CALDEIRÃO DE SENTIDOS: Análise da representação evangélica

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CALDEIRÃO DE SENTIDOS: Análise da representação evangélica
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ARTIGO ACADÊMICO
ACADÊMICO
CALDEIRÃO DE SENTIDOS:
Análise da representação
evangélica em programa
especial de fim de ano1.
Por Bianca de Freitas J. MARANHÃO2
Universidade Federal de Goiás
“O essencial é invisível aos olhos”
Saint-Exupéry
RESUMO
Os evangélicos cresceram de maneira surpreendente no Brasil e têm recebido cada vez mais atenção da
grande mídia, especialmente a televisiva. Se antes eles se mantinham reservados e pouco integrados à
cultura popular, hoje sua música divide palco com os mais diversos estilos e ritmos, estando sob os holofotes até mesmo da grande Rede Globo. Grandes mudanças que têm estampado novas configurações
no modo de ser evangélico, ao mesmo tempo que parece revelar um novo olhar da sociedade sobre esse
público.
PALAVRAS-CHAVE: comunicação, religião, discurso, mídia, cultura.
1. INTRODUÇÃO
3
1 de dezembro é sempre uma
data importante no meio televisivo e uma ótima oportunidade para alcançar bons índices de
audiência. Afinal, esse é um momento em que não faltam espectadores
para assistir às tradicionais retrospectivas e programações especiais
de fim de ano. Em se tratando da
Rede Globo, principal emissora de
TV aberta do País, a realidade não
poderia ser diferente.
Mas, mesmo num contexto em que
o roteiro é quase sempre o mesmo,
eventualmente surgem alguns fatos
inéditos, que chamam a atenção e
despertam a curiosidade, levando
a questionamentos do tipo: “o que
estamos vendo e ouvindo é o que
de fato está sendo dito? Há outros
fatores relacionados a esse evento?
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O que podemos enxergar por trás
dessa aparente naturalidade?”. Essas são algumas das dúvidas que
motivaram o desenvolvimento deste
estudo, que tem como foco o Caldeirão do Huck, uma das principais
atrações da TV Globo.
Todos os anos, o apresentador Luciano Huck prepara uma programação especial para o Caldeirão de fim
de ano. E assim a tradição se manteve em 2011. A data de exibição do
programa não poderia ter sido mais
propícia: 31 de dezembro. O cenário
comemorativo, praia de Porto das Dunas, Fortaleza, Ceará, também estava
entre os ingredientes de um cardápio
já conhecido e bastante apreciado
Um dia ensolarado, com trilha sonora alegre, cores quentes, clima festivo e diversas atrações musicais,
como de costume.
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Entretanto, na ocasião, havia entre
os convidados um perfil bastante
diferente do habitual. Eram os cantores evangélicos Ana Paula Valadão (acompanhada de seu grupo
Diante do Trono) e Pregador Luo,
dois dos maiores nomes da música
gospel da atualidade.
Por ser esta a primeira participação
de cantores evangélicos no Caldeirão
do Huck e por outras questões ligadas à trajetória da Globo, que discutiremos mais adiante, o presente trabalho se propõe a analisar o discurso
do apresentador Luciano Huck nos
diálogos que estabelece com esses
cantores e também nos momentos
em que se dirige ao público para falar dos mesmos. Para isso, serão feitos recortes dos trechos considerados
mais relevantes para a discussão que
está sendo proposta.
2. O GOSPEL SEGUNDO LUCIANO
2.1 Justificando o improvável
Segundo Orlandi (2007), um dos
primeiros e mais importantes desafios de quem se propõe a analisar
um discurso é desfazer a ilusão de
transparência do discurso. Para ela,
“[...] os sentidos não estão só nas
palavras, nos textos, mas na relação
com a exterioridade, nas condições
em que eles são produzidos e que
não dependem só das intenções dos
sujeitos” (ORLANDI, 2007, P.30). Portanto, é preciso vasculhar, apreender os vestígios.
