CALDEIRÃO DE SENTIDOS: Análise da representação evangélica
Transcrição
CALDEIRÃO DE SENTIDOS: Análise da representação evangélica
ARTIGO ARTIGO ACADÊMICO ACADÊMICO CALDEIRÃO DE SENTIDOS: Análise da representação evangélica em programa especial de fim de ano1. Por Bianca de Freitas J. MARANHÃO2 Universidade Federal de Goiás “O essencial é invisível aos olhos” Saint-Exupéry RESUMO Os evangélicos cresceram de maneira surpreendente no Brasil e têm recebido cada vez mais atenção da grande mídia, especialmente a televisiva. Se antes eles se mantinham reservados e pouco integrados à cultura popular, hoje sua música divide palco com os mais diversos estilos e ritmos, estando sob os holofotes até mesmo da grande Rede Globo. Grandes mudanças que têm estampado novas configurações no modo de ser evangélico, ao mesmo tempo que parece revelar um novo olhar da sociedade sobre esse público. PALAVRAS-CHAVE: comunicação, religião, discurso, mídia, cultura. 1. INTRODUÇÃO 3 1 de dezembro é sempre uma data importante no meio televisivo e uma ótima oportunidade para alcançar bons índices de audiência. Afinal, esse é um momento em que não faltam espectadores para assistir às tradicionais retrospectivas e programações especiais de fim de ano. Em se tratando da Rede Globo, principal emissora de TV aberta do País, a realidade não poderia ser diferente. Mas, mesmo num contexto em que o roteiro é quase sempre o mesmo, eventualmente surgem alguns fatos inéditos, que chamam a atenção e despertam a curiosidade, levando a questionamentos do tipo: “o que estamos vendo e ouvindo é o que de fato está sendo dito? Há outros fatores relacionados a esse evento? 68 REVISTA PANORAMA edição on line v. 4, n. 1, jan./dez. 2014 ISSN 2237-1087 O que podemos enxergar por trás dessa aparente naturalidade?”. Essas são algumas das dúvidas que motivaram o desenvolvimento deste estudo, que tem como foco o Caldeirão do Huck, uma das principais atrações da TV Globo. Todos os anos, o apresentador Luciano Huck prepara uma programação especial para o Caldeirão de fim de ano. E assim a tradição se manteve em 2011. A data de exibição do programa não poderia ter sido mais propícia: 31 de dezembro. O cenário comemorativo, praia de Porto das Dunas, Fortaleza, Ceará, também estava entre os ingredientes de um cardápio já conhecido e bastante apreciado Um dia ensolarado, com trilha sonora alegre, cores quentes, clima festivo e diversas atrações musicais, como de costume. ARTIGO ARTIGOACADÊMICO ACADÊMICO Entretanto, na ocasião, havia entre os convidados um perfil bastante diferente do habitual. Eram os cantores evangélicos Ana Paula Valadão (acompanhada de seu grupo Diante do Trono) e Pregador Luo, dois dos maiores nomes da música gospel da atualidade. Por ser esta a primeira participação de cantores evangélicos no Caldeirão do Huck e por outras questões ligadas à trajetória da Globo, que discutiremos mais adiante, o presente trabalho se propõe a analisar o discurso do apresentador Luciano Huck nos diálogos que estabelece com esses cantores e também nos momentos em que se dirige ao público para falar dos mesmos. Para isso, serão feitos recortes dos trechos considerados mais relevantes para a discussão que está sendo proposta. 2. O GOSPEL SEGUNDO LUCIANO 2.1 Justificando o improvável Segundo Orlandi (2007), um dos primeiros e mais importantes desafios de quem se propõe a analisar um discurso é desfazer a ilusão de transparência do discurso. Para ela, “[...] os sentidos não estão só nas palavras, nos textos, mas na relação com a exterioridade, nas condições em que eles são produzidos e que não dependem só das intenções dos sujeitos” (ORLANDI, 2007, P.30). Portanto, é preciso vasculhar, apreender os vestígios. A autora defende que as margens do dizer também fazem parte dele e significam nas palavras de quem fala. Por isso, ao analisar um discurso, é preciso estar atento não só ao que é dito ali, mas também ao que é dito em outros lugares e até mesmo ao que foi dito em outros tempos (memória). Também é importante considerar aquilo que poderia ter sido dito, mas não foi. Tudo isso contribui para compreender os verdadeiros sentidos de um discurso. 