Helen, David e Andrés. À Marcia, minha mãe brasileira, que tive a sorte de encontrar em Belo Horizonte. Obrigada por seu carinho e apoio sempre. À Clarice Batista, minha professora de português, pela correção e revisão do texto, e por seus valiosos ensinamentos. A todos e a cada uma das pessoas que fizeram uma contribuição para que este projeto fosse realizado com sucesso. Se estiver esquecendo alguns, peço mil desculpas. E principalmente a Deus, o grande designer do universo, por me dar vida, saúde e tantas coisas mais que não caberiam nesta folha... ¡Mil gracias! ¡Siempre agradecida! Quando nós rejeitamos uma única história, quando percebemos que nunca há apenas uma história sobre nenhum lugar, nós reconquistamos um tipo de paraíso. (ADICHIE, 2013). RESUMO A partir da reflexão em torno de novos cenários onde o design pode (e deve) atuar, este projeto pretende analisar o uso de artefatos, que são feitos por pessoas que não tem formação acadêmica em design e são encontrados no espaço urbano de Belo Horizonte. Essa prática é chamada nesta pesquisa de DND (Design por Não-Designers). Tudo isso com o objetivo de refletir sobre as oportunidades de ação que tem o design a partir destes artefatos e propor maneiras de aproveitar essa informação em seus processos e produtos. A partir destes tipos de manifestações, o design pode aprender lições sobre formas inovadoras de resolver um problema e estratégias para a sustentabilidade ambiental, cultural, social e econômica. Também é possível reafirmar identidades por meio da expressão visual de elementos que compõem estes tipos de artefatos e difundir este ‘saber fazer’ para que outras comunidades em outras partes do mundo se beneficiem destes conhecimentos. Palavras-chave: Design por não-designers. Artefatos populares. Cidade. Cultura material. ABSTRACT Based on the reflection about new scenarios where design could - and should - act, this project aims to analyze the use of artifacts which are made by people who have no academic background in design and are found in the urban space of Belo Horizonte. This practice is called DND (Design by non-designers) in this research. And all this with the goal of reflecting on the opportunities that design has from these artifacts and suggesting ways to take this information into their processes and products. From these kinds of manifestations, design can learn lessons about innovative ways of solving problems and strategies for environmental, cultural, social and economic sustainability. In addition, it can reaffirm identities through the visual expression of elements that compose this kind or artifacts; and it can also spread this know-how to other communities in other parts of the world so as to benefit them with this knowledge. Keywords: Design by non-designers. Popular Artifacts. City. Material Culture. LISTA DE FIGURAS Figura 1 - Linha do tempo..................................................................................... 28 Figura 2 - Arquitetura Vernacular - Minas Gerais (Image Collection of Vernacular Design).................................................................................................................. 33 Figura 3 - Páginas do livro: Home-Made Contemporary Russian Folk Artifacts... 35 Figura 4 - Mesa - Home-Made Europe: Contemporary Folk Artifacts................... 35 Figura 5 - Armadilha para Guaxinins.................................................................... 36 Figura 6 - Ralador de queijo feito a partir de uma lata.......................................... 36 Figura 7 - Cavalete feito pelo pintor Nazaré.......................................................... 38 Figura 8 - Panacú................................................................................................. 39 Figura 9 - Carrinho de Vendedores de Café na Bahia – Exposição Design da Periferia. ............................................................................................................... 39 Figura 10 – Suporte para guarda-sóis.................................................................. 42 Figura 11 - Cadeira com assento de fitas plásticas............................................... 44 Figura 12 – Tipografía Vernacular ....................................................................... 45 Figura 13 – Vasilhame........................................................................................... 45 Figura 14 - Embalagem de Macarrão Instantâneo usado para guardar canetas... 46 Figura 15 – Reações a novas superfícies............................................................ 48 Figura 16 – Iglu dos Inuits.................................................................................... 49 Figura 17 – Pregador usado para prender uma pauta musical............................ 50 Figura 18 – Caixote usado como prateleira. ......................................................... 51 Figura 19 - Banco com almofada........................................................................... 51 Figura 20 - Churrasqueira de espetos feita a partir de uma lata.......................... 52 Figura 21 – Carrinho de supermercado com peças incluídas.............................. 52 Figura 22 - Suporte para flores artificiais.............................................................. 53 Figura 23 – Fórmula da Gambiarra. .................................................................... 54 Figura 24 - Prateleira de flores feita com caixotes............................................... 57 Figura 25 – Artefatos feitos com materiais novos e usados ................................ 59 Figura 26 – Artefatos feitos pelo próprio usuário e por uma terceira pessoa........ 59 Figura 27 – Artefatos móveis e fixos..................................................................... 60 Figura 28 – Artefato que oferece as duas possibilidades.................................... 61 Figura 29 – Artefato de produção artesanal. ........................................................ 61 Figura 30 – Artefato de produção semi-industrial ................................................. 62 Figura 31 – Artefato de uso público...................................................................... 62 Figura 32 – Artefatos de uso coletivo e individual................................................ 63 Figura 33 – Zonas de mapeamento..................................................................... 64 Figura 34 – Processo da Categorização dos artefatos do DND.......................... 65 Figura 35 – Classificação das fotografias............................................................. 66 Figura 36 – Classificação dos objetos resultantes do DND segundo as formas de uso. ...................................................................................................................... 66 Figura 37 – Artefatos usados para fornecer produtos comestíveis...................... 68 Figura 38 – Artefatos usados para fornecer produtos não-comestíveis.............. 69 Figura 39 – Artefatos que fornecem serviços....................................................... 70 Figura 40 – Artefatos que permitem o transporte................................................. 71 Figura 41 – Rampa usada na construção............................................................. 72 Figura 42 – Acessórios para o transporte............................................................. 72 Figura 43– Artefatos como proteção e guarida..................................................... 73 Figura 44 – Artefatos relacionados com a organização e a limpeza..................... 74 Figura 45 – Artefatos para descansar.................................................................. 75 Figura 46 – Artefatos para fazer publicidade....................................................... 76 Figura 47 – Artefatos que encaixam em mais de uma categoria.......................... 77 Figura 48 - Lavador de arroz e sua criadora....................................................... 79 Figura 49 – Hippo Water Roller............................................................................ 80 Figura 50 – Artefato de 1973 em Cabo Frio (RJ) ................................................. 80 Figura 51 – Lâmpada de Moser........................................................................... 81 Figura 52 – Cadeiras feitas para colocar roupa.................................................... 83 Figura 53 – Exemplos de Repropósito Planejado................................................. 84 Figura 54 – Exemplo de repropósito guiado......................................................... 84 Figura 55 – Exemplo de repropósito ilimitado...................................................... 85 Figura 56 - Reuso de uma lata de óleo e um caixote................................. ........ 86 Figura 57 – Artefato para transportar e exibir flores artificiais............................... 87 Figura 58 – Fonte Rumbo, Aldofo Alvarez.. ......................................................... 90 Figura 59 – Fonte Brasileiro, Crystian Cruz (2000). .............................................. 90 Figura 60 – Fonte Seu Juca, Priscila Farias (2001) ............................................. 91 Figura 61 - Fonte Armoribat 2, Buggy e Matheus Barbosa, 2010......................... 91 Figura 62 – Sra. Stencil, Sergio Ramirez (2010) ................................................. 92 Figura 63 – Cadeira Janette................................................................................. 94 Figura 64 – Inspiração do Bracelete da Coleção Mosaico.................................... 94 Figura 65 – Mesa Tattoo. ................................................................................... 94 Figura 66 – Coleção Papel (1993)........................................................................ 95 Figura 67 - Captura de tela do Site do Instructables........................................... 96 Figura 68 – Instructable Restaurant...................................................................... 97 SUMÁRIO INTRODUÇÃO..................................................................................................... 15 CAPÍTULO 1. O DESIGN E O REDESCOBRIMENTO DO PASSADO 1.1 O design pós-moderno e a valorização de novas estéticas..................... 21 1.1.1 Crises do design moderno........................................................................ 21 1.1.2 Design Pós-moderno................................................................................. 23 1.1.3 Hipermodernidade, design e o redescobrimento do passado.............. 26 1.1.4 O design e a valorização do vernacular ou de práticas realizadas por não-designers...................................................................................................... 28 CAPÍTULO 2. IDEIAS SOBRE O DND 2.1 Significado do termo..................................................................................... 40 2.2 Outras aproximações com o conceito de DND.......................................... 44 2.3 A Prática do DND .......................................................................................... 50 2.3.1 Tipos de Intervenção. ............................................................................... 50 2.3.2 Como se faz................................................................................................ 53 2.3.3 Por que se faz........................................................................................... 55 2.3.3.1 O DND dos vendedores ambulantes. .................................................... 55 2.3.3.2 O DND a partir das múltiplas funções de um objeto. .......................... 56 CAPÍTULO 3. DND em Belo Horizonte 3.1 Perfil dos artefatos encontrados.................................................................. 58 3.2 Classificação ................................................................................................. 64 3.2.1 Fornecimento de produtos e serviços...................................................... 67 3.2.1.1 Produtos.................................................................................................. 67 3.2.1.2 Serviços................................................................................................... 70 3.2.2. Transporte................................................................................................. 71 3.2.3. Proteção e refúgio..................................................................................... 73 3.2.4. Organização e limpeza.............................................................................. 74 3.2.5. Descanso ............................................................................................... 75 3.2.6. Publicidade ............................................................................................ 76 CAPÍTULO 4. OPORTUNIDADES DE AÇAO PARA O DESIGN A PARTIR DO DND 4.1 Lições do DND ............................................................................................. 79 4.1.1 Formas inovadoras para resolver um problema..................................... 79 4.1.2 Pós-uso de objetos industriais................................................................. 82 4.1.3 Estratégias para a sustentabilidade. ....................................................... 86 4.2 Reafirmação de identidades por meio do design e da expressão de elementos encontrados no DND. ...................................................................... 88 4.3 Difusão do DND.......................................................................................... 96 CONSIDERAÇÕES FINAIS.................................................................................. 99 REFERÊNCIAS..................................................................................................... 102 APÊNDICE............................................................................................................ 108 15 INTRODUÇÃO Na década de 60, como afirma Rafael Cardoso (2005) houve uma ruptura que deu lugar a uma consciência do design como conceito e ideologia, como também a um novo paradigma de ensino e de exercício da atividade, causada pela inauguração de várias escolas de design no território nacional. O autor aponta que haveria certa dose de anacronismo em chamar de “designer” alguém que provavelmente não reconhecia o sentido da palavra, porém é claro que durante os cem a cinquenta anos anteriores à década de 60: Eram exercidas entre nós atividades projetais com alto grau de complexidade conceitual, sofisticação tecnológica e enorme valor econômico, aplicadas à fabricação, à distribuição e ao consumo de produtos industriais. Isso é verdade tanto para a área tradicionalmente chamada de “design de produto” quanto para a área gráfica. (DENIS, 2005, p. 8) Isso a que se refere o autor, é a prática do design pelos “não-designers”, no sentido da falta de consciência do termo, mas o que não significa que o design não estivesse se exercendo no Brasil antes da importação de modelos ou matrizes europeias como a Bauhaus, a Ulm, o construtivismo, o neoplasticismo, etc. O seguinte projeto tem como objetivo geral analisar o uso de artefatos1 que são feitos por pessoas que não tem formação acadêmica em design e são encontrados no espaço urbano de Belo Horizonte para propor maneiras de aproveitar essa informação em processos e produtos de design. Diferentemente das manifestações que Cardoso aborda, estes artefatos surgem paralelos à atividade do design como se conhece hoje, resolvendo problemas cotidianos em contextos urbanos contemporâneos e afirmando a diversidade e a riqueza do repertório material das ruas. Esta prática foi chamada nesta pesquisa de DND (Design por Não-Designers), termo que será explicado minuciosamente mais adiante. Como objetivos específicos, a pesquisa se propõe a mapear e registrar através de fotografias os artefatos a partir de um trabalho de campo em seus lugares de uso; 1 O termo “artefato” é empregado com a seguinte acepção: “Forma individual de cultura material ou produto deliberado da mão-de-obra humana” HOUAISS, A. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro. Ed. Objetiva. 