HISTÓRIA DIgITAL - Centro de Memória Digital

Transcrição

HISTÓRIA DIgITAL - Centro de Memória Digital
ISSN 1982-2030
HISTÓRIA
DIgITAL
ANO II - Nº 02 - 2009
Copyright
Editor
Corcino Medeiros dos Santos
CONSELHO EDITORIAL
Esther Caldas Bertoletti
Caio César Boschi
Maria Beatriz Nizza da Silva
João Adolfo Hansen
Adalgisa Arantes Campos
Victor Leonardi
Sebastião Rios
Celso Silva Fonseca
Antônio José Barbosa
Marcelo Feijó
Rafael Timóteo de Sousa Jr.
Diva de Couto Gontijo Muniz
Anderson C. A. Nascimento
Marcos Magalhães
BRASÍLIA - ANO 2 - N. 2
2009
História Digital/ Universidade de Brasília, Centro de Memória Digital. Ano 2, n. 2 (dezembro de 2009) - . - Brasília, UnB, 2009 -.
Anual.
Editor: Corcino Medeiros dos Santos
Descrição baseada em Ano 1, n. 1 jan.2007).
ISSN 1982-2030
1. História do Brasil – Periódicos. 2. História – Periódicos. I.
Universidade de Brasília, Centro de Memória Digital. II. Corcino Medeiros dos Santos
Preparação dos Textos
Joana Araújo, Luísa Moser e Loyanne Dias
Capa
Elvis Kleber
Diagramação, editoração eletrônica e impressão
Gráfica e Editora Imagem Ltda
SUMÁRIO – Dossiê Projeto Resgate, 2ª Parte
5
7
Apresentação - Petrobras
Introdução - O Projeto Resgate no Centro de Memória Digital da UnB
- Corcino Medeiros dos Santos; Esther Caldas Bertoletti; Marcos Magalhães; Celso Silva Fonseca; Marcelo Feijó; Sebastião Rios; Rafael
Timóteo de Sousa Jr.
17
1. Bahia (2009)
Agora temos mais História - Juca Ferreira - Ministro de Estado da Cultura
Introdução para o Catálogo dos Documentos Avulsos da Capitania da
Bahia existentes no Arquivo Histórico Ultramarino de Lisboa - Esther
Caldas Bertoletti
A Memória da Bahia Colonial nos Documentos Manuscritos “Avulsos”
do Projeto Resgate - Maria Teresa Navarro de Britto Matos - Diretora
do Arquivo Público da Bahia / FPC / SECULT; Rita de Cássia S. de
Carvalho Rosado - Coordenadora de Pesquisa e Documentação do APB
/ FPC / SECULT
35
2. Maranhão (2002)
Apresentação - Caio C. Boschi
A Face real de um sonho - Jomar Moraes
49
3. Paraíba (2002)
Apresentação - Do silêncio do tempo, o resgate da História - Rosa Maria Godoy Silveira
61
4. Colônia de Sacramento e Rio da Prata (2002)
Apresentação - Francisco Corrêa Welffort - Ministro de Estado da Cultura
Introdução - Helen Osório
71
5. Pará (2002)
O Pará reabre o garimpo da memória - Paulo Chaves Fernandes - Secretário Executivo de Cultura do Pará
Apresentação do Projeto Resgate Barão do Rio Branco, com ênfase à
documentação do Pará - Caio C. Boschi
Resgate, História e Sociedade - Geraldo Mártires Coelho
83
6. Piauí (2002)
Prefácio - Pe. José Pereira de Maria - Vice-Presidente da Sociedade
Goiana de Cultura e Chanceler da Universidade Católica de Goiás
Apresentação - Miridan Britto Falci
Agradecimentos - Esther Caldas Bertoletti
99
7. Rio Grande do Sul (2001)
Apresentação - Helen Osório
105 8. Pernambuco (2006)
Introdução - Maria do Socorro Ferraz Barbosa; Vera Lúcia Costa Acioli; Virgínia Maria Almoêdo de Assis
Anotações de História Colonial - Maria do Socorro Ferraz Barbosa;
Vera Lúcia Costa Acioli; Virgínia Maria Almoêdo de Assis
Capitania de Pernambuco - Maria do Socorro Ferraz Barbosa; Vera
Lúcia Costa Acioli; Virgínia Maria Almoêdo de Assis
Considerações Metodológicas - Maria do Socorro Ferraz Barbosa; Vera
Lúcia Costa Acioli; Virgínia Maria Almoêdo de Assis
195 9. Ceará (1999)
Introdução - Senador Lúcio Alcântara
197 10. Sistema Web de Acesso e Busca de Documentos Digitais do Ban-
co de Dados Resgate - Rafael Timóteo de Sousa Júnior; Tamer Américo da Silva; Fábio Lúcio Lopes de Mendonça; Wesley Gongora de
Almeida
211 11. Censo Nacional dos Pontos de Cultura (2008): Algumas considerações - Wellington Diniz – Centro de Memória Digital da UnB
225 BOLETIM ELETRÔNICO RESGATE
“O Uraguay”, de Basílio da Gama, à luz da documentação histórica
da Colônia do Sacramento e Rio da Prata - Sebastião Rios (UFG)
A Capitania de São José do Rio Negro - Corcino Medeiros dos Santos
(Depto. de História – Universidade de Brasília)
A Capitania do Maranhão - Corcino Medeiros dos Santos (Depto. de
História – Universidade de Brasília (UnB)
O Catálogo de Verbetes dos Documentos Avulsos da Capitania de Mato
Grosso (1720-1827) / Projeto Resgate - Thereza Martha B. Presotti
(UFMT)
Petrobras
Parte importante – mais do que isso: fundamental – da história brasileira está registrada em documentos que integram acervos de vários países com
os quais, nos tempos de colônia, o Brasil se relacionou de uma ou de outra
maneira. A maior parte, como não poderia deixar de ser, está em Portugal. E foi
justamente a partir de um acordo assinado entre os dois países, em 1995, que
se tornou possível oferecer ao público toda a documentação que estava naquele
país, e também a que estava no Brasil e dizia respeito a Portugal. Resultado: ao
longo dos anos, mais de uma centena de instituições públicas e privadas, brasileiras e portuguesas, serviram de ponto de partida para que cerca de cem pesquisadores mergulhassem nesse acervo de excepcional importância. O mutirão
se estendeu por outros países, e permitiu que fossem descritos, classificados,
microfilmados e enfim digitalizados quase 150 mil documentos, o que significa
cerca de um milhão e 500 mil páginas manuscritas. E isso, somente de material
relacionado à presença portuguesa na América do Sul, essencialmente o Brasil
mas também a antiga Colônia de Sacramento, que faz parte do Uruguai.
Esse esforço resultou, enfim, em 20 catálogos divididos em 27 volumes, e 380 CD-roms de documentos digitalizados. E que agora chega à internet, uma biblioteca digital de acervos históricos sem antecedentes tanto em
volume como em importância.
Esse projeto de título extenso – Projeto Resgate de Documentação Histórica Barão do Rio Branco – teve seu nome encurtado para Projeto Resgate.
Porque essa síntese descreve, em seu âmago, todo esse esforço.
É a iniciativa mais importante, no Brasil, da aplicação das tecnologias
de informação para amealhar, resgatar, preservar e difundir a memória histórica do nosso país ao longo de centenas de anos, do século XVI ao século XIX.
A Petrobras, maior empresa brasileira e maior patrocinadora das artes e
da cultura em nosso país, é parceira do Projeto Resgate. Aliás, foi justamente a
partir do patrocínio da Petrobras – através de contrato celebrado em agosto de
2003 – que essa iniciativa ganhou impulso decisivo.
Dar acesso ao público a esse vasto material, de valor inestimável, é uma
forma de difundir e democratizar essa parte da história que é patrimônio de
todos nós. Patrocinar essa iniciativa é uma das maneiras que a Petrobras tem
de cumprir, rigorosamente, sua missão primordial: contribuir para o desenvolvimento do país.
INTRODUÇÃO
Os novos caminhos do Projeto Resgate no Centro de Memória Digital da UnB
O segundo número da História Digital, publicação do Centro de Memória Digital da Universidade de Brasília (CMD), com colaboração do Ministério
da Cultura (MinC), conclui o dossiê sobre o Projeto Resgate de Documentação
Histórica Barão do Rio Branco (Projeto Resgate). Os dois primeiros números
do periódico compreendem, portanto, todas as apresentações, introduções, prefácios e estudos críticos constantes dos catálogos publicados no projeto, cuja
listagem consta de nosso portal na internet: www.cmd.unb.br.
O CMD cumpre a função de portal oficial do Projeto Resgate ao disponibilizar na web todos os conteúdos gerados em seu desenvolvimento, tanto os
publicados nos catálogos quanto os microfilmados e digitalizados. O balanço
histórico será complementado pela publicação das atas do I Congresso Internacional Resgate, cuja programação contou com seções de depoimentos sobre
as realizações do projeto.
Este memorial permite concluir que o Projeto Resgate constitui a iniciativa de maior envergadura nas políticas públicas sobre preservação e divulgação dos suportes documentais da memória nacional. Coube à UnB a tarefa
de democratizar os resultados do projeto por meio da sua disponibilização integral na WEB. Dele participaram, porém, miríades de instituições, empresas
e pessoas que se identificam em comunidade solidária formada por um sentimento de pertença. Esse sentimento de fazer parte de uma aventura coletiva,
repleta de histórias exemplares de dedicação e de compromisso, que se pretende recuperar nas páginas desta edição da História Digital.
I
As raízes do Projeto Resgate foram estabelecidas nos anos 1987/89, no
contexto das negociações entre os governos do Brasil e de Portugal sobre intercâmbio de documentos históricos e das sondagens realizadas por Caio Boschi
na documentação de interesse do Brasil em arquivos portugueses. A proposta
de colaboração bilateral Portugal-Brasil materializou-se institucionalmente,
em 1995, por meio de protocolo assinado pelas autoridades dos dois países, no
âmbito da Comissão Bilateral Luso-Brasileira de Salvaguarda e Divulgação do
Patrimônio Documental (COLUSO), estabelecendo como objetivo principal
disponibilizar reciprocamente documentos históricos relativos à História dos
dois países. Esse acordo teve entre seus fundamentos a resolução no 4212, de
1974, da UNESCO, que convidou seus Estados membros “a examinar favoravelmente a possibilidade de transferir as informações contidas nos documentos
provenientes de arquivos constituídos no território de outros países ou se referindo à sua História”. Considerava “patrimônio comum” os documentos do
passado de países ligados anteriormente pelos laços de colonialismo.
Em 1995, o Projeto Resgate iniciou seus trabalhos no Arquivo Histórico Ultramarino de Lisboa (AHU), com coordenação do Ministério da Cultura.
Contava, então, com um grande incentivador, o falecido embaixador Vladimir Murtinho, assessor especial da área de relações internacionais do MinC.
A vontade política de implementar o projeto, consubstanciada na decisão de
Portugal e Brasil de sustentá-lo por intermédio de empresas e instituições públicas (agências de fomentos à pesquisa, universidades, secretarias de estado
da cultura, prefeituras, fundações, arquivos estaduais, Ministérios da Cultura,
da Ciência e Tecnologia e das Relações Exteriores etc.) encontrou ressonância
na sociedade civil, motivando a colaboração financeira de empresas privadas,
muitas vezes a fundo perdido. A execução coube ao corpo de funcionários
das instituições envolvidas e à participação decisiva da comunidade científica.
Isto resultou na mobilização de mais de 110 instituições públicas e privadas,
brasileiras e portuguesas, e de mais de uma centena de pesquisadores, que realizaram empreitada sem paralelo na preservação em meio digital dos suportes
documentais da memória nacional.
II
O Projeto Resgate está concluindo seu trabalho no AHU, o maior acervo estrangeiro de documentação sobre o Brasil. Aproximadamente 150.000
documentos (em torno de 1,5 milhões de páginas manuscritas) relativos a 19
capitanias da América portuguesa e Colônia de Sacramento (atual Uruguai)
foram descritos, classificados, microfilmados e digitalizados. Publicaram-se
quatro guias de fontes, 22 catálogos em 36 volumes e 299 CD-ROMs de documentos digitalizados. O último catálogo sobre a documentação do AHU –
Rio de Janeiro - está no prelo. No Brasil, os arquivos estaduais receberam
cópia microfilmada da documentação pertinente ao passado colonial de seus
respectivos territórios e a Biblioteca Nacional acolheu toda a coleção de microfilmes.
Reunimos nesta edição o material de apoio dos catálogos publicados
mais recentemente: Paraíba, Rio Grande do Sul, Colônia do Sacramento e região do Rio da Prata, Maranhão, Pará, Piauí e Pernambuco. Excluímos os índices temáticos, onomásticos e toponímicos, as tabelas que sumariavam dados
de microfilmes e CD-ROMs e os quadros dos governantes de cada capitania. A
função dos índices temáticos, onomásticos e toponímicos dos catálogos é preenchida pelo sistema de busca desenvolvido pelo CMD para o banco de dados
do Projeto Resgate, tornando-os desnecessários para o portal.
Agradecemos os autores e as instituições detentoras dos direitos de publicação dos catálogos que nos cederam, gentilmente, autorização para publicar partes das seguintes obras:
OLIVEIRA, Elza Regis de; MENEZES, Mozart Vergetti de; LIMA,
Maria da Vitória Barbosa (orgs.). Catálogo de Documentos Manuscritos Avulsos referentes à Capitania da Paraíba, existentes no Arquivo Histórico Ultramarino de Lisboa. João
Pessoa: Editora Universitária/UFPB, 2001.
BERWANGER, Ana Regina; OSÓRIO, Helen; SOUZA, Susana Bleil
de (orgs.). Catálogo de Documentos Manuscritos Avulsos referentes
à Capitania do Rio Grande do Sul existentes no Arquivo Histórico
Ultramarino, Lisboa.
Porto Alegre: CORAG, 2001.
OSÓRIO, Helen (org.). Catálogo de Documentos da Colônia do
Sacramento e Rio da Prata existentes no Arquivo Histórico Ultramarino, Lisboa.
Rio de Janeiro: Nórdica, 2002.
BOSCHI, Caio C. (org.). Catálogo de Documentos Manuscritos
Avulsos Relativos ao Maranhão existentes no Arquivo Histórico Ultramarino.
São Luís: FUNCMA/AML, 2002.
BOSCHI, Caio C. (org.). Catálogo de Documentos Manuscritos
Avulsos da Capitania do Pará existentes no Arquivo Histórico Ultramarino de Lisboa. Belém: SECULT,
Arquivo Público do Pará, 2002, 3 vols.
OSÓRIO, Helen (org.). Catálogo de Documentos da Colônia do
Sacramento e Rio da Prata existentes no Arquivo Histórico Ultramarino, Lisboa.
Rio de Janeiro: Nórdica, 2002.
TELES, José Mendonça (org.). Catálogo de Verbetes dos Manuscritos
Avulsos da Capitania do Piauí existentes no Arquivo Histórico Ultramarino, Lisboa-Portugal.
Goiânia: Sociedade Goiana de Cultura, Institutos de Pesquisas e Estudos Históricos do Brasil-Central, 2002.
BARBOSA, Maria do Socorro Ferraz (org.) Documentos Manuscritos
Avulsos da Capitania de Pernambuco.
Recife: Editora Universitária da UFPE, 2006, 4 vols.
Agradecemos especialmente a Dra. Maria Teresa Navarro de Britto
Matos, Diretora do Arquivo Público da Bahia, que nos concedeu licença para
antecipar partes do Catálogo de Documentos da Capitania da Bahia, que está
em vias de publicação.
III
A disponibilização do Projeto Resgate na internet é uma realização do
Centro de Memória Digital da UnB, em parceria com o Ministério da Cultura,
com apoio financeiro da Petrobras.
O Projeto Resgate em Conteúdo Digital foi aprovado pela portaria no
696, de 19 de dezembro de 2002, capacitando-se para captar recursos por meio
da Lei de Mecenato. Em junho de 2003, quando o Ministro Gilberto Gil fez
entrega da primeira edição do kit de CD-ROMs do Projeto Resgate, tornou-se
pública a aprovação do apoio financeiro da Petrobras. Em agosto de 2003, a
Fundação Universidade de Brasília celebrava com a Petrobras o contrato de
patrocínio no 610.2.068.03 – 8, estabelecendo as condições para a criação do
CMD e dando início ao Projeto Resgate em Conteúdo Digital. Nessa primeira
fase do projeto, que se encerrou em 2005, o CMD disponibilizou o conteúdo
do primeiro kit de CD-ROMs, que não compreendia a documentação das capitanias com acervo maior no AHU (Rio de Janeiro, Bahia e Pernambuco), e
desenvolveu a primeira versão do portal e respectivo sistema de busca e de
navegação em imagens do banco de dados.
A segunda fase do Projeto Resgate em Conteúdo Digital foi contemplada na Seleção Pública do Programa Petrobras Cultural de 2005/2006. Incorporava a documentação complementar da segunda versão do kit de CD-ROMs do
Projeto Resgate, que correspondia às capitanias de Bahia, Pernambuco e Rio
de Janeiro. A conclusão dessa etapa do projeto coincide com os lançamentos
do segundo número da História Digital e do penúltimo catálogo do Resgate no
AHU, relativo à documentação da Bahia.
Podemos afirmar que o CMD atingiu seus objetivos ao concluir a disponibilização on line de todos os resultados produzidos no Projeto Resgate, construindo o maior arquivo digital de documentos históricos on line da América
Latina. O quadro a seguir sumaria a quantidade de documentos e de imagens de
documentos sobre o Brasil existentes no AHU e disponíveis no portal do CMD:
Número de
Número de
documentos
Imagens
20.029
185.377
0
0
Bahia – Eduardo Castro de Almeida
3.021
62.232
Bahia – Luisa da Fonseca
3.280
19.567
821
9.119
Piauí
1.716
19.439
Colônia de Sacramento e Rio da Prata
1.224
43.749
Paraíba
3.523
31.341
Goiás
2.950
33.906
Minas Gerais
13.921
92.441
Pará
12.690
97.887
São Paulo – Avulsos
1.383
17.104
São Paulo – Alfredo Mendes Gouveia
4.994
34.520
532
4.528
1.436
10.907
549
3.505
Maranhão
13.118
105.039
Mato Grosso
2.221
18.590
Rio Grande do Norte
684
6.221
São José do Rio Negro – Amazonas
841
10.301
Santa Catarina
619
5.250
Sergipe
494
3.234
Códices
790
79.802
Secr. do Conselho Ultramarino – Avulsos
2.020
12.731
Rio de Janeiro – Avulsos
20.953
150.200
Rio de Janeiro – Eduardo Castro de Almeida
3.349
41.545
117.158
1.098.535
CAPITANIA
Pernambuco
Bahia - Avulsos
Rio Grande do Sul
Alagoas
Ceará
Espírito Santo
Total
Chegamos à marca de 117.158 documentos e 1.098.535 imagens disponíveis on line. Algumas pequenas falhas se fazem sentir, a mais expressiva
delas a dos documentos avulsos Capitania da Bahia. Problemas técnicos com
a construção do banco de dados não permitiram a disponibilização dos 19.610
documentos desse acervo. Essas e outras pequenas incongruências serão corrigidas no âmbito da checagem e verificação da consistência interna do banco
de dados do Projeto Resgate, fazendo com que as informações e imagens do
banco de dados preservado nos CD-ROMs estejam integralmente presentes no
portal do CMD. Também haverá incorporação de trabalho residual feito pelo
Projeto Resgate no AHU, por meio da incorporação de imagens de 8.000 documentos de 22 Cds de diversas séries (Contrato de Sal, Brasil Geral, Serviço
de Partes, Ultramar, Visita do Ouro etc), com conclusão prevista para este ano
de 2009. Estes acertos finais serão objeto da terceira fase do Projeto Resgate
em Conteúdo Digital.
O projeto concluído permite algumas observações gerais sobre o acervo
do Brasil no AHU. O gráfico a seguir permite visualizar a ordem de grandeza
proporcional da documentação de cada capitania. Bahia destaca-se como o
maior acervo sobre Brasil do AHU: 265.971 imagens em 54.357 documentos.
Pernambuco e Rio de Janeiro ficam em segundo lugar, com aproximadamente
200.000 imagens cada. Minas Gerais, Pará e Maranhão fecham a relação dos
maiores acervos de capitanias brasileiras do AHU, com perto de 100.000 imagens cada. Estas cinco capitanias detêm em torno de 70% do total da documentação sobre Brasil do AHU.
Imagens de documentos por Capitania no acervo sobre Brasil do AHU
300.000
BA
250.000
200.000
RJ
PE
150.000
Cód.
MG
100.000
MA
PA
SP
50.000
GO
PB
PI
SACR.
RGS
CE
AL
MT
RGN
ES
AM
SC
Secr.Con
SE
J
R
.
on
.C
cr
Se
SE
ód
C
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T
G
N
R
A
M
M
E
ES
AL
C
SP
G
PA
O
G
M
.
R
PB
C
SA
S
PI
BA
R
G
PE
0
A tônica da documentação sobre Brasil do AHU é a sua diversidade,
nem tanto em termos de tipologia documental, como se sabe. É um dos poucos
acervos sobre Brasil colonial que contemplam todas as unidades administrativas da colônia e também algumas áreas limítrofes, como a Região do Rio
da Prata e Colônia de Sacramento, atual Uruguai. À ampla cobertura espacial
somam-se extensos limites cronológicos, pois temos documentos do sécs. XVI
ao séc. XIX. Isto explica o porquê deste acervo ter assumido posição referencial na historiografia sobre Brasil Colônia e Império.
A conclusão da disponibilização on line do Projeto Resgate fez-se
acompanhar de mudança estrutural no portal do CMD e do sistema de pesquisa e navegação em imagens. As alterações resultaram em agilidade e economia
do tempo na pesquisa e no download de imagens. Também permitiram maior
facilidade de acesso às informações e banco de dados, reduzindo certo hermetismo do design gráfico e da navegação do antigo portal e potencializando o
ganho ergonômico. O artigo do Prof. Dr. Rafael Timóteo de Sousa Júnior e dos
pesquisadores do CMD Tamer Américo da Silva, Fábio Lúcio Lopes de Mendonça e Wesley Gongora de Almeida detalha o desenvolvimento do Sistema
Web de Acesso e Busca de Documentos Digitais do Banco de Dados Resgate.
A assinalar a incorporação de novos conteúdos digitais, aprofundando
e redefinindo identidade do CMD, como se pode constatar dos comentários da
próxima seção.
IV
O CMD consolida-se como instituição ancorada na execução de projetos cujo propósito consiste em articular competências para aplicação da tecnologia digital na pesquisa, preservação e divulgação do patrimônio histórico e
cultural brasileiro em meio digital. Este permanece sendo o seu desafio atual,
ou seja, desdobrar o Projeto Resgate em iniciativa sustentável por meio de
desenvolvimento de projetos em parceria com instituições mantenedoras de
acervos históricos e culturais que estejam interessadas no tratamento e preservação de seus acervos e na sua disponibilização na WEB, proporcionando ferramentas básicas para o desenvolvimento científico, a racionalização e melhor
aproveitamento de recursos públicos.
Neste sentido, o CMD optou por diversificar seu portfólio de publicações eletrônicas on line. Adaptamos para internet publicações recentes, como
História do Senado Brasileiro, de autoria de Antônio José Barbosa, Celso
Silva Fonseca, Corcino Medeiros dos Santos e Marcos Magalhães. Lançada
em 2008, constitui produto de parceria do Centro de Memória Digital da Universidade de Brasília (CMD-UnB) e do Senado Federal. Consta de um kit de
três CD-ROMs em bonita embalagem, acompanhado de libreto com cronologia ilustrada da História do Poder Legislativo. É uma publicação eletrônica
multimídia de formato e conteúdos inéditos no mercado editorial brasileiro.
Textos consistentes, mais de 1.300 imagens de alta resolução, 25 animações
com elaborada trilha sonora e cuidadoso design gráfico estão reunidos na primeira publicação eletrônica sobre a História do Senado.
Neste ano, lançamos a versão eletrônica do Salão de Humor da Constituinte. Editada por Marcos Magalhães, a publicação reúne charges, caricaturas
e ilustrações impressas em vários periódicos nacionais durante o período da
Assembléia Nacional Constituinte. Iniciativa conjunta das Comissões de Comemoração dos 20 Anos da Constituinte e do Ano Cultural do Senado, baseada em exposição homônima, que teve lugar no Senado Federal, de 5 a 19 de
novembro de 2008, contemplou as charges políticas publicadas nos periódicos
mais destacados da mídia nacional daquele período - Correio Braziliense, Folha de São Paulo, Estado de São Paulo, O Globo, Jornal da Constituinte, Jornal do Brasil, Folha da Tarde, Veja, Senhor, Isto É e Isto É/Senhor - e em edições afins que reuniram obras de artistas nos anos 1987-1988. Compreendeu
a produção de diversos chargistas consagrados: Chico Caruso, Claudius, Elizabeth, Gaetano Ré, Glauco, Goldsman, Gougon, Henfil, Hilde, Ique, Jimmy
Scott, Kacio, Millôr, Lan, Lopes, Luiz, Miguel Paiva, M. Guilherme, Novaes,
Oscar, Paulo Caruso, Rocha e Spacca. Vários deles estiveram presentes na
concorrida noite de autógrafos da publicação, na noite de nove de dezembro,
no foyer da Sala Villa-Lobos, no Teatro Nacional de Brasília. Na presença do
Presidente do Senado Federal, Garibaldi Alves Filho, a Orquestra Sinfônica de
Brasília, com regência do maestro Ira Levin, abriu o evento programado para
homenagear o Senador Arthur da Távola.
Neste mesmo ano, o CMD lançou um dos seus projetos mais ousados,
o Museu Virtual de Ouro Preto, contemplado no Edital do Programa Monumenta/BID/UNESCO, de 9 de novembro de 2007. Produto de colaboração
com o Museu de Arte Sacra de Ouro Preto/Paróquia de N. S. do Pilar de Ouro
Preto, consiste em publicação eletrônica multimídia lançada em DVD com o
mesmo título e disponível em quiosque eletrônico instalado na Matriz do Pilar
e na internet - WWW.museuvirtualdeouropreto.com.br. Em homenagem póstuma ao Pároco José Feliciano da Costa Simões, o lançamento ocorreu no dia
14 de fevereiro de 2009, no templo barroco de N. S. do Pilar de Ouro Preto,
com concerto do Coral Francisco Gomes da Rocha, da Orquestra Jovem de Sabará e da Orquestra Jovem de Ouro Preto da Escola de Música Padre Simões.
Na ocasião, foram oferecidas oficinas de treinamento dos guias históricos de
Ouro Preto na navegação no tour virtual.
O Museu Virtual de Ouro Preto é um projeto inédito no Brasil e des-
ponta com uma das iniciativas mais bem sucedidas de criação de museus virtuais para sítios históricos de relevante interesse patrimonial. A cidade é um
dos destinos preferidos do turismo internacional que aporta no país. As igrejas
contempladas no museu virtual recebem a visita de aproximadamente 120 mil
pessoas por ano. Em ambiente interativo e dinâmico, o Museu Virtual de Ouro
Preto permite a navegação virtual na cidade, com informações precisas sobre
o patrimônio histórico, arquitetônico e cultural da civilização do ouro que se
estabeleceu no Brasil no século XVIII.
O Museu Virtual de Ouro Preto incorporou modernos recursos de tecnologia digital - navegação em 360 graus, imagens 3D e animações digitais
– e desenvolveu tours virtuais com características singulares, no contexto da
produção de conteúdo digital de alta sofisticação e complexidade para sítios
de turismo cultural e histórico. Baseada em consistente trabalho de pesquisa
documental, que fundamentou o inventário dos bens culturais contemplados e
a produção textual, e em cuidadoso e profissional trabalho de documentação
fotográfica, que compreendeu a produção de mais de 8.000 registros, a publicação atende desde o maior especialista em arte barroca até o turista que busca
um novo olhar sobre a sua experiência.
As ferramentas multimídia permitem que o usuário observe aspectos imperceptíveis, a olho nu, de detalhes das igrejas, das imagens e de seus altares. A
possibilidade de visualizar em 3D uma imagem colocada a metros de distância
do visitante, a impressionante resolução das imagens de detalhes e a ergonomia
e a eficiência da navegação, que reproduzem com notável nitidez o movimento
de quem anda pela igreja por meio de recursos de imagens de 360º e animações
virtuais, marcam as realizações desta publicação. As informações necessárias
para identificação do bem cultural podem ser acionadas e balizam com precisão
científica o tour virtual. Foi-se o tempo das informações imprecisas e vagas, que
autorizam o transbordamento da fantasia de guias turísticos despreparados.
O Museu Virtual de Ouro Preto constitui a experiência piloto do CMD
no desenvolvimento de novas práticas e estratégias de pesquisa e documentação do patrimônio cultural e histórico. Não se trata apenas de reproduzir o que
já existe em outro suporte e outra arquitetura, mas de documentar por meio da
produção de referências de identificação, descrição e interpretação dos bens
culturais e do desenvolvimento de tecnologias que permitam desvelar outras
facetas da pesquisa do patrimônio histórico e cultural.
A criação de museus virtuais abriu novas perspectivas no CMD. Trabalhamos na segunda fase do Museu Virtual de Ouro Preto e estamos preparando vários projetos para desenvolvimento de museus virtuais para sítios históricos e culturais brasileiros, com ênfase nos patrimônios culturais tombados
pela UNESCO.
Para finalizar com chave de ouro 2009, em comemoração aos 30 anos
da Lei da Anistia, o Programa Senado Cultural, em colaboração com o Centro
de Memória Digital da UnB, lançou o Salão de Humor da Anistia. A publicação reúne, na forma de um instantâneo, as charges políticas produzidas sobre
o tema e seu contexto histórico. O melhor da charge nacional participa da
obra: Chico Caruso, Claudius, Glauco, Gougon, Guidacci, Henfil, Jaguar, Lan,
Lopes, Luiz Gê, Nani, Otávio e Ziraldo. Os trabalhos foram publicados nos
seguintes periódicos: Correio Braziliense, Folha de São Paulo, Jornal do Brasil, O Pasquim, Movimento, Folha da Tarde e Jornal de Brasília. A obra tem o
sentido de recuperar e divulgar a memória das artes gráficas do país, nomeadamente a expressão artística mais afeita ao mundo da Política, a charge. A organização do volume, textos e edição de imagens são de Marcos Magalhães.
V
O Projeto Resgate, experiência piloto de construção de bibliotecas digitais de acervos históricos em larga escala em nosso país, deu importante contribuição para as superações de certos obstáculos na captação de recursos para
projetos sobre patrimônio documental. Tornou o produto final um item atrativo
e, portanto, sustentável, do ponto de vista da produção cultural que opera com
recursos da Lei de Mecenato, abrindo áreas de financiamento inacessíveis, até
bem pouco tempo, a propostas com esta temática. Empresas, a exemplo da
Petrobras, têm manifestado interesse em financiar projetos desta natureza pela
sua importância intrínseca, pois constituem parte essencial de nosso patrimônio cultural e da identidade nacional que usufruem de uma poderosa ferramenta de democratização dos bens culturais, a internet.
O Projeto Resgate talvez constitua o turning point de uma mudança a
quente na política de patrocínio de projetos culturais no Brasil. Novas áreas e
empresas estão abrindo seu espectro de financiamento de projetos culturais,
com a integração das áreas de patrimônio documental em conteúdo digital.
Neste contexto, é possível pensar pesquisa, preservação e divulgação sustentáveis do patrimônio histórico e cultural brasileiro.
Corcino Medeiros dos Santos (CMD/Universidade de Brasília)
Esther Caldas Bertoletti (Coordenadora Técnica do Projeto Resgate de
Documentação Histórica Barão do Rio Branco, Ministério da Cultura)
Marcos Magalhães (CMD/Senado Federal)
Celso Silva Fonseca (Diretor do CMD/Universidade de Brasília)
Marcelo Feijó (Vice-Diretor do CMD/Universidade de Brasília)
Sebastião Rios (CMD/Universidade Federal de Goiás)
Rafael Timóteo de Sousa Júnior (CMD/Universidade de Brasília)
1. Bahia (2009)
Agora temos mais História
Juca Ferreira
Ministro de Estado da Cultura
O encanto que um documento antigo desperta dá bem a medida da importância da sua preservação. Mas quando o documento, além de preservado,
se abre à consulta – ainda mais se com a generosidade eletrônica dos formatos
atuais – aí, assume um papel magnífico: o de automaticamente ir inserindo na
história cada um dos que tiverem a oportunidade de lhe dirigir perguntas e,
posteriormente, cada um dos que lhe saborearem as respostas.
Essa abertura dos documentos se torna tanto mais importante quando se
sabe que muitos deles nasceram condenados ao limbo. Ou porque a casta que
os produziu quisesse o segredo absoluto; ou porque portassem uma reles medida administrativa, daquelas que ganhavam o tom sépia da inutilidade antes até
que o próprio documento.
É por sintonizar-se em variáveis como essas e tantas outras que o Projeto
Resgate Barão do Rio Branco, desenvolvido e coordenado pelo Ministério da
Cultura do Brasil, através da Secretaria de Articulação Institucional, vem conseguindo gerar novos olhares sobre os primeiros séculos da História do Brasil.
Documentos localizados em arquivos europeus – ou seja, ainda esquivos à nossa imensa carência de história– começaram, a partir do final dos anos
80, a serem recuperados e a emergir em sua plenitude informacional. Foram
reorganizados conforme as mais modernas técnicas da descrição arquivística
internacional e tiveram todos os originais microfilmados segundo a Resolução
4212, de 1974, da UNESCO.
Num gesto político, a UNESCO considerou patrimônio comum os documentos das ex-colônias que ainda estivessem custodiados nas ex-metrópoles. Como conseqüência, os microfilmes trazidos pela Coordenação Técnica do
Projeto Resgate estão agora abrigados na Fundação Biblioteca Nacional, órgão
do Ministério da Cultura. Mais, foram digitalizados para ampla e completa distribuição em todos os estados brasileiros, por meio das universidades, arquivos
públicos e institutos históricos estaduais.
Já em 2004, o I Congresso Internacional Resgate, promovido pela Universidade de Brasília e pelo Ministério da Cultura, salientava a importância
desse projeto: afinal, ele inaugurou novas perspectivas concretas para a produção científica através da disponibilização do acesso completo aos documentos
originais. Um projeto, portanto, que veio desmontando a sina destes documenHISTÓRIA DIGITAL - ANO II - Nº 02 - 2008
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tos de serem múmias plácidas nas gavetas antidemocráticas.
Daí, uma bem-vinda profusão de guias e catálogos veio sendo publicada, à medida em que se organizavam os documentos e se elaboravam os
verbetes-resumos para, finalmente, se gerarem os microfilmes e respectivas
digitalizações.
Lá se vão dez anos desde o primeiro catálogo, lançado em 1998, da
Capitania de Minas Gerais, até o que agora se publica com os verbetes dos
documentos avulsos da Capitania da Bahia – este, o maior dos conjuntos documentais existentes no Arquivo Histórico Ultramarino de Lisboa. Esta operação exigiu a microfilmagem dos quase 500 rolos de microfilmes com cerca de
50.000 documentos e 500.000 páginas manuscritas, que abraçam três séculos
de História da Bahia (1604-1828).
Os dois conjuntos que possuíam catálogos há muito esgotados: o de
Eduardo de Castro e Almeida, publicado em cinco volumes pela Biblioteca
Nacional, no Rio de Janeiro, 1913-1918; e o de Luisa da Fonseca, editado em
1950, pelo Instituto Geográfico e Histórico da Bahia, foram também microfilmados no âmbito do PROJETO RESGATE. Pedem, por isso, novas edições – o
que já está certamente sendo pensado pelo Governo do Estado da Bahia.
Por tudo isso, devemos todos agradecer à generosa contribuição da
Fundação Clemente Mariani. E parabenizar todos os envolvidos, do Governo
do Estado da Bahia à Secretaria de Cultura e à Fundação Pedro Calmon; ao
Arquivo do Estado da Bahia, que, se já disponibilizava os três conjuntos documentais relativos à Bahia em microfilmes ou Cds, completa agora o empreendimento com a publicação do novo catálogo facilitador da pesquisa do terceiro
e último conjunto de documentos.
Este esforço iluminador destas instituições possibilita que possamos
parodiar os cardeais que ficam aliviados quando finalmente conseguem eleger
um papa – e, assim, possamos soltar um alegre Habemus Historia!, próprio de
quem finalmente recupera a sua história e, portanto, sua inteireza na perspectiva do tempo.
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HISTÓRIA DIGITAL - ANO II - Nº 02 - 2008
Introdução para o Catálogo dos Documentos Avulsos da Capitania da
Bahia existentes no Arquivo Histórico Ultramarino de Lisboa
Esther Caldas Bertoletti
O Catálogo que em ora se publica apresentando de forma sistemática os
quase 20.000 verbetes-resumos, com datas extremas de 1604-1828, existentes
em 281 caixas nas prateleiras da SALA DO BRASIL, como era carinhosamente chamada pelo ilustre baiano e historiador Pedro Calmon, vem completar os
outros dois conjuntos de documentos que já possuíam verbetes publicados e
por isso eram mais conhecidos pelos pesquisadores. Verbetes que produzidos
durante o século XX foram publicados, no Rio de Janeiro, nos Anais da Biblioteca Nacional, nos anos 1913 a 1918 e na Bahia, pelo Instituto Geográfico
e Histórico da Bahia, em 1950.
O primeiro deles, em 5 volumes, reunia 30.374 verbetes-resumos de
documentos armazenados em 151 caixas com datas extremas de 1613-1807.
Na Introdução ao primeiro dos cinco volumes, consta a informação que os
documentos pertenciam ao “Archivo de Marinha e Ultramar de Lisboa, custodiados na Biblioteca Nacional portuguesa e organizados por Eduardo de Castro e Almeida, primeiro conservador da referida biblioteca”. Todos os cinco
volumes tiveram uma edição de apenas 500 exemplares.
Vale lembrar aqui as palavras de Manoel Cícero Peregrino da Silva,
diretor da nossa Biblioteca Nacional e autor da referida Introdução: “que entre os milhares de documentos oficiais que foram incorporados à Biblioteca
Nacional de Lisboa e desde 1901 constituem uma seção à parte sob a denominação de Arquivo de Marinha e Ultramar, é considerável o número dos que
são relativos ao Brasil, muito dos quais de grande importância para o estudo
da nossa história”. O Dr. Eduardo de Castro e Almeida propôs à direção da
nossa Biblioteca Nacional, organizar e inventariar os documentos relativos ao
Brasil existentes nas caixas custodiadas pela Biblioteca Nacional de Lisboa,
de onde era funcionário. Apresentou um plano de trabalho que compreenderia a ordenação geográfica e cronológica, e, para além dos verbetes- resumos,
apresentaria alguns extratos de trechos ou mesmo a transcrição na íntegra de
documentos que, segundo o seu critério, poderiam oferecer interesse histórico
para o Brasil. Além dos verbetes-resumos preparou também três índices alfabéticos, um de nomes, outro remissivo de apelidos (ou seja, de sobrenomes) e
um terceiro de assuntos (que incluía o toponímico).
E assim foi feito, inicialmente com os documentos existentes relativos à
Capitania da Bahia e posteriormente à Capitania do Rio de Janeiro, também publicados nos Anais da Biblioteca Nacional do Brasil entre os anos 1921-1951.
Temos portanto, no início do século XX, os cinco primeiros Catálogos
HISTÓRIA DIGITAL - ANO II - Nº 02 - 2008
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contendo verbetes-resumos de documentos baianos contidos em 151 caixas
(hoje, um total de 466 caixas, abrangendo os três conjuntos).
Durante todos esses anos esses Catálogos foram o grande manancial de
pesquisa dos estudiosos da História da Bahia que tinham que se deslocar até
Lisboa para ler os documentos de seu interesse precípuo.
Neste ínterim, o governo português decidiu criar o Arquivo Histórico
Colonial, nos anos 30, com efeito pelo Decreto-Lei n. 19.868 de 9 de junho de
1931 criava o Arquivo Histórico Colonial que foi instalado no Palácio da Ega
à Junqueira, onde se encontra até os nossos dias, incorporando os documentos
mais antigos da Secção Ultramarina da Biblioteca Nacional e os fundos documentais do Ministério das Colônias, depois Ministério do Ultramar.
Vieram documentos de outros fundos e de outras instituições e, na reorganização, foram fixados três conjuntos principais: o do Conselho Ultramarino (Séc.XVI a 1833), o da Secretaria de Estado da Marinha e Ultramar (18341910) e o do Ministério do Ultramar (1910-1975). O fundo que nos diz respeito
diretamente é o do CONSELHO ULTRAMARINO tão cuidadosamente historiado por Marcello Caetano em seu livro editado no Brasil “O Conselho Ultramarino. Esboço da sua história”, Ed. Sá Cavalcante, Rio de Janeiro, 1969.
Contudo, a documentação da antiga Capitania da Bahia, hoje abrigada
em 466 caixas tinha a particularidade de possuir dois conjuntos de documentos com Catálogos impressos: o conjunto organizado por Eduardo de Castro e
Almeida (5 volumes, 1913-1918, publicados pela Biblioteca nacional, no Rio
de janeiro) contendo documentos do período 1613-1807 e o conjunto organizado por Luisa da Fonseca, com a documentação do século XVII publicado na
Bahia, pelo Instituto Geográfico e Histórico da Bahia, nos Anais do I Congresso de História da Bahia. Consta que Luisa da Fonseca, que era funcionária do
Arquivo Histórico Ultramarino, organizou os verbetes a pedido do historiador
baiano, Pedro Calmon e apresentou o resultado de seu trabalho no referido Congresso, sendo publicado no Vol. II dos Anais. São 34 caixas contendo 4.384
verbetes/resumidos de documentos de 1599 a 1700. Não preparou índices, nem
fez transcrição de trechos ou de documentos na sua íntegra, à semelhança de
Eduardo de Castro e Almeida, o que dificulta sobremaneira a pesquisa.
Já existiam assim esses dois conjuntos de documentos abrangendo períodos superpostos e este imbricamento de datas e documentos só aumentou ao
verificarmos, no início dos trabalhos do PROJETO RESGATE, mais precisamente, em 1990, que existia ainda por fazer uma quantidade bem maior de caixas, ou seja, exatamente mais 281 caixas, com datas extremas de 1604-1828,
ou seja, períodos históricos semelhantes aos dois outros conjuntos.
Temos hoje os documentos da antiga Capitania da Bahia distribuído
em três conjuntos:
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I – Conjunto organizado por Eduardo de Castro e Almeida: 151 caixas, publicado em 5 volumes (1913-1918) indicando 30.374 documentos com
transcrição de trechos e/ou documentos na integra e apresentando índices por
nome, sobrenome e assunto.
II – Conjunto organizado por Luisa da Fonseca: 34 caixas publicado em
1 volume (1950) indicando 4.384 documentos, não apresentando índices.
III – Conjunto organizado pela equipe do PROJETO RESGATE : 281
caixas contendo precisamente 19.610 verbetes/resumos dos documentos que
se publica neste Catálogo acrescidos dos índices que foram preparados por
uma equipe coordenada pelo próprio Arquivo Público do Estado da Bahia.
Discutiu-se no início dos trabalhos como microfilmar os três conjuntos: colocar os documentos, não importando qual o conjunto, em rigorosa ordem cronológica e assim amalgamar os documentos, ou respeitar os conjuntos
tendo que em vista que dois deles já possuíam catálogos publicados com os
verbetes/resumos e utilizados e referenciados por diversos pesquisadores. A
direção do Arquivo Histórico Ultramarino optou por manter os três conjuntos
separados e assim foi feito o trabalho. Contudo, para a microfilmagem dos dois
primeiros conjuntos, com verbetes já publicados, foi necessária a leitura de
revisão dos documentos nas “capilhas” que abrigavam o documento principal
e seus anexos (essas antigas capilhas foram substituídas por capas novas e mais
adequadas). Após essa minuciosa e cuidadosa leitura de confronto e controle
dos verbetes publicados no Brasil na primeira metade do século XX, com os
documentos originais, reproduzimos as páginas dos catálogos em cópias, tipo
Xérox, que foram recortadas por verbete (na impossibilidade de serem digitados, pois demandaria muito tempo) para serem microfilmadas antes de cada
documento a guisa de sinaléticas.
Vale dizer que ao longo do tempo entre a preparação dos verbetes (metade do século XX) até a leitura técnica realizada pelos pesquisadores do PROJETO RESGATE para a microfilmagem, alguns documentos estavam fora de
seus lugares originais, o que é natural em se tratando de documentos avulsos
que, constantemente iam até os pesquisadores nas SALAS DE LEITURA, primeiramente, na Biblioteca Nacional de Lisboa e depois no Arquivo Histórico
Ultramarino, por mais de 90 anos para os olhares atentos e curiosos dos pesquisadores.
Na preparação para a microfilmagem desses dois conjuntos contamos
com a colaboração de pesquisadores baianos, arquivistas e historiadores entre
os quais se destaca a antiga funcionária do Arquivo do Estado da Bahia, Neusa Esteves Fernandes, hoje arquivista da Santa Casa de Misericórdia, onde
prossegue o seu trabalho com competência e dinamismo. A ela devemos a elaboração dos Índices, completos, dos documentos do século XVII, juntamente
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com outros colaboradores tais como Zita Alves, Tatiane de Lima Trigueiro e
Mário Pires Miguel. Espera-se que em breve possam ser re-editados os verbetes do Catálogo da Luisa da Fonseca acrescidos dos índices facilitadores da
consulta, na sequência deste Catálogo dos Avulsos que ora se edita graças ao
empenho da atual diretora do Arquivo Público do Estado da Bahia, Dra. Maria
Teresa Navarro de Brito Lemos. Anteriormente, como era de se esperar, outras
Diretoras do Arquivo da Bahia, também se empenharam mas, sem êxito. Os
Governos dos Estados da Bahia e de Sergipe apoiaram a transformação dos
rolos de microfilmes dos dois primeiros conjuntos (Castro e Almeida e Luisa
da Fonseca) em CD-ROMs. Uma ampla divulgação dos resultados concretos
do trabalho que se realizava em Lisboa, foi feita em solenidade realizada no
próprio Arquivo Público da Bahia, em setembro de 1998, ocasião em que os
Cds dos dois primeiros conjuntos microfilmados foram distribuídos a cerca de
15 instituições baianas de ensino e pesquisa, entregando-se na ocasião cópia
dos rolos de microfilmes ao Arquivo Público do Estado (uma segunda cópia
encontra-se custodiada na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro). O fato mereceu ampla cobertura da Imprensa baiana e alguns pesquisadores escreveram textos primorosos, entre eles, permitam-me citar, o de Fernando da Rocha
Peres intitulado “LAVRA DO ARQUIVO”, em que finalizava dizendo que a
“Bahia passa a ter o ouro do arquivo, a lavra necessária para o avanço das
pesquisas históricas em nossas universidades”. (jornal A TARDE, Salvador,
22/09/1998)
Ao mesmo tempo em que se procedia a re-leitura e confronto dos documentos originais com os verbetes dos dois conjuntos já publicados para a
microfilmagem que disponibilizaria, na integra, todos os documentos aos interessados, iam sendo organizados e preparados os verbetes do novo conjunto
de documentos avulsos sobre a Capitania da Bahia que se apresentavam ainda
inexplorados. Muitos documentos-anexos aos documentos principais foram
encontrados “desgarrados” do seu local de origem e alguns documentos até
tinham migrado das caixas da Capitania da Bahia para as caixas de outras Capitanias. Foram então “re-pescados” na re-leitura de todos os documentos da
Capitania da Bahia, contido nas 466 caixas.
Portanto, o que os estudiosos e pesquisadores têm acesso hoje, nos seus
computadores ou leitoras de microfilmes, é o resultado do trabalho, dedicação
e competência de alguns dedicados pesquisadores baianos e sergipanos. Para a
realização desse trabalho contamos com o apoio financeiro principalmente da
já citada Fundação Clemente Mariani, além dos governos dos Estados da Bahia
e Sergipe e do governo federal, sob a coordenação da Secretaria de Articulação Institucional do Ministério da Cultura e a colaboração dos Ministérios das
Relações Exteriores/Departamento Cultural/ Embaixada do Brasil em Lisboa
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HISTÓRIA DIGITAL - ANO II - Nº 02 - 2008
e da Ciência e Tecnologia/Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico
e Tecnológico-CNPq. Também recebemos apoio de instituições portuguesas
como a Comissão para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses e
a sempre amiga Fundação Calouste Gulbenkian, com bolsas de pesquisa tão
providenciais além do próprio Arquivo Histórico Ultramarino.
Temos pois, finalmente, no Brasil e na Bahia, a integralidade dos documentos baianos sobre o período colonial existente no Arquivo Histórico Ultramarino de Lisboa que, em breve, estarão também disponibilizados “on line”
pelo Centro de Memória Digital da Universidade de Brasília, graças a Convênio com o Ministério da Cultura e patrocínio da PETROBRÁS.
O terceiro conjunto de documentos (1604-1828) que se publica neste
Catálogo os verbetes, foi lido e organizado, com extrema dedicação, paciência
e competência, para a elaboração dos verbetes-resumos por uma equipe de professores e pesquisadores, hoje mestres e doutores brasileiros, Avanete Pereira
de Souza, Onildo Reis David, Márcia Gabriela de Aguiar Barreto e Lourival
Santana Santos, com o apoio de outros pesquisadores, historiadores e arquivistas brasileiros e portugueses. Recentemente, para a publicação do Catálogo os
verbetes/documentos foram revistos pela equipe do Arquivo Público do Estado
da Bahia, sob a coordenação de Marlene de Oliveira e, em Lisboa, pela coordenadora atual dos trabalhos do PROJETO RESGATE, pesquisadora doutoranda
Erika Simone de Almeida Carlos Dias. Aos a elaboração dos 19.610 verbetes
foram microfilmados na sequência dos trabalhos graças ao incondicional apoio
desde os primeiros momentos da Dra. Maria Clara Mariani, Presidente da Fundação Clemente Mariani /Banco BBM.
O que se esperamos possa ser feito, em sequência do Catálogo desvelando os verbetes e os índices do terceiro conjunto documental relativo à
Capitania da Bahia existente no Arquivo Histórico Ultramarino, em Lisboa,
completando assim o acesso facilitado aos documentos que abrangem três séculos de história da Bahia, em cerca de 450.000 páginas manuscritas é que se
prepare, com a ajuda dos pesquisadores, Universidades e instituições governamentais, um plano de trabalho para a realização da:
I – Reedição dos Catálogos de Eduardo de Castro e Almeida e Luisa
da Fonseca com verbetes uniformizados, ou seja, sem as transcrições (já que
temos agora acesso à íntegra informacional dos documentos) e com a observância das normas modernas de transcrição paleográfica e da sistemática arquivística na elaboração dos verbetes e dos índices. Trabalho semelhante ao
que foi recentemente realizado com o apoio da FAPESP/Governo do Estado de
São Paulo, re-editando os 8 volumes do antigo Catálogo dos verbetes dos documentos coloniais da Capitania de São Paulo preparados por Alfredo Mendes
Gouveia e publicados pelo Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro/IHGB,
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em 15 tomos especiais da Revista, a partir de 1956.
II - Preparação de um Índice único dos nomes, assuntos e lugares com
remessa aos três conjuntos documentais. Hoje, os documentos dos três conjuntos possuem datas entre 1599-1828 superpostas e a forma imbricada do conteúdo informacional está a exigir hoje dos pesquisadores uma ida e vinda aos três
conjuntos documentais para análise de um único acontecimento.
Com esses dois trabalhos estaremos todos oferecendo os pesquisadores
da história da Bahia e do Brasil o acesso às fontes da memória resgatadas para
os nossos pesquisadores ao abrigo da RESOLUÇÃO nº 4212 da UNESCO
de 1974 e graças aos convênios de cooperação e amizade entre os dois países
Brasil-Portugal.
Vale a pena relembrar aqui que muitos documentos, com datas a partir
de 1548 (anteriores portanto, aos documentos trazidos de Lisboa) existentes
no Arquivo Público do Estado da Bahia de interesse para a história de Portugal foram microfilmados e, hoje, encontram-se à disposição dos pesquisadores
portugueses no Instituto dos Arquivos Nacionais/Torre do Tombo, no âmbito
da Comissão Luso Brasileiro para Salvaguarda e Divulgação do Patrimônio
Documental (COLUSO). Documentos que se complementam e ajudam a melhor compreender a história de um passado colonial comum.
Cabe ainda uma palavra de agradecimento à eterna mestre de todos nós,
Profa. Dra. Heloisa Liberalli Bellotto que desde o primeiro momento tem estado, periodicamente, em Lisboa coordenando e incentivando todas as equipes,
dirimindo dúvidas com a sua competência e dedicação à causa dos documentos
e que muito nos ajudou no diálogo técnico com os funcionários do Arquivo
Histórico Ultramarino, que sempre nos apoiaram desde o primeiro momento,
ao lado das diretoras: a antiga, Dra. Maria Luisa Abrantes e a atual, Dra. Ana
Canas Delgado Martins, ela própria uma estudiosa da história do Brasil, como
bem o demonstra o seu livro Governação e Arquivos. D.João VI no Brasil,
editado em Lisboa, em 2006.
Em nome dos pesquisadores, não só baianos mas de todos, sejam brasileiros ou não, o PROJETO RESGATE muito deve ao entusiasmo de todos os
que de uma forma ou de outra se achegaram ao PROJETO RESGATE, tornando-o uma realidade sonhada por tantos por tanto tempo. E aqui cabe também
uma palavra in memoria do Embaixador Wladimir Murtinho, nosso sempre
lembrado Coordenador Geral que, em 1983, fazia no Palácio do Itamaraty,
no Rio, as primeiras reuniões para a concretização do PROJETO RESGATE
BARÃO DO RIO BRANCO, finalmente iniciado nos anos 90. Ao Ministério
da Cultura, dirigido nos últimos anos por ilustres e sensíveis baianos e, principalmente, ao Ministro Juca Ferreira que assina o estimulante PREFÁCIO,
à Secretaria de Articulação Institucional ao qual o PROJETO RESGATE está
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HISTÓRIA DIGITAL - ANO II - Nº 02 - 2008
ligado e à minha instituição de origem, a Fundação Biblioteca Nacional, que
me liberou, há mais de 25 anos para cuidar, com a paixão também baiana, do
planejamento e da execução técnica do PROJETO RESGATE, os meus sinceros agradecimentos por ter a oportunidade de “servir à causa da memória”.
Enfim, convidamos todos à pesquisa e a saudar, em uníssono, o Catálogo dos Avulsos da Capitania da Bahia com um emocionado VIVA O
DOCUMENTO!
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A Memória da Bahia Colonial nos Documentos Manuscritos “Avulsos”
do Projeto Resgate
Maria Teresa Navarro de Britto Matos - Diretora do Arquivo Público
da Bahia / FPC / SECULT
Rita de Cássia S. de Carvalho Rosado - Coordenadora de Pesquisa e
Documentação do APB / FPC / SECULT
A memória, na qual cresce a história, que por sua vez a alimenta, procura salvar
o passado para servir ao presente e ao futuro. Devemos trabalhar de forma que a
memória coletiva sirva para a libertação e não para a servidão dos homens.
Jacques Le Goff
Esta publicação é o resultado de ações conjuntas da Fundação Pedro
Calmon (FPC) através do Arquivo Público da Bahia (APB), e do Projeto Resgate de Documentação Histórica Barão do Rio Branco1. Implantado em 1995,
o Projeto resgatou, em arquivos estrangeiros, principalmente no Arquivo Histórico Ultramarino (AHU), em Lisboa, documentos que dizem respeito à vida
das terras do Brasil, ao longo dos séculos XVI, XVII, XVIII e XIX (primeiras
três décadas), enquanto vigorou o sistema de Capitanias Hereditárias. Cada Estado brasileiro, que se originou de uma das capitanias, em número de dezoito
(18) recebeu, após a identificação, descrição, classificação, microfilmagem e
digitalização realizado pelo Resgate, no AHU, a cópia microfilmada e digitalizada da respectiva documentação.
A contrapartida dos estados, ao receberem a reprodução dos documentos do Projeto Resgate, foi o compromisso de publicizar o acervo, através da
publicação de catálogos contendo os verbetes e os índices. Assim seria assegurado, de forma célere, o acesso ao público interessado.
Entre 1999 e 2003, o Ministério da Cultura, representado pela Coordenadora Técnica do Projeto Resgate, Drª. Esther Caldas Bertoletti, entregou
oficialmente, ao APB, o conjunto composto de duzentos e noventa e três (293)
rolos de microfilmes e trinta e dois (32) CD-ROMS contendo os documentos manuscritos “avulsos” referentes à Capitania da Bahia, dos séculos XVII,
XVIII e XIX (primeiras três décadas), além de documentos manuscritos “avulsos”, custodiados pelo AHU, pertencentes a outras Capitanias, que vieram a
constituir, juntamente com a capitania da Baía de Todos os Santos, o atual
território que compõe o Estado da Bahia. São elas: Ilhéus, Porto Seguro, ParaCriado institucionalmente, em 1995, por meio de protocolo assinado entre as autoridades portuguesas e brasileiras no âmbito da Comissão Bilateral Luso-Brasileira de Salvaguarda e Divulgação
do Patrimônio Documental (COLUSO). Tem como objetivo principal disponibilizar documentos
históricos relativos à História do Brasil existentes em arquivos de outros países, sobretudo Portugal e demais países europeus com os quais tivemos uma história colonial imbricada.
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HISTÓRIA DIGITAL - ANO II - Nº 02 - 2008
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guassu e Itaparica (as duas últimas eram subalternas).
Esses manuscritos “avulsos” que representam uma fonte inestimável de
pesquisa abrangem o universo cronológico, compreendido entre 1604 e 1828.
São duzentos e vinte e quatro (224) anos, mais de dois séculos rastreados pelo
Resgate. Certamente esta documentação permitirá um olhar renovado para a
História da Bahia e do Brasil. De acordo com o professor Onildo Reis David,
da Universidade Estadual de Feira de Santana (Ba.) e a professora Avanete
Pereira Sousa, da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia, ambos participantes dos trabalhos no AHU, em Lisboa, admitem que as Capitanias se comunicavam entre si. A Bahia, por exemplo, mantinha uma relação muito estreita
com Pernambuco, Paraíba e Piauí. Desta forma, os professores prevêem que:
a documentação estimulará pesquisas sobre mineração, cobranças fiscais, problemas de abastecimento, migrações e doenças. E assuntos já relativamente estudados, como extração e contrato de pau-brasil, construção naval, atividades
comerciais e independência da Bahia terão, para Avanete a chance de ser reinterpretados e acrescidos. A historiografia baiana produziu uma série de trabalhos
sobre a escravidão, por exemplo, mas quase toda ela se reporta ao século XIX. O
Projeto Resgate permitirá, ainda que de forma panorâmica, trabalhar o tema da
escravidão no século XVIII2.
A procedência dos documentos – Metrópole / Colônia e vice-versa,
além das correspondências no interior da própria Colônia e Capitania – permite deduzir a sua natureza e tipologia. São documentos que registram as relações político-administrativas entre as várias instâncias sediadas na Metrópole
(Lisboa) e na Colônia.
O conteúdo dos documentos referentes à Bahia, que totalizam os dezenove mil seiscentos e dez (19.610) verbetes, correspondem a documentos
textuais, de tipologia diversa, tais como: abaixo-assinados, alvarás, avisos,
cartas, consultas, decretos, despachos, estatutos, mapas, ordem, ordens
régias, pareceres, provisões, regimentos, requerimentos, entre outros.
No intuito de esclarecer sobre o que constitui o acervo da Documentação dos Manuscritos “Avulsos”, considerou-se procedente definir e exemplificar
algumas das tipologias anteriormente destacadas. Como referência utilizou-se
os estudos realizados por Heloísa Liberalli Bellotto3 e por José Joaquim Sintra
Martinheira4 que elaboraram trabalhos sobre tipologia documental aplicada a
In: Pesquisa FAPESP On Line. Edição Impressa 58 - Outubro 2000. Disponível em: http://www.
revistapesquisa.fapesp.br/?art=1103&bd=1&pg=3&lg=>. Acesso em: 30 mar. 2009.
2
BELLOTTO, Heloisa Liberalli. Capitania de São Paulo: Anexo 3 - Glossário das Espécies Documentais. In: História Digital. Brasília: Unb, v. 24, Ano 1, nº. 1, 2007, p.93-118.
3
4
MARTINHEIRA, José Joaquim Sintra. Os Documentos d’El Rei. In: Revista do Arquivo Público
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administração central do Antigo Regime Monárquico. Sem dúvidas, trata-se de
publicações que facilitam enormemente o entendimento dos instrumentos legais, reais, diplomáticos ou não que regulavam, ou que pelo menos tinham a pretensão de regular/monopolizar o cotidiano da colônia. Fosse ao que diz respeito
a economia, a organização político-administrativa, a administração eclesiástica,
militar e judicial. Especificamente, Heloísa Liberalli Bellotto elaborou um glossário das espécies documentais concernentes aos “avulsos” da Capitania de São
Paulo. Nesta Introdução o supra citado glossário foi de suma importância para a
descrição das tipologias documentais relativas a Capitania da Bahia.
O volume (19.610 verbetes) faz dos documentos manuscritos “avulsos”
da Capitania da Bahia um dos mais expressivos, juntamente com os da Capitania
do Rio de Janeiro e da Capitania de Pernambuco. Portanto, as informações que
se seguem, são apenas amostragens do acervo do Resgate específico da Bahia.
Abaixo Assinado (documento informativo). Utilizado para solicitar,
coletivamente, algo a uma autoridade pública. No caso da Bahia, consta da
documentação um Abaixo Assinado do povo da cidade ao Rei D. João V, contendo aproximadamente cento e vinte assinaturas, em 6 de maio de 1749. Diz
respeito o citado Abaixo Assinado ao apelo do povo da cidade da Bahia,
(...) queixando-se da Câmara da mesma cidade e do procurador Manoel Botelho
de Paiva que devia ser do bem comum, como os que até agora tem sido, porém
esse pelo contrário, porque em lugar de querer o que é útil ao povo, somente
procura a sua conveniência, e por meio dela a do particular [por desejar fechar
o caminho de gado muito cômodo para o povo na fonte do Queimado, na Soledade]...5.
Aviso (documento diplomático). Tipo de correspondência que na linguagem burocrática corresponde a um ofício de um ministro a outro6, ou seja,
procede de uma autoridade com destinatário a outra autoridade, geralmente, de
status equivalente. Aviso do Secretário do Estado da Marinha e Ultramar para
o Presidente do Conselho Ultramarino, em 23 de outubro de 1751.
Ordena que consulte o que parecer da representação do Provedor-Mor da Fazenda Real do Estado do Brasil, Manuel Antonio da Cunha Souto Maior, de que
trata da nomeação de Manuel de Matos Pegado Serpa, de que é proprietário do
Ofício de Provedor-Mor da Fazenda Real do Estado do Brasil7.
Mineiro. Ano 41, nº. 2, p.131-145.
5
Verbete AHU_ACL_CU_005, Cx. 98, D. 7750, de 1749.
FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Minidicionário da Língua Portuguesa. 2ª edição. Rio
de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1988. p.55.
6
7
Verbete AHU_ACL_CU_005, Cx. 108, D. 8440, de 1751.
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29
Carta (documento não diplomático). Missiva, geralmente produzida
por autoridades subalterna / delegada da administração pública e da administração eclesiástica da Colônia, tais como: do Governador Geral do Estado do
Brasil; do Provedor Mor da Fazenda Real do Estado do Brasil da Casa da Moeda; do Arcebispo, encaminhadas diretamente ao Rei. Existem na documentação diversos tipos de cartas: Carta de Lei, Carta Patente, Carta de Perdão, Carta
Régia e Carta de Sesmaria.
Carta do Intendente da Marinha e Armazéns Reais da Bahia, Rodrigo da
Costa de Almeida, à Rainha Dona Maria I, remetendo a relação das embarcações que entraram no porto da referida cidade [Salvador], vindas de Benguela
e Angola com carga de escravos. Bahia, em 22 de maio de 1781.
Depois da última relação, que pus na Real Presença de Vossa Magestade com
data de 17 de abril do ano passado, entraram nele desde o mês de janeiro até o
último de dezembro quatro mil novecentos e noventa e nove escravos e cento e
trinta crias vindas do Reino de Angola e Benguela como se verifica da certidão
junta do Escrivão desta Alfândega (...)8.
Carta do Vice-Rei e Governador Geral do Brasil Vasco Fernandes Cézar
de Meneses para o Governador do Rio de Janeiro Ayres Saldanha de Albuquerque comunicando degolamento de Joseph Grugel e enforcamento de três
sócios do referido por desordens ocorridas, 16 de abril de 1722.
Parte esta Sumarca para esse porto e suposto não trazia novidade alguma que
participe a Vossa Senhoria lhe digo que há poucos dias recebi uma carta sua.
Sábado de Ramos se degolou Joseph Grugel e se enforcaram três sócios nos seus
insultos, cujas cabeças se remetem nesta ocasião para serem postas em os seus
postes em lugar do delito e suposto que ao Juiz de Fora faço esta advertência
Vossa Senhoria mande executar em caso que haja algum descuido nele; por que
não é justo se desate a demonstração do castigo aos que necessitaram de semelhante exemplo.
Consta-me que Joseph Pacheco se acha com o seu Engenho e muitas vezes publicamente nas vizinhanças dessa Cidade, e como a sua pessoa foi o principal
motivo de tantas e tão escandalosas desordens Vossa Senhoria o mande logo
prender e segurar encarregando esta diligência a pessoa que possa dar inteira
satisfação dela. E por que esta matéria é muita do serviço de Vossa Majestade,
que Deus guarde, o recomendo particularmente a Vossa Senhoria e não ao Juiz
de Fora e mais justiças desta cidade donde a falta de degredo faz com que muitas
vezes se malogrem as diligências precisas para a boa administração da justiça e
castigo dos delinquentes.
Deos guarde a Vossa Senhoria muitos anos. Bahia, abril 16 de 1722.
8
Verbete AHU_ACL_CU_005, Cx. 181, D. 13469, de 1781.
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Depois de ter feito esta chega uma Samaca desse porto com cartas de Vossa
Senhoria e como não consta ao que fica referido.9
Carta de Lei (documento diplomático do Antigo Regime). Instrumento
legal produzido pelo Rei, que vigorava perpetuamente até sua revogação, onde
ele ordena a autoridades coloniais a executar decisões sobre determinados assuntos. Por exemplo, Carta de Lei do Rei D. José, em 27 de janeiro de 1755.
Ordena ao Desembargador da Relação da Bahia, Sebastião Francisco Manuel que
faça uma devassa ao Juiz de Fora da Cachoeira Pascoal de Abrantes Madeira10.
Carta Régia (documento diplomático). Ordem real dirigida a uma determinada autoridade ou pessoa. Através desse instrumento a autoridade régia
poderia nomear súditos para cargos e/ou conceder privilégios. Carta Régia do
Rei D. Pedro II ao Governador-Geral do Brasil, Alexandre de Sousa Freire, em
20 de fevereiro de 1668.
Ordena que faça entradas contra os gentius nas Vilas de Camamú, Cairú e Boipeba, [por estarem] matando, e roubando a muitas pessoas, obrigando os seus
moradores a largarem suas fazendas e retirarem-se de suas casas11.
Consulta (documento não diplomático). Ato e seu registro por escrito pelo Conselho Ultramarino, que assessorava o Rei em assuntos coloniais,
consistindo o seu parecer sobre determinados temas. Consulta do Conselho
Ultramarino ao Rei D. João V, de 12 de janeiro de 1713.
Sobre o que informou o governador-geral do Brasil Pedro de Vasconcelos acerca
do castigo que mandara executar os três principais autores e cabeças do segundo
motim que houve na cidade da Bahia [...] Domingos da Costa Guimarães, Luis
[...] e Domingos Gomes (...)12
Parecer (documento diplomático). Trata-se de um documento que emite opinião técnica sobre um determinado ato. O parecer serve de base à decisão
de um assunto. Parecer do Conselho Ultramarino sobre a Carta dos Oficiais da
Câmara da Bahia em 12 de junho de 1709.
Segue o escrevem os oficiais da Câmara da Bahia acerca do prejuízo que se
segue ao bem público do excesso e luxo com que os negros e mulatos se vestem
naquela terra.13
9
Verbete AHU_ACL_CU_005, Cx. 15, D. 1279, de 1722.
10
Verbete AHU_ACL_CU_005, Cx. 123, D. 9578, de 1755.
11
Verbete AHU_ACL_CU_005, Cx. 2, D. 164, de 1668.
12
Verbete AHU_ACL_CU_005, Cx. 8, D. 709, de 1713.
13
Verbete AHU_ACL_CU_005, Cx. 6, D. 485, de 1709.
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Ordem (documento diplomático). Expressa uma determinação dada
por um superior a um servidor, hierarquicamente subordinado, ou a um órgão
administrativo encerrando providências a serem tomadas. Ordem do Rei D.