A autora defende que as margens do
dizer também fazem parte dele e significam nas palavras de quem fala.
Por isso, ao analisar um discurso, é
preciso estar atento não só ao que é
dito ali, mas também ao que é dito
em outros lugares e até mesmo ao
que foi dito em outros tempos (memória). Também é importante considerar aquilo que poderia ter sido
dito, mas não foi. Tudo isso contribui para compreender os verdadeiros
sentidos de um discurso.
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Assim, colocamos nossos olhos e “ouvidos” no diálogo que Huck estabelece logo no início do programa:
LH: Abrindo o Caldeirão de hoje,
eu tenho a honra de trazer: Ana
Paula Valadão!
AP: Boa tarde Fortaleza, Brasil! Que
Deus abençoe 2012!
LH: E aí, Ana?
AP: E aí, Luciano? Obrigada por
nos receber!
LH: Muito bom. Muito obrigado por
ter aceito o nosso convite.
AP: Imagina!
LH: Fazia tempo que eu estava ensaiando pra ter essas grandes atrações gospel aqui no Caldeirão. Você
tem sete milhões de discos vendidos, mulher?!
AP: É, sabe, o Brasil está com sede
de uma água diferente. Jesus diz que
ele é a água da vida. Então, as nossas
músicas falam dessa água que vêm
realmente pra suprir o nosso coração,
preencher a nossa vida. É por isso
que vende muito.
LH: Eu queria dizer que o Caldeirão
é palco pra todas as crenças, credos,
cores, ritmos... isso aqui é uma mistura de religiões, uma mistura de ideais,
quer dizer, na minha casa já é assim,
eu sou judeu, minha esposa é católica, minha sogra é evangélica, então, é
a “misturamba” já em casa.
AP: Acho que o legal é você refletir o que o Brasil é. Tem espaço pra
todo mundo.
LH: Concordo com você.
A fala de Luciano, que se mostra favorável à liberdade religiosa e também livre de preconceitos, traz em
si uma memória. Lembra um tempo
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em que o brasileiro não podia manifestar crenças religiosas diversas
do Catolicismo. Também remete aos
fortes preconceitos raciais que antes
estavam tão presentes na cultura brasileira, que impediam, por exemplo,
que negros e brancos fossem vistos
e tratados como iguais, pudessem
frequentar os mesmos lugares e tivessem os mesmos direitos. Essa convivência amigável e “igualitária” entre
diferentes raças e credos é uma conquista recente do povo brasileiro.
Contudo, não podemos desconsiderar
que se Luciano enfatiza essa característica e, de certa maneira, a utiliza
como uma forma de assumir uma posição perante as diferenças, é porque
o preconceito ainda está presente na
sociedade, apesar de aparentemente
superado. A colocação do apresentador nos permite inferir que essa miscigenação de raças, tribos e crenças
também não é tão natural no meio
televisivo. Ele estaria, então, levantando uma bandeira e incentivando
aquilo que, na prática, ainda está
distante do discurso.
Mas, devemos ir mais a fundo nesta análise. Afinal, como diz Orlandi
(2007, p.9), “[...] não há neutralidade
nem no uso mais aparentemente cotidiano dos signos”. Se observarmos
o histórico do programa, que existe
desde 2000, percebemos que, de fato,
a mistura das diferenças sempre esteve presente no Caldeirão do Huck.
Essa, inclusive, é uma das propostas
do programa. São contadas histórias
de pobres e ricos, anônimos e famosos, brancos e negros, pessoas graduadas e pessoas sem estudo, brasileiros e estrangeiros, dentre outros.
Suas atrações musicais também sempre contemplaram estilos diversos,
passando pelo sertanejo, o rock, o
pop, o axé e até mesmo a música clássica. Assim, sendo a música gospel
apenas mais um dentre tantos outros
estilos, e sendo os artistas evangélicos representantes de mais uma dentre tantas religiões que existem no
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Brasil, isso não deveria ser visto de
forma natural pelo público do Caldeirão? Porque haveria a necessidade
de introduzir esses cantores utilizando tal argumento?