2001 16 gerar um perfil dos artefatos encontrados; analisar os artefatos a partir das suas formas de uso e propor maneiras de aproveitar a informação encontrada nesses artefatos em processos e produtos de design. Muitos pesquisadores têm estudado estas manifestações procurando que o design abranja áreas mais teóricas que vão além da geração de produtos. Segundo Aloísio Magalhães (1977), em países como o Brasil é fundamental que o design abra seus horizontes e deixe de produzir apenas bens de consumo. Igualmente, para Uta Brandes (2009), professora da Koeln International School of Design na Alemanha, e pesquisadora do tema: O que é necessário agora é o estabelecimento de uma compreensão ampliada do design: a expansão da disciplina em uma que inclua estudos teóricos e pesquisas empíricas, e competências organizacionais e comunicativas, tão implicitamente como inclui a geração de produtos de design. O design pode, e deve, adquirir uma posição que lhe possibilite atuar de uma maneira multidisciplinar e lhe proveja novos impulsos para a análise e o estudo da cultura do dia-a-dia a partir da perspectiva do uso (BRANDES; 2 STICH; WENDER; 2009, p. 9, tradução nossa). Por outro lado, o estudo destas manifestações contribui para a determinação da cultura material e imaterial de um lugar. O designer e antropólogo mexicano Martín Juez (2002) ressalta que embora o material seja aquilo que coisificamos, o oposto ao espiritual, ao mental, ao que vem da alma, necessita da mente e dos sentimentos humanos (elementos imateriais) para adquirir significado, pois eles podem modificar radicalmente os possíveis modos de pensar e materializar o mundo. Portanto, os artefatos resultantes da criatividade de pessoas comuns nas ruas das cidades falam dos modos de coisificar ideias e sentimentos dessa comunidade e também exemplificam o repertório objetal que pode ser encontrado nesse contexto. Se olharmos os livros de história do design, podemos ver que, em sua maioria, a história do design está escrita através de objetos feitos por designers, esquecendo que o design vai além dos nomes. Igualmente, Papanek (1995) falando 2 What is needed now is the establishment of an extended understanding of design: the broadening of the discipline into one that comprises theoretical studies and empirical research, and organizational and communicative competencies as implicitly as it includes the generation of design products. Design can, and must, acquire a position which enables it to act in a multi-disciplinary way and to provide fresh impulses for the analysis and study of everyday culture from the perspective of use. 17 da arquitetura, ressalta que sua história está bem documentada através de edifícios das classes predominantes, como palácios, castelos, catedrais ou casas de comerciantes e que as construções modestas ou simples são difíceis de encontrar. (MARTÍN JUEZ, 2002). O presente trabalho pretende contribuir com a documentação dos objetos resultantes do DND, que compõem o repertório material e imaterial de Belo Horizonte, e que como todo tipo de objetos, são a expressão legítima de um modo de viver e ver o mundo. Paul Polak, o CEO da Windhorse International, observa que a maioria dos designers em nível mundial foca os seus esforços no desenvolvimento de produtos e serviços exclusivamente para os 10% mais ricos dos consumidores mundiais. (POLAK, 2013, apud UNESCO, 2013) Onde está o design focado nos outros 90%? Como dito anteriormente, este projeto se propõe a estudar as ruas de Belo Horizonte a partir do design praticado por não designers, que em sua maioria são pessoas de renda muito baixa. Referindo-se a isto, Maria Cecília Loschiavo (2013) assinala que: “É significativo compreender o aspecto estético da criatividade dos despossuídos, porque há um pensamento estereotipado que insiste em revelar apenas o lado sombrio, feio e marginal dessas populações.” (SANTOS, 2013, p. 83) Igualmente a escritora nigeriana Chimamanda Adichie aponta na sua palestra “O perigo de uma única história” para o TED (Technology, Entertainment, Design): “A única história cria estereótipos. E o problema com estereótipos não é que eles sejam mentira, mas que eles sejam incompletos. Eles fazem uma história tornar-se a única história.” Portanto, através do estudo destas manifestações podese conhecer outro lado das comunidades de baixa renda associado à criatividade, tentando não impor métodos, nem processos, mas observando e aprendendo o que elas têm para nos ensinar. É o momento para o design dar lugar a outros fenômenos, é momento de colocar os olhos nas ruas, pois como aponta Maria Cecilia Loschiavo, como designers temos muito que aprender sobre estes tipos de manifestações, já que são 18 um “laboratório vivente de criatividade” (SANTOS, 2000, tradução nossa) 3 . Estudando-as podemos adquirir um grande repertório de possibilidades no que diz respeito ao reuso de materiais e às transformações de objetos produzidos em série, podemos aprender como expressam identidade, como o design se relaciona com as ruas, e teremos a oportunidade de repensar sobre a cultura do desperdício da nossa sociedade. Priscila Farias (2011) no artigo “Aprendendo com as ruas: a tipografia e o vernacular”, traz exemplos focados na apropriação por parte do design das formas vernaculares, e assinala que esse tipo de atitude pode contribuir para a configuração de identidades por meio da expressão visual de elementos locais, que é dos aspectos mais importantes do papel social do design gráfico (FARIAS, 2011), algo que pode se aplicar com certeza às outras vertentes do design. Ademais, quando as formas são a expressão de uma cultura predeterminada, sintonizam então com seu círculo cultural, o que não se pode dizer das formas importadas. (BURDEK, 1994). Essas características ou valores intangíveis (como as encontradas nas manifestações do DND) atingem uma harmonia entre o local e o global, impedindo uma unificação, compreendendo e experimentando o avanço em direção à unidade na diversidade (LOPEZ, 2011). Danielle Perra (2010) aponta, referindo-se ao Low Cost Design, projeto focado no registro fotográfico da criatividade espontânea, que com ele contribui-se para a difusão das tradições, dos recursos locais e memórias de uso, que fazem parte de uma herança incomensurável, mas também frágil pela produção estandardizada do mercado. Quando analisa-se os diferentes usos que as pessoas dão aos bens de consumo, o que criam a partir deles, e em geral, a criação de artefatos na rua, propicia-se a diversidade em um mundo cada vez mais globalizado. Sobre a diversidade cultural, Nicolau-Coll (2002) observa que esta: É expressão real da criatividade humana mais profunda [...], é a expressão da vontade de ser, a configuração da realização de uma vida plena e em comunhão com toda a realidade [...] Sua defesa significa mais um profundo respeito [...] à complexidade humana, que não admite visões uniformes nem 3 Living laboratory of creativity. 19 imposições redutoras, a cujas restrições a vida jamais se submete. (NICOLAU-COLL, 2002, pág. 40) Uta Brandes (2009), a respeito deste tema, menciona que analisar o uso dos produtos de design é muito importante porque os mesmos produtos podem estar sujeitos à globalização, mas a variedade de usos que as pessoas lhes dão, criam diferenças. Desta forma, podemos dizer que o estudo e registro das manifestações do DND, contribui para o conhecimento da cidade, seus habitantes, suas formas de atuar e criar, e estimula a apreciação da diversidade cultural, pois os múltiplos usos (ou pós-usos) que podem ser dados aos bens de consumo em cada país ou território e as diversas maneiras de materializar a solução de um problema, estabelecem diferenças e marcam identidades. A pesquisa está dividida em quatro capítulos: O primeiro capítulo apresenta como o design vem se aproximando destas formas de produção de artefatos fora da academia como uma maneira de tornar esta atividade mais humana, pois através destes aspectos pode-se ler, entender e aprender as necessidades, as formas de comportamento e os desejos de uma comunidade. Também, nele falamos da nostalgia pós-industrial pelos elementos e formas de fazer pré-industriais que têm surgido nestes tempos hipermodernos, e que teve suas raízes na época do auge da industrialização, com o afã de preservação dos edifícios e artefatos vernáculos por parte de certos designers e arquitetos. O segundo capítulo aborda o Design por não-designers em si, definições e características de alguns conceitos relacionados a ele, e questões concernentes a como e por que se leva a cabo a atividade. O terceiro capítulo mostra o resultado do mapeamento do DND nas ruas de Belo Horizonte, apresentando um perfil traçado a partir da análise do discurso de outros autores, das fotografias dos artefatos encontrados na cidade e de uma categorização feita através do método Cardsorting que privilegia formas de uso levando em conta cinco aspectos considerados principais: Materiais, autor, possibilidade de deslocamento, formas de produção e uso. 20 O quarto capítulo trata de questões sobre como o design pode e tem aproveitado a informação extraída da análise da prática do DND, sugerindo possibilidades de ação relacionadas à prática do DND nas ruas de Belo Horizonte. É importante que o design tenha a sensibilidade de olhar para a essência da humanidade presente nestes tipos de manifestações, na sua ampla diversidade e na distância que ainda hoje persiste, como disse Magalhães (1977), entre a pedra lascada e o computador (SANTOS, 2013), como nos países da América Latina. Elas são formas muito presentes nas paisagens cotidianas, seja por nossas condições socioeconômicas, ou por nossa maneira de enfrentar a adversidade. Valorizá-las é uma maneira de alargar o horizonte do design, saindo da visão imediatista e consumista de produzir novos bens de consumo (MAGALHÃES, 1977) que tanto vêm se reformulando nestes tempos. 21 CAPÍTULO 1. O DESIGN E O REDESCOBRIMENTO DO PASSADO 1.1 O design pós-moderno e a valorização de novas estéticas 1.1.1 Crises do design moderno. Desde que Adolf Loos, arquiteto e designer vienense, expressou no início do século XX que o ornamento devia equiparar-se com o delito, começou na Europa um movimento totalmente racionalista que se relaciona com o design moderno (SPARKE, 2011). Em relação a isso, Burdek (1994) observa: “O desenvolvimento do design objetivo começou na Europa com Adolf Loos (Ornamento e delito, 1908), e em essência foi impulsionado pelas formas de produção que iam se estendendo rapidamente” (BURDEK, pág. 56, 1994). Essa visão deu origem a uma filosofia baseada no uso de ângulos retos, linhas retas, formas geométricas e uso restrito de cores, resumida à máxima: “A forma segue a função”, e adotada pelos professores da Bauhaus, a famosa escola de design, artes plásticas e arquitetura que funcionou entre 1919 e 1933, na Alemanha. Em 1955, o crítico de design inglês Reyner Banham, observou no ensaio A Throw-away Aesthetic que não existia um vínculo intrínseco entre a simplicidade geométrica e a função. O seu discurso foi dos primeiros a reconhecer a grande divisão entre os ideais do movimento moderno e a realidade do design como funcionava no mundo comercial. Junto a ele, vários designers e arquitetos (chamados de Grupo Independiente) expressaram que o movimento moderno devia ser reconsiderado levando em conta as ideias e os valores que tinham surgido com a influência dos avanços tecnológicos e a cultura popular. Dentro dos objetivos do grupo, estavam criar uma base intelectual para entender o design nos anos posteriores à II Guerra Mundial e estudar como as ideias do efêmero, a atração popular e o desejo tinham redefinido o significado dos objetos de design. (SPARKE, 2011). Enquanto o funcionalismo vivia seu auge na Alemanha depois da Segunda Guerra Mundial devido ao favorecimento da racionalização e estandardização na produção em série, e à expansão das suas teorias nas escolas de design, principalmente na Escola Superior de Design de Ulm nos anos 60 até os anos 80 (BURDEK, 1994), nos Estados Unidos os objetos se redefiniam como imagens numa 22 sociedade cada vez mais definida pelo processo do consumo de massas, evidenciando que à medida em que avançava o tempo, mais se consumava a crise dos fundamentos teóricos do movimento moderno (SPARKE, 2011). Segundo Torrent e Marín (2005), a partir dos anos 60, uma vez que a economia tinha se recuperado da Segunda Guerra Mundial, começa-se a notar importantes alterações nas sociedades capitalistas. A modificação mais importante foi a passagem de uma sociedade baseada no trabalho e na poupança, a uma sociedade baseada na produção e no consumo. Estas dinâmicas se viam refletidas nas prioridades e nos costumes da sociedade, e foram deslocando valores como a severidade, o esforço e o trabalho herdados da tradição protestante do capitalismo, por valores como a distensão, o humor, o jogo e o ócio. Conforme esses autores, esta mudança de sensibilidade propiciou o abandono do estilo funcionalista em favor de formas mais complexas e exuberantes. Outra modificação significativa foi o aumento da diversidade cultural, que favoreceu o ecletismo cultural e potencializou o desejo por produtos que simbolizassem uma identificação pessoal. A influência da cultura dos Estados Unidos no Reino Unido e na Europa Ocidental, visível em diversas formas culturais como a comida, a música, a literatura e a publicidade, causou a diminuição da força do discurso do movimento moderno. Nos anos posteriores à Segunda Guerra Mundial, houve uma enorme expansão da influência estadunidense em termos de ajuda econômica, concessões de negócios, influência política e volume de pessoal, inclusive na cultura material da Europa do pós-guerra. E embora a resistência contra essa influência se prolongasse temporalmente, apareceu uma nova geração britânica buscando novos valores para seus produtos materiais. Foi assim que surgiu o movimento pop, uma explosão espontânea de formas e materiais descartáveis, cores brilhantes e decoração provocativa, centrado principalmente no público jovem, e cujos ideais eram representar os valores de uma sociedade que não conheceu a austeridade dos tempos de guerra e que tinha uma renda disponível para ser gastada em roupas, música e outros complementos de moda. (SPARKE, 2011) Muitos artistas que usavam a linguagem pop elegiam o plástico como material de trabalho e se inspiravam em uma grande quantidade de fontes também recebendo o estímulo do auge dos meios de comunicação globais, como a televisão. 23 Dado que os produtos eram dirigidos a um mercado jovem deviam ser baratos e, amiúde, de pouca qualidade, representando a antítese da atemporalidade dos clássicos modernos. (FIELL; FIELL, 2000). O pop rompeu com os conceitos inseparáveis de forma e função do movimento moderno e planteou a possibilidade de que forma e expressão podiam se relacionar mais estreitamente com o contexto de consumo (SPARKE, 2011). Com suas associações antidesign, o pop contra arrestou o sóbrio ditado “menos é mais” do movimento moderno e conduziu diretamente ao design radical dos anos 70. (FIELL; FIELL, 2000). O design radical surgiu na Itália como reação ao bom design e pretendia alterar a percepção geral da modernidade através de propostas utópicas. (FIELL; FIELL, 2000). Os grupos italianos Archizoom, Superstudio, Gruppo Strum e outros saíram das margens do mercado com o objetivo de demonstrar que o design podia ser seu próprio crítico e se podia juntar com os pensamentos políticos da época que buscavam desmontar a ética consumista da burguesia (SPARKE, 2011). Burdek aponta que: A criação do primeiro grupo na Itália coincidiu com o movimento Hippie nos EUA em meados dos anos 60. O fastio desenvolvido como a civilização era articulado em círculos de artistas e designers que se influenciavam diretamente com os escritos de Sigmund Freud e Herbert Marcuse conclamando menos repressão e comunidades abertas e procurava traduzilos para a vida – isso tudo de uma só vez- por meio de movimentos de protestos estudantis em cidades como Berlim, Frankfurt, Milão, ou Paris, que migraram rapidamente de questões políticas estudantis para questões da sociedade como um todo. (Burdek, 1994, p. 131). O movimento moderno foi questionado culturalmente por uma erosão dos seus valores derivada da realidade do design tal e como funcionava no mercado. Em resposta a esta realidade do mercado e aos novos valores associados à cultura material, nas décadas de setenta e oitenta, críticos e designers adotaram novas ideias que responderam à condição de pós-modernidade. (SPARKE, 2011) 1.1.2 Design Pós-moderno A pós-modernidade, segundo Lipovetsky (2004), representa o momento histórico onde houve a derrubada de todos os freios institucionais contrários à emancipação individual que deu lugar à manifestação dos desejos subjetivos, da 24 realização individual, do amor próprio. Segundo o autor, a mutação entre modernidade e pós-modernidade, que data da segunda metade do século XX, aconteceu devido ao consumo de massa e aos valores que ele veicula (cultura hedonista e psicologista). De 1880 até 1950, ocorrem certos fatos que depois explicarão o surgimento da pós-modernidade: o aumento da produção industrial, o progresso dos transportes e a comunicação, e posteriormente, os métodos comerciais que caracterizam o capitalismo moderno como são o marketing, as grandes lojas, as marcas e a publicidade. Nesta primeira fase do capitalismo moderno o consumo era limitado à classe burguesa, algo que não ocorreu na segunda fase que começou nos anos 50 do século XX. Nessa etapa “o individualismo se liberta das normas tradicionais, [...] emerge uma sociedade cada vez mais voltada para o presente e as novidades que ele traz, cada vez mais tomada por uma lógica da sedução, está concebida na forma de uma hedonização da vida que seria acessível ao conjunto das camadas sociais” (LIPOVETSKY, 2004, p. 24). Ao acabar-se a grande fase do modernismo, mais ninguém defende a ordem, e o prazer e o estímulo dos sentidos, se convertem nos valores dominantes na vida comum. (LIPOVETSKY, 1993) O discurso da pós-modernidade se torna polissêmico e inclusive contraditório, como afirma Lipovetsky no livro A era do vazio: A cultura pós-moderna é descentrada e heteróclita, materialista e psi, pornô e discreta, renovadora e retrô, consumista e ecologista, sofisticada e espontânea, espetacular e criativa; o futuro não terá que escolher entre uma destas tendências, se não que pelo contrário desenvolverá lógicas duais, a correspondência flexível das antinomias (Lipovetsky apud Torrent e Marín, p. 354, 2005). A sociedade pós-moderna consistia numa sociedade hedonista na qual o prazer sem culpa se tornou uma aspiração legítima, onde se preferia o light, e onde os ciclos dos gostos se aceleraram, traindo como consequência a coexistência e superposição de estilos cada vez mais efêmeros. (TORRENT E MARÍN, 2005). Por outra parte, o movimento pós-moderno tinha o potencial de abarcar uma grande diversidade cultural e de fazer que o consumo de bens culturais chegasse a certos grupos que anteriormente tinham sido excluídos. Nele apareceu uma cultura pluralista, que não reconhecia verdades absolutas, mas pretendia adotar um conjunto de verdades: o rechaço do movimento moderno conveio para valorizar “o 25 outro” que no mundo da cultura material estava representado pelo luxo, o gosto feminizado, as artes decorativas e a fabricação artesanal, e também permitiu a entrada de paradigmas estéticos que permitiam o ornamento, a ironia, o historicismo, o ecletismo, e o pluralismo. (SPARKE, 2011) Esse pluralismo cultural da sociedade global contemporânea se evidenciava no uso de uma linguagem de “simbolismo compartido” nos objetos, utilizada para ultrapassar fronteiras. A inspiração para a criação de formas não vinha só de estilos decorativos do passado, mas também faziam referência ao surrealismo, ao Kitsch, e à informática. (FIELL; FIELL, 2000). Segundo Torrent e Marín (2005), a pluralidade de estilos e a polifonia das mensagens foram tais que ocorreu confusão. Tentando combater a monotonia e o aborrecimento, se introduziram importantes variantes criativas, mas também se abusou da estridência, causando uma saturação visual que se traduzirá em austeridade formal de produtos na década seguinte. Rafael Cardoso (2008) observa acerca dessa pluralidade: A marca registrada da pós-modernidade é o pluralismo, ou seja, a abertura para posturas novas e a tolerância para posições divergentes. Na época pós-moderna, já não existe mais a pretensão de encontrar uma única forma correta de fazer as coisas, uma única solução que resolva todos os problemas, uma única narrativa que amarre todas as pontas. Talvez pela primeira vez desde o início do processo de industrialização, a sociedade ocidental esteja se dispondo a conviver com a complexidade em vez de combatê-la, o que não deixa de ser (quase que por ironia) um progresso. (CARDOSO, 2008, p. 205). Embora os objetivos das empresas pós-modernas tivessem sido eliminar o conceito de valor hierárquico dos produtos e de gerar um autêntico pluralismo que valorizasse a todos os objetos por igual, como era o caso da empresa italiana Alessi, aconteceu o contrário (SPARKE, 2011). Nesses anos, múltiplas empresas pediram para vários designers e arquitetos reconhecidos projetar objetos com a ideia de que o status cultural desses produtos se estendesse para os produtos sem assinatura de designer, mas os resultados foram outros, esses produtos viraram um assunto de uma elite que representou o triunfo do capitalismo sobre a ideologia social, a base do movimento moderno. (FIELL; FIELL, 2000). 