69 REVISTA PANORAMA edição on line v. 4, n. 1, jan./dez. 2014 ISSN 2237-1087 Assim, colocamos nossos olhos e “ouvidos” no diálogo que Huck estabelece logo no início do programa: LH: Abrindo o Caldeirão de hoje, eu tenho a honra de trazer: Ana Paula Valadão! AP: Boa tarde Fortaleza, Brasil! Que Deus abençoe 2012! LH: E aí, Ana? AP: E aí, Luciano? Obrigada por nos receber! LH: Muito bom. Muito obrigado por ter aceito o nosso convite. AP: Imagina! LH: Fazia tempo que eu estava ensaiando pra ter essas grandes atrações gospel aqui no Caldeirão. Você tem sete milhões de discos vendidos, mulher?! AP: É, sabe, o Brasil está com sede de uma água diferente. Jesus diz que ele é a água da vida. Então, as nossas músicas falam dessa água que vêm realmente pra suprir o nosso coração, preencher a nossa vida. É por isso que vende muito. LH: Eu queria dizer que o Caldeirão é palco pra todas as crenças, credos, cores, ritmos... isso aqui é uma mistura de religiões, uma mistura de ideais, quer dizer, na minha casa já é assim, eu sou judeu, minha esposa é católica, minha sogra é evangélica, então, é a “misturamba” já em casa. AP: Acho que o legal é você refletir o que o Brasil é. Tem espaço pra todo mundo. LH: Concordo com você. A fala de Luciano, que se mostra favorável à liberdade religiosa e também livre de preconceitos, traz em si uma memória. Lembra um tempo ARTIGO ACADÊMICO em que o brasileiro não podia manifestar crenças religiosas diversas do Catolicismo. Também remete aos fortes preconceitos raciais que antes estavam tão presentes na cultura brasileira, que impediam, por exemplo, que negros e brancos fossem vistos e tratados como iguais, pudessem frequentar os mesmos lugares e tivessem os mesmos direitos. Essa convivência amigável e “igualitária” entre diferentes raças e credos é uma conquista recente do povo brasileiro. Contudo, não podemos desconsiderar que se Luciano enfatiza essa característica e, de certa maneira, a utiliza como uma forma de assumir uma posição perante as diferenças, é porque o preconceito ainda está presente na sociedade, apesar de aparentemente superado. A colocação do apresentador nos permite inferir que essa miscigenação de raças, tribos e crenças também não é tão natural no meio televisivo. Ele estaria, então, levantando uma bandeira e incentivando aquilo que, na prática, ainda está distante do discurso. Mas, devemos ir mais a fundo nesta análise. Afinal, como diz Orlandi (2007, p.9), “[...] não há neutralidade nem no uso mais aparentemente cotidiano dos signos”. Se observarmos o histórico do programa, que existe desde 2000, percebemos que, de fato, a mistura das diferenças sempre esteve presente no Caldeirão do Huck. Essa, inclusive, é uma das propostas do programa. São contadas histórias de pobres e ricos, anônimos e famosos, brancos e negros, pessoas graduadas e pessoas sem estudo, brasileiros e estrangeiros, dentre outros. Suas atrações musicais também sempre contemplaram estilos diversos, passando pelo sertanejo, o rock, o pop, o axé e até mesmo a música clássica. Assim, sendo a música gospel apenas mais um dentre tantos outros estilos, e sendo os artistas evangélicos representantes de mais uma dentre tantas religiões que existem no 70 REVISTA PANORAMA edição on line v. 4, n. 1, jan./dez. 2014 ISSN 2237-1087 Brasil, isso não deveria ser visto de forma natural pelo público do Caldeirão? Porque haveria a necessidade de introduzir