João V aos irmãos da Santa Casa de Misericórdia da Bahia a respeito da execução de dois negros na forca, em 30 de abril de 171614.
A operacionalização do Projeto Resgate Documentos Manuscritos
“Avulsos” da Capitania da Bahia (1604-1828), resultou dos esforços de uma
equipe técnica interdisciplinar, que atuou e se renovou de acordo com os momentos distintos do Projeto em suas várias fases. Porém, antes de descrevermos os caminhos percorridos pelo Resgate, principalmente no APB / FPC /
SECULT, faz-se necessário registrar o reconhecimento da Bahia ao Ministério
da Cultura, na pessoa da Coordenadora Técnica Dra. Esther Caldas Bertoletti, pelo compromisso e disponibilidade com que abraçou a causa. A Dra. Esther
os agradecimentos do APB. Agradecemos, também, ao Professor Ubiratan
Castro de Araújo, Diretor Geral da FPC, pelo apoio institucional, e por reconhecer, na condição de historiador, o significado do patrimônio documental
do Resgate para a memória da Bahia Colonial. Agradecemos, ainda, a toda a
equipe técnica elencada no texto que se segue.
A primeira etapa do supra citado Projeto foi realizada na sede do AHU,
em Lisboa, compreendendo a identificação, o arranjo (cronológico), e a descrição de documentos em conformidade com as normas internacionais de Arquivística e Diplomática, de acordo com o padrão utilizado pelo AHU. O resultado desta intervenção foi a elaboração e a informatização de dezenove mil
seiscentos e dez (19.610) verbetes, analíticos, da Capitania da Bahia. Participaram desta fase, Avanete Pereira Sousa, Érika Simone de Almeida Carlos
Dias, Gilson Sérgio Matos Reis, Márcia Gabriela de Aguiar Barreto, Neuza Rodrigues Esteves, Onildo Reis David e Patrícia Alexandra Ramalho
de Almeida Alves, seis (06) profissionais, entre brasileiros e portugueses.
O segundo momento foi iniciado, em Salvador (Ba.), após o encaminhamento de quarenta (40) rolos de microfilme ao então Arquivo Público do
Estado da Bahia (APEB), em 1999, na gestão da Doutora Anna Amélia Vieira Nascimento (1991-2002). No ano de 2002, os duzentos e noventa e três
(293) rolos de microfilme já se encontravam sob a custodia do APEB.
Em 2003 a Coordenadora Nacional do Projeto Resgate oficialmente,
entregou, à Diretora do Arquivo Público da Bahia (APB), Professora Marli Geralda Teixeira (2003-2006), trinta e dois (32) CD-ROMS, contendo a
digitalização dos documentos “avulsos” microfilmados. Em 2004 dando seguimento a terceira fase do referido Projeto, foi executada a conferência e a re14
Verbete AHU_ACL_CU_005, Cx. 10, D. 862.
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visão de cada verbete com a respectiva reprodução do documento, em suporte
microfilme, sob a supervisão de Marlene da Silva Oliveira, responsável pelo
Laboratório de Microfilmagem do APB / FPC. Participaram desta etapa cinco
(05) estagiários do Programa de Educação pelo Trabalho (Proget) do Governo
do Estado da Bahia: Carolina Campbell de Barros, Diana Neuma Santos
de Sant’anna, Eric Ferreira de Souza, Flábio Gusmão Matos e Roman
Romeu Silva Pinto.
Desde o ano de 2007, na gestão da Professora Maria Teresa Navarro de Britto Matos, o APB / FPC vem investindo esforços para elaborar os
índices (onomástico, toponímico e temático) do Catálogo de Documentos Manuscritos “Avulsos” da Capitania da Bahia (1604-1828). Com esta finalidade,
foi constituído um Grupo de Trabalho (GT), integrado por servidores do APB /
FPC, coordenado por Marlene da Silva Oliveira, responsável pelo Laboratório de Microfilmagem. Integra o referido grupo: Antonietta d’Aguiar Nunes,
Carmosina Costa do Nascimento, Maria Ângela Duarte Pereira, Maria
Auxiliadora Barreto Miranda, Marilene Penelú da Silva, Marlene Assis de
Deus Moreira e Raimunda Vicente Borges. Além dos estagiários do Projet:
Cleber Chagas de Cerqueira, Fernanda Nascimento de Araújo, Leandro
Estrela Delfino e Vitor Silva Santana Santos. A parceria firmada com a Santa
Casa de Misericórdia da Bahia (SCMB), na gestão do Provedor Álvaro Conde Lemos (2005-2008) viabilizou a participação da Senhora Neuza Rodrigues Esteves, ex-funcionária do APEB e responsável pelo Arquivo Histórico
da SCMB, com experiência de pesquisa no AHU. Soma-se, também, sob a
supervisão da Senhora Neuza, a participação dos estagiários: Adriana Bastos, Fernanda Maria Pamponet Cordeiro, Mariane Nascimento, Matheus
Buente, Renata Maria Almeida Jurity e Rosana Santos de Souza.
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2. Maranhão (2002)
Apresentação
Caio C. Boschi
O documento não é o feliz instrumento de uma história que seria nela mesma, e
de pleno direito, memória; a História é, para uma sociedade, uma certa maneira
de dar estatuto de elaboração à massa documental de que ela não se separa.
Michel Foucault, Arqueologia do saber
Tendo em vista a unidade de propósitos, a concepção metodológica,
a co-autoria e a forma semelhante pela qual os trabalhos ora apresentados se
realizaram, não me parece impróprio reproduzir, na sua essência, e feitas as necessárias adaptações, o texto introdutório elaborado para figurar em Inventário
análogo referente à série documental respeitante a Minas Gerais, trabalho este
que inaugurou um conjunto de ações desenvolvidas ao abrigo do prestigioso
Projeto Resgate da Documentação Histórica Barão do Rio Branco.
Efetivas correntes historiográficas ou meros modismos historiográficos,
qualquer que seja o vetor do modus operandi adotado pelo historiador, este terá
sempre, como elemento-chave e determinante no exercício de seu ofício, as
fontes pelas quais opta e com as quais interage para levar a efeito seu trabalho.
Cada vez mais, o leque dessas opções se amplia, ao sabor do progresso
das expressões e dos registros humanos que se vão produzindo. Dentre eles
o documento escrito pode perder a preeminência, mas não sua importância.
Por isso, não deve causar estranheza o fato de o senso comum julgar que o
documento escrito, como tipo especial de material de memória, para retomar
ao campo conceitual foucaultiano, tende a um lugar secundário, possivelmente
dispensável na construção do saber histórico.
Este curto texto de Apresentação não visa a situar tal problemática, sequer bordejá-la. O propósito aqui não é o de fazer a apologia das fontes escritas,
mas sim o de dar a público, isto é, de dar a conhecer, de forma mais abrangente,
a massa documental constituída por mais de treze mil dossiers ou pequenos
conjuntos documentais (manuscritos avulsos) relativos ao Maranhão e pertencentes ao acervo do Arquivo Histórico Ultramarino (AHU), de Lisboa.
Ao fazer essa divulgação e estimulando sua consulta, está-se proporcionando uma melhor apreensão das formas discursivas veiculadas pelos documentos. A postura metodológica de cada consulente e o uso que fará dos
documentos ora estampados, de forma sumariada, transcendem as expectativas
do signatário e de seus autores.
O AHU, organismo subordinado ao Instituto de Investigação Científica
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e Tropical, armazena o maior volume de documentos manuscritos - para além
dos cartográficos e iconográficos - relativos às ex-colônias portuguesas. No
que respeita ao Brasil, e não incluindo os códices, lá se depositam algumas
centenas de milhares de documentos manuscritos avulsos, acondicionados em,
aproximadamente, duas mil “caixas”, em latas de folha-de-Flandres, grosso
modo, em bom estado de conservação.
Esse monumental acervo é formado, fundamentalmente, pela documentação proveniente da extinta Seção Ultramarina da Biblioteca Nacional
de Lisboa, à qual se somou outra parte oriunda do denominado Arquivo do
Ministério das Colônias.
Seu conteúdo, como se pode deduzir pelo enunciado dos organismos
depositários, compreende a documentação da rotina burocrática de variados
órgãos metropolitanos, em particular daqueles vocacionados para a administração do Ultramar português, como sejam: o Desembargo do Paço, a Mesa da
Consciência e Ordens, a Casa da Índia e, sobretudo, O Conselho Ultramarinos
(particularmente, de sua criação, em 1642, até as primeiras décadas do século
XVIII) e a Secretaria de Estado dos Negócios da Marinha e Domínios Ultramarinos (hegemônica, desde sua instituição, em 1736).
Pelos órgãos de procedência dos documentos, já se pode deduzir a sua
natireza e a sua tipologia. Na essência expressam e materializam as relações
político-administrativas entre a Metrópole e a Capitania isto é, traduzem-se na
correspondência trocada entre a administração central, em Lisboa, e a administração da e na Capitania, em suas multifacetas: governação propriamente
dita e a administração fazendária, de pessoal, eclesiástica, judiciária e militar.
Quanto à tipologia, são eles, predominantemente, cartas régias, decretos, alvarás, provisões, portarias, requerimentos, cartas e ofícios, cartas patentes, consultas e pareceres, passaportes, além de relatórios, mapas estatísticos
e cartografia.
Em suma, trata-se de documentos típicos de se identificarem com os
fundos dos arquivos públicos, como em qualquer parte do mundo. Neles ficam
nitidamente privilegiadas as fontes que dão suporte a vida e às pesquisas mais
voltadas para as histórias político-administrativas das instituições e para a história militar e diplomática. Vale dizer, então, que, abastecendo-se desse gênero
de documentos, o AHU determina quem constitui a sua clientela preferencial.
Por decorrência e para ficar apenas num exemplo, o interessado na investigação histórica voltada para temas da memória coletiva, em especial para o
cotidiano social e mental, certamente estará mais bem nutrido nos arquivos
paroquiais (ou eclesiásticos) e notariais.
No acervo em causa, dada sua natureza, repita-se, o destaque no seu
aproveitamento será, principalmente, para os temas concernentes às estruturas
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político-administrativas, à atuação dos aparelhos do Estado, sem embargo, é
claro, daqueles destinados à análise das realidades sociais que subjazem às
instituições políticas.
Testemunhos de uma realidade viva, esses documentos retratam as vicissitudes da complexa e truncada estrutura administrativa do Estado Absolutista português. Através deles pode-se, quando nada, acompanhar a dinâmica,
o fluxo e o refluxo da administração da época. Obviamente que, não obstante
o zelo burocrático exigir e ter proporcionado a sua preservação e a par do
seu alentado volume, a documentação aqui comtemplada é tão-somente parte
do universo dos documentos produzidos pelos organismos e individualidades
apontadas.
Até 1996, data do início da execução deste trabalho, a documentação em
pauta encontrava-se depositada em 161 “caixas”, de forma dispersa, sem nenhuma organização ou tratamento arquivístico, exceto uma vaga e não necessariamente correta datação com que se etiquetava a frente das referidas “caixas”.
A tarefa compreendeu várias fases, que foram da identificação dos documentos, da sua datação crônica e tópica até sua cotação (numeração sistemática) e reinserção, agora definitivas, nas unidades de instalação. Entrementes,
a documentação foi toda ela lida e buscou-se, tanto quanto possível, fazer-se
reintegração ou junção das peças, de modo que a cada capilha correspondesse
um dossier ou um processo, acepção técnico-administrativa do termo.
Da leitura paleográfica dos dossiers fez-se uma ficha-resumo do seu
conteúdo, sob a forma de sumário. O resultado é que o que se publica a seguir. Logo se compreende que, pelo seu vulto, foi trabalho que demandou uma
ampla e diversificada equipe composta de profissionais das áreas de História,
de Documentação e de Informática. Para mim, foi um prazeroso privilégio ter
participado desse empreendimento.
Tendo arrastado suas atividades por muitíssimo mais tempo do que o
desejável e o planejado, com obstáculos e dificuldades de variada natureza,
sendo integrada majoritariamente por portugueses, além de brasileiros, podese depreender que a equipe e, sobretudo, o trabalho por ela produzido sejam
suscetíveis de reparos e de erros.
Por exemplo, assinale-se que o texto dos verbetes-sumários, tendo autores tão díspares nas suas formações acadêmicas e nas suas afinidades com a paleografia e com a análise dos discursos, permanece com incorrigíveis redações, em
razão, sobretudo, de haver sido acordado previamente, como norma de trabalho,
que os sumários teriam suas respectivas autorias plenamente respeitadas.
Os responsáveis pela leitura paleográfica do núcleo arquivístico aqui
considerado são, em sua quase totalidade, cidadãos portugueses. O conhecimento que possuíam da História do Brasil, à época do início dos trabalhos,
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ainda se mostrava bastante lacunar, mesmo em suas linhas gerais. Nenhum dos
autores dos verbetes conhecia ou conheceu pessoalmente o Maranhão. A muito
rarefeita bibliografia concernente à história maranhense, de Seiscentos até o
início do Dezenove, disponível em instituições portuguesas não propiciou, assim, suprimir tal lacuna básica, com óbvios reflexos na produção do trabalho.
Não é necessário conhecerem-se os meandros e os caminhos (por vezes
bastante sinuosos) da leitura paleográfica, seja de que momento histórico for,
para se saber, desde logo, que nem sempre o documento contém os elementos
básicos para a elaboração de um sumário de seu conteúdo. A começar pela
data, por vezes omitida no texto ou a que dela se possa aproximar através de
um ou mais indicadores constantes no referido texto. Portanto, por mais que
se procurasse ser conclusivo e completo na fixação dos elementos centrais inerentes à redação dos verbetes-sumários, alguns destes serão aqui referenciados
com a falta de dados essenciais, inclusive, porque, parte da documentação,
felizmente pouco expressiva do ponto de vista numérico, encontra-se “em mau
estado” ou em precárias condições de legibilidade.
Por outro lado, muitos documentos não proporcionaram sua identificação correta ou completa, quanto à data ou quanto aos nomes do emissor ou do
destinatário. No primeiro caso, procurou-se, através de um ou mais elemento
constante do documento, atribuir-lhe uma datação. Para tanto, adotou-se a seguinte convenção na redação dos sumários:
• a inserção da letra A em substituição ao número 1, na data do ano/
milênio da emissão do documento. Por exemplo, A725 significa documento produzido anteriormente ao ano de 1725;
• a inserção da letra P em substituição ao número 1, na data do ano/
milênio da emissão do documento. Por exemplo, P725 significa documento produzido posteriormente ao ano de 1725;
• a inserção da letra C em substituição ao número 1, na data do ano/
milênio da emissão do documento. Por exemplo, C725 significa documento produzido em torno (cerca) do ano de 1725.
Uma vez terminada a tarefa, cumpre divulgá-la. Ou melhor, cumpre
comunicá-la, torná-la disponível à consulta. Todos sabemos que a riqueza documental só se evidencia quando é anunciada. Ao mesmo tempo, buscou-se
otimizar o tempo do pesquisador. Somente agora se pode considerar que o núcleo documental em causa se aproxima da noção de inventário/catálogo que
se lhe confere, nesta oportunidade, permitindo extrapolar o horizonte delimitado e restritivo dos trabalhos de investigação individualizados. Claro está que
a simples consulta aos sumários, conquanto abrevie o tempo da investigação e
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evite o nem sempre cuidadoso manuseio do documento, não dispensa a leitura
deste. Se o catálogo permite selecionar e distinguir documentos, nada supera
a sensação do contato direto com a fonte e da sua leitura efetiva e completa,
única forma do estudioso inteirar-se das potencialidades de exploração da estrutura informativa do documento.
Ao mesmo tempo, tendo uma visão mais ampla do fundo arquivístico
em tela, um delineamento mais nítido do organograma e da dinâmica administrativa da História do Maranhão, por certo, há de surgir. Muitos equívocos
historiográficos poderão vir a ser desfeitos, novas problematizações emergirão, sem falar em um conhecimento mais amplo e vertical das estruturas administrativas do Maranhão Colonial e das suas congêneres metropolitanas, bem
como das que se lhes seguem na primeira metade do século passado.
Essa massa documental, em diálogo com a de outros acervos, entrecruzando com a sua contraface depositada em instituições brasileiras, em particular com a do Arquivo Público do Estado do Maranhão, provavelmente abrirá
novos horizonte interpretativos.
Ainda assim são necessárias outras ressalvas ao presente trabalho. Por
mais exaustiva e zelosa que tenha sido sua execução, ele não atinge a totalidade do acervo que lhe dá título. Um número ainda não projetável, mas que não
se supõe elevado, de manuscritos avulsos referentes ao Maranhão vem sendo
identificado e descartado das “caixas” de outras capitanias da América Portuguesa. Esse trânsito de fontes faz-se, na verdade, em movimento de mão-dupla,
pois durante o presente trabalho inúmeros foram os documentos encontrados
que estavam inseridos em “caixas” da capitania em causa e, com segurança,
pertenciam aos fundos de outras capitanias, para onde foram oportunamente
deslocados. Outros há, que, por absoluta imprecisão (por exemplo, de nomes de
emissor e/ou de destinatário e/ou de data) restarão à margem da catalogação.
O que se quer dizer é, pois, que, enquanto todo o gigantesco acervo de
manuscritos avulsos relativos ao Brasil não tiver merecido o tratamento técnico semelhante ao que aqui se relata, será impossível e impróprio afirmar-se que
o Maranhão ou qualquer outra capitania tem seu acervo no AHU totalmente
identificado, cotado e inserido, corretamente, nas unidades de instalação.
Tal como ora se apresenta a documentação e, principalmente, dado que
nos foi possível catalogá-la, apraz-nos verificar que o texto a seguir serve de
elemento básico e será transcrito na reprodução microfílmica promovida pelo
nunca assaz louvado Projeto Resgate, desenvolvido pelo Ministério da Cultura do Brasil.
Fortemente motivados pelo emblemático ano 2000, também ele o do
Quinto Centenário da chegada dos portugueses ao continente que veio a se
chamar Brasil, estejamos, nós, brasileiros, melhor imbuídos da consciência
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cívica sobre o valor do patrimônio documental respeitante ao nosso País, seja
quanto à sua preservação, seja quanto ao conhecimento e à democratização
do acesso aos acervos documentais nos quais, desde sempre, buscamos uma
compreensão histórica mais satisfatória para cada geração.
Belo Horizonte, janeiro de 2000.
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A Face real de um sonho
Jomar Moraes
No Ano da Graça de 2002, em que o Brasil celebra o centenário de um
de seus grandes poetas - Carlos Drummond de Andrade -, vem muito a propósito iniciar falando de um antigo e recorrente sonho que retinha uma zona
lúcida / para concretar o fluido. (CDA, poema Sonho de um Sonho).
Com efeito, desse alumbramento onírico tenho conhecimento e participo há quase trinta anos, desde quando decidi reeditar fac-similarmente o Semanário Maranhense, que circulou em São Luís no período de 1° de setembro
de 1867 a oito de setembro de 1868, e que fora criminosamente surrupiado da
Biblioteca Pública Benedito Leite, do Estado do Maranhão.
Em tais circunstâncias, recorri aos préstimos de Esther Caldas Bertoletti, que prontamente me enviou um microfilme de segunda geração do Semanário, a partir do qual foi possível reeditá-lo (São Luís: Edições Sioge, 1979)*
e devolver à consulta, pelos interessados, tão valiosa fonte, representativa de
um dos últimos empreendimentos coletivos de nossos românticos, luminosa
constelação geracional em que já não figuravam Odorico Mendes, Gonçalves
Dias, João Francisco Lisboa, Gomes de Sousa e Trajano Galvão, todos desaparecidos, como por encanto, no biênio 1863-64.
Mas o Grupo Maranhense, como celebrizado na história literária nacional, ainda tinha a abrilhantá-lo estrelas da grandeza de Joaquim Serra (Pietro
de Castellamare), editor e assíduo colaborador do Semanário, e de, entre outros, Gentil Braga (Flávio Reimar), Dias Carneiro, Sotero dos Reis, Antônio
Henriques Leal, César Augusto Marques e Joaquim de Sousândrade, que aí
publicou, em fragmentos, as primícias de seu poema épico O Guesa, então
ainda denominado Guesa errante.
Esse breve excurso teve por finalidade estabelecer, no território cronológico, os lindes da zona lúcida sem cuja preexistência seria impossível concretar o fluido.
Nos anos 70 do século passado, quando Esther Bertoletti coordenava o
Plano Nacional de Microfilmagem de Periódicos Brasileiros, esforço pioneiro
que resultou na microfilmagem de mais de sete mil jornais e revistas de todas
as Unidades da Federação, conheci-a, por ser diretor da Biblioteca Pública
Benedito Leite. Então, nas tratativas relacionadas com a tarefa a que ela especialmente se dedicava, tomei conhecimento de que o desafio que pusera sobre
os ombros não se restringia a levar dos Estados para a Biblioteca Nacional do
* Em 1980 também reeditei fac-similarmente, pelas Edições Sioge, estes jornais e revislas literários: O Censor Maranhense, 1825•30; O Argas da Lei, 1825, e O Arquivo, 1846.
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Rio de Janeiro os microfilmes de periódicos brasileiros editados, nos séculos
XIX e XX, em todos os pontos do território nacional. Compreendia, também,
a decisão de devolver aos locais de origem, seus órgãos de imprensa microrreproduzidos e postos a salvo das mais diversas ameaças, efetivas e potenciais,
representadas tanto pelo inadequado manuseio de suportes já acidificados e
tornados muito vulneráveis pelos agravos do tempo, quanto pela ação nefasta
dos átilas da pesquisa, que não se pejam de mutilar e subtrair, como se após
eles nem a relva da informação, que é inalienável patrimônio coletivo, merecesse subsistir.
O presente registro, feito com a intenção de protestar contra a injustiça
dos que pretenderam, pela omissão ominosa e pelo silêncio que fala alto, tornar
esquecida uma atuação pioneira, incansável e obstinada, estaria incompleto se
não consignasse que, por essa época - anos 70 - ouvi de Esther Bertoletti que
algo parecido, porém de muito maiores proporções, ela sonhava realizar relativamente à documentação do Brasil colonial: trazer dos arquivos portugueses
para seus congêneres regionais brasileiros, mediante microrreproduções, os
documentos vinculados, pela origem ou pelo destino, às diversas circunscrições administrativas da América portuguesa, hoje Unidades da República Federativa do Brasil.
O sonho desse sonho era tão ousado, que parecia improvável conseguir,
um dia, concretar o fluido de um outro sonho esculpido, sonho que havia e que
vinha / com a propriedade mágica / de refletir o melhor, e, por isso mesmo, tão
desafiador quanto fascinante. E tão fascinante quanto desafiador, que na caravela onírica dessa bem-aventurada aventura logo embarquei por marinheiro
voluntário, convencido da certeza pessoana de que Deus quer, o homem sonha,
a obra nasce.
Sob o nome prestigioso e emblemático de Projeto Resgate de Documentação Histórica Barão do Rio Branco, o sonho começou a tornar-se realidade a partir de Minas Gerais. Tomei conhecimento detalhado desse fato
quando, de passagem pelo Rio de Janeiro, conversei com Esther Bertoletti, que
instou comigo para conseguir no Maranhão um patrocínio, pequeno que fosse,
porém capaz de dar por iniciada a parte maranhense do Projeto e, assim, lutar
para torná-lo irreversível.
Voltei a São Luís desafiado pela idéia auspiciosa. E logo intuí que o
empresário Carlos Gaspar, membro da Academia Maranhense de Letras e exprofessor no Curso de História da Universidade Federal do Maranhão, pela
qual é licenciado, poderia ser o mecenas que eu precisava urgentemente encontrar. Num de nossos encontros dominicais, expus-lhe o problema e tive a
pronta resposta: através de uma de suas empresas, a Auvepar - Automóveis e
Peças Ltda., seria doada uma quantia destinada ao início do Projeto, cuja con42
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tinuidade e execução total foram custeadas com recursos do Estado, graças à
clarividência da governadora Roseana Sarney, que, assim, associou seu Governo a um marco pinacular da documentação histórica do Maranhão.
Devidamente informada dessa primeira vitória, Esther Bertoletti fez
questão de vir a São Luís para, numa tarde de sol no ocaso que mais parecia
arrebol de alvorecer, o grupo formado por ela, por Eliézer Moreira Filho, então
secretário de Estado da Cultura, e por mim, ir ao encontro de Carlos Gaspar,
que reiterou seu compromisso de patrocínio. Ali mesmo, sonhamos a mais da
conta, e já vimos o projeto concluído, com seus diversos resultados: reproduções dos documentos em microfilmes, CD-ROMs com a íntegra dos documentos digitalizados e o catálogo das fichas a eles correspondentes. Do último
suporte fui logo nomeado editor e, conseqüentemente, o agente encarregado de
captar os recursos financeiros indispensáveis ao custeio da edição.
Em dias de um mês de 2000 que não saberia precisar, Maria Raymunda Araújo, proficiente diretora do Arquivo Público do Estado do Maranhão,
entregou-me o CD-ROM na versão Word, com todo o conteúdo do Catálogo.
Dei-me pressa em transferir para provas gráficas a íntegra do material digitalizado, e então tive a idéia exata de sua extensão física: eram 2.573 páginas com
manchas de 19 x 19 cm, compostas no tipo Courier New, no corpo 10 para a
Introdução e fichas, estas em número de 13.118, e, no corpo 9, para os índices - onomástico, toponímico e ideográfico. Material para três volumes, logo
admiti. Mas também prontamente me ocorreu a idéia de economia que não prejudicasse a eficiência e eficácia do Catálogo como instrumento de trabalho do
pesquisador, e ao mesmo tempo contemplasse o menor dispêndio financeiro da
edição. Talvez a redução do corpo da composição até o limite do perfeitamente
legível, e a ampliação do formato de modo que não dificultasse seu manuseio
e ainda, quem sabe, a transformação do Catálogo em volume único, fossem
critérios a adotar, juntamente com a dispensa de tudo quanto não afetasse a
integridade da obra.
Salutar, num Estado cuja carência de recursos ainda não lhe permitiu
saldar a imensa dívida social, que os dispêndios não se extraviem nos descaminhos do dispensável, que em tais circunstâncias vira supérfluo. Assim,
procurei dar nova disposição às fichas, que da primeira à última, deste modo
se apresentavam:
00005
1616 Março 7
CARTA RÉGIA (capítulo) do rei D. Filipe II, para o vedor da Repartição da Índia, Luís da Silva, sobre a recusa de Francisco Nunes Marinho em
ir para o Maranhão como provedor da Fazenda Real e em distribuir as terras
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pelos povoadores, tal como tinha feito o capitão-mor do Maranhão, Alexandre
de Moura. (Documento em mau estado).
AHU-ACL-CU-009
Caixa: 1
Doc.: 0005
Supondo perfeitamente dispensável a inscrição do número à esquerda,
posto que ele era repetido ao final do documento sumariado, e também convencido de que a linha de data, porque em negrito, poderia iniciar a descrição do
documento, adotei este partido:
1616 Março 7 - CR (cap.) do rei D. Filipe II, para o vedor da Repartição da Índia, Luís da Silva, sobre a recusa de Francisco Nunes Marinho em
ir para o Maranhão como provedor da Fazenda Real e em distribuir as terras
pelos povoadores, tal como tinha feito o capitão-mor do Maranhão Alexandre
de Moura. (Doc. em mau estado).
AHU-ACL-CU-009 Caixa: Doc.: 0005
O ganho aparentemente pequeno de uma linha é muito expressivo, porque imensamente maior, no cômputo das 13.118 fichas, sobretudo se levado
em conta que a primeira página que as reproduz em colunas duplas comportou
quase 24 fichas, e que a versão original, para chegar a essa quantidade, exigia 4
páginas. Com o mesmo objetivo, foram adotadas abreviaturas de uso corrente, e
das quais é dado o respectivo rol, no vestíbulo do Catálogo propriamente dito.
Tudo quanto até aqui foi afirmado, e continuará a sê-lo em seguida,
pode ser comprovado à vista do CD-ROM original.
Para contrapeso das observações que a seguir farei, abro este parágrafo,
com o fim específico de reconhecer e proclamar a admiração e o respeito que
me inspira a equipe multidisciplinar formada pelos profissionais que neste Catálogo trabalharam empenhadamente, e que são, na maioria, portugueses. Eles,
embora cumprindo contratos onerosos de trabalho, como não poderia deixar
de ser, deram muito de si, e talvez mais do que receberam como remuneração
pelo trabalho de decifrar velhos documentos ilegíveis aos olhos de leigos, e
descrevê-los sumariamente, com o que possibilitaram que se tornasse acessível
aos interessados um mundo rico, pulsante e capaz de renovar significativamente a História maranhense e brasileira.
Agora, os fatos. O reiterado manuseio das provas impressas do Catálogo a ser editado, cedo mostrou-me que, para além de intervenções de natureza
morfológica (determinação do formato, do tipo e do corpo da composição, e
sua distribuição nas páginas etc.), todas da competência do editor, cedo mostrou-me, dizia, que algo a mais me impunha o dever e me autorizava o direito
de fazer intervenções. Não as que de algum modo afetassem a incolumidade
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conteudística das fichas, mas as que delas expurgassem ocorrências perfeitamente compreensíveis numa equipe numerosa e que teve por tarefa sintetizar
em fichas um vasto universo documental.
Incursionar nesse território, custou-me hesitações. Ao receio de exercer
o papel de Pilatos no Credo, contrapôs-se-me a certeza de haver contribuído
para que o Credo existisse. Pensei na inócua e oportunista função do engenheiro da obra feita, mas prontamente tomei consciência de que a obra estava,
em parte, por fazer, apesar do non plus ultra “decretado” sob a fórmula que
informa “haver sido acordado previamente, como norma de trabalho, que os
sumários teriam suas respectivas autorias respeitadas.” (Vd. Apresentação).
Que autorias respeitar, se o exaustivo e louvável trabalho não é de autores, mas de descritores? A distinção faz-se imperativa, não para hierarquizar
nem tampouco desqualificar, mas para, truisticamente, distinguir, sem valorar,
funções que não podem ser confundidas.
Autor, ensina o Aurélio, é “1. A causa principal, a origem de: o autor
do Universo. 2. Inventor, descobridor: o autor do sistema de propulsão a jacto.
3. Criador, instituidor, fundador: o autor do protestantismo. 4. Escritor de obra
artística, literária ou científica.” [...] O mesmo Aurélio, no verbete descritor,
na acepção que vai diretamente ao ponto para o caso, preleciona: “3. Docum.
palavra ou expressão utilizada em indexação e tesauro para representar, sem
ambigüidade, um determinado conceito.”
Embora tendo presente que o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa
assinado em Lisboa a 16 de dezembro de 1990, quando e se entrar em vigor
nos países lusófonos, tornará superadas certas ocorrências ortográficas do Catálogo, o fato é que o Sistema Ortográfico ainda vigente no Brasil, é de compulsória observância entre nós.
O primeiro problema que se me apresentou tinha a ver com o emprego
dos acentos gráficos, que estava em desacordo com as normas brasileiras. Vime, então, compelido a substituir por acentos circunflexos os acentos agudos
dos antropônimos António/Antónia, Eugénio, Estévão, Jerónimo, Possidónio e
muitos outros mais; e de palavras como género, cómodo, anónimo, matrimónio
e por aí vai. Diversas sequências consonânticas mudas, na pronúncia culta do
Brasil, tiveram que ser eliminadas, a exemplo de acto, actual, facto, director,
Inspector, protecção, efectuar, projecto, objecto, victória e casos semelhantes.
O repasse, uma a uma, das 13.118 fichas, à procura de remo¬ver delas lusitanismos ortográficos que não podiam ser deletados por um comando de busca e
correção, levou-me a deparar com situações diante das quais não deveria ficar
indiferente.
Casos, entre muitos outros, porque os refiro apenas exemplificativamente, de encarregue, particípio do verbo encarregar não corrente no Brasil;
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de terramoto ou das numerosas incidências de treslado. Essa variante arcaica
de traslado, que tem a forma paralela pouco usada translado, se teve acolhida
no Dicionário de Moraes, ed. de 1813, não a tem em nenhum dos três mais
prestigiosos dicionários da atualidade, a saber: Aurélio, Houaiss e da Academia das Ciências de Lisboa.
E somente o último deles consigna o tantas vezes empregado aquando,
porém com a observação de que é forma de uso popular. As confusões com
parônimos levaram-me a corrigir a conjugação do verbo prover, tomado como
se fora provir, e a distinguir iminência de eminência ou despensa de dispensa.
lntrepor e suas flexões foram corrigidas para interpor. O modo subjuntivo do
verbo averiguar, flexionado como averigue, foi corrigido para averigúe. E assistir, na acepção de dar assistência a, teve sua regência compatibilizada com
a dos verbos transitivos diretos. Visita de ouro, passou a visita do ouro, já que
a locução adjetiva não corresponde a visita áurea, mas a visita de inspeção a
embarcações, criada para fiscalizar o ouro e outros produtos procedentes da
colônia. O mesmo se diga da alternada menção a Secretaria do Estado do Maranhão e a Secretaria de Estado do Maranhão, órgão este que jamais houve na
estrutura administrativa colonial do Maranhão.
Como visto, as intervenções objetivaram uniformizar discrepâncias,
naturais em trabalho coletivo da natureza deste. Todas, sem exceção, tiveram
por fim o respeito à língua portuguesa. E o mesmo cabe dizer quanto às que
extirparam milhares de lusitanismos mor Fo representados pelas construções
requerimento a solicitar, decreto a nomear, carta a informar etc. etc.
As observações finais referem-se aos índices. Em todos, para evitar desperdício de espaço, indiquei com um A, posto entre os extremos de início e
término, a supressão dos números intermediários das seqüências contínuas. No
Índice Ideográfico, dei arranjo específico a Embarcações, enumerando-as, em
seguida ao verbete genérico, pela ordem alfabética de suas denominações.
No Índice Onomástico, suprimi longas remissões repetidas uma ou
duas vezes para uma única finalidade. O fato ocorria diante de personalidades
distinguidas com títulos nobiliárquicos.
Sirva de exemplo o célebre ministro de D. José I, que também por motivos familiares sempre teve suas atenções particularmente voltadas para o
Maranhão. Além de reunir a totalidade das remissões que lhe dizem respeito
no verbete do seu nome de batismo - MELO, Sebastião José de Carvalho e
-, repetia-as parcialmente em OEIRAS, Conde de, e POMBAL, marquês de.
Conservei os verbetes desses títulos, porém em lugar de repetir neles as remissões que já estavam feitas em MELO, apenas indiquei - Ver MELO, Sebastião
José de Carvalho e.
Critério idêntico adotei para todas as personalidades detentoras de tí46
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tulos nobiliárquicos. E sem o menor prejuízo para o consulente, que terá a
informação procurada diretamente no nome próprio, ou mediante a remissão a
este, posta em seguida ao título. Como visto, em nada foi prejudicada a recuperação da informação, ao mesmo tempo em que houve importante economia
de espaço.
Reconheço que o trabalho de ler e reler ficha por ficha, em extenuantes
serões que invadiram as madrugadas, em finais de semana, feriados e pontos facultativos que como tal não me foram facultados, ocasionou, quando as
interrupções se prolongaram, a perda do “clima” propício à continuidade da
revisão, fato que certamente a prejudicou, além de retardar consideravelmente
a publicação deste Catálogo.
Cabe consignar meus sinceros agradecimentos à presteza com que Maria Raymunda Araujo respondeu às minhas consultas, e ao decisivo apoio que
para o custeio desta edição recebi do poeta Luís Henrique de Nazaré Bulcão,
presidente da Fundação Cultural do Maranhão, e do diretor-executivo daquele
órgão, professor Antônio Francisco de Sales Padilha.
Encerro este relato de atividades certo de que nele disse o necessário
sobre mais um serviço prestado à minha terra natal, à qual Mais servira, se não
fora / Para tão longo amor tão curta a vida! E tenho por única recompensa,
pois outra não recebi nem postulei, a convicção de que contribuí para tornar
melhor este vasto repositório de pistas que muito úteis haverão de ser aos que
se dedicam à História do Maranhão.
Laus Deo.
São Luís do Maranhão, Jardim Renascença, dezembro de 2002; AnoSousândrade e 94° da Fundação da Academia Maranhense de Letras.
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3. Paraíba (2002)
Apresentação - Do silêncio do tempo, o resgate da História
Rosa Maria Godoy Silveira
1.
Uma História por Fazer: a Paraíba Colonial
A Paraíba constituiu-se em uma das mais importantes Capitanias do
período colonial brasileiro, por várias razões: a alta qualidade do pau-brasil
encontrado em suas terras; a lavoura açucareira, efêmera, contudo, por não ter
nunca mais se recuperado da desestruturação decorrente das invasões holandesas; e a sua inserção como espaço estratégico para a expansão da colonização
portuguesa para o norte, respaldando a Nova Lusitânia, depois Pernambuco.
Tanto é que a Paraíba deu trabalho aos colonizadores e custou inúmeras expedições, antes de ser conquistada, dada a resistência dos indígenas ocupantes do
futuro território paraibano, especialmente a nação Potiguara.
Depois, mesmo quando a crise econômica se instalou, do final da ocupação batava até o início do século XIX, período durante o qual a Capitania, por decisão da Metrópole, foi anexada politicamente a sua vizinha ao sul, permaneceu,
via tributação, como constante fornecedora de recursos financeiros para Portugal
e também para Pernambuco; e de madeiras de lei para o mercado externo.
Sob outros prismas, o sertão da Paraíba integrou a expansão de rotas irradiadas da Bahia, que alargaram o território português por dentro, constituindo
configuração, em muitos aspectos, distinta do modo de vida litorâneo. Paraibana era parte significativa do patrimônio da Casa da Torre. E, exatamente por
conta disso, da apropriação das terras interioranas, na Capitania, a exemplo de
suas vizinhas Pernambuco, Rio Grande e Ceará, aí se sucede um dos episódios
de maior expressividade da resistência indígena, a Confederação dos Cariris.
Resistência reiterada em outros tempos, em outras circunstâncias, desde o rechaçamento do ocupante holandês, até a contestação ao poder metropolitano nos albores do século XIX, participando de 1817, em extravasamentos
liberais que ultrapassariam o marco formal da autonomia política do Brasil.
Apesar de toda essa importância histórica, a Paraíba colonial continua
uma incógnita. Uma grande incógnita. Sua historiografia, de respeitáveis nomes, não conseguiu, ainda, recompor o processo da ocupação inicial da Capitania. A presença holandesa nas várzeas do Rio Paraíba é bastante obscura. A
crise que se abateu sobre o território paraibano, após a expulsão dos invasores
flamengos, jaz nas dobras do tempo. A anexação a Pernambuco foi salva pelo
raro trabalho da professora Elza Régis de Oliveira1. A conquista do sertão não
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é tão desconhecida graças ao denodo documental de Wilson Seixas2. O processo formativo da estrutura fundiária da Capitania pode ser sistematizado, mais
recentemente, por Irene Rodrigues Fernandes3 porque Lyra Tavares4 deixou
transcritas muitas cartas de concessão. E os primórdios da ocupação da Paraíba - e suas controvérsias - têm vindo a lume pelo esforço de rigorosa crítica
metódica do Dr. Guilherme Gomes da Silveira D’Ávila Lins5.
Muitos estudiosos tentaram reconstituir o passado da Paraíba, especialmente depois da fundação do Instituto Histórico e Geográfico Paraibano, que,
tardiamente surgido, em 1905, buscou identificar as raízes paraibanas sob a
perspectiva do recém-instalado regime republicano e sob a matriz positivista.
De todos esses historiadores da época, o pai fundador, indubitavelmente, foi Irineu Ferreira Pinto, que hoje nomeia a sede do IHGP. Sua obra Datas
e Notas para a História da Parahyba6 é consulta obrigatória de todos que se
debruçam sobre o período colonial paraibano. Não fora ele e muita coisa estaria perdida para sempre, na implacável seletividade da memória.
Irineu teve a oportunidade e a percuciência de trabalhar com documentos manuscritos da Paraíba colonial, originários da metrópole, que, pacienciosamente, transcreveu; documentos dos quais uma parte, quase por milagre,
repousa na seção de Obras Raras do mesmo IHGP.
Depois dele, vieram Maximiano Lopes Machado7 e, mais recente, Ho1
Cf. A Paraiba na crise do século XVIII: subordinação e autonomia.(1755-1799) Fortaleza: BNB, 1985.
2
Cf. O velho arraial de Piranhas (Pombal) no Centenário de sua elevação a cidade. João Pessoa:
Gráfica A Imprensa. 1962; Pesquisas para a História do Sertão da Paraíba. Revista do Instituto
Histórico e Geográfico Paraibano, 21. João Pessoa: Imprensa Universitária, 1975: 67- 76; Casa
da Torre e bandeirantismo na conquista do sertão. Paraíba, conquista, patrimônio e povo. João
Pessoa: A União, 1985: 23-25.
Cf. Catálogo das Sesmarias Paraibanas. Trabalho inédito, realizado para o Núcleo de Documentação e Informação Histórica Regional/UFPB.
3
Cf. João de Lyra Tavares. Apontamentos para a História territorial da Paraíba. 2 ed. Brasília:
Centro Gráfico do Senado (fac-similar) e Mossoró: Fundação Guimarães Duque, 1982 e 1989. 2 v.
(1ª edição: Paraíba: Imprensa Oficial, 1910 e 1911).
4
Cf. Gravetos de História (Revisão da crítica de atribuição da mais antiga crônica da Paraíba e
outras achegas, históricas contemporâneas). 3 v. inéditos.
5
Datas e Notas para a Historia da Parahyba. 2 ed. (facsimilar). João Pessoa: Editora da UFPB,
1977. 2 v. ( 1ª edição, Paraíba: Imprensa Oficial, 1908 e 1916).
6
Cf. História da Província da Paraíba. 2 cd (facsimilar). João Pessoa: Editora da UFPB, 1977. 2
v. (1a edição: Paraíba: Imprensa Oficial, 1912).
7
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rácio de Almeida,8 compondo com Irineu uma trilogia de obras-sínteses do
processo histórico paraibano colonial.
Na esteira desses três autores, com poucas e honrosas exceções, se repete a historiografia paraibana.
A mudança desse perfil só vem ocorrendo muito recentemente, praticamente nos anos noventa deste século. A despeito da instalação de Cursos
de Pós-Graduação em História no país, com particularidade para o Programa
de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Pernambuco, onde
muitos docentes da Paraíba têm se titulado como Mestres e Doutores, a Paraíba
colonial não tem sido opção significativa como tema de pesquisa.
A proximidade dos 500 anos da presença portuguesa, comemorados em
2000, e mais, talvez, a formação de uma nova geração de historiadores, integrando o corpo docente da Universidade Federal da Paraíba, da Universidade
Estadual da Paraíba, e de outras Instituições de Ensino Superior do estado;
e talvez mais, ainda, a redescoberta de um patrimônio colonial expressivo e
significativo, histórica, artística e turisticamente, podem configurar algumas
das razões para a retomada do interesse pela Paraíba colonial. Atualmente,
inúmeros pesquisadores vêm se preocupando com este período de nossa História, através do estudo de diversas temáticas: monumentos, invasão holandesa,
estrutura de poder etc.
2. O Projeto RESGATE dos Documentos Manuscritos Avulsos
sobre a Capitania da Paraíba
Um dos mais sérios motivos para a História Colonial da Paraíba jazer no
esquecimento, com certeza, é a falta de Arquivos sobre o período, no estado.
Podemos resumir os acervos pertinentes disponíveis ao Arquivo Histórico da FUNESC (Fundação Espaço Cultural Jose Lins do Rego), do Governo
do estado, com a ressalva de que a documentação mais antiga remonta ao século XVIII; ao acervo da Santa Casa de Misericórdia, extremamente valioso,
mas necessitando ser organizado e dispor de instrumentos descritivos, para
possibilitar a recomposição do lado interno da colonização; a Seção de Obras
Raras do IHGP, em que avultam exemplares de Ordens Régias, mas em estado
de difícil conservação; e acervos esparsos do interior do estado, especialmente
cartorários, que necessitam de uma vigorosa ação de preservação.
Faltava o outro elo da Memória. A perspectiva do colonizador, sem a
qual a História fica manca. A distância física de Portugal sempre foi um dos
empecilhos ao acesso, agravado pela falta de visão de políticas culturais de
Cf. História da Paraíba. 2 ed. João Pessoa: Editora da UFPB, 1978. 2 v. (1ª edição: João Pessoa:
Imprensa Universitária, 1966, Tomo I).
8
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alcance duradouro, por parte dos nossos dirigentes seja a nível federal seja a
nível estadual.
O projeto RESGATE “Barão do Rio Branco”, do Ministério da Cultura,
com apoio de outras instituições públicas e privadas, veio demonstrar o que se
configura como uma política cultural efetiva, de alcance permanente, e, indubitavelmente, o mais significativo ato comemorativo dos 500 anos de presença
portuguesa.
A magnitude do empreendimento se revela não só nos recursos financeiros alocados pelo Governo brasileiro mas, sobretudo, pela mobilização de
inúmeras equipes de pesquisadores dos vários estados do país e o enorme esforço de articulação interinstitucional em vários níveis politico-administrativos
dentro e fora do Brasil.
Em fins de 1997, a Drª Esther Caldas Bertoletti, essa incansável batalhadora pela preservação da memória histórica brasileira, com quem a Paraíba - através do Núcleo de Documentação e Informação Histórica Regional
(NDIHR), da Universidade Federal da Paraíba - já desenvolvera vários projetos preservacionistas,9 contatou o NDIHR e a Fundação Espaço Cultural/
FUNESC, do Governo estadual, para que o estado integrasse o amplo mutirão
cultural de organização dos valiosos documentos manuscritos avulsos, referentes às Capitanias brasileiras, existentes no Arquivo Histórico Ultramarino,
de Lisboa-Portugal.
Elaborado o projeto e obtido o apoio financeiro do Ministério da Cultura e do Governo do Estado da Paraíba e de recursos humanos da UFPB, a
equipe composta para realizar o empreendimento permaneceu em Lisboa de
setembro de 1998 a março de 1999, ordenando toda a documentação da Capitania da Paraíba e sistematizando o seu conteúdo. De volta ao Brasil, o trabalho
teve continuidade com a elaboração do catálogo documental, que passou por
inúmeras revisões e precisões, e em que foi fundamental o constante intercâmbio eletrônico com a equipe do AHU.
Para a iniciativa chegar a bom termo, foi essencial a composição da
equipe de pesquisadores. De um lado, a experiência da Profª Elza Régis de Oliveira, docente aposentada da UFPB, que, em duas ocasiões anteriores, em fins
da década de sessenta e em fins da década de setenta, já houvera pesquisado a
documentação sobre a Paraíba no Arquivo Histórico Ultramarino, em ambas as
vezes, realizando, respectivamente, reproduções fotográficas e micrográficas
dos manuscritos. De outro, o interesse e a energia de dois jovens pesquisadores
- o Prof. Mozart Vergetti de Meneses, do Departamento de História/UFPB, liberado para a missão cultural, e a Profª Maria Vitória Barbosa Lima, do NDIHR/
Além da já referida organização da Seção de Obras Raras do IHGP, foram microfilmados os
jornais mais antigos da Paraíba e os Relatórios de Presidentes de Província.
9
52
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UFPB - que, vivenciando o projeto, amadureceram profissionalmente e possibilitaram à Universidade qualificar novos recursos humanos para uma área de
pesquisa da História do Brasil que demanda um requisito técnico sofisticado: a
leitura paleográfica. Portanto, para além de seu produto final - este Catálogo, o
Projeto Resgate possibilitou ao país um outro resultado multiplicador de mais
longo alcance: a capacitação de quadros para instituições culturais.
3. A Documentação Manuscrita Avulsa da Capitania da Paraíba:
as etapas do trabalho
Em muitos arquivos portugueses - assim como espanhóis, italianos, holandeses, franceses, ingleses - adormece a memória sobre o período colonial
do Brasil. Longos mais de trezentos anos.
Entre todos esses acervos, o mais rico sobre a História colonial brasileira está guardado no Arquivo Histórico Ultramarino, sediado no Palácio
da Ega-Lisboa, onde se hospedou o general francês Junot, quando da invasão
de Portugal pelas tropas napoleônicas. Originalmente, foi criado entre 1926 e
1931 - como Arquivo Histórico Colonial. Com a mudança empreendida pelo
governo lusitano, da nomenclatura de suas colônias remanescentes para províncias ultramarinas, o Arquivo Histórico Colonial mudou de nome, e o AHU
herdou o seu acervo e mais os da Seção da Marinha e Ultramar, da Biblioteca
Nacional de Lisboa e de vários órgãos da administração do Ultramar português: Mesa da Consciência e Ordens, Conselho da Fazenda, Conselho da Índia, Conselho da Guerra e Conselho Ultramarino.
A estimativa é de que 300 000 documentos compõem o acervo sobre
o Brasil no AHU, dispostos em cerca de 4 000 caixas, um imenso conjunto
dividido em três seções: Documentos avulsos, na Sala do Brasil; Documentos
em códices, na Sala dos Códices; Documentos cartográficos e iconográficos,
acondicionados em mapotecas10.
A documentação manuscrita avulsa encontrava-se, originalmente, em
caixas, mas sem ordenação. Periodizações se superpunham; anexos estavam
despregados de seus respectivos documentos principais.
O trabalho de cada equipe do Projeto foi ingente para reorganizar a
disposição das peças documentais segundo um critério cronológico rigoroso e
mediante o retorno dos anexos aos seus devidos lugares.
Após sua organização e ordenação pela equipe de pesquisadores, os
documentos referentes à Paraíba, no acervo do AHU, totalizam 3523 unidades
Cf. Esther Bertoletti. “Brasil- Portugal, um mar• oceano de documentos”, in Brasil e Portugal:
500 anos de Enlaces e Desenlaces. Rio de Janeiro: Real Gabinete Português de Leitura do Rio de
Janeiro. 2000: 102-129.
10
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53
documentais, acondicionadas em igual número de capilhas, armazenadas em
50 caixas, depois microfilmadas em 57 rolos e digitalizadas em CD-ROM.
Anteriormente ao Projeto Resgate, por ocasião da segunda visita da Profª Elza
Régis de Oliveira ao Arquivo, em 1979, havia 47 caixas relativas à Paraíba,
mas foram incorporados às mesmas documentos provenientes de Pernambuco,
pertinentes à capitania tabajara, ampliando o número de caixas. Este montante
ainda mais se avoluma se atentarmos para o fato de que grande parte dos documentos contém anexos, por vezes, às dezenas e centenas.
A etapa seguinte do Projeto consistiu no paciencioso trabalho de leitura
paleográfica dos documentos, um a um, para identificação do tipo documental, datação, identificação de remetente e destinatário, e um texto-súmula do
conteúdo, todos estes dados lançados em fichas apropriadas de sistematização,
conferidas e reconferidas inúmeras vezes. A busca de precisão para as informações, por exemplo, consumiu horas e horas, particularmente os casos de
documentos não datados e as assinaturas quase indecifráveis, quase “hieroglíficas”, recorrendo-se à consulta de meios auxiliares como as listagens dos reis
de Portugal, secretários de Estado, Vice-reis do Brasil, Governadores-gerais,
capitães-mores, membros do Conselho Ultramarino, etc. Sem falar nos constantes retornos aos documentos para localizar fatos, referências, detalhes que
possibilitassem uma periodização, aproximada ao menos.
A tipologia do repertório documental é bastante diversificada, o que exigiu, também, uma ampla compreensão de suas especificidades: alvarás, autos,
avisos, bilhetes, cartas, cartas de sesmarias, cartas-patentes, cartas-régias, certidões, consultas, declarações, decretos, despachos, editais, escritos, informações,
lembretes, listas, mandados, mapas, ofícios, pareceres, passaportes, portarias,
provisões, recibos, relações, representações, requerimentos, sentenças de justificação. Mais frequentes as cartas, as consultas, os ofícios e os requerimentos.
Aos pesquisadores que vão se debruçar sobre esta documentação, talvez a muitos falte uma idéia do labor contido nesta sistematização, que os
aliviará muito do fardo em que a pesquisa arquivística se transforma em nosso
país, por falta de ações preservacionistas como esta.
De volta à Paraíba, a equipe empreendeu a redigitação de todos os verbetes, para a estruturação do Catálogo, e um longo processo de revisão em
cinco versões, para as quais se valeu de Catálogo elaborado pela Profª Elza
Régis de Oliveira, no início dos anos oitenta, em dois volumes inéditos.11 Nesta
fase, foi precioso o intercâmbio eletrônico com o Dr. José Sintra Martinheira,
Técnico Supervisor Principal do AHU, que sempre respondeu prontamente às
impertinentes consultas remetidas d’além-mar.
Enviada a versão final do Catálogo, a documentação da Capitania da
Paraíba entrou em processo de microfilmagcm, em Lisboa, por volta de se54
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tembro de 2000, sendo os microfilmes remetidos para o Brasil, para fins de
digitalização e feitura dos CD- ROMs.
4. As Perspectivas abertas pelo Projeto RESGATE à História da
Paraíba Colonial
O Projeto RESGATE como um todo, nos diversos estados do país, representará uma inflexão nas pesquisas históricas, no sentido abrangente desta
última palavra: não só profissionais historiadores, mas antropólogos, sociólogos, cientistas políticos, geógrafos, ambientalistas, poderão se valer da riqueza
de dados e informações contidos na volumosa documentação, resgatada para o
Brasil, acerca de suas bases coloniais, sem cujo entendimento porção significativa de sua formação histórica ficará lacunar.
A perspectiva é de um claro revigoramento da História colonial. Imagine-se, em todo o Brasil, a quantidade de investigações e as possibilidades de
recomposição da Memória colonial das diferentes partes do território brasileiro, construindo o mosaico das diversidades regionais de uma nação que ainda
tem muito a refletir sobre seu processo configurativo. Assim, para o alento dos
historiadores, as oportunidades se abrem para aperfeiçoar cursos de História já
consolidados e consolidar cursos de regiões mais distantes, com dificuldades
de acesso à documentação até mesmo produzida no âmbito do próprio país. O
fato de o Arquivo Nacional abarcar todo o conjunto de documentos de todas as
capitanias, decorrente do Projeto, e disponibilizá-lo através de moderníssimos
meios e suportes de reprografia, tornará o acesso melhor e mais ágil, democratizará a História do Brasil. Ao menos, como campo de pesquisa.
No caso específico da Paraíba, a documentação manuscrita avulsa existente no Arquivo Histórico Ultramarino abarca o período de 1593 - oito anos
da data da conquista - até 1826, extrapolando a data da autonomia política do
Brasil.
Três períodos bem definidos da História colonial paraibana estão contemplados no repertório documental:
• a lº fase, da conquista, compreendendo a invasão holandesa, a crise
econômica pós- restauração do território para Portugal, a expansão da colonização
para as terras interioranas. Entre 1593 e 1755, totaliza cerca de 1462 documentos;
• a 2º fase, entre 1755 e 1799, cobre o período de subordinação política da Capitania a Pernambuco, desde o início do governo pombalino até a
recuperação da autonomia. Totaliza cerca de 1050 documentos;
• a 3º fase, a mais curta, entre 1799 e 1826, reporta-se a uma conCf. Elza Regis de Oliveira. Documentos para a História da Paraíba: Arquivo Histórico Ultramarino. João Pessoa: datilografado, 1978. 2 v. 662 p.
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juntura densa de acontecimentos marcantes para a Colônia, quando a Paraíba
procura reconstruir--se. Totaliza cerca de 1050 documentos.
Nota-se, pois, que mais da metade da documentação foi produzida nos
72 anos finais do período a que o acervo se refere. É já um dado sugestivo.
Fundamentalmente, os manuscritos avulsos consistem na correspondência entre as autoridades coloniais sediadas nas Capitanias e as autoridades
metropolitanas, com particularidade para o rei, o Conselho Ultramarino e a
Secretaria de Estado dos Negócios da Marinha e Ultramar da monarquia portuguesa. E vice-versa.
Com a União Ibérica, sob o controle do monarca Filipe II de Habsburgo, o Estado espanhol criara, em Portugal, em 1604, o Conselho da Índia,
extinto em 1614. Mas a agregação dos reinos esvaziara a administração dos
domínios ultramarinos lusitanos, que passaram a ser geridos pelo Conselho de
Portugal, sediado na Espanha. Só depois de 1640, com a restauração da Coroa
portuguesa, é que a monarquia lusa criou órgãos para administrar o seu império: a Secretaria de Estado dos Negócios da Marinha e Ultramar e o Conselho
Ultramarino, subordinado àquela, e extinto em 1833.
Além da rotina administrativa, os documentos evidenciam, também, a
relação entre os súditos e o rei. Não é casual o expressivo número de requerimentos dirigidos aos soberanos solicitando mercês pessoais ou para familiares,
configurando práticas de uma sociedade estamental e de um Estado patrimonialista que deixaram vincadas profundas marcas em tempos posteriores, já
quando o Brasil era Estado nacional autonomizado da metrópole.
As solicitações não paravam aí: de provimento em ofícios públicos;
de patentes de oficiais nos corpos militares; para cargos na esfera religiosa.
Relevam-se algumas evidências: a primeira, a circularidade nas concessões,
isto é, restrita a certos grupos familiares que controlam as benesses e se perpetuam através de gerações, apontando para a configuração do poder local,
sobretudo, quando certos sobrenomes do passado estão muito vivos ainda na
vida política recente. Outra, a militarização da máquina de governo, acentuada
no período final da colonização, a julgar pelo número de requerimentos para
postos nas milícias.
Temos aí importantes interrogações a fazer aos documentos, que eles
próprios nos suscitam, em uma teia de intrigas. Quais foram as relações engendradas entre a estrutura administrativa portuguesa e as instâncias locais? Que
práticas políticas se configuraram neste território? Quais as relações entre os
governantes da capitania e a administração sediada em Lisboa?
Outras interrogações nos propiciam os conflitos, perceptíveis nas vetustas folhas de papel de caligrafia estranha, mais bem preservados do que muita
documentação contemporânea. Disputas de cargos, devassas, confrontos entre
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autoridades, autoridades e súditos, população e dirigentes. Permeiam-nos - aos
conflitos - articulações multiformes, de grupos locais com instâncias do aparato
do Estado em Lisboa. Quais as articulações entre grupos familiares locais na
Corte, passando por cima das autoridades metropolitanas sediadas na Capitania? Queixas sobre desmandos administrativos, justiça mal aplicada, crimes,
desordens, sugerem uma sociedade na ebulição de seu processo configurativo.
Outro leque de questões à espera de respostas diz respeito à conquista e
à defesa do território. A documentação do AHU permite vislumbrar uma atuação vultosa do corpo militar e uma preocupação reiterativa com as fortificações
(notadamente a fortaleza de Cabedelo), que precisam ser analisadas de forma
sistemática: quem eram essas pessoas contempladas com patentes na Capitania? Como viviam? Como se relacionavam com a administração metropolitana e
como foram produzindo visões localizadas, distintas, do olhar do colonizador?
Também a vida econômica paraibana - especialmente a sua crise açucareira - poderá, agora, ser mais bem caracterizada, especialmente as repercussões sobre os habitantes da Capitania. As informações tratam de contratos,
rendas reais, receitas e despesas, produção, exportação, número de engenhos,
dados sobre escravos, dados demográficos, comércio, movimento portuário,
entre outros assuntos. Os mapas estatísticos do final do século XVIII e inícios
do XIX são uma preciosidade. Ao mesmo tempo, também o processo de devastação das riquezas naturais da terra poderá ser reconstituído: dos recursos
disponíveis, tão detalhadamente inventariados em memórias sobre rios, fauna
e flora, constantes na documentação, à devastação da Mata Atlântica, cujas
madeiras, conforme os mapas demonstram, foram servir possivelmente para a
reconstrução de Lisboa, após o terremoto de 1750. Será mais inteligível, à luz
desse tesouro documental, perceber os motivos pelos quais perdemos os outros
tesouros, em uma Capitania tão provida pela natureza.
Chega a ser intrigante - ou, ao contrário, compreensível - a razão pela
qual a sua História colonial jaz em silêncio. Particularmente, quando temas importantes para entender o seu tempo contemporâneo foram ocultados. Assim,
por exemplo, a problemática da propriedade fundiária, que poderá desocultarse com as informações contidas nas cartas de confirmação de sesmarias, especialmente em terras do sertão, no século XVIII.
A perda de autonomia política da Capitania foi um acontecimento forte
e inquietante para os governantes e a população. Como já foi referido, mais de
1000 documentos foram produzidos no período da anexação a Pernambuco,
predominando, de modo constante, as queixas sobre conflitos de jurisdição e a
apropriação das rendas da Paraíba em Recife. Aliás, a árida questão tributária
precisa ser pesquisada como um mecanismo fundamental de como se sugavam
os recursos locais para a metrópole e, também, para as capitanias mais podeHISTÓRIA DIGITAL - ANO II - Nº 02 - 2008
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rosas, com melhor aparato comercial-portuário-alfandegário. Documento de
destaque, peça remanescente no conjunto, é a Memória de Fernando Freire de
Castilho sobre as potencialidades da Capitania, que serviu de base para a desanexação, em 1799, coroando o seu empenho para recuperar a autonomia.
Outras faces do processo histórico colonial, em território paraibano,
têm mais camadas, ainda, de pó do tempo. Assim, os índios e os negros. Do
ponto de vista da gestão e controle dos nativos e das atividades econômicas
envolvendo escravos, a documentação sinaliza para pistas consideráveis. Se
tantos outros assuntos são desconhecidos ou pouco conhecidos, todos aqueles
que envolvem as camadas subordinadas da sociedade paraibana, ainda mais.
Outros prismas, de uma História cultural, por exemplo, poderão ser
descobertos. Um dos aspectos com evidências documentais numerosas é o
peso da religiosidade nos gastos públicos. Aliás, que não se restringia a esta
dimensão, antes, se ampliava tal o volume de pedidos de aumento de soldos
e vencimentos, pagamento de propinas (gratificações), de tenças etc. Muito
sugestivos para uma análise das relações entre as esferas pública e privada,
debatidas hoje, em tempos de globalização.
A História dos costumes - outra área renovada da investigação histórica
atual, pode beber- se nos episódios de rapto de mulheres, de herança envolvendo viúvas, comportamentos de religiosos.
Inúmeras outras possibilidades são propiciadas pela documentação do
AHU. O seu impacto, pois, sobre a historiografia relativa à Paraíba colonial,
deverá ser ponderável.
A sociedade paraibana, as suas elites culturais, as Universidades, os
Cursos de História e outros cursos, os pesquisadores, precisam tomar posse, de
forma democrática, desta documentação que diz respeito a sua terra e tão longe, e por muito tempo, ficou. Olharem, com seus próprios olhares, os olhares
de outros tempos e outras pessoas que viveram a epopéia da colonização. Sem
que isto implique em afirmar uma concepção heroicizante da História, mas
nestas terras ocorreu uma saga.
Trata-se de elaborar um amplo programa de pesquisas, para ir-se recompondo a Memória e História paraibanas. Ou mesmo compondo-as, por
mudas; fazerem-nas falar.
À Identidade de um povo, vital para a construção de sua História presente e futura, vitais são a Memória e a História pregressas, no jogo fascinante
que a nós nos aprisiona - seres humanos - mas também nos liberta entre o
presente, o passado, o futuro.
João Pessoa, dezembro de 2000.
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Agradecimentos
• Dra. Esther Caldas Bertoletti, Coordenadora do Projeto Resgate de
Documentação Histórica “Barão do Rio Branco” /Ministério da Cultura, pelo incansável acompanhamento do Projeto e o apoio à equipe da
Paraíba;
• Dra. Maria Luisa Abrantes, Diretora do Arquivo Histórico Ultramarino, e a todo o corpo técnico da Instituição, pelo acolhimento e assistência, durante a permanência da equipe de
pesquisadores da Paraíba em Lisboa; • Drª Heloísa Liberalli Belotto, de São Paulo e o Prof Antônio César,
de Goiás, bem como a todos os brasileiros integrantes das várias equipes do Projeto Resgate, pela amizade e companheirismo demonstrados
“quando o tempo fechava” em Lisboa.
• Prof Regina Célia Gonçalves, docente do Departamento de História
e Coordenadora do Núcleo de Documentação e Informação Histórica
Regional/UFPB (Gestão 1996-1998), pelas contribuições durante a elaboração do Projeto;
• Dra. Ivanice Frazão de Lima e Costa, Presidente da Fundação Casa
de José Américo/Governo do Estado da Paraíba, pelo suporte institucional ao Projeto, quando de sua tramitação no Ministério da Cultura;
• Prof Damião Ramos Cavalcanti, atual Presidente da FUNESC/Governo do Estado da Paraíba, instituição que encaminhou o Projeto ao
Ministério da Cultura;
• Prof Guilherme Gomes da Silveira D’Ávila Lins, docente da UFPB
e pesquisador do Núcleo de Documentação e Informação Histórica Regional (NDIHR)/UFPB, pelas valiosas sugestões na fase de revisão final do Catálogo.
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4. Colônia de Sacramento e Rio da Prata (2002)
Apresentação
Francisco Corrêa Welffort - Ministro de Estado da Cultura
O PROJETO RESGATE “BARÃO DO RIO BRANCO”, implementado pelo Ministério da Cultura desde o início da minha gestão, tem como
objetivo principal disponibilizar documentos históricos relativos à História do
Brasil existentes em arquivos de outros países, notadamente Portugal e demais
países europeus com os quais tivemos uma história colonial imbricada. A democratização das fontes primárias consubstanciada na captação das imagens
microfilmadas em Lisboa, é uma realidade da moderna tecnologia que avançou
ainda mais com as possibilidades de digitalização dos rolos de microfilmes e
divulgação em compactos CD-ROMs.
Equipes de pesquisadores constituídas de jovens e/ou experimentados
historiadores, arquivistas e paleógrafos, de praticamente todos os Estados da
Federação, foram para Lisboa, e lá, em perfeita sinergia, executaram a tarefa
que se nos parecera hercúlea no seu início, fomos pouco a pouco descobrindo
que era possível realizá-la. Só no Arquivo Histórico Ultramarino estavam armazenados mais de três milhões de páginas manuscritas que foram, paciente e
competentemente, lidas e resumidas pela equipe coordenada pela Dra. Esther
Caldas Bertoletti e pelo Embaixador Wladimir Murtinho.
O produto final desta iniciativa que tivemos a felicidade de apoiar, é
um conjunto que atingirá mais de 30 Catálogos publicados que sumariam a
documentação (cerca de 300.000 peças documentais), de um conjunto de rolos de microfilmes espalhados pelos arquivos públicos dos estados brasileiros
e concentrados na Fundação Biblioteca Nacional e Arquivo Nacional e umas
centenas de milhares de Cds cuidadosamente entregues aos principais centros
de pesquisa nas Universidades Brasileiras e nos Institutos Históricos e Geográficos Estaduais.
Este novo Catálogo do PROJETO RESGATE, que complementa os demais Catálogos e abre novas reflexões sobre um só espaço de memória, possui
algumas singularidades em relação aos demais Catálogos publicados pelo Projeto Resgate. A documentação resumida neste Catálogo refere-se a territórios
que não pertencem ao Brasil de hoje: são documentos originados essencialmente na antiga Colônia do Sacramento e na Banda Oriental do Rio Uruguai
(atual Uruguai) durante o domínio colonial português sobre estes territórios,
outros tratam da demarcação de limites entre a América Espanhola e a PortuHISTÓRIA DIGITAL - ANO II - Nº 02 - 2008
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guesa e os demais, em número bem menor, foram produzidos por espanhóis
em Buenos Aires e nas missões jesuíticas.
Entenderam os coordenadores do PROJETO RESGATE que estes documentos fazem parte de uma história comum, com suas peculiaridades, aos
povos da região do Rio da Prata e do Brasil e que deveriam ser incluídos no
esforço de difusão e publicização de fontes históricas. Afinal, eram umas poucas caixas contendo documentos, em comparação às muitas centenas de caixas
que estavam sendo “trabalhadas pelos pesquisadores brasileiros” e de grande
interesse para os pesquisadores do Rio Grande do Sul e neste sentido, veja-se
as palavras da Profa. Dra. Helen Osório, da UFRS, na Introdução do Catálogo
e que contou com o entusiasmo e a competência de jovens pesquisadores gaúchos e de outros Estados brasileiros.
É, pois, com imensa satisfação que entregamos às instituições de pesquisa no Brasil e dos países integrantes do Mercosul, este acervo documental,
devidamente organizado, microfilmado e na versão digital em CD-ROMs. Cuidadosos índices específicos, elaborados com grande competência pela equipe coordenada pela referida professora, facilitam a consulta aos documentos
cujos verbetes-resumos estão publicados neste Catálogo, respeitadas as suas
individualidade arquivísticas no local de custódia, ou seja, no Arquivo Histórico Ultramarino.
Vários foram os parceiros do Ministério da Cultura ao longo dos trabalhos: as Universidades Federais do Rio Grande do Sul e a UNIRIO/Universidade do Rio de Janeiro que liberaram professores para se dedicarem amorosamente em Lisboa, à organização e leitura dos documentos; as Fundações de
Amparo à Pesquisa dos Estados do Rio Grande do Sul e de São Paulo, além
da nossa sempre presente parceira, a VITAE, que desde a microfilmagem até a
publicação do Catálogo, nunca faltou com o seu aporte financeiro de complementação aos demais recursos.