Poderíamos pensar que se deve ao
fato de ser esta a primeira participação de cantores gospel no programa. Então, sendo novidade, demandaria uma contextualização. Porém,
não estamos falando de um estilo
musical recém-lançado no mercado,
pelo contrário. Trata-se de um segmento que tem vendido milhões de
discos há anos. Penso, na verdade,
que a explicação de Luciano parece
mais querer justificar a presença de
um “estranho no ninho”, mesmo um
ninho tão diversificado e misturado
como o do Caldeirão.
Estariam esses artistas um pouco
deslocados por serem cantores de
música evangélica, ou seja, por estarem ligados ao sagrado, que não se
misturaria com o meio profano em
que estavam inseridos, por mais que
houvesse por parte do programa abertura para todas as religiões? Essa seria uma hipótese plausível. Contudo,
analisando a trajetória do Caldeirão,
vemos participações do padre Marcelo Rossi, por exemplo, totalmente livres de justificativas do tipo “mistura
de credos, cores e ritmos”.
Assim como em diversas outras ocasiões em que Rossi participou de programas da Globo, a presença de sua
música religiosa nunca precisou ser
explicada ao público. Por isso, penso
que a necessidade de contextualizar
Ana Paula Valadão e Pregador Luo se
deve a outro fator relevante da história da TV Globo: sua aparente oposição ao público evangélico.
Na minissérie Decadência, por exemplo, exibida em 1995, o ator Edson
Celulari interpretava um pastor desonesto, que enriqueceu explorando a
fé de seus seguidores. Em suas pregações, Don Mariel, como era chamado
o personagem, chegou a usar frases
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que eram comumente ditas pelo bispo Edir Macedo, líder espiritual da
Igreja Universal do Reino de Deus,
com quem a Rede Globo vivia um forte confronto naquele período3.
Contudo, a representação negativa
não se concentrava apenas na figura do pastor, estereotipava também a imagem dos fiéis, retratados
como alienados e incapazes de enxergar o discurso manipulador e as
descaradas manobras do ambicioso
guia espiritual.
Para Mariano (1999, p.82), mesmo a
emissora afirmando que as críticas feitas em Decadência não diziam respeito a nenhuma religião ou a qualquer
um de seus líderes, havia ali traços
claros de que não se tratava apenas
de uma ficção. Por isso, apesar de
existir na época outras denominações
que também se posicionavam contrárias às práticas da Universal, muitos
se uniram à Macedo em protesto ao
folhetim da Globo, considerado uma
provocação e também uma blasfêmia
contra a fé evangélica.
Em 2002, as acusações se voltaram
para os líderes da Igreja Renascer em
Cristo, com ampla cobertura pelos diversos telejornais e demais canais de
notícia da Rede Globo. Durante aproximadamente duas semanas, foram
mostradas matérias que apontavam o
desvio dos fundos arrecadados pela
igreja e pela fundação mantida pela
mesma. Nesse período, nenhum outro
veículo dedicou tanta atenção a esses
fatos como a Globo.
De volta à ficção, mais personagens
com teor negativo. Na novela América, por exemplo, televisionada em
2005, a atriz Juliana Paes representou Creuza, uma evangélica que se
vestia de forma recatada, posava de
fiel e repreendia o comportamento
das pessoas, quando, na verdade, seduzia homens para grandes aventuras às escondidas.
Outro exemplo significativo foi da
personagem Edivânia, interpretada
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por Susana Ribeiro na novela Duas
Caras, em 2008. Fanática religiosa e
extremamente moralista, Edivânia ficou marcada na trama por uma cena
em que comandou uma tentativa de
linchamento a um triângulo amoroso
da comunidade onde vivia, o que despertou fortes críticas à Rede Globo
e acusações de incitar o preconceito
contra os evangélicos.
Esses são apenas alguns dos exemplos de como estereótipos, falsidade,
fanatismo, enriquecimento ilícito e
intolerância religiosa estiveram associados à imagem do evangélico nas
telas da Globo. Por isso, durante quase duas décadas a emissora foi vista
por esse público como perseguidora
dos evangélicos.