26 1.1.3 Hipermodernidade, design e o redescobrimento do passado. Depois dessa segunda fase do consumo, segundo Lipovetsky (2004), nos anos 80, o autor aponta que entramos na era do hiper, que se caracteriza pelo hiperconsumo, pelo hipernarcisismo, é a terceira fase da modernidade: a hipermodernidade “uma sociedade liberal caracterizada pelo movimento, pela fluidez, pela flexibilidade, indiferente como nunca foi aos princípios estruturantes da modernidade, que precisaram adaptar-se ao ritmo hipermoderno para não desaparecer”. (LIPOVETSKY, 2004, pág. 26) Esta era hipermoderna, longe de limitar-se ao presente focado em si mesmo, se caracteriza pelo reflorescimento do passado. Lipovetsky (2004) diz que nossa época “é palco tanto de um frenesi histórico-patrimonial e comemorativo quanto de uma investida das identidades nacionais e regionais, étnicas e religiosas” (LIPOVETSKY, 2004, p. 85) e nela se celebra até o menor objeto do passado, se invocam as obrigações da memória, se remobilizam as tradições religiosas, é uma era não estruturada por um presente absoluto, se não por um presente paradoxal, como assinala o autor, “um presente que não para de exumar e “redescobrir” o passado”. (LIPOVETSKY, 2004, p. 85) Justin McGuirk (2013), na sua coluna de design do Jornal The Guardian de Londres, escreve no artigo The art of craft: the rise of the designer-maker, publicado em agosto de 2011, que a divisão criada no mundo do fordismo onde o designer fazia padrões e o fabricante os replicava, está sendo reavaliada porque os designers acham que é importante fazer as coisas com suas próprias mãos, já que como diz Emmanuel Kant: “A mão é a janela da mente”, pois fazendo coisas, provando, errando e repetindo, é como se aprende. O que temos aqui, diz o colunista, é uma nostalgia pós-industrial pelo pré-industrial, numa cultura com excesso de marcas e bens produzidos industrialmente que romantiza o feito à mão porque se almeja qualidade, não quantidade. (MCGUIRK, 2013) O que temos aqui é uma mostra de como o design atualmente está revalorizando e redescobrindo o passado, ou seja, está refletindo os valores desta era hipermoderna. De acordo com isso, Sudjic observa: “O design é a linguagem que uma sociedade usa para criar objetos que reflitam seus objetivos e seus valores. Pode ser usado de formas manipuladoras e mal-intencionadas, ou criativas e 27 ponderadas. O design é a linguagem que ajuda a definir, ou talvez a sinalizar, valor.” (SUDJIC, 2010, p. 49) Nas páginas seguintes, falaremos de como o design vem se aproximando dessas formas pré-industriais de produção, seja valorizando as manifestações vernaculares, ou estudando os novos usos que são dados aos objetos já projetados, não referindo-nos às manifestações desenvolvidas antes da divisão técnica do trabalho, mas às manifestações que ocorrem paralelas a ela nestes tempos hipermodernos. 28 1.1.4. O design e a valorização do vernacular ou de práticas realizadas por nãodesigners. No design, em termos gerais, pode-se ver nos últimos anos um ressurgimento do interesse pelas manifestações vernaculares, pelos objetos que nascem na rua, que são utilizados como meio de vida, feitos por vendedores ambulantes, por moradores de rua, ou por qualquer outra pessoa a partir da espontaneidade. Estes objetos têm sido (e estão sendo) estudados como expressões de uma região e da sua cultura material, desde sua produção através do reuso de elementos que contribuem à sustentabilidade, e em geral, qual tem sido sua contribuição ao design como disciplina. (FIG.1) Figura 1 - Linha do tempo Fonte: Criado pela autora a partir de diferentes referências 29 Nesta seção mostraremos como e desde quando vem acontecendo esta aproximação começando pela arquitetura vernacular, já que conforme Priscila Farias (2011), foi no campo da arquitetura que grande parte dos primeiros estudos sobre o design vernacular, ou o design praticado por não-designers, foi realizada. Segundo o dicionário Houaiss (2007), o termo vernacular é um adjetivo que qualifica algo como próprio de uma nação, região ou país, também se diz de uma linguagem sem estrangeirismos na pronúncia, vocabulário ou construções sintáticas, castiço. Segundo o filólogo Chester Star Jr (1942), o termo ‘vernáculo’ tem origem na expressão latina verna ou vernaculus que originalmente foi usada para designar algo nativo, um nativo da cidade de Roma ou mais especificamente, um escravo nascido em casa romana (STAR, 1942 apud FARIAS, 2011). Darron Dean (1994) escreve que o termo vernacular se deriva da palavra latina ‘vernáculas’ que significa nativo ou indígena, e que foi associada ao design pela primeira vez por George Gilbert Scott em 1857 e desde esse momento tem se desenvolvido uma grande literatura a seu respeito. (DEAN, 1994, p.153) Segundo Kingston Wm. Heath (2003), na literatura, vernacular se refere à linguagem usada, reconhecida e compreendida por uma região específica, em contraste à linguagem formal de uma elite que tem um nível diferente de cultura. A arquitetura vernacular, como o autor usa o termo, está composta por formas comuns e cotidianas que são familiares para certa população e que são geradas com materiais disponíveis geralmente com uma aplicação funcional. Para ele, o vernacular é produzido por um indivíduo para seu próprio uso, ou por construtores anônimos e locais que respondem a fórmulas localmente adaptadas. No seu livro Vanguardia y Tradición, Vicky Richardson (2001), diretora de arquitetura, design e moda do British Council, faz uma recapitulação sobre a inclinação dos arquitetos ao vernacular. A autora utiliza o termo vernacular como um atalho para se referir a obras que adotam o espírito do vernáculo, mas não suas formas reais. Ela assinala que durante o século XX, o interesse pelos edifícios como manufatura artesã não desapareceu absolutamente e que nos últimos anos tem tido um ressurgimento do vernáculo que lembra o movimento inglês Arts & Crafts. O nome do movimento Arts and Crafts foi cunhado devido à exposição Arts and Crafts Exhibition Society realizada em Novembro de 1888 na New Gallery em 30 Londres, que considerava que “o declive da arte e do design se devia a uma ênfase excessiva na aprendizagem acadêmica, à separação entre design e produção, e se originava por artesãos ou artistas impessoais que produziam sua obra para um público impessoal”. (RICHARDSON, pág. 7, 2001, tradução nossa)4 Os arquitetos envolvidos neste movimento, segundo a autora, não seguiam uma única linha, senão que pegavam diferentes aspectos do vernáculo, como por exemplo, o uso de materiais locais, de estruturas materiais simples, o trabalho com harmonia com a paisagem, etc., e nunca se referiram a suas obras como resultado da valorização do vernáculo, senão que falavam de “sistemas locais”. Suas obras eram um reflexo do medo de que a tradição local desaparecesse por causa da estandardização e colocavam seus esforços na documentação de edifícios rurais como pousadas, granjas, e construções tradicionais campesinas. Prévio ao movimento Arts and Crafts, em 1877, William Morris, que depois foi um dos principais exponentes do movimento, criou a Sociedade pela Conservação de Edifícios Antigos (SPAB por suas siglas em inglês), que defendeu os edifícios campesinos do mesmo modo que as catedrais e as igrejas. A sociedade converteu-se numa escola de construção de edifício tradicionais. Um predecessor das ideias de Morris foi Pugin (1812-1852), que em 1840 promulgava o gótico como um estilo próprio da Inglaterra e chamava o renascimento de técnicas construtivas tradicionais como a incorporação da forja, as vidreiras, e a cerâmica. John Ruskin (1819-1900), o crítico de arquitetura inglês, também concordava com a adoção do gótico e do vernáculo, pois acreditava que a arquitetura clássica era produzida por homens-máquina, pelas suas linhas precisas e leis definidas, dando-lhe um valor humano à imperfeição do trabalho artesanal. Na Europa Continental, o arquiteto francês Violet-le-Duc defendia um retorno às tradições construtivas regionais, com a criação de um movimento antiinternacional, que influenciou as ideias de importantes arquitetos como o espanhol Antônio Gaudí (1852-1926), o belga Victor Horta (1861-1947), ou o holandês Hendrik Petrus Berlage, que promoveram formas de arquitetura nacional. 4 Consideraba que el declive del arte y del diseño era resultado de un énfasis excesivo en el aprendizaje académico, de la separación entre diseño y producción, y se originaba por artesanos y artistas impersonales que producían su obra para un público impersonal. 31 Em 1930, a obra de Alvar Aalto, considerada como o “novo regionalismo”, mostrava que a arquitetura pode adotar o espírito do vernáculo sem recorrer ao mimetismo das suas formas. Richardson (2001) assinala que os edifícios de Alto se caracterizavam não só pela inspiração nos contornos curvos dos lagos finlandeses e pela utilização de materiais locais, mas também pela estandardização e a sensibilidade moderna internacional. Nos anos 60, no Metropolitan Museum of Art de Nova Iorque, especificamente no ano de 1964, se apresentou a exposição “Arquitetura sem arquitetos” a cargo do antropólogo Bernhard Rudofsky, onde pela primeira vez os habitáculos construídos por seus próprios moradores, especialmente os do terceiro mundo, foram mostrados como “obras de arquitetura” belas e funcionais (RUDOFSKY, 1964). Victor Papanek (1995) no livro Arquitetura e Design. Ecologia e ética observa que: Desde meados do século XX que arquitetos, antropólogos e historiadores de arte se mostram cada vez mais interessados na arquitetura vernácula, tanto nos ambientes urbanos como nos rurais. Muitos edifícios, tipos de construções e urbanizações, nunca antes estudados a sério, têm sido documentados através de fotografias e descrições escritas. Esta tendência recebeu forte apoio como a exposição “Arquitetura sem Arquitetos”, organizada por Bernard Rudofsky no Museu de Arte de Moderna, em Nova Iorque, em 1963, bem como nos seus dois livros subsequentes. (PAPANEK, 1995, Pág. 127) Nos anos 70 na Grã-Bretanha, houve uma mudança de atitude que deslocou a construção de novas edificações favorecendo a reabilitação de edificações antigas. Em 1975, iniciou-se um movimento conservacionista com a criação do Save Britain’s Heritage (Salve a Herança Britânica) para proteger as antigas casas inglesas, e em 1979 se traduz para o inglês o livro do arquiteto alemão e crítico do Art Noveau, Hermann Muthesius, Das Englische Haus, que havia transportado as ideias do Art & Crafts ao norte de Europa. (RICHARDSON, 2001) Muito depois, em 1995, Victor Papanek assinala que a história da arquitetura está bem documentada através de edificações das classes mais altas como palácios, castelos, catedrais e casas de comerciantes, e que muitas delas ainda sobrevivem, outras já foram reconstruídas, de outras se conservam seus planos e desenhos, no entanto, das moradas mais modestas é difícil de achar registros. Também para abordar de maneira mais profunda, o tema expõe seis falácias acerca 32 da arquitetura vernacular: A falácia histórica, a exótica, a romântica, a falácia da cultura popular, da tradição atual, e a sagrada. -Falácia histórica: Muitas edificações não servem como exemplos vernáculos apenas em função de sua idade, mas porque constituem padrões de construção tradicional. -Falácia exótica: As construções como os iglus dos esquimós ou as aldeias dos Batak na ilha de Sumatra na Indonésia, podem ter atribuída a elas uma importância ilusória em relação ao vernacular devido a seu caráter exótico. -Falácia romântica: Na escrita sobre o vernáculo, é difícil encontrar uma discussão inteligente sobre estruturas de aldeias ou esquemas primitivos, pois os sistemas de construção exóticos que foram transportados para a arquitetura requintada são evitados pelos críticos romântico-sentimentais. -Falácia da cultura popular: Não é qualquer estrutura que seja repetida com poucas variações, que pode ser chamada de vernácula. As redes de fastfood como Mc Donalds ou Wendy, não podem ser chamadas de estruturas vernaculares americanas dos finais do século XX. Elas são estruturas que identificam marcas de fábrica e a razão de sua existência é a venda, bem diferente das verdadeiras construções vernáculas ou nativas. -Falácia da tradição atual: Não se pode dizer que as construções com características parecidas onde mora uma grande quantidade de pessoas numa região constitui uma expressão do vernáculo, pois estas habitações podem ser resultado de uma produção centralizada e processos de design. -Falácia Sagrada: Existem aspectos vernáculos nos edifícios arraigados nas crenças religiosas de um povo, mas esses aspectos podem ser acrescentados pelo seu sentido sagrado e não pela sua representação de processos vernáculos. Finalmente, o autor também aborda o tema a partir dos processos, assinalando que a arquitetura vernacular está baseada em conhecimentos sobre práticas e técnicas tradicionais, é usualmente autoconstruída, e respeita a qualidade e as habilidades. (PAPANEK, 1995) Em 1997, foi lançada The Enciclopedia of Vernacular Arquitecture, o primeiro estudo internacional sobre edifícios vernáculos, editada por Paul Oliver que incluía a obra de 250 investigadores de 80 países, cujo objetivo era a sobrevivência 33 dos edifícios nativos indígenas frente à inexorável modernização modernização (RICHARDSON, 2001). Em maio de 2010, a Escola de Arquitetura, Design e Planejamento, Plane da Universidade de Kansas, nos Estados Unidos, tornou pública a coleção de imagens de Arquitetura Vernacular de Amos Rapoport, Rapoport que é a maior coleção de imagens i digitais, publicamente ace cessível ssível focada em Design Vernacular no mundo. A coleção abrange mais de 30.000 imagens tiradas pelo professor Rapoport em mais de 70 países, e representa mais de meio século de viagens a muitas partes do mundo, desde grandes cidades, até pequenas vilas (FIG. (FIG 2). Figura 2 - Arquitetura Vernacular - Minas Gerais (Image Image Collection of Vernacular Design) Fonte: RAPOPORT, 2010 O design como disciplina começou a se interessar pelos artefatos feitos por não-designers, designers, relativamente há pouco tempo. Em 1972, 1972 Charles Jencks e Nathan Silver propuseram o conceito “Adhocism”, que faz referência à improvisação através do uso de objeto aleatórios com o objetivo de satisfazer uma necessidade momentânea. (BRANDES; (BRANDES STICH; WENDER, 2009) Em 1992, Philp Pacey, escreveu o artigo Anyone designing Anything? NonNon Professional Designers and the History of Design, Design em que mostra diferentes casos de design feitos por não profissionais. Ken Garland (2004), na sua palestra oferecida em 1995 na Escola de Arte da Universidade de Michigan, Michigan titulada Design and The Spirit of the Place, observa que são as coisas mais simples que fazem com que um lugar seja esse lugar, e 34 coloca dois exemplos: o primeiro são as etiquetas das frutas e verduras de um mercado local, que qualifica como expressivas, inventivas e vigorosas, e que sua maneira despretensiosa de ser fala mais das ruas, do que os avisos das grandes lojas. O segundo exemplo consiste nos riquixás em Bangladesh que são decorados por artesãos criativos e habilidosos e dos quais podemos aprender duas grandes lições: a primeira é que sua arte é totalmente espontânea e não se relaciona com motivos comerciais, e a segunda é que não têm patrocínio do governo. O autor assegura que o espírito do lugar se encontra nesses exemplos mais espontâneos e que não é simples para o design descobrir respostas que nos ajudem a invocá-lo, mas que poderia ser algo muito gratificante. Por outro lado, do ponto de vista do uso como design, no ano 2005, Jane Fulton Suri, diretora do departamento de Fatores Humanos da IDEO, fez uma compilação de fotografias que mostram maneiras intuitivas de adaptar, explorar e reagir diante de situações em nosso ambiente, prática que chamou de Intuitive Design ou Design Intuitivo. No ano 2006, Uta Brandes e Michael Erlhoff, escrevem o livro Nonintentional Design, um termo criado por eles, que define o “re-design cotidiano do projetado” ou seja, as diferentes funções que podem ser atribuídas a um objeto por seus usuários. Nesse mesmo ano, é lançado o livro Home-Made Contemporary Russian Folk Artifacts (FIG.3), cujo autor é o artista russo Vladimir Arkhipov e contém fotografias de objetos únicos criados por pessoas comuns e inspirados na falta de acesso a bens fabricados, durante o colapso da União Soviética. Cada fotografia está acompanhada de uma imagem do criador e um texto que relata a história do objeto, porque nasceu, qual é sua função, e os materiais usados para sua criação. No ano 2012, a mesa editorial lança a versão europeia do livro: Home-Made Europe: Contemporary Folk Artifacts (FIG. 4), também com fotografias de Arkhipov. Para o jornal The Guardian, de Londres, o autor assinalou: “Se de repente não houvesse mais designers profissionais, ou não ficaram mais produtores de objetos, o processo de criar novos projetos, novas formas, não diminuiria” (MCGUIRK, 2013) 35 Figura 3 - Páginas do livro: Home-Made Contemporary Russian Folk Artifacts Fonte: MCGUIRK, 2012 Figura 4 - Mesa - Home-Made Europe: Contemporary Folk Artifacts Fonte: MCGUIRK, 2012 Em março de 2010, a revista virtual de design Core 77, publica um artigo sobre o trabalho do designer estadunidense Gabriel Hargrove acerca das suas séries chamadas Objects of Rural Vernacular, onde recria objetos, costumes e tradições dos ambientes rurais de América do Norte. Um dos exemplos colocados no site da revista é uma armadilha para guaxinins que ajuda a impedir as pragas destes animais, cuja construção é sugerida a partir de um livro chamado American Handy Book for Boys de Daniel Beard, e de elementos que podem se encontrar na cidade, como um reprodutor de VHS antigo. (FIG. 5) 36 Figura 5 - Armadilha para Guaxinins Fonte: THE RURAL..., 2010 Nesse mesmo ano, o designer italiano Daniele Pario Perra, apresenta a primeira parte do livro Low Cost Design, que é resultado de uma pesquisa realizada entre o norte da Europa e o Mediterrâneo sul, onde documenta milhares de exemplos de criatividade espontânea, produzindo um dicionário visual de criações feitas por autores anônimos, que são classificadas em categorias, e que estimulam a reflexão da recuperação e o reuso de materiais (FIG.6). A segunda parte do livro foi lançada no ano 2011. Figura 6 - Ralador de queijo feito a partir de uma lata Fonte: PERRA, 2010 Podemos ver o interesse do design pelas práticas realizadas por nãodesigners, seja