esses cantores utilizando tal argumento? Poderíamos pensar que se deve ao fato de ser esta a primeira participação de cantores gospel no programa. Então, sendo novidade, demandaria uma contextualização. Porém, não estamos falando de um estilo musical recém-lançado no mercado, pelo contrário. Trata-se de um segmento que tem vendido milhões de discos há anos. Penso, na verdade, que a explicação de Luciano parece mais querer justificar a presença de um “estranho no ninho”, mesmo um ninho tão diversificado e misturado como o do Caldeirão. Estariam esses artistas um pouco deslocados por serem cantores de música evangélica, ou seja, por estarem ligados ao sagrado, que não se misturaria com o meio profano em que estavam inseridos, por mais que houvesse por parte do programa abertura para todas as religiões? Essa seria uma hipótese plausível. Contudo, analisando a trajetória do Caldeirão, vemos participações do padre Marcelo Rossi, por exemplo, totalmente livres de justificativas do tipo “mistura de credos, cores e ritmos”. Assim como em diversas outras ocasiões em que Rossi participou de programas da Globo, a presença de sua música religiosa nunca precisou ser explicada ao público. Por isso, penso que a necessidade de contextualizar Ana Paula Valadão e Pregador Luo se deve a outro fator relevante da história da TV Globo: sua aparente oposição ao público evangélico. Na minissérie Decadência, por exemplo, exibida em 1995, o ator Edson Celulari interpretava um pastor desonesto, que enriqueceu explorando a fé de seus seguidores. Em suas pregações, Don Mariel, como era chamado o personagem, chegou a usar frases ARTIGO ACADÊMICO que eram comumente ditas pelo bispo Edir Macedo, líder espiritual da Igreja Universal do Reino de Deus, com quem a Rede Globo vivia um forte confronto naquele período3. Contudo, a representação negativa não se concentrava apenas na figura do pastor, estereotipava também a imagem dos fiéis, retratados como alienados e incapazes de enxergar o discurso manipulador e as descaradas manobras do ambicioso guia espiritual. Para Mariano (1999, p.82), mesmo a emissora afirmando que as críticas feitas em Decadência não diziam respeito a nenhuma religião ou a qualquer um de seus líderes, havia ali traços claros de que não se tratava apenas de uma ficção. Por isso, apesar de existir na época outras denominações que também se posicionavam contrárias às práticas da Universal, muitos se uniram à Macedo em protesto ao folhetim da Globo, considerado uma provocação e também uma blasfêmia contra a fé evangélica. Em 2002, as acusações se voltaram para os líderes da Igreja Renascer em Cristo, com ampla cobertura pelos diversos telejornais e demais canais de notícia da Rede Globo. Durante aproximadamente duas semanas, foram mostradas matérias que apontavam o desvio dos fundos arrecadados pela igreja e pela fundação mantida pela mesma. Nesse período, nenhum outro veículo dedicou tanta atenção a esses fatos como a Globo. De volta à ficção, mais personagens com teor negativo. Na novela América, por exemplo, televisionada em 2005, a atriz Juliana Paes representou Creuza, uma evangélica que se vestia de forma recatada, posava de fiel e repreendia o comportamento das pessoas, quando, na verdade, seduzia homens para grandes aventuras às escondidas. Outro exemplo significativo foi da personagem Edivânia, interpretada 71 REVISTA PANORAMA edição on line v. 4, n. 1, jan./dez. 2014 ISSN 2237-1087 por Susana Ribeiro na novela Duas Caras, em 2008. Fanática religiosa e extremamente moralista, Edivânia ficou marcada na trama por uma cena em que comandou uma tentativa de linchamento a um triângulo amoroso da comunidade onde vivia, o que despertou fortes críticas à Rede Globo e acusações de incitar o preconceito contra os evangélicos. Esses