Estou convencido que o confronto desta documentação de origem portuguesa com a existente nos arquivos espanhóis, cujo GUIA DE FONTES MANUSCRITAS PARA A HISTÓRIA DO BRASIL CONSERVADAS EM ESPANHA acaba de ser publicado pelo Ministério da Cultura com a parceria da
Fundación Mapfre Tavera, de Madrid/Espanha e que se pretende microfilmar
tão logo seja possível, bem como o debruçar nas fontes comuns pelos historiadores de todos os países do MERCOSUL, poderá trazer novos esclarecimentos
sobre a formação de nossos países a partir do conhecimento da história.
A concretização do MERCOSUL passa, necessariamente, pela CULTURA, nas suas mais variadas manifestações, pelo desenvolvimento do intercâmbio e de ações culturais concretas. Julgamos estar dando mais uma contribuição neste sentido, ao trazermos para a proximidade dos pesquisadores a
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documentação existente no Arquivo Histórico Ultramarino de Lisboa, toda ela
organizada e microfilmada. E não nos poderia apresentar ocasião melhor para
o seu lançamento do que a XV Reunião dos Ministros da Cultura do MERCOSUL, na sempre acolhedora cidade do Rio de Janeiro.
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Introdução
Helen Osório
Este catálogo é mais um dos inúmeros resultados do Projeto Resgate.
O projeto foi formulado pelo Ministério da Cultura, através de sua Assessoria
Especial, em 1995, com coordenação geral do Embaixador Wladimir Murtinho
e coordenação técnica da Dr.a Esther Caldas Bertoletti. Seu objetivo essencial
é disponibilizar, para consulta no Brasil, documentos históricos relativos ao
período colonial existentes em arquivos de outros países, através de microfilmes e CD-ROM, acompanhados de catálogos que sumariam a documentação.
Assim, o projeto possui um longo alcance: representa uma efetiva democratização do acesso à informação histórica e constitui-se numa ação de preservação do patrimônio histórico nacional.
Esta iniciativa teve, entre seus fundamentos, a resolução n° 4212 de
1974 da UNESCO, que convidou seus Estados membros “a examinar favoravelmente a possibilidade de transferir as informações contidas nos documentos provenientes de arquivos constituídos no território de outros países ou se
referindo à sua História”. E considerou “patrimônio comum” os documentos
do passado de dois países ligados anteriormente pelos laços do colonialismo1.
O projeto iniciou-se obviamente por Portugal e aí, pelo Arquivo Histórico Ultramarino (AHU), sediado em Lisboa, integrado ao Instituto de Investigação
Científica Tropical. Este arquivo abriga vasta e rica documentação sobre as
possessões que compuseram o império português e é detentor do maior acervo documental relativo ao período colonial do Brasil existente em Portugal e
fora do território brasileiro2. O Arquivo Histórico Ultramarino tem, para os
investigadores da história da América portuguesa, importância equivalente ao
Archivo General de Indias para os investigadores da América espanhola.
Equipes de trabalho de diversos estados brasileiros, compostas em
sua maior parte por professores de universidades públicas federais, alunos de
pós-graduação em história e profissionais da arquivística, foram organizadas
e trasladaram-se a Lisboa para realizar a tarefa, imensa, de reordenar a documentação avulsa relativa aos territórios que hoje compõem o Brasil, e que se
BERTOLETTI, Esther Caldas. “Brasil-Portugal, um mar oceano de documentos”. Brasil e Portugal. 500 anos de enlaces e desenlaces. Janeiro: Real Gabinte Português de Leitura, 2000. p. 107.
1
Para conhecer as etapas já executadas do projeto no AHU, ver texto da nota acima; para uma descrição da história, funcionamento e fundos do AHU, ver “Enquadamento institucional e documenta”. In: MARTINHEIRA, José Sintra. Catálogos dos Códices do Fundo do Conselho Ultramarino
relativos ao Brasil existentes no Arquivo Histórico Ultramarino. Rio de Janeiro: Real Gabinete de
Leitura; Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001.
2
HISTÓRIA DIGITAL - ANO II - Nº 02 - 2008
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encontrava em diferentes estágios de organização. Este trabalho implicou na
leitura integral dos documentos, análise, reintegração de itens dispersos, inclusão de documentos até então alocados em outras séries, cotejo de dados diversos e pesquisas complementares. Depois deste tratamento foi possível reordenar cronologicamente a documentação e proceder-se a sua descrição sumária,
através da redação de verbe-tes. Reorganizado, com cotas (notação) novas,
o conjunto documental de cada série foi então integralmente microfilmado e
posteriormente digitalizado.
Os documentos objeto deste processamento fazem parte do fundo Conselho Ultramarino, que reúne os papéis do Conselho Ultramarino e da Secretaria de Estado da Marinha e Ultramar. Em algum momento da década de 1930,
quando o arquivo denominava-se Arquivo Histórico Colonial, os documentos
dos dois órgãos “foram misturados e classificados segundo um critério meramente geográfico, dando origem às séries atualmente existentes”3. Estas séries
artificialmente criadas, no caso do Brasil, correspondem ao desenho territorial
e administrativo das capitanias coloniais, da segunda metade do século XVIII.
Além delas, foram estabelecidas ainda outras séries também com critério geográfico, como “ Montevidéu”, “Buenos Aires”, “Paraguai”, “Colônia do Sacramento” e outras que denominaríamos de “temáticas”, como “Brasil Limites” e
“Contratos do Sal”, entre outras.
O presente volume foge das características comuns dos catálogos já
editados pelo Projeto Resgate, pois trata de regiões que não fazem parte da República do Brasil e que, com a exceção da Colônia de Sacramento e da Banda
Oriental, tampouco pertenceram em algum momento à América portuguesa.
Mas basta abandonar o restrititivo e simplista critério geográfico imposto pela
organização das séries documentais para percebermos a importância desta documentação para a história do Brasil e dos países da região do Rio da Prata. Ela
trata das disputas, por vezes pacíficas, outras tantas militares e diplomáticas,
nas quais se envolveram os impérios português e espanhol para se implantar e
controlar a região meridional da América do Sul. Abundante material, portanto, para se refletir sobre a constituição de fronteiras, de processos identitários e
de culturas fronteiriças, entre outros temas.
Apresentamos em um só tomo os verbetes das séries Colônia do Sacramento, Brasil limites, Montevidéu, Buenos Aires e Paraguai, mas que estão
organizados em dois catálogos independentes, com seus próprios índices, e
com uma marca gráfica que os diferenciam. O primeiro refere-se à Colônia do
Sacramento e o segundo às restantes séries enunciadas. Esta opção deveu-se
à proximidade temática existente entre estas últimas. A seguir caracterizamos
brevemente cada uma das séries e os respectivos catálogos.
3
Idem, p.28
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Nova Colônia do Sacramemo é a maior série, composta por 662 conjuntos documentais, abarcando o período 1682-1826. Esta documentação retrata
o esforço bélico e mercantil dos portugueses para implantarem uma cunha nos
domínios espanhóis no rio da Prata. A praça da Colônia esteve subordinada ao
governo da capitania do Rio de Janeiro, mas seus governadores mantiveram
abundante correspondência diretamente com as autoridades centrais do reino.
São predominantemente decretos, provisões, alvarás, portarias, requerimentos, cartas e ofícios, consultas, pareceres e informações que materializam as
relações político-administrativas entre a metrópole, o Rio de Janeiro e a praça
e abordam sua administração em seus mais diversos aspectos: o exercício do
governo propriamente dito, a gestão fazendária, militar e de pessoal. E não só
isso: apesar do caráter administrativo da documentação, encontram-se inúmeras fontes para o estudo da economia e dos mais diversos aspectos da sociedade e sua vida quotidiana, das trocas e disputas com a população indígena e os
“castelhanos” (como são referidos os espanhóis nos documentos).
O segundo catálogo, que denominamos Rio da Prata, inicia-se com a
série Brasil limites, a mais extensa destas, com 289 conjuntos documentais (que
se materializam no mesmo número de verbetes), compreendidos entre os anos
de 1699 e 1843. Como a denominação indica, trata-se de documentos sobre as
questões de limites e fronteiras entre os dois impérios coloniais. Com exceção
de meia dezena de documentos, eles referem-se à demarcação de limites das
fronteiras meridionais da América portuguesa, em territórios hoje pertencentes
ao estado do Rio Grande do Sul. Na sua maioria foram emitidos no Continente
do Rio Grande ou na Colônia de Sacramento. A organização da expedição e
a execução do Tratado de Limites de 1750 corresponde a mais da metade dos
documentos (do n° 3 ao 164); depois segue-se a documentação relativa ao
período da invasão da vila de Rio Grande pelos espanhóis até a elaboração do
Tratado de 1777 ( n° 170 ao 204) e finalmente as negociações e a execução
frustrada deste tratado (n° 205 a 270). Brasil limites é a série que apresenta o
maior número de documentos em língua espanhola, aproximadamente 70. Para
o leitor interessado nas temáticas descritas, será necessário consultar outras
séries, como Colônia do Sacramento e o catálogo do Rio Grande do Sul4, pois
a documentação encontra-se dispersa entre elas.
A seguinte série que compõe o catálogo Rio da Prata é Buenos Aires.
Pequena e extremante fragmentada, compõe-se de apenas 22 conjuntos documentais, com limites temporais de 1753 a 1823. Os documentos relacionam-se
majoritariamente com as questões de limites e demarcação territorial e uns pouBERWANGER, Ana, Regina, OSÓRIO, Helen e SOUZA, Susana B. de. Catálogo de documentos manuscritos avulsos referentes à capitania do Rio Grande do Sul existentes no Arquivo
Histórico Ultramarino, Lisboa. Porto Alegre: IFCH-UFRGS e CORAC, 2001.
4
HISTÓRIA DIGITAL - ANO II - Nº 02 - 2008
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cos informam sobre a rebelião indígena liderada por Tupac Amaru, no Peru.
A série subsequente é Montevidéu, com 224 conjuntos documentais,
abarcando o período de 1778 a 1824. Excetuando-se os cinco documentos iniciais, os outros tratam da invasão da Banda Orien-tal pelas tropas luso-brasileiras, por mar e terra, a partir de 1816, episódio do rico e complexo processo de
independência das colônias espanholas do rio da Prata. Produzida basicamente
pelo comando da esquadra luso-brasileira, uma parte da documentação compõese da correspondência entre a alta hierarquia da marinha com seus superiores
no Rio de Janeiro e dos atos administrativos relacionados ao pessoal militar, às
finanças, equipamentos e abastecimento da esquadra. Certamente muito mais
interessante é o fato que esta mesma correspondência noticia o movimento de
corsários na região, os embates com as tropas do general Artigas, os movimentos políticos e militares de Buenos Aires e das províncias adjacentes.
Por fim, a série denominada Paraguai é a mais diversa das aqui apresentadas. Com 27 documentos, todos em espanhol, de 1618 a 1762, foram em sua
maioria produzidos pela Companhia de Jesus, e tratam das missões estabelecidas na região do rio da Prata. Além de variada informação geográfica e humana
sobre a região, existem relatos científicos sobre astronomia e matemática.
O trabalho concretizado neste catálogo foi realizado a muitas mãos, em
várias etapas. Além da equipe mencionada na folha de rosto desta publicação, a
técnica superior do Arquivo Histórico Ultramarino Isabel Maria Ascensão Amado participou revisando os verbetes da Colônia de Sacramento e Brasil limites.
Os índices da série Colônia de Sacramento foram elaborados pelo professor Fabrício Pereira Prado, quando realizava seu mestrado em história na Universidade
Federal do Rio Grande do Sul. Os índiçes para as demais séries foram elaborados
por mim, com a colaboração prestimosa dos acadêmicos de história da UFRGS
Gabriel Berute e Gabriel Aladrén, bolsistas de iniciação científica. Procedi ainda
uma revisão final de todos os verbetes e índices para publicação.
Explicação metodológica
A descrição dos documentos avulsos relativos ao Brasil Colônia existentes no Arquivo Histórico Ultramarino, realizadas por todas as equipes que
compõem o Projeto Resgate, obedeceu às normas e procedimentos estabelecidos pelo próprio arquivo.
Os verbetes descritivos dos documentos são compostos dos seguintes
dados, em sequência, conforme o modelo preconizado pelo Arquivo Histórico
Ultramarino: data crônica, data tópica, tipo do-cumental, autor (cargo, títulos,
nome), destinatário (se for o caso, cargo, títulos, nome), assunto, observações
(língua, estado do documento ou outras), anexos, cota (notação) antiga e atual.
Uma definição dos tipos documentais mais usuais da administração
68
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portuguesa presentes na documentação do Brasil colonial pode ser encontrado no “Glossário de espécies documentais”, da pro-fessora Heloísa Liberalli
Belloto, constante do catálogo da Capita¬nia de São Paulo5.
Os índices documental, toponímico, onomástico e temático foram elaborados para auxiliar e agilizar o trabalho do pesquisador. Toda a indexação
realizada referenda-se ao novo número que os documentos receberam no Arquivo Histórico Ultramarino, ao final da nova organização da documentação.
Como já foi referido, apresentamos dois catálogos, Colônia do Sacramento e Rio da Prata, em um só volume. Cada um deles apresenta seu conjunto
de índices. Como no segundo agrupamos quatro séries documentais diferentes,
foi necessário realizar uma distinção de notação para que cada remissão fosse
corretamente identificada nos índices comuns e nos verbetes. Apenas para efeito desta publicação, estabeleceu-se a seguinte notação:
b: Brasil limites
ba: Buenos Aires
m: Montevidéu
p: Paraguai
Assim, quando se lê no índice:
BANDEIRA, Rafael Pinto - b(186,187,189); m (2)
entenda-se que este nome pode ser encontrado nos verbetes n°. 186,
187 e 189 de Brasil limites e no verbete n° 2 de Montevidéu.
No índice toponímico uniformizou-se as diferentes grafias do nome de
alguns lugares, diversidade esta que poderá ser recuperada na consulta ao próprio documento. Neste índice optou-se, ainda, por especificar quando o topônimo foi o local de emissão do documento.
No índice onomástico, com entradas por sobrenome, incluiu-se também a entrada por título nobiliárquico, e optou-se por referir, junto aos nomes,
apenas os cargos de governador, vice-rei, e secre-tário de estado de marinha
e ultramar. Também aqui se procedeu uma normalização dos nomes próprios,
em especial dos espanhóis, que apareciam grafados de formas muito diversas
por parte dos portugueses.
Um índice temático nunca será exaustivo, pois os interesses dos investigadores variam no tempo, conforme as demandas do presente. Procurou-se,
com os desdobramento das remissões, dar um panorama o mais amplo possível
dos temas passíveis de serem encontrados na documentação. Todo investigador sabe que os índices são um instrumento de trabalho útil, mas nunca poderão substituir a consulta direta aos documentos.
BELLOTO, Heloísa Liberalli. “Glossário de espécies documentais.” In: ARRUDA, José Jobson
de Andrade (coord). Documentos manuscritos avulsos da Capitania de São Paulo (1644-1830).
Catálogo 1. Bauru, SP: EDUSC; São Paulo, SP: FAPESP: IMESP 2000.
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5. Pará
O Pará reabre o garimpo da memória
Paulo Chaves Fernandes - Secretário Executivo de Cultura do Pará
Desde a primeira hora, há mais de sete anos, quando iniciava a minha
trajetória na SECULT e tomei conhecimento do Projeto Resgate “Barão do
Rio Branco”, decidi reivindicar, imediatamente, que o Pará figurasse na lista
de prioridades do MINC, na qual Minas Gerais tinha sido o Estado eleito para
iniciar o trabalho.
Devo ressaltar que o sucesso do nosso intento deve-se a cumplicidade
de Esther Bertoletti, Coordenadora Técnica do Projeto e a quem registro o
cativo agradecimento em nome do Governo do Pará.
O Catálogo de Documentos Manuscritos Avulsos da Capitania do Pará
Existentes no Arquivo Histórico Ultramarino de Lisboa, ora disponibilizado
ao público, encerra, em seus três volumes, verbetes, resumos e índices que,
por sua vez, remetem a todo tipo de documento produzido no âmbito do poder
no Pará colônia. Esse grande inventário documental reúne, por isso mesmo,
uma gama variada de documentos gestados nos séculos iniciais da colonização
portuguesa no Norte do Brasil, como cartas enviadas por colonos aos reis de
Portugal, ofícios, petições e estatísticas, revelando os aspectos fundadores da
vida cotidiana do nosso período colonial. Sua publicação objetiva facilitar a
consulta ao material até então disponível só em Lisboa, hoje microfilmado e
integrante do acervo do Arquivo Público do Pará.
A busca nas páginas deste catálogo proporciona a historiadores, pesquisadores, estudiosos e estudantes, a possibilidade de identificação e seleção de
questões relevantes para a compreensão dos nossos caminhos ou, se quiserem,
descaminhos. Extraídos da documentação original - agora catalogada e indexada -, esses objetos de estudo, uma vez delimitados através do catálogo, levam
a que o pesquisador possa isolá-los, e, se necessário, obter rapidamente cópias
dos microfilmes de forma organizada e pontual.
Numa simples leitura do catálogo em si, já é possível estabelecer e/ou
identificar temas que, certamente, poderão resultar em trabalhos de pesquisa
histórica de original e marcante significação, para além das relações econômicas e políticas entre o Estado português e a Capitania do Pará, como, por
exemplo, a situação da mulher no período colonial ou o papel da Igreja junto às
comunidades indígenas, só para citar alguns. O catálogo é oportuno enfatizar,
vista a sua organização, responde pelas mais elevadas exigências da moderna
arquivologia, assumindo, assim, a condição de indispensável instrumento de
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pesquisa para o estudo do Pará e da Amazônia colonial.
Com os documentos multiplicados, depois de metodicamente identificados, ordenados e disponibilizados, o nosso patrimônio cultural fica enriquecido, a nossa memória robustecida e, se me permitem a emoção revelada, o
justo orgulho de ter participado de uma missão integralmente cumprida.
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Apresentação do Projeto Resgate Barão do Rio Branco, com
ênfase à documentação do Pará
Caio C. Boschi
“O documento não é o feliz instrumento de
uma história que seria nela mesma, e de pleno
direito, memória; a História é, para uma
sociedade, uma certa maneira de dar estatuto de elaboração à massa documental de que ela não se separa.”
Michel Foucault. Arqueologia do saber.
Tendo em vista a unidade de propósitos, a concepção metodológica,
a co-autoria e a forma semelhante pela qual os trabalhos ora apresentados se
realizaram, não me parece impróprio reproduzir, na sua essência, e feitas as necessárias adaptações, o texto introdutório elaborado para figurar em Inventário
análogo referente à série documental respeitante a Minas Gerais, trabalho este
que inaugurou um conjunto de ações desenvolvidas ao abrigo do prestigioso
Projeto Resgate da Documentação Histórica “Barão do Rio Branco”.
Efetivas correntes historiográficas ou meros modismos historiográficos,
qualquer que seja o vetor do modus operandi adotado pelo historiador, este terá
sempre, como elemento-chave e determinante no exercício de seu ofício, as
fontes pelas quais opta e com as quais interage para levar a efeito seu trabalho.
Cada vez mais, o leque dessas opções se amplia, ao sabor do progresso
das expressões e dos registros humanos que se vão produzindo. Dentre eles
o documento escrito pode perder a preeminência, mas não sua importância.
Por isso, não deve causar estranheza o fato de o senso comum julgar que o
documento escrito, como tipo especial de material de memória, para retomar
ao campo conceitual foucaultiano, tende a um lugar secundário, possivelmente
dispensável na construção do saber histórico.
Este curto texto de Apresentação não visa a situar tal problemática,
sequer bordejá-la. O propósito aqui não é o de fazer a apologia das fontes
escritas, mas sim o de dar a público, isto é, de dar a conhecer, de forma mais
abrangente, a massa documental constituída por mais de doze mil dossiers
ou pequenos conjuntos documentais (manuscritos avulsos) relativos ao Pará e
pertencentes ao acervo do Arquivo Histórico Ultramarino (AHU), de Lisboa.
Ao fazer essa divulgação e estimulando sua consulta, está-se proporcionando uma melhor apreensão das formas discursivas veiculadas pelos documentos. A postura metodológica de cada consulente e o uso que fará dos
documentos ora estampados, de forma sumariada, transcendem as expectativas
do signatário e de seus demais autores.
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O AHU, organismo subordinado ao Instituto de Investigação Científica
e Tropical, armazena o maior volume de documentos manuscritos - para além
dos cartográficos e iconográficos - relativos às ex-colônias portuguesas. No
que respeita ao Brasil, e não incluindo os códices, lá se depositam algumas
centenas de milhares de documentos manuscritos avulsos, acondicionados em,
aproximadamente, duas mil “caixas”, em latas de folha-de-flandres, grosso
modo, em bom estado de conservação.
Esse monumental acervo é formado, fundamentalmente, pela documentação proveniente da extinta Seção Ultramarina da Biblioteca Nacional
de Lisboa, à qual se somou outra parte oriunda do denominado “Arquivo do
Ministério das Colônias”.
Seu conteúdo, como se pode deduzir pelo enunciado dos organismos
depositários, compreende a documentação da rotina burocrática de variados
órgãos metropolitanos, em particular daqueles vocacionados para a administração do Ultramar português, como sejam: o Desembargo do Paço, a Mesa da
Consciência e Ordens, a Casa da Índia e, sobretudo, o Conselho Ultramarino
(particularmente, de sua criação, em 1642, até as primeiras décadas do século
XVIII) e a Secretaria de Estado dos Negócios da Marinha e Domínios Ultramarinos (hegemônica, desde sua instituição, em 1736).
Pelos órgãos de procedência dos documentos, já se pode deduzir a sua
natureza e a sua tipologia. Na essência, expressam e materializam as relações
político-administrativas entre a Metrópole e a Capitania, isto é, traduzem-se na
correspondência trocada entre a administração central, em Lisboa, e a administração da e na Capitania, em suas multifacetas: governação propriamente dita e
a administração fazendária, de pessoal, eclesiástica, judiciária e militar.
Quanto à tipologia, são eles, predominantemente, cartas régias, decretos, alvarás, provisões, portarias, requerimentos, cartas e ofícios, cartas patentes, consultas e pareceres, passaportes, além de relatórios, mapas estatísticos
e cartografia.
Em suma, trata-se de documentos típicos de se identificarem com os
fundos dos arquivos públicos, como em qualquer parte do mundo. Neles ficam
nitidamente privilegiadas as fontes que dão suporte e vida às pesquisas mais
voltadas para as histórias político-administrativas das instituições e para a história militar e diplomática. Vale dizer, então, que, abastecendo-se desse gênero
de documentos, o AHU determina quem constitui a sua clientela preferencial.
Por decorrência e para ficar apenas num exemplo, o interessado na investigação histórica voltada para temas da memória coletiva, em especial para o
cotidiano social e mental, certamente estará mais bem nutrido nos arquivos
paroquiais (ou eclesiásticos) e notariais.
No acervo em causa, dada sua natureza, repita-se, o destaque no seu
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aproveitamento será principalmente, para os temas concernentes às estruturas
político-administrativas, à atuação dos aparelhos do Estado, sem embargo, é
claro, daqueles destinados à análise das realidades sociais que subjazem às
instituições políticas.
Testemunhos de uma realidade viva, esses documentos retratam as vicissitudes da complexa e truncada estrutura administrativa do Estado Absolutista
português. Através deles pode-se, quando nada acompanhar a dinâmica, o fluxo
e o refluxo da administração da época. Obviamente que, não obstante o zelo
burocrático exigir e ter proporcionado a sua preservação e a par do seu alentado
volume, a documentação aqui contemplada é tão-somente parte do universo dos
documentos produzidos pelos organismos e individualidades apontadas.
Até 1998, data do início da execução deste trabalho, a documentação em
pauta encontrava-se depositada em 131 “caixas”, de forma dispersa, sem nenhuma organização ou tratamento arquivísticos, exceto uma vaga e não necessariamente correta datação com que se etiquetava a frente das referidas “caixas”.
A tarefa compreendeu várias fases, que foram da identificação dos documentos, da sua datação crônica e tópica até a sua cotação (numeração sistemática) e reinserção, agora definitivas, nas unidades de instalação. Entrementes,
a documentação foi toda ela lida e buscou-se, tanto quanto possível, fazer-se a
reintegração ou junção das peças, de modo que a cada capilha correspondesse
um dossier ou um processo, na acepção técnico-administrativa do termo.
Da leitura paleográfica dos dossiers fez-se uma ficha-resumo do seu
conteúdo, sob a forma de sumário. O resultado é o que se publica a seguir.
Logo se compreende que, pelo seu vulto, foi trabalho que demandou uma ampla e diversificada equipe composta de profissionais das áreas de História, de
Documentação e de Informática. Para mim, foi um prazeroso privilégio ter
participado desse empreendimento.
Tendo arrastado suas atividades por muitíssimo mais tempo do que o
desejável e o planejado, com obstáculos e dificuldades de variada natureza,
sendo integrada majoritariamente por portugueses, além de brasileiros, podese depreender que a equipe e, sobretudo, o trabalho por ela produzido sejam
suscetíveis de reparos e de erros.
Por exemplo, assinale-se que o texto dos verbetes-sumários, tendo autores tão díspares nas suas formações acadêmicas e nas suas afinidades com a paleografia e com a análise dos discursos, permanece com incorrigíveis redações, em
razão, sobretudo, de haver sido acordado previamente, como norma de trabalho,
que os sumários teriam suas respectivas autorias plenamente respeitadas.
Os responsáveis pela leitura paleográfica do núcleo arquivístico aqui
considerado são, em sua quase totalidade, cidadãos portugueses. O conhecimento que possuíam da História do Brasil, à época do início dos trabalhos,
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ainda se mostrava bastante lacunar, mesmo em suas linhas gerais. Nenhum
dos autores dos verbetes conhecia ou conheceu pessoalmente o Pará. A muito
rarefeita bibliografia concernente à história paraense, de Seiscentos até o início
do Dezenove, disponível em instituições portuguesas não propiciou, assim,
suprimir tal lacuna básica, com óbvios reflexos na produção do trabalho.
Não é necessário conhecerem-se os meandros e os caminhos (por vezes
bastante) sinuosos da leitura paleográfica, seja de que momento histórico for,
para se saber, desde logo, que nem sempre o documento contém os elementos
básicos para a elaboração de um sumário de seu conteúdo. A começar pela data,
por vezes omitida no texto ou, noutros casos, obtida por aproximação através
de um ou mais indicadores constantes no referido texto. Portanto, por mais que
se procurasse ser conclusivo e completo na fixação dos elementos centrais inerentes à redação dos verbetes-sumários, alguns destes serão aqui referenciados
com a falta de dados essenciais, inclusive porque parte da documentação - felizmente pouco expressiva do ponto de vista numérico - encontra-se “em mau
estado” ou em precárias condições de legibilidade.
Por outro lado, muitos documentos não proporcionaram sua identificação correta ou completa quanto à data ou quanto aos nomes do emissor ou do
destinatário. No primeiro caso, procurou-se, através de um ou mais elementos
constantes do documento, atribuir-lhe uma datação. Para tanto, adotou-se a
seguinte convenção na redação dos sumários:
▪ a inserção da abreviatura ant. significa documento produzido anteriormente ao ano a seguir indicado;
▪ a inserção da abreviatura post. significa documento produzido posteriormente ao ano a seguir indicado;
Uma vez terminada a tarefa, cumpre divulgá-la. Ou melhor, cumpre
comunicá-la, torná-la disponível à consulta. Todos sabemos que a riqueza documental só se evidencia quando é anunciada. Ao mesmo tempo, buscou-se
otimizar o tempo do pesquisador. Somente agora se pode considerar que o
núcleo documental em causa se aproxima da noção de inventário/catálogo que
lhe é conferida nesta oportunidade, permitindo extrapolar o horizonte delimitado e restritivo dos trabalhos de investigação individualizados. Claro está que
a simples consulta aos sumários, conquanto abrevie o tempo da investigação e
evite o nem sempre cuidadoso manuseio do documento, não dispensa a leitura
deste. Se o catálogo permite selecionar e distinguir documentos, nada supera
a sensação do contato direto com a fonte e da sua leitura efetiva e completa,
única forma de o estudioso inteirar-se das potencialidades de exploração da
estrutura informativa do documento.
Ao mesmo tempo, tendo uma visão mais ampla do fundo arquivístico
em tela, um delineamento mais nítido do organograma e da dinâmica adminis76
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trativa da História do Pará, por certo, há de surgir. Muitos equívocos historiográficos poderão vir a ser desfeitos, novas problematizações emergirão, sem
falar em um conhecimento mais amplo e vertical das estruturas administrativas
do Pará Colonial e das suas congêneres metropolitanas, bem como das que se
lhes seguem na primeira metade do século XX.
Essa massa documental, em diálogo com a de outros acervos, entrecruzando com a sua contraface depositada em instituições brasileiras, em particular com a do Arquivo Público do Estado do Pará, provavelmente abrirá novos
horizontes interpretativos.
Ainda assim são necessárias outras ressalvas ao presente trabalho. Por
mais exaustiva e zelosa que tenha sido sua execução, ele não atinge a totalidade do acervo que lhe dá título. Um número ainda não projetável, mas que não
se supõe elevado, de manuscritos avulsos referentes ao Pará foi identificado e
descartado das “caixas” de outras capitanias da América portuguesa. Esse trânsito de fontes fez-se, na verdade, em movimento de mão-dupla, pois, durante o
presente trabalho, foram encontrados inúmeros documentos inseridos em “caixas” da capitania em causa, embora pertencessem, na realidade, aos fundos de
outras capitanias, para onde foram oportunamente deslocados. Outros há que,
por absoluta imprecisão (por exemplo, de nomes de emissor, destinatário e
data) restarão à margem da catalogação.
O que se quer dizer é, pois, que, enquanto todo o gigantesco acervo
de manuscritos avulsos relativos ao Brasil não tiver merecido o tratamento
técnico semelhante ao que aqui se relata, será impossível e impróprio afirmarse que o Pará ou qualquer outra capitania tem seu acervo no AHU totalmente
identificado, cotado e inserido, corretamente, nas unidades de instalação.
Tal como ora se apresenta a documentação e, principalmente, dado que
nos foi possível catalogá-la, apraz-nos verificar que o texto dos verbetes a seguir serve de elemento básico e está transcrito na reprodução microfílmica
promovida pelo nunca assaz louvado Projeto Resgate, desenvolvido pelo Ministério da Cultura do Brasil.
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Resgate, História e Sociedade
Geraldo Mártires Coelho
O Projeto Resgate Barão do Rio Branco, ele mesmo um combatente pela
identidade nacional, está plantado nas raízes profundas da história da história
do Brasil contemporâneo. Como iniciativa, confunde-se com o espírito que
norteou os pais fundadores da historiografia e da cultura brasileiras oitocentista, como Varnhagen e José de Alencar, reunidos ao abrigo do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, fundado em 1838. A busca das fontes documentais
do nosso passado, espalhadas pelos arquivos europeus, principalmente portugueses, norteou uma das vertentes da cultura oficial do II Reinado e do próprio
mecenato do Imperador D. Pedro II. Em última análise, tratava-se, como está
na obra do Visconde de Porto Seguro ou na do criador de O Guarani, de inventar, esculpir o passado do Brasil de modo a conferir uma identidade, uma
representação simbólica à jovem nação brasileira. Assim, o esforço instaurador
dos domínios e das linguagens de Clio no Brasil emerge das camadas doutas da
Monarquia Brasileira, no que manifestaria, historicamente observada, a trajetória de uma forma de fazer História tão marcadamente envolvida pela sombra
poderosa do Trono de Pedro II.
Para além das implicações próprias de uma política cultural oficial,
como a que foi produzida e estimulada sob o mecenato de Pedro II, é importante trabalhar com a representação da cultura possível num Brasil que entrava
no II Reinado apresentando características como as dominantes na sociedade
brasileira. Mesmo com o forte acento elitizado que lhe foi conferido por seu
intelectuais, não há como desconhecer o esforço que a nossa então intelligentsia desenvolveu para construir os patamares básicos da cultura e da cultura
histórica brasileira. Se, nas palavras de Alfredo Bosi, o romance nacional nasce
com Alencar, com o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro ganhou forma
a primeira historiografia igualmente nacional, a despeito das fortes influências
exercidas pelos românticos franceses sobre as demandas fundadoras do IHGB.
Para os integrantes dos quadros da instituição nascida Áuspice Petro Secundo,
a nação e o sentimento nacional não podiam mais depender, para senti-los
e explicá-los, de historiadores estrangeiros. Passavam-se, pois, os tempos de
Rocha Pita e de Robert Southey...
Visto por essa ótica, o Projeto Resgate Barão do Rio Branco é um ponto
de chegada, o locus de encontro entre as forças e as vontades que, desde o
século XIX, combateram, como bons e tardios românticos, para erguer e consolidar o patrimônio documental brasileiro. Reconhecidamente, os fios condutores da visão de mundo romântica da História, fios esses que bem atrelaram
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os embates dos pais fundadores do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro,
estenderam-se o suficiente para produzir uma dada forma de narrativa que,
mesmo formalista, não deixava de estar pontuada pela idéia da Nação Brasileira. Para um tempo em que o documento era principalmente o documento de
Estado, na sua forma textual, partia-se do pressuposto de que não haveria um
passado brasileiro sem as fontes probatórias desse mesmo passado. Muito da
natureza arqueológica com que o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro
pautou a sua pragmática, funda-se nessa leitura positivada do passado, inclusive no tocante à necessidade de conhecer os vastos domínios do Império do
Brasil, sem dúvida portadores de uma geografia social, cultural e física em
tudo estranha às mentalidades doutas da Corte imperial brasileira.
O Brasil, assim, ainda que de forma intercalada, recebe as grandes
massas documentais da sua história colonial reunidas no Arquivo Histórico
Ultramarino, em Lisboa, depois de um paciente e altamente especializado processamento arquivístico a que foram submetidas, com a Coordenação Técnica
a cargo da Doutora Esther Caldas Bertoletti e a Coordenação acadêmica sob a
responsabilidade do Professor Caio César Boschi. Retomam, pois, ao Brasil,
depois de catalogados e microfilmados, os documentos que, no já distante século XIX, impregnaram a imaginação romântica e a história positiva de nossos
principais intelectuais, todos ávidos, de uma forma ou de outra, para consolidar
nos acervos brasileiros os documentos/monumentos cuja narrativa entendiam
ser a da invenção do Brasil. Hoje, é bem verdade, como ensinou em profundidade Lucien Febvre, é o passado que explica o presente, é a História-Problema
que leva o historiador a construir, pela invenção epistemológica, o passado,
em si mesmo uma dimensão ausente. Para tanto, contudo, ainda prevalece a
máxima que diz ser a História feita principalmente por documentos, para além
da natureza do suporte da informação ou da morfologia da fonte.
Da mesma forma como antes salientou-se que o Projeto Resgate Barão
do Rio Branco é um ponto de chegada, ele igualmente baliza um ponto de
partida, o da reescrita, em escala avançada, da história do Brasil colonial. Ao
escrever sobre a Escola dos Annales, o historiador inglês Peter Burke reconheceu que Marc Bloch e Lucien Febvre, e mais as gerações e os nomes que
lhes seguiram a trajetória, haviam produzido a Revolução Francesa da historiografia. Quis Burke ressaltar que o impacto produzido pelos Annales: sobre a
História e a moderna epistemologia histórica gerou um novo corpus teórico e
metodológico para tratar o conhecimento histórico, ampliando as fronteiras, o
papel e a capacidade de o historiador inventar o passado. Dilatadas as fronteiras do sentido do documento como suporte de informação formalmente textual, literário, o universo documental aberto pelos resultados do Projeto Resgate
Barão do Rio Branco, em cujos domínios o iconográfico reúne-se ao estatístico
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e ambos aos compostos simbólicos das mentalidades, esse universo abrigará o
giro copernicano da historiografia brasileira.
Em termos acadêmicos, a chegada da documentação colonial brasileira
ao Brasil ocorre, simultaneamente, a uma fase em que se ampliam no país as
condições do ensino e da qualificação docente em História. Inegavelmente, os
meios universitários brasileiros têm os seus quadros de profissionais em franca
renovação, mercê da instituição de mais cursos de pós-graduação assim como
da correspondente formação de novos pós-graduados. O encontro, pois, dessas
circunstâncias, certamente infletirá sobre a nossa capacidade de pesquisar e
pensar a formação histórica brasileira, reunindo às novas linguagens teóricas,
o material empírico que emprestará maior solidez à construção da explicação
histórica. Do encontro, portanto, entre o conceitual e o empírico, entre o teórico
e o documental, e considerada a já amadurecida capacidade manifestada pelos
historiadores brasileiros, acreditamos que começamos a fazer a nossa revolução historiográfica que, centrada inicialmente no Brasil colonial, certamente
extravasará para outros domínios temporais e sociais do passado brasileiro.
Nesse sentido, a incorporação dos frutos do Projeto Resgate Barão do
Rio Branco ao acervo do Arquivo Público do Estado do Pará, ampliará consideravelmente a já reconhecida importância desta Instituição. Com cerca de
quatro milhões de documentos integrando o seu acervo, o Arquivo Público do
Estado do Pará é, reconhecidamente, um dos mais importantes espaços arquivísticos do país. A documentação recolhida à sua guarda não diz respeito apenas ao Pará, mas à Amazônia como um todo, com desdobramentos que atingem ainda Maranhão, Mato Grosso e Goiás. Ao escrever sobre a historiografia
brasileira e a pesquisa histórica no Brasil, o saudoso historiador José Honório
Rodrigues mencionava a importância do Arquivo Público do Estado do Pará
não apenas para a história do norte do país, mas igualmente para a história do
Brasil como um todo.
Não há como deixar de salientar uma outra dimensão do Projeto Resgate Barão do Rio Branco, agora do ponto de vista da democratização do acesso
às fontes históricas recuperadas por essa iniciativa. Se, num passado mais ou
menos remoto, poucos brasileiros puderam cruzar o Atlântico e trabalhar nos
arquivos europeus, notadamente portugueses, essa mesma situação atravessou
um longo e excludente tempo. Passado o século XIX e avançando-se rumo às
décadas renovadoras do século XX, as do Brasil que se industrializava e se
modernizava, materialmente e intelectualmente, ainda assim a viagem a Europa era um prêmio acadêmico, um mérito intelectual ou uma dádiva de nascimento, nunca uma tendência social mais ou menos construída. Desse modo,
só mais recentemente, e assim mesmo de forma parcelar, um número mais
expressivo de pesquisadores brasileiros dispôs de maiores e melhores condiHISTÓRIA DIGITAL - ANO II - Nº 02 - 2008
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ções de acesso às fontes documentais da nossa história recolhida aos acervos
espalhados pelo mundo. A ampliação das possibilidades acadêmicas, somadas
a novas condições materiais experimentadas por segmentos, grupos e classes
da sociedade brasileira, produziram-se outras e inovadoras condições, mas ainda assim insuficientes para as demandas do organismo acadêmico brasileiro
como um todo. Hoje, com os resultados do projeto ora apresentado, inverte-se
a polaridade desse processo, haja vista que o Barão do Rio Branco implica, de
forma inquestionável, uma política democratizadora e republicanizadora no
tocante à disponibilidade das fontes para a pesquisa da história brasileira: as
massas documentais, microfilmadas, deslocam-se para o Brasil e abrem-se à
pesquisa histórica nacional.
Foi tendo em vista o alcance e a representação social do Projeto Resgate
Barão do Rio Branco que o governo do Pará, desde 1995, no início da primeira
administração do Doutor Almir Gabriel, integrou o esforço inicial dos Estados
brasileiros que se irmanaram na montagem das primeiras demandas para as
investigações nos arquivos de Lisboa. Desde então, a Secretaria Executiva de
Cultura, com investimentos próprios, mas contando com o indispensável apoio
técnico e financeiro do Ministério da Cultura, veio desenvolvendo esforços, em
Belém e em Lisboa, para tornar o Projeto Resgate Barão do Rio Branco uma
realidade cultural irreversível. Nesse sentido, os esforços desenvolvidos pelo
Governo do Estado do Pará, trazendo para o Arquivo Público a documentação
microfilmada do Pará e da Amazônia colonial, inscreve-se no mesmo espírito
que tem guiado outras iniciativas públicas dotadas de semelhante envergadura.
É preciso acreditar, e mais, praticar, políticas públicas de cultura com o mesmo
empenho, a mesma responsabilidade social e a mesma dignificação da cidadania, princípios sem os quais diluem-se os vínculos orgânicos entre o Estado, o
governante e a res publica.
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6. Piauí
Prefácio
Pe. José Pereira de Maria - Vice-Presidente da Sociedade Goiana de
Cultura e Chanceler da Universidade Católica de Goiás
Em 1997, a Sociedade Goiana de Cultura foi convidada para representar Goiás, junto ao Projeto Resgate Barão do Rio Branco do Ministério da
Cultura, implantado para festejar os 500 anos do Descobrimento do Brasil e
cuja meta principal era buscar, no Arquivo Ultramarino de Lisboa, os documentos brasileiros relativos ao Brasil-Colônia. Ciente da grande responsabilidade, entregamos a coordenadoria do “Projeto Resgate da Capitania de Goiás
em Portugal” ao Instituto de Pesquisas e Estudos Históricos do Brasil Central,
entidade mantida pela Sociedade Goiana de Cultura e dirigida pelo historiador José Mendonça Teles. Como se tratava de projeto que envolvia a lei do
mecenato, criada pelo Ministério da Cultura, conseguimos o apoio financeiro
do Bank Boston e, com isso, encaminhamos para Lisboa o pesquisador goiano Antônio César Caldas Pinheiro e a representante do Estado do Tocantins,
historiadora Juciene Ricarte Apolinário. Em Lisboa, foram contratados alguns
pesquisadores portugueses que se juntaram aos nossos professores e, num espaço de um ano e quatro meses, já tínhamos toda a documentação organizada e
verbetizada, pronta para a microfilmagem. Foi um trabalho árduo, penoso, mas
tínhamos consciência de que aquele sacrifício correspondia à determinação e
ao entusiasmo de todos os que estávamos empenhados na tarefa de colocar ao
alcance dos pesquisadores e estudiosos de Goiás, os valiosos documentos que
dormiam, há séculos, nos ar-quivos portugueses.
Ao mesmo tempo em que nossos pesquisadores trabalhavam em Lisboa, tomamos conhecimento de que a documentação do Piauí estava sem patrocínio, não obstante o trabalho da Doutora Esther Caldas Bertoletti, Coordenadora Técnica do Projeto Resgate de Documentação Histórica Barão do Rio
Branco, junto a alguns estudiosos e autoridades daquele Estado.
Vendo nos acontecimentos uma oportunidade singular para prestar um
serviço de alta significação a nossa Terra Natal, solicitamos ao nosso coordenador do projeto goiano, professor José
Mendonça Teles, que manifestasse à Doutora Esther o nosso desejo de
patrocinar as despesas decorrentes da organização, verbertização e microf1lmagem dos documentos do Piauí. Víamos nisso a possibilidade de podermos, depois, juntamente com o Ministério da Cultura, premiar a juventude, os estudiosos
piauienses e, consequentemente, toda a sociedade do nosso Estado, com o acervo
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documental de sua vida colonial, retido no Arquivo Histórico Ultramarino.
A aquiescência solicitada chegou-nos através de correspondências, telefonemas e outros meios de entendimentos que mantivemos, no decorrer da
missão em Portugal, quando, então, determinamos aos nossos colaboradores
que levassem a termo, também, a documentação do Piauí.
Na carta que nos enviou de Lisboa, em 15 de junho de 1999, o pesquisador Antônio César Caldas Pinheiro dizia:
“Não nos esquecemos da recomendação do senhor para que olhássemos a situação do acervo documental do Piauí. Não poderíamos deixar de fazê-lo, já que
é tão caro ao coração piauiense a salvaguarda da documentação daquele Estado.
O seu interesse em levar a documentação microfilmada para o Piauí é louvável,
e muito nos admiramos do seu amor pelo Estado natal. Assim, a recomendação
do senhor será seguida à risca. Tão logo acabemos o trabalho com a capitania de
Goiás, começaremos a trabalhar com a documentação do Piauí”.
Logo em seguida, na carta de 05 de julho de 1999, a Doutora Esther,
após viagem a Lisboa, assim se manifestava:
“Com o apoio que o Padre Pereira está nos dando, vamos conseguir concluir a organização e verbetização dos documentos da Capitania do Piauí até outubro, com
a possibilidade de concluirmos a microfilmagem até novembro/ dezembro”.
Ao todo, foram catalogados 1716 documentos, acondicionados em 32
caixas-arquivo. São documentos da administração portuguesa do Piauí, correspondências da capitania com a corte, e vice-versa, constante de cartas, cartasrégias, provisões, ofícios, alvarás, requerimentos, instruções, cartas-patentes etc.
Tratam de distribuição de terras, guerra aos índios, requerimentos de mercês e
cargos na administração, licenças, confirmação de cartas-patentes e sesmarias,
correspondências e relatórios sobre a produção, comércio, dízimos e impostos,
mapas populacionais, autos de devassas, consultas ao Conselho Ultramarino.
Em 05 de julho de 2001, no lançamento do Catálogo da Capitania de
Goiás, em Goiânia, com a presença do Senhor Ministro da Cultura, Francisco
Weffort, afirmamos a Doutora Esther Bertoletti o nosso desejo de concluir o
trabalho sobre o Piauí publicando o Catálogo de Verbetes. Ela concordou, com
o entusiasmo e determinação que lhe são característicos. E aqui está o cumprimento da promessa. Este Catálogo contém documentos preciosos da província
do Piauí, no período de 1684 a 1828.
Sua publicação quer estreitar, ainda mais, os laços históricos existentes (e que já se explicitam na própria documentação em pauta), entre elementos
comuns, ou, pelo menos, complementares, na história das sociedades de Goiás
e do Piauí. Conhecedor das correntes seculares de migração do Nordeste, em
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geral, e do Piauí, em particular, para o Centro Oeste do Brasil, deixamo-nos
envolver, também nós, juntamente com nossa família nuclear, pelos laços de
sangue e por opção pessoal, numa forte corrente migratória, do século passado,
para este rico Estado do Brasil Central. Aqui, estão sedimentadas, hoje, em
grande parte, nossas raízes afetivas, e nossos compromissos com o desenvolvimento e o bem estar do povo anhanguerino que nos acolheu e nos absorveu,
com muita fraternidade.
O Piauí é o nosso chão original, subsolo fecundo com que nos mantemos identificados pelas raízes do próprio ser. De lá, nos vem a força permanente do inconsciente familiar e sócio-cultural dos tempos da infância e da
adolescência, na convivência com amigos queridos e inesquecíveis. Os ensinamentos e valores que herdamos desse universo sagrado, continuam, em nós,
fontes inestimáveis de sonhos, ideais e sentido de vida, alimento permanente
para as lutas de todo dia.
Em Goiás, já, agora, no entardecer da existência, o coroamento de uma
vida alicerçada nos valores ético-religiosos, sócio-culturais e políticos, acolhido por uma legião de amigos e companheiros de trabalho que ajudam a dar
sempre maior participação, significado e amor ao projeto de vida.
Goiás e Piauí, dois Estados pulsando forte no coração de um homem frágil,
mas determinado, que tem consciência viva de que a força e a grandeza resultam
da fraqueza e da abundância de pequenas potencialidades bem administradas.
Assim, agradecendo a Deus a oportunidade de servir ao nosso Estado
de origem e, aos amigos, envolvidos no Projeto Resgate, a chance do trabalho
comum, entregamos este Catálogo ao Estado do Piauí, com o bem estar natural
do dever de cidadania cumprido.
Goiânia, 01 de junho de 2002.
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Apresentação
Miridan Britto Falci
Poucos trabalhos apresentam tanta importância para o historiador como
este Projeto Resgate de microfilmagem de toda a documentação histórica do
Arquivo Histórico Ultramarino, em Lisboa, organizado por Capitanias, e sob a
coordenação da Dra. Esther Caldas Bertoletti.
O Arquivo Histórico Ultramarino, pela riqueza de documentação que
possui, compreendendo o acervo do Conselho Ultramarino e do Arquivo da
Marinha e Ultramar, é, sem dúvida, o maior depositário das fontes manuscritas
da nossa história colonial. Levantamentos parciais, de uma ou outra capitania,
de um ou outro período, foram constantemente ali realizados por historiadores,
alguns às próprias custas e outros com pequenas bolsas financiadas para curta
estada. Mas este PROJETO, produzido por convênio do MINISTÉRIO DA
CULTURA com o ARQUIVO HISTÓRICO ULTRAMARINO, como parte
das comemorações dos 500 anos do Descobrimento do Brasil, cobre a finalidade de resgate total de toda a documentação ali existente, calculada em cerca de
15.000 documentos. O Catálogo dos Manuscritos de cada Capitania e o CDROM correspondente são os produtos finais da microfilmagem.
No caso da Capitania do Piauí, cujo CATÁLOGO temos a honra de
apresentar, trata-se de preciosa documentação, composta de 32 caixas, contendo 1716 documentos cujos períodos extremos são 1684 e 1828. Certamente
não se trata de tão extensa documentação como aquela concernente à Bahia e
ao Rio de Janeiro, contendo respectivamente 34.500 e 28.630 documentos. A
Capitania de São José do Piauí, criada somente no século XVIII, desmembrada
do Estado do Maranhão e Grão-Pará, contém, no entanto número expressivo
de documentação, maior do que aquela pertinente à Capitania do Rio Negro e
à do Ceará. E grande número de documentos referentes ao Piauí foi encontrado nas caixas do Maranhão, o que levou a uma reorganização e ampliação do
acervo inicial. Certamente muitos outros documentos ainda serão encontrados
em caixas de Pernambuco e Bahia e que dizem respeito a localidades dos sertões do Piauí antes de 1758 quando foi instalado o governo da Capitania de
São José do Piauí.
Logo nos primeiros documentos, os de números 1, 2 e 4, percebe-se,
claramente, como os sertões do Piauí ficaram à mercê de ordens emanadas
dos governantes das capitanias vizinhas. Essas ordens eram remetidas ora da
Capitania da Bahia, ora daquela de Pernambuco e ora do Maranhão. O primeiro documento – o mapa das sesmarias que a Casa da Torre e seus sócios
pretendem no sertão do Piauí, datado de 1684 – levou à célebre interpretação
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de que o Piauí foi totalmente devassado pelo seu sudeste a partir dos sesmeiros
contratados na Bahia. O segundo, treze anos mais tarde, mostra já a criação da
primeira freguesia, sob a invocação de Nossa Sra. das Vitórias, freguesia que
seria desmembrada da paróquia de Nossa Senhora da Conceição de Cabrobó, do bispado de Pernambuco, ficando assim o Piauí sob a direção espiritual
daquele bispado. O documento de n. 4, – o parecer do Conselho Ultramarino
dirigido ao ouvidor do Maranhão – aprova a criação do cargo de juiz de fora,
no Piauí. Esses documentos comprovam assim, que baianos e pernambucanos
penetraram pelo sudeste daquela capitania, mas que a administração civil daquele espaço de sertão estava subordinada ao governo do Maranhão.
Na leitura dos vários documentos aqui organizados percebe-se a disputa pelas terras dadas em sesmarias, a balbúrdia administrativa suscitada pelas
várias ordens e contra-ordens dos governadores das capitanias vizinhas e até
mesmo dos governadores gerais do Estado do Maranhão e Grão-Pará e do
Estado do Brasil. Observa-se pela leitura dos requerimentos dos moradores, os
primeiros tempos de vida naquele espaço: a obstinação contínua de descoberta
de terras incógnitas, a luta contra os indígenas, as dificuldades diversas e as
várias intrigas que compuseram a vida daqueles sertões.
Este Catálogo é um instrumento de pesquisa fundamental para a História do Piauí, principalmente pelo produto final que teremos, qual seja, a elaboração do CD-ROM. Por este, o pesquisador terá em mãos o texto integral
dos documentos, podendo acessá-lo na tranquilidade de seu local de trabalho
e imprimi-lo para estudo e confronto de suas interpretações. Os verbetes resultante da leitura, interpretação e síntese de cada documento e elaborados pela
equipe coordenada pela referida professora, estão referidos no Catálogo.
ANEXO IV
Governadores e Capitães-Generais do Maranhão e do Piauí
O território que em 1758 constituiu a Capitania de São José do Piauí,
não foi, originariamente, o de uma Capitania Hereditária. Admite-se que a 2a
parte da Capitania do Maranhão, que teria 50 léguas, corresponderia à costa
do atual Piauí ficando assim, esse território, sob a administração do Maranhão
durante os séculos XVI e XVII.
Com a criação do Estado do Grão-Pará e Maranhão (1621) as terras do
Piauí ficaram sob a administração desse Estado até 20 de agosto de 1772 embora tivesse ocorrido um período, entre 1652 a 1654 que aquele Estado tivesse sido extinto. Embora a jurisdição daqueles sertões fosse, em princípio, do
Maranhão, o desconhecimento geográfico da extensão do sertão e a penetração
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pelo sudeste do estado de baianos da Casa da Torre e de pernambucanos criadores de gado, estabeleceu um conflito de jurisdição dos vários governadores e
capitães-generais (o do Maranhão, o de Pernambuco e o da Bahia) que deram
datas de sesmarias e confirmaram patente real de capitão-mor a conquistadores
e moradores naqueles sertões.
Em 1674, por ex., é conferida a patente de capitão-mor, pelo governador-geral do Brasil, visconde de Barbacena, a Francisco Dias de Ávila, sesmeiro da Casa da Torre, para que pudesse fazer guerra aos índios no Piauí. Este
ato deveria, certamente, partir do governador do Estado do Grão-Pará e Maranhão. Poucos anos mais tarde, em 1697, é criada a freguesia da Mocha, depois
Oeiras, sob a invocação de Nossa Senhora da Vitória, pelo bispo diocesano de
Pernambuco Dom frei Francisco de Lima, sendo o seu território desmembrado
da paróquia de Nossa Senhora da Conceição de Cabrobó, situada à margem esquerda do rio São Francisco e pertencente ao mesmo bispado de Pernambuco,
ao qual estava anexa toda aquela circunscrição territorial do Piauí.
Ainda no final de 1700 (8 de novembro) a carta régia dirigida ao governador de Pernambuco, Fernando Martins Mascarenhas de Lencastre, ordena-lhe
a criação e provimento de alguns capitães-mor nas freguesias dos sertões de Rodelas e Piauguhy. E em 19/12/1701 uma “patente régia confirma que o mesmo
governador de Pernambuco Dom Fernando Martins Mascarenhas de Lencastre,
fez de Antonio Gomes de Sá para capitão-mor da freguesia de Nossa Senhora da
Vitória do Piauí, no sertão de Rodelas”, como nos diz Pereira da Costa em seu
fabuloso Cronologia Histórica do Estado do Piauhy, publicada em 1909.
Em 13/3/1702, C.R. determinava que todos os moradores do Piauí ficassem sob o governo do Maranhão embora grande parte do território do Piauí continuasse sob a jurisdição de Pernambuco. Era capitão-mor do Maranhão, nessa
época, João Velasco de Molina que passará a governador interino do Estado do
Maranhão e Grão-Pará em 13/9/1705 e neste cargo permanecerá até 12/1/1707.
Segundo Pereira da Costa, até a provisão do Conselho Ultramarino de 11
de janeiro de 1715, que incorporou o Piauí ao Maranhão, “o Piauí fazia parte do
governo-geral do Estado do Maranhão e Grão-Pará, que tinha por sede a cidade
de Belém, residência dos governadores e capitães-generais, tendo como lugarestenentes para dirigir os governos do Maranhão e Piauí um capitão-mor governador, que residia na cidade de São Luís, que tinha atribuições limitadas”.
Esta interferência e balbúrdia administrativa naqueles sertões nos é demonstrada nas várias ordens e ofícios emanados dos governantes e nos inúmeros requerimentos dos moradores dirigidos ora a Pernambuco, ora a Bahia, ora
ao Maranhão. E é por isso que em 1/8/1714, o vice-rei do Estado do Brasil,
Dom Pedro Antonio de Noronha, marquês de Angeja, representava para Lisboa acerca das medidas reclamadas pelas repetidas questões que apareciam no
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Piauí por causa das sesmarias de terras concedidas anteriormente pelos governadores de Pernambuco e da Bahia.
O citado alvará de 11 de janeiro de 1715 determinava que a jurisdição do
território do Piauí, que antes pertencia à Bahia, ficasse pertencendo ao Maranhão,
declarando-se ao governador do mesmo Estado (Cristóvão da Costa Freire) que
as sesmarias concedidas no Piauí pelos governadores de Pernambuco e da Bahia
não fossem consideradas devolutas e que, tendo unido o Piauí ao Maranhão para
evitar desordens entre os moradores dos diferentes distritos, não ultrapassasse, o
governador do Maranhão, as “raias marcadas à nova capitania”.
Em 18-11-1718, criava D. João V, por alvará, a capitania do Piauí desanexada administrativamente do Maranhão, mas que continuou, no entanto,
sem instalação de governo até 1758, quando a provisão de 29-07-1958 de dom
José I mandou pôr em execução aquele alvará. Com a chegada do primeiro governador João Pereira Caldas, instala-se verdadeiramente o governo do Piauí.
Note-se, no entanto, que mesmo com governadores próprios, a Capitania de
São José do Piauí estava subalterna à do Maranhão até 1811 com grande interferência dos governantes daquela Capitania.
Devido a essa interferência de vários governantes sobre a área do que
seria mais tarde o estado do Piauí é que a relação de governantes que emitiram ordens, deram sesmarias, receberam petições dos moradores dos sertões
contém os nomes dos governadores de Pernambuco, governadores da Bahia,
governadores do Estado do Maranhão e Grão-Pará, governadores do Grão Pará
e Maranhão, governadores do Estado do Maranhão e Piauí, governadores da
Capitania do Piauí (como dependente e independente) .
Podemos dividir a governança do Piauí em quatro situações:
a que vai de 1718 a 1751- governadores do Estado do Maranhão e
Grão-Pará;
a de 1751 a 1775 governadores do Estado do Grão-Pará e Maranhão;
a de 1772 a 1811 governadores do Estado do Maranhão e Piauí;
a de 1758 a 1811 governadores da Capitania do Piauí (dependente) e de
1811 a 1825 - juntas e governadores da Capitania do Piauí ( independente)
1a Fase: 1718 - 1751 - Governadores do Estado do Maranhão e GrãoPará com jurisdição sobre o Piauí
Foram os seguintes os governantes do Maranhão que tiveram jurisdição
sobre o Piauí, em razão da não instalação do governo no Piauí:
1 - Cristóvão da Costa Freire, governador e capitão-general do Estado
do Maranhão e Grão¬-Pará 21-1-1707 a 18-6-1718;
2 - Pedro Mendes Tomás, capitão-mor, de 14-4-1707 a 19-4-171 O;
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3 - João de Barros da Guerra, capitão-mor, de 19-4-1710 a 11-6-1716;
4 - João Velho de Azevedo, capitão-mor, de 11-7-1716 a 15-8-1728;
5 - Bernardo Pereira de Berredo e Castro, governador e capitão-general
do Estado do Maranhão e Grão-Pará, de 18-6-1718 a 19-7-1722;
6 - João da Maia da Gama, governador e capitão-general do Estado do
Maranhão e Grão-Pará, de 19-7-1722 a 14-4-1728.
No Catálogo de Documentos Manuscritos avulsos referentes à Capitania do Piauí do Arquivo Histórico Ultramarino, os documentos de números
26, 27, 28, 29, 30, 32, 63 dizem respeito a este último governador.
7 - Segue-se Alexandre de Sousa Freire, governador e capitão-general
do Estado do Maranhão e Grão-Pará de 14-4-1728 a 16-7-1732 referido nos
documentos 40, 45, 49,50,61, do Catálogo.
8 - José da Serra, governador e capitão-general do Estado do Maranhão
e Grão-Pará cujo governo vai de 16-10-1732 a 20-3-1736 é referido nos documentos 90, 105, 106 do Catálogo.
9 - Antonio Duarte de Barros, capitão-mor de 27-7-1732 a 20-3-1736.
Antonio Duarte, é o governador interino do Estado do Maranhão e Grão-Pará
de 2-3-1736 a 18-9-1737.
10 - Custódio Antonio da Gama, o capitão-mor, de 20-3-1736 a 1738;
11 - João de Almeida da Mata, o capitão-mor, de 1738 a 1743 servindo
durante três anos no cargo de governador interino na ausência do capitão - general João de Abreu Castelo Branco;
12 - João de Abreu Castelo Branco, o governador e capitão-general do
Estado do Maranhão e Grão-Pará de 18-09-1732 a 14-8-1747; e está referido
nos documentos 149, 157, 170, 205, 206, 208, 210, 235 do Catálogo dos documentos sobre o Piauí.
13 - Francisco Pedro de Mendonça Gorjão, governador e capitão-general do Estado do Maranhão e Grão-Pará, de 14-8-1747 a 24-9-1751; está
referido nos documentos 283,284, 285, 299.
14 - Francisco Xavier de Mendonça Furtado, o governador e capitãogeneral do Estado do Maranhão e Grão-Pará de 24-9-1751 a 2-10-1754.
2a Fase: 1751 a 1772 - Governadores do Estado do Grão-Pará
e Maranhão
Em 6/8/1753 uma C.R. extingue o cargo de capitão-mor e governador
do Maranhão e Piauí e nomeia como governante do Piauí, o brigadeiro Gonçalo Pereira Lobato e Sousa, governador e Capitão-general da capitania do
Maranhão com plena jurisdição sobre o Piauí. Gonçalo Pereira governou de
12-1-1754 a 27-6-1760. A ele se referem os documentos, 324, 342, 348, 349 e
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414. Seguiu-se novamente
2 - Francisco Xavier de Mendonça Furtado, governador e capitão-general
do Estado do Maranhão e Grão-Pará que reassumiu de 22-12-1756 a 15-1-1758.
Como vimos anteriormente a capitania do Piauí data a sua criação do
ano de 1718. O alvará de criação só foi cumprido coma nomeação do primeiro
governador, João Pereira Caldas, por ato de 29-7-1758, governador que tomou
posse em 20 de setembro de 1759 e que denomina a nova capitania de São José
do Piauí em homenagem ao soberano reinante Dom José I.
Em 11-7-1757 o governador do Maranhão passou a subalterno do capitão-general e governo do Pará e o nome do Estado mudou para Estado do
Grão-Pará, Maranhão e Rio Negro passando os governadores a residirem na
cidade de Belém.
O governador do Estado do Grão-Pará, Maranhão e Rio Negro que teve
atuação sobre o Piauí então capitania subalterna ao Maranhão foi
3 - Manoel Fernando de Melo e Castro. Seu título era governador e
capitão-general do Estado do Grão-Pará, Maranhão e Rio Negro e governou
de 2-4-1759 a 14-9-1773.
De pouca duração foi esta função jurisdicional abrangendo três capitanias cuja inconveniência foi reconhecida pelo Decreto régio de 20-8-1772.
Governaram ainda Fernando da Costa de Ataíde Teive - 14-9-1773 e João Pereira Caldas de 1773 a 1775.
3a Fase: 1772-1811- Governadores do Estado do Maranhão e Piauí
O Decreto de 1772 desanexou o Maranhão, sendo criado o governo independente da capitania do Piauí por subalterna ao Maranhão. Foi confirmado
pelo Decreto de 3 de maio e pela provisão de 9 de julho de 1774.
Seguiram-se os seguintes governadores
1 - Joaquim de Melo e Póvoas que tomou posse a 29-7-1775. Ele é considerado o último capitão-mor do Maranhão, cargo que dirigiu por mais de dez
anos e que passou a governador e capitão-general do Maranhão.
Entre 1761 a 1776 Póvoa é chamado de governador e capitão-general
do Maranhão; daí até 9-6-1778 é designado como governador e capitão-general do Maranhão e Piauí. Os documentos que a ele se referem no Catálogo de
Documentos do AHU são: 493, 494, 495, 552, 605, 606, 607, 608, 609, 610,
611, 612, 737, 741, 742, 755, 756, 757, 758.
2 - Antonio de Sales Noronha (2-1-1780 a 29-11-1782), governador e
capitão-general do Maranhão e Piauí citado nos documentos de nos. 774, 777,
781, 782, 783, 785, 786, 787, 792, 793 do Catálogo.
3- José da Silva Teles, (em alguns documentos aparece como José Teles
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da Silva) governador e capitão-general do.Maranhão e Piauí (13-2-1786 a 249-1796). Citado nos documentos nos. 825, 827. 815, 816, 818, 820, 821, 826,
840, 850, 915, 1022.
4- Fernando Pereira Leite de Fóios, governador e capitão-general do
Maranhão e Piauí, de 2-3-1788 a 3-10-1793. Documentos nos. 859, 860, 861,
863, 864, 868,869, 870, 879, 883, 885, 887, 889, 890, 891, 892, 893, 894, 895,
896, 898, 899, 900, 902, 907, 910, 912, 916, 926, 938, 941, 942, 944, 978.
5- Fernando Antonio de Noronha, governador e capitão-general do Maranhão e Piauí, de 28- 9-1793 a 26-5-1802. A ele se referem os documentos
nos. 976, 977, 980, 985, 986, 993, 997, 1001, 1002, 1003, 1006,1036, 1038,
1039,1048, 1067, 1068,1083,1302.
6 - Diogo Martim Afonso de Sousa Teles de Meneses, 1º Conde do Rio
Pardo, governador e capitão-general do Maranhão (22-4-1799 a 18-1-1801).
Citado nos documentos nos. 1148, 1149, 1151, 1175, 1181, 1182, 1184, 1185,
1186, 1190, 1192, 1193, 1207, 1223, 1225, 1230, 1231, 1233, 1242
7 - Antonio de Saldanha da Gama, governador e capitão-general do Maranhão, de 5-8-1804 a 11-8-1808 citado nos documentos nos.1409, 1418, 1419,
1429, 1430, 1444, 1457, 1458, 1459, 1460, 1461, 1462, 1464, 1469, 1471, 1580
8 - Francisco de Melo Manoel da Câmara, governador e capitão-general
do Maranhão de 11-8-1806 a 2-5-1807. Citado nos documentos nos.510 e 1561
9 – Dom José Tomás de Meneses, 7º conde de Cavalheiros, governador
e capitão-general do Maranhão de 5-2-1810 a 10-12-1810. Citado nos documentos nos. 1585, 1586, 1587, 1588, 1591, 1593.
Convém ressaltar que entre 1758 e 1811 o Piauí foi governado por governadores independentes ou por juntas governativas. No entanto, pelo fato de
ser uma capitania subalterna, dava-se contínua interferência dos governadores
e capitães-generais do Maranhão nos atos dos governadores do Piauí, interferência essa criticada pelos governadores do Piauí em diversas queixas ao
governo de Portugal. Isto levou D. João VI a determinar, em 1811, a sua total
separação do governo do Maranhão.
Bibliografia:
BASTOS, Cláudio. Dicionário Histórico e Geográfico do Estado do
Piauí. Teresina: Fundação Cultural Mons. Chaves, PMT, 1994.
COSTA, Francisco Pereira da. Cronologia Histórica do Estado do
Piauhy, Recife, 1909. Dicionário Histórico, Geográphico e Ethnographico do
Brasil, Rio de Janeiro: IHGB, 1922. NUNES, Odilon. Pesquisas para a História do Piauí, 4 vol. Rio: Artenova, 1975.
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Agradecimentos
Esther Caldas Bertoletti
Quando recebemos a incumbência de Coordenar o Projeto Resgate
“Barão do Rio Branco”, a convite do Embaixador Wladimir Murtinho, Assessor Internacional do Ministério da Cultura, não tínhamos ilusões de que
o caminho a ser percorrido seria longo e com muitos obstáculos; materiais,
técnicos, operacionais... Realmente, hoje, passados praticamente oito anos
desde o Dr. Itamar Franco, então Embaixador do Brasil em Portugal, acionou o
botão do equipamento de microfilmagem que permitiu a “captura”, em microfotografia seqüencial, da primeira página do primeiro documento manuscrito
(um documento datado de 5 de junho de 1680, da Capitania de Minas Gerais,
precisamente a Carta de Francisco Gil de Araújo para o Rei de Portugal, D.
Pedro II (1668-1706) informando sobre a descoberta da Serra das Esmeraldas).
Podemos dizer que a sensação do dever cumprido é o maior prêmio que muito
nos honra e gratifica.
Ao longo desses anos, não nos deixamos abater pelas inúmeras dificuldades com que deparamos e que era indispensável superar para conseguirmos
atingir as metas programadas: organizar a imensa documentação, elaborar os
verbetes-resumos de cada peça documental, enfim microfilmar todas as páginas existentes no Arquivo Histórico Ultramarino referente ao Brasil ou de
interesse para a sua História. Mês após mês, ano após ano, vimos as caixas
serem retiradas dos seus nichos, serem ordenados os do-cumentos e, um a um,
lidos, resumidos e microfilmados. Os rolos de microfilmes, contendo o resultado desse trabalho sistematizado foram gradativamente transportados para o
Brasil como que numa viagem de retorno ao percurso feito pelos documentos
originais, estes transportados pelas caravelas audazes e aqueles pelas aeronaves tão rápidas e seguras.
