ana gabriela pio pereira - Programa de Pós
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ana gabriela pio pereira - Programa de Pós
UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA DEPARTAMENTO DE EDUCAÇÃO – CAMPUS II ALAGOINHAS/BAHIA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CRÍTICA CULTURAL ANA GABRIELA PIO PEREIRA ESCRITAS EXCESSIVAS: DISPOSIÇÕES DE LESBIANIDADES NA NARRATIVA AS TRAÇAS, DE CASSANDRA RIOS Alagoinhas - BA 2013 ANA GABRIELA PIO PEREIRA ESCRITAS EXCESSIVAS: DISPOSIÇÕES DE LESBIANIDADES NA NARRATIVA AS TRAÇAS, DE CASSANDRA RIOS Dissertação apresentada ao Curso de Pós-graduação em Crítica Cultural da Universidade do Estado da Bahia UNEB - como requisito para obtenção do título de Mestre em Crítica Cultural. Orientador: Prof. Dr. Paulo César Souza García Alagoinhas -BA 2013 FICHA CATALOGRÁFICA P436e Pereira, Ana Gabriela Pio Escritas excessivas: disposições de lesbianidades na narrativa “As traças”, de Cassandra Rios. / Ana Gabriela Pio Pereira – Alagoinhas, 2013. 89f. Dissertação – (Mestrado em Crítica Cultural) – Universidade do Estado da Bahia. Departamento de Educação. Colegiado de Letras. Campus II. Orientador: Profº. Drº. Paulo César Garcia. 1. Lesbianismo na literatura 2. Escritoras lésbicas - Brasil 3.Escritoras brasileiras I. Garcia, Paulo César. II. Universidade do Estado da Bahia. Departamento de Educação. Colegiado de Letras. Campus II. III. Título CDD B869.09 Biblioteca do Campus II / Uneb Bibliotecária: Iza Christina P. de A. Costa – CRB: 5/1042 ANA GABRIELA PIO PEREIRA ESCRITAS EXCESSIVAS: DISPOSIÇÕES DE LESBIANIDADES NA NARRATIVA AS TRAÇAS, DE CASSANDRA RIOS Esta dissertação foi julgada para obtenção do título Mestre em Crítica Cultural. Área de concentração em Letras e aprovada em sua forma final pelo curso de Pós-Graduação em Crítica Cultural da Universidade do Estado da Bahia (UNEB) Campus II. Alagoinhas, 7 de maio de 2013 ___________________________________________ Prof. Dr. Paulo César Souza García Orientador BANCA EXAMINADORA __________________________________________ Profa. Dra. Suely Aldir Messeder (UNEB) Examinador Interno __________________________________________ Profa. Dra. Alessandra Leila Borges Gomes (UEFS) Examinador Externo SUPLENTES _________________________________________ Prof. Dr. Carlos Magno Santos Gomes (UNEB) Examinador Interno _________________________________________ Prof. Dr. Djalma Rodrigues Lima Neto (UFBA) Examinador Externo Dedico este trabalho, especialmente, à minha avó, Maria Cassiana Pio, que, dentre tantas coisas que poderia almejar na vida, desejou apenas saber assinar o nome, o que a insensibilidade humana jamais permitiria que acontecesse. AGRADECIMENTOS São muitas as pessoas às quais eu deveria agradecer por chegar a este ponto da minha história, mas, por conta do espaço, citarei algumas apenas. Começo pela mais importante de todas as mulheres da minha vida: D. Anita, a minha magnífica mãe. Ela, mais do que qualquer outra pessoa, foi a responsável pelo meu desejo de construir conhecimento e de compartilhá-lo generosamente com o mundo. Depois agradeço às outras mães que, na ausência dela, a vida me deu. Destaco a querida Edite, que, em muitos momentos, criou condições confortáveis para o trabalho continuar. Devo, sem dúvida, agradecer a Cléria Santana, pessoa querida, presente nos momentos mais complicados, engraçados e exóticos dessa jornada. Depois, agradeço aos docentes, em particular a Paulo García, o meu orientador, pela atenção, dedicação e empenho durante os vinte e quatro meses de curso; a Osmar Moreira por ter sido o primeiro a acreditar no meu projeto e em minhas possibilidades enquanto pesquisadora; a Suely Messeder que, nos seis últimos meses de trabalho, permitiu a minha participação em um grupo de pesquisa que me possibilitou discussões muito pertinentes ao projeto. Sou muito grata, também, a Cassandra Rios, por ter, conforme acredito, me escolhido para escrever sobre sua obra. E, acima de tudo, sou grata a essa força maior, que alguns chamam de Deus, por ter me conduzido no colo durante todo o percurso árduo, profícuo, excitante e extremamente prazeroso que agora concluo. Existe, talvez, uma outra razão que torna para nós tão gratificante formular em termos de repressão as relações do sexo e do poder: é o que se poderia chamar o benefício do locutor. Se o sexo é reprimido, isto é, fadado à proibição, à inexistência e ao mutismo, o simples fato de falar dele e de sua repressão possui como que um ar de transgressão deliberada. Quem emprega essa linguagem coloca-se até certo ponto, fora do alcance do poder; desordena a lei; antecipa, por menos que seja, a liberdade futura. (Foucault, 1988, p. 12). RESUMO A dissertação Escritas excessivas: disposições de lesbianidades na narrativa As traças, de Cassandra Rios é resultado de dois anos de estudo do romance As traças (2005), de autoria da paulista que ficou conhecida como “a papisa do homossexualismo brasileiro” (RIOS, 2005). A dissertação intenta analisar como o referido romance permite entrever a desmontagem de uma tradição discursiva sobre a homossexualidade, ao passo que aponta para a emergência de uma política em favor da diversidade de modos de vida. Não mais se trata da heteronormatividade que lê o feminino sob estruturas fincadas na domesticação e nas faces do patriarcalismo e, sim, de como a narrativa coloca uma escrita que desestabiliza conceitos normalizadores. Neste sentido, a estratégia adotada é seguir a trajetória de uma protagonista leitora que, ao reivindicar para si uma posição de mulher e de lésbica, perscruta escritos que estigmatizaram e patologizaramos(as) homossexuais, a fim de colocar em xeque esses discursos. Tal projeto, ao prever uma política identitária, encontra, em discursos encenados por outras personagens, limites, o que possibilita a reflexão em torno do conceito de identidade lésbica e de constructos de gênero. Focados em direção a uma política queer, que tem como propósito criticar o cenário cultural heteronormativo, os argumentos são respaldados pelos diálogos entre textos teóricos e cenas da narrativa que tornam visíveis discursos que desconstroem e descentralizam as ordenações culturais que expressam a dicotomia centro/margem. Estas possibilidades permitem situar a pesquisa no campo dos estudos pós-estruturalistas, referenciando-a por teóricos como Michel Foucault (1982; 1984; 1988) e a filósofa estadunidense Judith Butler (2000; 2008), dentre uma gama de teóricos(as) feministas ou que estudam a questão da identidade. O debate com críticos que abordam a identidade sexual visa compreender como os dispositivos da homossexualidade se fazem presentes na obra de Cassandra Rios e como são refletidos e problematizados. A inserção do trabalho no campo da Crítica Cultural se deve a esta possibilidade de questionar as dicotomias, os binarismos, apontando para a emergência das multiplicidades. Tanto os fundamentos teóricos, os objetivos, a metodologia, quanto a importância de retratar a temática, encontra, neste estudo dissertativo, perspectivas singulares de revelar impressões do queer e do feminismo lésbico na obra literária de Cassandra Rios. Palavras-chave: Homossexualidade/lesbianidade. Identidade. Constructos de gênero. Feminismo. Queer. ABSTRACT The dissertation Excessive writings: provisions of lesbianities in the narrative The moths, by Cassandra Rios is the result of two years of research on the novel The moths (2005), by the writer from São Paulo that became known as “the pope of Brazilian homosexuality” (RIOS, 2005). The dissertation intends to analyze how the novel allows glimpsing the disassembly of a discursive traditional about homosexuality, at the same time that shows the emergence of a policy in favor of diversity of lifestyles. This is not about the heteronormativity that reads the feminine under structures stiffed on domestication and on the faces of patriarchy but yes, how the narrative puts the writing that destabilizes normalizing concepts. In this sense, the strategy adopted is to follow the trajectory of a protagonist reader that, when claim to herself the position of a woman and lesbian, scan texts t hat stigmatizing and pathologizing the homosexuals, put them in check. This project by providing an identity policy, finds boundaries in speeches staged by other characters, what makes possible to reflect about the concept of lesbian identity and gender constructs. Focused on the direction of a queer policy that has as its aim to criticize the heteronormative cultural scenery, the arguments are supported by the dialogs between theoretical texts and scenes of the narrative that make visible speeches that deconstruct and decentralize the cultural orderings, expressing the dichotomy center/border. These possibilities allow situating research in the field of post structuralist studies, referencing it with theoretical like Michel Foucault (1982; 1984; 1988) and the American philosopher Judith Butler (2000; 2008), among a range of feminist theorists or other researchers that study the question of identity. The debate with critics that discuss the sexual identity aims to understand how the devices of homosexuality are present in the works by Cassandra Rios and how they are reflected and problematized. The inclusion of the research in the field of cultural critique is due to the possibility to question the dichotomies, the binaries, pointing to the emergence of multiplicities. Both the theoretical foundations, the objectives, the methodology, as the importance of portraying the theme, find in this study dissertation, unique perspectives to reveal impressions of queer and lesbian feminism in literary of Cassandra Rios. Keywords: Homosexuality/Lesbianism. Identity.Constructs Gender.Feminism. Queer. SUMÁRIO INTRODUÇÃO................................................................................................................... 10 1 VOZES LÉSBICAS: POR UMA POLÍTICA DE EXISTÊNCIA.......................... 17 1.1 A SUBJETIVIDADE LÉSBICA NA ESCRITA .......................................................... 18 1.2 TRAÇOS LÉSBICOS: MARCAS DO CORPO ........................................................... 26 1.3 UM OUTRO ÂNGULO DE VISÃO: DESIDENTIFICAR-SE .................................... 32 2 ENTRE TRAÇAS: LEGITIMIDADE E VISIBILIDADE......................................... 38 2.1 A EXPERIÊNCIA COMO FOCO ................................................................................ 39 2.2 AS TRAÇAS, UMA IMAGEM DO FEMINISMO LÉSBICO .................................... 45 2.3 LUGARES EXPROPRIADOS: SUJEITOS DE FRONTEIRAS ................................. 52 3 MULHERES AFETADAS E AS DESORDENAÇÕES DE SENTIDOS.................. 58 3.1 ÂNGULOS E FACETAS DO “ARMÁRIO” LÉSBICO .............................................. 59 3.2 O QUE CABE AFIRMAR? RUMORES NA ESCRITA ............................................. 68 CONCLUSÃO..................................................................................................................... 80 REFERÊNCIAS.................................................................................................................. 