Alguns poderiam apontar a disputa mercadológica entre a Globo e a
Record como a principal razão dessa
propaganda negativa. Afinal, sendo a
Rede Record de propriedade de Edir
Macedo e estando ela ligada à Igreja
Universal do Reino de Deus, ao desacreditar a imagem do evangélico, a
Globo estaria, de certa maneira, atingindo sua concorrente.
Apesar de ser coerente essa análise,
identificar as possíveis razões para
essa aparente oposição não está entre os objetivos deste estudo. Quero apenas me ater ao fato de que a
Rede Globo esteve fechada para o
mercado evangélico durante anos e
isso pode ser percebido também no
programa de Huck.
Se o Caldeirão sempre foi palco para
as mais diversas religiões, raças e ritmos, por que só depois de 11 anos
Luciano abriu espaço para a música
gospel, que já representava um segmento de sucesso muito antes? Padre
Marcelo Rossi, por exemplo, esteve
presente já no primeiro ano do programa, e voltou outras vezes.
A meu ver, essa mistura e ausência
de preconceito defendidas pelo apresentador, na verdade, não valiam
para o gospel, pois havia por parte
da emissora interesse em não promo-
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ver a imagem do evangélico, dando
atenção apenas para suas faltas e incoerências. Logo, a entrada do gospel
no programa de Huck seria reflexo de
um novo relacionamento que a Globo
busca estabelecer com o evangélico,
questão esta que será aprofundada
em outro estudo.
2.2 Trazendo para o universo
já conhecido
Voltando nossa análise para o discurso de Luciano, destacamos um
trecho da segunda participação gospel do programa:
LH: E agora, bixo, são 15 anos de carreira. Ele já gravou com Charlie Brown Jr., já gravou com Exaltasamba,
já gravou com Simoninha, já gravou
com KLB, com um monte de gente bacana! É música tema no UFC quando
o Shogum, quando o Anderson Silva, quando o Victor Belfort, quando
o Lyoto entra no octógono [...]. Fui
conferir o trabalho e, realmente, é
uma música gospel, mas acho que
é um dos melhores rappers brasileiros que eu ouvi nos últimos tempos.
Vale a pena conferir! Pra você que
não conhece, vai conhecer agora.
Pra você que já conhece, vai se deliciar. Agora, senhoras e senhores, recebam com muito carinho: Pregador
Luo, no Caldeirão!
[...]
LH (em conversa com Pregador Luo):
Cara, eu fiquei chocado com o teu sucesso! A primeira pessoa que me falou de você foi o Amaury Soares, da
Globo Rio. Eu fui ouvir e fiquei muito
impressionado, cara!
Ainda sobre o diálogo com Ana Paula, ressaltamos novamente o trecho
abaixo e acrescentamos mais uma
parte da fala de Luciano:
LH: Fazia tempo que eu estava ensaiando pra ter essas grandes atrações gospel aqui no Caldeirão. Você
tem sete milhões de discos vendidos, mulher?!
[...]
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LH (se dirigindo ao público): Então,
pra quem já conhece o seu trabalho,
eu quero que curta muito. Pra quem
não conhece, eu quero que você conheça este fenômeno que é a música evangélica no Brasil. Pra você ter
ideia, sete milhões de cópias não é
pra qualquer um. Ela canta muito
bem, as músicas são incríveis, portanto, confira ao vivo, agora, começando
o nosso reveillón, a passagem de ano,
a celebração do Caldeirão, com vocês,
Ana Paula Valadão!
Para Orlandi (2007, p.39), “[...] o sujeito dirá de um modo ou de outro,
segundo o efeito que pensa produzir
em seu ouvinte”. A pesquisadora,
inclusive, explica que é melhor jogador aquele que consegue articular de
maneira mais eficiente as imagens
na constituição dos sujeitos, estando
onde o outro espera que ele esteja e
usando exatamente as palavras que o
outro quer ouvir.