valorizando o pré-industrial, as coisas feitas à mão, ou registrando os novos usos e formas que ganham, no dia-a-dia, objetos já projetados. No Brasil, a valorização dos artefatos nativos de um lugar pelo design começou em 1958, com a 37 arquiteta italiana Lina Bo Bardi, que viveu no nordeste entre 1958 e 1964, tempo no qual pesquisou sobre cultura material nativa desta região e organizou uma exposição chamada Nordeste em 1963 no Museu de Arte Popular, no Solar do Unhão, em Salvador, mostrando um grande inventário de objetos populares. Ela observa no catálogo da exposição: Esta exposição procura apresentar uma civilização pensada em todos os detalhes, estudada tecnicamente, desde a iluminação até as colheres de cozinha, as colchas, as roupas, bules, brinquedos, móveis, armas. É a procura desesperada e raivosamente positiva de homens que não querem ser “demitidos”, que reclamam seu direito à vida. Uma luta de cada instante para não afundar no desespero, uma afirmação da beleza conseguida com o rigor que somente a presença constante duma realidade pode dar. Matéria-prima: O lixo. Lâmpadas queimadas, recortes de tecidos, latas de lubrificantes, caixas velhas e jornais. (LINA, 2009, pág. 116) Tempos depois, a Escola Superior de Desenho Industrial (ESDI), em 1977, em comemoração a seus quinze anos de existência, promoveu um debate durante o qual Aloísio Magalhães, um dos fundadores da Escola, proferiu uma palestra falando sobre o design industrial nos países do terceiro mundo, onde apontou que a atividade deve abandonar o conceito de forma e função do produto como tarefa prioritária e a visão consumista de produzir só novos bens de consumo, pois neste contexto se transita num espectro amplo de possibilidades, onde estão presentes situações, formas de fazer e usar basicamente primitivas e pré-industriais até tecnologias consideradas de ponta (MAGALHÃES, 1977). Magalhães estava dando espaço a essas formas de fazer pré-industriais que não pertencem ao mainstream. Na década de 2000 a 2010, vários pesquisadores centraram seus estudos nestas formas não convencionais de fazer design. Maria Cecilia Loschiavo, no ano de 2000, expõe numa palestra no Politécnico de Milão o que ela chamou de Spontaneous Design, uma prática criativa exercida por moradores de rua que consiste em encontrar soluções aplicáveis a problemas concretos. (SANTOS, 2000) Depois disso, a pesquisadora Gabriela de Gusmão Pereira, lançou no ano 2002, o livro a “Rua dos Inventos”, uma coleção de fotografias que começou a realizar desde 1998 acerca das manifestações efêmeras que se criam e se perdem no dia-a-dia nas ruas, objetos ou arranjos de objetos que desenham a realidade de todos os dias dos moradores de rua, de pequenos prestadores de serviços, ou 38 vendedores ambulantes. Pereira (2002) assinala que esses objetos expressam o desenho vernacular brasileiro, pois são uma expressão original do povo e refletem de uma maneira muito própria a realidade da região em que se encontram. (FIG. 7) Figura 7 - Cavalete feito pelo pintor Nazaré. Fonte: PEREIRA, 2002, p. 28 Múltiplos designers nacionais já estudaram o tema a partir de óticas diferentes. Rodrigo Boufleur sob o ponto de vista do reuso de objetos já projetados na criação de novos objetos, no ano de 2006 estudou a gambiarra como uma forma de design vernacular. Em 2007, Adriana Valese pesquisa sobre o “Design Vernacular Urbano” nas ruas de São Paulo como estratégia de inserção social. E em 2009, Naotake Fukushima analisa o design vernacular da população de baixa renda em Curitiba a partir da sustentabilidade. De 2010 até agora, podemos citar três projetos: A exposição ‘Atlas Ambulantes’, gerada a partir do livro do mesmo nome organizado pelos arquitetos Renata Márquez e Wellington Cançado, onde apresentam a experiência de seis vendedores ambulantes de Belo Horizonte, suas cartografias singulares da cidade, itinerários, fotografias tiradas por eles, os equipamentos que utilizam para realizar seu trabalho, uma coleção em escala real de todos os produtos que oferecem, partituras das músicas que utilizam para identificar-se, e uma série de cinco filmes com seus depoimentos. O segundo projeto é o livro Objetos da Floresta (2012) uma recopilação de objetos achados nas comunidades da Amazônia analisados pela designer Andrea Bandoni de Oliveira. (FIG.8) 39 Figura 8 - Panacú Fonte: BANDONI, 2012, p. 34 E o terceiro é a exposição “Design da Periferia” (FIG.9), feita pela Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo com curadoria de Adélia Borges, que apresenta artefatos feitos pelo povo para serem usados na vida cotidiana. Ela assinalou no site da Prefeitura da cidade: O conceito de periferia é sempre relativo, ele depende de um centro, que pode ser geográfico – um país periférico aos que têm mais voz no mundo, ou a parte de uma cidade que está distante do seu centro, por exemplo – ou pode ser metafórico, no sentido de não pertencer ao mainstream. É com esse sentido que estamos trabalhando. (PREFEITURA, 2013) Figura 9 - Carrinho de Vendedores de Café na Bahia - Exposição Design da Periferia. Fonte: Foto de Francesco Mazzarella 40 CAPÍTULO 2. IDEIAS SOBRE O DND O seguinte capítulo aborda o significado do termo ‘Design por não-designers’, definições de alguns conceitos relacionados a ele, e questões referentes a como e porque se leva a cabo a atividade. 2.2 Significado do termo. Todos os homens são designers. Tudo o que fazemos, quase todo o tempo, é design, pois design é condição básica para toda a atividade humana. O planejamento e estruturação de qualquer ato em busca de um objetivo desejado e previsível constitui o processo de design. O Design é a origem 5 primária e subjacente da vida. (PAPANEK, pág. 19, 1977, tradução nossa) A origem da palavra ‘design’, segundo o pesquisador Rafael Cardoso (2000), está na língua inglesa, e faz referência à ideia de plano, desígnio, intenção, quanto à configuração, arranjo, estrutura. Segundo Lobach (1981), o design é um processo de adaptação do entorno artificial às necessidades físicas e psíquicas dos homens na sociedade. Em termos gerais, o design analisa as necessidades humanas e as satisfaz através de objetos, processos, serviços ou sistemas. A partir de tais definições, podemos estabelecer que esse processo de design, criação e produção não é só tarefa dos designers. Pessoas comuns e sem formação em design encontram na criatividade e empenho, soluções materiais para problemas cotidianos. Pessoas que têm a capacidade e a necessidade de fazer antes de perguntar e consumir. Segundo Jane Fulton Suri (2005), todos somos seres ativos em organizar e adaptar as coisas, todo mundo é um “especialista no design da eficiência e da comodidade em seu próprio mundo”. (FULTON SURI, pág. 175, 2005, tradução nossa)6 Nas ruas das cidades da América Latina, e em muitas outras cidades, múltiplas pessoas criam artefatos para satisfazer necessidades do dia a dia com 5 Todos los hombres son diseñadores. Todo lo que hacemos es casi siempre diseñar, pues el diseño es la base de toda actividad humana. La planificación y normativa de todo acto dirigido a una meta deseada y previsible constituye un proceso de diseño. Todo intento dirigido a aislar el diseño, a convertirlo en una entidad por sí misma, va en contra del valor intrínseco del diseño en cuanto a matriz primaria subyacente de la vida. 6 Everyone is an expert in the design of efficiency and convenience in their own world. 41 materiais que estejam à mão, com elementos disponíveis. São designers em seu próprio mundo. Vários pesquisadores da área têm se referido a este tema como “Design vernacular”, “Design espontâneo”, “Design pelo outro 90%”, “Desenho vernacular”, “Design alternativo”, “Non-professional design”, “Low Cost design”, “Design da Periferia”, “Non Intencional Design”, “Adhocismo”, “Intuitive Design” (FINÍZOLA, 2010; PELLEGRINI FILHO, 2009; MARTINS 2005; CARDOSO, 2003; SANTOS, 2003; BORGES, 2011; BOUFLEUR, 2006; PEREIRA, 2004; DONES, 2004; VALESE, 2007, FUKUSHIMA, 2009, PERRA, 2010, PACEY, 1992, BRANDES E ERLHOFF, 2006, JENCKS E SILVER 1972; FULTON, 2005) e o têm abordado principalmente a partir de 5 pontos de vistas diferentes: Como estes objetos representam culturalmente um lugar específico, como a carência e a falta de recursos incentivam a criatividade e a invenção, como estes objetos podem contribuir para a sustentabilidade, como os novos usos que os usuários dão aos artefatos industriais se transformam em design, e como estes objetos podem contribuir para design chamado ‘acadêmico’. Este último enfoque é o abordado nesta pesquisa, apontando que a temos delimitada ao contexto rua. “Design por não-designers” (DND) é o termo que adotamos para denominar o objeto de estudo desta pesquisa e faz referência, como dissemos antes, às soluções materiais que não têm relação com a academia, ou seja, artefatos que são produzidos e pensados por pessoas que não têm conhecimentos formais na área de design. Os objetos resultantes deste tipo de design fazem parte importante da paisagem cotidiana da cidade, da cultura material brasileira e falam do povo que os faz, não porque seja uma prática própria do país, pois encontramos exemplos em outros lugares do mundo, mas porque as funções que cumprem estão associadas a necessidades, costumes, práticas, e crenças específicas, de pessoas específicas, que pertencem a um território específico. Eles nascem a partir de uma necessidade. Necessidade, segundo Martín Juez (2002) “é aquilo que nos parece imprescindível ou nos leva a agir de maneira 42 peculiar segundo exigem as circunstâncias”. (MARTÍN JUEZ, 2002, pág. 45, tradução nossa)7 . Para Lobach (1976): As necessidades se tomam reconhecíveis mediante os estados de tensão que governam a conduta do ser humano; são o resultado da sensação de uma deficiência que se tenta sarar (...). As necessidades têm origem em alguma carência e ditam o comportamento humano visando à eliminação dos estados não desejados. (LOBACH, p. 26,1976) Mas nem sempre é assim. Referindo-se à criatividade espontânea na Europa, Daniele Perra (2010) aponta que no sul é mais visível pelas deficiências do governo local. Mas, no norte da França e da Itália, na Suíça, Alemanha e Holanda, o principal motivo da espontaneidade criativa é o lazer. Muitos jardins são a acumulação de pequenas invenções. Este fato questiona o fato de que só a necessidade favorece a criatividade. Na prática do DND na rua, geralmente, se usam elementos que se encontram fácil, que estão à mão, no meio, é por isso que esta prática está associada ao reuso de produtos industriais, muitos deles são uma soma de elementos usados. Este fenômeno é citado por Boufleur (2006) como pós-uso e por Fukushima (2009) como a transformação ou reconfiguração de outros artefatos industriais preexistentes. É o caso do suporte para guarda-sóis feito com um aro, vergalhão, e tubo de aço. (FIG. 10) Figura 10 – Suporte para guarda-sóis Fonte: Fotos da Autora 7 La necesidad es aquello que nos parece imprescindible o nos lleva a actuar de manera peculiar egún exigen las circunstancias. 43 Valese (2007) também aponta que muitos dos carrinhos dos vendedores ambulantes são feitos a partir de materiais diversos, dependendo do tipo de mercadoria e da localização do artefato. Ela coloca como exemplo carrinhos feitos em madeira, com acabamentos de pintura de cor única e aço inoxidável. O que mostra que nem sempre estes tipos de artefatos nascem a partir da transformação de artefatos industriais ou do pós-uso. Por outro lado, o autor do DND pode ser o próprio usuário ou um produtor. Quando o artefato é feito pelo próprio usuário, a relação objeto/usuário se faz mais próxima. Ele pode colocar características próprias ao produto do seu trabalho. Com relação a isto e se referindo aos objetos artesanais da primeira metade do século XIX, Lobach (1976) aponta que: “O artesão fabricava o objeto por completo e mantinha todo o processo sob controle. Daí resulta uma relação personalista em relação ao objeto” (LOBACH, 1976, pág. 37). A respeito do design vernacular urbano de São Paulo, Valese (2007) assinala que: “Muitos copiaram ou aprenderam, com os pais e parentes, o ofício de construir artefatos populares, buscando adaptar às necessidades pessoais e ao contexto onde vivem e trabalham. Outros procuram terceiros que se dedicam à produção em série, em cuja manufatura podem utilizar técnicas artesanais ou semi-industriais”. (VALESE, 2007, p. 86) Quando é feito por um produtor, ou por um terceiro, o artefato é comprado de uma pessoa que tem como ofício a produção deste tipo de objeto, de alguém que não precisa mais dele e o coloca à venda ou de uma pessoa que o faz para que simplesmente outra pessoa o utilize sem intenção de lucro. Segundo Valese (2007), por causa da proliferação nos grandes centros urbanos têm surgido pequenas e médias empresas que se especializam na industrialização e comercialização de carrinhos e aparatos para o comércio formal. A respeito do deslocamento dos artefatos do DND, e lembrando que nosso contexto de estudo é a rua, podem se encontrar 2 tipos de artefatos, segundo Valese (2007), artefatos fixos e móveis. Os artefatos fixos “são aqueles cuja função não requer o movimento constante do artefato para a venda dos produtos”. Como por exemplo, barracas expositoras, bandejas fixas e expositores no chão (VALESE, 2007, pág. 24). E os artefatos móveis são aqueles “confeccionados para uso em movimento, com o objetivo de oferecer serviços e produtos aos 44 clientes/consumidores”, como por exemplo: as carroças do catadores, o carrinho de café, de amolar facas, a lata para vender amendoim, etc. (VALESE, 2007, pág. 30) Com relação à forma de produção, os objetos do DND se fazem principalmente com as mãos (produção artesanal), ou com a ajuda de instrumentos e máquinas que facilitam sua realização (produção semi-industrial) e permitem a manipulação e a transformação dos materiais. Valese (2007) denota que os artefatos semi-industriais são criados a partir de um ferramental apropriado e adequado aos materiais com técnicas de solda e rebite, por exemplo. (VALESE, 2007). Cabe anotar que alguns artefatos resultantes do DND são feitos juntando várias técnicas de produção, ou seja, apesar de serem elaborados com ajuda de máquinas, se presencia um trabalho manual forte. É o caso da cadeira feita a partir de um suporte de vergalhão e um assento tecido com fitas plásticas (FIG. 11). Para fazer o suporte, é necessário contar com arco elétrico para a soldagem e para a elaboração do tecido, o principal instrumento são as mãos. Figura 11 - Cadeira com assento de fitas plásticas Fonte: Foto da Autora 2.2 Outras aproximações com o conceito de DND A continuação segue com uma exploração das definições de algumas abordagens relacionadas com o DND. Vários autores, como dissemos anteriormente, têm estudado o tema, porém, para fazer esta resenha optamos pelas abordagens mais pertinentes: Design Vernacular, Non-professional Design, NonIntentional Design, Design Intuitivo e Design Espontâneo. 45 A grande maioria dos pesquisadores que estudam o design praticado por não-designers aqui no Brasil utilizam o termo ‘design vernacular’. Segundo Fátima Finízola, na comunicação gráfica a utilização do termo vernacular “corresponde às soluções gráficas, publicações e sinalizações ligadas aos costumes locais, produzidos fora do discurso oficial” (FINÍZOLA, 2010) (FIG.12) Figura 12 – Tipografía Vernacular Fonte: Foto da Autora Segundo Naotake Fukushima (2009), o design vernacular é usado para definir dois tipos de manifestações distintas. A primeira se refere aos artefatos típicos de uma região, que não têm influências estrangeiras. Como exemplo disso, podemos citar vários dos artefatos nordestinos que Lina Bo Bardi registrou ao longo do seu trabalho (FIG. 13). A segunda se refere às práticas que se apropriam de características de elementos locais para criar um artefato novo que as reflete. (FUKUSHIMA, 2009). Da mesma maneira, Vicky Richardson, dentro da arquitetura, utiliza o termo vernacular como um atalho para se referir a obras que adotam o espírito do vernáculo, mas não suas formas reais. (RICHARDSON, 2008) Figura 13 - Vasilhame Fonte: Exposição de Lina Bo Bardi sobre o design nordestino 46 Tendo em vista as divergências sobre o termo, e que nem sempre faz referência ao design praticado por não-designers, para não cair na confusão se o design vernacular alude propriamente a artefatos vernáculos ou às obras que adotam e incorporam elementos vernaculares, optamos nesta pesquisa pelo uso do termo ‘Design por Não-Designers’ (DND) Igualmente, o termo “vernacular” também lembra algumas vezes práticas tradicionais. De acordo com Walker (2002), o design vernacular “refere-se à produção de artefatos por culturas tradicionais, o qual é caracterizado pela criatividade, o uso de recursos limitados disponíveis em seu ambiente e com um valor simbólico forte frequentemente embutido nos objetos, cujos valores excedem os benefícios funcionais.” (WALKER, 2002, apud RIUL, 2013 tradução nossa) 8 . Estes valores tradicionais nem sempre estão presentes no DND. Muitas das soluções materiais do DND nascem da espontaneidade, como são os refúgios dos moradores de rua que não tem muito a ver com a tradição, e sim com a recursividade. Outra abordagem que encontramos na revisão bibliográfica foi o NonIntentional Design (Design Não Intencional, NID em seu acrônimo inglês) (FIG. 14), termo cunhado por Uta Brandes e Michael Erlhoff (2006) e que define o re-design cotidiano do projetado, ou seja, a cadeira que é usada (também) como guardaroupa, a geladeira que se transforma num quadro de anúncios, as escadas que servem para sentar-se, frascos de geleias que guardam canetas, etc. Figura 14 - Embalagem de Macarrão Instantâneo usado para guardar canetas. Fonte: Foto da Autora 8 Vernacular design refers to the production of artifacts by traditional cultures which is characterized by creativity, the use of limited resources available in their environment and with a strong symbolic value often embedded in the objects, and whose values exceed the functional benefits. 