83 11 INTRODUÇÃO Na mitologia clássica, a jovem Cassandra, filha do rei Príamo e da rainha Hécuba, de Tróia, foi, ao mesmo tempo, presenteada e condenada pelo deus Apolo. Primeiro, ganhara dele o dom da profecia e, depois, quando se recusou a ceder a suas investidas sexuais, foi amaldiçoada: ela utilizaria com maestria o dom adquirido e faria previsões incontáveis e precisas, mas, nunca, jamais seria acreditada. Assim, sempre que tentasse alertar os troianos acerca de alguma desventura futura seria dada como louca e, por conta disto, ridicularizada. O fascínio pela mitologia clássica e a possível identificação com a pitonisa grega podem justificar o fato de a paulista Odete Rios Pérez Perañez González Hernández Arrelano ter se tornado, desde os treze anos de idade, Cassandra, ou, como ficou conhecida por legiões de leitores/as, do final da década de 1940 até o início dos anos 1980, Cassandra Rios. Assim como a profetisa de Tróia, Cassandra Rios foi, se não amaldiçoada, ao menos considerada maldita. Ao longo de, aproximadamente, quatro décadas de carreira, produziu, de forma intensa e visceral, uma literatura sobre a qual as instituições brasileiras do século XX não queriam ouvir ou falar. Rios se dedicou a escrever sobre assuntos variados e incômodos que iam de problemas sociais a sincretismo religioso, dentre inúmeros outros , contudo “a descrição da homossexualidade em cenários urbanos é a linha central e recorrente que permeia toda a sua obra” (SANTOS, 2003, p. 18). Seria equivocado atribuir à escritora paulista do século XX o pioneirismo na exploração da temática da homossexualidade na literatura brasileira. Maria Isabel de Castro Lima mostra que, antes de Rios, o tema já havia sido abordado por outros autores. Gregório de Matos, o Boca do Inferno, fez poemas sobre as lésbicas na Bahia ainda no século XVII. No final do século XVIII Joaquim Manoel de Macedo publica As Mulheres de Mantilhas, em que Inez e Izidora se apaixonam, mas no final se descobre que Izidora era um rapaz, travestido de mulher para servir ao serviço militar. O tema do travestimento aparecerá novamente pelas mãos de Guimarães Rosa, em Grande Sertão: Veredas (1956), no o[sic] amor silenciado do jagunço Riobaldo por Diadorim. Quando Diadorim morre, Riobaldo descobre que era uma mulher. (LIMA, 2009, p. 30). No entanto, dentre os autores que, de alguma forma, se propuseram a abordar a questão, foi Cassandra Rios que se ocupou das relações amorosas/sexuais entre iguais sobretudo entre mulheres como temática principal de toda a sua produção literária, o que lhe rendeu o título de pioneira da literatura lésbica no Brasil. 12 Desde o romance de estreia, A volúpia do pecado (1948), a autora que, ao longo da carreira, publicou mais de quarenta títulos1 se tornou muito popular, uma popularidade que cresceu de forma tão extraordinária no decorrer da sua trajetória que a levou, nos anos 1970, a ser citada como a escritora que mais vendia livros no Brasil, chegando a alcançar a marca de mais de 300.000 exemplares distribuídos em um ano. (PIOVEZAN, 2005). Em oposição à sempre crescente popularidade, Rios sofreu a desaprovação de diversos mecanismos que subtraíam o valor da sua obra ao classificá-la, simplesmente, como pornográfica. A este respeito, Rick Santos afirma: Num país onde aqueles que retêm o poder (editores, críticos, censores militares, membros da academia, revisores e empreendedores da imprensa etc.) para fazer a separação entre „Arte‟ e „cultura de massa‟ (leiam „qualidade‟ e „lixo‟ respectivamente) são altamente heterossexistas, misóginos, classistas e eurocêntricos, a própria distinção entre „qualidade‟ e „lixo‟ é um posicionamento político que tem de ser questionado e compreendido em relação a seu contexto sociopolítico e literário. (2003, p. 28). Sobretudo a crítica literária foi taxativa ao julgar que a escritora não tinha méritos para compor o rol dos grandes autores. Seus textos, principalmente por conta da temática, da linguagem extremamente acessível ao grande público, do apelo excessivo à sensualidade e da estruturação aparentemente pouco complexa, foram relegados à condição de subliteratura e, consequentemente, excluídos dos registros oficiais da historiografia literária nacional. A literatura produzida por Cassandra Rios foi, portanto, situada à margem do cânone literário brasileiro o que, sem dúvida, justifica o nosso imenso interesse pelo seu estudo. A leitura crítica de tal literatura é aqui possibilitada pela filiação ao campo dos Estudos Culturais, uma filiação que, inevitavelmente, permite uma abordagem dos estudos literários não apenas centrada nos recursos formais, mas, e sobretudo, naquilo “[...] que acentue as relações que o texto pode estabelecer com a vida social [...]” (BORDINI, 2006, p. 12). Tendo a pretensão de abarcar múltiplos discursos oriundos de lugares diversos e produzidos por sujeitos muito distintos, os Estudos Culturais intentam “ressocializar e rehistoricizar a grande arte, tornada abstrata nas mãos das elites, bem como promover as 1 Não dispomos de informações precisas acerca da quantidade de títulos publicados pela autora. Rick Santos (2003, p. 18) fala na publicação de “mais de 40 romances de grande sucesso”; Adriane Piovezan (2005, p. 9) se refere a “quase cinqüenta livros publicados”. Ao longo do texto, optaremos pela referência a mais de 40. 13 manifestações das classes populares e das minorias a um estado de dignidade cultural que não lhes é concedido” (BORDINI, 2006, p. 14). Stuart Hall, um dos “fundadores” dos Estudos Culturais, argumenta sobre a necessidade de este campo [...] instituir uma prática cultural e crítica genuína, que tenha como objetivo a produção de um tipo de trabalho político-intelectual orgânico, que não tente inscrever-se numa metanarrativa englobante de conhecimentos acabados, dentro de instituições. Volto à teoria [...] Não a teoria como vontade de verdade, mas a teoria como um conjunto de conhecimentos contestados, localizados e conjunturais, que têm de ser debatidos de um modo dialógico. Mas também como prática que pensa sempre a sua intervenção num mundo em que faria alguma diferença, em que surtiria algum efeito. (2003, p. 216-217). Nesse sentido, o estudo da literatura cassandriana representa a possibilidade de trazer para o cenário acadêmico a produção literária de sujeitos aos quais foi negada não só a oportunidade de constituírem suas narrativas de si como também de se inscreverem como protagonistas neste espaço cujo maior intuito deve ser a contemplação das diferenças. Desta forma e compactuando com a defesa de Santos (2003) acerca da importância da produção artística de Cassandra Rios para a literatura brasileira , este trabalho tem como proposta investigar em que medida a literatura cassandriana criou ângulos para a desmontagem de uma tradição de constructos discursivos acerca dos corpos das mulheres lésbicas, contribuindo, assim, para a constituição de uma política queer para estes sujeitos. Para tal, recorremos a um dos seus textos mais divulgados na década de 1970: o romance As traças2. A escolha dessa obra é aqui justificada não apenas por conta da popularidade alcançada na ocasião da primeira publicação3 ou mesmo em decorrência de esta fazer parte dos romances de Cassandra Rios reeditados no ano de 2005 pela Editora Brasiliense, sob a organização de Rick Santos; esta escolha foi, sem dúvida, motivada pelo que conseguimos ver em termos de complexidade na composição das personagens e pelo emaranhado de tensões que funcionam como uma boa síntese do conjunto da obra da autora. O livro, defendemos, 2 3 Em virtude da falta de registros oficiais acerca da obra da autora em questão, é difícil precisar a data de publicação do romance. Alguns autores apontam o ano de 1975, outros acreditam que o livro foi lançado entre o final da década de 1970 e o início dos anos 80. Segundo Rick Santos, o livro se configura um dos mais importantes na carreira da autora, em virtude da popularidade alcançada. 14 apresenta a maturidade intelectual da escritora tanto no que concerne ao uso da linguagem quanto no que concerne ao caráter analítico de um contexto sociocultural. É, aliás, a análise dos atos performativos das personagens e do que é por elas dito/não dito que direciona este trabalho. A constatação de que a protagonista Andréa assume o papel de leitora de uma cultura que, em consequência da sua forma de desejar, a marginalizou, é fundamental para a crítica aqui empreendida. Neste sentido, o trabalho de Michel Foucault (1988) acerca da construção discursiva das sexualidades no Ocidente permite compreender o movimento da personagem que, no seu desígnio de desvencilhar o desejo lésbico da noção de patologia ou de distúrbio, possibilita a percepção de que os homossexuais são produto de práticas discursivas engendradas no interior do que o autor chama de “dispositivos da sexualidade”. Segundo Foucault (1988), o sexo foi “colocado em discurso” no Ocidente. Assim, estas sociedades estão impregnadas de uma multiplicidade de discursos sobre a sexualidade pronunciados pela Igreja, pela Ciência, pelo Direito, etc. – cujo efeito é a produção e a multiplicação da categorização de “tipos” de sexualidades (LOURO, 2008) e a proliferação de mecanismos para controlá-la. No entanto, todo esse processo permitiu um efeito reverso, pois aqueles sujeitos colocados no lugar da patologia, do distúrbio, produziram, a partir daí, um contradiscurso, ou um “discurso de resistência” como definido por Foucault (1988). A protagonista de Rios, portanto, é lida aqui como este sujeito que produz uma leitura de resistência dentro de uma cultura misógina e homofóbica. Enquanto mulher e lésbica, Andréa é marcada pelo processo de marginalização que, historicamente, subjugou estes sujeitos e é esta marca, esta noção de pertencimento, que as teóricas feministas chamam de experiência, que vai ratificar o seu discurso de reação. É a pretensão de identificar no texto de Rios um discurso de reação que orienta os primeiros momentos deste trabalho cujo foco será direcionado a perscrutar uma personagem que assume um papel de leitora de escritos sobre homossexuais e que, ao adotar tal postura, reivindica uma posição de sujeito ou, como sugere Ricardo Piglia (2006), uma posição não pacífica. Assim, as tensões que transitam no universo da narrativa são entendidas como indícios de uma vontade de subversão de uma ordem hegemônica, pautada na heterossexualidade compulsória. No entanto, é preciso esclarecer que a protagonista cassandriana não dá conta de tal projeto, pois, na ânsia de “positivar” a imagem da lésbica, ela acaba por essencializar a homossexualidade, o que repete o processo de exclusões contra o qual pretende se rebelar. 