Cada conjunto documental, conforme a organização dada aos documentos sobre o Brasil pela direção do Arquivo Histórico Ultramarino, foi criteriosa
e pacientemente “trabalhado” e superadas as dificuldades que surgiam pelo
envolvimento que tomava a todos de desejar superar, apaixonadamente, os desafios nos limites das tarefas de cada um. Nada escapava aos olhos atentos dos
jovens, e até dos não tão jovens pesquisadores que dedicaram, com competência e seriedade, o melhor de seus esforços no resgate dos “nossos” documentos. Digo “nossos”, pois a UNESCO, por deliberação, aprovada em histórica
Assembléia Geral, de 1974, considerou que toda ex-colônia tinha o direito de
acesso e de cópia – via microfilme – de toda a sua documentação existente
na antiga metrópole. Considerados “patrimônio comum”, os documentos do
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período colonial de nossa história, hoje estão disponibilizados, no Brasil, para
todos os pesquisadores, da forma a mais democrática possível, possibilitando
“reescrever’” e “re-pensar” a nossa história colonial.
Muitas das antigas capitanias foram organizadas por profissionais diretamente empenhados em levantar e pesquisar a sua história regional. Outras,
como é o caso do Piauí, por profissionais interessados em participar do grande
mutirão nacional que se formou em Portugal, comungando conhecimento e
oferecendo sua experiência e competência para integrarem a tarefa de atingir
o objetivo comum: o resgate da documentação existente no Arquivo Histórico
Ultramarino, de Lisboa.
O caso da documentação do Piauí é o exemplo marcante dessa sinergia
nacional em que todos ofereceram um pouco de si, do seu trabalho em favor
do resultado coletivo:
Primeiramente, ao Professor Mestre Lourival Santana Santos, da Universidade Federal de Sergipe, que disponibilizou cada segundo de seu tempo
livre, desvinculando-o do trabalho de organizar e verbetar a documentação de
“suas Capitanias” Sergipe e Bahia, para alongar os seus olhares na documentação do Piauí e ao historiador goiano, Prof. Antônio Cesar Caldas Pinheiro, que
com a disponibilidade e generosidade próprias dos antigos cristãos, demorouse em Lisboa para além do seu tempo goiano, instado pelo ilustre piauiense
deslocado em terras goianas, Pe. José Pereira de Maria, da Sociedade Goiana
de Cultura, que disponibilizou a complementação dos meios financeiros necessários aos trabalhos em Lisboa. Outras achegas, de historiadoras brasileiras
e portuguesas permitiram a finalização dos verbetes - resumos para que os
documentos finalmente pudessem ser microfilmados. São ao todo 1716 documentos armazenados em 32 caixas, agora ordenados e organizados, com
verbetes-resumos e microfilmados em 37 rolos, que serão entregues para guarda e di-vulgação ao Arquivo Público do Estado do Piauí. Cópias digitalizadas
dos documentos (um conjunto de 5 CD-ROMs), a partir dos microfilmes, serão
entregues às principais instituições de ensino e pesquisa do Estado do Piauí,
e estarão disponíveis também em instituições no Rio de Janeiro e em vários
países. Amplia-se, assim, ao máximo, a possibilidade das pesquisas do período
colonial piauiense coberto pela documentação (1684-1828).
E, também, o nosso agradecimento à esta outra insigne personalidade
piauiense, historiadora e professora Miridan Bugyja Britto Falci, nossa confreira no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro que, desde o primeiro momento do Projeto Resgate, indagava sobre os documentos do Piauí e tentou nos
ajudar a buscar os meios financeiros no seu Estado, o Piauí, para a publicação
do Catálogo. Infelizmente, por qualquer motivo não se efetivaram. As possibilidades de ajuda em outras etapas do Projeto Resgate continuam em aberto. A
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Apresentação da Profa. Miridan neste Catálogo fala por si só.
Mas esta página é de muitos outros agradecimentos:
Ao nosso Ministro da Cultura, Prof. Francisco Corrêa Weffort, que nunca deixou de encontrar os meios para os trabalhos em Lisboa; ao Embaixa¬dor
Wladimir Murtinho, Assessor Internacional do Gabinete do Ministro da Cultura, incentivador permanente e que nunca deixou de acreditar que iríamos “conseguir” realizar esta desafiante tarefa; ao Pe. José Pereira de Maria, a quem
aprendi a admirar, e que, mais uma vez, demonstra a razão desta admiração
sempre crescente; ao Prof. José Mendonça Teles, antigo companheiro de tantos
sonhos, sempre incansável na sua trincheira de permanente luta pelos valores
patrimoniais do nosso passado. Ao Lourival, Antônio César, Érika, Gabriela,
Maria Aparecida e Teresa do Carmo e a toda equipe técnica do Arquivo Histórico Ultramarino só posso dizer-lhes que valeu. Valeu muito a pena transferir a
informação dos documentos que se quedavam tranquilos, quase adormecidos,
por tantos anos em terras lis¬boetas e que agora empreendem viagem de retorno às terras longínquas do Estado do Piauí, onde existem tantos e tantos jovens
dispostos a percorre¬rem o passado contido nestes documentos que hoje lhes
chegam às mãos. Tudo que nos foi possível fazer foi em função do apoio de
todos. Estamos todos convidados a comungar a pesquisa nos documentos do
passado colo¬nial. Viva o documento!
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7. Rio Grande do Sul
Apresentação
Helen Osório
A resolução n°4212 de 1974, da UNESCO, convidou seus Estados
membros a examinarem “favoravelmente a possibilidade de transferir ... as
informações contidas nos documentos provenientes de arquivos constituídos
no território de outros países ou se referindo à sua história”. E considerou
“patrimônio comum” os documentos do passado de dois países ligados anteriormente pelos laços do colonialismo1. Este princípio do patrimônio comum
presidiu a iniciativa do Ministério da Cultura, através de sua Assessoria Especial, de formular o “Projeto Resgate Barão do Rio Branco”, em 1994, com
coordenação técnica da Drª Esther Bertoletti.
O Projeto Resgate propõe-se a disponibilizar, para consulta no Brasil,
documentos históricos relativos ao período colonial existentes em arquivos de
outros países, através de microfilmes e CD-ROM, acompanhados de catálogos que sumariam a documentação. Assim, o projeto possui um longo alcance: representa uma efetiva democratização do acesso à informação histórica e
constitui-se numa ação de preservação do patrimônio histórico nacional.
O projeto iniciou-se obviamente por Portugal e aí, pelo Arquivo Histórico Ultramarino (AHU), sediado em Lisboa, integrado ao Instituto de Investigação Científica Tropical. Este arquivo abriga vasta e rica documentação
sobre as possessões que compuseram o projeto português e é detentor do maior
acervo documental relativo ao período colonial do Brasil existente em Portugal
e fora do território brasileiro2.
Equipes de trabalho de diversos estados brasileiros, compostas em sua
maior parte por professores de universidades públicas federais e profissionais
da arquivística, foram organizadas e transladaram-se a Lisboa para realizar a
tarefa, imensa, de reordenar a documentação de suas respectivas capitanias,
que encotrava-se em diferentes estágios de organização. Este trabalho implicou
na leitura integral dos documentos, análise, reintegração de intens dispersos,
BERTOLETTI, Esther Caldas. “Brasil-Portugal, um mar oceano de documentos”. Brasil e Portugal. 500 anos de enlaces e desenlaces. Janeiro, Real Gabinete Português de Leitura, 2000. p.107.
1
Para conhecer as etapas já executadas do projeto no AHU, ver texto da nota 1; para uma descrição
da história, funcionamento e fundos no AHU, ver “enquadramentos institucional e documental”.
In: MARTINHEIRA, José Sintra. Catálogo dos Códices do Fundo do Conselho Ultramarino relativos ao Brasil existentes no Arquivo Histórico existentes no Arquivo Histórico Ultramarino. Rio
de Janeiro: Real Gabinete de Leitura; Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001.
2
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inclusão de documentos até então alocados em outras capitanias, cotejo de dados diversos e pesquisas complementares. Depois deste tratamento foi possível reordenar cronologicamente a documentação e proceder-se a sua descrição
sumária, através de redação de verbetes. Reorganizando, com cotas (notação)
novas, o acervo de cada capitania foi então integralmente microfilmado.
O catálogo que agora se apresenta ao público é o resultado do trabalho da equipe encarregada de organizar e sumariar a documentação da capitania do Rio Grande do Sul. Com coordenação da professora Susana Bleil
de Souza participaram as professoras Helen Osório e Ana Regina Berwanger,
todas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Coube a esta última a
redação da maior parte dos verbetes e, na etapa final do trabalho contou-se
com a ajuda de colegas da equipe de Pernambuco, as mestrandas Érika Simone
de Almeida Carlos Dias e de Maria Aparecida Vasconcelos Lopes. A revisão
cuidadosa de todos os verbetes foi realizada pela técnica superior do Arquivo
Histórico Ultramarino, Isabel Maria Ascensão Amado. Finalmente, os índices
e a lista de governantes foram elaborados pela professora Helen Osório e por
Rodrigo Weimer, acadêmico de História e bolsista de Iniciação Científica da
FAPERGS.
A documentação avulsa referente ao Rio Grande do Sul foi reordenada em 822 conjuntos documentais, muitos deles com dezenas de páginas, com
datas limites de 1732-1825, que microfilmados passam agora a ser disponibilizados em 16 rolos de microfilmes.
São predominantemente cartas régias, decretos, provisões. Alvarás,
portarias, requerimentos, cartas e ofícios, consultas, pareceres, cartas patentes
e passaportes que materializam as relações político-administrativas entre a metrópole e a capitania e traduzem-se na correspondência trocada entre a administração central, em Lisboa, e a administração da e na capitania em seus mais
diversos aspectos: o exercício do governo propriamente dito, a administração
fazendária, judiciária, militar e pessoal. E não só isso: apesar do caráter administrativo da documentação, encontram-se aí inúmeras fontes para o estudo da
economia e dos mais diversos aspectos da sociedade, através de riquíssimos
documentos anexos.
A capitania do Rio Grande de São Pedro do Sul foi, até 1807, subordinada e anexa à do Rio de Janeiro. Indispensável para seu estudo, portanto,
a consulta da vastíssima documentação desta capitania, bem como de outras
séries, que se relacionam com a expansão do império português e a demarcação de fronteiras com o império espanhol, como as Colônias do Sacramento e
Brasil Limites, do mesmo arquivo.
A capitania era denominada, na documentação, de forma mais ou menos extensa e diversa: Rio Grande, Rio Grande do Sul, Rio Grande de São Pe100
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dro, Rio Grande de São Pedro do Sul... Por esta razão, e para evitar confusões
com a capitania de Rio Grande do Norte, optou-se por manter a denominação
da série com o nome atual do estado, Rio Grande do Sul.
Os microfilmes e CD-ROM com a totalidade da documentação estão
disponíveis para consulta no Departamento de História do IFCH/UFRGS e no
Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul, depositários, em nosso Estado, deste
acervo. Democratiza-se fontes fundamentais para o estudo da história colonial
do Rio Grande do Sul.
Os mapas que ilustram esta edição são uma pequena parcela do acervo cartográfico do AHU – Arquivo Histórico Ultramarino.
Finda a tarefa, resta agradecer àqueles que possibilitaram a sua realização: à Fundação de Amparo à Pesquisa do Rio Grande do Sul (FAPERGS)
que financiou a estadia da equipe em Portugal, à Drª Maria Luísa Abrantes,
diretora do Arquivo Histórico Ultramarino e todos os seus funcionários, que
acolheram as equipes brasileiras e propiciaram condições de trabalho e camaradagem ímpares para sua execução; à Drª Esther Bertoletti, grande dinamizadora do Projeto Resgate; ao diretor do Instituto de Filosofia e Ciências
humanas da UFRGS, prof. José Vicente Tavares dos Santos, pelo empenho na
publicação do catálogo; à Jaqueline da Silva Oliveira, programadora visual,
cuidadosa profissional responsável pela editoração do catálogo e, finalmente,
ao Governo do Estado do Rio Grande do Sul, através da Secretaria da Cultura e
da Companhia Rio-grandense de Artes Gráficas (CORAG), que compreendeu
a importância e o alcance do projeto.
Explicação metodológica
A descrição dos documentos avulsos relativos ao Brasil Colônia existentes no Arquivo Histórico Ultramarino, realizadas por todas as equipes que compõe o Projeto Resgate, obedeceu às normas estabelecidas pelo próprio arquivo.
A documentação descrita neste catálogo integra a denominada Série
Brasil do Fundo Conselho Ultramarino. Dentro desta série, estabeleceu-se que
os documentos referentes às antigas capitanias do Brasil denominar-se-iam
sub-séries. A Capitania do Rio Grande do Sul é uma delas, e as datas limites de
seus documentos são 1732-1825.
Os verbetes descritivos dos documentos são compostos dos seguintes
dados, em seqüência, conforme o modelo preconizado pelo Arquivo histórico
Ultramarino: data crônica, data tópica, tipo documental, autor (cargo, títulos,
nome), destinatário (se for o caso, cargo, títulos, nome), assunto, observações
(língua, estada de documento ou outras), anexos, cota (notação) antiga e atual.
Uma definição dos tipos documentais mais usuais do administração
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portuguesa presentes na documentação do Brasil colonial pode ser encontrado no “Glossário de espécies documentais”, da professora Heloísa Liberalli
Belloto, constante do catálogo da Capitania de São Paulo3.
Os índices documental, toponímico, onomástico e de assuntos foram
elaborados para auxiliar e agilizar o trabalho do pesquisador. Toda a indexação
realizada referencia-se ao novo número que os documentos receberam no Arquivo Histórico Ultramarino, ao final da nova organização da documentação.
No índice toponímico uniformizou-se as deferentes grafias do nome
de alguns lugares, diversidade esta que poderá ser recuperada na consulta ao
próprio documento. Neste índice optou-se, ainda, por especificar quando o topônimo foi o local de emissão do documento.
No índice onomástico, com entradas por sobrenome, incluiu-se também, a entrada por título nobiliárquico, e optou-se por referir, junto aos nomes, apenas os cargos de governadores, vice-reis e secretário de estado de
marinha e ultramar.
Um índice de assuntos nunca será exaustivo, pois os interesses dos
investigadores variam no tempo. Procurou-se, com o desdobramento das
remissões, dar um panorama o mais amplo possível dos temas passíveis de
serem encontrados na documentação. Os índices são um instrumento de trabalho útil, assim como os verbetes, mas nunca poderão substituir a consulta
direta aos documentos.
Bibliografia
CAMARGO, Antonio Eleutherio de. Quadro Estatístico e Geographico da Província de São Pedro do Rio Grande do Sul. Porto Alegre:
Typographia do Jornal do Commercio,1868.
CESAR, Guilhermino. História do Rio Grande do Sul: período colonial. Porto Alegre: Editora Globo, 1970.
FORTES, Amyr Borges, WAGNER, João B. Santiago. História Administrativa judiciária e eclesiástica do Rio Grande do Sul. Porto Alegre:
Editora Globo, 1963
MACEDO, Francisco Riopardense de, HESSEL, Lothar Francisco,
MEIRELLES, Marion Nunes de. “Correspondência Passiva da Câmara
BELLOTO, Heloísa Liberalli. “Glossário de espécies documentais”. In: ARRUMA, José Jobson
de Andrade (coord). Documentos manuscritos avulsos da Capitania de São Paulo (1644-1830).
Catálogo 1. Bauru, SP: EDUSC; São Paulo, SP: FAPESP: IMESP 2000.
3
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de Vereadores de Porto Alegre; 1764-1846 e 1804-1879”. Cadernos –
PMPA/SMEC, 2, Porto Alegre: Prefeitura Municipal de Porto Alegre
– SMEC, 1976.
QUEIROZ, Maria Luiza Bertuline. A vila do Rio Grande de São Pedro,
1737-1822. Rio Grande: FURG, 1987.
SILVA, Augusto da. Rafael Pinto Bandeira: De Bandoleiro a Governador. Relações entre os poderes privado e público no Rio Grande de
São Pedro. Porto Alegre: 1999 (Dissertação de mestrado – PPG história
– UFRGS).
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8. Pernambuco
Introdução
Maria do Socorro Ferraz Barbosa
Vera Lúcia Costa Acioli
Virgínia Maria Almoêdo de Assis
A publicação dos três volumes do Catálogo dos documentos manuscritos relativos à Capitania de Pernambuco e deste quarto volume, é o resultado
do Projeto Resgate e do trabalho de historiadores, pesquisadores e arquivistas,
que, durante alguns anos, se debruçaram sobre os papéis avulsos dessa Capitania, no Arquivo Histórico Ultramarino, em Lisboa. Fruto do acordo bilateral
entre Brasil e Portugal, o Projeto Resgate tem como objetivo principal recuperar a memória escrita dos espaços recortados do território brasileiro, sinalizados como capitanias e que, na atualidade, comportam alguns dos Estados da
República Federativa do Brasil. De imediato, Pernambuco aderiu à iniciativa
para salvaguardar documentos, que o passado nos legou e que permitem reconstruir nossa história, elucidar pontos controversos, ou ainda, revisar idéias
e conceitos em torno dos homens, das mulheres e dos acontecimentos presentes na historiografia do Brasil colônia.
Em muitos de seus aspectos – o social, o econômico, o político, o
religioso, o cultural e tantos outros, as informações, que se conhecia sobre
Pernambuco Colonial são complementadas com o opulento documentário manuscrito das caixas avulsas do Arquivo Histórico Ultramarino; acumulado por
mais de quatro séculos; este acervo, que faz o caminho da volta na forma contemporânea de microfilme e Cd-Rom, enriquece a memória do nosso Estado e
permite uma compreensão mais acurada do presente.
Vale ressaltar a ação e influência que Pernambuco exerceu no passado,
de forma direta, sobre uma vasta extensão do território brasileiro; daí porque
muitas informações sobre a capitania de Pernambuco são imprescindíveis à
compreensão da história de toda a região Nordeste e parte da região Norte.
A partir do século XVIII, o território de Pernambuco sofreu mutilações. De
capitania mais extensa do Brasil a uma província de médio porte, no século
XIX e dessa categoria para um estado de pequena extensão territorial. A carta
topográfica de José Gonsalves da Fonseca, datada do Recife a 31 de março de
1766, permite melhor visualizar essa extensão. A planta pertence ao arquivo
de desenhos do Comando Geral de Engenharia, de Lisboa, e, uma cópia aquarelada, desta planta, existe no Laboratório de Pesquisa e Ensino de História da
Universidade Federal de Pernambuco. Aparecem nesta planta as capitanias que
compunham o governo de Pernambuco – a capitania sede e suas anexas – na
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segunda metade do século XVII. Sua jurisdição estendia-se desde as proximidades do rio Parnaíba, na fronteira com o Maranhão, até a barra de Carinhanha,
no rio São Francisco, abrangendo terras da Bahia. Equivale ao que é, mais ou
menos, na atualidade, a maior parte do Nordeste do Brasil.
Da mesma forma que a coroa portuguesa decidiu pela anexação ao governo de Pernambuco das capitanias da Paraíba, do Rio Grande do Norte e do
Ceará, ao longo dos anos de 1656, 1701 e 1755, respectivamente, por julgar
não terem elas condições de autodefesa, resolveu igualmente desanexá-las
uma a uma: Ceará em 1711, a Paraíba em 1799 e o Rio Grande do Norte em
1821. O Piauí desde as suas origens esteve sujeito a Pernambuco, tendo sido
desmembrado o seu território em 1715, quando foi incorporado ao do Maranhão, no tocante à jurisdição civil. A capitania de Itamaracá foi incorporada a
de Pernambuco e parte das terras do atual Estado das Alagoas os pernambucanos perderam após a revolução de 1817, pois Alagoas fazia parte do Governo
de Pernambuco até esta data, como uma ouvidoria. Em 1824, após a derrota da
Confederação do Equador, Pernambuco perdeu a comarca do São Francisco,
inicialmente para Minas Gerais e depois para a Bahia. As razões alegadas para
os vários mutilamentos se restringiram às ‘razões de estado’, ficando o seu
território com a configuração que ora se apresenta.
O historiador José Antônio Gonsalves de Melo costumava dizer que
a história de Pernambuco devia ser estudada em quatro séculos, não só em
relação a sua própria área geográfica, como em relação àquela outra área que,
não sendo terra pernambucana é, entretanto, terra até onde chegou o esforço
do pernambucano.
O Projeto Resgate na sua fase organizacional desmembrou da Capitania
de Pernambuco a documentação pertinente às outras capitanias, consideradas
então suas anexas, tais como a Paraíba, o Rio Grande do Norte, o Ceará, as
Alagoas, a Comarca do São Francisco, áreas que durante séculos foram subordinadas à jurisdição de Pernambuco ou que faziam parte integrante de seu território. Esta documentação foi igualmente trabalhada pelas equipes correspondentes às respectivas capitanias. Entretanto, para o pesquisador do período, as
informações serão mais completas e compreensíveis quando se tem o conjunto
do conhecimento sobre Pernambuco e suas anexas. Governar Pernambuco, até
o início do século XIX, significava ter responsabilidades com a administração,
justiça, defesa, abastecimento e promover a ocupação tanto na Capitania de
Pernambuco como em suas anexas.
No que se refere diretamente aos documentos manuscritos avulsos de
Pernambuco, a primeira preocupação ao elaborar o catálogo, os índices, as
explicações metodológicas e análises de determinados temas específicos, foi a
de preparar alguns instrumentos de trabalho que, reunidos em quatro (04) vo106
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lumes, oferecessem facilidades de acesso e consulta para um público nem sempre especializado. Assim é que se pautando na experiência docente, viu-se não
ser suficiente, para atender aos interessados, às vezes estranhos ao mundo dos
manuscritos, ao da organização político-administrativa colonial ou até mesmo
à esfera do vocabulário antigo, apenas a indicação de índices temático, onomástico e toponímico. Portanto, optou-se por dar, ao interessado em pesquisa,
algumas indicações e informações sobre o período trabalhado, como também
explicações sobre a própria documentação e metodologias utilizadas.
Como se sabe, o ordenamento que a metrópole portuguesa tentou impor para a organização político-administrativa do Brasil, tomou forma em comunicações escritas como ofícios, bandos, alvarás, ordens régias e outros, ou
seja, documentos de ação do Estado colonizador, voltados às suas colônias de
ultramar, particularmente ao Brasil.
Observa-se da leitura dos documentos do Arquivo Histórico Ultramarino que ouvidores, donatários, loco-tenentes, advogados, procuradores,
governadores e mesmo o homem do povo, através dos seus procuradores e,
principalmente, dos escrivães, tiveram voz, ainda que nem sempre voto, pois
seus discursos escritos, por vezes nem chegaram às mesas dos conselheiros e,
menos ainda, tiveram solução de continuidade. Não se pode, contudo, escamotear o fato de que a qualquer morador era dada a liberdade de se corresponder e
reivindicar o que julgava ser seu direito frente à Coroa. O “povo” da capitania
de Pernambuco pediu certa feita ao rei que as sobras das “imposições pagas”
em Pernambuco, não fossem enviadas à Bahia, por ferir o que ele próprio instituíra através das Cartas de Doação e do Foral, passados ao donatário Duarte
Coelho e confirmados para os seus sucessores. (Verbete 83). O que chama a
atenção nessa correspondência é antes de tudo a consciência de que, apesar
da aceitação de uma relação de vassalagem junto ao monarca, os colonos de
Pernambuco não abdicaram de fazer valer os seus direitos.
Deve-se notar também que, embora o Conselho Ultramarino detivesse
uma grande parcela do poder decisório e na maioria das vezes seus pareceres
fossem acatados pelo monarca e pelas demais autoridades envolvidas nos processos objetos das consultas, às vezes esses pareceres provocavam conflitos e
polêmicas no âmbito da colônia. É o que se percebe pela leitura do aviso do secretário do Estado da Marinha e Ultramar, Martinho de Melo e Castro, ao presidente do Conselho Ultramarino, conde de Resende, Antônio José de Castro,
sobre o requerimento do bispo de Pernambuco, D. Frei Diogo de Jesus Jardim,
no qual reclama dos insultos e violências praticados contra ele por uma Confraria e da forma “ilícita e ilegal” pela qual o Conselho Ultramarino aprovou o
Compromisso da dita Confraria. [1794, fevereiro, 8, Lisboa]. A confusão dos
papéis entre esses institutos gerou um processo que perdurou por aproximadaHISTÓRIA DIGITAL - ANO II - Nº 02 - 2008
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mente nove anos, obrigando a Irmandade do Santíssimo Sacramento de Santo
Antônio do Recife a manter por todo este tempo um procurador seu na corte.
Subjacente às observações do bispo, deve-se levar em conta que não
fazia parte das atribuições do Conselho aprovar Compromisso de Irmandades,
assunto que era da competência da Mesa da Consciência e Ordens, tribunal
eclesiástico ao qual cabia tratar das questões ligadas a organização da Igreja
na Colônia, se bem que por Provisão de 2 de agosto de 1743 o rei ordenara
que as licenças para fundação de novos conventos e hospícios em Pernambuco
fossem expedidas pelo Conselho Ultramarino e não pela Mesa da Consciência
e das Ordens. (IAHGP, Ordens Régias, Livro 16, fl. 150-152). Isto pode significar uma tentativa de esvaziamento das competências da Mesa da Consciência,
ou apenas pode se tratar de uma estratégia localizada. Outra possibilidade pode
ainda ser aventada, ou seja, a fluidez dos limites das esferas de competência
dos diversos órgãos da administração portuguesa no período assinalado pode
ter sido causa para não observação do trâmite adequado.
Outras queixas são encontradas em Consultas do Conselho. Em 1786,
por exemplo, o governador da capitania de Pernambuco, José César de Menezes, reclama do procedimento deste órgão contra sua pessoa, por certo uma
queixa relacionada a problemas de jurisdição, uma vez que se refere a provimento de postos militares e problemas ocorridos na vila de Goiana.
Para o Conselho Ultramarino seguiam informações do cotidiano da Colônia que chegam ao pitoresco, caso da remessa de “uma bola que foi extraída
de um bezerro”, ou ainda à queixa de um morador reclamando ao rei do fato
de uma desconhecida ter repousado em propriedade sua alugada a um terceiro.
(Verbete 17283), ou mesmo o pedido de licença para um português receber a
visita de sua irmã residente em Lisboa.
Chama igualmente a atenção o conteúdo da Ordem Régia, datada de
Lisboa de 30 de abril de 1717, enviada ao provedor da Fazenda da Capitania de
Pernambuco, referindo-se à Consulta do Conselho Ultramarino sobre a petição
“do glorioso Santo Antonio”, na qual se alega que “tendo muita quantidade de
anos de serviços não cobrava mais que a praça de soldado”. Seguindo o parecer do Conselho o monarca resolve elevar a patente do santo de soldado para
tenente com vencimentos de vinte e sete tostões por mês, soldo considerado
justo “para um soldado tão glorioso”. Com efeito, Santo Antonio ocupou alguns postos militares no Recife: foi soldado no antigo Forte do Buraco, promovido a tenente pela decisão supracitada, o que rendia aos frades franciscanos
soldos, segundo notícias diversas, até o século XIX. Também em Igarassu,
em 1754 a Câmara pedia ao Conselho Ultramarino para que Santo Antonio
recebesse o título de vereador perpétuo com as devidas propinas4. Para um
4
A propina constituía-se num direito adicional de ordenado ou de soldo.
108
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santo com tantos méritos e folha de serviços prestados, não é de se estranhar
que em 1685, o então governador da Capitania de Pernambuco tenha baixado
uma ordem para que o santo fosse tomar parte na guerra contra os Palmares,
uma vez que recebia pagamento para isso, o que assim aconteceu. A imagem
do santo acompanhou os soldados, só regressando terminada a destruição do
conhecido quilombo.
O planejamento inicial do trabalho estava restrito à publicação do Catálogo, que incluía apenas informações pertinentes à composição de um trabalho
dessa natureza, a exemplo do que foi feito por historiadores de outras capitanias. Entretanto, a vastidão da temática, a grandeza, quantidade e qualidade do
acervo de Pernambuco e ainda a necessidade de explicitar certos conceitos, impuseram oferecer ao público um trabalho mais completo. Daí, ter-se produzido
um estudo específico que incluísse a metodologia utilizada, que explicitasse a
complexidade da política administrativa em sua dinâmica, por se diferenciar
das demais capitanias.
Nos três primeiros volumes os Verbetes estão ordenados cronologicamente: no primeiro de 1590 a 1757, no segundo de 1757 a 1798 e no terceiro
de 1798 a 1825.
Neste quarto volume encontram-se textos de História Colonial, Explicações Metodológicas e Referenciais de Pesquisa e os Índices do Catálogo dos
Documentos Manuscritos Avulsos do Arquivo Histórico Ultramarino referentes à Capitania de Pernambuco. Nele, procurou-se reconstituir vários temas
importantes para a compreensão do processo colonizador implantado no Brasil, mais especificamente no Nordeste, sem, contudo, exauri-los ou pretender
dar a palavra final sobre os mesmos. Desde um estudo sobre os descobrimentos
portugueses até comentários históricos acerca das fontes do Arquivo Histórico
Ultramarino; estas reflexões podem servir de sugestões para o desenvolvimento de outras pesquisas e, consequentemente, sinalizar para a produção de trabalhos científicos que poderão enriquecer a historiografia colonial. Salienta-se
no desenvolvimento deste trabalho a elaboração de Gráficos e Tabelas, que
ilustram e sistematizam os dados fornecidos pelo texto, destacando-se a dos
Tributos cobrados na Colônia pela Coroa Portuguesa, o que oportuniza análise
sobre o desenvolvimento do processo histórico da administração fazendária.
Compondo ainda este volume, foram descritos os diversos órgãos da
administração portuguesa, transpostos ou adaptados para a colônia e, também,
apresentou-se a institucionalização do poder local, inclusive do período do domínio holandês. Tais informações facilitarão o entendimento da administração
e da burocracia implantados na colônia. A análise paleográfica dos manuscritos
esteve sob a responsabilidade das professoras Virgínia Almoêdo e Vera Acioli,
quando se fez necessária. Também apresentamos uma seção, que por sua vez
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oferece informações subsidiárias à pesquisa histórica, como por exemplo, uma
relação dos Reis de Portugal, glossário de vocábulos e de cargos e ofícios, relação dos conselheiros do Ultramarino, relação dos governadores gerais, relação
dos Engenhos e Fortificações de Pernambuco dentre outras informações.
Na documentação do Arquivo Histórico Ultramarino encontram-se inúmeras iconografias relativas à capitania de Pernambuco, como Plantas, Desenhos e outras imagens que revelam, entre outras coisas, aspectos da urbanização da cidade do Recife. Entretanto, problemas alheios aos organizadores/
autores impossibilitaram a publicação de um volume dedicado exclusivamente
a este tema, o que esperamos editar brevemente.
Não finda aqui a missão do Projeto Resgate – Capitania de Pernambuco; resta decodificar, interpretar e catalogar todos os anexos documentais,
que apenas têm seus números registrados junto ao documento principal, o que
fornece uma idéia distante do conteúdo integral do conjunto de manuscritos,
contidos no processo, e só então terá o pesquisador à sua disposição a relação
completa de toda a coleção.
Esses repertórios documentais possibilitam, além da reinterpretação
do processo histórico vivenciado pela colônia, o desenvolvimento de novas
e substanciosas pesquisas, aqui consideradas desafios ou temáticas a serem
aprofundadas.
Pedidos de autorização para embarque de engenheiros estrangeiros para
servirem na colônia são muitos. Registrem-se aqueles que vieram de Portugal e
aqui trabalharam como profissionais da arquitetura civil e das fortificações. Há
referências em grande número de documentos sobre a atuação de Francisco de
Frias de Mesquita, Cristóvão Álvares, João Coutinho, Diogo da Silveira Veloso e João de Macedo Corte Real. E ainda sobre os franceses Francisco Dumont
e Pedro Garsim “engenheiros de fogo”. O primeiro deles é o mais antigo engenheiro que serviu em Pernambuco e veio com a incumbência de construir o
Forte do Picão ou da Lagem sobre os arrecifes, junto à barra do Porto do recife,
tarefa que concluiu a contento5.
As plantas e cartas geográficas nos primeiros 100 anos da colonização
eram de autoria dos engenheiros militares portugueses, formados pelas aulas
de Arquitetura, nas quais recebiam treinamento para realização de trabalhos
cartográficos.
Até à ocupação holandesa, em Pernambuco, os engenheiros eram geralmente oficiais de artilharia, superiores ou subalternos, e só depois da restauração em
1654, é que começou a haver engenheiro permanente na capitania, especialmente
incumbido das obras de fortificação do litoral. Mais tarde o cargo foi suprimido.
5
PEREIRA DA COSTA, Francisco Augusto. Anais Pernambucanos, 10 vols., Coleção Pernambucana 2a fase, Recife-FUNDARPE, 1983/1985, p. 491-492
110
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Só a partir de 1696 passaram a se formar engenheiros, de início na
Bahia e em Pernambuco, e depois, no Rio de Janeiro e no Pará.
Em 1699, por Ordem Régia de 15 de janeiro foi criada em Pernambuco uma aula de fortificação, na qual os capitães-engenheiros eram obrigados
a lecionar com admissão de quem quisesse frequentar, mas sendo soldados,
receberiam além do soldo ordinário mais meio tostão por dia, e não sendo,
receberiam igual diária. Era a proposta da metrópole para formar engenheiros
e evitar despesas com a vinda desses profissionais do reino. As aulas eram mais
frequentadas por pessoas que ocupavam postos militares.
Também muitos negociantes ingleses que traziam cargas de fazendas para
trocá-las por açúcar são mencionados, tais como, Henrique Uchines, Henrique
Cottomer, Thomaz Quempe, Thomaz Helcut, Roberto Parquer, Roger Brum.
Identificar o papel das mulheres na administração da Capitania é uma
questão que ainda está por merecer estudos mais aprofundados. Cabe aqui fazer notar que, embora os verbetes não destaquem mulheres como gestoras na
administração da capitania, a exemplo de Brites de Albuquerque, mulher do
primeiro donatário, que como se sabe assumiu o governo de Pernambuco nas
ausências do marido e filhos, muitas vezes depara-se com mulheres proprietárias de ofícios públicos, o que abre um leque de possibilidades para o estudo
de gênero e do próprio papel assumido por mulheres na administração pública
do Brasil colonial, mesmo quando as leis lhes consignavam estatuto social
diferenciado, impedindo-as de reconhecimento em registro público, exceção
para os testamentos e inventários.
Encontram-se entre os papéis avulsos, manuscritos, do fim do século
XVIII e começo do século XIX, inúmeras petições de mulheres, que estando
em Portugal, querem se unir aos seus maridos na Colônia e solicitam permissão ao Rei para viajar com seus filhos; outros pedidos, também de mulheres,
são na direção oposta: que o Rei permita que os seus homens voltem a Portugal
por motivo de estarem doentes ou mesmo por razões familiares.
Estes são alguns temas que a documentação dos papéis avulsos oferece
ao estudioso como desafios de novas pesquisas. Não é exagero afirmar que
ela encerra uma rica série de informações sobre todos os aspectos da história
pernambucana de 1590 a 1833, o que a leitura dos verbetes demonstra cabalmente.
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Anotações de História Colonial
Maria do Socorro Ferraz Barbosa
Vera Lúcia Costa Acioli
Virgínia Maria Almoêdo de Assis
1. Atlântico: o mar salgado
Quando o poeta português Fernando Pessoa formulou a célebre expressão “Navegar é Preciso, Viver não é preciso”, a frase passava longe do
sentido denotativo. Juntando sensibilidade histórica e lirismo, Pessoa sintetiza
magistralmente a euforia portuguesa à época da expansão marítima. Navegar
era preciso? Certamente. A necessidade de novos mercados e conhecimentos
afirmavam que sim. Entretanto, navegar era necessário e deveria ser preciso,
exato, científico, como buscava o homem moderno. Eis o sentido da expressão:
navegar deveria ser algo controlado em meio às incertezas da vida, aquilo que
não se pode prever nem controlar, aquilo que era impreciso.
É com esse espírito que o europeu moderno lança-se às águas em sua
inigualável aventura. Ambiciona consolidar sua capacidade de realização enquanto ser humano e resolver suas inquietações seja na esfera econômica, política ou mística. O oceano Atlântico é a extensão geográfica que simboliza a
manifestação de tal energia, é onde deságua a enxurrada das curiosidades e
paixões do homem renascentista.
A história do Atlântico começa no século X. Já nessa época, os escandinavos faziam sua expansão marítima para a Inglaterra, Irlanda, França e Ibéria.
Desenvolveram uma rota de navegação para o poente que os conduzia à Irlanda e a Groenlândia. Atingiram inclusive um continente, que seria, mais tarde,
a América do Norte. Essa rota durou apenas um século, deixando algumas
colônias nas ilhas do norte.
Nos séculos seguintes, o Atlântico terá as dimensões da orla ocidental
da Europa. Dimensões pequenas: o canal entre Inglaterra e França; e o mundo
costeiro de pescadores, marinheiros e mercadores da Península Ibérica e do
Mar do Norte. A partir dessas dimensões, a expansão se dá em duas direções:
Para o norte, no século XV, com a Hansa Teutônica, que vai desde o Báltico
até o mundo ibérico; e para o sul, nos finais do século XIII, com a marinha e as
rotas italianas penetrando o Atlântico. Nos séculos XIV e XV, o ocidente peninsular adquire protagonismo nessa expansão e tenta descer à costa atlântica.
Até então, o oceano acabava nas Canárias.
É no Atlântico onde se dá o alargamento de fronteiras, a expansão do
mundo conhecido. No período entre os séculos XI e XIV, fermentam-se as conHISTÓRIA DIGITAL - ANO II - Nº 02 - 2008
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dições que norteiam o processo de expansão: crescimento demográfico, uma
reorganização dos vínculos de sociabilidade (novas relações entre indivíduos
e poderes) e um progresso econômico com o renascimento comercial. Essa
abertura da sociedade européia vai ser testemunhada nas águas atlânticas.
O oceano é espaço de fronteiras e da dupla dimensão: é limite e convite,
contenção e esperança, consciência do espaço que se acaba e presunção do que
está para além. Essas são ambivalências presentes, no cotidiano, no real e no
imaginário das pessoas. A superação de todos os obstáculos será fruto de um
processo lento, múltiplo, complexo e nem sempre linear. De ruptura em ruptura, evolui a partir dos escombros das construções carolíngias, fechadas sobre
sua continentalidade.
Refletir sobre a Ciência na época moderna e os descobrimentos é não
perder de vista a questão mais presente na Europa desde o século XI: o problema da liberdade. Para Fernand Braudel, “liberdade” é a palavra-chave e “por
liberdade, devemos entender todas as formas, incluindo as abusivas”.
No início do século XV, quando na Itália se traduziu para o latim o livro
de Ptolomeu – Geografia – o modo como o mundo era imaginado e representado sofreu alterações. A astronomia tomou um novo impulso e seus estudos se
vincularam à navegação e à reforma do calendário Juliano, há muito em descompasso com o solar. Desde a idade do bronze, a astronomia e a matemática
eram utilizadas na agrimensura e na preparação de mapas e calendários. Os
gregos e os árabes aperfeiçoaram os conhecimentos dessas duas ciências, que
nos tempos modernos foram aplicadas aos descobrimentos geográficos. Os homens cultos do quattrocento e do cinquecento aprenderam que os gregos e os
romanos haviam se utilizado da matemática para observar a Terra. Entretanto,
os descobrimentos trarão uma novidade: agregar à geografia a descrição que
os humanos fazem do que vêem nas viagens. Nasce aí a geografia descritiva. A
experiência humana auxiliará, quase com o mesmo peso dos cálculos matemáticos, as grandes navegações.
A torça do mundo medieval pelo moderno foi lenta. Essa transição esteve dominada por uma combinação de cientificismo e elementos ocultos. A
visão de mundo escolástica não foi rejeitada unanimemente e praticamente, até
o século XVII, ainda era uma presença forte diante das informações e experimentos científicos que as navegações e os descobrimentos possibilitaram.
A concepção medieval do cosmo era impregnada pelo conceito de hierarquia, que por sua vez estava agregado à idéia de que o universo era povoado,
ou mesmo composto de seres que se encadeavam em ordem de perfeição decrescente a partir de Deus, na periferia do mundo, até os entes mais imperfeitos
da Terra. Plantas e animais serviam ao homem e este a Deus, que delegava
poderes aos seres angélicos, motores dos corpos celestes, observadores e guias
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dos acontecimentos da Terra: os anjos, dispostos em uma rede de nove ordens,
foram aceitos pelos sábios medievais no século V como impulsionados pelas
nove esferas celestes.
Grande parte da ciência da época era baseada na idéia de revelação, na
qual todos os aspectos da vida real estavam inter-relacionados de forma mística, consequentemente as ações humanas eram vistas com muitas restrições e
sujeitas à fortuna ou às bênçãos divinas.
As navegações, veiculando a expansão européia e se dirigindo ao novo
mundo, a América, ou ao mais velho dos mundos, Índia ou China, possibilitaram à uma parte da humanidade conhecimentos sobre outras terras, outras
gentes, outras plantas, outros animais, outros climas...e outras fantasias.
O imaginário do medievo perdurará além desse período e fará parte da
episteme renascentista. Após as conquistas da Costa d’África, as descrições sobre os homens de um só olho na testa e babuínos de barba povoam o imaginário dos homens da época moderna. A idéia do Atlântico também se fundamenta
nesse imaginário até que as experiências diluam o fantástico.
As mudanças na forma de pensar durante os séculos XV e XVI em
relação a esta Europa medieval e escolástica, deveu-se em grande parte aos
estudos inovadores de Kepler e Galileu. O primeiro na Alemanha e o segundo
na Itália. Historiadores das Ciências, como Mason, explicam que isto ocorreu
devido a uma alteração no tipo do homem cientista. Kepler e Galileu foram
cientistas profissionais, pagos por príncipes e ocuparam cargos universitários.
Diferentes que eram dos estudiosos escolásticos e também dos cientistas do
século XVII. Estes eram novos ricos, provinham de famílias abastadas, proprietários de terras ou comerciantes, eram essencialmente amadores. Entre estes figuraram Francis Bacon, na Inglaterra, e René Descartes, na França. Isaac
Newton fora uma exceção.
Os primeiros cientistas modernos afastaram-se dos filósofos antigos e
dos escolásticos medievais para procurarem a verdade científica na sua própria
experiência. Esta atitude combinava com interesses de governantes que viam
na expansão européia o remédio para os “males do presente e as esperanças do
futuro”, parodiando Tavares Bastos.
A aliança entre ciência e empirismo possibilitou que os descobrimentos
fizessem parte de um programa moderno de exploração. Conhecer a direção
dos ventos, conhecer o Atlântico, suas correntes, perceber as dificuldades que
se apresentam pela sua forma alongada na direção norte-sul, ao contrário do
Mediterrâneo, do Pacífico e do Índico. O Atlântico, essa grande massa d’água
que separa dois continentes, que se aproximam na região equatorial e se dividem em duas partes abertas para os pólos, para ser explorado e dominado
econômica e politicamente, foi antes de tudo estudado, ilha a ilha, até que os
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navegadores conhecessem o modo mais seguro de navegar.
Dominar o Atlântico significava, dentro de um projeto maior, dominar
o Índico e este banhava uma rede de comunicações que conectava as costas de
Sofala (país do ouro) com o Deccan (país da pimenta), o Golfo Pérsico com
o Mar Vermelho e com a Índia e a Insulíndia – Sumatra, Java e o extremo
oriente. No Índico, sem estrela polar e sem o Cruzeiro do Sul, navegava-se à
noite com a marcação de outras estrelas de grande visibilidade, mas isso era
uma solução local e até chegarem lá os ocidentais – portugueses e espanhóis
deveriam dominar o Atlântico.
No século XIV, a Europa se relacionava regularmente com o espaço asiático incluindo a Índia, China, Pérsia e Arábia, através do Magreb e do Egito.
Articulava-se com o comércio guineano do ouro, de escravos e da malagueta,
que complementava o comércio do Magreb – Egito. Essas rotas de comércio
existiam entre esses espaços geográficos – o asiático e o africano – e a Europa
tinha para com eles uma certa dependência. O sul do continente africano isolado pelas florestas equatoriais continuará sem comunicações regulares com
esses sistemas. As duas costas, atlântica e índica, também continuarão sem
tratos regulares com os ocidentais ou mesmo com o sistema guineano – Magreb até que as navegações portuguesas costeando a África, façam a ligação
com a Europa e posteriormente com a América. Esta conexão, entretanto, não
será feita no sentido de articular os sistemas descritos entre si, mas para apoiar
os novos negócios, as novas rotas comerciais e a nova correlação das posições
políticas dos impérios.
O sistema empírico-científico posto em prática no Mediterrâneo e aperfeiçoado pelos portugueses nas costas da África permitiu a absorção também,
dos conhecimentos empíricos dos navegantes árabes. Pilotos árabes, malaios,
e chineses ajudaram os portugueses na conquista do oriente. Senão, como se
poderia explicar uma conquista tão rápida de civilizações tão desenvolvidas e
antigas e um pronto domínio do Oceano Índico?6 Pode-se dizer também que
os portugueses já haviam assimilado muitos conhecimentos sobre o oriente e
até a ciência desta parte do mundo, em suas relações com a Itália, com o Magreb e com o Egito. Aplicaram esses conhecimentos nas suas aventuras pelo
Atlântico. Portanto, insisto que o domínio do Atlântico estava inserido nesse
programa expansionista moderno, objetivo primeiro dos ibéricos.
É compreensível que o Infante D.Henrique dando o tratamento às navegações como um empreendimento nacional tenha reunido navegadores, cartóEm geral o capitão de um navio português apenas exercia um poder militar, judiciário e administrativo. A manobra é comandada pelo Mestre e principalmente aos pilotos de 1º e 2º cabem a
responsabilidade das manobras audaciosas. Alguns marinheiros experimentados em viagens ascenderam a pilotos.
6
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grafos, astrônomos, matemáticos e físicos em Sagres, no ano de 1420, com o
objetivo de responder, através de métodos científicos, aos desafios que as navegações apresentavam7. Instala no Cabo de São Vicente um observatório astronômico. Nesse núcleo, as teorias de Ptolomeu são substituídas pelas de Copérnico8. Estudos são realizados para calcular a circunferência terrestre e preparar
mapas das terras e mares explorados. Aí, se encontraram matemáticos alemães,
cartógrafos italianos, navegadores portugueses, genoveses e castelhanos.
Os navegadores enfrentavam grandes extensões oceânicas. Os cientistas da época tinham feito uma estimativa da circunferência terrestre menor do
que a realidade e queriam voltar ao mesmo ponto numa outra viagem; para tanto, tornava-se imprescindível o conhecimento de métodos que determinassem
a posição de um navio em alto mar.
As cartas marítimas e os mapas deveriam responder aos seguintes problemas: como determinar posições relativas de pontos dados sobre a superfície
da terra; e como representar a esfericidade da terra em um mapa plano.
Para resolver a primeira questão, os cientistas deveriam conhecer processos de medição das longitudes e latitudes dos lugares. A medição da latitude
de um ponto ao norte ou ao sul do Equador era já do conhecimento dos gregos
e os ocidentais já haviam se apropriado dessa prática: durante o dia media-se
pela altura do sol, nos dois hemisférios; durante a noite, media-se pela altura
da estrela Polar no hemisfério norte, mas, no hemisfério sul não se tinha referência, até quando o Cruzeiro do Sul foi observado.
A medição da longitude era mais completa. O historiador das Ciências
S.F.Mason afirma que na época dos descobrimentos a longitude podia ser estimada pela medida das diferenças entre as horas locais dos pontos em questão.
Por exemplo, na Sibéria quando o sol está se pondo, na América está nascendo e
é meio dia na Inglaterra. O navegador poderia obter a hora local no ponto em que
ele estivesse, com o auxílio de um quadrante solar, examinando o sol (caso fosse
dia) e à noite pela rotação das estrelas circumpolares, ex.: as da Constelação da
Ursa Maior. Mas todos esses métodos eram ainda muito pouco precisos.
Após inúmeras tentativas dos cientistas da época, o segundo ponto conseguiu ser resolvido graças aos estudos do agrimensor e cartógrafo Gerard
Mercator em 1569, flamengo e discípulo de Gemma Frisius, professor de matemática em Louvin e cosmógrafo da corte do Imperador Carlos V. O método
A capacidade de uma agulha magnetizada apontar o Norte parecia magia e por essa razão os
marinheiros tinham inicialmente receio dos seus poderes. A bússola era consultada pelo capitão do
navio na casa de navegação quase em segredo e longe dos olhares dos marinheiros. D. Henrique
combateu essas superstições e habituou os seus navegadores ao uso cotidiano da bússola.
7
8
Depois complementadas e melhoradas por Tycho Brahe e Kepler
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de Gerard Mercator era o seguinte: representava os meridianos de longitude
por paralelas eqüidistantes, e as latitudes por parcelas perpendiculares aos
meridianos. Como as linhas de latitude se espaçavam cada vez mais à medida
que se aproximavam das regiões polares, os graus de latitude eram aumentados na mesma proporção que os de longitude9.
Os descobrimentos realizados no Atlântico sul e ao oeste encorajaram
os ingleses a organizarem núcleos de estudos matemáticos e a reunirem pilotos como o genovês João Cabotto. Em 1753, John Dee, consultor técnico da
Muscovy Company e dos viajantes da China, instruiu Richard Chanceller a
encontrar uma passagem nordeste para a Rússia e, em 1756, instruiu a Martin
Frobisher a buscar à noroeste uma passagem para a China.
Países como Inglaterra e França que haviam obtido lucros com os descobrimentos desenvolveram uma ciência aplicada, financiada pelos comerciantes e pelas companhias mercantis.
O desenvolvimento científico da época não foi restrito a um ou dois
países, embora a política de segredos tenha mantido por um certo tempo alguns “achados” fora da circulação das informações. Por exemplo: Rui de Pina
e Resende esconderam a notícia da empresa de Bartolomeu Dias; a viagem
de Covilhã e Afonso de Paiva, por terra, ao oriente, como também o projeto
de D.João II de enviar à América uma armada comandada por D.Francisco de
Almeida, foi guardada a sete chaves. Igual sigilo se fez da possível viagem de
Duarte Pacheco Pereira ao Brasil, antes de Cabral. Felizmente, Veneza espionava e os embaixadores enviavam suas notícias. Porém, foi no conhecimento científico que Portugal se apoiou tanto para realizar os “descobrimentos”
quanto para garanti-los.
Na cronologia dos descobrimentos portugueses que antecederam ao
Tratado de Tordesilhas assinalamos: Ceuta, em 1415, ilhas da Madeira, 1418,
uma expedição às Canárias, em 1424. A Espanha reclama e o Papa intervém
dando direito a Portugal apenas ao domínio das ilhas pagãs do arquipélago das
Canárias, não a todas. Em 1427, os portugueses chegam aos Açores e em 1434,
Gil Eanes dobra o Cabo Bojador. Em 1436, o Papa Eugênio IV reconheceu a
Castela direito às Canárias. Na política dos agrados, o Sumo Pontífice autorizou aos portugueses fazerem a guerra contra os infiéis em Marrocos. Em 1455,
Nicolau V, em uma política preferencial aos portugueses declara que as terras
e mares já conquistados ou a conquistar, possuídas ou a possuir, pertenceriam,
para o futuro e perpetuamente, aos reis de Portugal.
As autoridades papais, de acordo com seus interesses, e, em nome da
salvação das almas para a fé católica, ora legitima os espanhóis como os verdadeiros descobridores, ora dá direitos inalienáveis aos portugueses para com as
9
MASON, S.F. A História da Ciência. Porto Alegre, Editora Fundo de Cultura Geral, p. 195.
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novas terras e sinaliza no sentido de apoiar as “guerras justas” que possibilitem
o reforço do poder político dessas potências e até mesmo o reforço de caixa. E,
para dirimir esses conflitos, os dirigentes ibéricos, assinam em 1474 a Paz de
Alcáçovas, reafirmada em Toledo, em 1480. Por este acordo, o Atlântico foi dividido, horizontalmente, na altura das Canárias. Abaixo delas será português,
acima espanhol. Portanto, tem Portugal um instrumento legal que permite a
D.João II dirigir a política Atlântica e o exclusivo da navegação ao sul das
Canárias. Mas o monarca não se contentou com o Atlântico sul e, em 1489,
renovou com a Inglaterra, o tratado de Windsor (do século XIV). O domínio
de Mina na África permitia ao rei de Portugal o financiamento de todas essas
viagens e descobertas geográficas e estudos científicos.
A volta de Bartolomeu Dias, após navegar no Índico em 1488, traz
notícias que vão fundamentar uma estratégia para o domínio do oriente – o
Atlântico e São Tomé são as bases para os experimentos portugueses porque
reúnem condições favoráveis para confirmar a hipóteses de que a forma mais
rápida para se chegar às Índias seria navegar a sudeste do Atlântico. A viagem
de Bartolomeu Dias apressou a dispensa de outra tese, defendida por Colombo:
chegar-se-ia à Índia navegando sempre na direção oeste. Colombo tinha ao seu
favor a hipótese da redondeza da Terra mas a base científica ou empírica da extensão dessa circunferência era improvável. Calculava, o navegador, que o raio
da Terra era bem menor. Das Ilhas Canárias até as Índias, sempre na direção
oeste, segundo seus cálculos, precisaria viajar 2.400 milhas náuticas, quando,
na verdade, a distância é de 10.600 milhas náuticas. Também lhe foi favorável à proximidade de experientes navegadores como Américo Vespúcio e os
irmãos Pinzón e vários cartógrafos e matemáticos com suas tábuas marítimas
e instrumentos auxiliares da navegação. Os portugueses, igualmente contavam
com esses apoios; os diários de viagens, as anotações e a base experimental do
aprendizado na costa ocidental da África e dos relatos das viagens terrestres e
informações que as caravanas traziam a todos – sejam portugueses, espanhóis,
genoveses ou venezianos. Colombo não chegou às Índias, mas, segundo seus
conhecimentos, a postos avançados das Índias. Na realidade, aporta em um
continente: a América.
Ao contrário dos portugueses, os espanhóis sempre fizeram alarde dos
seus descobrimentos e a notícia sai como uma bomba nos meios políticos-científicos do ocidente. Imediatamente, a política de segredos de Portugal foi abandonada e o rei D. João II parte para a denúncia de que essas terras podem ser
conhecidas dos portugueses. Portugal, para se precaver contra os espanhóis, dá
sinais aos franceses que uma política agressiva deles no norte da África seria
bem vinda, se essas ações se colocassem em oposição aos interesses espanhóis
naquela região. Já tendo a confirmação do Tratado de Windsor com a InglaterHISTÓRIA DIGITAL - ANO II - Nº 02 - 2008
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ra, Portugal investe contra a viagem de Colombo acusando-o de haver chegado
às terras portugueses.
A diplomacia tenta com êxito resolver esta querela. A proposta de Isabel
de Castela e Fernando de Aragão é que se fixaria um meridiano – linha divisória para as possíveis expansões dos reinos ibéricos – a 100 léguas a oeste
do arquipélago dos Açores e de Cabo Verde; a leste, seria português e a oeste
espanhol. Há aí uma dificuldade: o arquipélago dos Açores e o do Cabo Verde
não estão na mesma latitude.A América ainda é um mistério. O mundo era
muito maior no século XVI. Os portugueses reclamam a revisão da Bula Intercoetera em 1493 e conseguem um acordo mais benéfico aos seus interesses: o
Tratado de Tordesilhas em 1494. Com ele, Portugal ganhará mais 270 léguas
de mar tenebroso? Que governante ocuparia sua diplomacia, suas alianças políticas e principalmente o Papa, figura tão poderosa, tendo como apoio a Santa
Inquisição, para lutar por águas?
O conhecimento do Rei D.João II e da intelligenzia portuguesa sobre
o Atlântico sul, lhe permite pelejar para afastar o meridiano mais 270 léguas:
um dos documentos, que constitui o conjunto de cartas e outros documentos,
produzidos até abril de 1500, publicados pela Comissão Portuguesa dos Descobrimentos, pode nos ajudar a confirmar essa assertiva: a carta do físico e
cirurgião João Farás, que acompanhou a esquadra de Cabral nos dá a certeza
do conhecimento dessas terras a oeste do Atlântico sul, pelos portugueses e nos
ensina que os descobrimentos não foram feitos ao acaso e sim são produtos da
coragem dos homens e da ciência da época.
Carta de Mestre João
Señor: o bacherel mestre Joham, fisjco e cirurgyano de Vossa Alteza,
beso vosas rreales manos. Señor: porque, de todo lo aça pasado largamente
escrivjeron a Vosa Alteza, asy Arias Correa, como todos los otros, solamente
escrevjrê dos puntos. Señor: ayer segunda feria, que fueron 27 de Abril, desçendjmos em tierra, yo, e el pyloto do capytan moor, e el pyloto de Sancho
Tovar; e tomamos el altura Del sol, al medjo djia; e fallamos 66 grrados, e la
sombra era septentrional. Por lo qual, segund ias rregras del estrslabjo, jusgamos ser afastados de la equinocial, por 17 grrados; e, por consygujente, tener el altura del pólo antarctico em 17 grrados; segund que es manjfiesto em el
espera; e esto es quanto a la uno. Por lo qual, sabrra Vosa Alteza que todos los
pylotos van adjante de mj, em tanto que Pero Escobar va adjante 150 leguas,
e otros mas e otros menos; pero quien djso a verdad, no se puede certyficar,
fasta que en boa ora allegemos al cabo de Boa Esperança, e ally fallara Vosa
Alteza escripta tanbyen la Mina. Ayer casy entendjmos por anseños que esta
era ysla, e que eran quatro, e que de outra ysla vyenen qui almadjas a pelear
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com ellos, e los llevan catjvos. Quanto, señor, al outro pumto, sabrra Vosa Alteza que, çerca de las estrelitas, yo he trabajado algo de lo que he podjdo; pero
non mucho, a cabsa de uma pyerna que tengo muj mala, que de uma cosadura
se me há fecho uma chaga, mayor que la palma de la mano; e tanbyen a cabsa
de este navjo ser mucho pequeno e muj cargado, que nona y lugar pêra cosa
njnguna. Solamente mando a Vosa Alteza como estan situadas las estrellas del;
pero em que grrado esta cada uma, non lo he podjdo saber, antes me paresçe
ser jnposjble, em el mar, tomarse altura de njnguna estrella; por que yo trabajê mucho em eso; e, por poço que el navjo enbalançe, se yerran quatro o cinco
grrados, de gujsa que se no puede faser, synon com muj mucho trabajo; que
sy Vosa Alteza supyesse como desconçertavan todos em las pulgadas, rreyrya
dello mas que del estrolabjo; porque desde Lisboa ate as Canarias, unos de
otros desconçertavan em muchas pulgadas, que uno desyan, mas que otros
tres e quatro pulgadas; e outro tanto desde las Canarias ate as yslas de Cabo
Verde; e esto, rresguardando todos, que el tomar fuesse a uma mjsma ora, de
gujsa que mas jusgavan puantas pulgadas que eran, por la quantydad del camjno que lês paresçia que avyan andado, qeu non el camino por las pulgadas.
Tornando, señor, al proposito, estas guardas nunca se esconden; antes syempre andan em derredor, sobre el orizonte, e aun estó dudoso, que no sê qual de
aquellas dos mas baxas sea el polo antartyco; e estas estrellas, prinçipalmente
las de la crus, son grrandes, casy como las del carro; e la estrella del polo
antartyco, o sul, es pequena, como la del norte; e muy clara; e la estrella que
esta en rriba de toda las crus es mucho pequena. Non quiero mas alargar, por
non ynportunar a Vosa Alteza, salvo que quedo rrogando a Noso Senhor Jesu
Christo la la (sic) vyda e estado de Vosa Alteza acreçiente, como Vosa Alteza
desea. Fecha em Vera Crus, a primeiro de Majo de 500. Pera la mar, mejor es
rregyrse por el altura del sol, que non por ningunas estrella (sic); e mejor con
estrolabjo que non con quadrante, njn con outro ningud estrumento.
Do criado de Vosa Alteza e voso leal servjdor Johanes artium et medicine bahalarius
(Sobrescripto): A El Rey Senhor10
10
Carta copiada na íntegra no livro de Jaime Cortesão. Obras Completas, nº6 – A expedição de Pedro Álvares Cabral e o Descobrimento do Brasil. Imprensa Nacional, Casa da Moeda, p.143/144.
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2. Poder e Instituições: Metrópole e Colônia
... para serviço de Deus e de Sua Alteza.
No Brasil, as capitanias hereditárias se constituíram fenômenos inerentes ao processo de expansão ultramarina do Estado português e, transplantadas para o Novo Mundo, substituíram o projeto épico da conquista por uma
colonização planificada, pela inscrição oficial da lei e pela exportação das
instituições ibéricas.
Moldadas no figurino dos antigos senhorios portugueses, a lógica do
Estado colonizador apreendeu os elementos que julgou essenciais para garantir
a exploração das terras conquistadas e efetivar seu domínio sobre elas. É de
se notar, contudo, que a história das capitanias hereditárias do Brasil não foi
o prolongamento da história de Portugal, ainda que a sociedade formada na
colônia tivesse que se reger por um enquadramento jurídico coevo ao da metrópole, nomeadamente, pelo que rezavam as Ordenações Manuelinas (1521)
e as Filipinas (1603).
A lei portuguesa tornava-se a lei dos territórios recém conquistados e
os que ministravam justiça, similares àqueles de Portugal, tomavam posse dos
cargos coloniais a fim de fazê-la cumprir. A expressão “todos somos portugueses e seus vassalos e súditos”, presente em uma das muitas cartas de Duarte
Coelho a El Rei, diz bem do sentimento do colonizador na sua tentativa de
transpor o modelo de organização político-administrativa, que vigorava na metrópole, para suas colônias.
Não resta dúvida que, um dos escopos primaciais para criação e manutenção dos senhorios portugueses em ultramar consistia em “aliviar ou auxiliar
o monarca na tarefa da governação em regiões ou em condições para que a
Coroa não estava apta a atuar”.11
As instituições que compunham a estrutura do poder central tinham raio
de ação que ultrapassava os limites do território português, algumas chegando
a terem congêneres na Colônia, como estratégia de garantir, na atuação dos
órgãos e dos seus responsáveis, a presença do monarca em além-mar.
Na relação a seguir explica-se de forma sucinta a criação, o desempenho, a função e a natureza desses órgãos:
O DESEMBARGO DO PAÇO encimava o sistema judicial português.
Tendo sido criado como tribunal por D. João II (1481- 1495), teve seu primeiro
11
SALDANHA, António Vasconcelos de. As Capitanias – O regime Senhorial na Expansão Ultramarina Portuguesa. Região Autônoma da Madeira: Centro de Estudos de História do Atlântico,
1992, p.93.
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regimento em 1521. Em 1582, Filipe I (de Portugal) outorgou-lhe novo regimento que depois foi anexado às Ordenações Filipinas em 1603, sendo feitos
alguns aditamentos às funções dos desembargadores.
A principal função do Desembargo não era de Tribunal, mas de assessoria para todos os assuntos de justiça e administração legal, embora causas
de mérito especial que houvessem exaurido todos os outros meios de acordo
pudessem ser levadas até esse órgão. Na realidade, o Desembargo do Paço
tornou-se o órgão central na estrutura burocrática do Império português.
Era costume do Desembargo do Paço acompanhar o rei e reunir-se com
ele todas as tardes de sexta feira para discutir a formulação e a correção das
leis, a designação de magistrados, e a condição política e legal do país.
Ao Desembargo do Paço competia apontar os magistrados reais, promove-los na carreira e avaliar seu desempenho por meio da residência (investigação) levada a efeito ao fim da correição. Poderia ainda conduzir devassas
especiais ou revisar anteriores. Algumas vezes, também resolvia conflitos de
competências entre tribunais subordinados ou magistrados.
Os diversos postos de magistratura real estavam subordinados ao Desembargo do Paço, desde o mais novo juiz de fora até o mais experiente magistrado do reino, o que vigorava tanto para o reino como para as colônias.
Para este órgão não havia um limite previamente estabelecido de agentes, mas,
tradicionalmente eram mantidos seis magistrados.
Além das atribuições destacadas cabia ainda ao Desembargo, tratar das
questões de graça ou mercê, expedir cartas de perdão, comutar penas aos criminosos, a resolução das petições feitas ao rei. Confirmavam as eleições de juizes,
perfilhamentos, doações entre particulares, concessão de cartas de privilégio, legitimação, restituição de fama, habilitação a quaisquer outras mercês semelhantes.
Com a transferência da corte real para o Brasil em 1808, foi instituída
no Rio de Janeiro a “Mesa do Paço e da Consciência e Ordens”, incumbindo-se
a este novo tribunal tratar das matérias referentes ao Desembargo do Paço, à
Mesa da Consciência e ordens e Conselho Ultramarino, entretanto, a instituição matriz, permaneceu a funcionar no reino.
O Desembargo do Paço foi extinto em Portugal, em 3 de agosto de
1833, durante a guerra civil entre liberais e absolutistas, passando as suas funções a serem exercidas pelas secretarias de Estado então existentes.
A MESA DA CONSCIÊNCIA E ORDENS, inicialmente denominada
apenas de Mesa da Consciência, este tribunal, instituído por ordem de D. João
III, passou a compor a estrutura administrativa portuguesa a partir de 1532.
Seu objetivo a princípio era de decidir sobre as questões relacionadas ao “descarrego” da consciência régia, funcionando como comitê itinerante, seguindo o
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monarca nas suas andanças. Em 1551, com a incorporação à Coroa portuguesa
dos mestrados das três ordens religioso-militares ainda existentes em Portugal,
como seja, de Cristo, Santiago e São Bento de Avis, a Mesa passou a se denominar da Consciência e Ordens, somando-se as suas atribuições iniciais os
negócios relacionados às três ordens, como primeira e única instância em todo
o império português.
Segundo rezavam os estatutos de 1603, a Mesa era composta de um
presidente, cinco deputados e quatro escrivães, podendo, contudo, convocar
em caso de necessidade o confessor régio, o chanceler das Ordens e peritos
em direito canônico para lhes prestar assessoria. Entre as atribuições da Mesa,
estatuídas em 1608, estavam: examinar em relação aos domínios ultramarinos,
para submeter à decisão do rei, as indicações dos sacerdotes para as paróquias
e os cabidos das catedrais e as solicitações de bispos para ereção de uma nova
freguesia. Ainda no século XVI, breves pontifícios permitiram aos deputados
da Mesa funcionarem como delegados da Santa Sé, ou de seus legados.
Não fugindo a regra dos demais tribunais portugueses no Antigo Regime, as funções da Mesa da Consciência foram se acumulando e sobrepondo-se
aspectos administrativos e judiciais. A ela cabia discutir e resolver os problemas morais do domínio português no Brasil, como a posição e a natureza do
índio, a moralidade do tráfico de escravos africanos e índios, o problema da
“guerra justa”, assim como designar os provedores dos defuntos e resíduos
e coletar o dízimo do Brasil e outras colônias através de um imposto sobre a
lavoura e ainda examinar súplicas de leigos e clérigos quanto a prática do culto, examinar pedidos de ereção de capelas, questões de irmandades, conflitos
entre padres e a população etc.
No seu nível de competência, a Mesa da Consciência exerceu papel equivalente ao do Conselho Ultramarino na consolidação do projeto colonizador
português para o Brasil, e com o Ultramarino em muitas situações do cotidiano
da administração colonial seus papéis se confundiram, caso que pode ser ilustrado pelo expediente adotado pela Irmandade do Santíssimo Sacramento de Santo
Antonio do Recife, já no século XVIII, para aprovação do seu Compromisso.
Sendo negada pela Mesa a aprovação dos seus estatutos, em vista da
irmandade fazer constar dos mesmos, uma cláusula que proibia a entrada do
clérigo, designado como pároco colado, no templo sem a prévia autorização
da confraria. Inconformados com a decisão, os irmãos do Santíssimo, construtores do edifício da igreja, mantém um procurador na Corte por aproximadamente nove anos para resolver a questão do Compromisso, que finalmente é
aprovado, mas, não pela Mesa da Consciência e Ordens e sim pelo Conselho
Ultramarino, o que ocasionou a revolta do bispo de Pernambuco que considerou a atitude deste órgão como “ilícita e ilegal” por ter enveredado em assuntos
124
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que fugiam a esfera de sua competência.
A Mesa da Consciência é instalada no Brasil em 1808, quando da vinda
da família real e vai ser extinta por lei de 22 de setembro de 1828, transferindose seus papéis para o Supremo Tribunal de Justiça, criado no âmbito da reestruturação administrativa do novo império.