são apenas alguns dos exemplos de como estereótipos, falsidade, fanatismo, enriquecimento ilícito e intolerância religiosa estiveram associados à imagem do evangélico nas telas da Globo. Por isso, durante quase duas décadas a emissora foi vista por esse público como perseguidora dos evangélicos. Alguns poderiam apontar a disputa mercadológica entre a Globo e a Record como a principal razão dessa propaganda negativa. Afinal, sendo a Rede Record de propriedade de Edir Macedo e estando ela ligada à Igreja Universal do Reino de Deus, ao desacreditar a imagem do evangélico, a Globo estaria, de certa maneira, atingindo sua concorrente. Apesar de ser coerente essa análise, identificar as possíveis razões para essa aparente oposição não está entre os objetivos deste estudo. Quero apenas me ater ao fato de que a Rede Globo esteve fechada para o mercado evangélico durante anos e isso pode ser percebido também no programa de Huck. Se o Caldeirão sempre foi palco para as mais diversas religiões, raças e ritmos, por que só depois de 11 anos Luciano abriu espaço para a música gospel, que já representava um segmento de sucesso muito antes? Padre Marcelo Rossi, por exemplo, esteve presente já no primeiro ano do programa, e voltou outras vezes. A meu ver, essa mistura e ausência de preconceito defendidas pelo apresentador, na verdade, não valiam para o gospel, pois havia por parte da emissora interesse em não promo- ARTIGO ACADÊMICO ver a imagem do evangélico, dando atenção apenas para suas faltas e incoerências. Logo, a entrada do gospel no programa de Huck seria reflexo de um novo relacionamento que a Globo busca estabelecer com o evangélico, questão esta que será aprofundada em outro estudo. 2.2 Trazendo para o universo já conhecido Voltando nossa análise para o discurso de Luciano, destacamos um trecho da segunda participação gospel do programa: LH: E agora, bixo, são 15 anos de carreira. Ele já gravou com Charlie Brown Jr., já gravou com Exaltasamba, já gravou com Simoninha, já gravou com KLB, com um monte de gente bacana! É música tema no UFC quando o Shogum, quando o Anderson Silva, quando o Victor Belfort, quando o Lyoto entra no octógono [...]. Fui conferir o trabalho e, realmente, é uma música gospel, mas acho que é um dos melhores rappers brasileiros que eu ouvi nos últimos tempos. Vale a pena conferir! Pra você que não conhece, vai conhecer agora. Pra você que já conhece, vai se deliciar. Agora, senhoras e senhores, recebam com muito carinho: Pregador Luo, no Caldeirão! [...] LH (em conversa com Pregador Luo): Cara, eu fiquei chocado com o teu sucesso! A primeira pessoa que me falou de você foi o Amaury Soares, da Globo Rio. Eu fui ouvir e fiquei muito impressionado, cara! Ainda sobre o diálogo com Ana Paula, ressaltamos novamente o trecho abaixo e acrescentamos mais uma parte da fala de Luciano: LH: Fazia tempo que eu estava ensaiando pra ter essas grandes atrações gospel aqui no Caldeirão. Você tem sete milhões de discos vendidos, mulher?! [...] 72 REVISTA PANORAMA edição on line v. 4, n. 1, jan./dez. 2014 ISSN 2237-1087 LH (se dirigindo ao público): Então, pra quem já conhece o seu trabalho, eu quero que curta muito. Pra quem não conhece, eu quero que você conheça este fenômeno que é a música evangélica no Brasil. Pra você ter ideia, sete milhões de cópias não é pra qualquer um. Ela canta muito bem, as músicas são incríveis, portanto, confira ao vivo, agora, começando o nosso reveillón, a passagem de ano, a celebração do Caldeirão, com vocês, Ana Paula Valadão! Para Orlandi (2007, p.39), “[...] o sujeito dirá de um modo ou de outro, segundo o efeito que pensa produzir em seu ouvinte”. A pesquisadora, inclusive, explica que é melhor jogador aquele que consegue articular de maneira mais eficiente as imagens na