15 É no sentido daquilo que enfatiza Judith Butler (2008), dos riscos das políticas das identidades repetirem o processo de dominação contra o qual pretendem se insurgir, que sublinhamos o problema do discurso de Andréa. A protagonista cassandriana pretende doutrinar, moldar comportamentos, em um evidente movimento centralizador e, mais que isto, os seus modelos parecem reproduzir a matriz da heterossexualidade compulsória a que se dirige a sua crítica inicial. De acordo com Guacira Louro (2008), ao se utilizar do conceito de performatividade da linguística, Butler evidencia que a linguagem que se refere ao sexo e aos corpos não faz apenas uma descrição deste sexo ou destes corpos, mas, no ato de nomear, produz os sujeitos e seus corpos. Desta forma, ao tentar definir a homossexualidade, a personagem cassandriana pronuncia um discurso que, mesmo oriundo de uma lésbica, acaba agindo no sentido de produzir uma determinada forma de viver a homossexualidade ou, ainda, um corpo lésbico com limites precisos. É a constatação de tal problema no discurso de Andréa que nos leva a propor a leitura do romance As traças a partir de outro ângulo: o de, utilizando o método da amputação fornecido por Gilles Deleuze (1979) que consiste em anular um elemento de poder da narrativa , subtrair, em momentos estratégicos, a voz doutrinária da protagonista a fim de trazer para o centro da investigação o silêncio pronunciado pela professora Berenice, mulher segura e sagaz que conduz Andréa em sua inserção no universo das relações homoeróticas, e o corpo estranho apresentado por Rosana, personagem de performance masculina que se declara lésbica. No sentido das proposições, procuramos, ao longo de três capítulos, demonstrar desdobramentos na literatura de Rios que, longe de configurar apenas uma possibilidade de constituir um espaço de visibilidade para as lésbicas, são, antes de tudo, um viés para a problematização de toda uma ordem discursiva que criou normas, regras, limites para os corpos e os desejos e que, mesmo submetida a processos de desestabilização, está, constantemente, tentando reiterar-se. O Capítulo 1, “Vozes lésbicas: por uma política de existência”traz a emergência de um sujeito que se propõe à leitura de escritos sobre a homossexualidade, com o objetivo de problematizá-los. Esta estratégia surge a partir da referência de O último leitor, de Ricardo Piglia (2006), que demonstra um leitor que deforma e ressignifica o que lê. O argumento que sustenta a releitura vem do trabalho de Michel Foucault que traz a noção de a sexualidade ter sido posta em discurso no Ocidente e ser monitorada por dispositivos. Daí a necessidade de reler os textos que dizem sobre a homossexualidade, pois este gesto denuncia a construção da 16 “espécie homossexual” relacionada à patologia. À parte este desejo, verificamos a criação de um ideal de lesbianidade, sustentado a partir da defesa de uma essência lésbica, que é reiterada com fins na produção do sujeito denominado lésbica que se configura uma identidade. Kathryn Woodward (2012) e Stuart Hall (2012), por sugerirem que a identidade precisa ser entendida como fragmentada e fraturada, são aqui utilizados para romper com o ideal de uma identidade fixa, imutável. Assim, demonstramos, no romance, indícios de desobediência ao imperativo da identidade seja pela recusa a incorporar regras comportamentais, seja através de corpos que se constroem em oposição ao modelo essencialista. Neste sentido, o capítulo delineia uma espécie de caminho para a análise da narrativa: discursos que problematizam um discurso hegemônico, mas que tentam se tornar hegemônicos e, por conta disto, são minados por outras forças. No Capítulo 2, “Entre traças: legitimidade e visibilidade”, exploramos a problemática da necessidade de um sujeito político denominado mulher e lésbica a partir da discussão empreendida por Butler (2008) acerca da questão da política da identidade, que pressupõe sempre um sujeito estável, definido em função de uma suposta unidade. Por meio de Butler, analisamos como a narrativa, a partir da configuração das personagens, problematiza a suposta unidade do sujeito que é posta em xeque pela teórica a partir do argumento de que não existe, necessariamente, uma relação de coerência entre sexo, gênero, prática sexual e desejo. A ideia de que essa relação seria natural também é uma construção discursiva de uma cultura heteronormativa. Como sujeitos que não são inteligíveis, as lésbicas são, portanto, uma possibilidade de crítica a esta cultura e ao sistema heterossexista. A presença lésbica no texto interroga a categoria de gênero e traz um outro conceito de mulher. A estratégia de leitura é tomar a imagem de traça como um operador que possibilita ver a quebra de conceitos dados. A função de traça é lida em uma associação com o conceito de desconstrução de Jacques Derrida (2001), a partir do qual percebemos como as traças desmontam e decompõem o discurso hegemônico pautado no binarismo, nas hierarquias, que excluem sempre um dos elementos do par. Também Jonathan Culler (1997) demonstra que a desconstrução opera no sentido de romper os termos do sistema. Judith Butler, Joan Scott, Guacira Louro foram fundamentais para se perceber que os teóricos que estudam as diversidades sexuais compartilham desta crítica desconstrutora e dão o rumo para que as questões de identidades sexuais sejam visíveis e menos manipuladas pela opressão machista e patriarcalista. 17 As questões discutidas nos capítulos anteriores levam à aposta em um devir queer na literatura cassandriana que já ocupa um lugar queer no cenário literário brasileiro. Desta forma, o Capítulo 3, “Mulheres afetadas e as desordenações de sentidos”, é mais um veio reflexivo em torno dos estudos queer, mais precisamente, de ler a partir do viés dos Estudos Queer. A partir de autores/as como CélinePerrin e Natacha Chetcuti (2002), buscamos demonstrar como o romance denuncia a opressão das lésbicas na cultura heteronormativa e anuncia a desestabilização do sistema, de suas bases, de suas crenças como a única possibilidade para lésbicas e gays. Assim, os atos das personagens permitem um diálogo com autores como EveSedgwick (2007) e Richard Miskolci (2007). Ler o queersignifica desautorizar o jogo do establishment e refundar o traço que interpreta a alteridade, ou melhor, o diferenciável. Para o âmbito do universo romanesco de Cassandra Rios, traduzir o queer para a narrativa As traças é focar as personagens Berenice e Rosana, pois são elas que dizem da diferença que não deseja ser tolerada. A função delas é desestabilizar, desorganizar, estabelecer o caos na narrativa. Assim, o capítulo traz o sentido de uma política queer e a apresenta como uma forma de ler a questão da cultura que reifica a identidade. Ainda pelo aporte oferecido por Berenice e Rosana, procuramos identificar as múltiplas identidades com as quais o desejo lésbico procura não homogeneizar. Além dos trabalhos de pesquisadores já citados como Michel Foucault (1982; 1984; 1988), Judith Butler (2000; 2008), são aparato teórico para o texto que começa a ser construído, Georges Bataille (1989), Jonathan Culler (1997), Tânia Navarro-Swain (1999; 2000; 2004; 2010, entre outros), Guacira Louro (2008), Antônio de Pádua Silva (2008; 2010) e outros que respaldam a leitura por uma perspectiva pós-estruturalista e dos estudos queer, certificada pelo campo da Crítica Cultural. O intuito é que este trabalho possa, mesmo que infimamente, contribuir para fomentar o debate acerca de múltiplas subjetividades no cenário acadêmico brasileiro do século XXI. 18 1 VOZES LÉSBICAS: POR UMA POLÍTICA DE EXISTÊNCIA O fato de a proliferação de discursos em torno do sexo ser uma marca na história recente do Ocidente, conforme analisa Foucault (1988), não implica, como se poderia pensar, a ausência de instituições voltadas para educar os indivíduos escola, igreja, família, etc. acerca de tal assunto. No que concerne ao lugar encerrado à mulher em tal contexto, não podemos ignorar que a elas, durante séculos, foi negada a condição de sujeito. Delas, o esperado era a passividade, a obediência e o silêncio em torno da sua sexualidade. Ao homem, por outro lado, coube a argumentação, a tarefa de denominar, a legislação em torno do sexo. A história acabou “relegando as mulheres a um destino biológico de „matriz‟ a ser fecundada, os homens reservam para si o papel de agente da sexualidade e da reprodução, relação perpetuada na sexualidade compulsória” (NAVARRO-SWAIN, 2010, p. 48). Às mulheres restaram, apenas, modelos de comportamento adequados ao cumprimento do seu destino natural, de subordinação à figura masculina e de recolhimento à segurança do lar. Se a sexualidade da mulher é concebida apenas em termos de uma produtividade – a sexualidade voltada para a procriação, para garantir a sobrevivência da espécie -, o que dizer do sexo praticado entre mulheres? Em outras palavras: como essa sexualidade é narrada e descrita? O Ocidente Cristão parece ter preferido não falar dessas relações. E, como afirma Navarro-Swain (2000), o que não é mencionado não existe. A Inquisição, no século XVII, não dispunha de uma palavra para denominar as mulheres julgadas sob a acusação de práticas homossexuais; elas não eram nomeadas, o que é muito significativo, pois é o ato de nomear que cria a imagem, o personagem no imaginário social. Como não havia uma denominação, às mulheres lésbicas, portanto, não era atribuída uma existência. A invisibilidade que acomete as lésbicas foi, possivelmente, a propulsora do desejo de se mostrar, de se afirmar enquanto sujeito, presente em grande parte da produção literária da escritora Cassandra Rios. Afirmamos isto porque, se assim não fosse, como conceber que uma mulher escritora, em uma cultura heteronormativa e misógina, construísse, no ano de 1948, as amantes adolescentes Lyeth e Irez de A volúpia do pecado? Que desejo moveria criações como ArielaA paranóica, 1969 , personagem que só foi capaz de encontrar o amor verdadeiro nos braços da bela Mercedes? Ou mesmo um romance com o título Eu sou uma lésbica (1979) no qual a protagonista Flávia, em virtude da distância da 19 mulher amada, faz de suas sandálias de tiras coloridas um fetiche? Podemos citar, ainda, o triângulo amoroso entre as internas Leda e Luciana e a freira Vanessa, em Muros altos4; a obsessão de Pascale pela ardente Nelita, em A noite tem mais luzes5, dentre outras inúmeras mulheres que protagonizam as narrativas com temáticas homoeróticas de autoria de Rios. Essas narrativas sobre mulheres que se envolvem afetiva e sexualmente com outras mulheres inserem, no cenário literário nacional, personagens até então vistas de forma estereotipada, na condição de protagonista; condição esta que lhes permite investir na constituição de narrativas de si. Desta forma, podemos identificar na produção literária de Cassandra Rios uma amostra daquilo que Mário César Lugarinho (2008, p. 20) chama de “literatura de subjetivação”, uma produção cujo intuito é romper com estereótipos e contornar “de modo eficiente a identidade homossexual, configurando alguma forma de individualização e, por conseguinte, subjetivação ao homossexual”. Nesse sentido, no intuito de observar o desenrolar desse processo, passamos à investigação dos atos performativos de algumas personagens do romance As traças, procurando dar ênfase a Andréa e a Berenice, figuras centrais da trama, e a Rosana, personagem que assume na narrativa um papel secundário. 1.1 A SUBJETIVIDADE LÉSBICA NA ESCRITA Data da década de 1970 a publicação da primeira edição do romance As traças, de autoria da escritora paulista que, dentre alguns pseudônimos, notabilizou-se por aquele que nos parece mais excêntrico: Cassandra Rios. O romance, ambientado na rotina de uma família da classe média paulista, da década de 1970, traz como carro chefe a avassaladora paixão e o posterior relacionamento amoroso/sexual, de Andréa – uma adolescente de 17 anos, estudante do colegial – por uma de suas professoras, D. Berenice, mulher madura e experiente. Jovem “bem criada”, idealista, segura, exemplar na conduta e nos modos, Andréa assiste ao declínio de sua estabilidade emocional e pessoal ao se confrontar com o aflorar de um desejo que, conforme acreditava, estivera desde sempre adormecido em seu corpo: o desejo de viver o amor/sexo com uma mulher. Para ela, as sensações que experimentava eram as evidências de que estaria acontecendo algo que “a vida inteira pressentiu” e que, de certa forma, “temia aclarar-se”. “A disposição da natureza. A noção final do que era: lésbica” (RIOS, 2005, p. 48). 