A CASA DA SUPLICAÇÃO era um Tribunal de Apelação, contudo
sua posição era superior aos demais. Tendo iniciado suas funções, agregada à
Casa do Cível, em 1392 torna-se independente. Quando da sua criação, funcionava como corte da comitiva régia, acompanhando o monarca português nas
suas viagens. Na sua estrutura organizacional, ela serviu de modelo a todos os
demais tribunais portugueses. Seus cargos e funções eram remunerados, contudo seu maior atrativo para os magistrados era o prestigio que lhes advinha da
ocupação destes cargos.
Os desembargadores formavam o corpo principal da corte e se dividiam em desembargadores extravagantes, os menos importantes e geralmente
mais novos, sendo designados para atuar em causas pelos desembargadores
dos agravos. Por volta de 1580, já se contabilizava mais de vinte magistrados
autorizados a servir na Casa.
Seguindo a praxe dos demais tribunais, era o funcionário mais velho,
um nobre importante, um elemento da ata hierarquia eclesiástica, ou no caso
das colônias, o governador ou vice-rei quem presidia as sessões. Teoricamente
tal sistema imunizava a Casa da Suplicação das brigas dos funcionários menos
prestigiosos e, do mesmo modo, que na Casa do Cível e nos tribunais posteriormente fundados, o papel do regedor era mais honorífico que funcional. Na
realidade quem exercia a liderança era o Chanceler, cargo de modo geral ocupado por magistrado de comprovada experiência na área da justiça.
Das obrigações inerentes ao cargo de chanceler, estavam: indicar os
juizes para presidir as audiências; proclamar as sentenças; revisar as decisões
com o fim de evitar conflitos com as leis e estatutos em vigência e fixar o
selo do tribunal. Nas sedes dos tribunais que compunham o império português,
Goa, Bahia e o Porto, as linhas e estilos de atuação estavam na dependência
direta da personalidade do chanceler e, muito embora, em sentido estrito a
Casa da Suplicação não possa ser considerada parte do aparato administrativo
colonial, sua estrutura serviu de molde à criação dos posteriores tribunais do
Brasil e na qualidade de tribunal de Apelação, esteve a seu cargo o exame de
muitas causas coloniais.
A CASA DA SUPLICAÇÃO NO BRASIL foi instalada como tribunal de instância superior, estabelecida no Rio de Janeiro por determinação do
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Alvará de 10 de maio de 1808, substituindo o Tribunal da Relação. Em 1828 a
Casa da Suplicação, por sua vez é substituída pelo Supremo Tribunal de Justiça
e, mais tarde, por várias Relações do Império. Era composto de 20 membros:
um chanceler, um juiz de chancelaria, um juiz dos Feitos da Coroa e Fazenda,
um corregedor do Crime, um corregedor Civil da Corte, um procurador dos
Feitos da Fazenda, um promotor de justiça, seis desembargadores extraordinários e oito de agravos.
A Casa da Suplicação serviu de modelo aos tribunais instituídos no
Brasil como cortes de apelação: A Relação da Bahia, a do Rio de Janeiro, do
Maranhão e finalmente de Pernambuco.
A RELAÇÃO DA BAHIA, também conhecida como Relação do Brasil, foi criada em 1609 e constituiu-se a mais alta corte de apelação na Colônia. Subordinada à Casa da Suplicação de Lisboa e ainda que se tratasse de
uma iniciativa da metrópole, a instituição de um tribunal de justiça superior
no Brasil era uma antiga reivindicação da colônia, com base na defeituosa e
precária administração da justiça nas capitanias, que até 1549 era da competência exclusiva dos donatários ou de seus procuradores. É de se observar que
no Regimento de 1588, que vai reger suas atividades até 1626, Pernambuco
é referido especialmente, pois nele se prescrevia que no domínio hereditário
dos Albuquerque, “por ser grande a povoação e de muito comércio, haverá
um ouvidor nomeado por mim; para o que me consultará o Conselho da Índia
letrados aprovados pelo Desembargo do Paço”12. As atividades da Relação da
Bahia foram suspensas em 1626, através de Matias de Albuquerque, atitude
que granjeou ao irmão do donatário de Pernambuco poderosos desafetos. Em
1654 foram restabelecidas suas atividades até que em 1752 dividiu a sua jurisdição com a Relação do Rio de Janeiro.
A RELAÇÃO DO RIO DE JANEIRO, por instâncias das Câmaras da
Capitania de Minas Gerais foi instituído um tribunal à semelhança do da Bahia
no Rio de Janeiro a 16 de fevereiro de 1751. Sua jurisdição abrangia desde a
Capitania do Espírito Santo até a Colônia do Sacramento e para o interior todo
o sertão até Mato Grosso. Com a mesma estrutura organizacional da Relação
da Bahia, funcionou como tal até a chegada da corte portuguesa ao Brasil em
1808, quando assumiu o papel de Casa da Suplicação no Brasil.
A RELAÇÃO DO MARANHÃO foi instituída em 1812, mas, só no
12
ALMOÊDO DE ASSIS, Virgínia Maria. Palavra de Rei...: Autonomia e Subordinação da Capitania de Pernambuco. Tese de Doutorado. Programa de Pós-Graduação em História. Recife:
UFPE, 2001, p.86.
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ano seguinte passou a efetivamente funcionar na Casa da Câmara da cidade
de São Luis, com jurisdição sob as comarcas do Maranhão, Piauí, Pará e Rio
Negro e Ceará.
A RELAÇÃO DE PERNAMBUCO, criada por alvará régio de 1822
foi instalada na vila do Recife em 13 de agosto do mesmo ano. Até 1609 cabia
ao donatário ou seu ouvidor cuidar da administração judicial da Capitania,
daí por diante a Coroa tomou para si a nomeação do ouvidor, cuja jurisdição
incluía toda a Capitania. Em 1710, a administração da justiça ficou dividida em
duas comarcas – Alagoas e Pernambuco; cem anos depois surgiu uma terceira
comarca, a do Sertão; e em 1820 uma quarta, a do São Francisco. A criação
deste tribunal em Pernambuco foi uma conquista dos seus moradores, de há
muito insatisfeitos com a morosidade, à distância e os custos para a resolução
das suas causas sob a jurisdição da Bahia; queixas que são encontradas com
freqüência na correspondência entre os poderes local e central metropolitano
em todo o período colonial.
O Tribunal da Relação foi instalado no Recife no edifício do antigo
Erário Régio, onde permaneceu até 1840, quando passou a funcionar em um
dos consistórios da Igreja do Divino Espírito Santo até 1856. Nesta data foi
removido para o edifício que acabava de servir de cadeia pública, funcionando
ai até 1892, quando foi instituído o Superior Tribunal de Justiça.13
O CONSELHO DA FAZENDA criado por Regimento de 20 de novembro de 1591, teve por objetivo maior prover a administração superior da
Fazenda de um instituto onde se concentrassem suas atribuições. A esse órgão
competia assegurar o funcionamento de toda a rotina fazendária; dirimir pontos de atrito entre todos os seus oficiais; exercer boa administração da Fazenda, provendo sempre ao aumento das receitas, à valorização do patrimônio da
Coroa, à vigilância sobre todas as ocorrências, donde, a qualquer título válido,
pudessem advir novos direitos para a Coroa, e a uma ponderação parcimoniosa
de todas as despesas. Subordinados ao Conselho da Fazenda estavam à Casa da
Índia; as Alfândegas, a Casa dos Contos, a Casa da Moeda e todos os feitores
que negociavam em nome do rei.
1 - CASA DA ÍNDIA, instituída em 1516, foi o primeiro órgão da administração central a intervir nos assuntos brasileiros. Sua jurisdição abrangia
desde a nomeação de funcionários para as colônias portuguesas até a promulgação de regimentos e alvarás.
A princípio, a necessidade de pessoas de confiança que cuidassem da
13
PEREIRA DA COSTA, cit. VIII, p.288-293
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127
correspondência régia e dos assuntos políticos, de forma a traduzir a vontade
do monarca, fez com que a coroa nomeasse ministros – os Secretários de El
Rei. O primeiro deles foi o secretário dos despachos e das coisas da Índia, cargo criado em 1530 e ocupado por Pedro de Alcacova; o segundo, em 1571, de
secretário dos “negócios e cousas da repartição da Índia, Mina, Guiné, Brasil
e Ilhas”, para a qual foi nomeado Duarte Dias Menezes. Mais tarde, tal tarefa
foi entregue a grupos de conselheiros. Na fase de união das coroas de Portugal
e Espanha (1580-1640), pela necessidade de assegurar o expediente das resoluções das colônias portuguesas, quando o rei se encontrasse em Madri, foi
criado o Conselho de Portugal, em 1586.14
2 - CASA DOS CONTOS, provavelmente estabelecida durante o reinado de D. Diniz (1279-1325), por ordem de D. Manuel, no século XVI, passou a denominar-se CONTOS DO REINO E CASA, cabendo-lhe controlar as
finanças nas possessões coloniais. Enquanto repartição subordinada ao Conselho da Fazenda, recebeu regimento definitivo em 3 de setembro de 1627, sendo
receptora de algumas das competências originais daquele Conselho. As antigas
competências dos Vedores e recebidas pelo Conselho da Fazenda, passaram, a
partir dessa última regulamentação da Casa, a ser da sua competência, de modo
que aos contadores e provedores dos Contos passou a caber o exame de todo o
delicado processo de tomar, consertar e encerrar as contas do conjunto de magistrados que percebiam e despendiam dinheiro e gêneros da Fazenda Régia.
3 - ALFÂNDEGAS, tuteladas pelo Conselho da Fazenda, foram estabelecidas em todos os territórios que compunham o império português. Sua
importância como órgão vital à fiscalização e arrecadação dos tributos régios
mereceu atenção especial das Casas Reais portuguesas e dos seus prepostos
nas colônias durante todo o período moderno. Atenção que se reflete no número de regimentos e mudanças nos estatutos dos agentes da administração alfandegária e na preocupação com as próprias instalações físicas das Casas de Alfândega nas capitanias. Durante o século XVI, o mais importante dos diplomas
reguladores da feição administrativa das alfândegas, foi o Foral da Alfândega
da cidade de Lisboa, datado de 15 de outubro de 1587. Naturalmente acompanhando a complexidade que a administração dos domínios ultramarinos ia
adquirindo, surgiram o Regimento da Alfândega do Tabaco, o da Alfândega de
Goa, o de Moçambique, entre outros.
A necessidade de impedir o contrabando, elevou a graduação dos superintendentes gerais das alfândegas que obtiveram a alçada dos corregedores das
14
ACIOLI, Vera Lúcia Costa. A Escrita no Brasil Colônia: um guia pra leitura de documentos
manuscritos. 2ª ed. Recife: Editora Massangana, 2003, p.58.
128
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comarcas, criando-se ainda as Mesas de Inspeção, que no Brasil tinham a incumbência de coibir o contrabando e tomar conhecimento do que era transportado do reino para cá. Eretas nos mais dinâmicos centros do comércio colonial,
estas Mesas receberam Regimentos específicos, sendo que para Pernambuco
e o Maranhão, os seus respectivos ouvidores ficaram com toda a jurisdição,
antes pertencente aos superintendentes. Através desses diplomas impunham-se
novas penas, exacerbando-se as que já haviam sido cominadas contra os “descaminhadores” e contrabandistas. Em 1782, promulgou-se a Pauta Geral para
a Alfândega Grande, estendendo-se sua aplicação a todas as outras.
4 - CASA DA MOEDA somente foi estabelecida no Brasil em 1694,
instalada na Bahia e subordinada à de Portugal. A cunhagem que foi voluntária
até 1808, contra o pagamento de uma taxa, abarcava o ouro, a prata e, a partir de
1729, o cobre. Coerente com as reformas administrativas, a Casa da Moeda do
Brasil foi transferida para o Rio de Janeiro em 1698, depois para Pernambuco
em 1700, voltando ao Rio de Janeiro em 1703. Provisoriamente foram criadas
também em Minas Gerais (1725) e na Bahia, 1741. A monetarização da economia colonial, respondia a queixas da população, de há muito postas, em vista do
prejuízo ocasionado pelo desequilíbrio rotineiro de sua balança de pagamento
– saída de moedas a título de importação de mercadorias e de escravos, pagamento de tributos e de encargos coloniais, remessas particulares, contrabando.
Em outra perspectiva, a criação da Casa da Moeda transferia ao nível provincial
a possibilidade de alterar o teor da moeda cunhada, promovendo uma receita
pública através da diferença entre o valor nominal mais elevado e o valor do
metal no mercado. Diferença que em alguns momentos atingiu a casa dos 20%.
Em 1803 a Casa da Moeda foi autorizada a emitir bilhetes de permuta, ou notas
representativas a serem posteriormente resgatadas em moeda padrão, chegando
estas notas a circularem quase como uma moeda de papel.
4. 1 - CASA DA MOEDA EM PERNAMBUCO instituída para atender ao pedido dos moradores da Capitania de Pernambuco que não queriam
mandar o seu dinheiro para ser amoedado na Bahia. Em 1700 o governador de
Pernambuco deu conta ao rei que Antônio Fernandes de Matos, mestre-pedreiro
e homem de recursos da capitania, se oferecera para fazer à sua custa a Casa da
Moeda, maior e melhor do que as da Bahia e do Rio de Janeiro. O rei se dirigiu
ao próprio Matos agradecendo o seu préstimo e a casa foi construída em terreno
do antigo forte do Matos. Nela se lavrou o dinheiro provincial no Recife.
O CONSELHO DA ÍNDIA foi um organismo criado por Regimento
de 26 de julho de 1604, pela coroa espanhola, para melhor administrar as coHISTÓRIA DIGITAL - ANO II - Nº 02 - 2008
129
lônias. A ele competia nomear funcionários para o além-mar e fiscalizar seus
atos, elaborar leis, administrar justiça e defesa militar nos territórios ultramarinos. A partir da referida data passou a ser da competência do novo Conselho
tratar de todas as matérias e negócios, tocantes a Índia, Brasil, e Guiné, Ilhas
de S.Thomé e Cabo Verde, e de todas as demais possessões ultramarinas, com
exceção das Ilhas dos Açores e da Madeira, e partes da África.
Tais competências esvaziariam completamente o Conselho da Fazenda
de suas atribuições em ultramar, se o Regimento do Conselho da Índia não esclarecesse que o “despacho das naos e armadas, que de Portugal forem à Índia
(...), compra e administração da pimenta, (...) direitos da fazenda que vierem
nas ditas náos, (...) administração de minhas rendas do Brasil, Guiné e Ilhas”,
continuavam a constituir matérias atinentes aos despachos do Conselho da Fazenda, “como até agora se fez”, transmudando-se a “Repartição da Índia, Guiné,
Brasil, S. Tomé e Cabo Verde” que veio a receber mais tarde o nome de Índia
e Armazéns. A Repartição da India e Armazéns era responsável pelo apresto e
despesas com as armadas e com os pagamentos das “gentes de guerra” e a “gente
do mar”, era ainda responsável pela regulamentação, lançamento e arrecadação
do imposto do Consulado e, funcionou em Portugal de 1642 a 23 de janeiro de
1804, quando foi fundida com a Repartição das Ilhas e Mestrados.15
O Conselho da Índia foi extinto em 21 de maio de 1614, sendo retomadas
pelo Conselho da Fazenda as suas antigas atribuições com relação ao ultramar.
A distinção entre as competências do Conselho Ultramarino, que em
1643 substituiu o Conselho da Índia, e as do Conselho da Fazenda, uma vez
que havia empresas reais que mobilizavam recursos do reino e do ultramar,
regia-se por um critério geográfico. Tratando-se do arrendamento, recebimento
e do dispêndio das rendas régias, feitas no ultramar, o “tribunal” competente
era o Ultramarino, no momento em que essas rendas chegassem ao reino, passariam de imediato aos cuidados exclusivos do Conselho da Fazenda.
A garantia da coesão entre as ações desses Conselhos estava na presença do Presidente do Conselho Ultramarino que também era o Vedor da Fazenda
da Repartição da Índia.
O CONSELHO ULTRAMARINO - A expansão do império português no século XVI e mais adiante a retomada da Coroa Portuguesa com o fim
da União Ibérica exigiram mudanças no aparelho administrativo de Portugal,
no sentido da reorganização e da criação de instituições mais competentes e
especializadas na administração e despachos da Fazenda. Assim, o governo
português instituiu o Conselho Ultramarino através do Regimento de 14 de
FRAZÃO, Antonio e FILIPE, Maria do Céu. O Conselho da Fazenda. Lisboa: Arquivos Nacionais/Torre do Tombo. Divisão de Publicações, 1995, p. 28.
15
130
HISTÓRIA DIGITAL - ANO II - Nº 02 - 2008
julho de 1642. A justificativa para o novo órgão foi “não haver no Reino de
Portugal hum tribunal separado para se tratarem nelle os negócios daquellas
partes [Estado da India e dos mais ultramarinos] e se fazer o despacho delles
por Ministros obrigados a outras occupações”. Desta afirmativa, concluí-se que uma só instituição, o Conselho da Fazenda, não poderia concentrar todas as competências do Império no que diz
respeito à fazenda, aos negócios, às nomeações e à administração em geral.
O novo organismo deveria se ocupar de todas as matérias e negócios,
de qualquer natureza, relativos aos Estados da Índia, Brasil, Guiné, Ilhas de
São Tomé, Açores, Madeira e lugares da África. Entretanto, outro problema
deveria ser solucionado: o das competências dos dois conselhos. O critério
geográfico foi o definidor das competências, segundo Antonio Frazão e Maria
do Céu Filipe”16, enquanto se tratar do arrendamento, do recebimento e do dispêndio das Rendas Reais no Ultramar, o tribunal competente para administrar
toda esta fazenda e estes actos é o Conselho Ultramarino; qualquer rendimento
que, do Ultramar entre no Reino cai sob a competência imediata e exclusiva do
Conselho da Fazenda”.
Como referido, o Conselho Ultramarino foi criado em 1642, mas só
instalado no ano seguinte em Lisboa. Todos os papéis referentes às questões
originárias do Brasil, que ultrapassavam a competência do governador geral
e vice-rei, eram remetidos a Lisboa e aí transformados em Consultas do Conselho, antes de chegarem ao rei para despacho final, o que culminou com a
formação do mais rico acervo de documentos sobre a administração do Brasil
colonial fora dos limites da metrópole.
O acúmulo de papéis oriundos da administração ultramarina obrigou
aos conselheiros a uma distribuição de seus serviços nos vários dias da semana, proporcional ao volume de cartas recebidas. As segundas e quartas-feiras
tratavam-se dos negócios da Índia; as quintas e sextas, os negócios do Brasil e
aos sábados os da Guiné, Cabo Verde e de outras partes do Império.
O Ultramarino era composto inicialmente de três conselheiros, dos
quais dois seriam fidalgos e homens de guerra (de “capa e espada”) e um ligado à justiça (o conselheiro letrado), além de um secretário. Mais adiante este
número foi aumentado para quatro. Geralmente eram nomeadas pessoas conhecedoras dos problemas transmarinos, sendo comum recair a escolha sobre
antigos governadores das colônias.17
Segundo determinação do regimento, a sessão era principiada com o
16
in O Conselho da Fazenda. Inventário e Estudo Institucional. Arquivos Nacionais / Torre do
Tombo, Divisão de Publicações. Lisboa – 1995.
17
ACIOLI, Vera Lúcia Costa. A Escrita no Brasil Colônia. cit. p.58..
HISTÓRIA DIGITAL - ANO II - Nº 02 - 2008
131
relato dos conselheiros, cujos papéis haviam recebido, por distribuição, do
presidente. O relator era o primeiro a votar, seguido dos outros por ordem de
antiguidade e, por último, o presidente. Cabia ao secretário redigir o parecer
ou consulta, de acordo com a opinião da maioria. No caso de discordância
na matéria, os votos deveriam ser registrados em separado. A resolução régia
era comunicada ao Conselho para expedição dos documentos necessários. Em
caso de falta, era o presidente substituído pelo conselheiro mais antigo e o
secretário, pelo mais recente.
Havia ainda as Consultas do serviço real, quando era o rei quem consultava, e as Consultas de partes, quando os processos se formavam no próprio
Conselho, por iniciativa dos interessados, além das Consultas mais específicas,
como as da Junta do Comércio e do Conselho da Fazenda, ou as mais gerais,
como as mistas e as de todas as conquistas.
Assim funcionou o Conselho Ultramarino até 1808 quando, com a
transferência da corte para o Brasil, seus arquivos acompanharam o príncipe
regente. Em 1823, o referido Conselho recomeçou suas atividades em Portugal, subsistindo até dez anos mais tarde, com grande número de funcionários.
Por decreto de 30 de agosto de 1833 foi extinto, e, suas atividades foram substituídas entre os vários órgãos que compunham a administração portuguesa.18
O ERÁRIO RÉGIO substituiu a Casa dos Contos e a Junta de Administração dos Depósitos Públicos da Corte e Cidade de Lisboa, criada, por Alvará de 21 de maio de 1751, com o fim de diminuir os atrasos nos pagamentos
e instalar um modelo de escrita contábil que propiciasse o controle das receitas
e despesas. Tanto a Casa dos Contos como a Junta se mostraram ineficientes
para dar conta do sistema tributário português. A criação do Erário Régio correspondeu a uma reestruturação do modelo de organização e distribuição do
poder ao nível da administração central.
Instituído por Pombal por Carta de Lei datada de 22 de Dezembro de
1761, o Erário Régio tinha por finalidade tornar mais eficiente o sistema de
recolhimento das rendas públicas e reduzir as possibilidades de extravio e fraudes. O novo instituto era dirigido por um presidente que acumulava a função de
Inspetor Geral das Finanças e que até o ano de 1777 foram funções exercidas
pelo próprio Pombal. Junto ao presidente funcionava um tesoureiro-mor, responsável pelos serviços da Tesouraria Geral e pelos de outras três tesourarias:
Tenças, Juros e Ordenados. Depois, quatro contadores gerais, responsáveis
pelas seguintes repartições: a) 1.ª Contadoria, responsável pela arrecadação
dos depósitos efetuados pelos corregedores, provedores, juizes, almoxarifes,
18
ACIOLI, Vera Lúcia Costa. A Escrita no Brasil Colônia. cit. p.58..
132
HISTÓRIA DIGITAL - ANO II - Nº 02 - 2008
tesoureiros e outros recebedores e contratadores das rendas reais da corte e
província da Extremadura; b) 2.ª Contadoria, com as mesmas funções da primeira, para o restante do reino e ilhas dos Açores e Madeira; c) 3.ª Contadoria, para África, Maranhão e Bahia; d) 4.ª Contadoria para o Rio de Janeiro,
África Oriental e Ásia. Essa estrutura permaneceu em vigor até a Revolução
Liberal, sofrendo apenas alguns ajustes. A primeira Contadoria, seria repartida
em duas: uma para a província de Estremadura e outra para a corte e cidade de
Lisboa. A segunda conservaria sua jurisdição e a terceira cuidaria apenas do
Brasil, desaparecendo consequentemente a da África.
No Brasil, as principais normas porque se regia o Erário Régio passaram a ser aplicadas por volta de 1767, através das JUNTAS DA FAZENDA,
que em princípio substituíram as antigas juntas de arrecadação e os juízos do
fisco, da despesa e outros. Como gestoras dos assuntos fiscais nas capitanias, as
Juntas eram dirigidas por um colegiado presidido pelo capitão-general, assistido por um ouvidor, um provedor, um tesoureiro, um contador e um escrivão.
Além da arrecadação dos tributos, competia às Juntas administrar as despesas,
divididas entre a Folha Militar, a Folha Civil e a Eclesiástica. É importante
salientar que as Juntas constituíram-se as primeiras instituições totalmente coloniais com responsabilidade pela administração financeira regional, cabendolhe administrar a cobrança direta dos impostos e outras rendas da Coroa, além
de cuidar do arrendamento de contratos para os estancos régios como o do sal
e o das baleias e a cobrança de impostos, tarifas internas e passagens dos rios.
Ao assumir estas atribuições de cobrança dos tributos municipais, as Juntas
esvaziaram de certa forma o papel das Câmaras neste sentido.
Em 1790 o Erário Régio foi incorporado ao antigo Conselho da Fazenda. Em 1808, em razão da invasão napoleônica do território metropolitano, o
Erário foi criado no Rio de Janeiro, funcionando até 1821, antes, porém, da
sua extinção, em 1820, as duas contadorias que exerciam funções nas possessões ultramarinas foram transformadas numa só – a Contadoria do Rio de
Janeiro e da Bahia.
A INTENDÊNCIA GERAL DA POLÍCIA, criada no conjunto das
reformas pombalinas da administração pública de Portugal, por decreto de 25
de julho de 1760, “com ampla e ilimitada jurisdição na matéria da mesma
polícia sobre todos os ministros, criminais e civis”, provocou no âmbito metropolitano uma desconcentração técnica e política entre a função judicial e a
policial. Os comissários da Polícia e a Guarda Real passaram mais a vigiar e a
prender e os juizes a instruir os processos-crime. A instituição da Intendência
também alterou a forma de apuração dos “fatos-crimes”, que passou a obedecer estritamente ao processo da investigação policial. Sua jurisdição abrangia
HISTÓRIA DIGITAL - ANO II - Nº 02 - 2008
133
além da cidade de Lisboa, o Alentejo e Algarve, a Estremadura, Beira, Minho
e Trás-os-Montes, funcionando na cidade de Lisboa com dois grupos de instituições – a Guarda Real da Polícia e o Comissário da Polícia, constituído por
comissários de bairro.
No Brasil a sua congênere só vai ser criada por D. João VI por Alvará
de 5 de Abril de 1808, e ainda que suas atividades se concentrassem na capital,
o Rio de Janeiro, a jurisdição do Intendente abarcava todas as capitanias. Seu
primeiro Intendente, Paulo Fernandes Viana, detinha uma esfera de ação bem
ampla, que abrangia da segurança pública aos problemas sanitários e ainda
ao recrutamento militar e ao enclausuramento de mulheres em recolhimentos,
quando requeridos por seus maridos. É de se observar que a instituição da
Intendência no Brasil esvaziou muitas das competências adstritas as Câmaras
Municipais, caso da sua assunção em obras públicas de urbanização.
As SECRETARIAS DE ESTADO distribuídas em áreas de governo
da administração central ou metropolitana correspondiam a quatro secretarias.
A Secretaria de Estado e Justiça, Matérias de Consciência e Ordens, Negócios
da Fazenda e Despacho das Petições e Mercês. Em 1607, apenas duas continuavam operando, o que provocou uma concentração funcional, surgindo em
1631 um novo Secretário, o das Índias e Conquistas.
Após o movimento da Restauração da coroa portuguesa, D. João IV
contava com apenas um Secretário, com a denominação de Secretário de Estado, até que por Alvará de 29 de novembro de 1643, criou-se a Secretaria das
Mercês e Expediente, regulamentando-se também as funções do Secretário de
Estado. A Mesa das Mercês e Expediente cabia tratar das “restantes consultas,
despachos e ordens”, definindo-se a função, omitindo-se a declaração precisa
do seu papel. A justificativa para a criação dessa Secretaria se deu pela alegação da necessidade de distinguir a natureza dos muitos e variados negócios
do reino e auxiliar o monarca nos seus despachos. Razões que também foram
utilizadas para justificar a instituição, em fins do século XVII, da secretaria
designada “da Assinatura”.
Por Alvará de 28 de julho de 1736, D. João V reformou as Secretarias
existentes, atribuindo-lhes denominações diferentes e precisando melhor suas
competências. A partir de então, constituíram-se as seguintes Secretarias de
Estado: a) Negócios Interiores do Reino; b) Marinha e Domínios Ultramarinos, também reconhecida pelo nome de Secretaria de Estado da Marinha e
Conquistas ou, simplesmente, da Marinha ou Marinha e Ultramar; c) e Estrangeiros e Guerra. A missão precípua destes secretários era encaminhar ao rei as
consultas ou petições enviadas pelos secretários dos conselhos e tribunais e
expedir, posteriormente as resoluções tomadas, preparando posteriormente a
134
HISTÓRIA DIGITAL - ANO II - Nº 02 - 2008
documentação legal necessária à execução dos atos régios. Essa estrutura das
secretarias manteve-se até a constituição de um novo Gabinete de secretários
de Estado, criado por Alvará de 15 de Dezembro de 1788, a nova Secretaria designou-se dos “Negócios da Fazenda”, mas, que apenas se organiza em 1801.
Durante todo o século XVIII as Secretarias obtiveram proeminência
política, especialmente após a reforma propugnada por D. João V. Até a fuga
da família real para o Brasil, foram constituídos sete gabinetes de secretários
de Estado.
O CONSELHO DE ESTADO foi instituído pelo cardeal D. Henrique em 1562, como órgão de consulta do rei e presidido pelo próprio monarca. Com a reforma das Secretarias de Estado em 1736, o Conselho de Estado
reduziu-se à reunião dos secretários de Estado, constituindo-se no plenário do
governo político. Durante o governo pombalino, em 1760, foram instituídos
mais cinco novos conselheiros, não substituídos após suas mortes. Em 1796,
foram nomeados por Dª. Maria I mais 14 conselheiros, contudo, a partir de
1801, tudo indica que o Conselho de Estado deixou de se reunir.
O CONSELHO DE GUERRA criado logo após a restauração portuguesa, em 11 de dezembro de 1640, teve por atribuições cuidar da conservação
das fortalezas e arsenais, provimento de postos militares, negócios atinentes à
expedição de tropas e julgamento das causas militares. Constituído por conselheiros, um assessor, um promotor de justiça, um secretário, porteiro e contínuo. Das suas sessões era facultado a qualquer conselheiro tomar parte. Com
o aparecimento da Secretaria de Estado dos Negócios e da Guerra, o Conselho
perdeu competências administrativas, conservando, contudo, suas atribuições
de Tribunal Militar.
A JUNTA DA BULA DA CRUZADA criada para administrar as rendas
provenientes da bula concedida pelo papa Gregório XIV destinadas á conservação das fortalezas do Norte da África. Esta Junta, presidida por um Comissário Geral, mantinha certa articulação com a Mesa da Consciência no que dizia
respeito a cobrança e administração das esmolas dos mealheiros e peditórios
dos cristãos para resgate dos cativos de guerra – escravos e prisioneiros. No
conjunto da documentação expedida pelo Conselho Ultramarino encontram-se
diversas referências a essas contribuições, especificamente como cobranças de
prestação de contas aos administradores coloniais.
A JUNTA DOS TRÊS ESTADOS foi estabelecida para administrar
e supervisionar a arrecadação dos impostos da décima militar e outros, como
HISTÓRIA DIGITAL - ANO II - Nº 02 - 2008
135
a receita dos contratos do açúcar e do tabaco e, novos direitos da Chancelaria para fins de defesa do reino, especialmente munições, fardas, ordenados,
hospitais e manutenção das fortalezas, foi criada em 1643 a Junta dos Três
Estados. Com a criação do Erário Régio, algumas das competências administrativas da Junta foram retiradas, mas, ela se manterá compondo a estrutura da
administração central até a revolução liberal.
O TRIBUNAL DA INQUISIÇÃO, mais conhecido como do Santo
Ofício, funcionava em paralelo a organização civil judiciária metropolitana,
mantinha sua própria organização e exercia jurisdição sobre leigos e clérigos
no que tangia a assuntos de moralidade, heresia e perversão sexual. Depois
de inúmeros pedidos formulados ao papa por D. Manuel e D. João III, foi
autorizado em Portugal o funcionamento do Tribunal por bula do papa de 16
de julho de 1547.
O Tribunal do Santo Ofício se compunha de um Conselho Geral e por
tribunais de foro mistos de primeira instância em Coimbra, Lisboa, Évora e Goa,
conforme se explicita nas Ordenações Filipinas, no seu livro II, Capítulo 9.
Normalmente se considera que às terras do Brasil o Tribunal aporta em
1591, por ordem do inquisidor geral de Portugal o arquiduque cardeal Alberto
que nomeia Heitor Furtado de Mendonça como visitador dos bispados de Cabo
Verde, São Tomé, Brasil e Administração Eclesiástica de São Vicente e Rio de
Janeiro.
Atentando-se, contudo, ao que informa José Antonio Gonsalves de
Mello, um Tribunal da Inquisição funcionou em Olinda de 1594 a 1595, para
julgamentos de casos de culpa que exigissem dos réus abjuração de leve suspeição na fé. Em Olinda, há referência a dois autos de fé, usando-se nos textos
do tribunal esta própria expressão. Antes e depois da visitação de Heitor Furtado de Mendonça a Pernambuco, informa ainda Mello, houve outras visitações realizadas em Olinda e no Recife por iniciativa dos ouvidores da Vara
Eclesiástica da Capitania que também serviam ao Santo Ofício atendendo as
precatórias vindas de Lisboa.
De acordo com Pereira da Costa, das vítimas da Inquisição, 339 foram
remetidas do Brasil, “algumas das quais pereceram nas chamas”.19
O Tribunal vai sofrer restrições ao seu poder e prestígio com as reformas
pombalinas, o que tem início com a criação da Mesa Censória em 1768. Em
1773, Pombal elimina juridicamente as diferenças entre cristãos-novos e cristãos velhos, aprovando novo regimento em 1774 e abolindo em 1777 a Inquisição de Goa. Parte do prestígio da instituição é recuperado no reinado de D. Maria I, que reinstala o Tribunal em Goa em 1778 e extingue a Mesa Censória.
19
PEREIRA DA COSTA, Anais Pernambucanos, cit. VII, p. 275.
136
HISTÓRIA DIGITAL - ANO II - Nº 02 - 2008
Tribunal eclesiástico, encarregado de manter a “pureza da fé católica”,
e ao mesmo tempo tribunal sujeito às ordens régias, a Inquisição, durante os
seus 285 anos de existência, foi ao mesmo tempo um instituto poderoso e vulnerável. “Usufruiu grandes privilégios concedidos pelos reis mas dependia dos
tribunais régios para a manutenção desses privilégios. Era simultaneamente
um mecanismo de repressão social e de promoção social”.20
O Tribunal do Santo Ofício foi extinto definitivamente por decreto das
Cortes de Lisboa de 31 de março de 1821.
ÓRGÃOS DA ADMINISTRAÇÃO PORTUGUESA
Desembargo do Paço
Anterior a
1530
1530/1548
Capitania/
Governo
Geral
1548/1580
Governo
Geral/
Per. Filipino
1580/1640
Período
Filipino
1640/1750
Restauração
Portugal/
Pombal
1750/1808
Pombal/
Vinda da
Família Real
Reg.1521---
-------------
---------------
----------------
---------------
----------------
C-1532----
---------------
----------------
---------------
----------------
Mesa da Consciência e Ordens
Mesa do Paço e da Consciência
e Ordens
C-1808-------
Tribunal da Relação da Bahia
C-1609------E-1626
Tribunal da Relação do Rio de
Janeiro
R-1654------
----------------
C- 1752-----
E-1808
---------------
----------------
Tribunal da Relação do Maranhão
Tribunal da Relação de Pernambuco
Casa da Suplicação
C-1392-----
-------------
---------------
-------------
Casa da Suplicação do Brasil
C-1808-------
Supremo Tribunal de Justiça
Contos do Reino e Casa
C-1279-----
-------------
Conselho da Fazenda
Casa da Índia
C-1516 ----
Casa dos Contos
1276-1325*
Contos do Reino e Casa
Alfândegas
----------------
C-1591-----
----------------
1694-Bahia
1700-Pco.
1703-Rio
1725-Minas
----------------
C-1642-----
T-1808------R-1823-------
C-1627 -----C-1587 -----
Casa da Moeda
Conselho da Índia
Conselho Ultramarino
20
Reg. 1627--
C- 1604-----E-1614
WADSWORTH. In SILVA, 2001, p.320.
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137
Erário Régio
C-1751------I-1790
Junta da Fazenda no Brasil
C-1808------E-1820
Intendência Geral da Polícia
C-1760------C-1808-------
Secretarias de Estado
Conselho do Estado
C-1643-----
R-1736
C-1562------
Conselho de Guerra
C-1640-----
Junta da Bula da Cruzada
Junta dos Três Estados
Tribunal do Santo Ofício
C-1643----C-1536------
1591 (Bahia)
1593-95 (PE)
---------------
----------------
PORTUGAL
BRASIL
C = Criado E = Extinto R= Restabelecido ou Reformado Reg. = Regimento T = Transferido I = Incorporado
* data provável.
138
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3. Capitania de Pernambuco
Maria do Socorro Ferraz Barbosa
Vera Lúcia Costa Acioli
Virgínia Maria Almoêdo de Assis
Porque as fazendas, em especial os engenhos, estão espalhados e não juntos, e
os que vêm a fazer estes engenhos não vêm como homens poderosos para resistir, mas para fazerem seus proveitos e para eu os haver de amparar e defender
como cada dia faço (...)21
Duarte Coelho
A divisão da empresa colonial com particulares, presente já neste trecho
de carta de Duarte Coelho, vai se constituir uma constante da política administrativa portuguesa para o Brasil, o que acontece tanto ao nível da defesa territorial, como na organização burocrática, no sistema produtivo, e até mesmo
na resolução de questões do cotidiano como construção de edifícios públicos,
civis ou religiosos.
Para elaboração do presente texto considerou-se necessário lançar um
olhar atento às temáticas mais freqüentes nos verbetes do Catálogo da Capitania de Pernambuco, também presentes nas Cartas de Duarte Coelho a El
Rei, que serviram de base à construção e epígrafes introdutórias do mesmo.
Deve-se observar que não se pretendeu esgotar, nem mesmo elaborar estudo
mais aprofundado da história de Pernambuco; que não caberia em trabalho
dessa natureza e tampouco foi seguida uma ordem cronológica o que objetivou
oferecer ao leitor informações sobre Pernambuco, na maior parte das vezes
ausentes nos manuais de História. Por outro lado é de se destacar que tais assuntos se apresentam como desafios de pesquisas que, aprofundadas poderão
suprir os desvãos historiográficos.
Donatarias do Brasil
As capitanias hereditárias se constituíram organismos próprios do processo de expansão ultramarina do Estado português que transplantados para o Novo
Mundo, substituíram o projeto épico da conquista por uma colonização planificada, pelo estabelecimento oficial da lei e pela exportação das instituições ibéricas.
Este sistema substituiu, no caso brasileiro, o de Feitorias distribuídas em alguns
pontos da costa, que serviam a princípio como armazéns para se estocar e embarcar o pau-brasil e que se transformaram com o tempo em postos comerciais.
O papel exercido pelas Feitorias na colonização do Brasil ainda está
MELLO, José Antônio Gonsalves de. & ALBUQUERQUE, Cleonir Xavier de. Cartas De Duarte Coelho a El Rei. Recife: Imprensa Universitária, 1967.
21
HISTÓRIA DIGITAL - ANO II - Nº 02 - 2008
139
por merecer estudos mais aprofundados, podendo-se de antemão dizer que estas primitivas unidades foram basilares para o convívio futuro dos portugueses
com as populações nativas e o conhecimento da terra, configurando-se como
locus privilegiado para as trocas culturais e não apenas econômicas. Através
delas, revelou-se o intuito protocolonizador do Estado português para o Brasil.
Moldadas no figurino dos antigos senhorios portugueses, a lógica do
Estado colonizador apreendeu os elementos que julgou essenciais para garantir
a exploração das terras conquistadas e efetivar seu domínio sobre elas. É de
se notar, contudo, que a história das capitanias hereditárias do Brasil, não foi
o prolongamento da história de Portugal, ainda que a sociedade formada na
colônia tivesse que se reger por um enquadramento jurídico coevo ao da metrópole, nomeadamente, pelo que rezavam as Ordenações Manuelinas (1521) e
as Filipinas (1603). A lei portuguesa tornava-se a lei dos territórios recém conquistados e ministros da justiça, similares àqueles de Portugal, tomavam posse
dos cargos coloniais a fim de fazê-la cumprir. Não resta dúvida que, um dos
escopos primaciais para criação e manutenção dos senhorios portugueses no
ultramar consistia em “aliviar ou auxiliar o monarca na tarefa da governação
em regiões ou em condições para que a Coroa não estava apta a atuar”.22
A 10 de Março de 1534 foram assinadas por D. João III as doações
das Capitanias aos Donatários Duarte Coelho e Pero de Góis, que segundo o
conteúdo dos livros de chancelaria sob a guarda do Arquivo Nacional da Torre
do Tombo, foram os primeiros títulos concedidos por este tipo de mercê com
caráter hereditário. Deve-se ressaltar que, no original, só se conhecia até bem
pouco tempo a carta de doação da última Capitania brasileira doada pela Coroa
portuguesa em 1685, a de Xingu.
A Duarte Coelho, como aos demais donatários, D. João III concedeu o
que alguns historiadores entendem como “largos poderes” na administração
da Capitania e que deveriam se concretizar na obediência aos limites impostos
pelas doações. A exemplo do que se expressa na Carta de Doação da Capitania
de Pernambuco, o rei consignava aos donatários do Brasil em geral que “(...)
de juro e herdade para sempre para ele e seus descendentes e sucessores no
modo sobredito da jurisdição cível e crime da dita terra (...)”.23
As Cartas de Doação e os Forais se constituem fontes privilegiadas para
a compreensão do ordenamento jurídico que moldou a sociedade colonial brasileira nos primeiros anos de sua existência. Na aplicação, essas duas peças
tradicionais do sistema político-administrativo português foram adaptadas às
22
SALDANHA, António Vasconcelos de. As Capitanias – O regime Senhorial na Expansão
Ultramarina Portuguesa. Região Autônoma da Madeira: Centro de Estudos de História do Atlântico, 1992. p.93.
23
ARQUIVO Nacional da Torro do Tombo.[ANTT], Chancelaria de D. João III, Livro 7, fl. 83-85
140
HISTÓRIA DIGITAL - ANO II - Nº 02 - 2008
circunstâncias locais. Enquanto as primeiras definiam as doações de bens da
Coroa e direitos reais, o foral supunha a existência prévia da carta de doação,
“a qual servia de complemento, constituindo os dois diplomas o estatuto fundamental da respectiva capitania”.24 Os Forais regiam a relação entre o donatário
e o rei, definindo os direitos políticos e a percepção de rendas dos donatários,
assim como as responsabilidades desses perante a Coroa.
Administração, jurisdição e rendimentos formam as três ordens que estão na base do governo dos capitães donatários no Brasil e que lhes são transferidos, avultando-se a justiça sobre os demais.
Memorial de uma terra de fazer Açúcar
(...) dei ordem a se fazerem engenhos de açúcares que de lá trouxe contratados,
fazendo tudo quanto me requereram e dando tudo o que me pediram, sem olhar proveito nem interesse algum meu, mas a obra ir avante, como desejo. - Duarte Coelho
Dizem os cronistas que já em 1535 os engenhos passaram a funcionar
na Capitania de Pernambuco e, junto àquelas que mais tarde denominaramse suas anexas e a Capitania da Bahia, Pernambuco manteve-se por mais de
dois séculos, liderando na Colônia a produção e o comércio do açúcar voltado
para o mercado mundial, correspondendo assim às expectativas da lógica do
Mercantilismo português, que pensou sua colônia americana como um mundo
açucareiro ordenado para exportação.
Gabriel Soares de Sousa em 1587 escrevia sobre Pernambuco:
(...) É tão poderosa esta capitania que há nela, mais de cem homens que tem de
mil até cinco mil cruzados de renda, e alguns de oito, dez mil cruzados. Desta terra
saíram muitos homens ricos para estes reinos que foram a ela muito pobres, com
os quais entram cada ano desta capitania quarenta e cinqüenta navios carregados
de açúcar e pau-brasil, o qual é o mais fino que se acha em toda a costa (...).25
Segundo Oliveira Lima, o açúcar que era produzido nas capitanias de
Pernambuco, Itamaracá e Paraíba em 1618, se avaliava em “quinhentas mil
arrobas, levadas anualmente por muito mais de cem naus, todas fretadas por
particulares”.26
Ao contrário do que afirmam alguns autores, não é verdade que a in24
MERÊA, Paulo. História e Direito (Escritos Dispersos). Acta Universitatis Conimbrigensis,
Tomo I, Lisboa: Universidade de Lisboa, 1967, p.174.
SOUSA, Gabriel Soares de. Tratado Descritivo do Brasil em 1587. 4.ª ed. São Paulo, Companhia Editora Nacional e Editora da USP, 1971, p.58-59.
25
26
OLIVEIRA LIMA. Pernambuco e seu Desenvolvimento Histórico. Recife, Governo do Estado
de Pernambuco: Secretaria de Educação e Cultura, 1975, p.33.
HISTÓRIA DIGITAL - ANO II - Nº 02 - 2008
141
dústria açucareira tenha atingido “o seu maior desenvolvimento” na primeira
década do século XVIII.27 O que ocorreu foi que períodos de boas safras foram
intercalados por períodos de depressão, algumas vezes longos, em decorrência de secas e enchentes. E dessas ocorrências não se pode generalizar como
“maior desenvolvimento” da produção de açúcar, sobretudo baseando-se em
Antonil, cuja obra é de natureza promocional, pretendendo demonstrar a “opulência” da colônia e, deste modo, incentivar os principiantes “com várias notícias curiosas do modo de fazer o açúcar”.28
Alice P. Canabrava, responsável pelo estudo introdutório da obra de
Antonil, admite que “depois de 1670, enfileiram-se os anos de grande depressão, durante os quais, ao problema da concorrência dos engenhos de açúcar nas
Antilhas, veio juntar-se o da depressão européia”.29 Somente o último decênio
do século e começo do seguinte, registrou uma acentuada recuperação, ainda
assim modesta. Veja-se que em 1715, para contornar a situação crítica pela
qual passavam os engenhos da Paraíba, permitiu a coroa que se introduzissem
na capitania escravos pagos em açúcar, devido à falta de moeda circulante
e que se ajustasse uma companhia para ir buscar, às suas custas, negros na
costa da África. Ainda assim, não houve senhor de engenho que “comprasse
um”, frente às dificuldades em que todos se encontravam. Não resta dúvida,
entretanto, de que existiam os senhores de grande fortuna, os quais, além de
produzir o açúcar, possuíam capital que lhes permitia a comercialização do
mesmo. Sendo o comércio do produto de maior rentabilidade, a margem de lucro amenizava os problemas do desequilíbrio de safras, das perdas de escravos
e dos ataques dos índios.
O mercado do açúcar sofria, assim, em conseqüência das condições naturais desfavoráveis – secas ou enchentes – e das condições também desvantajosas do mercado europeu. Primeiro o açúcar de Amsterdã, depois o das Antilhas caíram de preço, passando a Inglaterra e a França a receberem o produto de
suas colônias, perdendo o Brasil o poder competitivo com o mercado europeu.
A imagem de sucesso da produção açucareira do Nordeste brasileiro no
período colonial é responsável pelo pressuposto teórico que permeia grande
parte das análises sobre o sistema de Capitanias Hereditárias do Brasil, o que
leva a avaliação do sucesso ou fracasso do sistema apenas na consideração das
AZEVEDO, José Lúcio de. Épocas de Portugal Econômico. 3.ª ed., Lisboa: Livraria Clássica,
1973, p.267.
27
28
ANDREONI, João Antônio (André João Antonil). Cultura e Opulência do Brasil. São Paulo:
Companhia Editora Nacional, 1967, p.127.
29
CANABRAVA. In ANDREONI, João Antônio (André João Antonil). Cultura e Opulência do
Brasil. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1967, p. 38.
142
HISTÓRIA DIGITAL - ANO II - Nº 02 - 2008
suas respostas às expectativas econômicas da metrópole, na maioria dos casos.
É nesse sentido, que se tem imputado às Capitanias Hereditárias de
Pernambuco e São Vicente o signo do sucesso, aparecendo como exceções no
meio de um “ensaio de colonização que não vingou”. Aliás, é só nessa perspectiva que a Capitania de Pernambuco aparece nos manuais e livros de História,
sobretudo naqueles voltados para o ensino médio, nos quais ela só ressurge
quando da ocasião da denominada “invasão holandesa”, depois na “guerra dos
Mascates”, acabando por ai a sua participação na história colonial do Brasil.
Em 1537 o donatário Duarte Coelho criou o Conselho ou Câmara da
vila de Olinda e lhe fez doação de terras para constituir o patrimônio do mesmo, para uso e serviço dos moradores dela, pelo chamado “Foral de Olinda”.
O nome é impróprio, uma vez que não tinha tal documento as características
desse tipo de diploma, cuja função era o de reger a relação entre o donatário e
o rei, definir os direitos políticos e a percepção de rendas dos donatários, assim
como as responsabilidades deles perante a Coroa, já que era através dos forais
que se fixavam os direitos, foros e tributos devidos ao rei e ao capitão-governador. O impropriamente denominado “Foral de Olinda” não deixa, contudo,
de ser um documento de importância, pois é o mais antigo com relação a este
município e contém dados sobre os primórdios da colonização da capitania de
Pernambuco. O Arquivo Histórico Ultramarino guarda duas cópias desse foral:
uma datada de 1675 e outra de 1723.
Pernambuco, como Capitania Hereditária, nos seus vários tempos, que
traduzidos em termos numéricos ocupou os anos entre 1535 e 1716, teve sua
história marcada na metrópole pelo reinado de dez monarcas e na própria Capitania pela posse de apenas quatro donatários: Duarte Coelho, Duarte Coelho
de Albuquerque, Jorge de Albuquerque e Duarte de Albuquerque Coelho, o
último por linha direta de sucessão.
A história político-administrativa da Capitania Hereditária de Pernambuco vivenciou no seu processo de desenvolvimento, três fases distintas, embora
não sucessivas, em termos cronológicos. A primeira dessas fases – 1534/1563
- foi caracterizada por uma estrutura administrativa bastante simples, na qual
o Donatário exercia amplos poderes jurisdicionais, em sua posição inconteste
de delegado régio, cujo exercício do poder no âmbito da Capitania, limitava-se
apenas pelo que as próprias cartas de Doação e Foral estabeleciam.
A segunda fase – 1563/1624 - foi marcada por uma maior complexidade da estrutura burocrática, organizada em função do acelerado crescimento
da economia, notadamente da produção açucareira que fez voltar os olhos da
metrópole com mais rigor e cobiça sobre a Capitania, levando ao que se pode
chamar de um primeiro ajuste das estratégias de dominação; isto, se consubstanciou na adoção de uma política de estreitamento dos limites da jurisdição
HISTÓRIA DIGITAL - ANO II - Nº 02 - 2008
143
donatarial e pela imposição de taxas e tributos exorbitantes sobre a população.
O período foi também assinalado por uma quase total ausência dos donatários
na administração da Capitania, o que lhes era facultado. Entretanto, lhes foi
cobrado pelas autoridades portuguesas, quando do fracasso da resistência à
invasão holandesa.
Depois do interregno holandês, veio uma terceira fase – 1654 - 1716
- que consolidou na Capitania de Pernambuco o poder da Coroa portuguesa
nos rumos da sua administração, revertendo-se em benefício dos soberanos
todos os direitos jurisdicionais e rendimentos do Capitão-Governador sobre a
Capitania, embora, até o término deste período, ela ainda fosse legalmente uma
Capitania Hereditária.
No que se refere à administração holandesa de Pernambuco, ainda que
por um período curto (1630-1654) quando confrontado com a extensão temporal do domínio lusitano, ela não pode deixar de ser referenciada quando se
trata da história de Pernambuco, daí a referência mais adiante na parte específica sobre o tema.
Réditos donatariais
(...) haja por bem de me ceder os dízimos dos meus próprios engenhos, e isto
somente do de minha lavra, e o que me pertencer nos de terceiros, e que a parte
dos lavradores seja muito embora de Vossa Alteza. - Duarte Coelho
É no conteúdo das Cartas de Doação dos Donatários das primeiras Capitanias Hereditárias brasileiras que encontramos as pistas para destrinchar o que
se constituiu no âmbito das Capitanias o útil dos Donatários, ou seja, as faculdades ou benefícios que o rei apartara de si em proveito desses particulares.
Grosso modo, podem-se classificar os réditos donatariais como sendo:
- aqueles relacionados ao território considerado como propriedade particular do capitão;
- as rendas provenientes de uma percentagem fixa sobre os proventos
régios auferidos na capitania, entre as quais se destacam as redízimas, equivalentes a 1% sobre o décimo, ou dízimo do rendimento arrecadado sobre a
produção da Capitania, sobretudo no dos engenhos;
- as rendas derivadas do exercício das faculdades de governo do capitão, como as pensões pagas pelos tabeliães etc.;
- as que lhes advinham por direitos chamados “exclusivos” como moinhos, fornos e engenhos.
É importante salientar que a palavra território, relacionada a essas
complexas realidades que foram as Capitanias, acolhe dois significados: um,
referindo-se a território como área delimitada de exercício de jurisdição, e definida geograficamente nas Cartas de Doação, a que não estava subjacente a
144
HISTÓRIA DIGITAL - ANO II - Nº 02 - 2008
propriedade do solo e, o outro, em sentido oposto, o território considerado
propriedade particular do Capitão e dos seus herdeiros.30
As rendas donatariais provindas da posse dos seus territórios nas Capitanias não eram de se desprezar. Jorge de Albuquerque, Capitão de Pernambuco, ao doar algumas terras aos frades beneditinos de Olinda, em fins do século
XVI, exigiu que esses religiosos lhe pagassem dez mil réis de foro em “cada
um ano por cada légua de terra, por lhe dar estas terras do meu reguengo”.31
Dos proventos auferidos pela Coroa, inseridos na categoria dos Próprios, era destacado um percentual fixo destinado aos Donatários, sobressaindo
aí as redízimas, ou dízimo do dízimo (equivalente a 1%), do que era arrecadado
para a Ordem de Cristo. O tributo, que incidia sobre a produção, visava menos
o morador na condição de proprietário do que na de cristão, que como tal, era
obrigado a concorrer para a propagação da fé, como exprimiu Costa Porto.32
Aos Donatários das primitivas Capitanias Hereditárias do Brasil, a
exemplo do que se vê na Doação de Pernambuco, o monarca concedia:
redízima de todas as rendas e direitos que a dita Ordem e a mim de direito na dita
capitania pertencer, -SS- [a saber], que de todo o rendimento que a dita Ordem e
a mim couber assim dos dízimos como de quaisquer outras rendas ou direitos de
qualquer qualidade que sejam, haja o dito capitão e governador e seus sucessores
uma dízima que é dez partes uma.33
Esse formulário, empregado nas doações das Capitanias brasileiras e
espelhado na primeira doação do Machico, em 1440, constou invariavelmente
de todas as doações.
De acordo com o que informa Evaldo Cabral de Mello para o ano de
1629, calculavam-se os dízimos de Pernambuco em sessenta mil cruzados anuais, os de Itamaracá em oito mil e os da Paraíba em doze mil, englobando-se
aí as redízimas que eram arrematadas conjuntamente com os dízimos, sendo
transferidos ao Donatário pelo agente da Fazenda Régia 1% que lhe cabia do
total recolhido.34
30
ALMOEDO DE ASSIS. Palavra de rei...: autonomia e subordinação da capitania de Pernambuco. Recife: UFPE, 2001. Originalmente apresentada como tese de doutorado, Universidade Federal de Pernambuco, 2001, p.56.
31
COSTA PORTO, José da. Estudo do Sistema Sesmarial. Recife: Imprensa Universitária, 1965, p. 28.
32
Idem, p. 29.
33
A.N.T.T., doc. cit., fl. 82-83.
MELLO, Evaldo Cabral de. Guerra e Açúcar no Nordeste, 1630-1654. 2.ª ed., Rio de Janeiro:
Topbooks, 1998, p.178.
34
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145
Considerando-se o período em que os números são apresentados, era
naturalmente sobre o açúcar produzido na Capitania que se fixava com maior
vigor a cobrança dos dízimos, embora não se possa deixar sem registro o fato de
que, logo após ser instituído o sistema das Capitanias brasileiras, a Coroa portuguesa, no fito de estimular a produção açucareira, adotara uma política de incentivo, isentando de impostos, por dez anos, os engenhos recém construídos.
Rendimentos dos Donatários diretamente extraídos das rendas da Coroa foram os adstritos ao seu estanco ou monopólio do pau-brasil, cabendo aos
capitães a “vintena parte do que liquidamente render para mim [rei], forro de
todos os custos o brasil que se da dita Capitania trouxer a estes reinos”.35
Ao primeiro Capitão de Pernambuco foi concedida, além do que constava da sua doação, licença para “cortar” o pau-brasil, o que significava, conforme explicita José Antonio G. de Mello que, dos direitos de entrada da madeira
nas alfândegas do reino, o Donatário percebia 5% não só da madeira cortada
através dos armadores, por conta do próprio soberano, como se estipulava em
sua doação, como também da que era cortada por terceiros, com licença régia.
Desta concessão não esquece Duarte Coelho, é o que se lê em uma das suas
famosas Cartas a El Rei: “haja por bem de me dar licença para que, em cada
um ano, possa mandar daqui três mil quintais de pau-brasil às minhas próprias
custas, livres de todos os direitos, para ajuda dos sobreditos gastos, para me
tornar a abastecer e refazer de cousas de que tenho necessidade para os negócios daqui (...).”36
O monopólio régio do pau-brasil persistiu como considerável fonte
de recursos para a Coroa portuguesa, cuidadosamente preservado, seguindo,
porém, o mesmo percurso que os demais estancos reais, ou seja, o arrendamento plurianual a particulares.
A esse expediente “régio” de arrendamento também recorreu Jorge de
Albuquerque sobre a parte que lhe cabia. Ausente de sua Capitania, o terceiro
capitão-donatário de Pernambuco requereu à Coroa a prerrogativa de arrendar
a vintena do pau-brasil que lhe pertencia, o que lhe foi concedido por Alvará de
Felipe I [de Portugal], datado de 26 de fevereiro de 1591, incluindo a exigência
de que o arrendamento fosse cumprido por quem quer que viesse a herdar a Capitania, caso o requerente morresse antes de findo o prazo do contrato, sem que
pudesse “alegar lei e ordenação ou outro qualquer direito contra o dito arrendamento”.37 É de se observar que a vintena do pau-brasil era paga aos Donatários
35
A.N.T.T., doc. cit., fl. 82-83.
36
MELLO, Cartas de Duarte Coelho, cit. p. 14.
37
A.N.T.T., Chancelaria de Felipe I, L. 30, fl. 324 v.
146
HISTÓRIA DIGITAL - ANO II - Nº 02 - 2008
em Lisboa, pelos Vedores do “Tribunal” da Índia, sobre o rendimento líquido
do respectivo estanco régio, de forma que o pedido de Jorge de Albuquerque
configurava-se como a solicitação de um empréstimo à Coroa, ou uma antecipação, o que hoje poderia ser classificado como gratificação funcional. Apesar
de ser monopólio da coroa, o rei concedia licença a particulares para o corte e
remessa para a metrópole, e Duarte Coelho foi um desses beneficiários.
Na generalidade das Capitanias, constituíram-se ainda proventos do
Donatário, meia-dízima ou vintena do pescado, inclusive na de Duarte Coelho,
pois, muito embora se veja no texto da sua Carta de Doação que se lhe concedia meia dízima da que era arrecadada para a Ordem de Cristo, a mercê foi
retificada no final do próprio texto, onde se lê: “hei por bem que a tal mercê
não tenha vigor algum porquanto se viu que não podia haver a dita metade da
dizima por ser da Ordem”.38 Tal cautela vai se repetir nas doações posteriores
à de Pernambuco, nas quais se expressava exatamente o que essa mercê comportava, como seja: “(...) da meia dizima do pescado da dita Capitania, que é
de vinte peixes um, que tenho ordenado se pague além da dízima inteira que
pertencer a Ordem segundo no foral é declarado”.39
Comparados os proventos da piscicaptura com o porte adquirido por
aquelas rendas advindas do açúcar ou do pau-brasil na Capitania de Pernambuco, a atividade pesqueira assume proporções bem pequenas no conjunto das
rendas donatariais. Essa imagem, todavia, torna-se logo ilusória quando se voltam os olhos à realidade do cotidiano colonial, em que a pesca se configurava
como um dos principais itens da dieta da população, portanto com um valor de
troca garantido permanentemente, sobretudo nos momentos de crise de abastecimento tão freqüentes na vida da colônia.
Outros rendimentos calculados sobre a receita dos monopólios da Coroa nas Capitanias referiam-se ao dízimo que cabia ao Donatário receber sobre
o quinto da Coroa, quando houvesse nas terras das Capitanias “costa, mares,
rios e baías delas, qualquer sorte de pedraria, aljôfar, ouro, prata, coral, cobre,
estanho, chumbo, ou outra qualquer sorte de metal”.40
Da extração de minérios, a Coroa portuguesa não obteve grandes lucros
da Capitania de Pernambuco; seria nenhum se não fossem as minas de salitre
(Nitrato de potássio), que, de acordo com Pereira da Costa,41 foram encontradas
ao Norte do rio de São Francisco em princípios do século XVII, começando a
38
A.N.T.T., Chancelaria de D. João III, Livro 7, fl. 82-83.
39
A.N.T.T., Idem, Livro 9, fl. 121.
40
A.N.T.T., Idem, Livro 7, fl. 82-83.
41
PEREIRA DA COSTA, Anais Pernambucanos, cit. VII, p. 231-232.
HISTÓRIA DIGITAL - ANO II - Nº 02 - 2008
147
ser exploradas já em 1702 com a utilização de mão-de-obra indígena, recrutada coercitivamente nos aldeamentos controlados pelo governo da Capitania,
localizados nas proximidades de Campos de Buíque.42
Diretamente vinculados às faculdades de governo dos Donatários estavam os rendimentos oriundos das nomeações de oficiais, notadamente da área
da justiça e do governo da Capitania.
O direito de nomear pessoas para o preenchimento de cargos foi uma
das áreas da jurisdição donatarial em Pernambuco que mais cedo sofreu intervenções da Coroa; mesmo assim, alguns dos cargos continuaram a ser providos pelos capitães e, por conseguinte, a lhes render pensões, a exemplo dos
tabeliães, o que se deu pelo menos até 1655, ano em que o Mestre de Campo
e governador de Pernambuco Francisco Barreto acusa ter recebido a carta que
D. João IV expedira em 5 de dezembro de 1654, pois, a partir daí, deveriam se
tornar sem efeito,
quaisquer autos de posse que Dom Miguel43 tiver feito, e priveis todas e quaisquer pessoas que tiverem posto ofício ou qualquer outra cousa feita por ele,
não consentindo que o dito Dom Miguel ou Duarte de Albuquerque exercitem
auto algum de donatário, nem cobre com o tal, direito, ou emolumento (...); não
admitindo requerimento algum que contra ela se vos fizer, nem aceitando papel
ou petição, porque a Mim só, toca deferir requerimentos (...).44
Não sem motivo, encheram-se as mesas dos Conselheiros do Ultramarino de requerimentos, certidões e folhas de serviço enviadas ao rei, formando
processos que por vezes demoravam anos para serem decididos, como foi o
de Manuel de Miranda, juiz do peso da balança de Pernambuco, cujo processo
para receber os rendimentos do seu cargo, provido por Duarte de Albuquerque
Coelho, teve inicio em 17 de junho de 1653 e se estendeu até 1661.45
Câmaras municipais
Os privilégios concedidos aos senhores rurais desempenharam uma fun42
Cidade do Sertão de Pernambuco, atualmente denominada de Buíque.
43
D. Miguel Portugal era genro de Duarte de Albuquerque, casado com a Condessa de Vimioso,
Dona Maria Margarida de Castro e Albuquerque.
44
A.H.U., Pernambuco. Carta de D. João IV ao mestre de campo e governador Francisco Barreto,
Lisboa 5 de dezembro de 1654. Este documento certamente na nova catalogação do Resgate foi
colocado entre os anexos.
45
A.H.U_ ACL_ CU,015, Cx.7, Doc. 625.
148
HISTÓRIA DIGITAL - ANO II - Nº 02 - 2008
ção essencial na política da capitania, a tal ponto que, pouco a pouco, conduziram os seus destinos para as mãos de uma oligarquia que vai permanecer no
poder até quando as rendas dos engenhos passem a pesar menos na receita das
arrecadações do reino, do que as provenientes do mercantilismo, cujos representantes passaram a exigir a participação na vida política da capitania. Os fins
do século XVII e começos do seguinte foram marcados por posturas animosas
entre a câmara de Olinda e o governador de Pernambuco. Até ínfimos problemas de conveniência de tratamento de cortesia eram discutidos na corte.46
Quem lê a correspondência da época, verifica a arrogância com que os
representantes do senado da câmara desafiavam o governador da capitania,
exigindo, através do rei, seus direitos e até a glorificação nos atos públicos e
religiosos, com lugares de honra garantidos ao pé do estandarte (nas procissões
de Olinda), antes da pessoa do governador, e de sentarem-se em cadeiras de
espaldares, quando nas cerimônias em recinto fechado.47
Até então o poder central da colônia – o governo geral que funcionava
na Bahia – mantinha essa garantia a todo custo. Estabelecia o regimento dado
ao governador geral do Brasil Roque da Costa Barreto, em 1677, que deveria
o chefe do Estado escrever sempre que seguissem navios para o reino, mesmo
não havendo novidades, cuidando de não impedir que também escrevessem,
ainda que para se queixarem, as câmaras e seus oficiais, e também os Justiça,
Fazenda e Guerra.48 Representou, sem dúvida, a criação do novo Conselho,
uma tentativa de facilitar o entendimento direto dos oficiais da câmara com o
rei e demonstrou uma flexibilidade da coroa para com a colônia. Aumentaram
assim as oportunidades de contatos entre uma e outra. No rol das petições com
apresentações de papéis de serviços prestados na guerra holandesa, encontramse negros cativos requerendo sua alforria como lhes fora prometido em campanha.49 A partir das recomendações da corte, a câmara de Olinda passou a se
comunicar diretamente com o rei, sem se preocupar com a presença dos seus
representantes na colônia, - os governadores -, e a se comportar, quando muito,
como se fosse igual aos mesmos na hierarquia.
Fiscalidade municipal
Excetuando-se a coleta dos dízimos, feita por particulares, detinha a
câmara de Olinda o controle das operações financeiras da capitania. Alguns
46
PEREIRA DA COSTA, Anais Pernambucanos, cit. V, p. 101-102.
47
Breve Compêndio, RIAP, vol. LI, p. 299, nota 49.
48
DOCUMENTOS Históricos, VI, cap. 57, pp. 453-454.
49
RIAP, vol. XXXVII, p. 241-243.
HISTÓRIA DIGITAL - ANO II - Nº 02 - 2008
149
dos direitos dos donatários, após a restauração, foram transferidos para ela.
Um deles, verdadeira “regalia senhorial”, era a taxação sobre as passagens dos
rios e sítios de pescarias, que consistia num tributo cobrado pelo transporte
em barcos para travessia dos rios.50 Aquelas prerrogativas donatoriais que não
foram deferidas eram invocadas com freqüência, entre elas não ser obrigado a
pagar pensões, redízimas e vintenas.51 Além deste conjunto de regalias, cabialhe taxar o preço dos açúcares e, na maioria das vezes, o fazia exageradamente,
abuso que o rei procurou coibir em 1687, quando determinou aos oficiais da
câmara se abstivessem desta atividade porque, na qualidade de lavradores interessados taxavam o açúcar por preço exorbitante “com o que estava o comércio
arruinado e quase extinto”.52
Os oficiais da câmara de Olinda não só queriam manter sob seu controle
as finanças da capitania, mas, também, procuravam eximir-se de suas obrigações, por exemplo, as de manter as tropas de infantaria, sob a alegação de
escassez de recursos. Desde 1654 ficara estabelecido um subsídio militar para
tal fim. Tratava-se de uma imposição que recaía sobre determinados gêneros
– açúcar, carnes, tabaco, garapa e vinho – arrematados pela câmara que era a
administradora dos referidos contratos. Em 1663, em vista das excessivas despesas da câmara e ao “gravame dos povos que não tinham rendas para pagar os
terços de infantaria e mais oficialidade” a metrópole ordenou fossem reduzidos
para dois o número deles, ficando o Recife servido pelo terço do mestre de
campo D. João de Souza e Olinda pelo de Antônio Dias Cardoso.53
RECEITA DOS DONATÁRIOS
TRIBUTOS AUFERIDOS PELOS FORAIS
1.Sisas e imposições
2. Dízima
3. Dízimo do pescado
4. Redízima
5. Vintena
6. Meia-dízima do pescado
TRIBUTOS COBRADOS PELAS
CÂMARAS
7. Pensões dos cargos
1. Fintas
8. Pensões dos engenhos 2. Coimas
9. Direitos de passagens 3. Passagens dos rios e sítios de pescarias
dos rios
10. Saboaria
11. Sal
50
PEREIRA DA COSTA, cit. III, p. 410.
51
AHU, Códice 16, fl. 46.
52
GARCIA, cit., p. 111.
Esse imposto ainda se cobrava em 1819, data em que o rei isenta os indígenas de Pernambuco, Paraíba e Ceará de tal pagamento. PEREIRA DA COSTA, Anais Pernambucanos, III, p. 364, 380-382.