Então, se partimos do pressuposto de que a presença do gospel no
Caldeirão causava estranhamento,
compreendemos os argumentos
utilizados por Huck, que desloca
o foco do sagrado e traz a música
evangélica para o contexto habitual
do programa. Assim, são os milhões
de discos vendidos, as parcerias firmadas com grandes nomes da música popular e a qualidade musical
desses cantores que ganham destaque na fala do apresentador.
Dessa forma, Luciano, que já havia
justificado a presença do “estranho
no ninho”, agora enquadra o gospel
como um produto cultural como outro
qualquer. E, ao enfatizar a quantidade de discos vendidos por Ana Paula e usar expressões do tipo “fiquei
chocado com o teu sucesso”, “fiquei
muito impressionado”, “é um dos
melhores rappers brasileiros que eu
ouvi nos últimos tempos” e “eu quero
que você conheça este fenômeno que
é a música evangélica no Brasil”, demonstra claro interesse em “vender” o
gospel ao seu público. Na minha opi-
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nião, considerando a análise anterior,
as palavras de Luciano poderiam ser
traduzidas da seguinte forma:
“Eu sei que parece anormal ver cantores evangélicos no Caldeirão, mas,
não há motivo para tanto espanto,
afinal, somos um programa de mente
aberta, que tem espaço para todos.
Além disso, não precisamos vê-los
como uma música religiosa, são apenas mais um estilo musical que tem
qualidade e faz sucesso como tantos
outros que conhecemos. Portanto, por
mais estranho que pareça vê-los neste palco, confiem em mim, vocês vão
gostar desse gospel que eu tenho a
apresentar a vocês”.
2.3 Deixando brechas
Outro fator chama a atenção na abordagem de Luciano, que exemplifica
uma importante constatação de Fernandes (2008, p.30) ao aplicar os conceitos de Lacan à análise do discurso: “Os lapsos [...] provocam sentidos
contrários ao que o sujeito discursivo gostaria de mostrar”. Apesar de
Huck procurar persuadir a audiência
igualando a música evangélica aos
demais estilos, ele próprio demonstra enxergá-la de forma diversa, como
percebemos na frase: “[...] realmente,
é uma música gospel, mas acho que
é um dos melhores rappers brasileiros
que eu ouvi nos últimos tempos”.
Como bem sabemos, o emprego da
conjunção adversativa “mas” indica
haver um contraste entre os termos
que estão sendo ligados. Com isso,
podemos inferir que, para Luciano,
“música gospel” e “um dos melhores
rappers brasileiros que eu ouvi nos
últimos tempos” são duas coisas que
não condizem. Afinal, caso ele estivesse falando de elementos distintos,
porém, não contraditórios, bastaria a
conjunção “e”: “é uma música gospel
e um dos melhores rappers brasileiros
que eu ouvi nos últimos tempos”.
Também podemos entender melhor
a colocação de Huck se, como sugere Orlandi (2007), fizermos uma
paráfrase desse trecho, ou seja, reescrevermos o texto sem que haja
perda de sentido. Dessa forma, teríamos: “Apesar de ser uma música
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gospel, é um dos melhores rappers
brasileiros que eu ouvi nos últimos
tempos”. Daí, algumas interpretações seriam possíveis:
Uma delas seria considerar o contraste sagrado x profano. Luciano, então,
estaria dizendo que, apesar de ser
uma música sagrada, que nada tem
a ver com os estilos “profanos” que
agradam seu público, é um dos melhores rappers brasileiros que ele ouviu nos últimos tempos”.
Outra possível interpretação seria o
contraste música ruim x música boa.
Em outras palavras, apesar de fazer
uma música gospel, que, na lógica do
apresentador, não seria sinônimo de
música de qualidade, Pregador Luo
pode ser equiparado aos melhores
rappers brasileiros da atualidade, na
opinião de Luciano.