4 5 Não há referências ao ano de publicação, no romance. Sem referência. 20 A juventude e a inexperiência de Andréa a empurram para uma busca insaciável por explicações acerca da natureza do desejo que a consumia. A adolescente empenha, então, todos os esforços para conseguir compreender aquilo que acreditava determinar a sua índole oculta6, aquele incontrolável desejo que a tornava diferente das outras mulheres que conhecia e aquela forma de conceber e utilizar o corpo e os prazeres que, em uma cultura que concebia a maternidade como destino final das mulheres e a prática heterossexual como condição sinequa non para a consolidação deste destino (NAVARRO-SWAIN, 2004), fazia dela uma estranha. De fato, na época explicitada no romance7, mesmo as mulheres que, em virtude da origem abastada, tinham a educação financiada em instituições de ensino voltadas para a formação de pessoas para ocupar espaços de prestígio no mercado de trabalho, como era o caso de Andréa, não estavam isentas da preparação para o desempenho do papel socialmente atribuído ao gênero feminino: cuidar da preservação saudável da instituição célula da sociedade, a família. Dentre os pilares do regime ditatorial que então dominava o país estava “proteger a instituição da família, preservar os valores éticos e assegurar a formação sadia e digna da juventude” (COSTELLA, 1970, p. 143). Obviamente, a consecução destes objetivos em muito dependia da manutenção da mulher em um lugar de subordinação. Neste cenário, a sexualidade heterossexual era um assunto para ser proferido apenas sob a vigilância institucional e nos meios autorizados para tratar de questões do sexo. E as práticas intoleráveis, como a homossexualidade, por quais meios poderiam ser expressas? E as experiências amorosas/sexuais8 entre mulheres, como eram proferidas e por quais vias? No contexto familiar, a protagonista não dispõe de quaisquer referências sobre homossexualidade. Vive com o pai, a mãe, o irmão caçula e a empregada. Sua família, de acordo com a sugestão do romance, é o modelo de família burguesa brasileira da segunda metade do século XX. O pai é o provedor das necessidades financeiras, enquanto a mãe tem a função de preservar a ordem do lar e de assegurar a educação dos filhos. Andréa divide o seu tempo entre a escola secundarista e as aulas de piano, financiadas com o intuito de garantir o refinamento e o acesso da jovem à alta cultura. Este quadro revela que, nesta representação de 6 7 8 A expressão equivale a uma espécie de essência que, segundo o texto de Rios, seria inerente a alguns indivíduos e, portanto, definidora do desejo sexual. O romance não traz referências explícitas acerca do ano em que a narrativa se passa. Podemos, no entanto, fazer alusão a uma data, início da década de 1970, a partir de algumas pistas que o texto fornece. Por exemplo, era desejo da protagonista, ao atingir a maioridade, ser presenteada pelo pai com o automóvel SP2, veículo considerado moderno e muito desejado pela classe média alta da época. O VW SP2 começou a ser comercializado no Brasil no ano de 1972. Para confirmar a informação, acessar: <http://www.vwsp2.com.br/historia/>. Ver Messeder, 2012. 21 família, não havia espaço para discussões sobre assuntos como a homossexualidade. Aliás, esta imagem inicial permite vislumbrar um cenário no qual esta questão sequer era cogitada ou mesmo imaginada. A narrativa sugere, portanto, um silenciamento acerca de questões relativas à homossexualidade no meio familiar. Para a jovem protagonista de As traças, os únicos meios disponíveis para pensar sobre essa questão, além da experiência palpável no gueto, são os livros. Assim, ela terá as leituras como recurso primordial para aprender sobre este novo mundo no qual começa a se inserir. A personagem vai, então, recorrer aos textos, ávida por respostas para os inúmeros questionamentos que sua mente temerosa, insegura e inquieta produz. A busca que começa a cultivar é, antes de tudo, por uma definição de homossexualidade, um conceito que, de alguma forma, possa dizer para ela, uma adolescente absolutamente inexperiente, educada no seio de uma família tradicional, imbuída de valores heterossexistas, como e o que é ser uma lésbica. Procurara explicações em leituras e não se contentara com nenhuma. Chegara a rir, como se fosse uma sumidade no estudo do visado problema do homossexualismo. Que absurdos supunham e procuravam inculcar para determinar a causa. Seguramente eram todas teorias falhas. Estava ali, com sua inteligência e raciocínio, capaz de provar que não se tratava absolutamente de nenhum distúrbio glandular ou hormonal, psicose, neurose, anomalia proveniente de traumas psicológicos, complexos ou vícios adquiridos na infância. Variante da erótica, sim, uma terceira alma, essencialmente feminina, com disposição à atração por pessoas do mesmo sexo, sem influência de nenhuma característica do sexo oposto. (RIOS, 2005, p. 80). O fragmento de texto transcrito é a demonstração de que Andréa, guiada por um rigor quase científico, buscou e resgatou informações disponíveis acerca da homossexualidade no contexto brasileiro da década de 1970. Apesar de o livro não informar as fontes consultadas pela personagem, podemos inferir que ela recorreu, sobretudo, a escritos oriundos da literatura médica que, à época, ainda concebia os/as homossexuais como portadores/as de tipos distintos de patologias9. O que nos interessa demonstrar, no entanto, é que o trecho 9 Acerca da patologização da homossexualidade feminina ou do homoerotismo feminino, como ela prefere , Nadia Nogueira (2008, p. 62) afirma: “foi diagnosticado como doença, passível de tratamento e cura, de acordo com as teorias científicas do século XIX, sobretudo depois dos estudos realizados pelo psiquiatra austríaco Richard Von Krafft-Ebing (1840-1902) que, no livro intitulado Psichopathiasexualis (1886), classificou as condutas sexuais a partir de padrões de normalidade e anormalidade. Esse trabalho tornou-se referência para os estudos da Antropologia Criminal e da Medicina Legal, que emergiram no final do século XIX e início do século XX no Brasil, norteando a padronização das condutas dos indivíduos.” No Brasil, os médicos Leonído Ribeiro e Antonio 22 ratifica que, mesmo na ânsia de entender o processo que atravessava e sendo, ainda, uma adolescente , a protagonista não flerta com a passividade que acomete tantos outros leitores. Ao contrário, propõe-se a uma elaboração crítica acerca dos textos que tem em mãos. Podemos dizer que, para Andréa, a leitura é o ponto de partida para toda uma discussão que será sustentada no decorrer da narrativa e que porá em xeque constructos sobre o desejo lésbico. Frustrada na tentativa de encontrar um significado de homossexualidade que pudesse atender às suas expectativas (até mesmo absolvendo-a de uma certa culpa por se sentir “diferente”), ela opta por uma outra estratégia de leitura e, então, seu objetivo, ao invés de aprender a ser lésbica através da leitura, se torna ler para compreender como os homossexuais foram inscritos no contexto histórico-cultural do Ocidente. Ao mudar o foco, a personagem cria uma atmosfera propícia para a compreensão de sujeitos como produto de práticas discursivas. No momento em que lê, a leitura se configura, para Andréa, como uma forma de sobrevivência. Mais que isto, a leitura se constitui em uma forma de existência. Tal possibilidade se dá em virtude da maneira como ela exerce o seu papel de leitora. Andréa “lê mal, distorce, percebe confusamente” (PIGLIA, 2006, p. 19). Os signos dispostos nas páginas que seus olhos ávidos perscrutam se abrem a uma multiplicidade de possibilidades de novos sentidos, de novas leituras. Assim, se, como diz Piglia (2006, p. 21), “na literatura, aquele que lê está longe de ser uma figura normalizada e pacífica”, Andréa é, antes de tudo, a leitora marcada pela indignação e pela recusa daquilo que lê sobre si. Por este motivo, é a leitora disposta, a todo custo, a rasgar as páginas que lê e a reescrever a sua própria história. A indignação e a recusa dos textos que conjecturam explicações sobre a questão homossexualidade a colocam em uma condição de crítica da cultura. Ao não aceitar, não ficar satisfeita com o que é dito sobre a homossexualidade, Andréa toma posse de certas condições para pensar sobre o papel da mulher lésbica ou sobre a marginalização deste sujeito no contexto do Brasil da década de 1970, e ela o faz a partir de um sentimento de pertencimento, de uma sensação de experiência. O lugar a partir do qual a personagem se coloca é “marcado pelo gênero, assumindo seu caráter ideologicamente interessado, no sentido do interesse que está presente em todo projeto de conhecimento” (QUEIROZ, 1997, p. 32). Assim, a personagem/leitora criada por Rios, diante das frustrações acumuladas durante a sua leitura, chega à conclusão de que não é possível aprender a ser homossexual Carlos Pacheco e Silva, guiados pelas teorias tipológicas de CesareLombroso, criaram a imagem da lésbica como criminosa, estigmatizando, desta forma, a conduta de mulheres que tinham práticas não heterossexuais. 23 através dos livros. Não há como ler o que se escreveu sobre a homossexualidade senão por uma estratégia de releitura destes escritos, uma releitura empenhada na desmontagem de toda uma tradição de discursos que, ao se tornarem hegemônicos, relegaram à marginalidade alguns sujeitos. Em outras palavras, é necessário, como sugere Piglia, ao se referir a um dos personagens leitores criados por Borges10, “ler de outro modo”, ter “liberdade no uso dos textos, a disposição para ler segundo o interesse e a necessidade” (2006, p. 27). Decerto que as leituras feitas por Andréa podem não ter sido de textos ficcionais11 e que o sentido de leitura tomado por empréstimo de Piglia (2006) está diretamente relacionado aos textos de ficção. No entanto, o próprio autor faz menção à ficção como uma “teoria da leitura”12. Dito de outra forma, o sentido de ficção diria também de uma posição do intérprete, além de que tudo poderia ser lido como ficção. É justamente esta noção que orienta a análise do ato de Andréa. Ao se permitir “ler de outro modo”, a partir de um lugar diferente, lançando mão de outro ponto de vista, a protagonista cassandriana está investindo em uma estratégia que tem como intuito desorganizar toda a ordem de um discurso opressor que se estabeleceu histórica e culturalmente. Andréa, então, assume o lugar de intérprete de uma tradição que forjou uma noção patológica de homossexualidade. Neste sentido, ela se propõe a produzir uma série de questionamentos que visam desestabilizar a associação entre desejo homossexual e qualquer espécie de anomalia. Este projeto leva a personagem a uma constante preocupação em demonstrar o amor lésbico como algo belo, revestido de romantismo, de sensibilidade e de sensualidade, numa tentativa de “criar um significado positivo da homossexualidade entre pessoas num contexto brasileiro” (SANTOS, 2003, p. 19). Para isto, o investimento acontece nos mínimos detalhes, nas minúsculas sensações. [...] De súbito, um olhar atravessou-lhe a mente em lembrança viva. A expressão dos olhos como que estilhaçou os mil arrepios, que desbarataram multiplicando-se. Debruçou-se sobre si mesma. O que estava sentindo a perturbava. Do cérebro, do pensamento, começava a gritar na carne. Estava possuída pela força penetrante do olhar de Berenice e imaginou, se ela a beijasse, se colasse o corpo no seu, se ao menos lhe segurasse a mão. Que emoção violenta transtornando tudo! Com que rapidez se apossara dela a presença daquela mulher. Era uma presença viva. (RIOS, 2005, p. 58). 