47 Segundo eles o NID desafia todas as normas. Este fenômeno só pode existir nas áreas onde se rompe com as intenções predeterminadas, pois implica uma transformação dos objetos em combinação com novas funções. As suas manifestações desmentem, por exemplo, a expressão “a forma segue a função”, já que podemos observar que formas similares são usadas para o mesmo propósito, mesmo que elas não tenham sido criadas para cumprir a mesma função. O Nonintentional Design se origina, segundo os autores, devido a situações temporárias déficit, por conveniência, por brincadeira, devido a que no mercado não se encontram soluções para algo determinado, por serem alternativas econômicas, soluções de emergência, por motivos ecológicos, por redução de esforços, pela otimização da função. (BRANDES, URLOFF, 2006) Embora muitas das manifestações do NID caibam dentro do conceito do DND, muitas das manifestações do DND não concordam com a definição do NID. É o caso dos objetos que empregam novas matérias primas para sua produção. O Non-Intentional Design nasce do reuso, assim como o Design Espontâneo que explicaremos na continuação. O Design Espontâneo, termo cunhado por Maria Cecília Loschiavo, é uma prática criativa exercida por moradores de rua, pessoas carentes, que consiste em encontrar soluções aplicáveis a problemas concretos, num contexto de severa falta de recursos. É um tipo de design estritamente relacionado com a sobrevivência e que está presente e visível nas ruas dos grandes centros ao redor do mundo deixando sua marca na topografia visual da paisagem urbana. (SANTOS, 2000). Já o Design Intuitivo aborda as “maneiras intuitivas em que nos adaptamos, exploramos, e reagimos a coisas em nosso ambiente; coisas que fazemos sem pensar realmente” (FULTON SURI, 2005 apud BRANDES 2009, tradução nossa)9 . Esta abordagem foi proposta por Jane Fulton Suri, diretora de “Fatores Humanos” na IDEO, uma das maiores consultoras de design do mundo. O seu propósito consiste em encontrar inspiração na vida cotidiana para achar novas ideias e soluções para a companhia a partir do entendimento dos comportamentos habituais das pessoas que não necessariamente tem a ver com a criação de novos objetos, mas com a maneira 9 Those intuitive ways we adapt, exploit, and react to things in our environment; things we do without really thinking. 48 como elas interagem com o ambiente em que se movimentam. É uma abordagem mais focada nos fatores humanos. (FIG. 15) Figura 15 – Reações a novas superfícies Fonte: FULTON SURI, 2005, p. 12 Todas estas práticas estão dentro do conceito de ‘Design por não designers’, mas cada qual aborda pontos de vista diferentes. A que mais tem abrangência e a que mais se aproxima do conceito que estamos utilizando é a abordagem exposta por Philp Pacey (1992). No artigo “Anyone designing Anything? Non-Professional Designers and the History of Design”, o autor diz que o design pode redefinir seu papel se reconhecer que todos somos designers, a fim de aumentar o enriquecimento dos que estão envolvidos na atividade, e ao mesmo tempo, a história do design encontrar uma maneira de mostrar que o design não é uma atividade exclusivamente dos países industrializados. Pacey (1992) cita vários casos de design feito por não profissionais. No primeiro caso fala do design nas sociedades pré-industriais, e coloca como exemplo, os Inuit, que é o nome dado aos distintos povos esquimós que habitam a zona ártica da América e Groenlândia, e são considerados por Victor Papanek como os melhores designers do mundo (FIG. 16). Jack Anawak, membro dessa comunidade, escreveu: “Em um ambiente rigoroso... é necessário passar de geração em geração o conhecimento e as habilidades para assegurar a sobrevivência. Aprender estas habilidades não é opcional”. (PACEY, 1992, apud ANAWACK, 1989, pág. 218, 49 tradução nossa) 10 . Os artefatos feitos nestes ambientes nascem da completa necessidade e geralmente não podem ser atribuídos a um criador só, pois surgem a partir de processos de experimentação realizados por vários indivíduos, em diferentes épocas. Papanek (1995) no seu livro “The Green Imperative” observa que: Quem são os melhores designers do mundo? [...] Desde o ponto de vista do designer trabalhador, que lida com novos materiais e muda tecnologias, assim como a influência nas forças do mercado, a pergunta é tão simples até o ponto de chegar a ser absurda. Se definirmos o design como o encontro de soluções de trabalho que são imediatamente aplicadas a problemas no mundo real – a resposta –ou minha resposta ao menos- é imediatamente óbvia: Os Unit são os melhores designers. (PAPANEK, 1995, p. 223). Figura 16 – Iglu dos Inuits Fonte: THE HISTORY...,2014 Pacey (1992) também fala das criações das donas de casa, de movimentos sociais de pessoas que acham que os produtos existentes podem ser melhores do que eles são como, por exemplo, os Nader’s Raider, o grupo japonês Chifuren11, e a iniciativa Lucas Aerospace nos anos 60 12 , também da habilidade criativa das crianças, que podem converter uma mesa em uma casa, e do potencial que existe no design não ocidental. O autor cita uma frase do livro You are designer publicado 10 'In a harsh environment ... it is necessary to hand down from generation to generation the knowledge and skills to ensure survival. Learning these skills is not optional. 11 Ralph Nader, ativista e advogado estadunidense, e seu grupo os Nader's Raiders nos anos 60, identificaram falhas em certos automóveis, inspirando a formação de grupos, entre eles um grupo de mulheres no Japão chamado Chifuren, que em 1968 começaram a fazer seus próprios produtos para demonstrar as deficiências dos que são feitos por grandes companhias. (Pacey, 1992) 12 Lucas Aerospace na Grã-Bretanha é uma grande corporação dedicada à fabricação de componentes aeroespaciais. Nos anos 70, seus trabalhadores criaram uma Comissão de Delegados Sindicais de Lucas Aerospace com a finalidade de proteger seus empregos e com a ideia de mudar a produção para produtos socialmente mais úteis tais como veículos rodoviários ao invés de componentes para aviões militares. (MARTIN, 1990) 50 em Londres em 1974 pelo Schools Council Design and Craft Education Project “Todos somos designers. Projetamos coisas para usar, coisas para comer e coisas para fazer. Quando você trabalha em como fazer um canil para seu cachorro, ou na melhor maneira de redecorar seu quarto, você está projetando”. (PACEY, 1992, Pág. 222, tradução nossa)13. A diferença da abordagem de Pacey (1992) é que o DND neste projeto se concentra nos artefatos criados nesta época, que são encontrados na rua, e que nascem paralelamente á prática da disciplina do design como se conhece hoje. 2.3 A Prática do DND 2.3.1 Tipos de Intervenção. A maioria das manifestações do DND se produz através do reuso, excetuando aqueles casos quando a composição de um objeto surge a partir de novos materiais. Por isso, queremos expor os diferentes tipos de intervenção que Boufleur (2006) propõe falando sobre a “gambiarra” partindo da forma e função dos artefatos. Elas são: a. Uso incomum sem mudança de função ou forma. Neste caso o objeto permanece, sem intervenções físicas, mas com mudanças no seu significado. Figura 17 – Pregador usado para prender uma pauta musical Fonte: Foto de Pit Thompson 13 We are all designers. We design things to use, things to eat and things to do. When you are working out how to make a kennel for your dog, or the best way to redecorate your room, you are designing. 51 b. Simples mudanças de função sem alterar forma. Não há alterações físicas no objeto, mas se lhe atribuem funções diferentes. Figura 18 – Caixote usado como prateleira Fonte: Foto da Autora c. Inclusão/exclusão de peças ou componentes, mantendo a mesma função. São intervenções que muitas vezes dão ao artefato uma segunda vida, às vezes com resultados esteticamente desagradáveis, ou com resultados curiosos que tornam o artefato em algo único. (BOUFLEUR, 2006) Figura 19 - Banco com almofada Fonte: Foto da Autora 52 d. Mudança da forma para mudar a função. Com algumas mudanças na forma do objeto com furos ou recortes, muda-se a função dele para suprir uma nova necessidade. Figura 20 - Churrasqueira de espetos feita a partir de uma lata Fonte: Foto da Autora e. Inclusão/exclusão de partes, peças ou componentes para mudar a função. Com a inclusão de algumas peças que não pertenciam ao artefato se muda a função. Figura 21 – Carrinho de supermercado com peças incluídas Fonte: Foto da Autora 53 f. Composição de um novo artefato a partir do aproveitamento de outros. Através de combinações de outros artefatos se obtém um novo. Figura 22 - Suporte para flores artificiais. Fonte: Foto da Autora 2.3.2 Como se faz Está claro que o DND encontrado nas ruas nasce maiormente para atender uma necessidade. Vários autores o confirmam e se observarmos cada um dos casos detalhadamente, o denominador comum a todos é que prima a funcionalidade. Boufleur (2006), no projeto A questão da Gambiarra,, aponta que são necessários três elementos fundamentais para que seja feita uma gambiarra (FIG. 23). Esta prática vista como um tipo de design realizado por não-designers não designers cabe dentro do que é chamado nesta pesquisa pesquis de DND. Eles são: 1. Existência de uma Necessidade: O que você precisa? Por quê? Para quê? 2. Recursos Materiais Disponíveis: Que peças, objetos serão usados? 3. Definição de uma ideia: Como? De que maneira vou proceder? 54 Figura 23 – Fórmula da Gambiarra Fonte: BOUFLEUR, 2006, p. 49 Segundo Pereira (2004) as peças resultantes do design feito por nãodesigners são “desenvolvidas para satisfazer a uma demanda e em que, a cada situação, se emprega uma instrumentação própria conforme os meios disponíveis para que se tenha como resultado final um produto capaz de atender a determinadas necessidades”. (PEREIRA, 2004, p. 26) Ambos autores, Boufler (2006) e Pereira (2004), concordam que o processo começa partindo de uma necessidade e de se ter materiais disponíveis para levar a cabo a prática. Entenda-se que a disponibilidade de materiais se refere tanto à possibilidade de adquiri-los, seja comprando-os ou procurando-os no lixo, ou à possibilidade de tê-los à mão e reusá-los. Do mesmo modo, Valese (2009) afirma que de modo geral o design vernacular urbano (como ela denomina) nasce a partir da criatividade, da observação e da prática. A criatividade se apresenta tanto na escolha e nos arranjos dos materiais, como nos modos de produção cada vez mais híbridos, é indiscutível que estes artefatos são “manifestações inequívocas de sabedoria criativa” (Borges, 2013). E da observação e a prática, quando se imitam ou reproduzem os processos, sem chegar a replicar o objeto. Para Martín Juez (2002): 55 O designer não profissional é capaz de reproduzir, com a técnica de que dispõe, soluções conhecidas e úteis para a maioria das pessoas. Ainda que sua visão se limite aos componentes óbvios do problema, e sua solução à tecnologia que tem mais à mão, é capaz de confrontar a demanda diária de soluções mediatas com certa eficiência (MARTIN JUEZ, p. 31, 2002, 14 tradução nossa) Gabriela Gusmão Pereira (2004) no livro “A rua dos inventos” cita as palavras de um vendedor ambulante de amendoim: “Eu não sabia fazer essa lata, não. Eu vi uma pessoa fazer. Aliás, não vi fazer. Vi pronta e aprendi. Olhei a dele e falei: Vou fazer igual” (PEREIRA, 2004). 2.3.3 Por que se faz 2.3.3.1 O DND dos vendedores ambulantes. A grande maioria dos artefatos resultantes do DND gira em torno do comércio informal como meio de sobrevivência. De acordo com Pereira (2004), as criações expostas no seu livro a Rua dos Inventos “resultam da necessidade do homem da rua. A luta árdua no dia-a-dia da própria sobrevivência na cidade conduz a um modo peculiar de produção de artefatos” (PEREIRA, 2004, p. 31). Esse modo, como já dissemos anteriormente, está associado aos baixos custos, ao reuso de elementos ou partes que geralmente foram de outro objeto, a materiais relacionados com processos de produção artesanais ou semi-industriais, etc. No caso do DND, quais são as circunstâncias que obrigam seus atores a agir dessa maneira? Quais são os estados de tensão, as deficiências, as carências que ditam esse comportamento? A grande maioria dos artefatos do DND tem relação com os camelôs15 ou com o setor informal. Segundo Valese (2009), “A crescente proliferação do design vernacular urbano na cidade de São Paulo está associada aos processos migratórios, às taxas de desemprego e ou aumento de pessoas que ingressam no setor informal” (VALESE, 2009, p. 22). Comecemos por explicar por que existe este tipo de comércio em países como Brasil. A respeito dele Tomazini ressalta que: 14 El diseñador no profesional es capaz de reproducir, con la técnica y materiales de que dispone, soluciones conocidas y útiles para la mayoría de la gente. Aunque su visión se limite a los componentes obvios del problema, y su solución a la tecnología que tiene más a mano, es capaz de encarar la demanda diaria de soluciones mediatas con cierta eficiencia. 15 Camelô: Vendedor ambulante 56 É o mecanismo através do qual procuram sobreviver os migrantes que não encontram emprego na área organizada do mercado de trabalho. É o excedente estrutural de mão-de-obra que cria o setor informal urbano, segundo sua própria lógica: gerar circuitos de sobrevivência, através de um amplo segmento de atividades econômicas, onde seus integrantes se autoempregam na produção de bens e serviços em pequena escala e com baixos níveis de produtividade, com os quais obtêm uma pequena renda, a renda informal. (TOMAZINI 1995, apud JESUS, p. 114, 2011) De acordo com Jesus (2011), na realidade brasileira a informalidade tende a permanecer devido às chances do mercado formal serem historicamente restritas ou porque os trabalhadores encontram na informalidade melhores condições de renda e trabalho que no setor formal. Igualmente Veleda da Silva (2003) observa que no Brasil muitos trabalhadores do setor informal, principalmente aqueles que são donos de postos no comércio, tem uma renda superior ao salário mínimo, e assinala que no momento da sua pesquisa a cifra dos trabalhadores informais era de 43 milhões em todo o país. (Valeda Da Silva, 2003). Segundo Rosenbluth (1994 apud VALEDA DA SILVA, 2003), as causas que explicam a magnitude da informalidade em países como o Brasil são três: 1) A incapacidade do setor formal de empregar totalmente a oferta de mão de obra; 2) A instabilidade ocupacional de algumas atividades; 3) A existência de espaços econômicos não cobertos pela modernização que propiciam as atividades por conta própria. Por conseguinte, se poderia dizer que os artefatos utilizados como meio de exibição, transporte, descanso, elaboração de alimentos, oferta de serviços, etc., resultantes do DND nascem porque a maioria pertence a um sistema fundamental de objetos que permitem levar a cabo atividades dentro do trabalho informal que se usa como meio de sobrevivência. Por sua vez essa informalidade se faz possível, segundo vários autores, devido às poucas oportunidades de trabalho e baixos salários no setor formal, à desproporção entre oferta e demanda de mão de obra, a certos espaços na economia local que propiciam este tipo de atividade e à falta de estabilidade que oferecem algumas ocupações. 2.3.3.2 O DND a partir das múltiplas funções de um objeto. Por outro lado e do ponto de vista da percepção do objeto, Kasper (2007) no artigo O uso como invenção, fala das diferentes possibilidades de uso que tem um caixote além da função para que foi feito que é transportar frutas, verduras e legumes. Nele relaciona o conceito de affordance criado por James Gibson como 57 parte da sua teoria de percepção a partir do verbo to afford que significa propiciar, oferecer, suprir, com as possíveis ações e usos que esses caixotes propiciam. O autor assinala que segundo Gibson, “o que percebemos das coisas não são as qualidades, como o defende a psicologia clássica, mas as possibilidades de ação que elas oferecem, isto é, suas affordances” (KASPER, pág. 5, 2007). No caso dos caixotes, certas affordances não têm relação com a função para a qual ele foi fabricado, pelo contrário, são modos de usar radicalmente imprevisíveis. Segundo Broch (2010) “uma affordance é produto da relação entre as estruturas físicas do ambiente e o intelecto dos seres vivos” (BROCH, pág. 26, 2010) e a ação que decorre dessa relação está comprometida com a escala e as capacidades físicas do agente, a sua capacidade de percepção e abstração, mas isso não quer dizer que uma affordance depende do agente, elas existem mesmo que o agente não as utilize, o autor coloca um exemplo, a função principal de uma faca é cortar alimentos, mas pode servir como arma, mesmo que a pessoa seja pacífica. Ao relacionar o conceito de affordance com o DND, pode-se dizer que os criadores deste tipo de artefatos nas ruas aproveitam as affordances de um objeto para construir novas formas e, portanto, novos usos. Os objetos do DND que nascem do “pós-uso” são possíveis porque como seres humanos além de ter a capacidade de exercer uma influência em nosso entorno através de nossa atuação (LOBACH, 1978), temos a capacidade de perceber e relacionar as formas dos objetos, não só com a função principal para a qual foram projetadas, mas também com outras possibilidades. Figura 24 - Prateleira de flores feita com caixotes Feira das Flores Fonte: Foto da Autora 58 CAPÍTULO 3. DND EM BELO HORIZONTE Este capítulo apresenta o perfil dos artefatos resultantes do Design por nãodesigners (DND) encontrados em Belo Horizonte. Belo Horizonte é a capital do estado de Minas Gerais, localizada no sudeste do Brasil, com uma população de 2.479.165, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Através da descrição das suas caraterísticas principais, estipuladas a partir da análise do discurso de outros autores, e das fotografias tiradas em seus lugares de uso, criamos uma categorização levando em conta cinco aspectos que consideramos principais, e exemplificamos com casos encontrados na cidade. Desta maneira, pretendemos contribuir com a documentação dos artefatos do DND na cidade, que retratam os modos de viver e ver o mundo das pessoas que continuamente têm contato com rua, e com as quais o design pode aprender lições. 3.1 Perfil dos artefatos encontrados. Com a finalidade de estabelecer de maneira detalhada as principais caraterísticas do DND em Belo Horizonte, na continuação se construirá o perfil dos artefatos encontrados na ruas da cidade a partir das caraterísticas gerais que mencionaram outros autores e que foram descritas no capítulo 2. Dividimos o perfil em 5 pontos principais: Materiais, autor, possibilidade de deslocamento, formas de produção e uso. Referindo-nos aos materiais, de acordo com outros autores, muitos dos artefatos encontrados nas ruas feitos por pessoas que não tem conhecimentos formais em design, são uma suma de elementos usados. Nas ruas de Belo Horizonte encontramos artefatos que cumprem este enunciado, como é, entre outros, o caso deste banco feito a partir de um tubo de PVC e papelão (FIG. 25-A). Mas, também encontramos artefatos feitos com materiais novos, como por exemplo, o material usado nos carrinhos para vender churros, que pode ser chapa branca galvanizada pré-pintada ou aço inox (FIG. 25B). 