A colocação de Huck sugere ainda
uma terceira interpretação: o contraste entre o que ele gosta de ouvir e o
que não gosta de ouvir. Então, apesar
de ser uma música gospel, um estilo que normalmente não lhe agrada,
para sua surpresa, Pregador Luo acabou se revelando como um dos melhores rappers brasileiros que ele ouviu nos últimos tempos.
Independente do que Luciano realmente pense a respeito da música
evangélica, fica clara a separação
que ele faz entre o gênero gospel
e os demais estilos musicais, mesmo com um discurso igualitário e
livre de preconceitos. Além disso,
por mais que o apresentador tenha
utilizado a frase em questão para
elogiar Pregador Luo, não podemos
ignorar que a conjunção “mas” acabou revelando uma visão pejorativa
do apresentador, colocando a música gospel como um gênero incapaz
de produzir rappers tão bons quanto
o que se vê no meio secular.
2.4 Reproduzindo discursos
Vale a pena ressaltar que Luciano
não está sozinho em seu deslize, pois,
como explica Fernandes (2008, p.9),
trata-se de um sujeito “[...] heterogêneo, constituído por um conjunto de
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diferentes vozes”. Além disso, “as palavras simples do nosso cotidiano já
chegam até nós carregadas de sentidos que não sabemos como se consituíram e que no entanto significam
em nós e para nós” (ORLANDI, 2007,
P.20). Portanto, há de se levar em conta a forma como somos afetados pelos discursos à nossa volta.
Se o programa de Huck estivesse em
outro contexto, nos Estados Unidos,
por exemplo, talvez o “mas” não tivesse sido utilizado, pois, além de ter
sido um país de maioria protestante
por muitos anos, deu origem ao gênero gospel, que desde sempre foi
reconhecido como música de qualidade, extrapolando as fronteiras do religioso e fazendo parte da trajetória de
grandes nomes do cenário musical,
como Elvis Presley, por exemplo.
Já no Brasil, a história foi diferente.
Segundo Cunha (2007), quando o protestantismo chegou no País, no início
do século XIX, ele adotou uma postura sectária semelhante à do catolicismo da Idade Média, mantendo uma
rígida fronteira entre o sagrado e o
profano. Era pregado que os “crentes
deveriam repelir o ócio, não guardar
os feriados santos, reservar o domingo para o culto, não ingerir álcool,
não dançar ou cantar cânticos populares (símbolos do profano)” (CUNHA,
2007, p. 43).
Assim, ao contrário da estratégia de
Lutero, que durante a Reforma tornou
mais acessíveis as canções utilizando
melodias e ritmos já conhecidos, os
missionários protestantes já trouxeram consigo as canções estadunidenses e européias, apenas traduzindo e
adaptando suas letras. Eram os tradicionais hinos cristãos, que durante
várias décadas foram o único tipo de
música aceito dentro das igrejas protestantes históricas, preferencialmente, tocados nos órgãos, pois os instrumentos populares também eram tidos
como profanos.
Foram necessárias grandes mudanças não só na área da música Então,
até pouco tempo, antes dos evangélicos se tornarem o número expressivo
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que são hoje4, da música gospel ser
reconhecida pelo governo brasileiro como manifestação cultural5 e do
mercado em geral ter se aberto para
esse público, que também assumiu
uma postura mais flexível frente às
mudanças da sociedade, dificilmente
se veria letra evangélica no rap, a música da rua, “do mundo”. Mais improvável ainda seria a música de cunho
religioso assumir status de qualidade,
sendo comparada em pé de igualdade com a música popular.
Vemos, portanto, que o discurso de
Luciano aponta para outros discursos, enraizados no contexto sócio-histórico brasileiro. Um exemplo de
como ideologia e memória assumem
papel decisivo na contituição do sujeito e seu discurso. A grande questão é que dificilmente percebemos
a influência das ideias e pensamentos que nos circundam, pois, como
explica Pêcheux, citado por Orlandi
(2007), eles só ganham força sobre
nosso falar a partir do momento que
são “esquecidos”.