10 11 12 A referência é a BORGES, Jorge Luis. Obras completas. São Paulo: Globo, 1998 (v. 1); 1999 (v. 2, 3, 4). A obra não esclarece o tipo de livro que a personagem lia. Fala-se em “leituras” cuja temática era a homossexualidade feminina. Pela reação da personagem aos textos lidos, supomos que se trate de textos científicos. Ver Piglia, 2006. 24 Ao passo que tenta construir uma imagem romantizada das mulheres que, como ela, se relacionam afetiva e sexualmente com outras mulheres, Andréa vai, também, problematizando a narrativa culturalmente produzida acerca destes sujeitos. Neste sentido, o texto tem alguns alvos bastante precisos. Dentre os mais significativos estão os discursos científico e religioso e o moralismo sustentado pelas instituições tradicionais do Brasil. Uma das tensões vividas por Andréa pode ser relacionada à percepção de que, ao se apaixonar por Berenice, passara a enfrentar um conflito entre os resquícios de uma educação que implantou “policiais”13 em seu corpo e o desejo, que lhe parecia incontrolável: E se esses policiais fossem derrubados por uma figura mais poderosa de que todos os conceitos morais e religiosos? E o que eram moral, religião, conceito? Ela faria o seu próprio credo. Rezaria sua oração. Para Deus? Seria o mesmo Deus? (RIOS, 2005, p. 67). Notemos que a personagem começa a pôr em questão não exatamente alguns preceitos morais e religiosos, mas a própria vontade de verdade que os sustenta. Mais do que uma resposta objetiva, a pergunta elaborada por Andréa “E o que eram moral, religião, conceito?” pretende mostrar que é possível duvidar das noções que explicam e tentam direcionar as nossas vidas. Além disto, sua fala demonstra que não só é possível pensar de outra forma, mas, também, agir de acordo com o próprio desejo. O questionamento da moral, da religião, de conceitos que se cristalizaram como a verdade é o questionamento dos fundamentos das próprias estruturas do pensamento ocidental. Se todas as verdades apreendidas no interior da cultura são constructos discursivos, então, não há para Andréa outra possibilidade senão a de reinventar-se enquanto sujeito, ou “fazer o seu próprio credo, rezar a sua própria oração e, possivelmente, para um outro Deus”. Parece que a juventude de Andréa não a destitui da capacidade de pensar o impossível em termos das convenções sociais. Sua preocupação em criar uma noção positiva da homossexualidade não se furta do ataque direto a credos e ao discurso científico. Esta necessidade se justifica pelo contexto social em que a personagem está inserida, um contexto que, conforme exposto, concebe pessoas como ela como uma degeneração da espécie humana. 13 Termo utilizado para definir uma espécie de autovigilância a que a personagem se submetia, em virtude do tipo de educação que recebera. 25 Recorrendo a Foucault, verificamos que a noção de homossexualidade que Andréa tenta desfazer foi construída no interior de um dispositivo discursivo que instaurou “um conjunto de regras e de normas, em parte tradicionais e em parte novas, e que se apoiam em instituições religiosas, judiciárias, pedagógicas e médicas” (1984, p. 9). Desde alguns séculos, no Ocidente, o sexo foi colocado no centro de uma importante “petição de saber” e todas as questões concernentes ao significado da nossa humanidade passaram a ser concebidas em relação a ele. A referência aqui não é ao sexo do ponto de vista da natureza, da biologia, mas ao sexo-discurso. Assim, tudo o que nos representa enquanto homens, mulheres, crianças, dentre inúmeras outras categorizações, foi colocado sob uma lógica do sexo. O homem foi transformado “no filho de um sexo imperioso e inteligível” e o sexo em “razão de tudo” (FOUCAULT, 1988, p. 88-89). Nesse sentido, entender a forma como se articulam sexo e poder é imprescindível para compreender como uma cultura constituída a partir da valorização de um discurso sobre o sexo lida com seus indivíduos. Acerca de tal relação, Foucault demonstra que o poder não age sobre o sexo na forma de repressão, aliás, segundo o teórico, “o poder não „pode‟ nada contra o sexo e os prazeres, salvo dizer-lhes não”. Por conta disto, a função do poder nas sociedades ocidentais seria equivalente à de um legislador: atribuir limites, marcar fronteiras, criar um regime binário que estabeleça o lícito e o ilícito, o permitido e o proibido, o normal e o anormal. Partindo deste pressuposto, podemos, portanto, concluir que o poder age criando a regra e é através da linguagem que este processo se concretiza; “[...] o domínio do poder sobre o sexo seria efetuado através da linguagem, ou melhor, por um ato discursivo que criaria, pelo próprio fato de se enunciar, um estado de direito. Ele fala e faz-se a regra” (1988, p. 93; 94). A linguagem, então, criou e consolidou uma norma em torno do desenvolvimento e das práticas sexuais. O comportamento monogâmico heterossexual fixou-se como o modelo, a referência e, desde que a sexualidade legitimada é a do casal heterossexual uma forma produtiva de viver a sexualidade , todas as formas de sexualidade inscritas fora deste limite são consideradas improdutivas, periféricas e, por este motivo, passíveis de serem mantidas sob a vigilância de mecanismos que visam evitar sua disseminação. Essa classificação das práticas sexuais a partir do seu potencial de produtividade tem origem no discurso científico. Se, até o final do século XVIII, as práticas sexuais eram regidas por três códigos, o direito canônico, a pastoral cristã e a lei civil, o século XIX traz a scientiasexuallis (FOUCAULT, 1988). À medicina, neste sentido, coube caçar sexualidades periféricas, descrevendo-as e nomeando-as, então, à luz da ciência. Assim, a sodomia, antes vista como pecado ou como crime, passa a corresponder a uma perversão. Em sua busca de 26 uma verdade sobre o sexo, a ciência se dizia, diferentemente de outros discursos, portadora de uma neutralidade, o que, de certa forma, garantia sua credibilidade e a fazia inquestionável. O discurso científico, no entanto, jamais fora isento, pois correspondia a imperativos morais e aos anseios do discurso dominante. O homossexual do século XIX torna-se uma personagem: um passado, uma história, uma infância, um caráter, uma forma de vida; também é morfologia, com uma anatomia indiscreta e, talvez, uma fisiologia misteriosa. Nada do que ele é, no final das contas, escapa à sua sexualidade. (FOUCAULT, 1988, p. 50). Enquanto a heterossexualidade é encorajada, considerada a forma de exercício da sexualidade saudável, tida como a própria natureza, a homossexualidade é inscrita na condição de patologia. Mais que isto, o homossexual, que já não é um pecador ou um criminoso, mas, uma espécie, deve ser destinado a tratamento médico-psiquiátrico. Assim, quando atesta ser a homossexualidade um distúrbio, a ciência está legitimando uma ordem cujo interesse primordial é manter a heterossexualidade como referência, como a norma, no topo de uma cadeia de relações instituída culturalmente. Logo, o papel da personagem/leitora de As traças é pôr em xeque esta narrativa: mais do que o discurso religioso, é o discurso científico que Andréa questiona. Ao julgar serem absurdas as explicações sobre as causas da homossexualidade feminina e ao se propor defini-la de outra forma, ela está produzindo aquilo que Foucault (1988) aponta como “discurso de reação”. Dito de outra forma, um sujeito homossexual está exigindo o direito de falar de si e reivindicando legitimidade dentro de uma cultura que o relegou a uma condição marginal. Acima de tudo, está questionando o processo de naturalização das coisas e das pessoas instaurando a dúvida sobre os fundamentos da nossa cultura , o que representa a única possibilidade de construir uma sociedade em que as diferenças possam estar em constante interação. O decurso reflexivo da personagem tem como resultado o desejo de materializar um corpo lésbico. Andréa demonstra pretender uma forma de representação que possa ser palpável e que assegure a ela a condição de sujeito. O próximo tópico pretende demonstrar o desenrolar deste processo. 1.2 TRAÇOS LÉSBICOS: MARCAS DO CORPO 27 É de grande relevância em As traças o papel assumido pela protagonista Andréa, de leitora de escritos sobre a homossexualidade, pois, por meio de suas leituras, temos, além da problematização de constructos discursivos, a denúncia da “tortura moral a que eram submetidas as mulheres que optavam por uma postura social transgressora” (FACCO; LIMA, 2004), na época, no Brasil. As leituras realizadas pela personagem, é preciso salientar, não se esgotam nos livros que lhe servem de suporte: elas se expandem para a realidade palpável das mulheres que vivenciam experiências afetivas e eróticas com outras mulheres, o que, possivelmente, justifica o fato de toda a narrativa ser conduzida pela sua ótica. É a partir das impressões da protagonista que temos acesso aos acontecimentos e, ao mesmo tempo, somos levados/as a conhecer, ou a julgar que conhecemos, as outras personagens do romance. Mesmo que, em alguns momentos, os diálogos nos coloquem em contato direto com elas as outras personagens , ainda é de Andréa a função de dar o veredicto acerca de suas personalidades, numa clara demonstração de que o movimento da protagonista foi construído no sentido de decodificar este novo e ignoto mundo no qual começa a se inserir. Importa-nos tornar visível, contudo, que, se a protagonista, por um lado, torna evidente a construção da “espécie homossexual” associada a distúrbios orgânicos e/ou psíquicos (FOUCAULT, 1988), por outro, demonstra um desejo, uma tentativa obstinada de estabelecer uma ordem, um mundo ordenado das lésbicas cujos corpos e performances teriam contornos muito bem definidos. Poderíamos, assim, em um primeiro momento, aceitar a hipótese de que o investimento em regras de comportamento ou em um modelo de performance para as lésbicas é uma estratégia cujo intuito seria forjar uma representação livre de associações negativas visando conseguir uma imagem passível de ser tolerada no contexto social para estes sujeitos os quais, de acordo com Linda Hutcheon (1991), podem ser denominados de “ex-cêntricos”, por sua condição marginalizada em relação ao padrão, ao hegemônico, ao centro. Em favor desta hipótese, podemos citar uma gama de recursos utilizados com o fim de alcançar tal representação positiva. É notória, em algumas personagens, a preocupação em preservar as características daquilo que culturalmente foi instituído como feminino. Assim, as principais lésbicas do romance são minuciosa e cuidadosamente descritas, de modo a resguardar algumas características peculiares. Há um significativo esforço no sentido de afirmar que os sujeitos tratados no texto são mulheres, em nada diferentes da grande massa que circula diariamente na paisagem urbana. 