59 Figura 25 – Artefatos feitos com materiais novos e usados A B A. Banco feito com um tubo de PVC e papelão na rua Espírito Santo B. Carrinho para vender Churros na Av. Brasil Fonte: Fotos da Autora Os artefatos do DND podem ser feitos por um produtor ou pelo próprio usuário. Em Belo Horizonte, encontramos os dois casos. Latas para vender amendoim nas ruas feitas pelo próprio vendedor ou por uma terceira pessoa. O primeiro caso é do Senhor Daniel (FIG.26-A), que faz suas próprias latas há muitos anos, e o segundo é da Senhora Eva que recebe as latas feitas por um sobrinho, mas é ela quem torra o produto, faz os cartuchos e o embala. (FIG. 26-B) Figura 26 – Artefatos feitos pelo próprio usuário e por uma terceira pessoa A Fonte: Fotos do Autora B 60 A respeito do deslocamento dos artefatos do DND, como apontamos no capítulo 2, segundo Valese (2007), existem artefatos fixos e móveis. Encontramos em Belo Horizonte, como exemplo dos artefatos fixos, esta poltrona que usam os engraxates localizados na Praça Sete de Setembro (FIG.27-A), ponto fixo há muitos anos e que facilita a fidelidade dos seus clientes. Por outro lado, como artefatos móveis, podemos citar como exemplo o vendedor de algodão doce (FIG. 27-B) que utiliza uma piteira feita a partir de um tronco de pita (Furcraea foetida), (LAMAS; MARQUEZ; CANÇADO; 2011) onde coloca o produto para ser vendido pelas ruas. Figura 27 – Artefatos móveis e fixos A B A. Cadeira de engraxate na Praça Sete de Setembro B. Vendedor de Algodão Doce na Av. Cristóvão Colombo Fonte: Fotos da Autora Também existem vários artefatos que oferecem as duas possibilidades: podem se deslocar ou podem ficar fixos num lugar. É o caso deste carrinho (FIG. 28) feito com ferro, solda e metalão, que permite o deslocamento para encontrar mais clientes, mas que o vendedor, o senhor Tarcísio, por sua deficiência visual, permanece certas jornadas em um lugar só. Dentro de nossa pesquisa descobrimos que este vendedor ambulante, tem vários pontos fixos na cidade: Rua da Bahia, Av. Afonso Pena, Av. Amazonas, Rua São Paulo, Rua Carijós e Rua Tupinambás. 61 Figura 28 – Artefato que oferece as duas possibilidades Rua Goitacazes e Rua da Bahia Fonte: Fotos da Autora A respeito da forma de produção dos artefatos do DND, podemos dizer que existem duas formas: a produção artesanal e a produção semisemi-industrial. Nas ruas de Belo Horizonte encontramos artefatos feitos principalmente com as mãos, como por exemplo, o banquinho feito por um consertador de guardaguarda-chuvas (FIG. 29) a partir de elementos próximos como um caixote para transportar bananas e o tecido impermeável que leva o guarda-chuva guarda chuva na parte superior amarrado com fios nos extremos para se ajustar ao tamanho do caixote. Os processos e os materiais empregados são totalmente mente artesanais. Também encontramos artefatos produzidos com materiais e processos semi-industriais semi industriais que exigem ferramentas que são de uso comum na fábrica, como exemplo, este fogão portátil feito a partir de perfis de ferro e solda. (FIG. 30) Figura 29 – Artefato de produção artesanal Fonte: Fotos da Autora 62 Figura 30 – Artefato de produção semi-industrial Feira Hippie – Av. Afonso Pena Fonte: Foto da autora Por último, com relação ao uso, aspecto que não foi mencionado antes, podemos dizer que encontramos artefatos que são de uso público, privado, individual e coletivo. De uso público, ou seja, que está disponível para todas as pessoas, sem distinção, podemos colocar como exemplo este cinzeiro feito a partir de um recipiente de plástico e cimento encontrado em uma praça da cidade. (FIG. 31) Figura 31 – Artefato de uso público Praça da Savassi Fonte: Foto da autora 63 De uso privado, é possível citar muitos exemplos. A maioria dos artefatos encontrados não estão disponíveis para serem usados livremente por outras pessoas. É o caso dos artefatos feitos por moradores de rua ou por vendedores ambulantes. Com relação aos artefatos que são usados por muitas pessoas, ou que tem um uso coletivo, encontramos objetos como lixeiras, caixas de papelão que viraram tapetes em época de chuva, cinzeiros, carros de venda de cachorro quente, mesas para jogar damas, etc. (FIG. 32-A). Porém, a maioria é de uso individual, como os carrinhos dos catadores, dos vendedores de sorvetes, bebidas, plantas, brincos, etc., banquinhos, baldes, rampas, etc. (FIG. 32-B) Figura 32 – Artefatos de uso coletivo e individual A B A. Tapete feito a partir de uma caixa de papelão na Av. Augusto de Lima B. Banquinho na Rua Piauí Fonte: Fotos da autora Como conclusão, podemos dizer que o perfil dos artefatos encontrados em outras cidades do Brasil e do mundo, é muito parecido com o perfil dos artefatos encontrados em Belo Horizonte. Os artefatos resultantes do DND são feitos a partir de materiais novos e usados, alguns são feitos pelo próprio usuário, e outros são feitos por um terceiro, seja com intenção de lucro ou não. Encontramos alguns com possibilidade de deslocamento, ou seja, móveis, e outros que não proporcionam essa possibilidade, ou seja, fixos. E em relação ao uso, encontramos artefatos para serem usados individualmente, coletivamente, de forma privada e de forma pública. 64 3.2 Classificação O objeto de estudo desta pesquisa são os objetos resultantes do DND que são feitos para serem usados na rua. Estes tipos de artefatos foram mapeados principalmente na área central de Belo Horizonte, dividida por nós em 3 zonas: (1) Zona do Mercado Central, (2) Zona hospitalar e (3) Zona da Savassi (FIG.33). Nossa escolha do centro de Belo Horizonte deve-se a esta área caracterizar-se por ter uma grande atividade comercial durante o dia e à noite, somado à variedade de feiras que acontecem durante a semana e ao grande fluxo de pessoas que percorrem suas ruas. Figura 33 – Zonas de mapeamento Fonte: Mapa tomado do Google Maps com modificações da autora Após o mapeamento dos casos e do seu registro, fez-se uma seleção das melhores fotografias e os casos mais significativos, permitindo a sua classificação de acordo com o uso dado a esses artefatos. Esta classificação, feita através do método Card Sorting, dará uma base para o capítulo seguinte que expõe como o design pode aproveitar esta informação, em termos gerais, em seus processos e produtos. (FIG. 34) 65 Figura 34 – Processo da Categorização dos artefatos do DND Fonte: Criado pela autora É importante assinalar que o Card Sorting é um método amplamente usado por designers, entre eles a empresa consultora IDEO. Segundo Rocha (2008) “O funcionamento básico deste método consiste em levantar as informações essenciais [...] distribuir essas informações em cartões e propor para os usuários que organizem esses dados conforme seu entendimento” (Finízola, 2008 apud Rocha, 2008). Especificamente, neste projeto, utilizou-se o método a partir da impressão das fotografias dos artefatos encontrados e a organização de grupos com base nas suas características semelhantes em relação às suas formas de uso. (FIG. 35). 66 Figura 35 – Classificação das fotografias Fonte: Foto da Autora Estas foram as categorias resultantes: Figura 36 – Classificação dos objetos resultantes do DND segundo as formas de uso Fonte: Criado pela autora 67 Falaremos em seguida sobre cada uma delas: 3.2.1 Fornecimento de produtos e serviços. A maioria dos artefatos desta categoria pertence ao setor do comércio informal. Eles nascem para apoiar a atividade que proporciona os meios para que seu usuário tenha uma renda diária. Valese (2007) aponta, falando dos carrinhos utilizados para vender café café que estes “são criados para atender uma demanda, e, de acordo com cada situação, se emprega materiais e recursos disponíveis para se ter como resultado final um produto capaz de atender as necessidades de trabalho e subsistência”. ubsistência”. (VALESE, p. p 34, 2007). Pereira (2004) do mesmo modo afirma no livro Rua dos Inventos: “Não se pode desprezar, em tais artefatos, seu aspecto social, visto que são destinados a facilitar a vida dos indivíduos, representando atuações pessoais de luta pela sobrevivência em condições condições reais, em meio à sociedade” (PEREIRA, 2004, p. 33).. 3.2.1.1 Produtos. Nesta categoria podem-se podem se encontrar dois tipos de produtos a serem comercializados: -Produtos Produtos comestíveis: comestíveis Como balas, chips, picolé, cachorro quente, garrafas de água, refrigerantes, pirulitos, chicletes, algodão algo doce, amendoim, etc. (FIG.37)) -Produtos Produtos não comestíveis: comestíveis Como bijuterias, plantas, flores artificiais, produtos para pequenos consertos c em casa, etc. (FIG. 38) 38 68 Figura 37– Artefatos usados para fornecer produtos comestíveis A. Cesta para venda de balas. B. Lata de Amendoim. C. Carrinho para venda de bebidas D. Caixa para venda de balas E. Carrinho para venda de picolés. F. Descascador de laranjas. G. Veículo para venda de cachorro quente. Fonte: Fotos da Autora 69 Figura 38 – Artefatos usados para fornecer produtos não-comestíveis A. Suporte para venda de flores artificiais B. Caixotes para plantas C. Carrinho para venda de produtos para pequenos consertos em casa. D- E - F. Suporte para venda de brincos. Fonte: Fotos da Autora 70 3.2.1.2 Serviços Encontramos nas ruas de Belo Horizonte objetos criados para fornecer serviços (FIG.39). ). A prestação de serviços é uma atividade em que os clientes não têm exclusividade do bem adquirido. Este bem pode ser tangível ou intangível. Incluímos nesta categoria as mesas localizadas na Praça Sete, que são alugadas pelos clientes por horas para jogar damas, guichês de relojoeiros, carrinhos com caixas aixas de som que anunciam publicidade, postos postos de trabalho dos engraxates e carrinhos que oferecem o serviço de transporte de mercadorias. Muitas vezes, vezes esse tipo de artefato contém cartazes anunciando os serviços a serem fornecidos, números de telefones e informações gerais de contato. Figura 39 – Artefatos que fornecem serviços A.. Posto de um consertador de relógios. B. Poltrona de um engraxate C.. Carrinho para transporte de elementos diversos. D.. Engraxate E. Cadeiras e mesas para jogar damas - F. Carrinho para transporte de elementos diversos. Fonte: Fotos da Autora 71 3.2.2. Transporte Esta categoria compreende os artefatos que são usados dentro do processo de levar objetos de um lugar para outro. Podemos encontrar 3 tipos de artefatos nesta categoria: Primeiro, os meios de transporte, que são os veículos nos quais se leva a cabo a ação, incluímos as carroças dos catadores que possibilitam o traslado de lixo até cooperativas e/ou empresas que o compram. Estas são geralmente feitas de aço e madeira, utilizando rodas de bicicletas ou automóveis. (FIG. 40) Figura 40 – Artefatos que permitem o transporte A - B Carrinho de ferro para catar lixo feito C - D Carrinho de madeira para catar lixo. Fonte: Fotos da Autora 72 Segundo, as infraestruturas, infraestruturas, que são as plataformas dispostas para suportar o tráfego de objetos, como por exemplo, escadas ou rampas. s. (FIG. 41) 41 Figura 41 – Rampa usada na construção Rua Gonçalves Dias Fonte: Foto da Autora E terceiro são os acessórios,, que não são veículos, pois não são usados para locomoção,, e também não são infraestruturas, infrae pois não são usados usado como suporte. Nesta categoria incluímos os baldes utilizados na construção para facilitar o deslocamentos tos de materiais ou lixo (FIG.42-A), (FIG.42 A), e as plataformas que são colocadas nas Kombis para permitir o transporte de objetos maiores e ampliar as possibilidades de novos serviços. os. (FIG. 42-B) 42 Figura 42 – Acessórios para o transporte A B A. Balde usado para transportar materiais. B. Plataforma instalada em uma Kombi Fonte: Fotos da Autora 73 3.2.3. Proteção e refúgio O DND nasce na maioria das vezes movido pela necessidade, pela falta de recursos econômicos, pelo estado de pobreza. Nesta categoria encontramos objetos usados como guarida e objetos para proteger-se da chuva, do frio, dos ventos, até de outras pessoas, etc., como refúgios feitos de papelão e fogões ou lareiras feitas de latas de amendoim ou tinta (FIG. 43). Estas manifestações geralmente são produzidas por moradores de rua. Maria Cecilia Loschiavo (2003), falando sobre o Design Espontâneo aponta: A sobrevivência impõe a sua própria linguagem e um mix racial e cultural. Esse processo de imaginação rica somado à estratégia de sobrevivência está presente na criação do habitat informal do morador em situação de rua, que levanta algumas perspectivas relativas à lógica do ‘faça você mesmo’ (Do It Yourself - DIY), possibilitando também uma análise sobre o ciclo do uso-abandono-descarte e a necessidade de reciclagem e reutilização do produto industrial. (SANTOS, 2013, p.83) Figura 43– Artefatos como proteção e guarida A. Lareira feita com uma lata e um caixote B. Refúgio de um morador de rua Fonte: Fotos da Autora 74 3.2.4. Organização e limpeza Esta categoria está composta por artefatos que são usados para contribuir com a disposição de forma ordenada dos objetos que compõem a rua ou que facilitam a retirada de lixo. Encontramos cinzeiros, lixeiras, sistemas para as plantas ficarem retas, objetos que moderam o movimento dos carrinhos dos vendedores ambulantes, etc. (FIG. 44) Figura 44 – Artefatos relacionados com a organização e a limpeza A. Suporte para árvores. B. Cinzeiro C.- D. Lixeira Baldes E. Tapete F. Freio para carrinho de pipocas. Fonte: Fotos da Autora 75 3.2.5. Descanso Esta categoria compreende artefatos usados para repousar o corpo. Nas ruas de Belo Horizonte são encontradas, principalmente, cadeiras feitas de madeira, aço, retalhos de tijolos, etc. ou a partir do reuso de caixotes ou tubos de PVC. Também se podem encontrar assentos consertados com peças de outros out assentos ou provenientes do lixo. (FIG. 45) 45 Figura 45 – Artefatos para descansar A.. Caixote usado como cadeira B. Banco consertado C. Cadeira D.. Banco feito de um tubo de PVC e papelão E – F Banco feito com um caixote e tecido de sombrinha - G. Banco feito de cimento. H. Banco feito de retalhos de madeira. Fonte: Fotos da Autora 76 3.2.6. Publicidade Constituem esta categoria os artefatos usados para anunciar produtos ou serviços. Encontramos nas ruas de Belo Horizonte principalmente artefatos feitos a partir de outros artefatos como cones de tráfego ou pedaços de madeira. (FIG. 46) Normalmente estes objetos estão localizados nas calçadas para chamar a atenção do pedestre, podendo ser à altura dos olhos ou mais abaixo. São fáceis de tirar e colocar e utilizam setas para indicar a localização da loja que anunciam. Figura 46 – Artefatos para fazer publicidade A. Faixa mostrando o cardápio do dia de um restaurante B. Peça de um bando de revistas C. Carrinho para publicidade oral D. Tabuleiro E – F - G. Suportes para anúncios. Fonte: Fotos da Autora 77 É importante e anotar que alguns artefatos podem se localizar em mais de uma categoria. Há artefatos que além de fornecer um serviço, são usados em processos de limpeza e organização. Como Como é o caso destes baldes (FIG.47-A) (FIG.47 encontrados na rua Goiás, atrás trás da Prefeitura, que são usados por lavadores de carro para transportar água gua e utensílios de limpeza. Também encontramos este carrinho que cobra por colocar anúncios publicitários publicitários na rua, o que faz com que possa ser localizado em diferentes categorias. (FIG. 47-B) 47 Figura 47 – Artefatos tefatos que se encaixam em mais de uma categoria A A. Elementos para limpar carros B. Artefato para publicidade oral Fonte: Fotos da Autora B 78 CAPÍTULO 4. OPORTUNIDADES DE AÇÃO PARA O DESIGN A PARTIR DO DND Este capítulo abordará questões sobre como o design pode e tem aproveitado a informação extraída da análise da prática do DND, sugerindo possibilidades de ação relacionadas com a prática do DND nas ruas de Belo Horizonte. Priscila Farias (2011) no artigo Aprendendo com as ruas: a tipografia e o vernacular, cita Amos Rapoport (1999), apontando que há quatro atitudes que o design pode tomar com respeito a estes tipos de manifestações. A primeira é ignorálas, a segunda é admitir a sua existência, mas negar a possibilidade de que possam dar lições úteis, a terceira é copiar suas formas e detalhes e a quarta é procurar extrair delas princípios mais ou menos gerais que possam ser aplicados ao design de forma ampla. (RAPOPORT 1999 apud FARIAS 2011). Focaremos na terceira e quarta atitudes, onde o design está disposto a aprender lições. Iván Cortés (2013), editor da revista colombiana Proyecto Diseño, apontou no artigo “Diez reflexiones post debate”: “O design vernacular pode superar o design profissional”. (CORTÉS, 2013) Em alguns casos as soluções que propõe o DND são melhores do que um designer poderia propor, pois, em alguns casos os mesmos usuários conhecem melhor seus problemas ou necessidades, os materiais com os quais conta, os seus gostos, etc. Assim, neste capítulo discorreremos sobre 03 oportunidades de ação para o design a partir do DND: A primeira é sobre como o design pode aprender com a análise do DND. A segunda, sobre como pode apropriar-se de elementos locais para afirmar identidades. E a terceira, uma atitude que não é tocada por Rapoport (1999), é sobre como o design pode difundir este ‘saber fazer’ para que outras pessoas possam se beneficiar destes conhecimentos. 79 4.1 Lições do DND O design profissional, ao longo dos anos, vem aprendendo lições a partir da prática do Design por Não-Designers (DND). Privilegiaremos 03 aspectos para nosso estudo de caso: Formas inovadoras para resolver um problema, o pós-uso dos objetos industriais e estratégias para a sustentabilidade. 