constituição dos sujeitos, estando onde o outro espera que ele esteja e usando exatamente as palavras que o outro quer ouvir. Então, se partimos do pressuposto de que a presença do gospel no Caldeirão causava estranhamento, compreendemos os argumentos utilizados por Huck, que desloca o foco do sagrado e traz a música evangélica para o contexto habitual do programa. Assim, são os milhões de discos vendidos, as parcerias firmadas com grandes nomes da música popular e a qualidade musical desses cantores que ganham destaque na fala do apresentador. Dessa forma, Luciano, que já havia justificado a presença do “estranho no ninho”, agora enquadra o gospel como um produto cultural como outro qualquer. E, ao enfatizar a quantidade de discos vendidos por Ana Paula e usar expressões do tipo “fiquei chocado com o teu sucesso”, “fiquei muito impressionado”, “é um dos melhores rappers brasileiros que eu ouvi nos últimos tempos” e “eu quero que você conheça este fenômeno que é a música evangélica no Brasil”, demonstra claro interesse em “vender” o gospel ao seu público. Na minha opi- ARTIGO ACADÊMICO nião, considerando a análise anterior, as palavras de Luciano poderiam ser traduzidas da seguinte forma: “Eu sei que parece anormal ver cantores evangélicos no Caldeirão, mas, não há motivo para tanto espanto, afinal, somos um programa de mente aberta, que tem espaço para todos. Além disso, não precisamos vê-los como uma música religiosa, são apenas mais um estilo musical que tem qualidade e faz sucesso como tantos outros que conhecemos. Portanto, por mais estranho que pareça vê-los neste palco, confiem em mim, vocês vão gostar desse gospel que eu tenho a apresentar a vocês”. 2.3 Deixando brechas Outro fator chama a atenção na abordagem de Luciano, que exemplifica uma importante constatação de Fernandes (2008, p.30) ao aplicar os conceitos de Lacan à análise do discurso: “Os lapsos [...] provocam sentidos contrários ao que o sujeito discursivo gostaria de mostrar”. Apesar de Huck procurar persuadir a audiência igualando a música evangélica aos demais estilos, ele próprio demonstra enxergá-la de forma diversa, como percebemos na frase: “[...] realmente, é uma música gospel, mas acho que é um dos melhores rappers brasileiros que eu ouvi nos últimos tempos”. Como bem sabemos, o emprego da conjunção adversativa “mas” indica haver um contraste entre os termos que estão sendo ligados. Com isso, podemos inferir que, para Luciano, “música gospel” e “um dos melhores rappers brasileiros que eu ouvi nos últimos tempos” são duas coisas que não condizem. Afinal, caso ele estivesse falando de elementos distintos, porém, não contraditórios, bastaria a conjunção “e”: “é uma música gospel e um dos melhores rappers brasileiros que eu ouvi nos últimos tempos”. Também podemos entender melhor a colocação de Huck se, como sugere Orlandi (2007), fizermos uma paráfrase desse trecho, ou seja, reescrevermos o texto sem que haja perda de sentido. Dessa forma, teríamos: “Apesar de ser uma música 73 REVISTA PANORAMA edição on line v. 4, n. 1, jan./dez. 2014 ISSN 2237-1087 gospel, é um dos melhores rappers brasileiros que eu ouvi nos últimos tempos”. Daí, algumas interpretações seriam possíveis: Uma delas seria considerar o contraste sagrado x profano. Luciano, então, estaria dizendo que, apesar de ser uma música sagrada, que nada tem a ver com os estilos “profanos” que agradam seu público, é um dos melhores rappers brasileiros que ele ouviu nos últimos tempos”. Outra possível interpretação seria o contraste música ruim x música boa. Em outras palavras, apesar de fazer uma música gospel, que, na lógica do apresentador, não seria sinônimo de música de qualidade, Pregador Luo pode ser equiparado aos melhores rappers brasileiros da atualidade, na opinião de Luciano. A