28 Andréa não era vaidosa ao extremo, apenas sabia se distinguir dentre as outras, reconhecer quando era a mais bonita, quando a cobiçavam e invejavam. [...] Sabia que podia se impor, se quisesse; que um dos atributos, que ajudava noventa e nove por cento, era sua beleza física. Não uma beleza apenas estética, mas bem dosada de simpatia e graça, de sensualidade e atração, de simplicidade e um certo quê de mistério, de comunicabilidade e, ao mesmo tempo, de caráter excêntrico e fechado. Andréa realmente tinha nos traços a perfeição das proporções e do colorido, do som e da força do seu intelecto. (RIOS, 2005, p. 32). Andréa é dotada de uma série de atributos que acentuam uma “feminilidade”. A beleza física singular, regada por doses de simpatia, de graça e de sensualidade, não só a inscreve nos limites de um determinado modelo de feminino, como a coloca, ao ser exagerada, numa posição privilegiada com relação às demais mulheres posição que lhe permitiria “se impor, se quisesse”. Predicados como “simpatia”, “graça” e “sensibilidade” são, neste sentido, precisamente marcantes, pois cumprem a função de reiterar este ideal de feminilidade. De qualquer forma, parece evidente que todo o esforço da narrativa se situa no sentido de demonstrar que o desejo de Andréa por uma igual não lhe tirou o direito de pertencer à categoria das mulheres. Da mesma forma que Andréa, Berenice constrói uma imagem feminilizada. A professora é descrita pela amante como uma femmefatale. Seu porte físico, o comportamento, a maneira de se vestir, tudo em torno dela contribui para materializar uma mulher de atributos apreciáveis: bonita, sensual, extremamente sedutora. Cabelos negros. Sobrancelhas bem feitas, dois riscos fortes sobre uns olhos perfurantes, de expressividade franca. Nariz reto, traços proporcionais, formando um rosto bonito e exótico. Boca rasgada, num corte firme, de lábios acentuados, queixo ligeiramente quadrado. O porte elegante num perfeito alinhamento do pescoço com os ombros e os braços bem torneados. Seios firmes. [...] Tinha beleza pela proporção. Pôde reparar nas coxas, marcando-se sob o avental entreaberto, elemento estético de sua figura altiva, envolvida por uma sombra estranha que a fazia diferente de todas as outras mulheres. O tom da voz, o modo de olhar, tudo natural. (RIOS, 2005, p. 26). A persistência na tarefa de construir personagens próximas a um determinado padrão de feminino poderia ser lida, ainda, como uma estratégia para desvencilhar a imagem da lésbica de estereótipos como o “sapatão” ou a “machona”, tipos estigmatizados. O distanciamento das protagonistas destas representações pode ser concebido como uma tentativa de torná-las passíveis de serem toleradas pela sociedade. Neste sentido, a tática seria 29 distanciar-se das representações estigmatizadas de lesbianidade, a partir da marcação da diferença. Este processo, por sua vez, aparece carregado de juízo de valor e cria uma hierarquia entre as representações de mulheres que vivenciam experiências homoeróticas. Lésbicas de performance feminina como a própria Andréa e, até certo ponto, Berenice são colocadas em oposição a lésbicas consideradas masculinizadas. Tal oposição se consolida a partir da inserção, no romance, de uma “machona”: ela é Rosana, uma colega de classe com quem, no auge da paixão por Berenice, Andréa flerta e acaba se envolvendo sexualmente. Andréa reparou nos cabelos curtos, cortados bem rentes, a voz pausada e insinuante, o olhar revelador. Magra, alta, desportista, traços finos. O tipo. [...] Igual a muitas que haviam despertado sua curiosidade ao cruzar com elas na rua, num cinema, num teatro, enfim, numa identificação inegável da índole oculta. (RIOS, 2005, p. 27). Rosana é descrita como “oprotótipo”14 da mulher homossexual masculinizada e, por este motivo, é posta por Andréa em um patamar de inferioridade com relação às demais. Dentre as personagens lésbicas e aquelas que a narrativa classifica como “entendidas” 15, ela é a única delineada a partir de uma referência de masculinidade, o que a deixa mais vulnerável que as outras à intolerância social: é apontada nas ruas, as colegas de classe evitam sua companhia e é tratada como concorrente pelos rapazes, quando as conquistas amorosas estão em jogo. As situações constrangedoras às quais a personagem está exposta decorrem dos seus trejeitos, do modo de se vestir, da forma de falar, dos gestos másculos, enfim, de tudo o que a faz diferente das protagonistas. Se, por um lado, Rosana tem a vantagem de não camuflar a sua orientação sexual, como fazem as outras personagens, por outro, sua figura distorce o modelo de lésbica feminina que, de acordo com a percepção de Andréa, é o ideal. As mulheres que optam pela construção de corpos masculinizados não são, no entanto, as únicas alvejadas pela crítica de Andréa. Ela se põe, também, a reprovar aquelas que vivenciam formas diversas de práticas sexuais. Entre os heterossexuais, destacava os bissexuais como lástima, os depravados, os masoquistas, os sádicos e tantas outras degenerações. Mas se sentir essencialmente, genuinamente homossexual, lésbica, era lindo, puro, normal. NORMAL. Ela pensava que a palavra sobressaia como se em negrito em sua mente. (RIOS, 2008, p. 82). 14 15 Expressão usada no romance As traças para a referência a lésbicas masculinizadas. Mulheres que não se declaram lésbicas, mas que têm experiências eróticas com outras mulheres. 30 Observemos que Andréa começa a classificar as formas de desejo e as práticas sexuais a partir do binarismo puro x impuro. As mulheres que não obedecem a uma referência, seja homossexual ou heterossexual, são consideradas impuras, enquanto aquelas que se enquadram perfeitamente em um dos modelos são, de acordo com a ótica da personagem, puras ou genuínas. Há, portanto, a defesa de uma exclusividade na forma de viver a sexualidade que nega a multiplicidade de formas de desejos. O pensamento da personagem é ancorado em algumas crenças bastante contestáveis. Poderíamos citar, por exemplo, a que se refere à existência de uma essência homossexual um atributo natural que tornaria singulares alguns indivíduos. Tal crença sustenta a ideia de um desejo homossexual inato, ou seja, nascido com a própria pessoa, que lhe conferiria, em virtude desta condição, um caráter de autenticidade, de fixidez e de imutabilidade. Assim, a mulher portadora de uma essência lésbica que experimentasse práticas outras que não as homossexuais seria promíscua. Além disto, mesmo que tentasse negar ou esconder sua “natureza oculta”16 esta, um dia, iria aflorar e a sua verdadeira identidade seria revelada. Andréa percebeu a germinação da semente no chão virgem dos seus sonhos ainda não realizados. Uma semente oculta na profundeza do ser e que até então nenhum raio de sol atingira para atiçar a vida, para fazê-la estender raízes, e agora o sorriso daquela mulher a aquecia para que se retorcesse na vibração pujante, para se abrir e brotar! Era um fiozinho de arrepio que a percorria toda, num reconhecimento do solo onde se plantara! Há muito tempo pressentia que alguma coisa assim estava oculta dentro dela e que iria manifestar-se de modo que não pudesse mais negar o que sabia de si para si mesma. (RIOS, 2005, p. 14). Estava acontecendo o que temera aclarar-se definitivamente em sua vida. A disposição da natureza. A noção final do que era: lésbica. (RIOS, 2005, p. 48). Essa suposta natureza homossexual é constantemente reiterada pela protagonista. É um ato, segundo os seus propósitos, necessário, pois, como afirma Louro (2008), ao se referir aos processos de fabricação de sujeitos, estes são sempre continuados e sutis. Desta forma, a essência homossexual é, a todo custo, protegida, como se houvesse a necessidade de preservá-la incólume. 16 Referência ao desejo lésbico. 31 Observemos um trecho de um diálogo entre Andréa e Bárbara, uma colega da classe da protagonista, acerca do momento da descoberta desta natureza oculta de algumas mulheres. O diálogo é iniciado por Bárbara: Então me responda, quando você percebeu que era assim? Atravessaram a avenida. Andréa mordiscou os lábios. Olhou para o rosto atento de Bárbara. Ela estava espontânea, displicente, natural. Respondeu: Eu não percebi: eu senti. Você percebeu ou sentiu? Acho que as duas coisas, foi instintivo. Percebi que estava olhando pra mulher, em vez de olhar pra homem. E como você analisou o que sentiu? Eu não analisei; entendi, e depois que entendi foi que analisei. Você confunde, troca as bolas, mas o que foi que analisou? Que não haveria mudança em mim, e o negócio era seguir vivendo, sem medo, com muita coragem e naturalidade. Eu não poderia negar o que você viu em mim, como me viu, como me identificou, porque eu também identifico as pessoas, por mais encobertas e enclausuradas que estejam, como se uma força inevitável rasgasse o disfarce para mostrar a alma daquilo que se é. (RIOS, 2005, p. 64-65). A “alma daquilo que se é” não pode ser entendida como outra coisa que não uma suposta essência da pessoa. O esforço de Andréa atende ao projeto de afirmação de uma identidade lésbica, uma identidade que, tal como ela a entende, assimila uma perspectiva essencialista dos indivíduos, significando que há a crença na existência de certas características que seriam, por assim dizer, partilhadas por todas aquelas mulheres que se denominam lésbicas. A não manifestação destas características faria da mulher uma falsa lésbica, uma depravada ou, ainda, uma degenerada. Algumas questões levantadas por Woodward podem ser muito pertinentes para ajudar a discutir esse posicionamento. [...] a identidade é fixa? Podemos encontrar uma „verdadeira‟ identidade? Seja invocando algo que seria inerente à pessoa, seja buscando sua „autêntica‟ fonte na história, a afirmação da identidade envolve necessariamente o apelo a alguma qualidade essencial? (WOODWARD, 2012, p. 13). A perspectiva de uma identidade é primordial para a personagem, pois ela está investindo em um projeto político, o que implica, necessariamente, a corporificação de um sujeito em nome de quem a representação política é aspirada. Mas, que problemas estão implicados nisto? Com frequência, a noção de identidade o que comprovamos na intervenção de Andréa envolve reivindicações essencialistas acerca de quem pertence e de quem não pertence a um grupo identitário e isto quer dizer que para uma identidade se firmar 32 enquanto tal é necessário reprimir tudo aquilo que, porventura, possa ameaçá-la. Este processo diz da repressão das diferenças que produzem a multiplicidade de desejos e de formas de expressão existentes entre os indivíduos. No caso da identidade lésbica que, supostamente, Andréa pretende defender, a ameaça está, sumariamente, em figuras como Rosana, que não atendem ao ideal de feminilidade, ou em mulheres que a personagem considera degenerações, a exemplo das bissexuais e das masoquistas. Se o nosso suporte intelectual para a análise do romance As traças perpassa pela convicção de que as identidades, como afirma Hall (2012, p. 108), “não são nunca unificadas”, que são “cada vez mais fragmentadas e fraturadas”, então verificamos, nas concepções defendidas pela personagem, um problema, sobretudo porque o seu caráter parece