4.1.1 Formas inovadoras para resolver um problema. Com respeito a este tema, mostraremos três casos em que um artefato feito por um não-designer foi tão bem sucedido que foi levado à indústria ou foi rapidamente espalhado para outros países. O primeiro é o caso do lavador de arroz (FIG. 48) proposto por Therezinha Zorovich em São Paulo em 1958. Com problemas de desperdício de grãos na hora de lavar o arroz, a dentista e dona de casa criou um pote em formato de V que diminuía a quantidade arroz que ia parar na pia. Fez o primeiro protótipo com papel laminado, patenteou a ideia e mostrou para que várias empresas o produzissem. Em 1961, a indústria Trol aceitou, fechou um contrato com ela por 5 anos e Therezinha passou a receber 2,5% sobre as vendas para as lojas. (A DENTISTA, 2014) Figura 48 - Lavador de arroz e sua criadora Fonte: A DENTISTA..., 2014 O segundo é o caso do Hippo Water Roller (FIG. 49), um artefato que facilita o transporte de água para comunidades na África, onde milhões de mulheres e crianças são forçados a carregar todos os dias vasilhames pesados em distâncias que variam entre 2 a 10 quilômetros (HIPPOROLLER, 2014). Fazendo a revisão da bibliografia, encontramos um artigo publicado na Revista Arcos (1977), do designer Aloísio Magalhaes 80 com uma fotografia tirada por Beto Felício em Cabo Frio em 1973. (FIG. (FIG 50) na qual é mostrado um artefato similar ao Hippo Water Roller. Segundo o site do projeto, o objeto foi inventado por dois sul--africanos: Pettie Petzer e Johan Jonker, em 1991. Não temos certeza da relação dos dois dois artefatos, mas independentemente, se os criadores oficiais conheciam ou não o invento brasileiro, podemos ver que uma solução parecida com um artefato resultante do DND, tem solucionado solucionado um problema que afeta milhões de pessoas, confirmando que as ideias que nascem dos mesmos usuários, em muitos casos, são muito mais efetivas. Figura 49 – Hippo Water Roller Fonte: HIPPOROLLER, 2014 Figura 50 – Artefato de 1973 em Cabo Frio (RJ) Fonte: MAGALHÃES, 1977, p. 8 81 O terceiro caso é outro invento brasileiro, uma lâmpada feita com uma garrafa de plástico, água e água sanitária, incrustada em uma telha, e que funciona através da refração da luz do sol. (FIG. 51). O criador foi Alfredo Moser, um mecânico de Uberaba, cidade de Minas Gerais, que em 2002 teve problemas de energia. Seguindo o método de Moser, a fundação MyShelter nas Filipinas começou a treinar pessoas para elas aprenderem a fazer as lâmpadas e instalá-las, e assim, ganhar um pouco de dinheiro. Segundo a BBC News (2013), a ideia se espalhou em outros 15 países como a Índia, Bangladesh e Tasmânia a Tanzânia, Argentina e Fiji. (ALFREDO, 2014) Figura 51 – Lâmpada de Moser Fonte: ALFREDO, 2014 Os três casos evidenciam que muitas vezes o DND pode superar o design profissional, que é importante observar e aprender com ele conceitos que podem ser levados a outras áreas e a outros problemas e necessidades, sem violar direitos de autor. Com referência a isto, e falando sobre a gambiarra, Boufleur (2006) aponta que: “Aparentemente, a prática da gambiarra possibilita a otimização de um ciclo de produção, consumo, uso e descarte frente a prática do design industrial. Isso porque ele condiciona o indivíduo a encontrar uma solução melhor direcionada à sua real necessidade, sem interferência de outros objetivos, o que resulta na economia de energia, redução da necessidade de insumos, eliminação de diversas etapas e de processos, além da melhor relação entre disponibilidade e demanda.” (BOUFLEUR, 2006, Pág.126). 82 Desta maneira vemos que nem sempre o design profissional tem a última palavra, pois muitas vezes os mesmos usuários conhecem mais seus problemas, necessidades, oportunidades e os materiais que estão no meio, atingindo uma solução mais acertada. 4.1.2 Pós-uso de objetos industriais Como pudemos observar ao longo do projeto, muitos artefatos resultantes do DND, nascem a partir do pós-uso de objetos industriais, este é o segundo ponto. Observar e aprender sobre o que fazem os consumidores com os objetos antes de jogá-los no lixo pode criar novas possibilidades para os processos de criação do design que ajudem a melhorar a relação objeto/usuário, e também sugerir opções para prolongar a vida útil do produto. Segundo os autores do livro Design by Use: “A consideração do Non-Intentional Design durante os processos de design está ligada a incrementar consciência dos aspetos empíricos do dia-a-dia. Esta consciência esperamos que possa levar a uma (auto) reflexão de algum tipo a qual é uma pré-condição para a conceptualização e implementação de uma abordagem aberta em design. NID como um método muda a perspectiva de onde vemos e avaliamos o mundo dos objetos e deste modo representa um enriquecimento de nossa percepção”. 16 (BRANDES; STICH; WENDER, 2009, pág. 185, tradução nossa) Ou seja, observando as soluções criativas do dia-a-dia, o design poderia ter uma abordagem mais aberta na hora de projetar. Estar atento a estas manifestações muda a maneira de percebermos o mundo material, e isso cria novas oportunidades para o design. Como exemplo disso, podemos citar estas cadeiras feitas só para colocar roupa, uma projetada pelo designer mexicano Alberto Villareal (FIG. 52-A) e a outra pelos designers suíços Fries & Zumbühl (FIG.52-B) onde é evidente a consideração de uma ação do dia-a-dia (neste caso do uso) para projetar o artefato. Além de serem propostas inovadoras, criam laços emocionais entre o usuário e o objeto. 16 A consideration of NID during the design process is bound to raise awareness for the empirical aspects of everyday life. This awareness will hopefully lead to a self-reflection of some kind which is a precondition for the conceptualising and implementation of an open approach in design. NID as a method changes the perspective from which we view and evaluate the world of objects and thus represents and enrichment of our perception. 83 Figura 52 – Cadeiras feitas para colocar roupa A B Fonte: ESSA…2014 e ERROR…, 2014 Com relação ao prolongamento da vida útil de um objeto a partir da análise do seu pós-uso, podemos dizer que o design pode ter um papel muito importante na hora de projetar o objeto, pois podem-se propor soluções para alongar a vida útil deste desde as primeiras fases do projeto. Sabendo destas oportunidades de ação para o design, surgiu o termo Design para o repropósito (tradução de Design for repurposing). Uma estratégia de design que diz que é possível projetar um produto com qualidades, caraterísticas e detalhes que facilitem o repropósito. É dizer que os mesmos objetos incentivem o usuário a lhes dar uma segunda vida. Darinka Aguirre, a autora, aponta que há três maneiras de abordar o Design for repurporsing. A primeira é o repropósito planejado, quando o designer pensa de antemão a segunda vida do artefato. É o caso desta embalagem de Nutella que mostra que foi projetado para ser reutilizado, neste caso como um copo. (FIG. 53-A). Os frascos de requeijão ou geleias são também um exemplo disto (FIG. 53-B), e esta garrafa de uma bebida energética também. (FIG. 53-C) (AGUIRRE, 2014). 84 Figura 53 – Exemplos de Repropósito Planejado A B C Fonte: A- AGUIRRE, 2012; B- Foto da Autora; C- THIS...,2014 A segunda é o repropósito guiado, quando o designer faz sugestões aos usuários sobre como podem ser reutilizados os objetos através de etiquetas e/ ou desenhos (AGUIRRE, 2014). Como exemplo desta categoria citamos o Projeto Reuse na Costa Rica, impulsado pela agência de publicidade McCann Erickson e a Universidade Veritas. O projeto tem como objetivo promover a reutilização de resíduos de produtos de consumo massivo sugerindo aos consumidores novas formas de uso. As empresas que querem participar do projeto, escolhem 10 embalagens e levam uma amostra destes para os estudantes de design fazerem experimentos sobre possíveis formas uso. Os resultados são colocados no site www.quehagoconesto.org (que significa ‘o que faço com isto’) junto com fotografias que explicam o processo passo a passo e nas embalagens é colada uma etiqueta que sugere formas para seu reuso. Por exemplo, um recipiente de gel para o cabelo tem ícones sugerindo a reutilização como um aquário, como um organizador de guardanapos, como conjunto de halteres ou um vaso para plantas. (HATTAM, 2014) (FIG. 54) Figura 54 – Exemplo de repropósito guiado Fonte: QUEHAGOCONESTO, 2014 85 E a terceira é o repropósito ilimitado (FIG.55), quando o designer reconhece que o objeto pode ter infinitas maneiras de ser reutilizado e só detalha como poderia ser o repropósito, mas deixa a possibilidade para o usuário escolher o que fazer. (AGUIRRE, 2014) É o caso destes cartazes onde o designer colocou marcas mostrando como se poderiam reutilizar como tecidos para criar uma mochila. Figura 55 – Exemplo de repropósito ilimitado Fonte: AGUIRRE, 2014 Encontramos nas ruas de Belo Horizonte dois artefatos que por sua simplicidade formal e sua disponibilidade permitem o reuso de múltiplas formas. Eles são as latas de óleo ou de tinta e os caixotes (FIG. 56). Isto gera oportunidades para os designers contribuírem com o prolongamento da vida útil do objeto desde as primeiras fases de planejamento, no caso das latas de tinta e óleo. Estas, por exemplo, são usadas para transportar e guardar elementos, para descansar, para plantar, também são usadas para gerar churrasqueiras ou aquecedores na época do inverno. Que novas propostas podem sugerir os designers envolvidos na indústria das tintas ou dos óleos (ou de garrafas PET) que contribuam com o alargamento da vida útil do objeto e que ao mesmo tempo possam satisfazer necessidades dos seus usuários ou outras pessoas? 86 Figura 56 - Reuso de uma lata de óleo e um caixote Rua dos Caetés Fonte: Foto da autora 4.1.3 Estratégias para a sustentabilidade. Em um mundo com níveis tão altos de poluição, pobreza e desigualdade, é impossível não pensar qual é o papel do design frente a estes problemas e quais são as suas oportunidades de ação. Desenvolvimento sustentável, segundo o reporte da World Commission on Environment and Development (WCED) (1987) é aquele que “satisfaz as necessidades do presente sem comprometer a habilidade das futuras gerações de satisfazer suas próprias necessidades.” (BRUNTLAND, 1987, p. 41, tradução nossa) 17 . Algumas vezes, atribui-se ao desenvolvimento sustentável só a parte ambiental, mas é importante apontar que há que se levar em conta outros aspectos. Sachs (2002) diz que o conceito de sustentabilidade tem outras dimensões: Sustentabilidade social, cultural, econômica, política, e ambiental. Do ponto de vista ambiental, o DND pode nos ensinar sobre o consumo reduzido de energia e sobre o alargamento da vida útil dos artefatos, como abordado anteriormente. Os artefatos do DND têm um consumo reduzido de energia por dois fatores. Primeiro porque como dissemos anteriormente, seus modos de produção 17 Sustainable development is development that meets the needs of the present without compromising the ability of future generations to meet their own needs 87 são artesanais e semi-industriais, ou seja, são sobretudo as mãos e não máquinas as que intervêm nos processos. E, segundo, porque não se desvincula o objeto do lugar de produção, o que faz com que não se necessite transporte, porque em alguns casos não há distribuição. Com relação ao prolongamento da vida útil, os artefatos resultantes do DND contribuem com a redução do lixo, pois, muitas vezes são feitos a partir do reuso, e com a fácil substituição das suas peças, porque alguns são uma somatória de elementos. Em relação à redução do lixo, Danielle Perra (2010) diz que o reuso criativo de artefatos na nossa vida diária faz uma excelente contribuição e que cada objeto reusado é uma espécie de manifesto por uma nova ecologia urbana, gerada pelo uso extensivo de recursos existentes. (PERRA, 2010). E ainda, a respeito da substituição de componentes e sua relação com a sustentabilidade, Kindlein e Alves (2009) dizem que “É de primordial importância que exista a possibilidade de compra e substituição dos componentes [...] Assim, pretende-se aumentar seu ciclo de vida útil, reduzindo o descarte final e consequentemente, refletindo na redução do impacto ambiental” (KINDLEIN; ALVES, 2009, pág. 90). A possibilidade de substituição de componentes como no caso deste artefato feito de peças de PVC e cordas, facilita a sua manutenção e alonga sua vida útil (FIG.57). Quando umas das peças não funciona mais, é só substituí-la por outra, sem necessidade de jogar o objeto inteiro fora. Figura 57 – Artefato para transportar e exibir flores artificiais. Fonte: Foto da Autora 88 Do ponto de vista social, podemos dizer que o DND nos ensina sobre a valorização do saber fazer local de comunidades que têm constante contato com a rua. Nos mostra outra cara das comunidades de baixa renda, rompendo um pouco com o estereótipo da pobreza. E sob o aspecto cultural, o DND é um claro exemplo dos modos de materializar soluções, resolver problemas ou coisificar ideias dos brasileiros. É uma prática autêntica do país, ligada à sua cultura e valorizando-a, valoriza-se também a diversidade cultural. Por último, do ponto de vista econômico, podemos dizer que através dos artefatos do DND para muitas pessoas se gera uma renda diária com uma inversão baixa em materiais e processos. A partir desta análise do DND das ruas de Belo Horizonte focada na sustentabilidade, o design poderia aprender lições e encontrar novas áreas de ação relacionadas com o baixo consumo de energia e transporte, redução de geração de lixo e o prolongamento da vida útil do objeto. Também sobre a possibilidade de valorizar o saber fazer local, de mostrar outra faceta das comunidades de baixa renda, de apreciar a diversidade cultural e de contribuir à geração de rendas diárias com baixas inversões em materiais e processos. 4.2 Reafirmação de identidades por meio do design e da expressão de elementos encontrados no DND. A terceira atitude estabelecida por Rapoport (1999) que o design pode tomar, com respeito às manifestações vernaculares, é copiar suas formas e detalhes. Esta é utilizada no design para criar novos produtos partindo de elementos locais. Vários designers contemporâneos refletem no seu trabalho a estética da cultura local, pois, segundo De Moraes (2010), atualmente, o desafio para eles está na área dos atributos intangíveis dos bens de produção industrial, o âmbito tecnicista e linear é um aspecto que, praticamente, está atingido. Ele escreve: Nesse sentido, torna-se imperativa a capacidade que produtores, designers e mesmo o país tem de interpretar o estilo de vida local (local culture e local life style) para que ele seja inserido como componente diferencial dos produtos que competem hoje em nível global. (DE MORAES, 2010, p.14) 89 Fazendo referência ao design de superfície aplicado à estamparia, Fernanda Camargo (2007) enfatiza que muitos designers e estilistas trabalham na criação de produtos que expressam conceitos que dialogam com a identidade dos consumidores. Alguns deles como Ronaldo Fraga, Lino Villaventura e Alexandre Herchcovitch desenvolvem coleções temáticas ligadas a questões culturais podendo ser considerados como “estilistas que se destacam pela busca de identidade em contextos legítimos da sua cultura, na contramão das tendências hoje globalizadas” (CAMARGO, 2007, p.113) A seguir, apresentaremos casos desde o design gráfico e de produto, onde os designers reafirmam identidades no contexto contemporâneo através da apropriação da estética popular, implementando-as em seus produtos de design com o objetivo de criar uma relação entre eles e o entorno ou resgatar formas marginalizadas que comunicam certa autenticidade. Desde o design gráfico, Priscila Farias (2011) observa que famílias tipográficas inspiradas por artefatos vernaculares e/ou artesanais vêm sendo produzidas na América Latina, pelo menos no final da década de 1990. No levantamento que ela realizou com Fátima Finízola e Solange Coutinho em 2010, foram identificadas 71 famílias tipográficas deste tipo criadas entre 1997 e 2009, das quais, 42 foram produzidas no Brasil, 18 no Chile, 6 no México, 3 na Argentina e 2 na Colômbia. (FARIAS, 2011) Fátima Finízola (2010) ressalta que a era digital e as novas tecnologias, por exemplo, no campo do design gráfico, estimularam o desenvolvimento de projetos baseados em algo que ela chama de transposições estéticas, ou seja, do passado para o presente, do meio analógico para o virtual e escreve: “Linguagens visuais de movimentos das artes gráficas que marcaram época no passado ou linguagens espontâneas encontradas nas ruas são mescladas às linguagens gráficas do presente, sendo utilizadas e reutilizadas, reconstruídas pelos atuais processos criativos digitais [...] O rico universo popular brasileiro passa por um processo de deslocamento e tradução para os meios digitais em que observamos uma tendência ao desenvolvimento de projetos tipográficos como inspiração na linguagem gráfica vernacular.” (FINIZOLA, 2010, p.7) 90 Farias (2011) identifica cinco estratégias de incorporação de elementos vernaculares no design de tipos: fontes baseadas em artefatos produzidos por especialistas, em artefatos produzidos por não especialistas, em artefatos idiossincráticos, em artefatos rústicos e fontes baseadas em artefatos urbanos. Os modelos que inspiram as fontes baseadas em artefatos produzidos por especialistas, segundo a autora, são gerados por pintores, letristas ou gravadores profissionais, respeitam regras ortográficas e são feitos geralmente sob encomenda (FIG. 58). Figura 58 – Fonte Rumbo, Aldofo Alvarez Fonte: VERNACULAR..., 2014 As fontes baseadas em artefatos produzidos por não especialistas se caracterizam por inspirarem-se em artefatos que apresentam erros na construção e serem pouco sofisticadas. (FIG. 59) Figura 59 – Fonte Brasileiro, Crystian Cruz (2000) Fonte: VERNACULAR..., 2014 91 As famílias tipográficas baseadas em artefatos vernaculares idiossincráticos se inspiram em elementos produzidos por raros autores. Os designers que as projetam geralmente lhe dão o nome do autor original. A família tipográfica Seu Juca de Priscila Farias (FIG. 60) é uma homenagem a Joao Juvêncio Filho, pintor de placas que morava em Recife. Figura 60 – Fonte Seu Juca, Priscila Farias (2001) Fonte: VERNACULAR..., 2014 A tradição popular, o folclore ou fenômenos culturais típicos de regiões não urbanas são a inspiração das famílias tipográficas baseadas em artefatos vernaculares rústicos. A fonte “Armoribat 2” foi desenvolvida com base no movimento Armorial promovido pelo escritor Ariano Suassuna lançado em outubro de 1970, que procurava revitalizar as tradições populares do nordeste brasileiro marginalizadas pela Era Industrial. (FIG. 61) Figura 61 - Fonte Armoribat 2, Buggy e Matheus Barbosa, 2010 Fonte: FINÍZOLA, 2010, p. 2 92 E por último, as famílias tipográficas baseadas em artefatos vernaculares urbanos são inspiradas em contextos mais citadinos modernos. (FIG. 62) Figura 62 – Sra. Stencil, Sergio Ramirez (2010) Fonte: VERNACULAR…, 2014 Podemos concluir desta parte que ao utilizar estratégias de incorporação de elementos locais e/ou vernaculares ao design, estão se criando laços entre o usuário, o contexto, e as formas de comunicação gráfica que as utilizam, atingindo uma coerência com círculo cultural onde estão inseridas e fazendo um design mais humano, mais aberto à diversidade, menos globalizado. Por outro lado, desde o ponto de vista do design de produto, encontramos o trabalho dos irmãos Campana. Eles, ao longo da sua carreira, têm utilizado não só elementos da cultura material brasileira, como objetos encontrados nas ruas e o artesanato para basear suas criações, mas também elementos imateriais como os modos que as pessoas das favelas, ou das ruas, utilizam para construir novos artefatos. Ou seja, a partir do que “tem à mão, trazendo da matéria prima mais banal, esquecida, uma nova função, sem precisar esconder a origem.”