53
150
HISTÓRIA DIGITAL - ANO II - Nº 02 - 2008
Rendimentos da Coroa Portuguesa
(...) torno a dar conta (...) a Vossa Alteza do que se passa acerca dos dízimos e
dos direitos dos engenhos, do que tudo por petição do povo e requerimento do
feitor de Vossa Alteza se lavrou em autos, nos quais se deu por sentença que
pagassem todos, em geral, os dízimos em açúcar feito e purgado, segundo uso e
costume dos Reinos e Senhorios de Portugal (...) - Duarte Coelho
O sistema de dependência da colônia à metrópole teve no fiscalismo
uma de suas principais características. Os impostos exigidos por Portugal eram
tantos – dízima, redízima, vintena, finta, subsídio, quinta, pedágio, derrama,
sisa, donativo, portagem, porção, açougagem – que a contravenção do fisco
sob as vistas grossas de funcionários subornados generalizou-se na colônia.
Restaurada a Capitania de Pernambuco do poder dos holandeses, a
campanha incessante pela defesa do território colonial por quase 24 anos,
agravou o endividamento dos senhores de engenho. Os canaviais haviam sido
queimados ou abandonados; os escravos tinham fugido para o sertão; os engenhos precisavam ser reconstruídos; as cobranças das dívidas eram realizadas
impiedosamente pelos oficiais de justiça quando aceitas pacificamente e, no
caso de reação, pelos oficiais de milícia, de maneira a constranger os devedores
“a obedecerem e, com efeito, pagarem”.54
Para remediar tão grave situação, a metrópole reiniciou a mesma política de incentivos adotada quando da construção dos engenhos, no início
da colonização: concedeu aos “feitos de novo”, ou seja, àqueles que foram
reconstruídos, dispensa de 10 anos nos impostos de todo o açúcar embarcado para Lisboa.55 Como era costume dos credores se apossarem dos bens dos
devedores levando-lhes escravos, móveis, roupas, quando não canaviais, moendas, cavalos, debilitando assim, ainda mais, o funcionamento dos engenhos,
pleitearam os senhores uma prorrogação de suas dívidas por 6 anos, depois
por 10, e por fim pediram “provisão perpétua” para que não fossem jamais
executados em seus “bens imóveis ou de raiz”, mas só nos rendimentos deles.
Pediram, também, que os açúcares não se arrematassem por nenhuma dívida,
uma vez que os judeus costumavam executar os bens de seus devedores como
resgate de dívidas contraídas a juros onzenários. Repetiram-se petições deste
estilo por todo o século XVII, vindas de vários senados de câmaras do norte
do Brasil: de Pernambuco, da Paraíba e de Itamaracá. A quase tudo atendia a
coroa e até censurava seus ministros quando não guardavam as suas ordens.56
ACIOLI, Vera Lúcia Costa. Conflitos de jurisdição: aspectos da administração colonial. Recife:
Universitária UFPE – UFAL, 1997, p.35.
54
55
Idem, p.63.
56
Documentos Históricos, X, p.13. Apud ACIOLI, 1997, p.36.
HISTÓRIA DIGITAL - ANO II - Nº 02 - 2008
151
A isenção concedida aos senhores de engenho para o açúcar embarcado
às suas custas, específica para os engenhos recém-construídos, conforme já
explicitado, deu margem para estes senhores comprarem o açúcar dos antigos
engenhos, remetendo-o para Lisboa como se fosse produção dos recém construídos, sem pagar nenhum tributo. Organizaram-se assim os colonos nas sonegações de impostos como nas fraudes e contrabandos, passando semelhantes
deslizes à conotação de atos lícitos e até mesmo dignos das simpatias gerais.
A segunda metade do século XVII foi uma fase de atitudes aparentemente conciliadoras por parte da metrópole, às vezes até protetoras, mas que no
fundo eram políticas. Eram “proteções” de benefícios duvidosos para a colônia
e que revertiam em vantagens para a coroa, pois, enquanto o rei recriminava
o governador de Pernambuco por impor um tributo (a finta) aos senhores de
engenhos para a reconstrução da Sé de Olinda, dando como argumento serem
“muito pobres”, não permitia que nenhum deles deixasse de pagar os donativos
para o sustento de tropas que se encarregavam da segurança da capitania57.
Diante do pedido de que os aliviasse dessa contribuição, o rei foi incisivo nas
ordens a Francisco de Brito Freyre:
Porquanto algum morador desse Estado se procuram [sic] isentar de pagar
os donativos e contribuições para o sustento da infantaria, e muitos se valem
para isso do privilégio de cavaleiro das Ordens, e de outros, e convém que em
causa tão comum como é a da diferença, não haja separação de pessoas, qualidades, nem privilégios, mandeis passar a provisão que será com esta carta;
encomendo-vos e façais executar tão pontualmente como nela se contém, e lhe
façais dar inteiro cumprimento, como dito por certo fareis. Escrita em Lisboa, a
17 de abril de 1663. Rei.58
Não é difícil entender que, com o acúmulo de mais uma cobrança para o
senhor de engenho, da qual de nada lucraria a Coroa, comprometeria mais esta
classe já angustiada com uma sobrecarga de tributos.
Em 1662 um compromisso novo vai onerar as finanças, já sacrificadas,
dos senhores de engenhos. Foi o imposto (finta) para o dote da rainha. Com a
indenização a que se obrigara Portugal a pagar à Holanda pela perda de seus
domínios no Brasil, coincidiu o casamento da infanta portuguesa D. Catarina
de Bragança com o rei da Inglaterra Carlos II, criando-se, para ambas as despesas, um donativo com o título de “Donativo voluntário dos povos para o dote
da rainha da Inglaterra e Paz de Holanda”59.
57
ACIOLI, Conflitos de Jurisdição, cit. p.47.
58
ARQUIVO PÚBLICO JORDÃO EMERENCIANO (Pernambuco), Carta régia de 17-4-1663, d.a.
59
PEREIRA DA COSTA, Anais Pernambucanos, cit. III, p. 499.
152
HISTÓRIA DIGITAL - ANO II - Nº 02 - 2008
Portugal, por interesses dinásticos, precisava comprar a paz e o fez sacrificando também o Brasil. Fora esta fórmula encontrada para indenizar os
holandeses pelos bens de raiz deixados em terras brasileiras. Coube ao Brasil
a parcela de 140 mil cruzados, a serem cobrados, segundo o contrato, por 16
anos consecutivos ao estabelecimento do mesmo. Contudo, como ocorreu com
outros impostos lançados pela coroa, ainda em 1830, figurava no orçamento do
império, no valor de 25 contos de réis.60
É de se notar que da receita da Coroa portuguesa, ainda que a cobrança
de tributos se configurasse como um dos itens de maior peso no conjunto das
rendas auferidas, a se guiar pela classificação moderna, estas rendas dividiamse em cinco categorias, conforme se descrimina no quadro abaixo.
RECEITA DA COROA PORTUGUESA
PRÓPRIOS
TRIBUTOS
Sisas:
Dos ramos:bens de raiz, propriedades,
carnes,vinhos.
Das correntes: mercadores de
passagem, terças, consulado
Alfândegas: portos marítimos, portos
secos (terrestres), portos molhados
(fluviais), portos secos
Usuais: carnes e vinhos, tabaco e os
monopólios
Reguengos
Pauis e lezírias
Contadas e defesas
Jugadas
Foros
Direitos reais dos forais
Reditos das minas
CONDENAÇÔES
PADROADOS
Réditos decorrentes de confiscações dos
bens dos condenados
Penas dos contrabandos
Décimas das sentenças pagas
Pensões dos tabeliães
Rendimentos das capelas da Coroa
Comendas das Ordens Cristo/Avis Bula
da Santa Cruzada
ESTANCOS OU
MONOPÓLIOS
Sabão
Pimenta
Pau-brasil
Sal
Sublimado
Cartas de jogar
Tabaco (mais tarde)
FINTAS
Paz de Holanda Casamento da Infanta
(imposto voluntário de socorro ao
Erário Régio)
O expediente mais utilizado para o crescimento da receita do erário régio
em Portugal foi a criação de novas fontes de tributação, tanto para o reino propriamente dito como para suas possessões ultramarinas. As mais significativas
cobranças vigentes no Brasil Colonial estão listadas no organograma a seguir.
TRIBUTAÇÃO RÉGIA NO BRASIL
1. DÍZIMOS
2. QUINTOS
3. DIREITO DE
PASSAGEM
4. DIREITO DE
ENTRADA
5. SUBSÍDIO
REAL
6. SUBSÍDIO
DO VINHO
10% sobre todos
os frutos da
colônia: agrícolas,
gados e pescarias;
também sobre
os produtos de
exportação e
importação (10%
ad valorem).
20% sobre ouro,
pedras preciosas
e outros minerais.
Em 1730 foi
reduzido para
12%.
Pedágio de
passagem de
pessoas ou
animais.
Tributo sobre
entradas de
mercadorias
transportadas por
animais de cargas.
Direito sobre
a carne verde,
couros,
aguardentes e
lãs grosseiras
manufaturadas na
colônia.
Tributo taxado
sobre o vinho e
das aguardentes
e sobre o azeite
doce.
60
Idem, p. 503.
HISTÓRIA DIGITAL - ANO II - Nº 02 - 2008
153
7. TAXA DOS
ENGENHOS
8. SUBSÍDIO
DOS
ESCRAVOS
9. SUBSÍDIO
LITERÁRIO
10. DÉCIMA
11. SISA
12. MEIA-SISA
Tributo
arrecadado sobre
os engenhos de
açúcar e destilarias.
Taxado sobre a
importação de
escravos e sobre
aqueles que iam
para as minas.
Sobre cada rês
abatida para
consumo e sobre
a aguardente, para
custear os mestres
régios.
10% dos
rendimentos
anuais das
propriedades
imóveis.
10% sobre a
venda de casas e
outros imóveis.
5% sobre a venda
de escravos
aculturados, os
escravos ladinos
13. PAZ DA
HOLANDA
14. FINTA DA
RAINHA
15. NOVOS
DIREITOS
16. DONATIVO
VOLUNTÁRIO
17.BENEFÍCIO
BANCO do
BRASIL
18. TAXA
SUMPTUÁRIA
Tributo de
indenização à
Holanda.
Tributo para o
casamento da
rainha D. Catarina
com o rei da
Inglaterra.
Taxa de 10%
sobre os salários
dos oficiais da
Fazenda e Justiça
Doação instituída
em 1756, para
reconstrução de
Lisboa após o
terremoto. Sendo
voluntário variou
conforme decisão
das câmaras
Municipais.
Imposto em
benefício do
Banco do Brasil
– 12$800 sobre
negociantes,
livreiros e
boticários, lojas de
ouro, tabaco, etc.
Em benefício
do Banco do
Brasil, sobre cada
carruagem de duas
ou quatro portas.
Oficiais do Rei
(...) dou conta a Vossa Alteza e lembro-lhe o que já lhe tenho escrito, que proveja
e mande a todas as pessoas a quem deu terras no Brasil, que venham a povoar e
residir nelas, porque assim convém a seu serviço, pois essa foi a condição. Ou,
já que não vêm, que ponham em suas terras pessoas aptas e suficientes e ouvidores que conheçam e saibam o que hão de fazer, e não homens quaisquer, porque
estes não fazem mas desfazem no bem que se deve fazer, porque mercenarius
mercenarius sum. - Duarte Coelho
A palavra funcionário associada ao serviço público só aparece sistematicamente utilizada em fins do século XVIII. Durante a Idade Moderna, assim na
Europa como na América colonial, o detentor do ofício era um “oficial”, fosse
de ocupações mecânicas ou de um cargo público. Nos verbetes foram usados os
termos “ofícios” e “cargos” indistintamente, tanto para os ocupantes dos cargos
públicos como para os ofícios militares, como era usado no Brasil colonial.
Em Portugal e conseqüentemente no Brasil, o exercício do cargo exigia,
a princípio, uma relação de fidelidade pessoal, que extrapolava a vantagem patrimonial (benefício). O direito consuetudinário, contudo, acabou por permitir
que os ofícios ingressassem no patrimônio do titular, podendo ser vendidos
(venalidade), arrendados (penhorabilidade) ou deixados por herança (hereditariedade). As qualidades requeridas para o exercício do cargo (mérito) e a
responsabilidade pelo seu desempenho deixaram de ser prioridades. Por essência, a honra ou benefício, opõe-se à função; a fidelidade, à competência; e a
patrimonialização, à revocabilidade. Até fins do século XVII os princípios da
teoria patrimonial predominaram em Portugal.
154
HISTÓRIA DIGITAL - ANO II - Nº 02 - 2008
A Coroa portuguesa delegou aos seus beneficiários poderes nas várias
esferas de competência administrativa, inclusive na de justiça aos donatários
das primeiras capitanias hereditárias brasileiras; contudo, sempre se mostrou
ciosa quanto à administração dos cargos relativos à sua Fazenda. Mesmo assim uma Consulta do Conselho Ultramarino, datada de 1675, indica a venda
do ofício de Provedor da Fazenda Real da Capitania de Pernambuco a fim de
angariar fundos para ser utilizado no socorro do reino de Angola.
Do exposto podem ser observados dois pontos relevantes na análise da
política administrativa da Coroa portuguesa: o primeiro, é no mínimo paradoxal, ou seja, a venda de um cargo da maior importância para garantir na colônia a receita régia, o que por coerência só poderia ser ocupado por pessoa de
inteira confiança do monarca; segundo, de que do produto dessa venda para o
socorro de Angola, fica perceptível que não havia uma singularidade da política régia voltada para o Brasil, sendo as estratégias de dominação voltadas para
o império ultramarino como um todo, ainda que para garantir a efetividade
dessas estratégias a Coroa agisse de forma diferenciada nos diversas partes de
seus domínios transmarinos.
Numa terra onde o crescimento da burocracia onerava a coroa portuguesa, mas era imprescindível à sobrevivência do sistema, era natural que procurasse uma solução para contornar o problema. E a encontrada foi manter os
salários inalterados por muitos anos e “fechar os olhos” para as atividades paralelas que os funcionários públicos desenvolviam na colônia e que chegavam
ao conhecimento do príncipe.
São muitos os casos que se podem apontar sobre irregularidades cometidas por ouvidores e outros funcionários régios no exercício das suas funções
na Capitania, que mesmo denunciadas não tiveram quaisquer conseqüências
para os ocupantes dos cargos.
Como exemplo clamoroso dessa situação, pode ser citado o caso do
ouvidor João de Sepúlveda e Matos, denunciado ao príncipe regente D. Pedro
pela Câmara de Olinda em 24 de maio de 1670, por não dar conta de suas funções e viver de negociar “courama” na sua casa particular do Recife na mesma
sala onde efetivava seus despachos.61
Relações entre Igreja e Estado
(...) E assim Senhor para as obras e cousas das igrejas da obrigação de Vossa
Alteza, sobre o qual tenho escrito (...) peço que proveja, por haver disso muita
necessidade. Duarte Coelho
Ao tratar do papel da Igreja na capitania de Pernambuco, não se pode
61
A.H.U._ ACL_ CU _ 015, Cx.9, D.897.
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esquecer as estreitas relações que se estabeleceram no Brasil colonial entre
o Trono e o Altar.
Os reis de Portugal e Espanha acumularam ao longo do tempo patronatos sobre seus domínios territoriais. Em Portugal é a partir de 1483 que o rei D.
Manuel toma de fato, o controle de todos os negócios eclesiásticos. Torna-se
nessa altura, Grão-Mestre da Ordem de Cristo, sucessora dos Templários62 que,
extintos em todo o mundo por pressão de Filipe IV, o Belo, continuam, entretanto a exercer suas funções sob a denominação de Ordem de Cristo, ordem
exclusivamente portuguesa, sem muita expressão universal, mas com muito
poder dentro do território lusitano.
O Padroado Régio da Ordem de Cristo, no entanto, só formalizou-se
mesmo, através de duas bulas expedidas pelo pontífice Adriano que o concedeu a D. João III, o Piedoso, em 1551, por onde se incorporava definitivamente
o mestrado das três Ordens Militares à Coroa com direito sucessório; cabendolhe e aos futuros reis de Portugal, recolher os dízimos, apresentar os postulantes aos cargos eclesiásticos e prover as condições para o culto, ao mesmo
tempo em que, enquanto reis conservar o direito de propor a criação de novos
bispados e seus titulares. Neste mesmo ano se erigia o bispado da Bahia.
A conseqüência visível dessa estreita relação entre poder temporal e
eclesiástico é a formação de uma cumplicidade entre o projeto colonizador da
monarquia portuguesa e o projeto missionário gerado no espírito da reforma
tridentina, muito embora se constate a ausência de qualquer prelado que representasse o mundo colonial nas sessões do Concílio Tridentino que se desenrolava na Europa entre os anos de 1545 a 1563, mesmo já tendo sido criado o
arcebispado da Bahia.
Com efeito, os reis de Portugal conquistaram através de Bulas Pontifícias, o direito de governo do poder eclesiástico. Pela Bula “Inter Coetera”, de
1593, o Papa Alexandre VI concedeu ao Prior do Convento da Ordem de Cristo, sediada em Tomar, o padroado sobre as terras que em seu nome se achavam
descobertas ou viessem a descobrir.
Em 1508 a Bula “Universalis Eclésia” permitia ao rei propor a criação
de cargos eclesiásticos de toda a espécie e nomear os seus titulares, levantar o
dízimo do culto, controlar as comunicações entre as autoridades eclesiásticas e o
Papa, e vice-versa e dar ou recusar autorização para publicar as atas pontifícias.
Essas concessões não significam que fosse o rei investido de autoridade
62
Os Templários eram franceses e se dispunham a defender não só o reino de Jerusalém, mas
também aos peregrinos franceses que o visitavam. De defensores passam cedo a serem banqueiros
deles. Afortunadamente mudam rápido de nome, passando a se chamar templários, quando seus
membros instalam-se no palácio vizinho ao antigo templo de Salomão. De Pobres Cavaleiros de
Cristo passam a Cavaleiros da Ordem Militar do Templo, ou simplesmente Templários.
156
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religiosa, era um leigo como qualquer outro, mas sim que ele exercia poder
de governo sobre a Igreja existente em seus domínios. Este poder tornava o
aparelho eclesiástico um aparelho de Estado, sendo seus agentes submetidos a
autoridade do rei e, ao menos teoricamente, sustentados pelo tesouro real.
Não só a tutela administrativa transformava até os titulares das mais
altas dignidades eclesiásticas em meros funcionários do Estado, como o direito
de censura atingia também a hierarquia da Igreja e assim, política e economicamente, o patronato colocava a Igreja na mais completa dependência do
tesouro real, que com este expediente adquiriu recursos consideráveis.
A tutela da Coroa sobre Igreja será posteriormente causa de grandes
conflitos e confusões. Mesmo os órgãos do aparelho burocrático que exerciam
o direito ao governo eclesiástico, como a Secretaria dos Negócios Ultramarinos e a Mesa da Consciência e Ordens, chegavam a discutir a respeito da
jurisdição em determinados casos, principalmente no que se refere à aplicação
dos dízimos eclesiásticos.
Com o tempo os dízimos cobrados pela Coroa confundiram-se com as
demais rendas do Estado, apesar de que não era ao rei como tal que se pagava
os dízimos, mas ao rei na qualidade de Grão-Mestre da Ordem de Cristo. No
século XVIII o caráter eclesiástico dos dízimos estava já completamente esquecido e tinha se incorporado ao direito dos príncipes, os quais lhes davam
uma utilização secular.
Deste imposto é que se deveria retirar o necessário para prover a sustentação do clero; de onde se retirariam as côngruas dos vigários e daí também se
construiriam igrejas, se comprariam alfaias e tudo o que servisse à manutenção
do culto. Mas, o dízimo, transformado em mais um imposto, beneficiava apenas em parte a Igreja, tanto que a construção de muitos templos católicos foi
efetuada pelas ordens religiosas, pelos fiéis reunidos ou não em irmandades, e
mesmo por particulares.
Na realidade, sem contar com eventuais contribuições pecuniárias para
construção ou reparo dos templos, bem como para a compra de alfaias e ornamentos, ou para a decoração de altares, o compromisso do Estado no repasse
dos dízimos que recolhia se materializou nas côngruas.
Como expressava Duarte Coelho, no trecho em epígrafe, as necessidades da Igreja no Brasil colonial, ainda que obrigação do monarca, não foi
suprida por ele; em todos os tempos ou espaços da colônia, outros agentes
deram conta da empreitada.
Quando se procura estudar as relações entre Igreja e Estado e sua repercussão no cotidiano colonial da capitania de Pernambuco, não se pode deixar de
apresentar em grandes linhas no que consistiram as Ordens religiosas regulares
para essa sociedade, e em especial as quatro que formaram por assim dizer, “a
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157
coluna vertebral” do aparelho eclesiástico no Brasil: a Companhia de Jesus e
as Ordens de São Francisco, de São Bento e do Carmo. Instaladas na capitania,
estas Ordens fundam conventos nas principais cidades e vilas, a exemplo de
Olinda, Igarassu, Goiana e Recife, donde saem seus membros a catequizar indígenas, assistir a população colonial, fundar e manter entidades educacionais,
celebrar serviços religiosos nas terras senhoriais, vilas e povoados, criar e manter seminários, destacando-se neste ponto os colégios fundados pelos jesuítas.
Já em 1551 com a vinda dos padres Manoel da Nóbrega e Antonio Pires para Olinda, os jesuítas receberam de Duarte Coelho a ermida de Nossa
Senhora da Graça, construída pelo donatário, com todas as terras ao seu redor
para ser fundado um colégio e ter início à catequese dos indígenas. Em 1796
o antigo colégio dos Jesuítas, então abandonado, foi doado pelo então regente
D. João, ao bispo de Pernambuco, D. José Joaquim da Cunha de Azeredo Coutinho para nele funcionar o Seminário Episcopal. Segundo Gilberto Freyre “o
bispo Azeredo Coutinho foi talvez o primeiro brasileiro a sonhar para Olinda e
os seus montes um futuro tranqüilo de cidade universitária que viesse consolar
a antiga cidade de capitães generais de sua viuvez política. Ele fez do velho
colégio dos Jesuítas um esboço de uma universidade moderna, desenvolvendo
o ensino secundário em ensino superior, Olinda seria uma espécie de Coimbra;
e o Beberibe o seu Mondego”.63
Da obra dos Beneditinos em Pernambuco não se pode esquecer do
Mosteiro de São Bento, palco da instalação do Curso Jurídico de Olinda a
15 de maio de 1828 e da participação dos irmãos de São Bento como protagonistas de muitos movimentos políticos e das suas constantes querelas com
o governo civil da capitania.
Além das Ordens citadas que atuaram no Brasil Colonial mais três
importantes congregações religiosas: os Oratorianos, Mercedários e Capuchinhos igualmente exerceram influência em alguns setores da sociedade, mas
não atingem o mesmo padrão de interferência exercido na vida colonial pelas
quatro primeiras. As escolas conventuais dos carmelitas, dos franciscanos, dos
beneditinos, dos oratorianos em Pernambuco, e dos mercedários no Pará, foram os locais onde se formaram sacerdotes no Brasil colonial. Afora, como
já foi expresso, em relação aos jesuítas, essas escolas, eram os centros mais
dinâmicos para formação de sacerdotes.
Ainda sobre as Ordens religiosas que atuaram em Pernambuco vale salientar o papel que elas desempenharam no ensino público, assunto tão pouco
comentado nos livros de história de Pernambuco. Nos manuscritos do Ultramarino há larga documentação referindo o trabalho dos padres jesuítas, dos
63
FREYRE. Apud PEREIRA, Nilo. A Faculdade de Direito do Recife 1927/1977. Recife: Ed.
Universitária, 1977, I, p. 103.
158
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Beneditinos e dos que formavam a Congregação do Oratório de São Felipe
Néri, assim como dos professores régios que passaram a atuar após a reforma
Pombalina. Dos Beneditinos deve-se dizer que foram eles os fundadores da Faculdade de Direito de Olinda, primeiro estabelecimento de ensino superior do
Brasil, instalado no mosteiro da Ordem. Também foi da iniciativa dos padres
de São Bento a criação da Escola de Agricultura e veterinária, hoje Universidade Federal Rural de Pernambuco. No que tange ao ensino médio, ainda na atualidade, cabem às Ordens religiosas a coordenação de vários estabelecimentos
particulares nesse nível de ensino no Estado.
Anote-se que este assunto tem sido objeto apenas de estudos relativos à
História da Educação no Brasil, no mais das vezes apenas é referida a ordem dos
Jesuítas como a única a ter exercido tais funções na Colônia, abrindo-se mão de
rever o papel histórico das demais ordens eclesiásticas no âmbito da educação.
Merece registro o fato de que durante o período colonial o Brasil não
teve Ordens ou Congregações Religiosas femininas, apenas conventos e “recolhimentos” que foram as primeiras casas para mulheres com ideal de vida
religiosa. Provavelmente advém daí encontrar-se nos verbetes do catálogo da
Capitania de Pernambuco um bom número de solicitações de colonos ao rei
para obter licença no sentido de suas filhas embarcarem para o reino a fim de
servirem como religiosas.
A superioridade organizacional dos regulares sobre o clero secular é
bem conhecida, o que talvez se deva à disciplina e autonomia financeira adquirida pelos primeiros, haja vista que além das dotações reais, a princípio sua
principal fonte de renda, os conventos recebiam heranças e doações particulares, o que concorreu sobremaneira para formação de grandes patrimônios que
incluía entre outros bens fazendas de gado – utilizando-se mão de obra escrava, indígena ou africana – além de imóveis urbanos que lhes garantia usufruir
rendimentos suficientes à sua manutenção, independendo das dotações reais,
sempre irregulares e em descompasso com as necessidades anunciadas.
Conforme apontado o clero secular se apresenta ao nível da Colônia
menos organizado institucionalmente. Entretanto, na relação que mantém
com a população, esta é muito mais estreita chegando a se estabelecer laços
quase que de cumplicidade, a par dos desmandos e da inobservância aos
princípios religiosos e morais, que na esfera do catolicismo tridentino, deveria reger a prática eclesiástica.
Até o ano de 1676, o Brasil possuía apenas uma diocese, a da Bahia que
por mais de cem anos foi a única, tendo sido fundadas as de Pernambuco e Rio
de Janeiro em 1676, a do Pará em 1719 e a de Mariana e São Paulo em 1745.
A extensão dos limites territoriais das dioceses brasileiras, vai ser causa
de constantes reclamações ao Conselho Ultramarino por parte dos bispos, que
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159
por conta disso, segundo afirmavam nas cartas enviadas à metrópole, não podiam exercer a contento, ou com “o júbilo necessário”, as suas ações pastorais.
O livro Idéia da População da Capitania de Pernambuco e das suas anexas,
abrangendo os anos de 1774 a 1788, informa, por exemplo, a extensão da diocese de Olinda. De acordo com os números expressos nesse documento, no seu
território havia uma população de 278.905 pessoas, situadas em duas cidades,
22 vilas e 78 freguesias.64
Problema, dos mais citados na correspondência do Ultramarino, referese às longas vacâncias porque passaram as dioceses na colônia. É de se notar
que o bispado da Bahia ficou vago por setenta e três anos e a diocese de Olinda
por dez, creditando-se este fato às divergências entre Portugal e Roma nas primeiras décadas do século XVIII. Consulta de 23 de fevereiro de 1713, deplora
as enormes vacâncias a que ficaram submetidas pelo rei as dioceses de Pernambuco e Angola. Consta do documento: “Não sendo menos para lastimar os
que cometem os eclesiásticos, vendo-se sem bispo que emende, tendo-se por
notícia mui constante que o cabido de Pernambuco há ordenado um excessivo
número de pessoas indignas e que tem causado grande desconsolação”.65
A referência à função desempenhada pela Igreja partiu da premissa de
que, uma vez consolidada a conquista e estruturada a dominação senhorial, o
aparelho eclesiástico perdeu sua função de conquista dos índios, melhor dizendo, continuou exercendo esta função social, mas em escala muito menor e
menos importante em relação aos propósitos do projeto colonizador português
para o Brasil. A Igreja assumiu a partir de então a função social de manutenção
da unidade religiosa e moral do todo social e organização da vida coletiva.
Exclusivo do pau-brasil
(...) se perverteu este fazer de brasil, que põe em muita confusão a terra, e a
mim dá grande trabalho e fadiga em acudir a tantos desconcertos e remediar
desacertos. - Duarte Coelho
A “descoberta” do Brasil ligada a uma política de expansão mercantilista, implicaria, necessariamente, em que fosse encontrado de imediato um
produto que pudesse ser colocado no mercado europeu. As primeiras notícias
não foram nesse sentido, animadoras. Todavia, já em 1501, torna-se conhecido
o pau de tinta, de ótima qualidade, que seria encontrado em abundância e iria
ativar cada vez mais o comércio dessa madeira e suplantar o lenho oriental
IDÉIA da População de Pernambuco e das suas Anexas. In Anais da Biblioteca Nacional, vol.
XL, p. 1-63, p 53
64
65
Idem, p. 52-53.
160
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empregado há séculos na indústria de tinturaria.
Sua exploração, porém, não justificava que Portugal se desviasse da
rica rota do Oriente, que exigia todo um minucioso mecanismo de defesa. Encarando com realismo suas limitações, procurou a Coroa um caminho que lhe
permitisse, sem maiores despesas, lucros rápidos, arrendando essa exploração
a particulares, o que em 1506 já lhe rendia quatro mil ducados em virtude de
negócio com Fernão de Noronha e outros cristãos-novos.
Foi, desse modo, a exploração das matas que proporcionou o começo da
integração da Colônia na engrenagem do comércio internacional, ocasionando investidas constantes de forasteiros em busca do famoso pau de tinta. Nas
cartas de doação como nos forais dos donatários, é ele zelosamente reservado
como exclusivo do soberano e dos seus sucessores, embora fosse obrigação
do Capitão-mor, guardá-lo e conservá-lo, podendo os moradores da capitania
“aproveitar dele aí na terra, no que lhe for necessário, não sendo em o queimar,
porque queimando-o incorrerão nas sobreditas penas”, ou seja, de perderem
seus bens para a Fazenda Real66. Esse exclusivismo metropolitano se prolongará por todo o período colonial e será seguidamente afirmado pela Coroa
em provisões, regimentos, alvarás, etc. No regimento de Tomé de Souza há
recomendações para que o “brasil” só fosse retirado por pessoas com licenças
próprias e que “possam haver o dito pau com o menos prejuízo da terra”67.
O melhor brasil em Pernambuco
(...) quem quiser fazer brasil há muitos outros portos onde o podem fazer, sem
nos fazerem tanto mal e dano e tanto desserviço de Deus e de Vossa Alteza; e o
de por aqui ao redor, que é o melhor de todo este Brasil, ficará guardado para
quando Vossa Alteza se quiser servir, o que por sua ordem e com toda a prudência se fará.- Duarte Coelho
Na verdade o melhor pau era o extraído de Pernambuco e as “matas
do brasil” mais cobiçadas faziam parte dos municípios pernambucanos que
em seus nomes originais lembram a fartura e a qualidade da preciosa madeira
corante: São Lourenço da Mata, Nazaré da Mata e Santo Antão da Mata.
Contrariamente ao que se costuma afirmar, o interesse demonstrado
pelo pau-brasil não foi passageiro. Prolongou-se por todo o período colonial,
estendendo-se a outras madeiras que se vão revelando necessárias à Coroa.
Procurou Portugal reservar para si as melhores áreas florestais, numa políti66
BARROS, Henrique da Gama. História da Administração Pública em Portugal nos séculos XII
a XV. 2.ª ed., 11 vols. Lisboa: Sá da Costa, 1945-1954, I, p. 40-59.
67
DUAS Páginas de Nossa História, 1954, p. 57-94.
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161
ca compreensível para um país de pequeno território, pobre em matas e que
estava obrigado a renovar constantemente sua frota naval, devido ao número
elevado de navios perdidos nas longas travessias marítimas.
A Coroa, para atender a sua política de reservar para si as melhores
matas, chegou mesmo a proibir a concessão de sesmarias e a tentar reaver as
concedidas em áreas de florestas.
É certo que a importância do açúcar colocou a exploração do pau-brasil
em segundo plano, o que não significa necessariamente, esquecimento dessa
atividade, pois no início do século XVII continuava seu comércio rentável e,
conseqüentemente, pela ânsia dos contratadores em adquirirem os melhores
paus, sua exploração era tão desordenada que Filipe III procurou coibir essa
devastação num longo e minucioso regimento datado de 12 de dezembro de
1605. Entre outras providências determina o referido regimento que nos ditos
cortes se tivesse “muito tento a conservação de árvores” para que tornassem
a brotar, “deixando-lhe varas, e troncos com que os possam fazer, e os que o
contrário fizerem serão castigados”. Esses castigos poderiam levar à pena de
morte e à perda de toda a fazenda a quem tirasse, sem licença, mais de 100
quintais de pau-brasil.
Também no Regimento da Relação da Bahia, em 1609, foram exigidos
dos governadores, cuidado e proteção às madeiras em geral e, principalmente,
às destinadas aos engenhos68. A economia açucareira, já então firmada, conferia extraordinária valorização às nossas reservas florestais, reclamando providências para que não se esgotassem.
Todavia, as notícias que chegavam ao Reino eram de que os engenhos
estavam ameaçados de paralisação “por falta de lenha para o seu meneo” [sic].
Diante desse fato, a Coroa encarregou ao Governador Geral Diogo de Menezes
“tomasse desta matéria a informação necessária, e sobre o remédio que nisto se
deve dar, e que se conservassem quanto pudesse ser, assim as ditas matas para
benefício dos açúcares como das madeiras para navios e outras fábricas”.69
Em 1612, em recomendações feitas a Gaspar de Souza, seu sucessor,
baseadas nas informações fornecidas por “pessoas práticas”, estabeleceu a
Coroa que de nenhuma maneira se assentassem aldeias de índios a “menos distância de engenhos que uma légua” e que não se fizesse roça para
mantimentos “por outro tanto espaço”, causas que foram apontadas entre as
principais para a falta de lenha. Ordenou ainda cuidados especiais no corte
das árvores e a compra, pelos senhores de engenho, das terras de particulares
quando estes obrigados a fornecer lenha a preços fixados pela Câmara qui68
Coleção Cronológica da Legislação Portuguesa, I, 1854, p. 258-265.
69
BIBLIOTECA DO ITAMARATI, I., p. 85-102.
162
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sessem por essa razão, desfazer-se delas.70
Observa-se, entretanto, que essas medidas tomadas por Portugal não
tiveram sucesso, pois nos regimentos dos governadores seguintes, encontram-se transcritas as mesmas determinações, salientando-se que não haviam
sido cumpridas. São elas, às vezes, acrescidas de novas normas, a exemplo
da provisão de 3 de novembro de 1681, confirmada por alvará de 13 de maio
de 1802, que proíbe a construção de engenhos a uma distância inferior a
meia légua entre os mesmos.71
Aliás, dificilmente a Coroa teria condições de ser obedecida, levando-se
em conta os inúmeros problemas que enfrentou e que impediam uma política
de mais efetiva fiscalização. Problemas sérios como o da enorme distância
entre Metrópole e Colônia e entre capitanias e governo da Bahia, ou dificilmente contornáveis, como o de agir contra os donos de engenhos que cortavam
desordenadamente as madeiras que encontravam mais perto, para logo após
reclamarem sua falta. O fato não invalida o interesse régio que sofreu, naturalmente, as imposições de uma realidade muito mais forte.
Os próprios habitantes da Colônia, aqueles de maior visão que compreendiam os perigos de uma exploração desmedida das matas, fizeram queixas
e sugestões à Coroa sobre sua devastação e necessidade de conservação delas.
É interessante nesse sentido o requerimento dos moradores de Pernambuco,
principalmente senhores de engenho, datado de 10 de dezembro de 1756, em
que reclamam os estragos feitos pelos contratadores do pau-brasil e pedem
providências a respeito. O documento revela a dificuldade que havia para encontrar-se o referido pau, já a essa altura, “disperso e não junto do outro, para
dele se tirar uma pequena porção é necessário destruir uma grande quantidade
dos outros paus”72. No ano seguinte voltaram os moradores a se dirigir ao Rei,
agora pedindo indenização aos contratadores dos prejuízos que sofriam pelos
cortes, transportes e valor do pau. Um outro requerimento dos moradores de
Goiana à Rainha, em 1784, referia-se a consternação pela redução das matas
devido a roçados, incêndios, falta de cuidados, pedindo inquérito para os que
desobedecessem às determinações reais.
Por carta de 15 de abril de 1789, o governador D. Tomás Jose de Melo
comunicou ao Secretário de Estado de Negócios da Marinha e Domínios Ultramarinos que, daquela data em diante, não seria concedida sesmaria, sem que
os sesmeiros assinassem um termo pelo qual se obrigaram a não abaterem pau
70
BIBLIOTECA NACIONAL. Regimentos Vários 1642-1652, I., p.4, l , 62.
71
DOCUMENTOS Históricos, 1928, VI, p. 312-466.
72
ACIOLI, Vera Lúcia Costa. SILVA, Enilda Regina da. Estudo sobre as Matas do Nordeste do
Brasil. XXVI Reunião Anual da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência. Recife: 1974.
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algum que pudesse servir para as Fragatas ou Naus da Marinha Real.
Apesar das providências já tomadas com relação às cláusulas e reservas
com que se deveriam passar as Cartas de Sesmarias, os cortes de madeiras continuaram, segundo a Coroa, “irregulares e nocivos” e em poucos anos não se encontrariam paus para as embarcações em “sítios cômodos” e de fácil acesso aos portos
de embarque, o que acarretaria prejuízos “de gravíssimas conseqüências”73.
Para controlar os abusos “da liberdade até agora permitida”, ordenou a
Rainha por Alvará de 5 de outubro de 1795, relativo à distribuição de sesmarias,
que “nos portos de mar, e nos distritos das suas vizinhanças, e costas se reservem inteiramente àquelas matas, donde pela sua boa qualidade, abundância, e
melhor comodidade se possam cortar, e extrair as precisas madeiras, proibindo
“eles no todo, ou em parte se possam mais dar de sesmaria”, ainda que naquelas
“já existentes, e ocupadas pelos seus sesmeiros nos portos de mar, e nos distritos
das suas vizinhanças, e costas, e ainda no interior delas”, ficavam subsistindo as
suas concessões e datas. Exigiu porém que “nas suas matas se não cortem madeiras grossas, e de lei, e menos para construção de navios, sem que se preceda
licença do governador e capitão general da capitania, aonde se pretender efetuar
o corte”.74 Licença só concedida mediante reconhecida necessidade.
Dois anos depois, com o intuito de reafirmar as disposições anteriores,
de “tomar todas as precauções para a conservação das matas do Estado do
Brasil e evitar que elas se arruínem e destruam”, dispôs a Coroa por carta régia
de 13 de março de 1797 que, “sem a menor perda de tempo”, o governador
de Pernambuco informasse dos meios pelos quais se poderiam restituir “as
sesmarias já dadas, indenizando os proprietários com terras equivalentes no
interior do país, impondo desde logo (...) a obrigação de conservarem as madeiras e paus reais e estabelecendo igualmente as mais severas penas contra os
incendiários e destruidores das matas.” Ordenou ainda a demarcação das áreas
de matas e que o referido governador indicasse quais os sítios que necessitavam de ministros conservadores, apontando também a forma de administração
conveniente para se conseguirem múltiplos objetivos, tais como conservar as
árvores, economizar nos cortes das madeiras, facilitar as remessas e estabelecer uma perfeita contabilidade de maneira que se soubesse “o preço porque sai
cada peça das que se tiram das mesmas árvores.” Deveria entretanto “evitar
todo procedimento arbitrário na execução destas ordens”.75
Em obediência a essas normas, foi remetido edital para as vilas de Pernambuco, Paraíba e Alagoas, exigindo que os sesmeiros apresentassem seus
75
ACIOLI e SILVA, citado.
74
Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, 1973, T. 298, p.221.
75
ACIOLI e SILVA, citado.
164
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títulos aos corregedores das respectivas comarcas a fim de se examinar a sua
legalidade e de se informar ao Rei sobre os meios pelos quais se poderiam restituir à sua Real Fazenda aquelas sesmarias que ainda não estivessem povoadas.
Uma determinação tão importante como a de demarcação das matas
não foi, de fato, observada e em novembro do mesmo ano foi suspensa por
falta de dinheiro nos cofres da Real Fazenda.
Entretanto, não foi a Coroa a maior culpada das deficiências na aplicação das medidas concernentes à preservação das matas, pois chegou a nomear
funcionários para tal fim, a exemplo dos “construtores”, pagos pela Fazenda
Real para os cortes de madeiras, encarregados também, de descobrir as mais
próprias para a marinha e de zelar pelas matas.
Encontram-se referências frequentes em documentos dos fins do século
XVIII sobre dois desses “construtores”. De um deles, Manuel Prata, é conhecida
a indicação do ano de 1787 para os cortes na Capitania de Pernambuco. O outro,
Manuel Martins Beiriz, já trabalhava a essa altura no Brasil, muito embora não
se tenha notícia se foi o primeiro indicado para as incumbências mencionadas.
Mais importante que o cargo de “construtor” foi o de Juiz Conservador
das Matas. O primeiro a exercê-lo, por nomeação do governador de Pernambuco, provavelmente do ano de 1789, foi José de Mendonça de Matos Moreira,
então Ouvidor da Comarca de Alagoas, que passou a acumular duas funções.
Pelos vários e minuciosos relatórios sobre as matas de sua jurisdição, já na
época as mais importantes do Nordeste, demonstrou Matos Moreira ter sido
um grande conhecedor e defensor delas, o que justifica ter tido seu nome sugerido várias vezes para superintendente das matas “com jurisdição privativa”,
posto que, seguidamente, se pediu criasse a Coroa na referida comarca, por não
poder o Ministro Ouvidor “satisfazer juntamente deveres tão diferentes uns
dos outros.” A sugestão foi aceita e, então, pela carta régia de 11 de julho de
1799, foi Matos Moreira, oficialmente nomeado Juiz Conservador das Matas
das Alagoas, “vencendo ordenado de um conto de réis cada ano” e gozando
todos os direitos e a mesma jurisdição que foi concedida ao Juiz Conservador
dos Pinhais de Leiria “no que for aplicável nesse continente”.76
Em Pernambuco, segundo documento de 1803, não houve Juiz Conservador das Matas, “certamente por serem minguadas as que existiam ou restavam”.77
Além dos funcionários referidos, várias outras pessoas recebiam pagamentos da Real Fazenda por trabalhos temporários nas matas, onde também os
índios foram empregados nos cortes, transportes e embarques das madeiras.
Analisando-se objetivamente a política adotada pela Coroa portuguesa
76
AHU, Códice 18, fl. 70.
77
APEJE,. Livro 165. Ofícios do Governo 1803/1804.
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165
no Brasil, pode ser ela considerada como de preservação, uma vez que sempre
esteve atenta aos benefícios que as matas ofereciam, visando, é certo, os seus
interesses. Preservação, no sentido de tentar uma exploração dessas florestas
sem desperdícios, procurando sempre se adaptar às novas demandas de madeiras que iriam surgindo tanto na Metrópole como na Colônia. Poder-se-ia afirmar que tais medidas foram meramente colonialistas, porém eram legítimas,
se vistas sob a perspectiva mercantilista em que se enquadrava Portugal, como
outras metrópoles da época.
Naturalmente muitas das determinações salientadas, talvez a maioria
delas, não chegaram a ser observadas. Algumas parecem mesmo utópicas
como a de colocar olheiros nas matas para impedir que se fumasse no seu
interior, a de proibir “o bárbaro costume das queimadas”, ou ainda, a de exigir
a devolução de sesmarias em áreas de matas de marinha.78 Aliás, nesse particular, a própria Coroa recuou habilmente, revelando o quanto soube acomodar-se
às circunstâncias do momento, às exigências daqueles que com seus próprios
recursos promoviam o povoamento de sua colônia.
Todavia, não se pode negar que as poucas disposições que foram obedecidas contribuíram para evitar a devastação ainda mais precipitada das matas,
permitindo a existência de algumas reservas florestais no Nordeste brasileiro,
no momento da Independência.
Ensoberbos e revoltosos
(...) quando estavam os índios famintos e desejosos de ferramentas, pelo que
lhes dávamos nos vinham a fazer as levadas e todas as outras obras grossas
e nos vinham a vender mantimentos de que temos assaz necessidade, e, como
estão fartos de ferramentas, fazem-se piores do que são e alvoroçam-se e ensoberbecem-se e revoltam-se. Duarte Coelho
“Negros da terra”
O atual estado do debate histórico sobre as populações nativas do Brasil
levanta a questão dos etinômios, rejeitando por vezes a classificação de índios
para essa população. O termo é aqui usado em vista da tradição historiográfica,
embora consciente de que esta não é a nomenclatura adequada.
Verificar a prática cotidiana da administração com relação aos indígenas, quando se sabe que no quadro dos oficiais da Coroa, na Capitania, existia
a figura do Mamposteiro, nomeado procurador dos índios e a quem por princípio cabia resguardar os direitos indígenas, numa comunidade em que a sua
escravização fazia parte do cotidiano, ou ainda, destrinçar a rede de poder que
78
APEJE, Ordens Reais 1794/1797.
166
HISTÓRIA DIGITAL - ANO II - Nº 02 - 2008
se formou na Capitania pela associação entre cargo público e propriedade da
terra, são desafios de pesquisa.
Doação conturbada foi a que garantia aos Donatários poder resgatar
e mandar ao reino os “escravos que eles resgatarem na dita terra do Brasil”.
Claro está que a doação se referia aos indígenas. Para Pernambuco, como para
o Espírito Santo, Itaparica, Porto Seguro e outras esse número era de vinte e
quatro, mas, para São Vicente e Xingu, a última Capitania criada no Brasil em
1685, reforçava-se esse número para quarenta e oito “peças”.
O problema posto pela teologia sobre a liberdade indígena, tanto para
Espanha como para Portugal terminou por conduzir a uma série de medidas
com vistas a proibir o cativeiro dos nativos, no Brasil, notadamente a Lei de
D. Sebastião, assinada em Évora, datada de 20 de março de 1570, reiterada por
outros diplomas, como as decisões régias de 11 de novembro de 1595, a de 5 de
julho de 1605 ou a de 30 de julho de 1609. Tudo leva a crer que essa legislação
introduziu as mudanças que se vêem nas posteriores Cartas de Doação, como
na da ilha de Santa Catarina em 1666, onde se lê a advertência:
posto que se diga nesta carta que poderá mandar cada ano a este reino o dito
Capitão e governador e seus sucessores quarenta e oito escravos dos que resgatarem e houverem nas terras do Brasil para eles fazerem o que lhes bem estiver,
lhes não concedo esta condição por estar proibida a trazida dos escravos a este
Reino por uma Provisão do Senhor Rei Dom Sebastião, que a Santa Glória haja,
feita a vinte de Março de mil quinhentos e setenta.79
Essa limitação só se deu tardiamente para as demais Capitanias brasileiras através das Confirmações das Doações, sendo os casos de Itaparica (1613),
Espírito Santo (1675), São Vicente em 1676 ou Xingu em 1685, razão porque,
nos diz Saldanha80 no projeto de reforma das doações das Capitanias ultramarinas elaborado por Pinheiro da Veiga (o mesmo Procurador da Coroa na causa
dos Vimioso), uma das declarações de menção obrigatória, fosse precisamente
a que dizia o seguinte:
nos índios ou seu tratamento e liberdades se guardem as leis sobre eles passadas,
com determinação do que em contrário se concedeu nas ditas doações, conforme
a lei impressa do ano de 1570 no livrinho delas.81
Para os Donatários de Pernambuco não constou a confirmação de tal
79
Documentos da Biblioteca Nacional, p. 86-87.
80
SALDANHA, citado, p. 237.
81
BIBLIOTECA Nacional de Lisboa, Códice 7627, f. 37-37v. e 71-72.
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167
advertência, embora não se tenha notícias do trato de indígenas por parte deles; isso, entretanto, não significa que o comércio de escravos nativo não tenha
havido. Torna-se necessário atentar para o fato de que, mesmo não sendo impossível, como escreveu Felipe de Alencastro, a acumulação proporcionada
pelo trato de escravos indígenas, este se mostrava incompatível com o sistema
colonial, haja vista
(...) esbarrar na esfera mais dinâmica do capital mercantil (investido no negócio negreiro), na rede fiscal da Coroa (acoplado ao tráfico atlântico africano),
na política imperial metropolitana (fundada na exploração complementar da
América e da África portuguesa) e no aparelho ideológico do Estado (que privilegiava a evangelização dos índios).82
Independente do número de leis proibitivas promulgadas contra a escravização dos índios do Brasil, a elas se sobrepunham outras ordens ou concessões especiais permitindo o contrário. Contudo é de se notar que essas leis
tinham um caráter geral83 e apenas enquadravam-se nelas aqueles índios que já
“catequizados” integravam os projetos missionários. Aos demais o motivo da
“guerra justa” era suficiente para dizimar e escravizar, o que era bem utilizado
por aqueles que o faziam, como discorria o Mestre de Campo, melhor seria
dizer o Capitão do Mato Domingos Jorge Velho, para justificar o apresamento
e escravização de índios para integrar o que ele chamava de seus exércitos, ao
investir contra o Quilombo dos Palmares.
Primeiramente nossas tropas com que imos (vamos) à conquista do gentio brabo
desse vastíssimo sertão, não é de gente matriculada nos livros de Vossa Majestade, nem obrigado por soldo, nem por pão de munição (...); senão adquirir o tapuia gentio brabo e comedor de carne humana para o reduzir ao conhecimento
da urbana humanidade e humana sociedade (...) para por esse meio chegarem
a ter aquela luz de Deus e dos mistérios da fé católica, que lhes basta para sua
salvação – porque em vão trabalha, quem os quer fazer anjos, antes de os fazer
homens – e, desses adquiridos e reduzidos, engrossamos nossas tropas (...)84.
Considerações éticas sobre o trabalho com relação ao aproveitamento
da mão de obra indígena, no depoimento do preador de índios, mostra que na
Colônia se forjou uma mentalidade diferente da ética escolástica. Mas, para o
indígena, bem ou mal, ordens foram expedidas; o mesmo não se pode dizer
ALENCASTRO, Luis Felipe de. O Trato dos Viventes: formação do Brasil no Atlântico Sul
séculos XVI e XVII. São Paulo: Companhia das Letras, 2000, p. 126-127.
82
83
A.H.U., Carta de Domingos Jorge Velho ao rei. Outeiro da Barriga (Alagoas), 6 de julho de 1694.
84
ACIOLI, op. Cit. 2003, p.88-91.
168
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com relação ao trato de escravos negros. O tráfico de escravos foi sempre um
dos negócios mais lucrativos das capitanias brasileiras, com ou sem donatários
e sempre com o beneplácito da Coroa portuguesa, não faltando exemplos na
historiografia brasileira.
“Negro da Guiné”
Ainda que o sistema escravocrata marcasse as relações de produção e
a própria estratificação da sociedade colonial, esta é uma realidade que uma
análise superficial das ementas dos manuscritos do Ultramarino não deixa entrever. Na verdade, a temática apenas se torna visível quando se trata de cargas dos ditos navios negreiros ou dos movimentos de resistência do negro ao
trabalho escravo, notadamente quando se refere aos quilombos e no caso de
Pernambuco, ao dos Palmares.
O exame dos manuscritos leva, contudo, à constatação, no mínimo interessante, de que a imagem do monarca como defensor da justiça permeava o
imaginário da população colonial e mesmo dos escravos que a ele recorriam.
Não sem motivo a escrava Isabel Francisca de Souza, a serviço de Bartolomeu
de Souza, para quem vendia víveres pela cidade do Recife, apelou para a rainha, obtendo vitória. Dizia ela que no exercício de sua profissão de vendedeira
tinha dado muito lucro a seu senhor e, do que recebia por seus serviços, juntara a quantia de duzentos e tantos mil réis, que entregara ao mesmo pela sua
liberdade, com o que ele não se contentara. Daí porque necessitava do apoio
da soberana, no sentido de ordenar ao governador de Pernambuco, para que
tomasse as devidas providências. O pleito deu resultado: por carta datada do
Recife, de dois de novembro de 1780, o governador comunicou que o senhor
resolvera libertar a escrava pela quantia de oitenta mil réis. De fato, segue-se a
carta de alforria, datada de 26 de novembro de 1780. A pretensão de Isabel, que
julgava ter direito a sua liberdade, acabou por lhe ser reconhecida.
As escrituras de venda, de hipoteca, e empenho de escravos são, porém,
as fontes nas quais a “coisificação” do negro fica mais patente. Ali estão feitos
negócios de escravos, juntamente com bens imóveis (sítios, casas, partidos
de cana) e animais de carga. São vendidas crianças na mais tenra idade, assim como escravos idosos. Neste caso, se imprime ao negro a imagem de um
traste inútil que, tendo perdido a serventia, era deitado fora. Também, após a
morte, a atitude era a mesma: a de quem se livra de uma “coisa inútil”. Numa
sociedade cristã, onde existia o preceito de enterrar os mortos, os corpos dos
escravos eram frequentemente lançados às portas das igrejas, para não arcarem
os senhores com o custo do enterro. Uma carta do bispo de Pernambuco, dirigida ao Rei e datada de 06 de julho de 1710, dá conta de como os senhores de
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169
engenho mandavam “lançar nos matos os negros que adoecem”, recolhendo-os
se ficavam bons e deixando-os morrer sem os sacramentos, quando não tinham
cura. Nesse sentido foram as irmandades de negros essenciais na Colônia para
garantir aos escravos ou forros um sepultamento digno dentro dos preceitos
católicos, o que se constituiu um dos principais atrativos dessas associações,
sobressaindo-se aquelas de devoção ao Rosário.
“tempo dos flamengos”
(...) não tenha Vossa Alteza em tão pouco estas terras do Brasil em especial esta
Nova Lusitânia, como mostra ter, pois não provê nem me responde as cartas e
avisos que há três anos e por três ou quatro vias lhe tenho escrito; mostra que
tem, pois a isso não acode. - Duarte Coelho
O título é uma clara menção a obra do historiador pernambucano José
Antonio Gonsalves de Mello Neto, que aqui se configura como uma homenagem a quem dedicou sua vida ao labor historiográfico e à pesquisa histórica,
cujo livro Tempo dos Flamengos é ainda na atualidade considerada a obra de
síntese mais completa sobre o período da dominação batava em Pernambuco.
A documentação que se refere à guerra holandesa oferece muitos detalhes de importância que merecem ser revisitados. Os papéis de serviços das
pessoas que participaram da luta e os pedidos de honrarias como recompensa
dessa participação, como fora prometido, estão bem indicados em vários dos
manuscritos que compõem a coleção de consultas do Conselho Ultramarino85.
Eles oferecem indicações não só para estudos biográficos como para a história social. Título dos mais cobiçados era o dos hábitos das Ordens Militares,
principalmente o de Cristo, que privilegiava o beneficiado com a isenção dos
dízimos do açúcar. Os pedidos de tenças efetivas, a exaltação de serviços e
merecimentos dos restauradores, podem ser constatados nos inúmeros verbetes
que tratam do assunto, indicados no índice temático.
Os membros do Conselho insistiam junto ao rei, durante a guerra, pela
remessa de munições, mantimentos e tropas para Pernambuco, no que a Coroa portuguesa atendia numa ajuda “camuflada”, temerosa com a repercussão
diplomática que teria o seu apoio aos insurgentes. A insistência do mesmo
Conselho na atenção para com os restauradores levou a Coroa a censurá-lo
“asperamente”, notadamente por tentar atender as cartas de André Vidal e João
Fernandes Vieira, as mais amiúdes, na alegação de que estes homens, contra as
ordens régias, estavam fazendo guerra aos holandeses, sem levar em conta as
negociações de trégua que se efetivavam entre as coroas litigantes.
O período difícil da reconstrução da capitania de Pernambuco e os fatos
85
ALBUQUERQUE, 1968.
170
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que decorreram da recuperação do domínio português, tais como: a reorganização política e administrativa do pós-guerra, embora não se possa afirmar
que tenha havido um completo desmantelamento do aparelho burocrático português durante a permanência batava em Pernambuco; o endividamento dos
senhores de engenho, que reconquistaram suas propriedades e cujas “fábricas”
precisavam ser reconstruídas; os pedidos de prorrogação de dívidas para que
não fossem executados em seus bens imóveis e de raiz, mas só nos rendimentos deles, são temas abundantemente documentados.
Através da documentação, percebe-se que há correspondências permanente entre colonos portugueses, que se encontravam no território ocupado pelos holandeses e as autoridades portuguesas em Lisboa. Se não há hegemonia
do Estado português na região, contudo ele não está completamente ausente. O
pesquisador poderá acompanhar a correspondência, seja das autoridades constituídas na colônia ou na metrópole, seja entre indivíduos e entidades.
Outro assunto que merece destaque, ainda relacionado à saída dos
holandeses da capitania de Pernambuco, é o que se refere à contribuição
da finta, os “chapins da rainha” donativo instituído em 1662 para o dote
de casamento da infanta portuguesa D. Catarina de Bragança com o rei da
Inglaterra Carlos II, e cobrado junto com a indenização a que se obrigou
Portugal a pagar a Holanda pela perda de seus domínios no Brasil. Os monarcas portugueses, por interesses dinásticos, precisavam comprar a paz e o
fizeram sacrificando a colônia. Para tanto, coube ao Brasil o pagamento da
parcela de 140 mil cruzados, a serem cobrados, segundo o contrato, por 16
anos consecutivos ao estabelecimento do mesmo. A reação das Câmaras,
não apenas de Pernambuco, mas de grande parte do Brasil, se fez presente
através de protestos enviados ao Rei pelos oficiais das câmaras inconformadas com este dispêndio. Estes impostos, a Finta da Rainha e a Paz d’Olanda
tiveram uma cobrança universalizada socialmente. Nas listas de devedores
constava desde a mulher, que vendia alho na feira, até o importante senhor
de Engenho André Vidal de Negreiros. Este último, por se considerar credor
do Estado português desobedeceu e não cumpriu com o pagamento. Como
conseqüência, sofreu um processo judicial. Contudo, como ocorreu com outros impostos lançados pela Coroa em caráter temporário, ainda em 1830, já
o Brasil independente, este pagamento figurava no orçamento do Império,
no valor de 25 contos de réis86.
Merece ainda destaque pela pesquisa realizada nos documentos manuscritos do Arquivo Histórico Ultramarino a obra do Diplomata e Historiador Evaldo Cabral de Mello, relacionada à restauração do domínio português
na Capitania, de leitura indispensável a quem deseja entender tal período da
86
PEREIRA DA COSTA, III, p. 503
HISTÓRIA DIGITAL - ANO II - Nº 02 - 2008
171
história pernambucana87.
Embora a ocupação holandesa e a reestruturação do poder da coroa
portuguesa seja um assunto caro à historiografia pernambucana, que conta com
trabalhos de historiadores renomados e frutos de pesquisas exaustivas, tal temática merece novos olhares, que por certo possibilitarão novas abordagens.
Ao discutir teses da História relativas ao período, teses antigas e novas,
pertinentes à compreensão da atualidade dos dois países, Portugal e Brasil,
lembramos que parte destas, em geral, está baseada nos documentos produzidos durante 350 anos por Portugal na qualidade de metrópole e pelo Brasil na
condição de colônia.
A fraca resistência dos lusos-brasileiros na invasão holandesa de 1630
em Pernambuco parece um tanto inexplicável a alguns historiadores.
Autoridades espanholas, portuguesas e o próprio donatário sabiam da
preparação da armada holandesa e da pretendida invasão. O fato de ser a segunda tentativa para os holandeses penetrarem no nordeste brasileiro açucareiro e, dessa forma, atingir o poder espanhol, gerava entre as hostes batavas
expectativas mais positivas que à primeira tentativa, na Bahia. Com mais experiência nas lutas contra os ibéricos chegavam os holandeses para enfrentar a
estratégia luso-brasileira que combinava “poder naval e defesa local”88. Dessa
forma uma parte importante na estratégia da guerra era o apoio local traduzido
em homens, alimentos, apoio aos feridos, recondicionamento de armas e outros. E isto era garantido, como o foi na Bahia, pela retaguarda que somente a
colonização efetiva pode oferecer.
Uma outra parte da estratégia, poder naval, é de responsabilidade do
governo de além-mar. Este, combalido com as guerras contínuas na Europa, principalmente a Espanha, enfrentando sublevações em vários estados
subordinados aos Habsburgo, não acudia aos luso-brasileiros dentro da perspectiva militar esperada.
Evaldo Cabral de Mello diz que as guerras holandesas foram inegavelmente guerras do açúcar, não só pelo açúcar mas sustentadas pelo sistema econômico cuja base era o açúcar. Portanto, na sua perspectiva, a invasão
holandesa fez parte da guerra maior que se desenvolvia na Europa: Portugal
subordinado à Espanha (pela União Ibérica) e esta em guerra com os Países
Baixos. Até o início do século XVI ocuparam-se os holandeses com viagens
às Índias Orientais através de expedições financiadas por um capital particular,
que formaram companhias de comércio. No início, estas expedições não obti87
MELLO. Ver indicação de seus trabalhos nas Referências Bibliográficas.
88
MELLO, Evaldo Cabral. Olinda Restaurada. Guerra e açúcar no Nordeste, 1630-1654. Editora
Forense Universitária, 1975.
172
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veram grandes lucros. Algumas foram até desastrosas, mas em fins do século
XVI e começo do século XVII houve uma fusão de várias companhias e os resultados financeiros apareceram e chegaram até 265%. Investiram nas especiarias, pimenta e têxteis, chá e café. “As guerras do açúcar”, portanto, não eram
apenas sustentadas pelo sistema que se baseava no açúcar mas, tudo indica que
era a mercadoria açúcar, que possibilitava a Portugal e Espanha a manutenção
da colônia Brasil, o objeto do desejo holandês.
Na análise feita por Juan Vicencio S. Felichio sobre a Empresa da Bahia
de São Salvador do Brasil, isto é, a primeira tentativa dos holandeses em invadir
o Brasil, na Bahia, ele faz considerações sobre o fim da trégua entre rebeldes
estados da Holanda e a Espanha em 1620 e informa que os holandeses se apoiaram em notícias que lhes deram alguns compatriotas que haviam estado presos
na Bahia de São Salvador do Brasil. Em resumo, as notícias eram as seguintes:
Salvador e Pernambuco eram duas praças sem defesa; que os portugueses não tinham a confiança de várias nações indígenas, por exemplo: os
potiguaras eram inimigos dos portugueses, portanto esses índios poderiam
ser seus grandes aliados e poderiam avisar-lhes sobre a província, um exemplo, de que maneira as praças estão fortificadas e que defesa teriam; quanto
o rei retirava do pau-brasil e do açúcar e quanto os mercadores aproveitavam
desses produtos pois, sabe-se que tanto o rei quanto os mercadores obtiveram rendas com estes produtos.
Outra informação que os holandeses poderiam administrar ao seu favor
seria a ausência de solidariedade entre portugueses e espanhóis. Com base nessa circunstância, os holandeses faziam acordos com os portugueses levando em
consideração a liberdade de religião, o estabelecimento de boas leis e políticas,
administrando um governo doce e suave. Os portugueses, inclusive os eclesiásticos, que não aceitassem o acordo poderiam ter seus bens confiscados.
No setor econômico, os holandeses prometiam dobrar o número de engenhos. Na Bahia havia 200 engenhos, poderiam fundar outro tanto e a produção de açúcar poderia chegar a 8.000 caixas, o que levaria a uma maior
distribuição dos ganhos.
Com base nessas e outras informações a empresa se organizou em 1623
e uma companhia de 19 mercadores se constituiu (mesmo que a estes tenham
se juntado outros novos) inscrevendo um capital nominal de 2 milhões de florins, que não se integralizou de imediato e sim foi recolhido dia a dia. Com
esse capital disponibilizou-se 25 navios grandes, 8 patachos e 3.400 homens.
Em três meses tudo estava pronto. Aos homens pagaram dois meses de soldo
antecipado com obrigação de servirem ao exército holandês durante três anos.
Não cumpriram a última ordem. Sevilha e Madri levantaram fundos,
conseguiram dinheiro e Madri e Lisboa organizaram o socorro. A armada de
HISTÓRIA DIGITAL - ANO II - Nº 02 - 2008
173
Madri ficou sob o comando de Don Fradique e a armada de Lisboa comandada
por Dom Manoel de Menezes.
Os holandeses, na Bahia, foram repelidos pelo poder naval e pelo apoio
local e de outras províncias como Pernambuco.
O não êxito da invasão à Bahia não arrefeceu os planos dos Estados
Gerais da Holanda e de acordo com as informações citadas a próxima praça
promissora e indefesa seria Pernambuco.
Parece ser do senso comum que o donatário de Pernambuco, Duarte
de Albuquerque e Matias de Albuquerque, seu irmão e Procurador, não avisaram às autoridades portuguesas do despreparo da capitania para enfrentar os
holandeses, embora haja correspondências de Matias de Albuquerque ao Governo metropolitano solicitando empreendimentos à defesa de Pernambuco,
anteriores à ocupação. Brito Freire refere-se ao assunto responsabilizando os
Albuquerque pelo abandono que o governo português relegou à Capitania. Entretanto a bibliografia sobre o tema aponta para uma outra face da situação: as
autoridades ibéricas não arcaram com as despesas por não terem recursos.89
O brasilianista Stuart Schwartz aponta diferentes percepções em Madri
e Lisboa quanto à invasão holandesa ao Nordeste do Brasil. Em Lisboa havia
interesses econômicos em reatar os laços comerciais com a Holanda. A documentação trocada na época entre os dois países mostra que ambos alimentavam
expectativas. E mesmo depois de consumada a invasão e tendo sido expulsos
os batavos de Pernambuco e das suas anexas, pode-se acompanhar a intenção
portuguesa: ora deixar as coisas como estavam – o território dominado pelos
portugueses e o território dominado pelos holandeses – ora fazer propostas aos
holandeses, troca do território por caixas de açúcar ou mesmo acatar a proposta do padre Antonio Vieira, embaixador português na Holanda, de negociar a
posse de Pernambuco com os holandeses.
É bastante conhecido o documento em que D. João IV advertia o Conselho Ultramarino de serem descabidas as solicitações de João Fernandes Vieira e André Vidal de Negreiros para receberem ajuda fincanceira da Coroa portuguesa, haja vista já estarem em andamento os acordos entre “a minha Real
pessoa” e as autoridades batavas.
Administração holandesa em Pernambuco
As marcas dos “tempos flamengos” continuam a permear o imaginário
do grosso da população de Pernambuco, não sendo raro atribuir-se à arte e
89
Em um balanço dos negociantes de Lisboa calculava-se que Portugal havia perdido 120 navios.
Em 1626 apenas 20 embarcações haviam chegado ao Brasil. E em 1627 a Bahia e Pernambuco
apenas receberam 2 ou 3 navios. Entre 1625 e 1626, 80 navios foram capturados e desses 60 carregados de açúcar. Evaldo Cabral de Mello. Olinda Restaurada. P.54
174
HISTÓRIA DIGITAL - ANO II - Nº 02 - 2008
competência dos holandeses quaisquer restos materiais oriundos do período
colonial brasileiro que assinalem o cenário do Recife e, por vezes, até no interior do Estado, em regiões aonde os holandeses jamais puseram os pés. Tais
discussões, de modo geral, culminam em comparações com o legado lusitano,
no mais das vezes bem pouco lisonjeiras para este último.
Apesar dessa ser uma inferência do senso comum, não se pode deixar
de considerar que o período da dominação holandesa em Pernambuco, ainda
que bastante curto (1630-1654), quando confrontado com a extensão temporal
do domínio lusitano, deixou muitas marcas, visíveis ou quase indeléveis na
história de Pernambuco.
Naturalmente não há espaço neste “Guia de Pesquisa” para se estender
às análises sobre essa questão, tampouco estabelecer um debate acerca dos
estilos de “lavrar ou ladrilhar” desses colonizadores, insertos em seu tempo,
com as virtudes e vícios compatíveis a ele, contudo, não podemos deixar de registrar aqui, em vista dos objetivos deste trabalho, algumas das características
da organização administrativa que os holandeses instituíram em Pernambuco,
o que talvez sirva de ponto de partida para uma reflexão sobre os dois modelos
impostos ao Brasil e das continuidades ou rupturas com esses modelos, que o
atual quadro administrativo brasileiro apresenta.
O primeiro traço da administração holandesa do Brasil que se faz notar
é o de que a sua estrutura organizacional se encimava por uma Companhia
eminentemente comercial, ao que se agregavam fins colonizadores, a Companhia das Índias Ocidentais.
Instituída por Carta Patente dos Estados Gerais das Províncias Unidas,
em 3 de junho de 1621, à Companhia das Índias Ocidentais coube o direito exclusivo do comércio com a África Atlântica, entre o trópico de Câncer e o cabo
da Boa Esperança e com as terras e ilhas da América, iniciando na Terra Nova
e indo até o estreito de Magalhães, tanto no Atlântico quanto no Pacífico.90 Tais
direitos complementavam-se com os de se firmar alianças e tratados de comércio com os senhores nativos de todas as terras a serem ocupadas, de construir
fortes, de designar governadores e funcionários que estariam sujeitos às ordens
da companhia, mas também às determinações dos altos poderes.