doutrinário. Andréa vive a perscrutar as mulheres tentando determinar quais seriam as lésbicas verdadeiras, as genuínas, as que sabem ser lésbicas, de acordo com um código de ética por ela elaborado e tendo como fim positivar a imagem destes indivíduos, um esforço que pode assumir, na obra, um caráter normativo, já que o modelo defendido a própria imagem, de mulher lésbica feminina, intelectualmente privilegiada, preocupada com a discrição , em função de ser a narrativa guiada pela ótica da protagonista e de ser ela quem interpreta as outras personagens, passar a ser um referencial. Desta forma, talvez seja possível afirmar que Andréa é a representação de uma voz que, no desejo de proteger, de advertir, de representar positivamente a comunidade lésbica, acaba, também, instaurando um regulador de comportamento. Rick Santos (2005, p. 10), na apresentação crítica da última edição do romance As traças, afirma ter sido o livro, na década de 1970, concebido como uma espécie de “manual”, “um catecismo amoroso, com dicas de locais e advertências contra certos perigos à comunidade”. E não é difícil, mesmo para o/a leitor/a distraído/a de As traças, perceber-se diante de um manual. Já nas primeiras páginas, tem-se a sensação de estar sendo inserido/a em um curso sobre homossexualidade. As ações e, sobretudo, as reflexões da protagonista servem ora como fonte de esclarecimentos, ora como tentativa de demonstrar a homossexualidade como apenas mais uma forma de desejo ou, ainda, um alerta ao público sobre os conflitos que rondam a decisão de assumir uma sexualidade destoante do padrão. Independentemente da sensação experimentada nas primeiras páginas, o/a leitor/a pode perceber em Andréa uma vontade de verdade, uma pretensão de, a partir de suas próprias impressões, criar uma norma para as lésbicas. 33 Talvez seja pertinente afirmar que Andréa, ao descobrir que os sujeitos são produzidos discursivamente, investe em um ambicioso projeto cuja intenção é, também, a de produzir sujeitos. Se, discursivamente, é possível forjar identidades, então, a personagem utiliza a descoberta para reinventar este sujeito denominado lésbica, despindo-o dos estigmas e configurando novas narrativas. Podemos, então, resumir a intervenção de Andréa da seguinte forma: ela tem o mérito de problematizar os constructos sobre a homossexualidade sobretudo quando desdenha as noções científicas e religiosas acerca dela , mas continua atrelada à necessidade de uma unidade, de uma referência fixa. A protagonista, portanto, cai em uma armadilha, ao não conseguir perceber que “um modo da dominação funcionar é mediante a regulação e produção de sujeitos” (BUTLER, 2008, p. 22). São os corpos das mulheres lésbicas que a regulação de Andréa almeja: ela quer doutriná-los, moldá-los, fazê-los conforme o que lhe parece politicamente correto. Se, como afirma Silva (2008, p. 50), desde a sua gênese, o corpo feminino, “nunca foi interpretado totalmente como de direito das mulheres”, pois sempre foram os homens médicos, educadores, sociólogos, dentre outros os responsáveis pela legitimação de uma gama de discursos que pretendiam educá-lo, a protagonista de As traças nos permite visualizar uma mulher tomando posse do seu próprio corpo. Isto, no entanto, não assegura emancipação. Contraditoriamente, a voz feminina de Andréa estabelece limites para o corpo. De modo geral, esta é a primeira imagem de Andréa que pode ser depreendida da leitura da obra: a de uma jovem que tenta, desesperadamente, construir uma lésbica bela, envolta em pureza e que, de certa forma, conserva resquícios dos modelos heterossexuais. Mas, nem tudo, no entanto, ocorre da forma como a protagonista almeja: outras personagens estão na obra para criar uma tensão e romper com as suas concepções não libertárias. O próximo tópico insere na discussão Berenice e Rosana, personagens que, a partir da conduta, das experiências demonstradas com o próprio corpo e, sobretudo, pela desobediência às leis heterossexistas protagonizam conflitos que possibilitam a leitura da obra a partir de outra ótica, de um novo ângulo. 1.3 UM OUTRO ÂNGULO DE VISÃO: DESIDENTIFICAR-SE Uma segunda possibilidade de leitura do romance As traças perpassa pela experiência das personagens Berenice e Rosana. Para a viabilidade de um tal leitura é 34 necessário trazer estas personagens para o centro da discussão e tentar mapear o potencial crítico de cada uma. Mas, como trazer para o centro da discussão, Berenice, que, muitas vezes, aparece apenas por meio dos pensamentos de Andréa ou mesmo Rosana, cujo papel na narrativa é secundário e gira em torno das necessidades da protagonista? Talvez um caminho pertinente para a realização dessa tarefa inclua retornar àquilo que Deleuze (1979) chamou de “Um manifesto de menos”, ao refletir sobre o teatro de Carmelo Bene. Em seu percurso reflexivo, Deleuze aponta para o aspecto crítico do teatro ou o teatro crítico, que seria um teatro criador do novo (MENDONÇA, 2011). Em outras palavras, o filósofo aponta para um tipo de teatro que seria a própria crítica; uma crítica que funciona a partir de uma estratégia de subtrair, de cortar, de amputar. O funcionamento dessa engrenagem pode ser compreendido se pensarmos na subtração, em uma peça teatral, do/a personagem para quem tudo converge, aquele/a que se configura o elemento de poder na produção. A ausência do elemento de poder promoveria, inevitavelmente, a emergência de outros possíveis. Se o elemento que, no texto, é considerado fundamental é também aquele que emperra a proliferação de outros, neutralizá-lo constituiria uma estratégia para tentar fazer emergir vozes que pulsam no universo da narrativa e que, de outra maneira, jamais poderiam ser ouvidas. Seria como amputar um elemento de poder na estrutura do texto os elementos que compõem e representam um sistema de poder para viabilizar, por conseguinte, outras singularidades. Parece-nos evidente que, em As traças, a protagonista Andréa, no percurso do seu investimento em uma identidade lésbica, assume o lugar de elemento de poder na estrutura textual. Ao assumir tal posição, a personagem mantém marginalizadas e excluídas todas as representações de lesbianidades que não correspondem ao seu ideal. Diante disto, apenas o deslocamento do seu ponto de vista soberano permitirá o surgimento de outros discursos. Amputar a voz de Andréa, neste sentido, é desautorizá-la a fim de possibilitar a emergência de outros pontos de vista e de outras vozes. Ao lançar mão da estratégia deleuziana, podemos tirar do plano central a compulsão por uma identidade, alimentada por Andréa, e trazer para a discussão a tensão estabelecida por Berenice e levada ao limite por Rosana acerca do significado de uma identidade lésbica. Acreditamos que, a partir destas duas personagens, é possível produzir uma leitura frutífera do ponto de vista do que interessa à crítica cultural, considerando, sobretudo, que elas subvertem as suposições do texto. Começando por Berenice, poderíamos argumentar que o seu lugar na narrativa, diferente do que se pode imaginar, contrasta com o posicionamento de Andréa, pois, longe de 35 pretender doutrinar, esta parece se opor ao projeto de regulação do comportamento das lésbicas e, se pode parecer perigoso afirmar que seu discurso estabelece uma oposição ao discurso de Andréa, ao menos podemos dizer que a personagem resiste a se deixar perscrutar e, de certa forma, se empenha em desdenhar as convenções. Durante toda a narrativa, Berenice se esquiva a se deixar revelar por completo. A maior parte das informações sobre ela é fruto dos mexericos entre suas alunas e das impressões da protagonista sobre a sua personalidade. O romance nos dá informações acerca de sua competência profissional, do seu envolvimento afetivo com D. Cristina outra professora da escola em que leciona , da existência de um noivo (que aparece apenas por citação e que, segundo comentários, é mantido para preservar as aparências), das suspeitas de envolvimento sexual com outras alunas e da paixão avassaladora que vive com Andréa. Muito pouco, no entanto, se pode afirmar sobre seus sentimentos ou sobre a sua forma de conceber o mundo. Por mais que deseje, o/a leitor/a que a professora explique os seus atos, esta explicação não vem. Nem mesmo o narrador parece dar conta da personagem que, ao longo do texto, permanece uma estranha. Alguns acontecimentos parecem ensaiar a dissipação da obscuridade em torno da docente, a exemplo de quando, ao descobrir que Andréa se tornara, por sua causa, viciada em substâncias proibidas, ela demonstra desespero e, compulsivamente, chora, temendo pelo destino da amante: mas nada que nos dê um veredicto sobre sua personalidade. Aqueles/as leitores/as que chegam ao final da narrativa ficam perplexos/as ao se depararem com a informação de que a própria mãe de Andréa fora amante de Berenice. Os detalhes da história, no entanto, não são revelados, o que contribui para a manutenção do mistério em torno da personagem. Nem mesmo os diálogos entre as amantes, na alcova, são capazes de dissolver as dúvidas (ou mesmo do/a leitor/a) e, algumas vezes, parecem até acentuá-las. Andréa olhou à volta. Perscrutou as paredes, os móveis rústicos espalhados distantes uns dos outros. Cobriu o corpo com a coberta que puxou debaixo de si, ajeitou os cabelos e perguntou de repente: Por que me trouxe aqui? Você planejou? Sabia que eu também queria ser sua? Que estava ficando doente de tanto pensar? Me trouxe aqui só para fazer sexo, para me possuir? Só por desejo? Faz isso sempre? Louquinha, claro que não. [...] Nunca fiz isto com ninguém, é a primeira vez. Nem poderei esclarecer com honestidade porque e como a trouxe, porque foi uma loucura, um impulso, como se eu estivesse sob o efeito de uma hipnose. Vi-a sair do colégio e calculei tudo rápido; quando percebi e tomei conta do que fazia, a estava chamando. Não me conformo, nós duas 36 aqui, o que fiz. Eu sonhava, vivia pensando, via você sob meu corpo e eu agindo no seu corpo. (RIOS, 2005, p. 183). Em alguns momentos, Berenice parece cínica, dissimulada, farsante. No auge da sua maturidade intelectual e emocional, age como se estivesse debochando das pessoas e, sobretudo, das convenções sociais. O status de professora não é suficiente para frear seus impulsos e para fazê-la recuar de suas intenções. A única coisa que realmente parece lhe interessar, o seu motivador, o regulador de suas ações, o seu único senhor é o desejo e é em nome dele que ela ultrapassa limites, fere a ética, mente, trapaceia e destrói. Berenice não quer se enquadrar em um modelo passível de ser esgotado. Ela não consegue e não quer ser contornável. A impossibilidade de estabelecer qualquer certeza acerca da mestra provoca em Andréa sensações diversas e perturbadoras: decepção, medo, tristeza, insegurança, ódio e desespero a acometem. Sobre Berenice, ela conclui: Ela vivia! Simplesmente. De acordo com os seus gostos e vontades, e sua personalidade era só aparência. Não haveria luta nem sofrimento, se quisesse tê-la. Ele viria com a mesma facilidade com que fora para Bárbara. Só assim poderia explicar o fato e o modo como Bárbara tocara no assunto. (RIOS, 2005, p. 44). E é fato que, mesmo pretendendo amputar a voz de Andréa, ainda temos que recorrer a ela, pois são suas impressões que nos apresentam Berenice: enquanto leitores/as, não dispomos de grandes oportunidades de estar em contato direto com a professora. Ela está sempre presente na narrativa, mas, por intermédio das outras personagens que, constantemente pensam ou falam nela. Sua fala é marcada de silêncio, um silêncio incômodo que diz de uma atitude subversiva e debochada. As escassas informações nos levam à convicção de que a personagem foge ao controle da voz narrativa assim como à exata percepção de Andréa. Há, em torno dela, uma aura de mistério que impede a sua decifração. Em quase todo o romance, há um único momento em que Berenice parece querer se mostrar. Ela toma a palavra e tenta uma autodenominação. Somos duas traças. disse a professora. Traças? Por quê? Eu não quero ser traça, prefiro ser um cogumelo branco do mato, você já viu? É tão lindo, tão branco, parece um pompom de algodão, mas é venenoso... Eu sou a traça, pertenço à família dos tineidas e dos tisanuros, talvez do gênero lepisma. Sou aquilo que destrói pouco a pouco, não vê o franjar das minhas asas e as unhas em forma de casco? 