. (CAMPANA, H; CAMPANA F, 2009) Ao longo de nosso trabalho podemos ver que essa é a maneira de criar a maioria dos artefatos do DND. O que os irmãos Campana aprendem lições sobre os modos de fazer das pessoas comuns. Cathy Lang Ho (2010) diz a respeito num artigo que faz parte do livro Campana Brothers Complete Works (so far): 93 “Eles se maravilham com como [...] uma lata de azeite de oliva tamanho jumbo pode ser convertida em um torrador de amendoim de um vendedor da rua. “Você aprende que as soluções inteligentes, poéticas podem ser desenvolvidas sem tecnologia, dinheiro ou habilidades” continua Fernando. Os brasileiros ainda tem uma palavra para descrever esta maneira particular de resolver problemas: Gambiarra. O termo [...] é agora popularmente usado para definir uma solução improvisada ou temporal a um problema. De acordo com Humberto “A gambiarra [...] é ‘design’ espontâneo produzido com muita agilidade mental e adaptado a mudanças rápidas [...].”.”( LANG 18 HO, 2010, p. 28 Tradução nossa) Desta maneira, vemos como a gambiarra é um dos elementos de inspiração do trabalho dos Campana, uma prática que está em todos os rincões da vida diária do Brasil. Assim, o design se conecta com a realidade do país, com a cultura, os modos de fazer, e os objetos mais comuns. Igualmente, o trabalho destes designers rompeu com a linha modernista que veio da Europa com as escolas de design, e propôs uma nova maneira de projetar, colocando um selo mais local, mais autêntico. Eles dizem que: “É muito importante estabelecer vínculos com a cultura brasileira; não é pensar só nos mecanismos produtivos e na industrialização, como pregam aqueles que se restringem aos ditados do Modernismo e da Bauhaus, e sim pensar o projeto de uma forma local, absorver e transformar a cultura que nos é própria. Muitos criadores brasileiros pararam no Modernismo, não evoluíram a partir daí, e essa é uma postura acomodada.” (CAMPANA, H; CAMPANA F, 2009, p. 98) Entre suas criações inspiradas em elementos locais vamos citar quatro: A cadeira Janette, o bracelete da Coleção Mosaico, a Mesa Tattoo e a Coleção Papel. A Cadeira Janette foi inspirada nas tradicionais vassouras brasileiras de palha (PERRONE, 2012). Podemos ver que há uma analogia formal com essas vassouras, uma releitura de algo que é comum para todos nós, uma transposição de elementos formais que rapidamente lembram o objeto original. (FIG. 63) 18 They marvel at […] a jumbo size olive-oil can converted into a Street vendor’s peanut roaster. “You learn that smart, poetic solutions cam be developed without technology, money or skils,” continues Fernando. Brazilians even have a word to describe this homespun form of problem-solving: Gambiarra. The term […] is now popularly used to define an improvised or temporal solution to a problem. According to Humberto, “Gambiarra […] is spontaneous ‘design,’ produced with a lot of mental agility and adapted to fast changes […]” 94 Figura 63 – Cadeira Janette Fonte: PERRONE, 2012, pág. 79 O bracelete da Coleção Mosaico (FIG. 64) e Mesa Tattoo (FIG. 65) foram inspirados nas tampas plásticas de drenagem que podem ser encontradas nas ruas de todo o país. (HAMEL, 2010) Figura 64 – Inspiração do Bracelete da Coleção Mosaico. Fonte: HAMEL, 2010, p.24 Figura 65 – Mesa Tattoo Fonte: CAMPANA, 2010, p. 135 95 E por último, a coleção papel (1993) (FIG.66), conformada por lâmpadas, sofás, cadeiras, mesas, bimbos, inspirada nas torres de papel formadas pelos catadores de lixo nos seus carrinhos e também nos refúgios que os irmãos viam perto do seu estúdio em São Paulo. (ALFRED, 2010) Figura 66 – Coleção Papel (1993) Fonte: ALFRED, 2010, p.88-90 Nesse sentido, com o trabalho dos irmãos Campana vemos como o design pode utilizar elementos do dia-a-dia para reafirmar identidades, experimentar novas formas e maneiras de fazer, criar um vínculo com as ruas, ir além das propostas do modernismo, fazer uso da sabedoria comum, explorar materiais diferentes, criar estéticas ligadas ao reuso e mostrar estas novas formas a outros países do mundo. É importante assinalar que o trabalho dos Campana, diferente das tipografias inspiradas no vernacular, está dirigido a um público que tem alto poder de consumo. Lastimosamente, a maioria do seu trabalho dialoga com esses 10% mais ricos dos consumidores, e não com o público de onde eles tomam a inspiração. Concluímos que o design pode reafirmar identidades locais através do seus projetos. Assim, segundo Valese (2007), possibilita-se a descoberta de novos territórios e espaços simbólicos. E também, se criam, segundo Dones (2004), novas relações dos designers com seu entorno, mostrando-se sensíveis aos idiomas, ritmos e artefatos associados ao urbano e ao vernacular; questiona-se a simplificação do modernismo; relacionam-se os objetos e as pessoas num sentido amplo e recuperam-se linguagens marginalizadas ou esquecidas do passado. 96 4.3 Difusão do DND Outra oportunidade de ação para o design a partir da prática do DND é a de difundir estas formas de fazer com o objetivo de unir pessoas que possuem conhecimentos com pessoas que não possuem. Várias iniciativas relacionadas com a criação de artefatos têm se formulado com esta finalidade: Livros, websites, aplicativos para smartphones, blogs, programas de televisão, etc. Citamos uma iniciativa que tem como foco a difusão de projetos de do-ityourself (DIY), ou “faça você mesmo”, prática que incentiva a criação de artefatos em casa, em vez da compra de produtos prontos e que não exige “a participação de nenhum profissional ou especialista de qualquer área em tais situações”. (BOUFLEUR, 2006, pág. 108) A primeira é Instructables (http://www.instructables.com), uma plataforma online que permite o intercâmbio de projetos de DIY (do-it-yourself), fundada em 2005 por membros do MIT Media Lab (FIG.67). Seus usuários têm a possibilidade de compartilhar seus projetos passo a passo para que outros usuários possam aprender seguindo as instruções, estes podem pontuá-los, fazer comentários e descarregar as instruções em formato PDF (isto para membros PRO). Há instruções para fazer todo tipo de coisas: comidas, brinquedos, tecnologia, roupas, objetos para a casa, joalheria, etc. (INSTRUCTABLES, 2014) Figura 67 - Captura de tela do Site do Instructables Fonte: Foto da Autora 97 Atualmente a plataforma permite o intercâmbio de materiais para aulas entre professores ou qualquer pessoa relacionada com o ensino, e organiza concursos periodicamente. Os concursos consistem em criar e fazer upload de uma proposta de instruções passo por passo relacionada com o tema do concurso: se cumprir com todos os quesitos é aceita por um comitê do site. Assim, a proposta fica disponível para que outros membros possam votar por ela, as finalistas são qualificadas pela equipe do site e membros da comunidade e os ganhadores são aqueles que tiveram uma melhor pontuação. (INSTRUCTABLES, 2014) Como resultado deste projeto, surgiu o Instructables Restaurant (FIG.68), um restaurante único em seu tipo, onde tudo o que é feito nele foi primeiro compartilhado por algum dos 3,5 milhões de membros do Instructables: A comida, o mobiliário, a iluminação e a decoração. Todos os pratos e os móveis têm instruções de como fazê-lo dando os créditos para as pessoas que fizeram o upload no site. Incluso, pode-se encontrar no site do Instructables as instruções de como fazer um Instructables Restaurant. (HENDRIKS, 2014). Figura 68 – Instructable Restaurant Fonte: HENDRIKS, 2014 O fator inovador do projeto Instructables foi possibilitar a interação e o intercâmbio de saberes entre pessoas de qualquer parte do mundo através de uma plataforma online. Isto foi possível devido a competências do design como a visão sistêmica, à determinação de relações transversais com outras áreas, a criação de uma marca para identificação do projeto, a facilitação da experiência de interação 98 dos usuários com as plataformas online (site e aplicativos) e também a tradução das necessidades dos seus membros em propostas concretas através da observação, de análise crítica, de visualização de soluções e materialização de conceitos. Como iniciativas parecidas a Instructables podemos encontrar WikiHow (http://www.wikihow.com), EHow (http://www.ehow.com), DIY Network (http://www.diynetwork.com) VideoJug (http://www.videojug.com), etc. No Brasil, temos o portal Invente Aqui (http://www.inventeaqui.com.br), criado pelo engenheiro Luiz Rocha em 2009 (LARA, 2014) . Desta maneira vemos como a partir de competências e ferramentas do design podem-se criar espaços (físicos ou virtuais) que permitam o compartilhamento e divulgação de ideias criativas. Assim como um artefato do DND pode suprir necessidades de uma pessoa em Belo Horizonte, também pode solucionar problemas de outras pessoas em outros lugares do mundo. Portanto, o design tem muitas oportunidades de ação para ajudar a difundir estas ideias contribuindo com a melhoria da qualidade de vida de várias comunidades. 99 CONSIDERAÇÕES FINAIS Estudando o DND, pudemos aproximar o design das ruas, e nos determos a observar este espaço pelo qual nos movimentamos todos os dias, e do qual, paradoxalmente, estamos cada vez mais longe. Esta aproximação nos fez, em primeira parte, enxergar a realidade com outros olhos e refletir sobre o papel e a responsabilidade que tem o design com as comunidades menos favorecidas. E em segunda parte, conhecer a cidade a partir de vários aspectos através dos artefatos que se encontram nesses contextos. Sabendo que o design foca seu trabalho só em 10% da população mundial, o compromisso com os outros 90% se faz maior. Esta pesquisa nos fez afirmar nossa atenção nas comunidades que vivem em plena situação de pobreza, não só no grupo de pessoas que moram na rua, mas em geral aquelas que ainda não têm acesso aos recursos que satisfazem suas necessidades básicas humanas, e que em países como o Brasil é grande parte da população. É importante lembrar que há grupos de pessoas necessitando urgentemente de ajuda. O consumismo e seus espaços fazem-nos esquecer que lá fora existe uma comunidade despossuída, sem alcance a recursos básicos. Cortés (2008) assinala, falando do shopping que: “Ele é como um grande televisor tridimensional [...] no qual se encena o espetáculo em que se está convertendo a experiência cotidiana. Com tudo isso, o que se pretende é criar a sensação de que se pode viver em uma espécie de sonho no qual todo mundo pode consumir, brincar e se divertir sem perigo algum, esquecido dos conflitos sociais, culturais ou étnicos que o ameaçam do lado de fora. Pois ali, no exterior, estão os “outros” (os pobres, os imigrantes, as pessoas sem casa, etc.) indivíduos que parecem estar se apoderando da rua e que a ocupam com seus utensílios e vivencias” (CORTÊS, 2008, p.89). Sair às ruas e observar a partir do design seus comportamentos e artefatos, possibilita uma visão mais vinculada à realidade e menos consumista, que é na área onde normalmente o design se desenvolve. Por outro lado, o estudo das ruas e seus artefatos nos ajudam a conhecer melhor a cidade, à qual estamos cada vez menos conectados devido à velocidade do mundo contemporâneo. O sociólogo Richard Sennett aponta: 100 “Hoje em dia, viaja-se com uma rapidez que nossos ancestrais sequer poderiam conceber. [...] O espaço tornou-se um lugar de passagem, medido pela facilidade com que dirigimos por ele ou nos afastamos dele. [...] Em alta velocidade, é difícil prestar atenção na paisagem. [...] Navegar pela geografia da sociedade moderna requer muito e, por isso, quase nenhuma vinculação com o que está ao redor.” (SENNETT, 2008, p. 17) A observação da prática do DND nas ruas de Belo Horizonte nos permitiu vincular-nos mais estreitamente com a cidade, para desta maneira conhecê-la melhor a partir de diferentes aspetos. Do ponto de vista político e econômico, podemos ver que, à diferença de muitas cidades colombianas, por exemplo, Belo Horizonte tem leis que organizam o fluxo e a quantidade de vendedores ambulantes nas ruas, e no caso dos vendedores de alimentos, exigem certas medidas de salubridade em seus processos. Porém, muitos deles laboram de forma ilegal, o que significa que há que seguir trabalhando na formalização deste tipo de ofício e na criação de oportunidades para que este grupo de pessoas melhore sua qualidade de vida. Do ponto de vista cultural, observamos que todavia a atividade de criar soluções materiais a partir de elementos que temos à mão seja encontrada em outros países do mundo, no Brasil é usualmente praticada e existe uma palavra estipulada para ela, reconhecida e muito usada: ‘Gambiarra’. Isso mostra que é uma atividade comum para todos e que os objetos que nascem a partir dela e a sua estética fazem parte do dia-a-dia dos brasileiros. Se analisarmos particularmente cada um dos artefatos resultantes do DND das ruas de Belo Horizonte, podemos ver que muitos falam de costumes específicos da cidade. Por exemplo, alugar mesas para jogar damas e pagar para engraxar os sapatos na Praça Sete ou consumir alimentos nas calçadas como pipocas, churros, picolés de frutas em épocas de calor, algodão doce, amendoim quente, cachorro quente, etc. Também falam de certa preocupação com o cuidado da cidade ao haver vários objetos que contribuem para a limpeza. Assim mesmo, vemos que existe um público que ainda manda consertar seus relógios ou compram peças para fazer pequenos consertos em casa. Vemos também através destes artefatos que a rua é um espaço muito importante dentro da vida comercial da cidade, não só pelos vendedores ambulantes, mas também pela grande quantidade de feiras que 101 encontramos na sua agenda. Segundo Fulton Sari (2005), observar estes padrões culturais, e ser conscientes deles, ajuda ao design a criar interações familiares (FULTON SURI, 2005) ou seja, produtos mais conectados com a gente, mais humanos. A prática do DND nas ruas de Belo Horizonte nos permite ver uma parte da sua cultura material. O DND, seja feito com materiais novos ou através do reuso, é uma prática que fala da maneira local de resolver problemas e suprir necessidades. Vemos os belo-horizontinos como um povo criativo; que aproveita os elementos com que conta; que faz com poucas coisas, muito; que usa suas capacidades criativas e suas habilidades com as mãos para criar parte do seu repertório material. Muitas vezes, esta prática e seus objetos não são algo para nos sentir orgulhosos, mas o seu estudo nos ajuda a nos conhecer melhor, a ser conscientes de nossas fortalezas e debilidades, a aceitarmos como somos, a afirmarmos. Por último, vemos também que esta pesquisa é um claro exemplo de que o design pode aprender a partir do mais simples. Neste mundo contemporâneo e hipermoderno nem tudo é high tech. Muitas das suas manifestações continuam sendo práticas básicas, que nos lembram que somos seres humanos, e que são uma grande fonte de informações das quais podemos aprender lições infinitas, e das quais o design vem se aproximando cada vez mais nos últimos anos. 102 REFERÊNCIAS A DENTISTA Therezinha Zorovich ganhou fama e dinheiro ao inventar o lavador de arroz. Professora Pardal. Disponível em: http://netleland.net/hsampa/ppardal/ Acesso em: 15 fev. 2014. ADICHIE, Chimamanda. The danger of a single history. TED, Jul. 2009. Diposnível em: <http://www.ted.com/talks/chimamanda_adichie_the_danger_of_a_single_story>. Acesso em: Set. 1. 2013. AGUIRRE, Darinka. DfR Categories. 2011. Disponível em: <http://www.designforrepurposing.com/how-to-dfr/dfr-categories/>. Acesso em: 15 Fev. 2014. ALFRED, Darrin. Accumulation. In: Campana brothers: complete works (so far). New York : Rizzoli, 2010. Pág. 82-105 ALFREDO Moser: Bottle light inventor proud to be poor. 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De onde os tirou? Foram novos ou usados? Os comprou ou tirou do lixo? 7. Além das mãos utilizou outras ferramentas? Moldes? Máquinas? 8. Outras pessoas participaram do processo de produção? 9. Quantos artefatos como esse você já fez na sua vida? Este é o primeiro? Uso: 10. Qual é o tempo de duração do artefato? É pouco? Muito? Descartável? 11. Você empresta este artefato para outras pessoas? 12. Você tem feito alguma melhora ao objeto? Qual? 13. Agregou elementos de decoração? Para quê? 14. Para vendedores ambulantes: Qual é sua rotina diária? Como é seu percurso pela cidade? Motivos: 15. Por que você fez este artefato? 110 -É mais barato que comprá-lo? -Não vendem artefatos iguais? -Você gosta de “inventar” e fazer coisas? Manutenção: 16. O que você faz quando o objeto quebra? Você conserta? Manda consertar? Joga fora? Descarte: 17. O que você faz quando o objeto não funciona mais? Joga fora? 111 B - Comprou? Como você se chama? Há quanto tempo vem desenvolvendo este ofício? De onde é? Como você chama este objeto? Por exemplo: Lata de Amendoim? Função: 1. Para que você comprou este objeto? 2. Como funciona? Produção: 3. De que material é feito? 4. Você conhece a pessoa que fez o objeto? Como se chama? Qual é a sua relação com ela? Família? Vizinhos? Comercialização 5. Esta pessoa se dedica a fazer este tipo de objetos? Tem uma oficina? A loja é grande ou pequena? Onde fica? 6. Quanto custou o objeto? Quando o comprou? Onde? Uso: 7. Qual é o tempo de duração do artefato? É pouco? Muito? Descartável? 8. Você empresta este artefato para outras pessoas? 9. Você tem feito alguma melhora ao objeto? Qual? -Não? Faria alguma? É cômodo? Pesado? É fácil transportá-lo? 10. Agregou elementos de decoração? Para quê? 11. Para vendedores ambulantes: Qual é sua rotina diária? Como é seu percurso pela cidade? Manutenção: 12. O que você faz quando o objeto quebra? Você conserta? Manda consertar? Joga fora? Descarte: 13. O que você faz quando o objeto não funciona mais? Joga fora? 112 C- Ganhou? Como você se chama? Há quanto tempo vem desenvolvendo este ofício? De onde é? Como você chama este objeto? Por exemplo: Lata de Amendoim? Função: 1. Para que você ganhou este objeto? 2. Como funciona? Produção: 3. De que material é feito? 4. Você conhece a pessoa que fez o objeto? Como se chama? Qual é a sua relação com ela? Família? Vizinhos? Nada? 5. Esta pessoa se dedica a fazer este tipo de objetos? Tem uma oficina? A loja é grande ou pequena? Onde fica? 6. Como ganhou o objeto? Teve que fazer alguma petição (Governo)? Quando? Onde? Uso: 7. Qual é o tempo de duração do artefato? É pouco? Muito? Descartável? 8. Você empresta este artefato para outras pessoas? 9. Você tem feito alguma melhora ao objeto? Qual? -Não? Faria alguma? É cômodo? Pesado? É fácil transportá-lo? 10. Agregou elementos de decoração? Para quê? 11. Para vendedores ambulantes: Qual é sua rotina diária? Como é seu percurso pela cidade? Manutenção: 12. O que você faz quando o objeto quebra? Você conserta? Manda consertar? Joga fora? Descarte: 13. O que você faz quando o objeto não funciona mais? Joga fora?