A Companhia das Índias Ocidentais estruturava-se em Câmaras de Comércio de Amsterdam, Zelândia, Mosa (Rotterdam), Distrito do Norte (Hoorn
e Frísia) e da cidade e do distrito de Groninga, as quais detinham participação
nas despesas efetivadas e nos lucros auferidos em proporções diversas, cabendo a de Amsterdam o maior percentual, 4/9 partes. O denominado Conselho
dos XIX, encarregado da direção geral, era composto de membros dessas câmaras que se reuniam alternadamente em Amsterdam e em Middelburgo.
90
MELLO. In HERKENHOFF, 1999.
HISTÓRIA DIGITAL - ANO II - Nº 02 - 2008
175
A administração superior, durante os 24 anos da ocupação holandesa
em Pernambuco, foi marcada por diversas reformas, institucionalizando-se o
poder da Companhia através de vários órgãos.
Grosso modo, pode dividir-se a administração holandesa em Pernambuco em três períodos. O primeiro, que corresponderia à fase da conquista
do Nordeste, de 1629 a 1637; o segundo pertinente à administração de Nassau, 1638-1644 e um terceiro, que se poderia denominar pós-Nassoviano,
que vai de 1644 a 1654.
A primeira fase administrativa (1629 –1637) é assinalada pela atuação
do Conselho Político ou Civil, de um Governador e pela intervenção de um
Consulado ou Diretoria Delegada, como a denomina Gonsalves de Mello.91
O papel do Conselho Político estava determinado no Regimento aprovado pelo Conselho dos XIX em 1629, denominado “Regimento do governo
das praças conquistadas ou que forem conquistadas nas Índias Ocidentais” que
estabelecia que o governo das conquistas batavas se efetivaria através de um
Conselho Político.
Este Conselho devia ser formado por nove conselheiros naturais das
Províncias Unidas, ou residentes nelas há pelo menos 7 anos. Sua presidência
era exercida por cada um dos membros num período de trinta dias e tinha
autoridade superior em todas as instâncias administrativas, sendo assessorado
pelos governadores e/ou generais, comandantes superiores da Marinha e do
Exército, nas questões militares de maior significado.
Detendo também funções judicantes, a parte da justiça civil efetivavase por um tribunal formado por três conselheiros, substituído alternadamente
após noventa dias. Na área crime a atribuição dos julgamentos era do Conselho
pleno, transmudado em tribunal, no qual funcionava um advogado-fiscal como
promotor público. Os preceitos vigentes nas questões de fisco e comércio advinham do Direito Romano.
Nas questões de sucessão e família vigia a legislação holandesa, assim como o direito consuetudinário da Zelândia e Holanda do Sul. Quanto
às questões militares, estas ficavam a cargo de um Conselho de Guerra e um
Naval. A administração fazendária era da competência de dois conselheiros,
designados tesoureiros.
Cabe aqui a observação de que não havia nitidez dos limites de jurisdição do Conselho Político com a do Governador, o que foi causa de constantes
conflitos entre as duas esferas do poder. O primeiro Conselho foi instalado em
Olinda em 14 de março de 1630, sendo extinto em 1633 e voltando a atividade
como tal em 1634, sendo Pernambuco governado neste interregno por uma
Diretoria Delegada.
91
MELLO. In HERKENHOFF, 1999.
176
HISTÓRIA DIGITAL - ANO II - Nº 02 - 2008
O Consulado ou Diretoria Delegada, formado por dois membros do
Conselho dos XIX, com contrato de dois anos, foi constituído em 1632 para
intervir na administração do Conselho Político e do governador (o coronel
Diederick van Waerdenburch) e seu papel deveria ser o de contornar os conflitos, dirimir as dúvidas e assumir a administração superior do governo. Os
dois cônsules deixaram o Recife em 1634, passando novamente a administração de Pernambuco às mãos do Conselho Político, que inicia suas atividades
em setembro de 1634 e segue no governo da Conquista, como a Companhia
denominava sua possessão no Brasil, até o ano de 1637, quando se institui a
figura de um Governador, capitão e almirante-general, iniciando-se então o que
designamos de segunda fase administrativa ou período de Nassau.
O período entre os anos de 1637 e 1644, correspondente ao governo do
Conde alemão João Maurício de Nassau-Siegen (1604-79), foi marcado, além
do reconhecido brilho do administrador, por uma nova concepção de poder
da Companhia das Índias Ocidentais, que procura redirecionar os rumos do
governo da Conquista e que vai se consubstanciar na instituição de uma autoridade única dotada de poderes suficientes, de acordo com a nova concepção,
para garantir e consolidar o domínio.
No Contrato de cinco anos, firmado entre a Companhia e João Maurício
de Nassau, foram discriminadas com precisão as atribuições do governador e
do Conselho presidido por ele, denominado de Alto e Secreto Conselho.
Segundo informa Joaquim Ribeiro, eram atribuições do governador:
– presidir o Alto Conselho Secreto;
– nomear os comandantes das fortalezas;
– nomear os comandantes dos regimentos;
– nomear oficiais, de alferes para cima;
– nomear o almirante da costa brasileira”, mediante aprovação do Conselho dos XIX;
– criar novos postos administrativos, mediante a aprovação do Diretório Geral da Companhia das Índias Ocidentais; e,
– estabelecer aumento de salários, mediante a aprovação do DiretórioGeral da Companhia das Índias Ocidentais.92
Ao Alto e Secreto Conselho se dispunha que devia cuidar do que fosse
concernente à “polícia, finanças e tudo o mais que depende da administração
pública e todos os empreendimentos em terra e mar, localização de novas fortalezas e demolição de antigas”.93 O Conde Nassau permaneceu no governo de
RIBEIRO, Joaquim. Administração do Brasil holandês. In História administrativa do Brasil,
Brasília, Universidade de Brasília, 1983.
92
93
MENDONÇA, Marcos Carneiro. Raízes da formação administrativa do Brasil. Rio de Janeiro,
Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Conselho Federal de Cultura, 1972.
HISTÓRIA DIGITAL - ANO II - Nº 02 - 2008
177
Pernambuco até 6 de maio de 1644, ficando a administração a partir daí apenas
ao cargo do Alto e Secreto Conselho que o exerceu até 1646, sendo então substituído pelo Alto Governo.
Como foi dito anteriormente, considerou-se como uma terceira fase da
administração holandesa do Brasil o período que vai de 1646 a 1654, nomeado
aqui como pós-nassoviano, no qual, o exercício do poder ficou sob a responsabilidade do Alto Governo.
Como órgão colegiado, composto de cinco conselheiros e um presidente, suas atribuições congregavam àquelas atinentes ao governador e ao Conselho Secreto. A gestão desse colegiado caracterizou-se como a que permaneceu
por mais tempo no exercício do poder no Brasil dos holandeses.
A estrutura organizacional da administração, até então apresentada, se
complementava pela ação de outros órgãos. Quando não estava à frente da administração superior da Conquista, os membros do Conselho Político, depois
de Justiça, exerciam a administração da prestação de serviços no Recife, administrando os armazéns, por exemplo, e jurisdições territoriais, servindo como
governadores em outras capitanias sob o jugo holandês.
Funcionavam ainda como parte da estrutura da administração outras
Comissões como o Conselho de Finanças, a Câmara dos Escabinos e os escoltetos, os Conselhos de Guerra e Naval, os Serviços de Assistência e de Saúde
e a Administração dos Indígenas.
O Conselho das Finanças foi criado em 1642 com o objetivo de debelar
a crise financeira porque então passava o Brasil holandês. Composto por cinco
membros, a essa comissão ficou o encargo de tratar de todas as matérias relativas às finanças e ao fisco da Companhia no Brasil. Não obtendo o êxito esperado pelo Conselho dos XIX a atuação do Conselho das Finanças foi mal visto e
antipatizado pela população. À saída de Maurício de Nassau o Conselho estava
reduzido a um órgão desprestigiado e sem força na administração.
A Câmara dos Escabinos e os Escoltetos como órgão da administração
municipal tinham funções similares das Câmaras portuguesas. Através do que
informa José Antonio Gonsalves de Mello, respaldado em fontes neerlandesas,
as Câmaras que preexistiam à ocupação do Nordeste brasileiro pelos holandeses, pelo menos algumas, continuaram a funcionar com sua organização regida
pelas Ordenações do Reino de Portugal94.
Por medida de 23 de agosto de 1636 foi criado o Conselho dos Escabinos. Como tribunais municipais, estes Conselhos tinham jurisdição civil e
criminal e eram compostos em geral de quatro membros, escolhidos entre lusobrasileiros e holandeses. Em 1642, por solicitação dos escabinos de Olinda e
que vinha desde 1639, foi criado o “tribunal pequeno” para decidir questões
94
Apud MELLO. In HERKENHOFF, Paulo. O Brasil e os Holandeses, 1630-1654. 1999.
178
HISTÓRIA DIGITAL - ANO II - Nº 02 - 2008
que envolvessem valores de pouca monta. Este tribunal era formado por dois
escabinos e três comissários, cabendo-lhes julgar as causas com valor inferior
a 150 florins. Ao Escolteto (chefe), com função prevista já no mencionado
Regimento de 1629, cabia prender os criminosos, promover a execução das
sentenças, assistir à mesma execução, velar sobre a observância das ordens e
regulamentos civis e fazer punir os transgressores95.
Os Conselhos de Guerra e Naval, com funções também previstas no
Regimento de 1629, tinham como função primordial efetivar os julgamentos
das causas que envolvessem abusos e delitos deflagrados por oficiais de terra
e mar e por marinheiros.
Os Serviços de Assistência e Saúde resultaram de uma reformulação
impetrada pelo Conde João Maurício de Nassau e pelo Alto Conselho à administração da Santa Casa de Misericórdia de Olinda que passou a ser gerida
por três holandeses e quatro luso-brasileiros eleitos pela referida irmandade.
Em 1637 instituiu-se uma Curadoria dos Órfãos, com a obrigação de amparar
os menores e seus direitos de herança. Também o Hospital da Misericórdia
passou a ser regido por uma comissão, a dos Regentes que eram auxiliados por
suas esposas. Havia ainda um médico, um cirurgião e um farmacêutico para
cuidar das questões de saúde da população.
A administração dos indígenas era exercida em cada aldeia, junto ao
chefe nativo, por um capitão holandês cujas atribuições definidas pelo Alto
Conselho consistiam em animar os indígenas para o trabalho, dirigi-los na melhoria das plantações e conceder-lhes permissão para trabalhar para os senhores de engenho.
Naturalmente o quadro apresentado não esgota a totalidade de cargos e
funções que compunham a estrutura da organização administrativa holandesa
do Brasil, outros existiram e tiveram importância na consolidação do domínio
holandês, notadamente nas áreas do comércio como os administradores dos
armazéns gerais, os comissários dos víveres, da equipagem naval etc. Tampouco se deteve na organização eclesiástica, formada por predicantes pagos pela
Companhia das Índias. Estas são questões ainda a serem convenientemente
trabalhadas e aqui lançadas apenas como desafios de pesquisa.
95
Idem.
HISTÓRIA DIGITAL - ANO II - Nº 02 - 2008
179
4.
Considerações Metodológicas
Maria do Socorro Ferraz Barbosa
Vera Lúcia Costa Acioli
Virgínia Maria Almoêdo de Assis
O objetivo principal do Projeto Resgate – Capitania de Pernambuco
traduziu-se na microfilmagem da documentação, gerada nas relações burocráticas entre Pernambuco e Portugal, no período que compreende de 1549 a 1825
e, que, até a presente data está sob a guarda do Arquivo Histórico Ultramarino
em Portugal; a sua transposição para o Brasil processou-se em cópias microfilmadas para arquivos públicos de Pernambuco e para o Arquivo Nacional no
Rio de Janeiro.
Para atingir este objetivo, a equipe responsável pelo Projeto programou
sua realização em etapas: identificação e arranjo cronológico da documentação; indexação de 33 mil unidades documentais, que variam quanto ao número e tipo de documentos; elaboração de verbetes analíticos, observando uma
seqüência cronológica, dentro das normas internacionais da Arquivística e da
Diplomática e, de acordo com a ficha padrão utilizada pelo Arquivo Histórico
Ultramarino; informatização dos verbetes; revisão e conferência dos verbetes;
procedimento técnico-metodológico com vistas à elaboração do catálogo e de
um banco de dados, ambos instrumentos de consulta que facilitam o acesso
aos documentos.
A realização desse Projeto contou com profissionais experientes que
formaram uma equipe interdisciplinar de historiadores, paleógrafos, arquivistas. O acervo documental do Arquivo Histórico Ultramarino se origina de dois
fundos: o Conselho da Fazenda, que tem seu funcionamento até 1642, quando o Conselho Ultramarino é criado em 1643. A variedade da documentação,
que pode ser encontrada, vai desde cartas régias, editais, provisões, documentos notariais, como autos, certidões, e outros até simples correspondência, ou
mesmo conferências de cargas de navios, passaportes, documentos opinativos
sobre a guerra holandesa e sobre a Revolução Republicana de 1817, entre inúmeros outros. Isto dá uma idéia da multiplicidade de tipos documentais, bem
como das dificuldades na hora de tipificar um documento e no momento de
produzir o verbete.
A data que marca o início da documentação referente à Capitania de Pernambuco é 1590 e a data que encerra informações sobre esta capitania é 1833.
Entretanto, por motivos alheios à equipe responsável, o Arquivo Ultramarino
autorizou a microfilmagem até 1825. Os manuscritos deste período perfazem
um total de 33 mil capilhas, aproximadamente. Acondicionadas em gavetas de
aço, 60%, da documentação, encontravam-se sem nenhum tratamento técnico
180
HISTÓRIA DIGITAL - ANO II - Nº 02 - 2008
a não ser a justaposição em ordem cronológica, o que determinou o aparecimento dos sub-projetos de inventário e indexação. Muitos dos processos se encontravam com suas diversas partes desapensadas e muitas vezes ‘habitando’
outras capitanias, principalmente as anexas.
Com base na cronologia, fez-se o arranjo documental e através da leitura
paleográfica e análise diplomática, classificaram-se os tipos documentais, e
seguindo as normas internacionais de descrição arquivística e paleográfica, reordenou-se os processos desmembrados e reorganizou-se a relação documentocapilha. Na realidade, não é apenas um documento que se tem em uma capilha.
Em geral, são vários. Portanto, toma-se por base um documento que inicia o
processo para a classificação diplomática e os restantes são considerados os
anexos. Encontramos documentos com quinze, vinte e até oitenta anexos.
A documentação é quase totalmente do período colonial e está relacionada à correspondência oficial entre Secretários de Estado do Reino e às
altas autoridades burocráticas, como Governadores, Vice-Reis ou religiosas
da Colônia. Referem-se, em geral, às leis portuguesas como fundamento para
a administração da Colônia, o exercício da justiça e as petições dos vassalos
e processos, cujo destino era necessariamente o Conselho Ultramarino, para
que ali fossem julgados. Além desses processos, encontram-se ainda os papéis
de serviço, que estão relacionados com a administração, os avisos, provisões,
pareceres, consultas e outros.
O conjunto documental da Capitania de Pernambuco comparado com o
conjunto total da documentação do Brasil, em uma ordem de grandeza, ocuparia o terceiro lugar. O Rio de Janeiro, primeiro, Bahia o segundo e bem próximo
estaria Pernambuco. Desde o início, esta circunstância seria fator de dificuldades para resgatar esta documentação. Primeiro, porque ela se encontrava sem,
praticamente, arranjo arquivístico, a não ser uma certa ordem com base no cronos e sendo extensa, seria mais trabalhosa. Segundo, porque não há catálogo
preexistente para se cotejar com o trabalho recente. A documentação ou melhor,
parte dela, mesmo com estas dificuldades de organização arquivística já havia
sido bastante consultada. Tanto José Higino quanto o professor José Antonio
Gonsalves de Mello e outros historiadores já a haviam consultado e este último
havia feito um levantamento e microfilmagem do período holandês.
Os trabalhos de organização dos documentos foram iniciados em dezembro de 1996. Em seguida passamos a uma segunda etapa – a descrição dos
documentos referentes, não apenas à Capitania de Pernambuco, mas também
às anexas: Alagoas, Rio Grande do Norte, Paraíba, e Ceará, que nos interessa
como complemento de informações e ao desmembramento desses processos
que agora pertenciam, por injunções políticas, às Capitanias de Alagoas, Rio
Grande do Norte, Paraíba e Ceará. Muitos documentos destas e de outras capiHISTÓRIA DIGITAL - ANO II - Nº 02 - 2008
181
tanias se encontravam nas gavetas de Pernambuco. Este material nunca havia
sido descrito antes, a não ser a parte já trabalhada e descrita pelo professor José
Antonio Gonsalves de Mello, referente ao período holandês. A nova descrição
foi feita em forma de verbetes.
A tipologia desse conjunto documental que abrange os séculos XVI,
XVII, XVIII e XIX compreende Consultas, Cartas de autoridades enviadas ao
Conselho Ultramarino, Requerimentos, Cartas do Governador da Capitania de
Pernambuco, Informações sobre Serviços, Cartas Régias, Pareceres do Conselho Ultramarino e Conselho da Fazenda, Certidões, Decretos, Mandados,
Processos, Despachos, Ofícios e Cartas, Avisos e Representações, Sentenças,
Relação de Fintas, de Nomes, Cartas-patente, Cartas do Governador Geral do
Brasil, Alvarás, Bilhetes, Provisões, Lembretes, Portarias, Registro de Mercês,
Escrituras de terras, Termo de Compromisso, Termo de Diligência, Autos de
Devassa, Sentença de Justificação, Ata da Junta, Passaportes, Mapas, Precatórios, Petições, Termo, Contratos.
Descreve-se a seguir os diversos tipos documentais pela ordem de
referência encontrada na documentação:
Consultas
Cartas de Autoridades
182
É um documento dentro dos limites da administração;
é opinativo, informativo. Não é um ato diplomático
porque é um documento interno. O seu resultado é de
fato um conselho. Auxilia o Rei na decisão e portanto
é um documento que ocupa o lugar de um documento
diplomático. Segundo Martinheira, “A consulta é elaborada pelo Presidente e Conselheiros do Tribunal a
quem foi dada a ordem direta do Soberano ou por Aviso
do Secretário de Estado, para que se consultasse sobre
determinada matéria ou requerimento de particular... O
destinatário é sempre o Rei, sobre a qual dará sua real
resolução... A resolução do Rei é dada à margem da
Consulta, com a rubrica do Soberano, ou assinatura do
Secretário de Estado”. As consultas mais importantes
eram apresentadas pelo próprio Presidente, à consideração do Soberano. As outras, seguiam para o Secretário de Estado ou das Mercês, que as apresentavam a
despacho do Rei. A resolução real era comunicada pelo
Secretário ao Conselho para este lhe dar cumprimento,
expedindo-se os necessários diplomas.
São correspondências das mais diversas origens –
Governadores de Capitanias, Governador Geral do
HISTÓRIA DIGITAL - ANO II - Nº 02 - 2008
Requerimento
Informação
Carta Régia
Parecer
Certidões
Decretos
Alvarás
Brasil, Provedores, Procuradores, Ouvidores, Bispos,
Almoxarifes, Militares que se dirigem ao Conselho
Ultramarino. São documentos não diplomáticos mas
oficializados. Podem ser problemas de natureza particular ou oficial expostos ao Rei, para que haja uma
resolução, ou conhecimento. Em geral são autoridades subalternas que se dirigem ao Rei.
É um instrumento que está fundamentado em jurisprudência. Através dele solicita-se à autoridade pública
que se estabeleça ou restabeleça o direito do indivíduo
ou de uma instituição. É documento diplomático.
É documento diplomático, informativo, enunciativo. Através dele se institui, por solicitação ou ordem
de autoridade competente, um processo, trazendo
elementos básicos e elucidatórios para um parecer
ou um ato decisório.
Trata-se de documento diplomático. É uma ordem do
Rei ou Rainha ou Príncipe Regente dirigida a uma
determinada autoridade ou pessoa. É expedida pelo
Soberano (a) e assinado também por ele(a). Através
desse instrumento a autoridade régia poderia nomear
súditos para cargos ou conceder privilégios.
É documento diplomático que interpreta os fatos
e de um certo modo é informativo mas, já tendencioso. Serve de fundamento para uma decisão. Os
pareceres do Conselho Ultramarino em geral fazem
parte das Consultas.
São documentos de fé pública nos quais se transcreve
uma informação que já tenha sido registrada segundo as normas notariais ou jurídico-políticas. A pessoa
que faz a cópia deve ter a competência para fazê-lo.
São ordens reais assinadas com as devidas rubricas.
São diplomas que o Rei se utiliza para fazer valer
suas ordens destinadas a algum tribunal ou ministro
para executá-las.
São diplomas que os reis se servem para confirmar
normas. Deveriam ter a duração de um ano, mas,
freqüentemente perpetuam-se por cláusula em contrário. O tempo faz com que tenha força de lei. Durante a colonização portuguesa no Brasil confundiu-
HISTÓRIA DIGITAL - ANO II - Nº 02 - 2008
183
Representações
Provisões
Mandado
se com a própria lei.
São correspondências subscritas coletivamente por
indivíduos com os mesmos interesses ou por entidades, enviadas à autoridade competente reclamando,
solicitando, pedindo ou apresentando queixas sobre
alguma coisa.
São documentos de correspondências que estão relacionados com atos anteriores. A Provisão Régia é uma
ordem na qual o Rei concede algum benefício ou algum cargo a alguém. Também os tribunais usam essa
denominação para o despacho do seu expediente.
É uma ordem de autoridade judiciária que deve ser
cumprida de imediato e se destina a atingir determinada pessoa.
Estes tipos de documentos e mais os que estão citados anteriormente
formam o conjunto documental manuseado.
As condições reais do trabalho permitem, informar quantitativamente sobre a tipologia dos séculos XVI e XVII: Consultas: 970; Cartas de Autoridades:
464; Requerimentos: 444; Carta do Governador da Capitania de Pernambuco:
269; Informações sobre Serviços: 263; Cartas Régias: 55; Pareceres do Conselho Ultramarino: 68; Certidões: 80; Decretos: 29; Mandados: 19; Processos: 21;
Despachos: 18; Ofícios e Cartas: 19; Avisos: 11; Representações: 17; Sentenças: 11; Listagens (Rol): 15; Cartas do Governador Geral do Brasil: 6; Alvarás:
6; Provisão: 6; e em menor número: Bilhetes, Lembretes, Portarias, Registro de
Mercês, Escrituras, Cartas do Juiz da Alfândega, do Juiz Ordinário.
O Século XVIII tem um volume de documentos que supera os três outros séculos – o XVI, XVII e XIX. Está completamente indexado e descrito
em verbetes, informatizados, perfazendo um total de mais ou menos 20 mil
documentos.
O que observamos na descrição deste período é que, praticamente, os
mandados – como tipo documental – desaparecem, mas, há uma grande quantidade de consultas, pareceres, cartas de autoridades, processos, cartas régias
e alvarás. De um certo modo, encontra-se o mesmo repertório tipológico dos
séculos anteriores. Toda a documentação deste século provém do Conselho
Ultramarino e nada mais do Conselho da Fazenda.
Os fatos históricos mais significativos, registrados na historiografia,
também têm seu suporte na documentação, que no período do acontecimento
é abundante, o que confirma a importância desses fatos. A partir do início do
século XVIII observa-se a movimentação entre Olinda e Recife e Portugal.
184
HISTÓRIA DIGITAL - ANO II - Nº 02 - 2008
As Cartas do Governo de Pernambuco passam a serem enviadas do Recife e
não mais de Olinda, como também as Cartas do Ouvidor Geral da Capitania.
Isto realça a anuência do Governo Português com os habitantes do Recife no
conflito com os de Olinda, o que gerou a Guerra dos Mascates.
O século XIX, a documentação tem um volume menor, sendo-lhe acrescida muitos documentos, que lhes pertencia, provenientes de outras Capitanias,
que estavam agregados em outros processos; aparecem muitos passaportes.
Chama a atenção este tipo de documento muito usado nas regiões das minas e
no Ceará, como forma de controle da população livre. A documentação trata
das questões da Independência e das pendências entre esta região e o Governo
Português.
O local de origem e ou destino do documento é um dado importante
para o pesquisador, por exemplo: os mandados são originados de Olinda, em
geral do Provedor e Contador da Fazenda Real; os requerimentos têm origem
em Olinda, Pernambuco, Lisboa, Porto, Itamaracá, Igarassu e outras localidades. Isto indica que os súditos estão solicitando algo tanto na colônia como na
metrópole, e também denuncia uma certa movimentação dessa sociedade.
As Cartas Régias, no século XVII, até o fim da União Ibérica em 1640,
são originadas de Madri e as de outros períodos, de Lisboa. Os Alvarás têm
origem de Lisboa mesmo no período filipino. O conjunto da documentação
demonstra que a sociedade não era algo tão eqüidistante das autoridades. Os
requerimentos de cidadãos, dos mais simples, como os soldados, aos mais
importantes como André Vidal de Negreiros, João Fernandes Vieira, outros
portugueses aristocráticos, seguiam os mesmos trâmites burocráticos. Não estamos avaliando resultados de tratamento e sim caminhos pelos quais a população se dirigia ao Rei.
Quanto ao suporte, a documentação em geral se encontra em papel e
estava em bom estado; o Projeto Resgate transformou em microfilmes e em
CD-ROM.
Sobre a forma pela qual os verbetes foram construídos tomamos por
base as “Normas Gerais de Transcrição e Publicação de Documentos e Textos
Medievais e Modernos” do Pe. Avelino Jesus da Costa, 2ª edição, publicadas
na Cidade de Braga, 1982, e recomendadas pelos técnicos do Arquivo Histórico Ultramarino, considerando também as normas internacionais: o emissor e a
sua titulação; o endereçamento ou destinatário; a função; a ação; a data tópica
e a cronológica; a assinatura (autógrafo); a quantificação (número de páginas);
a notação ou cota (data-limite).
A transcrição de documentos ou resumo dos mesmos foi sempre um
problema a ser enfrentado pelos historiadores e paleógrafos. A tradição era a
da cópia integral juntamente com as abreviaturas; a descrição do documento
HISTÓRIA DIGITAL - ANO II - Nº 02 - 2008
185
através de verbete exigiu do historiador/ paleógrafo/arquivista o conhecimento
e exercício da síntese. Modernamente faz-se um resumo dos objetivos do texto
(do que é importante a ser comunicado) que em geral é uma ordem, parecer,
comunicação ou informação, sem alterar o sentido, sem omitir o mais importante nem lhe acrescentar coisa alguma.
A descrição-resumo que se constitui o verbete, deve dar os nomes das
pessoas e terras na sua forma moderna. O texto deve ser inteligível, contudo,
respeitado em absoluto, sem adição de palavras que modifiquem o sentido. As
abreviaturas foram respeitadas.
Algumas dificuldades de localização e de datas nos documentos foram
resolvidas com indicações de datas aproximadas, que podem ser precedidas
de três raciocínios: um fato pode ter ocorrido entre uma data e depois de outra
data, pela circunstância que encerra, exemplo: entre 1603 e 1654; ou pode ter
ocorrido antes de 1603 e é necessariamente anterior a 1654, e, na falta de outro
dado cronológico, o fato pode ser datado, aproximadamente, pelo tipo de escrita, pela inserção em um determinado contexto histórico ou por qualquer outro
elemento esclarecedor que apareça juntamente com a descrição dele. Quanto
às dificuldades com a localização também pôde ser utilizada esta mesma metodologia: o que no texto é indicador de algum lugar; ou os personagens que
o assinam ou os atores onde poderiam se localizar. Na dúvida, é sempre a
contextualização histórica e as possibilidades da crítica interna e externa que
auxiliam o historiador; na crítica interna sobre autoria do documento a autoridade de quem o fez e na externa sobre as possibilidades físicas – papel, tinta,
tipo de letra, etc, inseridas em determinado tempo.
A partir do século XV praticamente os documentos são datados e neles
também constam a origem. Só os documentos anteriores ao século XIII é que
omitiam o lugar e por esta razão, o historiador sempre encontrará nos arquivos
o SL (sem lugar). Os problemas com datas que encontramos foram decorrentes,
principalmente, da deterioração do documento. Só um insignificante número
de documentos estava sem data e estas foram resolvidas com segurança.
A coleção é muito variada, tendo em vista o seu conjunto. Alguns assuntos salientam-se pela sua importância histórica e por uma possível revisão
historiográfica quando forem estudados: o comércio do pau-brasil e as relações
comerciais internacionais e condições gerais Colônia, podem ser avaliados pelos documentos descritivos dos comandantes dos navios das autoridades locais
da Alfândega e dos comerciantes; são documentos que contém informações
sobre promissórias, letras de câmbios e outros. As provisões são muito freqüentes e as informações de serviço, como também os requerimentos;
Sobre a penetração e ocupação do Sertão pernambucano, encontramos valiosas informações nas cartas-patente, nas ordenações, nos alvarás e
186
HISTÓRIA DIGITAL - ANO II - Nº 02 - 2008
nas petições, entre outros.
Sobre a Guerra holandesa há valiosas informações sobre as condições
de luta no campo luso-brasileiro, sobre os efeitos da guerra, a devastação e a
penúria dos combatentes brasileiros e também sobre os efeitos psicológicos na
população. Isto pode ser encontrado nas certidões, nos decretos, nas representações, nas provisões e outros.
Sobre as Companhias de Comércio de Pernambuco e Paraíba, de tão
marcada importância para a região nordeste, encontramos um acervo riquíssimo. Desde sua fundação, atuação e depois as críticas pela forma como esta
Companhia se relacionou econômica e politicamente com os colonos. Além
dos documentos diplomáticos oficiais, consta dessa documentação avaliações
críticas de autoridades, inclusive relacionando a atuação da Companhia e a
Revolução de 1817. Os processos, as cartas das autoridades, as representações,
as cartas régias são os diplomas naturais de onde provém as informações.
Sobre a Revolução de 1817 – os requerimentos, as certidões, os ofícios,
e cartas, as informações sobre serviços e as provisões podem complementar a
documentação que o Arquivo Nacional no Rio de Janeiro já guarda. É também
valioso. Há, inclusive na documentação do Arquivo Histórico Ultramarino,
uma análise crítica realizada por um alto funcionário da burocracia portuguesa em Lisboa. Constam, nessa análise, oitenta itens que explicam a revolta
dos pernambucanos pela péssima atuação da Companhia de Comércio de Pernambuco e Paraíba; sobre a Independência do Brasil – os papéis de serviços,
despachos, consultas e pareceres, decretos, ordens régias e outros foram os
documentos diplomáticos utilizados no trato com esta questão; sobre o período
posterior à Independência, a correspondência entre as autoridades das duas
nações é fundamental.
Nos requerimentos encontramos informações sobre propriedade de ofícios, pedidos de mercês, contratos, arrematações, arrendamentos de subsídios,
nomeações de cargos, ocupações de postos, geralmente postos militares. Este
tipo documental é importante para quem pesquisa sobre guerras, revoltas, ocupações de determinadas regiões, penetração e expansão territorial.
Os despachos, consultas e pareceres do Conselho Ultramarino tratam dos
mais diversos assuntos da Colônia. Sejam de reconhecimento de uma ação militar em benefício do Reino, seja de uma decisão política mais geral ou particular.
Os autos de devassa, expõem o rigor das leis e das relações com a Colônia, como também a insatisfação dos colonos. As certidões são mais freqüentes
após os autos de devassas e de agravos.
É interessante notar que alguns tipos documentais aparecem com mais
freqüência em determinado século que outro. Por exemplo, os Mandados estão
mais presentes no século XVI e depois vão desaparecendo. As Cartas Régias
HISTÓRIA DIGITAL - ANO II - Nº 02 - 2008
187
surgem em momentos de decisão, como também os Alvarás, que muitas vezes
se confundem com as primeiras.
É rica e variada a documentação relativa ao século XVIII. Comentaremos sobre alguma correspondência, que nos parece mais importante ou mesmo inusitada. Aparecem, em 1757, problemas e soluções relacionados com
regulamentação dos preços do resgate de escravos na Costa da Mina, feitos
pela Mesa de Inspeção de Pernambuco e Bahia. É de 27 de setembro de 1757,
o ofício do Governador de Pernambuco ao Secretário de Estado do Reino e
Mercês informando que recebeu ordens para incorporar a capitania da Paraíba
ao governo da Capitania de Pernambuco. Em janeiro de 1771, já encontramos
escritos, dirigidos às autoridades portugueses, denunciando a insatisfação dos
proprietários com a Companhia Geral de Comércio de Pernambuco e Paraíba,
no que diz respeito a vários problemas, incluindo os rendimentos dessa companhia. O vigário da Freguesia do Una, padre Vicente Ferreira de Melo, pede
à Rainha D. Maria I, a confirmação da escritura, pela qual perfilhou, como
seu filho, a Vicente Pereira de Melo da Silva, menor de 25 anos. Há muitos
ofícios sobre atentados de embarcações francesas, em Pernambuco ou mesmo
sobre a dificuldade de convencer o povo a participar do empréstimo real, concedido à Junta da Fazenda Real, da dita capitania. Um requerimento de uma
mulher, preta, forra, Luzia Caparica, através de seu procurador Ildefonso José
de Abreu, pede ao Rei, que lhe forneça passaporte para viajar a Província de
Pernambuco, em 15 de fevereiro de 1821.
No final do século XVIII há uma mudança na burocracia do Reino. Os
ofícios devem se dirigir ao Secretário de Estado da Marinha e Ultramar.
A partir do século XIX, a vigilância e a política de repressão aumentarão. As viagens, tanto de Pernambuco para Lisboa e vice-versa, serão autorizadas, mediante apresentação de passaportes, devidamente autorizados pelo Rei
ou por autoridades reais. O interessante é perceber que, em 1815, por exemplo,
mesmo estando o Rei no Brasil, e o súdito estando também no Brasil, ele deveria se dirigir a quem “passava” o passaporte; a autoridade responsável era o
Secretário de Estado da Marinha e Ultramar em Portugal, o que significa que
o aparelho de estado estava dividido geograficamente. Na documentação, fica
muito claro que a Junta Governativa, em Portugal, governa parte do Império.
O pesquisador interessado no governo de Luis do Rego encontrará muitas
referências a esse período. Mas, o que mais chama atenção é a correspondência
após a Independência: em dezembro de 1822, uma carta dos habitantes da Vila
de Goiana, dirigida às Cortes Gerais e Extraordinárias da Nação Portuguesa, pedia providências contra o ex-Governador da Província de Pernambuco, Luis do
Rego Barreto, em razão da oposição que faz ao governo provisório da Capitania.
Em 1823, há um requerimento do negociante de Pernambuco, ex-presidente da
188
HISTÓRIA DIGITAL - ANO II - Nº 02 - 2008
referida província, Gervásio Pires Ferreira, ao rei D. João VI, pedindo passaporte para “passar” ao Rio de Janeiro, juntamente com o seu filho. Somente em
1824, em 12 de fevereiro, aparece um edital do presidente da Província de Pernambuco, Manoel de Carvalho Paes Andrade, comunicando as determinações
do Imperador Pedro I, acerca da proibição do comércio com Portugal.
Outro caso a chamar atenção no conjunto dos documentos lidos, que
pode ser considerado pitoresco ou mesmo inusitado é o que refere o bispo Pernambuco, D. José de Azeredo Coutinho, em carta datada de 05 de novembro
de 1800, na qual dá conta a D. Rodrigo de Souza Coutinho da descoberta, por
um pescador, ao sul do Cabo de Santo Agostinho, de uma garrafa contendo comunicado em língua francesa. Segundo o Bispo, a carta não continha “cousa de
maior consideração”; contudo, ponderava sobre “a facilidade com que os franceses podem comunicar as suas perniciosas máximas por todas estas costas”.
A fala do Bispo, chancelada pelo ouvidor da comarca, José Nabuco de Araújo
e pelo Chefe da Esquadra Real e Intendente da Marinha, Pedro Sheverin, pelo
tom de admoestação contra as idéias francesas, que denominava de “perniciosas
máximas” chamou atenção do historiador Carlos Guilherme Mota, que considera a associação dos poderes civil, militar e religioso, na censura e repressão aos
comunicados escritos, parte do processo para a manutenção da ordem colonial.
Ainda na opinião desse historiador, “os movimentos subterrâneos da sociedade
se fazem sentir no universo das palavras” e as comunicações, já em si difíceis,
tornam-se adversas à propagação do pensamento revolucionário mesmo entre
“as mentes sediciosas”, que precisam se valer de artifícios criativos e até inusitados, como se supõe ser o caso, que aqui se oferece, o da garrafa.
Manuscritos do Ultramarino
O Arquivo Histórico Ultramarino reúne toda a documentação relativa
à administração ultramarina do Império Português que se encontrava dispersa por vários organismos. Em 1926, os primeiros passos foram dados com a
escolha do Palácio Ega, na Junqueira, em Lisboa, para ser o edifício que abrigaria toda documentação com tratamento técnico, especializado. A criação
do Arquivo Histórico Ultramarino foi efetivada pelo decreto 19.868 de 09 de
junho de 1931. Seria, então constituído dos arquivos do Conselho Ultramarino,
da documentação dos Conselhos da Índia, Fazenda e Guerra, Desembargo do
Paço, Casa da Índia e Mesa da Consciência e Ordens, que formavam o arquivo
da Marinha e Ultramar e mais, o arquivo do Ministério das Colônias.
Todos esses documentos constituíram o acervo do Arquivo Histórico
Ultramarino e foram divididos em duas secções: a primeira, diz respeito à documentação mais antiga, que se inicia no século XVI e termina no século XIX;
HISTÓRIA DIGITAL - ANO II - Nº 02 - 2008
189
a segunda é posterior a 1833. Na primeira secção, estão os documentos mais
importantes, que formam o fundo do Conselho Ultramarino: a administração
da fazenda, o provimento de todos os cargos de justiça, guerra e fazenda e
consulta de todas as naus e navios relacionados com a Índia, Brasil, Guiné,
São Tomé, Cabo Verde e outros. A documentação avulsa desse fundo foi organizada segundo critérios geográficos e cronológicos, criando-se, desse modo,
as séries seguintes:
Reino – 1601 a 1834; Madeira – 1513 a 1835; Açores -1607 a 1839;
Lugares de África, Marrocos e Argel – 1596 a 1832; Cabo Verde – 1602 a
1837; Guiné – 1614 a 1837; São Tomé e Príncipe – 1538 a 1843; Angola –
1602 a 1891; Moçambique – 1608 a 1890; Índia – 1509 a 1843; Macau – 1603
a 1843; Timor – 1642 a 1843; Brasil – 1548 a 1837.
Estes arquivos formaram os principais fundos arquivísticos, que correspondem em períodos históricos ao antigo regime, à monarquia constitucionalista e à república. Outros fundos se organizaram com base em outra documentação, como Instituição de Apoio ao Retorno dos Nacionais; Banco Nacional
Ultramarino; Procuradoria dos Estudantes Ultramarinos; alguns governos coloniais e coleções particulares.
“Ao Conselho parece...”
Os documentos avulsos emanados do Brasil cujo destino era o despacho na corte, apresentavam-se manuscritos, quase sempre, no tipo cursivo e
sobre papel, sem traçado de linhas. Os documentos, quer tenham sido ditados, quer copiados, são bem alinhados, os espaços são uniformes e poucos
lapsos são notados. Com poucas exceções os escrivães revelavam-se pessoas
cuidadosas e atentas ao trabalho que desempenhavam. Praticava-se a opistografia – a escrita dos dois lados da folha, nos documentos mais longos. Era
costume, principalmente nas consultas do Conselho Ultramarino, redigi-las
quase em colunas, na segunda metade da folha, deixando-se a primeira, à
esquerda, para os pareceres dos conselheiros, dos procuradores da coroa ou
despachos régios. Estes, geralmente eram feitos de maneira sucinta, e vêm
acompanhados da rubrica do monarca. Quando o assunto era polêmico a consulta recebia parecer de mais de um conselheiro e, algumas vezes, quando o
rei não se achava devidamente esclarecido, voltava para o Conselho opinar
novamente. Há os casos onde o próprio rei se alonga dando explicação junto
ao despacho. O local e a data estão quase sempre explícitos no término do
documento. O destinatário encontra-se no início ou subscrito a ele. Os selos
aparecem no alto da folha, em qualquer lado da página96.
96
ACIOLI, A escrita no Brasil colônia. Op. Cit.
190
HISTÓRIA DIGITAL - ANO II - Nº 02 - 2008
O uso mais freqüente das assinaturas restringiu o emprego dos selos,
generalizando-se os impressos em papel para documentos cartoriais. Sendo
geralmente redigidos por escrivães de notas, os documentos têm nas assinaturas a definição de sua autenticidade ou falsidade. Suas transcrições, contudo,
constituem-se numa das tarefas mais árduas da leitura de textos manuscritos.
Os autógrafos vêm, as vezes, acompanhados de traços supérfluos chamados de
cetras – laçaria caligráfica acrescentada a uma firma – que dificultam a sua interpretação. Também é grande o número de nomes e sobrenomes abreviados e não
existe uma rigidez na composição das letras que formam a palavra reduzida.
Comumente utiliza-se como instrumento de escrita a pena de ave, que
retinha a tinta por capilaridade e como tinta, a de noz gálica, de cor castanha.
As tintas corrosivas destroem o texto e são responsáveis, em muitos casos,
pela deterioração do documento. Também, os problemas de ordem externa,
tais como as manchas, destruição por traças, a ação do calor, água, umidade e
manuseio dificultam e, às vezes, impossibilita a leitura do texto.
Sendo as consultas avulsas, redigidas por diferentes escrivães, são muitas as grafias nelas encontradas. Quando a grafia é bem feita, a leitura é fácil
e corrida. São poucos os deslizes cometidos pelos copistas e raramente aparecem palavras riscadas ou entrelinhas. Nos escrivães profissionais, sente-se a
influência caligrafia: traçado regular, iniciais graúdas, distribuição perfeita na
página, espaços bem ocupados. Já os códices, sendo uma cópia mais esmerada, oferecem ao pesquisador a oportunidade de adaptação a determinado tipo
de grafia. Geralmente são copiados por uma mesma pessoa e se apresentam
sequenciados cronologicamente.
Os documentos originários do Brasil, geralmente sob a forma de cartas
ou requerimentos, eram dirigidos ao rei, que os encaminhava aos conselheiros
régios para consulta; estes por sua vez, depois de estudá-los davam os seus
pareceres e remetiam-nos ao rei para despacho. Quando havia dúvida era solicitado o parecer da autoridade responsável, por exemplo, do procurador da
coroa. Os documentos régios assumiam a forma de cartas, alvarás, provisões,
concessões de mercês, ordens, tratados ou regimentos.97
97
Idem.
HISTÓRIA DIGITAL - ANO II - Nº 02 - 2008
191
Alguns documentos apresentam-se manchados, exemplo ao lado;
os estragados, quando agentes externos
comprometeram o documento fazendo
desaparecer parte dele; ou incompleto,
quando falta página do mesmo. Serão
encontrados nos verbetes os anexos
que são documentos que completam o
principal, o que deu entrada no inventário do Catálogo.
O período entre a remessa da
correspondência e sua respectiva resposta é impreciso. Durava em média,
de três meses a um ano, ou até mais,
dependendo das monções (ventos favoráveis à navegação) e do acúmulo
de trabalho dos Conselhos de Ultramar. Já Duarte Coelho queixava-se da
demora:
(...) Por outro navio que agora partiu daqui, Senhor, escrevo a Vossa Alteza, e as
cartas leva Francisco Frazão, meu criado, aqui casado e morador. Peço a Vossa
Alteza que as veja e me responda o que for servido, porque ele há de esperar aí
pela resposta, e os gastos são grandes para esperar muito tempo.98
Num segundo momento sua queixa chega a ser quase um lamento:
(...) peço a Vossa Alteza leia minha carta e lhe veja a intenção, e achará que é
tudo do interesse de seu serviço, no qual ando morrendo, que melhor me fora já
uma morte que tantas sem acabar de morrer.99
Em um balanço geral sobre o conteúdo da documentação produzida
entre Portugal e as capitanias e entre estas e Portugal verificamos que a documentação do Arquivo Histórico Ultramarino reflete o pulsar administrativo
do Império e também a dinâmica da sociedade colonial, apesar de os atos de
chancelaria estarem na Torre do Tombo e em outros arquivos.
Segundo a diretora do Arquivo Histórico Ultramarino, Maria Luiza
Abrantes, o espólio deste arquivo equivale a 15km de documentação, 2000
98
MELLO e ALBUQUERQUE, 1967.
99
Idem.
192
HISTÓRIA DIGITAL - ANO II - Nº 02 - 2008
caixas organizadas: Brasil, a costa ocidental da África e Açores.
No encontro Agenda no Milênio realizado em São Paulo no ano de
2000, os pesquisadores responsáveis pelo trabalho de indexação de cada Capitania expuseram as temáticas abordadas nos documentos. Fazemos uma
breve descrição.
Sobre o Mato Grosso, na região entre as bacias do Rio Paraguai e do
rio Paraná, a documentação é praticamente uma cartografia de conquista e manutenção desta e as informações dizem respeito à fronteira com a Bolívia, aos
bandeirantes e monçoeiros.
Sobre a região que atualmente chamamos de Tocantins, as temáticas
abordadas dizem respeito aos militares, colonos, índios e navegações no rio
Tocantins.
Afirma Heloísa Belloto, que a documentação sobre São Paulo confirma
a historiografia: o papel sertanista e a militarização da capitania; o Paraná somente aparecerá com autonomia em 1847.
Sobre o Rio Grande do Sul, os temas recorrentes são: o comércio do
charque e o fornecimento para o Rio de Janeiro, Bahia e Nordeste, folhas de
serviços militares e a campanha para demarcação de limites. Capitania subordinada ao Rio de Janeiro, através da correspondência do Vice-Rei pode-se fazer um exercício de repensar a América portuguesa, o mercado interno, a circulação da burocracia no Império colonial português a escravidão na pecuária.
Sobre a Capitania de Santa Catarina há minguadas informações, talvez
a mais interessante seja o fracionamento da sua ocupação, diz a professora
Bernadete Ramos Flores.
Sobre Sergipe Del Rei são 400 documentos do século XVII. A documentação do Piauí reforça a questão da mão de obra escrava nas fazendas de
gado que ocupava mais de 50%. No Rio Grande do Norte a documentação fala
dos mapas populacionais do século XIX, da distribuição de terras que também
era realizada pelas autoridades de Pernambuco. O que chama atenção na documentação oriunda da Paraíba é que depois da expulsão dos holandeses houve
uma grande decadência nessa capitania.
A precariedade do estado da Capitania do Ceará, a relação entre autoridades e clero, referências à seca, ao porto e sua subordinação à Capitania de
Pernambuco, caracterizam a documentação desta capitania.
A documentação da Bahia reflete o seu papel de capital administrativa
da Colônia. Tem estreita relação com Pernambuco, com outras capitanias e
com o poder central. Suas potencialidades temáticas são as seguintes: o corso
e a pirataria em fins do século XVIII e XIX; demarcação de limites do sul;
criação de vilas nos sertões; deserção, degredos e galés; extração e controle do
Pau-brasil; mineração; disputa de terras do Garcia D’Avila com Pernambuco,
HISTÓRIA DIGITAL - ANO II - Nº 02 - 2008
193
índios e minas do sal. No século XVIII há informações sobre escravidão.
Sobre as Minas Gerais, a documentação confirma que a sua história se
inicia no século XVIII. Esta documentação se concentra na produção aurífera
e na administração portuguesa.
Há muitas singularidades nos fundos documentais das várias capitanias.
Alguns documentos têm contrariado as teses de Oliveira Viana e Raimundo
Faoro sobre a presença do Estado português intervindo na sociedade. Há muitas
antecipações da sociedade para o Estado, por exemplo, a Guerra das Emboabas.
Ao longo do século XVIII, o plantel de escravos em Minas se constituía em
torno de 20% do plantel da América. O exemplo do Espírito Santo possibilita se
pensar sobre a dinâmica e a gangorra na história dos relatos entre as capitanias.
Quando as minas aparecem nas Gerais, o Espírito Santo torna-se uma fortaleza
inexpugnável e se inicia a decadência desta capitania. Até então tinha uma vida
normal, com possibilidades de se desenvolver como qualquer outra capitania.
Na opinião de Paulo Knauss, a documentação do Rio de Janeiro parece calçar Gilberto Freyre dando-lhe alguma razão: identifica a colônia como
uma instância mítica, dá substância ao que chamamos de Brasileiro. Mais uma
vez Capistrano e Oliveira Viana são expostos em suas amarguras. Nos seus
escritos não se encontram vida social na colônia, ao contrário dos escritos de
Caio Prado Jr. e Gilberto Freyre. A documentação denota a presença do estado
português, mas, também, e como... o incômodo da sociedade colonial e da
administração local.
O que caracteriza a região Nordeste, apesar do fracionamento da documentação, é a riqueza de informações. A parte maior é ainda da Capitania de Pernambuco, seguida de suas anexas, Paraíba, Rio Grande do Norte, Alagoas e Ceará, que traz complementaridade à documentação da capitania de Pernambuco.
Os manuscritos avulsos, microfilmados, do Projeto Resgate, incluindo
as outras capitanias, podem chegar a um número bastante expressivo. Talvez,
trezentos mil, alguns com mais de cento e cinqüenta folhas. São papéis referentes as vinte capitanias do Brasil. As datas limite vão de 1590 até 1825. Eles
têm papel importante para o resgate da memória do país, pois atingem todos os
aspectos da vida pública, nas capitanias e alguns aspectos da vida privada.
Cento e dez instituições participaram deste projeto, que também contou
com uma grande ajuda: as novas tecnologias. Com essas redes de solidariedades as duas nações, Portugal e Brasil, com um passado comum, alargaram seus
conhecimentos históricos, pois o documento sempre ocupa uma posição central nas pesquisas históricas. Esses manuscritos microfilmados revelaram importância não apenas para compreender nossa identidade, mas para solucionar
alguns problemas de ordem prática como a demarcação das terras indígenas e
dos antigos quilombolas.
194
HISTÓRIA DIGITAL - ANO II - Nº 02 - 2008
9. Capitania do Ceará
Introdução
Senador Lúcio Alcântara(*)
Quando se completam duzentos anos da fundação da Capitania do Ceará e já se avizinham as come-morações dos quinhentos anos do descobrimento
do Brasil, temos a imensa satisfação de apresentar o Catálogo de Documentos
Avulsos da Capitania do Ceará - um rico acervo de peças documentais contando mais de dois séculos de história do período colonial, resgatados do Arquivo
em Lisboa.
A iniciativa insere-se no âmbito do Projeto RESGATE, desenvolvido
pelo Ministério da Cultura, em articulação com a Comissão Nacional para as
Comemorações do V Centenário do Descobrimento, com desdobramentos em
diversas regiões do País. O Projeto tem propiciado grandes avanços rumo à
almejada consolidação de nossa memória histórica, alicerce da identidade cultural da Nação. Somente no que respeita à antiga Capitania do Ceará, objeto
deste Catálogo, recuperou mais de mil e quatrocentas peças documentais que
se achavam armazenadas na Sala do Brasil do Arquivo Histórico Ultramarino. Datadas de 1618 a 1832, as peças foram integralmente reproduzidas em
microfilmes trazidos para o Brasil, a partir dos quais se deu origem à versão
digital - uma coleção de três “compact discs” (CDs) -, já colocada à disposição
do público interessado.
Pelo inestimável valor histórico do material, ilumina-se agora definitivamente, perante os olhos do Brasil, o passado colonial da Capitania do Ceará
- cujo bicentenário de fundação, numa feliz coincidência, ocorreu exatamente
em janeiro de 1999.
Os méritos da iniciativa não se esgotam, todavia, na notável ampliação
do porte do acervo pré-existente. O Projeto foi mais longe. Promoveu a revisão e a complementação de trabalhos anteriormente desenvolvidos por ilustres
pesquisadores cearenses, na esteira do legado que lhes deixara o inesquecível
Barão de Studart. Em especial, atingiu seu ponto alto com a impecável organização dada ao acervo consolidado, objeto de um cuidadoso trabalho de
identificação de cada documento integrante do conjunto. Sem isso, jamais se
conseguiria garantir a consulta fácil, o acesso rápido e seguro, e a completa
democratização da informação histórica.
Acreditamos que a plenitude do êxito alcançado é fruto do entusiasmo,
da confiança e do espírito de cooperação que distinguiram a promissora parceria formada para a execução do Projeto. Nas atividades de coordenação e
HISTÓRIA DIGITAL - ANO II - Nº 02 - 2008
195
pesquisa, estiveram envolvidos o Ministério da Cultura, o Governo do Estado
do Ceará, o Instituto do Ceará - Histórico, Geográfico e Antropológico e o Departamento de História da Universidade Federal do Ceará; no apoio financeiro,
a Fundação Waldemar Alcântara, responsável pela viabilização dos recursos
junto à SASSE – Companhia Nacional de Seguros Gerais, da Caixa Econômica; e, finalmente, a Fundação Demócrito Rocha, entidade à qual se deve a publicação do presente catálogo. Este que será, por excelência, a porta de entrada
para exploração do patrimônio documental recém-conquistado.
Fortaleza, janeiro de 1999
196
HISTÓRIA DIGITAL - ANO II - Nº 02 - 2008
10. Sistema Web de Acesso e Busca de Documentos Digitais
do Banco de Dados Resgate
Rafael Timóteo de Sousa Júnior; Tamer Américo da Silva; Fábio
Lúcio Lopes de Mendonça; Wesley Gongora de Almeida.
Departamento de Engenharia Elétrica – UnB
Resumo
Esse artigo apresenta o sistema web de acesso, busca e visualização de
documentos históricos do Projeto Resgate em Conteúdo Digital (ResgateWeb).
Esse sistema permite a exploração do conteúdo armazenado em um banco de
dados multimídia que contém aproximadamente 100 mil documentos relativos
a 20 capitanias da América portuguesa que foram digitalizados, classificados e
descritos a partir dos manuscritos depositados no renomado Arquivo Histórico
Ultramarino de Lisboa (AHU) – o maior acervo de documentação colonial brasileira no exterior. Tais documentos correspondem a itens de banco de dados
com verbetes descritivos, datas, localidades e perto de 1 milhão e 100 mil imagens das páginas manuscritas originais. O sistema ResgateWeb foi desenvolvido com programação do lado do servidor (server-side), seguindo o modelo
de desenvolvimento em três camadas (interface, negócios e persistência), com
um navegador de imagens projetado para o acesso aos documentos para efeito
de pesquisa no domínio da História e áreas correlatas.
Palavras-chave: Gestão do conhecimento; Engenharia de sistemas
para web; Bancos de dados multimídia; Arquitetura 3 camadas.
1.
Introdução
O Arquivo Histórico Ultramarino de Lisboa (AHU) possui uma importante coleção de documentos que registram uma parte da memória histórica
dos países e/ou regiões com as quais Portugal manteve relações de domínio
ou de vizinhança, em especial incluindo o maior acervo histórico de documentos do Brasil colônia do período de 1548 a 1825. No contexto do Projeto
Resgate de Documentação Histórica Barão do Rio Branco (Projeto Resgate),
criado institucionalmente em 1995, tal acervo teve seus documentos descritos,
classificados, microfilmados e digitalizados, produzindo, além de catálogos e
guias fontes da documentação, um número expressivo de cerca de 300 CDs de
documentos digitalizados.
Em que pese o interesse do conjunto de CDs para a preservação do acerHISTÓRIA DIGITAL - ANO II - Nº 02 - 2008
197
vo e sua distribuição entre instituições de arquivamento, a utilização de CDs
para acesso e exploração dos documentos impõe restrições ao usuário e coloca
problemas específicos em função das variantes quanto ao modo de organização
da informação em cada subconjunto de CDs. O processo de classificação e digitalização foi específico para cada Capitania, envolvendo diversos grupos de
especialistas. Assim, para cada Capitania, que corresponde a um subconjunto
de CDs, o usuário dos CDs deve empregar um programa de instalação distinto,
o que acarreta a instalação de cerca de 30 aplicativos para ter acesso a todo
acervo digital. Outro problema nessa abordagem é que cada aplicativo gerencia
o respectivo banco de dados de uma determinada capitania e o sistema de busca
também é limitado para esta capitania, causando sobrecarga de trabalho ao usuário e limitando as pesquisas para tão somente uma capitania. Uma pesquisa automática envolvendo todas as capitanias é impossível nessa situação. Ademais,
o usuário é obrigado a ter sempre o acervo de CDs em mãos, pois cada aplicativo instala apenas a base de dados com as informações textuais de uma capitania
e tão somente ponteiros (links) para acessar as imagens dos correspondentes
manuscritos, imagens estas que permanecem exclusivamente nos CDs.
O sistema web integrando acesso, busca e visualização100 de documentos históricos do Projeto Resgate em Conteúdo Digital (ResgateWeb) foi
desenvolvido para unificar esses aplicativos e bases de dados independentes
e disponibilizar o acervo através da Internet. O desenvolvimento de uma biblioteca digital como essa requer a criação de soluções de construção e organização do acervo, definição das estruturas usadas para acessar a coleção,
fazer buscas com base em vários critérios e indexadores, navegação na base
de documentos e visualização dos documentos disponíveis101. A organização
do presente artigo corresponde ao trabalho realizado: a seção 2 apresenta o
estudo das fontes de dados e dos aplicativos nos CDs para efeito da integração
dos dados em uma base única e homogênea. A seção 3 descreve a interface de
acesso e exploração desenvolvida para pesquisa histórica. A seção 4 apresenta
a estrutura tecnológica do sistema ResgateWeb e uma síntese dos resultados é
objeto da conclusão do artigo.
2.
Fontes de dados e aplicativos nos CDs do Projeto Resgate
As fontes de dados de todas as Capitanias foram transpostas uniformemente para um único ambiente computacional, no qual foram colocados em
Vemuri, N. S.; Torres, R. S.; Weiguo, F.; Rao, S.; Fox, E. A. Exploring digital libraries: integrating browsing, searching, and visualization. Proceedings of the 6th ACM/IEEE-CS Joint Conference on Digital Libraries JCDL ‘06, pp. 1-10. ACM: 2006.
100
101
Witten, I. H.; Bainbridge, D. How to Build a Digital Library. Morgan Kaufmann: 2006.
198
HISTÓRIA DIGITAL - ANO II - Nº 02 - 2008
operação os diversos bancos de dados, a partir dos quais se fez o mapeamento
das informações existentes, verificando aquelas presentes de uma maneira geral em todos os CDs e aquelas específicas de determinados CDs.
Esta análise permitiu descrever as diferentes estruturas e formatos dos
bancos de dados e do conteúdo armazenado. A grande maioria dos bancos de
dados é apenas uma única tabela que contém todas as informações da Capitania (conforme esquema da Figura 1). Mesmo nessas tabelas, há casos de pequenas variações nos campos utilizados. Já os outros bancos de dados possuem
uma organização diferente com informações divididas em duas ou três tabelas,
a exemplo da Capitania do Rio de Janeiro (Figura 2). As informações estão
armazenadas em formato Microsoft Access Database – MDB102.
Figura 1: Formato da base de dados mais comum nos CDs do Projeto Resgate
102
Microsoft Corporation. Microsoft Access Database Specifications. URL: http://office.microsoft.
com/en-us/access/HP051868081033.aspx.
HISTÓRIA DIGITAL - ANO II - Nº 02 - 2008
199
Figura 2: Relacionamentos e estruturas da base de dados da Capitania do Rio de Janeiro
Em conseqüência, observa-se a grande diferença de abordagem de banco de dados para as fontes de informação do mesmo projeto, conforme ilustram as Figuras 3 e 4.
Figura 3: Conteúdo parcial da capitania do Maranhão
200
HISTÓRIA DIGITAL - ANO II - Nº 02 - 2008
Figura 4: Conteúdo parcial da capitania do Rio de Janeiro
No desenvolvimento do sistema ResgateWeb, em função das similaridades entre os tipos de informação armazenadas, e da homogeneidade nos
modos de utilização dessa informação, bem como objetivando eliminar os problemas decorrentes da existência de várias estruturas de dados e aplicativos
em um domínio bem delimitado, optou-se por reorganizar as bases de dados
e convertê-las para uma única base comum. Assim partiu-se do estudo dos
bancos de dados nos CDs para gerar uma nova modelagem de banco de dados contemplando todas as informações de todas as capitanias, fundamentada
nas boas práticas de modelagem de bancos de dados, gerando-se o modelo
entidade-relacionamento da Figura 5.
HISTÓRIA DIGITAL - ANO II - Nº 02 - 2008
201
202
HISTÓRIA DIGITAL - ANO II - Nº 02 - 2008
Figura 5 - Modelo do banco de dados do ResgateWeb
Foi então produzido um pacote de software capaz de ler cada uma das
bases de dados dos CDs convertendo-as para o novo modelo e migrando os
dados para a nova base. A automação dessa atividade foi imprescindível, pois,
além de envolver um grande volume de informações, o risco de falhas em
uma operação de migração manual seria muito alto, além de que a migração
duraria meses para sua finalização. O pacote de conversão foi desenvolvido
em linguagem Java e possui os elementos conversores do formato MDB para
o formato Structured Query Language – SQL103, construindo a base de dados
consolidada para o gerenciador de base de dados MySQL104, um sistema com
capacidades particularmente bem adaptadas à implantação de bibliotecas digitais105. Os dados quantitativos do processo de construção da base consolidada
são apresentados na Tabela 1, notando-se diferenças em função da eliminação
de imagens usadas apenas para controle de digitalização ou resultantes de impossibilidades de conversão.
Tabela 1: Quantidades de documentos e imagens no ResgateWeb
Capitania
Quantidade de
CDs
Número de
Imagens nos
CDs
Número de
Documentos no
Portal
Número de
Imagens no
Portal
Pernambuco
25
191.431
20.029
Bahia - Avulsos
32
172.153
0
185.377
0
Bahia – Eduardo Castro de Almeida
25
73.904
3.021
62.232
Bahia – Luisa da Fonseca
6
19.914
3.280
19.567
Rio Grande do Sul
2
9.231
821
9.119
Piauí
5
20.038
1.716
19.439
Colônia de Sacramento e Rio da Prata
2
9.960
1.224
43.749
Paraíba
6
32.338
3.523
31.341
Goiás
7
39.961
2.950
33.906
Minas Gerais
54
94.939
13.921
92.441
Pará
16
103.101
12.690
97.887
São Paulo – Avulsos
4
18.780
1.383
17.104
São Paulo – Alfredo Mendes Gouveia
7
35.214
4.994
34.520
Alagoas
1
4.546
532
4.528
Ceará
3
11.073
1.436
10.907
Espírito Santo
2
3.595
549
3.505
ANSI/ISO/IEC International Standard (IS). Database Language SQL – Part 2: Foundation
(SQL/Foundation). 1999.
103
104
Sun Microsystems. MySQL Reference Manual. URL: http://dev.mysql.com/doc/.
105
Di Giacomo, M. MySQL: Lessons Learned on a Digital Library. IEEE Software, Vol. 22, Issue
3, pp. 10-13. IEEE: 2005.
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203
Maranhão
14
109.622
13.118
105.039
Mato Grosso
9
20.011
2.221
18.590
Rio Grande do Norte
1
6.381
684
6.221
São José do Rio Negro – Amazonas
2
10.102
841
10.301
Santa Catarina
1
5.937
619
5.250
Sergipe
2
3.356
494
3.234
Códices
44
124.811
790
79.802
-
12.731
2.020
12.731
20
156.342
20.953
150.200
Secretaria do Conselho Ultramarino – Avulsos
Rio de Janeiro – Avulsos
Rio de Janeiro – Eduardo Castro de Almeida
Total
7
42.287
3.349
41.545
297
1.331.758
117.158
1.098.535
O tratamento dos arquivos de imagens representou um desafio à parte.
As imagens originais foram digitalizadas em formato tiff , um formato que,
apesar de sua riqueza de representação da informação, é de domínio privado
e em conseqüência considerado inapropriado para uma biblioteca digital de
acesso público. Assim, foi implementado um processo de conversão das imagens para o formato de domínio público png107, com a produção simultânea de
imagens-miniatura (thumbnails) usadas na interface-usuário do ResgateWeb,
especificamente para apresentação de visões gerais dos resultados de buscas,
conforme descrito a seguir.
Feita a conversão das bases de dados para uma única base, assim
como o tratamento das imagens, foi então escolhida e dimensionada a arquitetura tecnológica para o novo sistema a ser disponibilizado em um único ambiente computacional servidor acessível através da Internet. Foi inicialmente
calculada uma capacidade de armazenamento de 450 Gigabytes, em uma arquitetura de armazenamento utilizando um conjunto de discos rígidos (HDs)
redundantes, mas vistos pelo sistema como um único dispositivo, o que facilita
o novo mecanismo de pesquisa na base de dados convertida, pois todas as
informações encontram-se em apenas um dispositivo físico, não sendo necessário um mapeamento adicional para indexar o banco de dados em cada HD.
Tal ambiente computacional foi implantado em duas instalações físicas
independentes e separadas geograficamente, no Centro de Memória Digital
(CMD) e no Laboratório de Engenharia de Redes (LabRedes) da UnB, esta
última servindo de solução de contingência para os casos de falha da primeira,
além de ser o ambiente de desenvolvimento do projeto. Ambos os ambientes
Adobe Systems Incorporated. TIFF Revision 6.0, 1992. URL: http://partners.adobe.com/public/developer/en/tiff/TIFF6.pdf.
106
107
W3C - World Wide Web Consortium. Portable Network Graphics (PNG) Specification. URL:
http://www.w3.org/TR/PNG/.
204
HISTÓRIA DIGITAL - ANO II - Nº 02 - 2008
servidores encontram-se conectados à rede dorsal de 1 gigabit por segundo da
Universidade de Brasília, com acesso via Internet em www.cmd.unb.br.
3. Interface de acesso e sistema de busca e visualização dos documentos históricos
O sistema ResgateWeb foi desenvolvido objetivando tornar-se uma
ferramenta para a gestão do conhecimento no que se refere à coleta, armazenamento, classificação de documentação histórica, sendo um sistema voltado
para a comunidade científica, histórica e cultural.
Para tanto, o ResgateWeb é estruturado como uma aplicação web de
acesso a um banco de dados multimídia, empregando tecnologia de biblioteca digital com capacidade de busca e apresentação de imagens de alta altaresolução108, com reprodução em tela do computador usuário sob restrições de
tempo de resposta e apresentando modos de visualização de imagens digitais
específicos para o usuário do domínio considerado, o que inclui a navegação
página a página nos documentos (como exibido na Figura 6), a aproximação, o
distanciamento e a visualização na resolução máxima disponível (Figura 7).
Figura 6: Página de documento digitalizado exibido pelo navegador de imagens do ResgateWeb
108
Nichols, D. M.; Bainbridge, D.; Twidale, M. B. Constructing Digital Library Interfaces. In
Proceedings of the 7th ACM/IEEE-CS Joint Conference on Digital Libraries JCDL’07, pp. 331332. ACM: 2007.
HISTÓRIA DIGITAL - ANO II - Nº 02 - 2008
205
Figura 7: Página de documento digitalizado exibido na resolução
máxima pelo ResgateWeb
Assim, no que se refere à interface-usuário, procurou-se produzir um
ambiente colaborativo e de fácil manuseio, pelo qual o usuário pode fazer a
pesquisa de documentos em poucos passos, começando por uma tela inicial
(Figura 8) que permite especificar os critérios desejados para a busca na base.
O sistema de busca retorna ao usuário o conjunto de registros encontrados na base e correspondentes aos critérios definidos pelo usuário (Figura 9).
Para cada documento, já se apresenta a ementa, as datas e os dados de referência no AHU e na base ResgateWeb, de modo que o usuário dirige sua atenção
diretamente ao conteúdo desejado.
A escolha de um documento pelo usuário permite então a apresentação
de uma vista geral de todas as páginas do documento em formato miniatura,
com ligações (links) para as imagens de cada página do manuscrito original (Figura 10), que podem ser abertas com o navegador mostrado nas Figuras 6 e 7.
206
HISTÓRIA DIGITAL - ANO II - Nº 02 - 2008
Figura 8: Tela inicial de pesquisa
Figura 9: Tela de resultados da pesquisa
HISTÓRIA DIGITAL - ANO II - Nº 02 - 2008
207
Figura 10: Tela de resultado da busca de um documento com suas
imagens
4. Arquitetura e estrutura tecnológica do sistema ResgateWeb
Um projeto de criação de um sistema web, que consiste de uma composição dinâmica de páginas web, requer técnicas sistemáticas e um plano cuidadoso de layout. A produção de sucesso de sistemas de informação baseados na
web depende da utilização de metodologias que respondam aos requisitos para
uma representação compreensiva, facilidade de navegação, usabilidade, interoperabilidade e acessibilidade, devendo haver um gerenciamento efetivo das
informações tratadas e armazenadas. Por outro lado, o desenvolvimento deve
observar os requisitos de segurança e confiabilidade do sistema web.