Segundo o teórico, esse esquecimento provoca no sujeito a ilusão de um
falar consciente, como se tudo que
ele dissesse fosse escolhido e pensado por ele mesmo. Com isso, o sujeito
tem “certeza” de que o que ele fala só
poderia ser dito da maneira como ele
está dizendo, tendo uma forma propriamente sua.
A mesma convicção tem da origem
de seu discurso, como se sua opinião/
pensamento e até mesmo a vontade
de expressar aquilo que está sendo
dito tivesse nascido com ele mesmo,
a despeito de influências externas.
Trata-se do sonho adâmico: “[...] o de
estar na inicial absoluta da linguagem, ser o primeiro homem, dizendo
as primeiras palavras que significariam apenas e exatamente o que queremos” (ORLANDI, 2007, P. 35).
Nesse sentido, é o esquecimento
quem esconde do sujeito as ideologias que permeiam seus pensamentos e a influência do contexto
sócio-histórico em que está inserido.
Assim, por trás do que penso ser au-
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têntico, muitas vezes, está o “já-dito”,
aquilo que fala antes, o pré-construído, o conjunto de discursos que estão contidos no discurso, o que Orlandi denomina como interdiscurso.
LH: Amém, muito obrigado!
Sob essa perspectiva, convém analisar de forma mais específica um dos
trechos já mencionados neste texto:
“Fazia tempo que eu estava ensaiando
pra ter essas grandes atrações gospel
aqui no Caldeirão”. Por mais sincera e
espontânea que tenha sido a fala do
apresentador, é muito pouco provável
que tenha nascido com ele essa intenção. Por isso, é de suma importância
que se considere o meio “global” do
qual Huck faz parte, pois, como ressalta Orlandi (2007, p.39), “[...] o lugar
a partir do qual fala o sujeito é constitutivo do que ele diz”.
AP: Esperamos que mais música
evangélica volte aqui em 2012.
Se, por razões que não cabe aqui analisar, a emissora passa a inserir o gospel aos poucos em sua programação,
associando pontos positivos à imagem do evangélico nos telejornais,
novelas e programas de auditório, é
natural que tanto os espectadores
quanto os protagonistas dos programas da Globo comecem a enxergar o
gospel de maneira diferente, se interessando por ele e reproduzindo muitos dos dizeres “globais” como sendo
suas próprias ideias.
De igual modo, se durante anos as telas da Globo só colocavam luz sobre
o pastor chutando a santa, o bispo explorando seus fiéis e os líderes espirituais sendo presos por lavagem de
dinheiro, mesmo não tendo consciência da ideologia que o cercava, dificilmente haveria por parte de Luciano
interesse pelos artistas evangélicos.
2.5 Silêncio que faz sentido
Há ainda outro trecho que contribui
para esta análise:
LH: Ana Paula Valadão! Quem gostou
faz barulho, Caldeirão!
Ana, muito obrigado pela presença.
Um feliz 2012 pra você, tudo de bom.
AP: Um abençoado 2012 pra você, pra
Angélica, sua família.
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AP: E muito obrigada, Caldeirão!
LH: Sejam bem-vindos.
LH: Você conhece o Pregador Luo?
[...]
Merece destaque o fato de Luciano
ter mudado o assunto quando a cantora fala de sua expectativa por mais
música gospel no programa. Aqui encontramos um exemplo do “não-dito”
que significa no discurso. É o silêncio
constitutivo do sentido. Huck poderia
ter comentado com Ana Paula que
nutria a mesma expectativa. Poderia
também já ter adiantado os planos de
2012, prevendo mais artistas evangélicos no Caldeirão. Afinal, tendo ele
próprio afirmado que fazia tempo que
ele ansiava por ter as grandes atrações gospel em seu programa, agora
que finalmente esse desejo se realizava, nada mais natural que essa participação se repetisse.
