Da prematura necessidade de se definir as obras

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Da prematura necessidade de se definir as obras
Da prematura necessidade de se definir as obras-primas - Simplicíssimo
Escrito por Alessandro Garcia
Ter, 21 de Março de 2006 22:00 - Última atualização Ter, 21 de Março de 2006 16:11
De vez em quando resolvem alçar um filme ao posto da genialidade. Encontram nele todos os
fatores possíveis para considerá-lo, prematuramente, uma obra-prima de todos os tempos. O
cordão vai engrossando tão rápido e com opiniões tão pouco díspares, que uma hora você não
sabe se realmente está prestes a presenciar o surgimento de um novo clássico ou se ninguém
se dá ao trabalho de contestar a coisa por que, afinal, se todo o mundo tá dizendo que é bom,
quem sou eu para dizer o contrário? Ainda mais se o filme em questão tem oito indicações ao
Oscar, ganhou o Globo de Ouro de melhor drama e, heresia das heresias, vão me acusar de
preconceituoso se eu encontrar falhas em um filme que ousa retratar o homossexualismo de
maneira tão… sensível (ainda não sei se é a melhor palavra)? "O Segredo de Brokeback
Mountain" é um filme muito bom. Ao contrário do que muitos pensam e até tentam
legitimar, não é uma apologia ao homossexualismo, nem mesmo uma provocação contra este
símbolo tão ligado à masculinidade americana, que é o cowboy – no entanto, já tão cercado de
suas próprias metáforas gays, que não é nem preciso fazer referência ao mundo de Marlboro e
seus vaqueiros suados enxugando os corpos em câmera lenta… Então, o que é
"Brockeback Mountain"? Não sou ninguém para responder em definitivo, mas me
atenho a tentar compreendê-lo sob um ponto de vista mais generalista, que diz respeito a um
tempo, um momento em que o filme se situa. Naquela elipse de tempo que compreende os
anos 60 ao 70, finda a ilusão do campo, do bucolismo dos grandes pastos e dos empregos
ligados à área. A época agora é de desencanto, de empregos subalternos, de tediosas labutas
como empacotador. O desencanto está presente não só na vida dos desencontrados
personagens – também eles carentes de atenção, de cuidado. Mas sim nos saloons vazios,
nos tediosos bailes e nos cabelos mais repletos de laquês que vão entrando em cena a medida
que o encanto vai saindo dela. Não chegaria à barbaridade de dizer que os personagens se
apaixonaram "só" por esta carência; não seria ingênuo a tal ponto, é lógico, por
mais que alguns digam que é aquela condição comum de renegados que os aproximou – e é,
também –, mas não somente isto. Lógico que era preciso mais do que isto para que os dois
homens se envolvessem. É bonito dizer que eles se apaixonaram somente "um pelo
outro"? Pode ser, mas também uma mentira. Por mais que os personagens nunca
abandonem sua masculinidade – ninguém desmunheca, não passam a usar botas rotas e
franjas purpurinadas em suas jaquetas – e, principalmente o personagem de Ledger em
nenhum momento se envolve com outro homem (daí a afirmação de que ele se apaixonou
"pelo Jack", e isto aconteceria fosse ele homem ou mulher), é intrínseco o fato de
serem dois homossexuais. A maneira como o filme trata isso, no entanto, é que angariou todo
este entusiasmo, esta simpatia. A narrativa não-cinematográfica do filme, o enredo, é
primoroso. Algumas coisas me incomodam na forma com que o filme, no entanto, peça final, se
apresenta. Apesar de ser uma película extremamente longa, pouco destaque se deu à parte
que mais tempo deveria receber atenção – os dias de idílio no campo, o cuidado com o
rebanho de ovelhas (e suas conotações religiosas?), enfim, toda a liberdade e encanto que
uniou as figuras de Ennis Del Mar (Heath Ledger) e Jack Twist (Jake Gyllenhaal) e corroborou
para sua paixão. Aquela fascinação que remete a seus dias de solidão nas montanhas e faz
com que se apaixonem é retratada de maneira rápida e um tanto burocrática. Mais burocráticos
ainda se tornam os momentos em que tornam a se encontrar, nestes vintes anos retratados.
Os momentos de encontros para "pescaria" que eles dividem ao longo dos anos,
retornando à sua amada montanha, é quase videoclíptico. É possível, eu creio, pela
sensibilidade do espectador se encantar com a história dos dois. Mas o filme não parece muito
preocupado em fazer isto, com a seqüência hiper-fragmentada destes encontros, com as
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Da prematura necessidade de se definir as obras-primas - Simplicíssimo
Escrito por Alessandro Garcia
Ter, 21 de Março de 2006 22:00 - Última atualização Ter, 21 de Março de 2006 16:11
elipses de tempo exageradas (em uma cena, Jack está transando com uma mulher que
conheceu num dos rodeios, na cena seguinte ela está dando a luz!). Quando não estão em
encontros nas montanhas, portanto (e esta possível e tão clara separação de
"momentos" do filme, é que me incomoda), estão sendo atormentados por suas
vidas comezinhas, por seus casamentos farsescos, por seu cotidiano pobre e infeliz. A
felicidade é lá fora – nos diz Ang Lee – no campo, na vida desregrada de então, na liberdade
dos pastos e no segredo dos encontros proibidos. No momento em que se traz a possibilidade
da vida a dois, do casamento, da união, da divisão da rotina, tudo se torna enfadonho e chato.
Tanto é isto, e ele não diz só da união heterossexual, que Enis foge da união como o diabo
foge da cruz, por mais que Jack viva a lhe atormentar. E a questão talvez não seja somente o
modo como Enis encara a homossexualidade, sua consciência de não serem aceitos em uma
sociedade preconceituosa. A coisa está além. É provável que ele imagine que uma vida de
união, da divisão diária, torne o seu relacionamento com Jack tão tedioso quanto com Alma
(Michelle Williams, a Jen de "Dawson's Creek"). Enfim. Dúvidas que persistem. E
que a montagem não ajuda a diluir. Talvez menos por sua qualidades técnicas (não me
referindo a estupenda interpretação geral do elenco) e mais pelo que representa, este filme
esteja sendo tão incensado. A burocracia com que Lee se detém no entanto, é que o impede
de ser a obra-prima que todos querem dizer que é.
2/2

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