colocação de Huck sugere ainda uma terceira interpretação: o contraste entre o que ele gosta de ouvir e o que não gosta de ouvir. Então, apesar de ser uma música gospel, um estilo que normalmente não lhe agrada, para sua surpresa, Pregador Luo acabou se revelando como um dos melhores rappers brasileiros que ele ouviu nos últimos tempos. Independente do que Luciano realmente pense a respeito da música evangélica, fica clara a separação que ele faz entre o gênero gospel e os demais estilos musicais, mesmo com um discurso igualitário e livre de preconceitos. Além disso, por mais que o apresentador tenha utilizado a frase em questão para elogiar Pregador Luo, não podemos ignorar que a conjunção “mas” acabou revelando uma visão pejorativa do apresentador, colocando a música gospel como um gênero incapaz de produzir rappers tão bons quanto o que se vê no meio secular. 2.4 Reproduzindo discursos Vale a pena ressaltar que Luciano não está sozinho em seu deslize, pois, como explica Fernandes (2008, p.9), trata-se de um sujeito “[...] heterogêneo, constituído por um conjunto de ARTIGO ACADÊMICO diferentes vozes”. Além disso, “as palavras simples do nosso cotidiano já chegam até nós carregadas de sentidos que não sabemos como se consituíram e que no entanto significam em nós e para nós” (ORLANDI, 2007, P.20). Portanto, há de se levar em conta a forma como somos afetados pelos discursos à nossa volta. Se o programa de Huck estivesse em outro contexto, nos Estados Unidos, por exemplo, talvez o “mas” não tivesse sido utilizado, pois, além de ter sido um país de maioria protestante por muitos anos, deu origem ao gênero gospel, que desde sempre foi reconhecido como música de qualidade, extrapolando as fronteiras do religioso e fazendo parte da trajetória de grandes nomes do cenário musical, como Elvis Presley, por exemplo. Já no Brasil, a história foi diferente. Segundo Cunha (2007), quando o protestantismo chegou no País, no início do século XIX, ele adotou uma postura sectária semelhante à do catolicismo da Idade Média, mantendo uma rígida fronteira entre o sagrado e o profano. Era pregado que os “crentes deveriam repelir o ócio, não guardar os feriados santos, reservar o domingo para o culto, não ingerir álcool, não dançar ou cantar cânticos populares (símbolos do profano)” (CUNHA, 2007, p. 43). Assim, ao contrário da estratégia de Lutero, que durante a Reforma tornou mais acessíveis as canções utilizando melodias e ritmos já conhecidos, os missionários protestantes já trouxeram consigo as canções estadunidenses e européias, apenas traduzindo e adaptando suas letras. Eram os tradicionais hinos cristãos, que durante várias décadas foram o único tipo de música aceito dentro das igrejas protestantes históricas, preferencialmente, tocados nos órgãos, pois os instrumentos populares também eram tidos como profanos. Foram necessárias grandes mudanças não só na área da música Então, até pouco tempo, antes dos evangélicos se tornarem o número expressivo 74 REVISTA PANORAMA edição on line v. 4, n. 1, jan./dez. 2014 ISSN 2237-1087 que são hoje4, da música gospel ser reconhecida pelo governo brasileiro como manifestação cultural5 e do mercado em geral ter se aberto para esse público, que também assumiu uma postura mais flexível frente às mudanças da sociedade, dificilmente se veria letra evangélica no rap, a música da rua, “do mundo”. Mais improvável ainda seria a música de cunho religioso assumir status de qualidade, sendo comparada em pé de igualdade com a música popular. Vemos, portanto, que o discurso de Luciano aponta para outros discursos, enraizados no contexto sócio-histórico brasileiro. Um exemplo de como ideologia e memória assumem papel decisivo na contituição do sujeito e seu discurso. A grande questão é que dificilmente