Por outro lado, considerando o processo de mudança de postura da
Rede Globo em relação aos evangélicos, sendo essa a primeira vez que a
música gospel se apresentava no Caldeirão, talvez ainda fosse cedo para
se comprometer. Vale lembrar que a
Globo é uma empresa capitalista que
visa ao lucro. Com isso, cada novo
mercado precisa ser muito bem testado. A emissora só “entraria de cabeça” no segmento gospel se tivesse
certeza de lucro. E Luciano não está
alheio a esse contexto, pelo contrário,
é também agente do processo.
Por isso, ao mesmo tempo que garantir mais música gospel em 2012 pudesse ser arriscado, tendo em vista
um mercado ainda em fase de experimentação, negar essa possibilidade
poderia afastar um grande público
em potencial. Assim, “censurar” o
comentário de Ana Paula, desviando
o foco e optando pelo silêncio, seria
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mais prudente. Considero muito provável que tenha sido este o
pensamento de Huck ao fugir da resposta.
3. CONCLUSÃO
À primeira vista, quem ouve os discursos de Luciano no último
Caldeirão de 2011 percebe o programa como sendo inclusivo e livre
de preconceitos. Também passa a ter motivos para respeitar a música gospel como um gênero musical semelhante à música pop, ao
sertanejo ou qualquer outro estilo secular. Na superfície, e isoladas
de seu contexto sócio-histórico e ideológico, as palavras de Huck
denotam um ambiente favorável à diferença e um evangélico que
não é tão diferente assim.
Contudo, ao investigar mais minuciosamente as falas do apresentador, é possível encontrar diversos outros sentidos acompanhando
seu discurso, revelando, inclusive, posições contrárias às mensagens pretendidas por Luciano. Isso acontece porque “os sentidos
não estão nas palavras elas mesmas. Estão aquém e além delas”
(ORLANDI, 2007, p.42).
Então, para que a compreensão de um discurso seja abrangente
e se aproxime ao máximo de sua essência, é preciso identificar
o lugar de onde fala o sujeito, encontrar os vínculos que o dizer
mantém com a memória, perceber os lapsos que apontam para
outros discursos, percorrer as margens, ouvir o “não-dito”, enfim,
descortinar o possível. Só assim são reveladas as cores e formas do
verdadeiro sentido.
NOTAS
1- Trabalho apresentado no 4º Simpósio de Pesquisa em Comunicação Social PUC-Goiás em
31/10/2013. PUC-Goiás – Campus V.
2 - Mestranda do Curso de Comunicação (Mídia e Cultura) da FIC, Universidade Federal de Goiás,
e-mail: [email protected]
3 - Pouco antes da minissérie ir ao ar, a emissora havia veiculado uma reportagem-denúncia no
Jornal Nacional, acusando o bispo Macedo de lavagem de dinheiro e enriquecimento ilícito com
as arrecadações financeiras da igreja. Esse foi apenas o início de um longo período apresentando
denúncias contra Macedo).
4 - Segundo o Censo 2010, os evangélicos representam 22% da população. Dados da pesquisa
Datafolha de 2013 indicam 28%, sendo 19% formados por evangélicos pentecostais e 9%
correspondendo aos não pentecostais.
5 - Com a aprovação do Projeto de Lei da Câmara (PLC) 2007/2009, pastores, cantores e
parlamentares que se apresentam e fazem shows gospel passaram a contar com os benefícios da
Lei Rouanet.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CUNHA, Magali do Nascimento. A explosão gospel: Um olhar das ciências humanas sobre o
cenário evangélico no Brasil. Rio de Janeiro: Mauad X: Instituto Mysterium, 2007.
FERNANDES, Cleudemar Alves. Análise do discurso: reflexões introdutórias. São Carlos: Editora
Claraluz, 2008.
MARIANO, Ricardo. Neopentecostais: sociologia no novo pentecostalismo no Brasil. São Paulo:
Loyola, 1999.
ORLANDI, Eni P. Análise de discurso: princípios e procedimentos. Campinas: Pontes, 2007.
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REVISTA PANORAMA
edição on line
v. 4, n. 1, jan./dez. 2014
ISSN 2237-1087