Para atender a tais exigências, a metodologia utilizada no desenvolvimento do ResgateWeb tem base na engenharia de software para web109 110, utilizando
programação e análise orientadas a objetos111 e uma arquitetura em modelo de
109
Pressman, R. S. Software Engineering: A Practitioner’s Approach. McGrawHill: 2005.
Conte, T.; Travassos, G. H.; Mendes E. Revisão Sistemática sobre Processos de Desenvolvimento para Aplicações Web. Relatório Técnico ESE/PESC – COPPE/UFRJ, 2005.
110
Larman, C. Applying UML and Patterns: An Introduction to Object-Oriented Analysis and Design and the Unified Process. Prentice Hall: 2002.
111
208
HISTÓRIA DIGITAL - ANO II - Nº 02 - 2008
três camadas para aplicações cliente-servidor112. O desenvolvimento do projeto
contou com a utilização da notação da unified modeling language – UML113. No
processo, foram feitas e implementadas as seguintes escolhas tecnológicas:
• A base de dados contém informações multimídia, armazenando vários
formatos de dados, incluindo textos simples e com formatação HTML
além de imagens de alta definição e qualidade. O sistema gerenciador
banco de dados utilizado foi o MySQL. A versão utilizada possui suporte para vários tipos de dados, incluindo CLOB e BLOB, necessários
para o armazenamento de longos arquivos de texto e binários, como
arquivos de imagem e vídeo. A indexação das informações também foi
utilizada, bem como o suporte a transações;
• Como o sistema foi desenvolvido seguindo o modelo cliente-servidor
de três camadas (camada de apresentação; camada lógica ou de negócios; e camada de armazenamento de dados), a maior parte de processamento fica a cargo do servidor, sendo a informação resultante enviada
para o cliente. O processamento que existe do lado do cliente é focado
na validação das informações provenientes do usuário ou em funções
de apresentação de resultados, evitando o tráfego de dados incorretos e
o processamento dos mesmos do lado do servidor;
• Foram definidos recursos visuais uniformes de interface homem-máquina
para todo o sistema, visando uma navegação confortável segundo o modelo
de aplicações tendo a Internet como ambiente final de acesso ao sistema;
• A linguagem Java (J2EE 1.4)114 foi um diferencial na parte de engenharia de software, devido às suas conhecidas características de portabilidade, além da expressividade para a programação de uma aplicação
sofisticada. Foram utilizados vários elementos de programação e estruturação de sistemas da linguagem Java, entre os quais Java Beans, Java
Server Pages (JSP), Tag Libraries, Struts, Java Servlets, Java Database
Conectivity (JDBC) e Java Security and Criptography115;
• O sistema foi desenvolvido e implantado utilizando-se softwares com
licença de código aberto (open source), incluindo o sistema operacional
112
Eckerson, W. W. Three Tier Client/Server Architecture: Achieving Scalability, Performance,
and Efficiency in Client Server Applications. Open Information Systems 10, 1 (January 1995):
3(20).
Booch, G.; Rumbaugh, J.; Jacobson, I. The Unified Modeling Language User Guide. AddisonWesley: 2005.
113
Shannon, B. JavaTM Platform, Enterprise Edition (Java EE) Specification, v5. Sun Microsystems: 2006.
114
115
Kurniawan, B. Java para a Web com Servlets, JSP e EJB. Ciência Moderna: 2002.
HISTÓRIA DIGITAL - ANO II - Nº 02 - 2008
209
Linux RedHat, o banco de dados relacional MySQL, o servidor web
Apache, o servidor de aplicações Tomcat e o ambiente de desenvolvimento Eclipse 2.1.
5.
Conclusão e Trabalhos Futuros
O projeto de desenvolvimento do sistema ResgateWeb articulou um
conjunto de esforços de engenharia de software, engenharia de redes e arquitetura da informação.
As imagens dos documentos manuscritos do Brasil colônia proveniente
do AHU foram convertidas para o padrão aberto png de alta resolução, processo simultâneo à produção de imagens-miniatura (thumbnails).
No que se refere à indexação dos documentos, foi feita a homogeneização dos indexadores e a reindexação completa de todas as Capitanias, formando um banco de dados consolidado.
A partir daí, foram desenvolvidas as funções de classificação e busca, com
a concepção do banco de dados em linguagem padrão SQL, a produção das páginas e da estrutura de navegação em linguagem padrão HTML e o desenho e
programação da aplicação de busca e navegação em linguagem Java. A interfaceusuário e as funções de apresentação foram produzidas na forma de uma aplicação
cliente em padrão web para navegador de uso comum, com um módulo de software navegador de imagens-miniatura das páginas dos documentos completos,
bem como um visualizador de imagens individuais com funções de apresentação
voltadas para o acesso aos documentos pelo público-alvo específico do sistema.
O sistema ResgateWeb foi colocado em operação em um ambiente computacional de alto desempenho, com acesso via Internet, atendendo aos objetivos
iniciais do projeto. A existência de bibliotecas digitais como esta coloca muitos
desafios de pesquisa e desenvolvimento, em especial no que se refere à análise de
imagens de documentos, especialmente manuscritos116. Assim, a experiência e o
conhecimento desenvolvidos durante o trabalho permitem apontar novos caminhos de pesquisa a serem explorados, em diversos temas como a navegação no espaço dimensional do banco de dados em complemento à busca de documentos por
critérios específicos, o estudo de modos de transcrição de documentos por usuários autorizados e por sistema de reconhecimento dos manuscritos e transcrição
automática117, a possibilidade de identificação explícita de usuários do sistema e a
proposição de serviços direcionados individualmente, com suporte permanente à
utilização do sistema por intermédio de cesta de serviços de busca e indexação.
Baird, H.S. Digital Libraries and Document Image Analysis. Proceedings of the Seventh International Conference on Document Analysis and Recognition, pp. 2-14, vol. 1. 2003.
116
117
Rath, T. M.; Manmatha, R. Word Spotting for Historical Documents. International Journal on
Document Analysis and Recognition, Vol. 9, Issue 2, pp. 139-152. Springer: 2007.
210
HISTÓRIA DIGITAL - ANO II - Nº 02 - 2008
11. Censo Nacional dos Pontos de Cultura (2008): Algumas
considerações
Wellington Diniz – Centro de Memória Digital da UnB
O I Censo Nacional dos Pontos de Cultura foi proposto em 2008 pelo
Centro de Memória Digital/UNB e executado em parceria com a Comissão Nacional dos Pontos de Cultura e do Ministério da Cultura, através da secretaria
de Projetos e Programas Culturais. Os Pontos de Cultura, cuja principal ação é
ser mediador da rede orgânica de criação e gestão cultural, se inserem na Portaria Nº. 156 de 06 de julho de 2004 que constituiu o Programa Cultura Viva,
projeto desenvolvido pelo Ministério da Cultura conhecido como Cultura Viva.
Segundo a publicação oficial “Cultura Viva – Programa Nacional de Cultura,
Educação e Cidadania”, o papel da política pública para a cultura é “agregar
recursos e novas capacidades a projetos e instalações já existentes, oferecendo
equipamentos que amplifiquem as possibilidades do fazer artístico e recursos
para uma ação contínua junto às comunidades”. Procurando abranger as diversas demandas culturais o Programa Nacional de Cultura traça diretrizes e
estratégias para a execução de políticas públicas fomentadoras do pluralismo e
sinaliza para uma Gestão Compartilhada que, em última instância, permita aos
atores culturais serem protagonistas de sua própria trama. Os objetivos são inúmeros. Desde a ampliação e garantia de acesso ao bem cultural até o incremento
de uma rede horizontal de transformação, invenção, passando por definição de
público atendido, enfim, uma teia de significações e representações.
Os desafios centrais colocados para as políticas de cultura são: registrar
e preservar a memória dos costumes, diagnosticar nacionalmente as multiplicidades, promover o diálogo entre as diversas linguagens, tanto as canônicas
como as mais recentes manifestações da multiplicidade de identidades, promover uma política de financiamento que sustente o desenvolvimento, a produção
e circulação dos produtos culturais nas redes de manifestações simbólicas.
Dessa maneira, como fruto dessa parceria, está sendo divulgado esse
artigo para dar notícias do início da construção e um corpo de indicadores
socioculturais que possam fundamentar estudos mais aprofundados. Trata-se
de uma amostragem inicial dos Pontos de Cultura beneficiários do Programa
Cultura Viva do Ministério da Cultura. Sendo assim, procuramos levantar informações acerca do nível de escolaridade, localização, tempo de existência,
composição, formas de produção e demais informações que seguirão. Aproveitando a presença dos representantes de cerca de cinqüenta por cento dos Pontos
de Cultura no II Fórum Nacional, verificou-se que seria razoável realizar essa
pesquisa de caráter amostral, com o objetivo de traçar um perfil mínimo das
HISTÓRIA DIGITAL - ANO II - Nº 02 - 2008
211
condições socioculturais dos Pontos de Cultura. A pesquisa correspondeu a um
subconjunto, senão amplo, representativo do universo dos Pontos conveniados. Considerando que a realidade enfocada é bastante desconhecida em seus
detalhes, o estudo teve um caráter exploratório, buscando fazer inferências em
vários níveis e procurando agregar informações por estado, região, tipos de
produção, o histórico do Ponto, o tamanho, enfim, uma série de dados que nos
permitisse visualizar o Ponto de Cultura.
A estratégia metodológica usada foi basicamente a seguinte: elaboração
de um questionário para distribuído, respondido e entregue durante a realização do II Fórum Nacional dos Pontos de Cultura que se realizou de 12 a 14
de novembro de 2008 em Brasília, no Complexo Cultural da República, como
parte da programação da TEIA Brasília 2008. Convém salientar que a relatoria
do II Fórum Nacional dos Pontos de Cultura foi coordenada pelo CMD/UNB.
Foram inscritos no II Fórum, 428 delegados com direito a voto, conforme fichas de inscrição, e o mesmo número de questionário foi entregue. É preciso
dizer que os Pontos de Cultura conveniados, segundos dados nos passado pelo
Ministério à época, eram de 850. Contudo, acesso recente – 20/10/2009 - no
sitio do Ministério nos mostrou o número de 973 Pontos de Cultura.
O I Censo Nacional dos Pontos de Cultura, uma pesquisa sociocultural,
se ateve estritamente nas respostas coletadas de questionários estratificados
construídos a partir de um instrumento de coleta de informações socioculturais
e tomando o Ponto de Cultura como composição das amostras. As áreas e/
ou subáreas foram mapeadas segundo modelos pré-existentes e, finalmente,
os Pontos incluídos na composição da amostra foi apenas dos questionários
devolvidos. Com isto, de antemão, já se tinha conhecimento dos limites de
aprofundamento das análises a partir das informações solicitadas, que não previam cruzamentos maiores de variáveis como tamanho do Ponto de Cultura e
bens produzidos, área de atuação e espaços, linguagem e público, etc. Embora
elas ocorram amiúde, não nos detivemos nessas relações. Portanto, o resultado
passível de ser atingido por essa pesquisa amostral fica restrito a descrição das
condições gerais dos Pontos de Cultura. O Censo atingiu cerca de 19% dos
Pontos de Cultura efetivamente em atividade naquele momento, variando esse
percentual de uma região para outra. A amostragem devolvida foi de 190 questionários alimentadores de dados, representando por volta de 20% de todos os
Pontos de Cultura do Brasil e cerca de 31% dos delegados com direito a voto
presentes ao II Fórum Nacional dos Pontos de Cultura.
A coordenação do Centro de Memória Digital/UNB avaliou que, além
dos limites já destacados acima, outros fatores interferiram no resultado geral
da pesquisa. Para atender à antecipação imposta pela Comissão Nacional dos
Pontos de Cultura do já curto cronograma pré-estabelecido, tivemos que ela212
HISTÓRIA DIGITAL - ANO II - Nº 02 - 2008
borar o relatório de afogadilho, causando perdas nas informações no momento
de análise dos formulários, não permitindo o rigor, tanto morfológico como
conceitual, necessário em trabalho de tal envergadura e, portanto, e não menos
importante, não possibilitando um recorte mais cirúrgico, dificultando, assim,
abordagens aprofundadas das informações. Outro fator entendido como complicador foi o modelo do formulário, que exigiu muito mais atenção na hora do
preenchimento, sem contar que, em função da tipologia das questões, muitos
delegados deixaram de preencher parte dos formulários.
De início se percebe certa equanimidade em vários aspectos, sobretudo
na diversidade das ações sociais e na distribuição, tanto nas linguagens artísticas como nas sociais. Diríamos que a grande característica dos Pontos de
Cultura é serem grupos de câmara, isto é, grupos de pequeno para médio porte.
A maioria, 36%, conta com 6 a 10 componentes. A segunda, 18%, tem entre
1 e 5 e, finalmente, a terceira, 13%, entre 11 e 15 membros. O que nos dá a
expressiva maioria de 67% cujo teto não passa de 15 componentes.
Gráfico 1. Número de Componentes dos Pontos de Cultura - 2008
1%
5%
3%
1a5
6 a 10
3%
4% 4%
11 a 15
18%
16 a 20
21 a 30
9%
31 a 50
51 a 100
4%
13%
36%
101-150
151-300
301-500
501-1000
No tocante ao tempo de existência dos Pontos de Cultura é notável a
infância predominante. Na verdade, não é de se admirar, já que a idéia dos Pontos de Cultura é recente. O que causa estranheza é perceber a ausência de grupos com historicidade representativa, contrariando o estabelecido pelo art. 3º
da Portaria Nº. 156 de 06 de julho de 2004. Ao que parece houve uma marcha
para o oeste na política cultural, uma correria desenfreada na criação de Pontos
de Cultura para concorrer aos editais. Cremos ser essa uma reflexão interessante, na medida em que grupos de manifestações culturais comprometidos com
o imaginário social não estejam participando ativamente do Programa Cultura
Viva, é notória a falta de interlocução das políticas públicas da cultura com
grupos ancestrais. Apenas 4% dos Pontos de Cultura existem há mais de trinta
anos, ao passo que quase 80% não passa de uma década. A maioria significatiHISTÓRIA DIGITAL - ANO II - Nº 02 - 2008
213
va, 45%, engatinha na construção cultural com menos de 4 anos. Sintomaticamente houve uma curva descendente do mais novo para o mais velho.
Gráfico 2. Tempo de existência - 2008
9%
4%
Até 4 anos
10%
45%
4-10 anos
11-15 anos
16 a 30 anos
mais de 31 anos
32%
Na distribuição dos Pontos de Cultura por Região a uniformidade começa a se imiscuir. Mesmo que não consideremos a densidade demográfica
das regiões, podemos dizer que os Pontos de Cultura estão repartidos de maneira “igualitária”. Naturalmente, seguindo a rega da afluência, a região Sudeste aparece em primeiro lugar com 38%. Contudo, logo atrás, com 33%,
o Nordeste surge com o ar de sua graça. O que já desloca o eixo um pouco.
Movendo definitivamente o foco, manifesta-se o Norte com 13%. Podemos
ver claramente uma boa fatia dos Pontos de Cultura concentrada no Norte/
Nordeste, 46%. Causa espanto a pouca participação do Centro Oeste e do Sul.
Gráfico 3. Distribuição dos Pontos de Cultura por Região 2008
2%
33%
38%
Sudeste
Sul
Centro-Oeste
Norte
13%
8%
6%
Nordeste
Não Ident.
No quesito escolaridade os Delegados dos Pontos de Cultura estão acima da média nacional. O nível de escolaridade é altíssimo e não há a devida
equivalência em termos de remuneração, como veremos adiante. Os graduados
lideram com 29%, sendo seguido de longe, com 20%, pelo ensino médio completo e, fechando a tríade, surpreendentemente, aparece a especialização com
214
HISTÓRIA DIGITAL - ANO II - Nº 02 - 2008
18%. Além disso, há o número significativo de Mestres com nada mais que 9%
e 2% de Doutores. Como se nota a qualificação apreendida em Instituições formais de Ensino é grande. Segundo o relatório do IBGE, o nível de escolaridade
no Brasil é de apenas sete anos em média. Não obstante a média baixa impera
uma desigualdade óbvia no espectro social. Conforme nos informa o relatório
“As Desigualdades na Educação no Brasil”, divulgado pelo Comitê Técnico
do Observatório da Equidade do Conselho de Desenvolvimento Econômico e
Social, a população pobre possui três vezes mais analfabetos, 19,4%, do que os
20% mais ricos, 59%. Entretanto, não são apenas as desigualdades sociais que
imperam. Enquanto 5,9% da população do Sul do país são de analfabetos, no
Nordeste esse número sobe para 21,9%, ou seja, quatro vezes mais. Sintomaticamente, os 2% de doutores existentes nos Pontos de Cultura são do Sudeste,
segundo dados coletados nos questionários.
Gráfico 4. Escolaridade dos Delegados dos Pontos de
Cultura - 2008
Fundamental Incompleto
9%
2%2%1%
2% 2%
Fundamental
16%
Médio Incompleto
18%
Médio Completo
Superior Incompleto
Superior Completo
20%
28%
Especialização
Mestrado
Doutorado
Outros
Entretanto, tal qualificação não se reflete nos bolsos dos Delegados dos
Pontos de Cultura. 45% ganha entre R$ 1.000,00 e R$ 3.000,00. 31% sobrevivem com uma quantia oscilando entre 500,00 e 1.000,00 reais e significativa
parcela, 15%, escapa com até R$ 500,00. O IBGE, em sua Análise do Cadastro
Central de Empresas Culturais, em 2005, registrou uma média salarial mensal
das pessoas ocupadas nas atividades culturais de R$ 1.565,74, ou seja, cerca de
50% superior às remunerações médias mensais dos trabalhadores das empresas
formalmente constituídas. No geral, o salário médio mensal pago no segmento
de serviços no referido ano, foi de 3,2 salários. No segmento do conjunto dos
setores econômicos a média estava em 3,3 salários e nos setores relacionados
HISTÓRIA DIGITAL - ANO II - Nº 02 - 2008
215
direta ou indiretamente à cultura foi de 5,1 salários mínimos. O IBGE insinua
que a média superior do segmento cultura se deve ao fato da alta qualificação
do setor, Contudo, no refluxo dessa tendência, a média mensal dos Delegados
dos Pontos de Cultura não passa de 1,5 salários mínimos.
Gráfico 5. Rendimentos dos Delegados dos Pontos de Cultura
em Reais - 2008
80
70
60
50
40
30
20
10
0
Até 500,00
501,001.000,00
1001,003.000,00
3001,008.000,00
Embora o desejo seja a descentralização dos Pontos de Cultura, os dados nos mostram uma excessiva dependência central. Os Pontos diretamente
conveniados com o Ministério da Cultura são da ordem de 117 Pontos de Cultura. Conveniados com os municípios temos 38 Pontos de Cultura. Dez Pontões conveniados com o Ministério e de Pontos estaduais. A legenda outros se
refere aos Pontos aguardando convênio ou Pontos que não responderam. Entre
Pontos e Pontões diretamente conveniados com o Ministério temos nada mais,
nada menos que 127 em um universo de 190, totalizando 70%. Outro fato que
salta aos olhos é o investimento municipal ser maior que o estadual, não que
seja surpresa, já que dados de 2003 já nos mostram um investimento municipal maior que as demais esferas organizacionais do Estado. Segundo dados
constantes na publicação Plano Nacional de Cultura: Diretrizes Gerais.os recursos públicos para a cultura foram da ordem de mais de R$ 2 bilhões no ano
de 2003. Distribuindo as despesas entre as esferas governamentais teríamos o
Municipal respondendo por 55% das despesas com cultura, por esfera de governo. Já a esfera Estadual respondeu por 32,4% e a União entrou com 12,6%.
Nos Pontos essa tendência se inverte e o Governo Federal assume a ponta com
64%, até mesmo por se tratar de um programa do Executivo Federal.
São 38 Pontos com convênio municipal contra 10 estaduais. A despeito da
216
HISTÓRIA DIGITAL - ANO II - Nº 02 - 2008
tão propalada falta de estrutura municipal relatada nos grupos de trabalho, os municípios estão absorvendo bem os Pontos de Cultura, ao passo que o poder estadual se mostra tímido em suas ações de acolhimento do Programa Cultura Viva.
Gráfico 6. Condição dos Pontos de Cultura - 2008
5% 4%
Ponto Conveniado
Pontão Conveniado
21%
Ponto Municipal
5%
65%
Ponto Estadual
Outros
Na plenária final do II Fórum Nacional dos Pontos de Cultura foi abordada a questão da adequação dos espaços dos Pontos de Cultura. Entendemos que
os espaços onde se desenvolvem a cena passam por uma condição patrimonial
e por outra condição específica de espaço cultural, condições essas que se mesclam determinando a tipologia de ocupação possível em determinado espaço
físico. Foi nesse sentido que buscamos caracterizar a relação patrimonial existente nos Pontos de Cultura e suas sedes, ou locais de funcionamento. Os três
maiores segmentos da condição patrimonial dos espaços são: sede cedida por
empresa pública, base alugada e suporte próprio. O que surpreende é a quantidade de sede própria, 23%. Assusta, e muito, o percentual de aluguel, 25%.
Empregar o já curto orçamento com aluguel é mais um obstáculo para o funcionamento dos Pontos de Cultura. Não que não seja importante o espaço físico,
mas a se crer nos objetivos enumerados pelo texto “O Que é Cultura Viva?”, o
Estado procuraria “estimular a exploração, o uso e a apropriação dos códigos de
diferentes meios e linguagens artísticas e lúdicas nos processos educacionais,
bem como a utilização de museus, centros culturais, e espaços públicos em diferentes situações de aprendizagem e desenvolvendo uma reflexão crítica sobre
a realidade em que os cidadãos se inserem”. Sendo assim, há observância de
meio objetivo cumprido, já que adiante se insinua um contrapeso.
Por outro lado, o percentual de sede própria é um alento, pois o mesmo pode se tornar gerador de renda para o Ponto de Cultura, nada melhor
para sua sustentabilidade. Entretanto, os espaços públicos cedidos dominam
a cena com 26%. Esse dado revela que os Pontos de Cultura estão procurando utilizar os espaços públicos, estão se imiscuindo nas frestas do poder, ao
menos em seu aspecto mais tangível.
HISTÓRIA DIGITAL - ANO II - Nº 02 - 2008
217
Gráfico 7. Condição Patrimonial das Sedes dos Pontos de
Cultura - 2008
5%
Própria
23%
25%
Cedida - pessoa
Cedida - Instituição
Cedida - Público
7%
6%
6%
2%
cedida - empresa privada
cedida - ONG
26%
alugada
outros
A configuração dos espaços culturais dos Pontos de Cultura apresenta
algumas surpresas. O segmento dominante, a área livre, não traz nenhum assombro. O primeiro maravilhamento é constatar o uso da biblioteca, com 86
Pontos, como espaço dos Pontos de Cultura. Constantemente somos bombardeados com a idéia de um país sem leitores, sem bibliotecas, de analfabetos
funcionais e que tais. Soa como música aos nossos ouvidos tal notícia. Outro
grato espanto é ver os laboratórios em terceiro lugar com 68 Pontos de Cultura
fazendo uso da ferramenta espacial. Espaços consagrados como teatros, galerias e museus, ficaram com uma porcentagem em torno de 5%. São os Pontos
de Cultura buscando espaços alternativos e mais condizentes com sua situação.
Sendo assim, há observância de meio objetivo cumprido, já que atrás sublinhamos a contrafação dessa assertiva.
Gráfico 8. Configuração dos Espaços dos Pontos de
Cultura - 2008
Área Livre
Arquivo
Brinquedoteca
Laboratórios
5%
6%
4% 5%
5%
Auditório
20%
Biblioteca
7%
10%
5%
14%
8%
11%
Casa
Galeria
Ginásio
Museu
Teatro
Outros
218
HISTÓRIA DIGITAL - ANO II - Nº 02 - 2008
O equilíbrio reina na área de atuação. Há uma média de oito linguagens
para cada Ponto de Cultura. Aqui cabe uma explicação metodológica específica. Usamos algumas áreas pré-definidas a saber: Patrimônio Imaterial, Saberes
Populares, Artesanato, Música, Literatura, Artes Cênicas e Plásticas, Audiovisual, Patrimônio e Temas Transversais. Fizemos primeiro uma leitura micro,
ou seja, reduzimos a escala em subáreas, como por exemplo, Artes Plásticas
que ficou subdividida em: Desenho, Gravura, Pintura, Escultura e outros. Fizemos o mesmo para cada linguagem. Dito isto resta um último comentário
de esclarecimento. Em função do espaço colocaremos apenas o gráfico das
grandes áreas nesse quesito.
O Patrimônio Imaterial responde por 10% nessa amostragem. Contudo,
a legenda outros domina a área com 61%, vindo a seguir Samba de Roda com
11% e Folia de Reis com 8%. Segundo a UNESCO, em seu sítio eletrônico,
patrimônio imaterial compreende “as práticas, representações, expressões, conhecimentos e técnicas junto com instrumentos, objetos, artefatos e lugares
culturais que lhes são associados e que as comunidades, os grupos e, em alguns
casos, os indivíduos reconhecem como parte integrante de seu patrimônio”.
Dessa maneira, o samba carioca, assim como o samba do recôncavo baiano,
o frevo de Recife e Olinda, a feira de Caruaru, o círio de Nazaré, o tambor de
crioula, o ofício do acarajé, a cachoeira de Iauretê, a pintura e o grafismo dos
Wajãpi, enfim, uma miríade de manifestações se concentra nessa definição. Em
função de enorme diversidade fica difícil um mapeamento que contemple toda
gama de manifestações relativas ao patrimônio imaterial. Sendo assim, mesmo
considerando o risco, a escolha de alguns estratos é inevitável. O grande percentual de outros nos sugere, além da obvia e imensa variedade já referida, um
mapeamento precário do Patrimônio Imaterial já insinuado.
No segmento Saberes Populares que conta com 8%, embora haja uma
distribuição bastante uniforme, a legenda outros também paira soberana com
27%, vindo em seguida, empatados com 22%, a culinária e os saberes religiosos. No segmento Artesanato, 9%, também bastante equânime em sua distribuição, a legenda outros mais uma vez se impõe com 26%, seguida de bordado
com 16% e retalho com 14%. Já em Música, 10%, a legenda outros não domina, mas está empatada em segundo lugar com coral e contam com dezoito
pontos percentuais. Em primeiro aparece conjunto com 26% e, fechando a
tríade em terceiro lugar, surge a música regional com 15%. Aqui em música
a questão da escolha de categorias se exacerba ainda mais. A diversidade de
gêneros torna quase impossível definir estratos. Uma questão se coloca sem
resposta: onde encaixar o samba do recôncavo baiano? Já reconhecido pela
UNESCO como Patrimônio Imaterial não teria seu lugar aqui? Ou poderíamos
estratificá-lo em ambos? Ou ainda em Dança?
HISTÓRIA DIGITAL - ANO II - Nº 02 - 2008
219
Em Literatura, mais uma vez com bastante equilíbrio em sua distribuição, a coluna outros arrefece e se torna coadjuvante. Literatura Infantil,
Poesia e Conto lideram com 28%, 20% e 17% respectivamente. Com o maior
percentual, 16%, as Artes Cênicas ocupam o topo no gráfico macro. Contudo,
em sua distribuição interna o equilíbrio já anotado na distribuição geral, se
desfaz. Com uma disputa acirrada entre elas, o Teatro e a Dança levam juntas
quase 60% da preferência, seguidas pelos Contadores de Estória com 16%.
Interessante notar que na configuração dos espaços culturais a estrutura física
do teatro contou com apenas 5%. O panorama em Artes Plásticas, 10%, não
se altera substancialmente. Apenas uma tendência em se voltar ao equilíbrio
anterior. Pintura fica com 43%, Desenho com 22% e Escultura com 13%. Em
Audiovisual, talvez em função de sua maior estratificação, o quadro é bem
definido: Fotografia 30%, Cinema 26% e Rádio 18%.
Finalmente os Temas Transversais. Para nossa surpresa parece haver uma
definição conceitual mais definida, pois a legenda outros é a menor dentre todas
as outras áreas. Seria até natural, em questões desse tipo, um alto índice para a
legenda. Mesmo por que Temas Transversais, com 12%, é a segunda mais citada.
Interessante notar como três faixas se definiram: as duas primeiras, Juventude e
Direitos Humanos, dominam e está em um patamar entre 25% e 35%, a segunda
entre 12% e 15%, diminui ainda mais o fosso e a terceira é praticamente idêntica.
Como dissemos anteriormente, a área de atuação dos Pontos de Cultura
se distribui de maneira uniforme entre diversas linguagens culturais, sendo
que há uma leve predominância da linguagem cênica, embora isso não seja
correspondido em termos de configuração espacial. Temos cinco linguagens
empatadas em terceiro lugar e as duas líderes não estão distantes. Como anotado, mesmo dentro das sub-áreas o equilíbrio se manteve.
Gráfico 9. Áreas de Atuação dos Pontos de Cultura - 2008
Patrimônio Imaterial
Saberes Populares
5%
12%
10%
Artesanato
8%
9%
10%
10%
10%
16%
10%
Música
Literatura
Artes Cênicas
Artes Plásticas
Audiovisual
Patrimônio
Temas Transversais
220
HISTÓRIA DIGITAL - ANO II - Nº 02 - 2008
A definição mais difundida nos diz que produção cultural é o planejamento, elaboração e execução de projetos e produtos culturais. Na definição do
que seja produto cultural se considera categorias artísticas, sociais, políticas e
econômicas. O produtor elabora e organiza espetáculos de teatro, Dança, Música, Festivais, Congressos, Mostras e demais. Cuida da captação de recursos,
faz o orçamento, define cronogramas, delega poderes e, sobretudo, atua na
elaboração de políticas públicas para a cultura.
De certa maneira, a considerarmos a definição exposta acima, os Pontos de Cultura são verdadeiros, digamos assim, agentes de cultura, produtores
culturais em seu sentido mais estrito. Seu maior produto é os cursos oferecidos,
sendo seguido de longe por apresentações e produção de publicações multimídias. Confirmando a tendência da qualificação surge com 10% a organização
de congressos. Paradoxalmente, a produção digital é relativamente baixa, dado
o grande apelo da rede digital no mundo contemporâneo. Não podemos nos
esquecer, ainda, que dentro do Programa Cultura Viva uma ação importante é
a Cultura Digital. Note-se o esforço de ações no reino da leitura. Com boa aceitação e mantendo a média apresentada na área da Literatura. Lembrando dados
anteriores: área de atuação da Literatura, 10%, espaço cultural biblioteca, 14%
e por último, porém não menos importante, atividade cultural de leitura com
9%. Na contramão, confirmando todas as expectativas e pesquisas nacionais, é
o fato de a publicação de livros ser quase nula.
Gráfico 10. Produção e Atividades Culturais dos Pontos
de Cultura - 2008
Cursos
Apresentações
7%
3%2% 4% 2%
27%
12%
Leituras
Congressos
CDs
DVDs
Eletrônicas
6%
10%
9%
18%
Rádio
Livros
Revistas
Outros
Já dissemos que uma das grandes características dos Pontos de Cultura
é seu caráter camerístico. Assim como os Pontos, porém em outras proporções,
o público atendido é de pequeno para médio porte. 48% dos Pontos atende no
máximo cem pessoas, fortalecendo ainda mais os rumos da formação através
HISTÓRIA DIGITAL - ANO II - Nº 02 - 2008
221
de cursos. A faixa que atende entre cem e cento e cinqüenta pessoas tem índice
com 16 pontos percentuais e está na terceira posição. Na quarta posição os
atendidos são da ordem de 13%, confirmando a tendência de pequenos grupos.
Ou seja, 77% dos Pontos de Cultura atende no máximo 150 pessoas.
Gráfico 11. Público Atendido Pelos Pontos de Cultura 2008
8%
13%
4%
13-50
28%
51-100
101-150
151-200
11%
201-400
16%
20%
401-1.000
1.001 - 5.000
O perfil do público assistido, assim como vários outros aspectos já anotados, é diversifica e bem distribuído. Tanto que a curva descendente do gráfico
é suave. Vai paulatina e gradativamente diminuindo em um ritmo constante e
quase sem abismos entre os números. Um aspecto a ressaltar é o protagonismo exercido pelos estudantes e adolescentes, coisa muito discutida no Grupo
de Trabalho homônimo. Prevalece o atendimento às minorias, realçando mais
uma vez o traço social do Programa Cultura Viva, já apontando um caminho
em direção à inclusão social.
Um dado interessante é relativo aos portadores de necessidade especiais.
A Organização das Nações Unidas estima que 10% da população brasileira é
portadora de algum tipo de deficiência, ou seja, quase 17 milhões de pessoas.
Nossos números são bastante próximos do percentual aludido. Com relação ao
segmento LGBT os dados são dispersos, mas segundo o Instituto Brasileiro
de Geografia e Estatística há cerca de 17 mil casais formados por pessoas do
mesmo sexo. Número que tende ser bem maior, pois a pesquisa que auferiu
esse número foi feita apenas em cidades com até 170 mil habitantes. Percentual que não se coaduna com os 9% detectados em nossa pesquisa. Segundo o
Censo de 2000 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística; convém uma
ressalva e uma explicação: existe pesquisa mais recente, contudo não tivemos
acesso aos dados da mesma; a população indígena era constituída de 734 mil e
127 indivíduos com idade entre zero e mais de oitenta anos. Número que nos
dá menos que 1% da população brasileira e está longe dos 7% atendido pelos
Pontos de Cultura. Ainda segundo o Instituto citado, a população de pardos e
pretos era de 75.872.428. Ou seja, em torno de 31% da população brasileira.
O percentual de público afro descendentes de nosso gráfico é de 10%, longe,
222
HISTÓRIA DIGITAL - ANO II - Nº 02 - 2008
portanto, da média populacional considerada.
Segundo o Censo Demográfico de 2000, o gênero feminino correspondia a 51% da população brasileira. Os Pontos de Cultura atendem um público
feminino estimado em 12%. Número bastante aquém do nacional. O número
de pessoas entre cinco e 19 anos era da ordem de 51.879.231,00, o que nos dá
um percentual de 23%. Nossos números, juntando Adolescente e Estudante,
são de 31%. Um percentual acima da média populacional. Por último, nem por
isso menos importante, os maiores de 60 anos constituem cerca de 8% da população. Do público atendido pelos Pontos 10% situa-se nessa faixa. Ou seja, a
maioria dos segmentos oscila se comparada a media populacional do país.
Gráfico 12. Perfil do Público Atendido Pelos Pontos de
Cultura - 2008
Estudantes
Adolescentes
Quilombolas
9%
4%
16%
9%
Afrodescendentes
15%
Índios
Mulheres
10%
12%
8%
7%
10%
Idosos
LGBT
Portadores de Necessidades
Especiais
Outros
Alguns aspectos nos chamaram atenção e tentaremos pontua-los com
maior precisão. Vários deles foram ressaltados ao longo do texto e outros nem
tanto. Seguindo o pressuposto do Plano Nacional de Cultura de que “a avaliação [...] deve valer-se também dos dados e análises qualitativas e quantitativas
fornecidos pelo Sistema de Indicadores e Informações Culturais, que deverá
conjugar o trabalho dos centros de excelência em estudos, pesquisas e estatísticas sobre a cultura de todo o país”, tentamos dar nossa contribuição, não que
sejamos centro de excelência, para, como dito anteriormente, contribuir com a
construção de um corpo de indicadores socioculturais que possam fundamentar estudos mais aprofundados.
De início podemos observar que os objetivos são alcançados parcialHISTÓRIA DIGITAL - ANO II - Nº 02 - 2008
223
mente, embora isso não signifique que haja uma média satisfatória. Ampliar e
garantir o acesso aos meios de fruição, produção e difusão cultural é uma das
metas do Programa Cultura Viva. Segundos nossos dados o público atingido,
64%, pelos Pontos de Cultura oscila entre 13 e 150 pessoas. Não é o que poderíamos dizer de amplo acesso aos produtos culturais dos Pontos de Cultura. Identificar parceiros e promover pactos com diversos atores sociais governamentais
e não governamentais nacionais e estrangeiras visando um desenvolvimento
humano sustentável, tendo na cultura “a principal forma de construção e de
expressão da identidade”, como dito pelo ex-ministro Gilberto Gil em seu discurso de posse. Há uma excessiva dependência dos Pontos de Cultura da esfera
executiva, notadamente a federal e isso compromete o desejo da sustentabilidade. Tal vontade não se realiza e esse objetivo não foi alcançado. No tocante aos
atores sociais, também não há conclusivo, pois os atores sociais não são tantos
assim, como vimos no público atendido. Não há uma só referência sobre organizações não governamentais dando suporte ao Programa Cultura Viva.
Já na ambição de potencializar energias sociais e culturais, dando vazão
à dinâmica própria das comunidades, nos parece haver certo acerto. Não obstante o domínio do sudeste, os Pontos estão uniformemente distribuídos entre
as diversas regiões e parece haver certo equilíbrio na distribuição dos parcos
recursos. Talvez um dos maiores sucessos do Programa Cultura Viva esteja no
estímulo ao uso e apropriações das diferentes linguagens artísticas. Como vimos as linguagens estão bem representadas e houve uma diversificação muito
grande. Já a utilização dessas linguagens no processo educacional não nos foi
possível avaliar. No tocante ao uso dos espaços públicos o objetivo foi plenamente alcançado.
Todos esses objetivos constam na publicação “Cultura Viva – Programa Nacional de Cultura, Educação e Cidadania”. Sendo assim, os objetivos
são alcançados em parte e revela um fato, em nosso modo de entender, grave.
A baixa representatividade de grupos historicamente relevantes do Programa
Cultura Viva de maneira mais efetiva, como salientamos anteriormente. Talvez
as obrigações burocráticas impeçam uma participação maior, já que a prestação
de contas sempre se torna problemática para os não iniciados em suas artes.
224
HISTÓRIA DIGITAL - ANO II - Nº 02 - 2008
BOLETIM ELETRÔNICO RESGATE
“O Uraguay”, de Basílio da Gama, à luz da documentação histórica
da Colônia do Sacramento e Rio da Prata
Sebastião Rios
Depto. de Teoria Literária e Literaturas
Universidade de Brasília (UnB)
No âmbito do Projeto Resgate de Documentação Histórica Barão do Rio
Branco, a documentação pertinente à Colônia do Sacramento foi reorganizada,
microfilmada e digitalizada. Como aconteceu com as capitanias coloniais, este
trabalho consistiu na reordenação da documentação avulsa existente no Arquivo Histórico Ultramarino de Lisboa sobre a Colônia do Sacramento. Suas
etapas foram a leitura e análise dos documentos, o apensamento da documentação dispersa, segundo os critérios de origem e tramitação dos documentos,
resultando no reagrupamento de documentos que dizem respeito a um mesmo
processo. Além disso, a documentação foi reordenada cronologicamente e teve
seu conteúdo descrito em um verbete. Finalmente, a documentação assim organizada recebeu novas cotas e foi microfilmada e digitalizada.
Esta documentação, gerada ou remetida ao Conselho Ultramarino e à
Secretaria de Estado da Marinha e Ultramar, integra o fundo Conselho Ultramarino, cuja organização, no que diz respeito à documentação relativa ao Brasil, levou em consideração o desenho territorial e administrativo das capitanias
coloniais, na segunda metade do século XVIII. A documentação do AHU sobre
a Colônia do Sacramento e Rio da Prata tem, contudo, uma particularidade:
refere-se a regiões que nunca pertenceram à América portuguesa ou que já
pertenceram, mas hoje não fazem parte da República do Brasil (Colônia do Sacramento, Banda Oriental ou Província Cisplatina). Este fato, entretanto, não
diminui sua importância para história do Brasil e países limítrofes do Rio da
Prata. Ao contrário, ela é indispensável para o entendimento da formação dos
limites no Sul do país bem como da identidade dos brasileiros desta região de
fronteira e, especialmente, das disputas diplomáticas e escaramuças e guerras
visando o controle dessa região estratégica: a praça, que avassala e domina o
gigante das águas e toda a navegação do largo rio, como escreveu, em 1769,
José Basílio da Gama, no poema “O Uraguay”.
Esta documentação está dividida em duas séries: Colônia do Sacramento e Rio da Prata. A última, por sua vez, está subdividida em Brasil limites,
Buenos Aires, Montevidéu e Paraguai. A série Colônia do Sacramento traz
662 conjuntos documentais, referentes ao período compreendido entre 1682 e
1826, cuja leitura torna patente o “esforço bélico e mercantil dos portugueses
HISTÓRIA DIGITAL - ANO II - Nº 02 - 2008
225
para implantarem uma cunha nos domínios espanhóis no Rio da Prata” (Osório, 2002). A Colônia do Sacramento era subordinada à Capitania do Rio de
Janeiro, mas também mantinha contato direto com as autoridades do Reino.
Sua documentação é composta principalmente de decretos, provisões, alvarás,
portarias, requerimentos, cartas, ofícios, consultas, pareceres e informações,
constituindo rica fonte sobre as relações político administrativas entre o Reino, a Capitania do Rio de Janeiro e a Colônia do Sacramento, envolvendo
especialmente assuntos de governo, fazenda, militares e demais funcionários
da burocracia portuguesa. Em que pese seu caráter eminentemente administrativo, sua leitura não deixa de revelar informações relevantes para a história
econômica, social e cultural da região e ainda para as relações comerciais e
conflitos com índios e com os espanhóis.
A série Rio da Prata tem a seguinte composição: Brasil limites, com
289 conjuntos documentais referentes ao período compreendido entre 1699 e
1843 que tratam das questões de limites e fronteiras entre os reinos de Portugal
e Espanha e dos limites do atual Estado do Rio Grande do Sul. Documentos
emitidos no Continente do Rio Grande ou na Colônia de Sacramento, mais da
metade deles diz respeito ao Tratado de Madri de 1750 e à expedição para sua
execução (documentos 3 - 164). Em segundo lugar, comparece a documentação relativa à invasão da Vila de Rio Grande pelos espanhóis até a elaboração
do Tratado de Santo Idelfonso de 1777 (documentos 170 - 240). Em terceiro
lugar, vem a documentação das negociações e da execução frustrada do referido tratado (documentos 205 - 270).
Continuando a série Rio da Prata, temos Buenos Aires, com 22 conjuntos documentais produzidos entre 1753 e 1823; Montevidéu, com 224 conjuntos documentais de 1778 a 1824, referentes à invasão da Banda Oriental pelas
tropas Luso-brasileiras em 1816 e ao processo de independência no Rio da
Prata; e, por fim, Paraguai, com 27 conjuntos documentais do período de 1618
a 1762. Estes documentos estão redigidos em espanhol, sendo a maioria produzida pelos padres da Companhia de Jesus, contendo importantes informações
geográficas e humanas sobre as missões.
O trabalho fundamental de organização, microfilmagem e digitalização
desta documentação, realizado pelo Projeto Resgate, está sendo agora ampliado com a democratização do acesso por meio da consulta on line, iniciativa do
Centro de Memória Digital da UnB em parceria com o Ministério da Cultura
e patrocínio da Petrobras. Com este passo, supera-se a limitação do acesso aos
CD Roms e aos verbetes constantes dos catálogos1. A disponibilização desta
Na página do Centro de Memória Digital, selecionando-se o documento já aparece na tela o
respectivo verbete. Na primeira edição da Revista Eletrônica Resgate, serão reproduzidos os prefácios dos catálogos da documentação do AHU relativa ao Brasil. Infelizmente, os próprios catá-
1
226
HISTÓRIA DIGITAL - ANO II - Nº 02 - 2008
documentação na Internet tem grande potencial para catalização da pesquisa
histórica, em suas variadas vertentes. Tomando como exemplo um assunto ao
qual tenho dedicado minha atenção, listo brevemente alguns documentos cuja
consulta são fundamentais para o desenvolvimento do estudo.
Trata-se de uma investigação histórico-literária sobre o poema “0
Uraguay”, de José Basílio da Gama. O tema do poema é a expedição de
execução do Tratado de Madri, comandada pelo general Gomes Freire de
Andrade, cumprindo as deteminações do então Secretário de Estado da Marinha e Ultramar, Sebastião José de Carvalho e Melo, futuro Conde de Oeiras e Marquês de Pombal. Segundo o tratado, os portugueses ficariam com
os Sete Povos das Missões e entregariam aos espanhóis a Colônia do Sacramento. A expedição de demarcação de fronteiras, entretanto, se defronta
com a resistência dos índios missioneiros guaranis, estimulada (ou a que se
curvam) os padres da Companhia de Jesus, gerando o episódio conhecido
por guerras guaraníticas. O poema, claramente encomiástico, faz parte da
campanha de propagação das idéias e da imagem do Marquês de Pombal. No
espaço da retórica política, ele se apresenta como um discurso com maiores
e melhores efeitos estilísticos ao lado de outros discursos que comungam a
mesma finalidade ideológica: enaltecer, por meio dos feitos do herói Gomes
Freire de Andrade, o procedimento justo, racional e libertador do Marquês
de Pombal, enumerando suas realizações, com especial ênfase na expulsão
dos jesuítas do Reino de Portugal e ações correlatas ligadas às reformas administrativas e do ensino.
Sem desconsiderar o especificamente poético no texto de Basílio da
Gama, uma interpretação histórica do poema, escrito e publicado durante o
antigo regime, deve evitar a leitura anacrônica, imbuída de valores e conceitos
liberais e românticos. Assim, para a tentativa de leitura de “O Uraguay” no
quadro da política pombalina, da recepção das idéias iluministas em Portugal
e dos parâmetros da poesia neoclássica, o acesso à documentação relativa à
Colônia do Sacramento e Rio da Prata revela-se de grande valia. Como parte
significativa desta documentação versa sobre o mesmo tema do poema, o conhecimento do contexto histórico advindo de sua consulta possibilita entender
como o poeta interpreta o episódio, esclarecendo, assim, suas motivações.
Abaixo seguem a indicação - apenas ilustrativa - de alguns documentos
de relevância para o estudo indicado.
logos da documentação das respectivas capitanias, tão úteis à pesquisa histórica, já estão em boa
parte esgotados. No caso específico da documentação aqui tratada, a referência do catálogo é a
seguinte: Catálogo de documentos da Colônia do Sacramento e Rio da Prata existentes no AHU.
Helen Osório (org.). Porto Alegre : IFCH-UFRGS ; Rio de Janeiro : Editorial Nórdica , 2002. Esta
obra contém os índices de documentos (tipologia), toponímico, onomástico e temático.
HISTÓRIA DIGITAL - ANO II - Nº 02 - 2008
227
Colônia do Sacramento
1753, Fevereiro, 25 Salvaterra de Magos AHU_ACL_CU_012, Cx5, D. 469.
Ofício do secretário de estado da Marinha e Ultramar, Diogo de Mendonça
Corte Real, para o governador da Nova Colônia do Sacramento, Luís Garcia
de Bivar, sobre a atuação do Marquês de Valdelírios, D. Gaspar de Munive
León Gaburito Tello y Espinosa, sobre a prorrogação do prazo para a troca da
Colônia pelas Missões.
1754, Novembro, 20 Nova Colônia do Sacramento AHU_ACL_CU_012, Cx5,
D. 479. Ofício do governador da Nova Colônia do Sacramento, Luís Garcia
de Bivar, ao secretário de estado da Marinha e Ultramar, Diogo de Mendonça
Corte Real, sobre a evacuação dos Sete Povos das Missões.
Rio da Prata / Brasil limites
1751, Agosto, 23 Lisboa AHU_ACL_CU_059, Cx. 1, D. 5. Ofício do secretário de estado dos Negócios Estrangeiros e Guerra, Sebastião José de Carvalho
e Melo, ao governador e capitão-general do Rio de Janeiro, Gomes Freire de
Andrade, enviando vários exemplares do Tratado de Madri e cópias de outros
cinco tratados feitos entre as coroas portuguesa e espanhola sobre a divisão
dos limites das conquistas, assim como as instruções e plenos poderes para as
negociações com o principal comissário espanhol da demarcação dos limites
da América Meridional, Marquês de Valdelírios , D. Gaspar de Munive León
Gaburito Tello y Espinosa.
1752, Março, 25 Tramandaí AHU_ACL_CU_059, Cx. 1, D. 9. Ofício do 1º
comissário da demarcação dos limites da América Meridional, Gomes Freire
de Andrade ao secretário de estado da Marinha e Ultramar, Diogo de Mendonça Corte Real, sobre o receio de que os padres da Companhia de Jesus possam
embaraçar as conferências com o principal comissário espanhol da demarcação dos limites da América Meridional, Marquês de Valdelírios, D. Gaspar de
Munive León Gaburito Tello y Espinosa, acerca do caminho de Santa Catarina
para os Sete Povos das Missões.
1754, abril, 16 Nova Colônia do Sacramento AHU_ACL_CU_012, Cx5, D.
472. Carta do governador do Rio de Janeiro e Minas Gerais e principal comissário da expedição para a demarcação dos limites, capitão-general Gomes
Freire de Andrade, ao rei D. José I.
Rio da Prata / Paraguai
ca. 1752 AHU_ACL_CU_071, Cx. 1, D.11. Lista enumerando as principais
228
HISTÓRIA DIGITAL - ANO II - Nº 02 - 2008
calúnias que se levantam contra a ação da Companhia de Jesus em suas missões do Paraguai, incluindo a de que querem intervir nos trabalhos da demarcação dos limites estabelecidos pelo Tratado de Limites.
1753, Maio, 14 Buenos Aires AHU_ACL_CU_071, Cx. 1, D. 12. Ofício do
governador e capitão-general do Rio da Prata, José de Adonaegui, ao comissário das províncias do Peru, Paraguai e Quito, padre jesuíta Lope Luís Altamirano, e a respectiva resposta deste, tratando da nomeação de Altamirano para
encarregar-se da evacuação dos índios habitantes das missões jesuíticas, cujo
território deveria ser entregue aos portugueses, em razão da demarcação das
fronteiras estabelecidas pelo Tratado de 1750.
HISTÓRIA DIGITAL - ANO II - Nº 02 - 2008
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HISTÓRIA DIGITAL - ANO II - Nº 02 - 2008
A Capitania de São José do Rio Negro
Corcino Medeiros dos Santos
Depto. de História – Universidade de Brasília
A documentação da Capitania de São José do Rio Negro (Atual Amazônia Ocidental) existente no Arquivo Histórico Ultramarino de Lisboa referente ao período de 1725 a 1825 foi microfilmada pelo Projeto Resgate e agora
encontra-se disponível no site do Centro de Memória Digital da Universidade
de Brasília (www.resgate.unb.br). Trata-se da documentação avulsa do Arquivo
Histórico Ultramarino (documentos que não estão nos códices), cuja consulta
exigia viagens e estadas prolongadas dos pesquisadores brasileiros em Lisboa.
O Catálogo do Rio Negro elaborado sob o patrocínio do Projeto Resgate e publicado pela Universidade Federal do Estado do Amazonas contém, em
forma de inventário, os verbetes (uma resumidíssima descrição de conteúdo)
de cada documento.
Uma simples leitura desse catálogo dá uma idéia da importância dessa
documentação para o estudo da história da Amazônia Colonial. Essa região só
veio a fazer efetivamente parte do Brasil após a independência.
Por mais de um século a Amazônia ficou fora dos planos de colonização
portuguesa, contudo a desembocadura do grande rio atraía atenção de ingleses,
holandeses e franceses, tendo estes últimos fundado São Luiz do Maranhão em
1612. A especificidade e o caráter da conquista e ocupação do seu território fez
com que a sua administração dependesse diretamente de Lisboa, tornando-se,
em 1621, o Estado do Maranhão; em 1654, Estado do Maranhão e Grão-Pará;
em 1751, Estado do Grão-Pará e Maranhão e em 1772, Estado do Grão-Pará e
Rio Negro. Por causa dessa situação muitos documentos respeitantes à Capitania de São José do Rio Negro podem ser encontrados como parte integrante de
peças relativas às Capitanias do Grão-Pará e do Maranhão.
A atividade dos portugueses em toda a região desenvolveu-se timidamente até em meados do século XVIII, quando a administração pombalina
resolveu investir pesado na Amazônia afim de integrá-la definitivamente ao
mundo atlântico e ao Império Ultramarino Português. Para realizar seus objetivos teve de enfrentar conflitos com as populações indígenas, com os missionários católicos, principalmente os jesuítas e com os vizinhos espanhóis.
A Amazônia era ocupado por mais de dois milhões de índios que no
processo de conquista e colonização foram dizimados pelas epidemias, pelos
descimentos, pela escravização e pelas guerras punitivas. Nestas condições,
boa parte da documentação em apreço refere-se a conflitos com os missionários associados ao Estado e à espada. A espada e a cruz caminharam juntas na
HISTÓRIA DIGITAL - ANO II - Nº 02 - 2008
231
conquista da Amazônia. A integração à economia atlântica se fez utilizando,
numa primeira fase, a mão-de-obra indígena para a coleta de gêneros da floresta e numa produção agrícola complementar. A introdução de escravos negros
foi pequena no século XVII, mas aumentada no século XVIII, sobretudo a
partir do segundo quartel com a Companhia do Grão-Pará e Maranhão.
Os escravos negros, no entanto ficavam em sua maior parte no Maranhão e no Pará, permanecendo no Rio Negro o predomínio do trabalho indígena.
Os povos indígenas tiveram importante papel, ora explicitamente
como escravos, ora implicitamente sob a forma de aldeados ou administrados.
Por outro lado os movimentos de resistência contra a destribalização, a ocidentalização e a desculturação foram freqüentes. Neste aspecto a documentação, ora disponibilizada aos investigadores, é rica em informações suficientes
para desmistificar a passividade dos povos indígenas da Amazônia diante do
poderio avassalador dos conquistadores europeus. Encontrarão informações
sobre as guerras contra os índios manaus, os muras, os tucanos e tantos outros.
Registra também a bravura de alguns chefes indígenas como Ajuricaba. Do
mesmo modo encontrarão papeis interessantes sobre o esforço do Estado e
da igreja consubstanciado no Regimento das missões, no Diretório que deve
observar nas Povoações de Índios e ainda muitas disposições legais destinadas
a promover a mestiçagem entre brancos e índios e desse modo facilitar a integração dos índios no mundo dos brancos. Encontrarão também abundância
de documentos relativos à demarcação de limites entre os domínios das coroas
espanhola e portuguesa.
Toda essa documentação, grande parte inédita, contribuirá para o enriquecimento e reinterpretação de alguns aspectos da historiografia brasileira
sobre a Amazônia.
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HISTÓRIA DIGITAL - ANO II - Nº 02 - 2008
A Capitania do Maranhão
Corcino Medeiros dos Santos
Depto. de História – Universidade de Brasília (UnB)
Os manuscritos avulsos relativos ao Maranhão, existentes no Arquivo
Histórico Ultramarino, agora catalogados e microfilmados foram disponibilizados aos pesquisadores brasileiros e do mundo no site www.resgate.unb.br.
Trata-se de uma rica documentação capaz de dar suporte e vida às pesquisas da história política administrativa, social, econômica do Maranhão e
da Amazônia como um todo. Além do mais, é rica em informações sobre os
conflitos interetnicos, guerra, sem trégua aos povos indígenas, escravidão indígena, missionação, a posse da terra, as doenças e inclusive sobre a liberalidade
de costumes dos religiosos e dos magistrados.
A referida documentação é rica e volumosa entre meados do século
XVII e começo do século XIX. A partir de 1806, nota-se um empobrecimento
qualitativo e quantitativo.
No que diz respeito a questão de distribuição e posse da terra, parece ter
sido uma preocupação dos colonizadores do Maranhão, maior do que em qualquer outra parte da América Portuguesa. A partir do segundo quartel do século
XVII encontram-se centenas de petições de datas de sesmarias, centenas de
solicitações de confirmação de datas de sesmarias sempre nas melhores localizações, tais como margem dos rios, terras férteis, matas com muita madeira de
lei, terras de várzea para o cultivo do arroz e campos para a criação de gado.
A partir de meados do século XVIII avolumam-se os pedidos de demarcação
seguidos de ações na justiça reivindicando o direito de posse dessa ou daquela
sesmaria. Do mesmo modo, ocorreram falsificações de documentos e brigas
privadas objetivando a posse de terras já ocupadas. Um exemplo disto é o caso
do requerimento de José Gonçalves da Silva à Rainha D. Maria I solicitando
decisão no que se refere à falsificação de documentos por Josefa Maria da Conceição, Felipe Pedro Borges e João Antônio Lisboa com o objetivo de ficarem
com suas terras (AHU Maranhão, caixa 94, doc. 7752- Req. 07/08/797).
Depois as concessões passaram a ser feitas mediante a inspeção do
local, a fim de verificar se a terra não tinha outro dono e se as confrontações
estavam corretas e se não estavam usurpando alguma porção de outra sesmaria. Depois de 1800 os pedidos de sesmaria praticamente desaparecem, restando somente, na documentação, os conflitos. A natureza dessa documentação possibilitaria ao estudioso da terra no Brasil Colonial, o mapeamento da
estrutura fundiária do Maranhão.
Em 12 de fevereiro de 1800, Manuel Antônio Leitão Bandeira requer ao
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Príncipe Regente D. João, deliberação régia sobre o problema dos sesmeiros, contra
os abusos praticados pelos magistrados (AHU, Maranhão, caixa 109, doc. 8585). E
por falar em magistrados é bom lembrar que nessa documentação existem muitas
notícias referentes à corrupção administrativa e de licenciosidade dos magistrados.
Como exemplo tomamos um ofício de 03/12/1791 (AHU. Maranhão, caixa 79,
doc. 6699), de Joaquim José Mendes para o Secretário de Estado do Maranhão e
Ultramarino Martinho de Melo e Castro queixando-se de que o Juiz de fora Manuel de Pinho e Almeida Lima desencaminhara a irmã Ana Maria da Encarnação
Mendes e uma sobrinha do suplicante. No dia 06 do mesmo mês e ano ele escreve
também à rainha D. Maria I pedindo uma punição para o referido juiz pelo fato de
ter desencaminhado a irmã e a sobrinha e não ter se casado com nenhuma delas.
Em 24/05/1794 o governador da capitania escreve a Rainha D. Maria
I expondo o comportamento indecoroso de outro juiz de fora, José de Araújo
Noronha (AHU – Maranhão, caixa 93, doc. 7711).
Outro assunto, cuja investigação pode ser desenvolvida com apoio
nessa documentação é a atividade industrial no Maranhão do século XVIII.
Além das inúmeras fábricas de descascar arroz, fábricas de anil, fábricas do
beneficiamento de madeiras (serrarias), havia também fábricas de tecidos de
algodão, chitas e até de seda (que exigiu o cultivo de amoreiras para a criação
do bicho da seda para a produção da matéria prima).
Há documentos sobre a remessa de animais (antas, jaguatiricas, etc e
pássaros como o gavião real e outros), amostras de todo o tipo de madeiras,
sementes de árvores silvestres e mudas de plantas medicinais para o reino.
Há documentos que permitem acompanhar a saga de famílias da elite social maranhense (ainda hoje influentes) tais como os Belfort, os Bandeiras etc.
Outra curiosidade que se descobre nessa documentação é que a família
Real Portuguesa se alimentava com o arroz do Maranhão. A partir da segunda
metade do século XVIII são freqüentes as remessas de arroz limpo especificamente para a Ucharia Real (despensa). Esse arroz era remetido em barris e as
remessas são feitas até 1807. É que em 1808 a família Real se transfere para o
Brasil e, portanto, podia receber esse arroz aqui mesmo, no Rio de Janeiro.
No que diz respeito aos costumes sociais em geral, a sociedade Maranhense não era melhor nem pior do que no resto do Brasil Colonial. Não se pode
dizer que era uma sociedade devassa. Mas debaixo da máscara de uma sociedade
católica, recatada com as mulheres reclusas em suas casas acontecia muitas coisas interessantes como padres amasiados, mulheres concubinas e homens com
amantes, além das esposas. Por isso é que o Bispo Frei João de São José disse:
“Estou bem mortificado, porque a miséria dos costumes deste país me faz lembrar o fim das cinco cidades, por me parecer que moro, como diz as escrituras,
nos subúrbios de Gomorra, mui próximos e na vizinhança de Sodoma”.
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O Catálogo de Verbetes dos Documentos Avulsos
da Capitania de Mato Grosso ( 1720-1827) / Projeto Resgate
Profª MS Thereza Martha B. Presotti
Professora da UFMT, doutoranda em História na UnB
Ao percorrer as breves sínteses ou verbetes dos assuntos contidos em
cada um dos 2221 documentos no Catálogo de Verbetes dos Documentos Avulsos da Capitania de Mato Grosso (1720-1827), nota-se que são extraordinárias
as possibilidades de pesquisas históricas acerca do processo de conquista colonial da parte central da América do sul, que veio a se constituir como Capitania
de Mato Grosso. Não é nada difícil imaginar e reconhecer o dedicado e competente trabalho da equipe de produção de tão completo Catálogo.
No manuseio de cada documento, o desafio em decifrar caligrafias, enfrentar as corrosões do tempo e, enfim, ao resumir em poucas linhas o que tem
a nos dizer os manuscritos da época, cenários de vidas a revelar... Em anexo, os
índices antroponímico, ideográfico e toponímico podem facilitar ainda mais as
buscas e detalhes dessas histórias, pois permitem selecionar os temas e personagens; e assim ir direto ao documento que interessa conhecer. Os pesquisadores
e historiadores ou mesmo os “navegadores” leigos em assuntos da história, que
tem o estranho gosto de ler os sinais de outros tempos registrados em papéis
velhos e visitar sociedades do passado colonial, podem sim se deliciar nesta viagem à Capitania de Mato Grosso no decorrer do século XVIII e início do XIX.
É possível ainda ter uma idéia do intenso movimento percorrido por
essa documentação recheada das mais diversas idéias e práticas políticas, econômicas, sociais e culturais, até seu repouso ou “guarda” nas 44 caixas no
acervo do Arquivo Histórico Ultramarino (AHU) em Lisboa. Longa era a travessia das ordens do império português até às minas de Cuiabá e Mato Grosso
com o objetivo de organizar e controlar sua conquista, ocupação e exploração.
Navegavam pelo grande Oceano Atlântico vindo de Lisboa e, ao aportarem na
América, com mais freqüência nos portos do Rio de Janeiro ou de Santos, subiam pelo caminho da serra do Mar até São Paulo, embarcavam em canoas nas
monções pelos rios Tietê-Paraná-Paraguai-Cuiabá atravessando o Pantanal; ou
quando buscavam as minas do Mato Grosso, a partir da década de trinta dos
XVIII, seguiam através dos rios Guaporé-Madeira-Mamoré já na bacia amazônica, fronteira com as missões jesuíticas espanholas de Moxos e Chiquitos.
No sentido inverso, de onde ecoavam as vozes desta região central do continente sul-americano, retornando à metrópole ou para outros pontos da colônia
(principalmente São Paulo, sede da Capitania até 1748), a documentação se
torna ainda mais expressiva, na forma de “notícias”, relatos de viagens, ofíHISTÓRIA DIGITAL - ANO II - Nº 02 - 2008
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cios, cartas ou de inúmeras e diversas denúncias e solicitações, expedidas por
autoridades e moradores das vilas de Cuiabá e Vila Bela, dos fortes e aldeias e
demais locais do imenso território que atualmente corresponde aos estados de
Mato Grosso, Mato Grosso do Sul e Rondônia.
O primeiro verbete trata de uma Provisão do ano de 1720, onde o rei
D. João V “autoriza os guardas-mores concederem licenças para utilização das
águas para a mineração” (doc. 1, p.17). Além da legislação que regulava a conquista colonial, os verbetes descrevem o tenso período de controle das minas
pelo capitão general Rodrigo César, governador da Capitania de São Paulo,
que funda em 1727 a Vila Real do Senhor Bom Jesus de Cuiabá, única vila no
centro do continente, e aí permanece por quase dois anos.
É notável ver caracterizada neste grande conjunto documental através
dos “verbetes”, a peculiaridade de uma região de fronteira, onde a conquista
colonial portuguesa foi avançando em terras pertencentes aos espanhóis, conforme demarcada no Tratado de Tordesilhas (1494). Entretanto, cabe notar que
são mais visíveis, os constantes enfrentamentos com os verdadeiros e mais antigos povoadores - os indígenas, causando o despovoamento e conseqüente perda
de grande parte seus territórios, alterando violentamente os percursos históricos
de incontáveis sociedades em suas práticas culturais próprias. Quanto a este
aspecto, muitos são os verbetes onde se lê freqüentemente questões com os Pareci, Bororo, Guaicuru, Guaná e muitos outros, merecendo destaque os Paiaguá
devido aos ataques às monções no rio Paraguai, e a conseqüente ofensiva com
a “guerra justa”. Para ilustrar, duas cartas do ouvidor da Vila de Cuiabá ao rei
D. João V, do ano de 1731: a primeira trata “das muitas mortes que tem feito o
gentio Pareci, que é antropófago e impede a continuação dos descobrimentos do
ouro” e a segunda, descreve “sobre a guerra contra o gentio Paiaguá e as despesas que fez a Câmara com pólvora e o conserto de carretas de duas peças de
artilharia” (docs. 52 e 53, p. 25). Interessante observar uma outra Carta, agora
dos oficiais da Câmara desta mesma Vila, confirmando ao rei as despesas feitas
para a guerra com o Paiaguá, denunciando porém, a “perseguição que fazem os
sertanistas aos Pareci, que escravizam e matam” (doc. 54).
Após a criação da Capitania de Mato Grosso em 1758, está evidente
a intensificação dos esforços estratégicos da Coroa portuguesa para a posse e
povoamento efetivo da terra conquistada, bem como da continuidade de exploração do ouro e outros recursos naturais. Aos que participassem desta política,
procurou-se garantir privilégios e benefícios, claramente perceptíveis na densa
e insistente correspondência dos governadores às autoridades metropolitanas,
onde se destaca o primeiro governador e capitão-general Rolim de Moura, que
teve como missão de implantação da Capitania (1751-1765), e também fundou
a Vila Bela da Santíssima Trindade às margens do rio Guaporé.
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Outros governadores que não passam desapercebidos são os irmãos
Luís e João de Albuquerque de Melo Pereira e Cáceres (1772-1796), que juntos somam vinte e quatro anos de governo. Chama atenção a quantidade de
verbetes que apresentam suas atividades, empenhados nas funções de consolidar e garantir o povoamento e defesa das conquistas, atraindo indígenas das
missões espanholas e fundando fortes e novas vilas ao longo da fronteira com
a Espanha. Merece relevância os verbetes que informam das expedições de
demarcação de limites, da construção e ocorrências no Forte Príncipe da Beira,
das transações comerciais com a Companhia de Comércio do Grão-Pará e Maranhão, da Expedição Filosófica do naturalista Alexandre Rodrigues Ferreira
pela Capitania em Mato Grosso no período de 1789 a1792, das perseguições
a quilombos, as negociações para o Tratado de Paz com os índios cavaleiros
Guaicuru, dentre tantos outros temas também significativos para conhecer os
interesses lusos e os demais grupos sociais envolvidos no complexo percurso
desta história em região de fronteira.
Para exemplificar, no ano de 1789 um Mapa dos víveres despendidos
por conta da Fazenda Real de Mato Grosso com a Expedição de demarcação
de Limites de 1782 a 1787 (doc. 1539, p. 286), pode revelar alguns detalhes
tais como a alimentação e equipamentos usados. Interessante é também saber
que o naturalista Alexandre Rodrigues Ferreira “dá conta da viagem de sua
viagem de sete meses desde o Rio Negro até Vila Bela” e envia duas memórias
sendo uma sobre os mamões nos rios Amazonas, Negro e Madeira e a outra
acerca dos produtos naturais de Mato Grosso (docs 1565 e 1566, p. 291). Um
outro ofício de 1795 comunica da destruição do quilombo do Piolho, e em
anexo o diário desta diligência, dá pistas de um precioso registro para os interessados na história dos africanos. Neste mesmo ano, só para dar mais uma
idéia da complexidade das relações fronteiriças, um ofício do governador João
de Albuquerque informa “do avanço de castelhanos pela margem direita do rio
Paraguai, estabelecendo fazendas de gado; e a vantagem em se comprar aos
índios guaicurus os animais que lá vão roubar”.(doc.1696, p. 316).
Farta é correspondência dos oficiais das Câmaras bem como dos juízes e
intendentes com a majestade lusitana das Vilas de Cuiabá e Vila Bela, denotando ações e reações destes agentes do poder local. Inúmeras são as solicitações
de pagamentos, soldos e mercês, diante do “novos descobrimentos” de ouro e
dos serviços ao bem comum sossego dos povos e aumentos da Real Fazenda.
Ao adentrar no século XIX, ainda é possível acompanhar da Capitania
de Mato Grosso, os novos direcionamentos político-econômicos com a corte
portuguesa instalada no Rio de Janeiro em 1808; sua transformação em Província após a Independência em 1822, e diversos outros aspectos reveladores
da crise do antigo sistema colonial em região longínqua.
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Enfim, nos verbetes extraídos da densa massa documental, pode-se ler
as permanentes e dinâmicas relações entre a Coroa portuguesa e a distante terra
de conquista, bem como as cotidianas estratégias de sobrevivências, composições de poderes, trocas e conflitos interculturais naquele imenso sertão.
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