percebemos a influência das ideias e pensamentos que nos circundam, pois, como explica Pêcheux, citado por Orlandi (2007), eles só ganham força sobre nosso falar a partir do momento que são “esquecidos”. Segundo o teórico, esse esquecimento provoca no sujeito a ilusão de um falar consciente, como se tudo que ele dissesse fosse escolhido e pensado por ele mesmo. Com isso, o sujeito tem “certeza” de que o que ele fala só poderia ser dito da maneira como ele está dizendo, tendo uma forma propriamente sua. A mesma convicção tem da origem de seu discurso, como se sua opinião/ pensamento e até mesmo a vontade de expressar aquilo que está sendo dito tivesse nascido com ele mesmo, a despeito de influências externas. Trata-se do sonho adâmico: “[...] o de estar na inicial absoluta da linguagem, ser o primeiro homem, dizendo as primeiras palavras que significariam apenas e exatamente o que queremos” (ORLANDI, 2007, P. 35). Nesse sentido, é o esquecimento quem esconde do sujeito as ideologias que permeiam seus pensamentos e a influência do contexto sócio-histórico em que está inserido. Assim, por trás do que penso ser au- ARTIGO ACADÊMICO têntico, muitas vezes, está o “já-dito”, aquilo que fala antes, o pré-construído, o conjunto de discursos que estão contidos no discurso, o que Orlandi denomina como interdiscurso. LH: Amém, muito obrigado! Sob essa perspectiva, convém analisar de forma mais específica um dos trechos já mencionados neste texto: “Fazia tempo que eu estava ensaiando pra ter essas grandes atrações gospel aqui no Caldeirão”. Por mais sincera e espontânea que tenha sido a fala do apresentador, é muito pouco provável que tenha nascido com ele essa intenção. Por isso, é de suma importância que se considere o meio “global” do qual Huck faz parte, pois, como ressalta Orlandi (2007, p.39), “[...] o lugar a partir do qual fala o sujeito é constitutivo do que ele diz”. AP: Esperamos que mais música evangélica volte aqui em 2012. Se, por razões que não cabe aqui analisar, a emissora passa a inserir o gospel aos poucos em sua programação, associando pontos positivos à imagem do evangélico nos telejornais, novelas e programas de auditório, é natural que tanto os espectadores quanto os protagonistas dos programas da Globo comecem a enxergar o gospel de maneira diferente, se interessando por ele e reproduzindo muitos dos dizeres “globais” como sendo suas próprias ideias. De igual modo, se durante anos as telas da Globo só colocavam luz sobre o pastor chutando a santa, o bispo explorando seus fiéis e os líderes espirituais sendo presos por lavagem de dinheiro, mesmo não tendo consciência da ideologia que o cercava, dificilmente haveria por parte de Luciano interesse pelos artistas evangélicos. 2.5 Silêncio que faz sentido Há ainda outro trecho que contribui para esta análise: LH: Ana Paula Valadão! Quem gostou faz barulho, Caldeirão! Ana, muito obrigado pela presença. Um feliz 2012 pra você, tudo de bom. AP: Um abençoado 2012 pra você, pra Angélica, sua família. REVISTA PANORAMA 75 edição on line v. 4, n. 1, jan./dez. 2014 ISSN 2237-1087 AP: E muito obrigada, Caldeirão! LH: Sejam bem-vindos. LH: Você conhece o Pregador Luo? [...] Merece destaque o fato de Luciano ter mudado o assunto quando a cantora fala de sua expectativa por mais música gospel no programa. Aqui encontramos um exemplo do “não-dito” que significa no discurso. É o silêncio constitutivo do sentido. Huck poderia ter comentado com Ana Paula que nutria a mesma expectativa. Poderia também já ter adiantado os planos de 2012, prevendo mais artistas evangélicos no Caldeirão. Afinal, tendo ele próprio afirmado que fazia tempo que ele ansiava por ter as grandes atrações gospel em seu programa, agora que finalmente esse desejo se realizava, nada mais natural que essa participação se repetisse. Por outro lado, considerando o processo de mudança de postura da Rede Globo em relação aos evangélicos, sendo essa a primeira vez que a música gospel se apresentava no Caldeirão, talvez ainda fosse cedo para se comprometer. Vale lembrar que a Globo é uma empresa capitalista que visa ao lucro. Com isso, cada novo mercado precisa ser muito bem testado. A emissora só “entraria de cabeça” no segmento gospel se tivesse certeza de lucro. E Luciano não está alheio a esse contexto, pelo contrário, é também agente do processo. Por isso, ao mesmo tempo que garantir mais música gospel em 2012 pudesse ser arriscado, tendo em vista um mercado ainda em fase de experimentação, negar essa possibilidade poderia afastar um grande público em potencial. Assim, “censurar” o comentário de Ana Paula, desviando o foco e optando pelo silêncio, seria ARTIGO ACADÊMICO mais prudente. Considero muito provável que tenha sido este o pensamento de Huck ao fugir da resposta. 3. CONCLUSÃO À primeira vista, quem ouve os discursos de Luciano no último Caldeirão de 2011 percebe o programa como sendo inclusivo e livre de preconceitos. Também passa a ter motivos para respeitar a música gospel como um gênero musical semelhante à música pop, ao sertanejo ou qualquer outro estilo secular. Na superfície, e isoladas de seu contexto sócio-histórico e ideológico, as palavras de Huck denotam um ambiente favorável à diferença e um evangélico que não é tão diferente assim. Contudo, ao investigar mais minuciosamente as falas do apresentador, é possível encontrar diversos outros sentidos acompanhando seu discurso, revelando, inclusive, posições contrárias às mensagens pretendidas por Luciano. Isso acontece porque “os sentidos não estão nas palavras elas mesmas. Estão aquém e além delas” (ORLANDI, 2007, p.42). Então, para que a compreensão de um discurso seja abrangente e se aproxime ao máximo de sua essência, é preciso identificar o lugar de onde fala o sujeito, encontrar os vínculos que o dizer mantém com a memória, perceber os lapsos que apontam para outros discursos, percorrer as margens, ouvir o “não-dito”, enfim, descortinar o possível. Só assim são reveladas as cores e formas do verdadeiro sentido. NOTAS 1- Trabalho apresentado no 4º Simpósio de Pesquisa em Comunicação Social PUC-Goiás em 31/10/2013. PUC-Goiás – Campus V. 2 - Mestranda do Curso de Comunicação (Mídia e Cultura) da FIC, Universidade Federal de Goiás, e-mail: [email protected] 3 - Pouco antes da minissérie ir ao ar, a emissora havia veiculado uma reportagem-denúncia no Jornal Nacional, acusando o bispo Macedo de lavagem de dinheiro e enriquecimento ilícito com as arrecadações financeiras da igreja. Esse foi apenas o início de um longo período apresentando denúncias contra Macedo). 4 - Segundo o Censo 2010, os evangélicos representam 22% da população. Dados da pesquisa Datafolha de 2013 indicam 28%, sendo 19% formados por evangélicos pentecostais e 9% correspondendo aos não pentecostais. 5 - Com a aprovação do Projeto de Lei da Câmara (PLC) 2007/2009, pastores, cantores e parlamentares que se apresentam e fazem shows gospel passaram a contar com os benefícios da Lei Rouanet. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS CUNHA, Magali do Nascimento. A explosão gospel: Um olhar das ciências humanas sobre o cenário evangélico no Brasil. Rio de Janeiro: Mauad X: Instituto Mysterium, 2007. FERNANDES, Cleudemar Alves. Análise do discurso: reflexões introdutórias. São Carlos: Editora Claraluz, 2008. MARIANO, Ricardo. Neopentecostais: sociologia no novo pentecostalismo no Brasil. São Paulo: Loyola, 1999. ORLANDI, Eni P. Análise de discurso: princípios e procedimentos. Campinas: Pontes, 2007. 76 REVISTA PANORAMA edição on line v. 4, n. 1, jan./dez. 2014 ISSN 2237-1087