37 Não são cascos! Prefiro que você seja uma cigarra. Traça. Sou traça! Tentando passar despercebida entre os outros, sinto-me como a traça que se esconde entre as costuras dos livros para, no fim, morrer esmagada entre suas páginas. (RIOS, 2005, p. 226). Como, então, ler Berenice na obra? O que estaria representando a sua fala silenciosa? Talvez suas próprias palavras nos deem uma pista. Ela é uma traça17 e, como tal, sua potência está em roer coisas. Outras questões imediatamente se impõem: mas o que esta traça estaria tentando roer? ou, ainda, o que a sua atitude de deboche poderia estar sugestionando? Talvez a sua atitude demonstre uma afronta ao discurso legitimador de uma heteronormatividade, mas, também, uma afronta à vontade de verdade e à ordenação das coisas que a intervenção de Andréa pretende estabelecer. Berenice parece querer demonstrar que qualquer tentativa de normalização, venha ela de onde vier, é problemática. É por isto que ela vive na tensão entre ora aparentar obediência às regras ora desdenhá-las. Seu comportamento é dissimulado, próprio de alguém que está brincando com as convenções e, sobretudo, zombando de princípios éticos e morais: envolve-se com alunas adolescentes; é “caso” de uma colega de trabalho; tem um noivo (que não foi o único) com quem, segundo insinuações, mantém uma vida sexual. Poderíamos argumentar que essa personagem representa uma vontade de desordenar todo e qualquer tipo de ordem, inclusive a que Andréa pretende instaurar. Podemos, aqui, lançar mão do conceito de mal sugerido por Bataille, para tentar compreender o universo da personagem: ela é uma maldita; sua performance representa “o princípio oposto de uma maneira irremediável à ordem natural, que está nos limites da razão” (1989, p. 27). Ao desestruturar a própria ordem da narrativa, Berenice denuncia a opressão a que as lésbicas estão submetidas dentro das estruturas do tradicional discurso masculino e afirma que a ordem patriarcal não funciona. Comungando com esse princípio de desordem está Rosana: ela representa a afirmação de uma identidade e de um corpo que não assimilou as normas de inteligibilidade de gênero (BUTLER, 2008). Em outras palavras, ela representa um espectro de incoerência com relação à pretensão de coerência entre sexo, gênero, prática sexual e desejo estabelecido pela cultura. É uma personagem situada no lugar do nojo, do repúdio, do estranhamento. Rosana é a mulher lésbica que carrega no corpo as marcas de uma desobediência que a tornou abjeta. Dentre as personagens da narrativa, ela é a representação do execrável, 17 Traça é a designação popular de diversos tipos de insetos, cuja atividade é lesiva para uma série de objetos. Roupas, móveis, livros são alvos constantes do inseto. 38 daquilo que, por exigir uma existência e não aceitar ficar no plano do oculto, foi condenado ao gueto. É o corpo repudiado pela sociedade que, por este motivo, se tornou vulnerável a formas diversas de agressões. É preciso, então, tentar verificar o que a tensão discursiva entre essas personagens implica, o que a posição de Rosana e o silêncio de Berenice podem revelar. É preciso, sobretudo, observar o silêncio, pois ele pode ser a própria chave que permite o acesso a outro lugar. Um lugar devir. Um devir outro. Um lugar do possível, do permitido, do múltiplo. 39 2 ENTRE TRAÇAS: LEGITIMIDADE E VISIBILIDADE A marca de invisibilidade que paira sobre alguns sujeitos exigiu, desde sempre, que estes se preocupassem com o desenvolvimento de estratégias, das mais diversas ordens, voltadas para a produção de condições capazes de garantir uma existência social. Parece extremamente necessário para qualquer grupo que almeja conquistar direitos, ou mesmo legitimidade, a criação de uma linguagem própria. Assim aconteceu com o feminismo que, com o intuito de promover visibilidade política para as mulheres investiu em uma linguagem que pudesse representá-las adequadamente. (BUTLER, 2008). A configuração de uma linguagem pressupõe, também, a construção discursiva de um sujeito, um ser de contornos muito bem definidos em nome de quem será instituída uma luta e serão feitas as reivindicações. Desta forma, o significado, por exemplo, de ser mulher ou de ser negro está intrinsecamente relacionado a critérios estabelecidos acerca do que é favorável à política. Os domínios da representação política e lingüística estabeleceram a priori o critério segundo o qual os próprios sujeitos são formados, com o resultado de a representação só se estender ao que pode ser reconhecido como sujeito. (BUTLER, 2008, p. 18). Nesse sentido, cabe questionar acerca dos outros sujeitos, os que não atendem aos critérios da política de representação, mas que também sofrem discriminações em decorrência de raça, de gênero ou de orientação sexual. Além disto, podemos perguntar, ainda, se os sujeitos podem realmente ser representados a partir de uma referência que seja única, estável e coerente. O romance As traças nos fornece subsídios para discutir as questões enunciadas. À denúncia de uma construção cultural da homossexualidade, outras questões se somam e encontram na superfície da narrativa um espaço propício para o debate. O texto cria não só as condições para a reflexão, como a possibilidade de pôr em xeque as narrativas que lhe conferem legitimidade. Acreditamos que essa possibilidade de leitura pode ser viabilizada a partir de uma imagem inserida no romance: traças. A ideia de traças como aquilo que corrói, que, aos poucos, vai destruindo, que instaura a desordem oferece um suporte para ver de outra maneira, por vias não convencionais. 40 Neste capítulo, utilizaremos a imagem de traças como um operador de leitura. Através deste conceito, procuraremos demonstrar como o termo se constitui uma metáfora que permite entrever na obra um movimento crítico que se constrói a partir da desconstrução de toda noção de ordem cujo propósito é a regulação dos sujeitos. 2.1 A EXPERIÊNCIA COMO FOCO A vontade de instituir uma voz com autoridade para falar sobre a homossexualidade marca toda a trajetória da protagonista de As traças que, com este intuito, reivindica para si uma experiência lésbica.18 Nesse sentido, a experiência se apresenta como um elemento fundamental no ato de leitura realizado pela personagem, pois é o que subsidia a releitura dos textos sobre a homossexualidade e o processo de ressignificação deste conceito. Na verdade, Andréa tem a convicção de que somente a sua experiência é capaz de lhe conferir respaldo para reavaliar a tradição escrita que a patologizou e, ao mesmo tempo, instrumentalizá-la para compor suas próprias narrativas de si, pois, do seu ponto de vista, somente a experiência pode conferir legitimidade às narrativas acerca dos sujeitos. É preciso salientar que a orientação sexual de Andréa, em muito divergente do modelo criado e sustentado culturalmente como símbolo de normalidade para o gênero feminino, não a levou a abdicar, em nenhum momento, do direito de se definir como mulher. Ao contrário, Andréa parece entender ser esta uma posição estratégica do ponto de vista político. Quando se declara uma lésbica, portanto, uma mulher que afirma um desejo, uma prática sexual diferente daquela que é considerada a expressão da natureza, da normalidade, Andréa tem a vantagem de poder lançar mão de pressupostos das teorias feministas para marcar um lócus discursivo. Por meio desta estratégia, ela se coloca como elemento central da significação dos textos que se propõe a ler e realize a leitura não mais em busca de um sentido único, de uma verdade original, mas de acordo com a sua própria necessidade de mulher lésbica. A leitura que Andréa realiza, pautada em uma experiência, tem o mérito de demonstrar que a escrita e, ainda, a leitura institucionalizada, legitimada dos textos que abordam a questão da homossexualidade não são, sob quaisquer circunstâncias, sexualmente 18 traças - traçar, delinear 41 neutros. Ao invés disto, são leituras voltadas para a manutenção do poder de valores hegemônicos de uma cultura que privilegia o masculino, o branco e, sobretudo, o heterossexual. Neste sentido, sua crítica pretende, antes de mais nada, [...] pôr em questão a centralidade do sujeito masculino como ponto de referência a partir de onde são avaliados, julgados e definidos os valores de tal cultura, o que tem significado para a mulher, o Outro do masculino, uma posição hierarquicamente inferior quanto aos atributos (e às atribuições) que lhe são socialmente conferidos. (QUEIROZ, 1997, p. 104). A utilidade de uma leitura realizada a partir de uma noção de experiência não deve, contudo, esconder os problemas implicados nesta opção. Para Scott, a experiência, tanto concebida por meio de “uma metáfora de visibilidade” quanto por qualquer outro modo que tome o significado como transparente, “reproduz, mais que contesta, sistemas ideológicos dados” (1998, p. 302). Isto acontece porque o projeto de apoiar-se na experiência pode impedir [...] o exame crítico do funcionamento do sistema ideológico em si, suas categorias de representação (homossexual/heterossexual, homem/mulher, branco/negro como identidades fixas imutáveis), suas premissas sobre o que essas categorias significam e como elas operam, e de suas ideias de sujeito, origem e causa. (SCOTT, 1998, p. 302). A colocação sugere que a aposta em uma noção de experiência, ao mesmo tempo em que pode parecer uma tática imprescindível e inquestionável, pode, também, contribuir para manter a invisibilidade em torno das condições que se fizeram necessárias para a ratificação do sujeito detentor da experiência. Conforme identifica Vera Queiroz (1997), o apelo à experiência exige “uma identidade sexual definida como essencial e privilegia experiências associadas a essa identidade”. Assim, se, por um lado, utilizar-se da experiência no ato de leitura pode assinalar legitimidade e autoridade para a leitora Andréa e sua leitura, por outro lado, recorre à condição de ser lésbica como um dado essencial, o que, concomitantemente, exige que tal condição seja produzida ou conquistada. A crença na necessidade de possuir uma identidade é justificada pelo fato de que, no contexto do Ocidente, esta é considerada a condição ideal para uma pessoa: ter uma identidade centrada, o comando do ser, entendido como a obrigatoriedade de possuir um eu que torna o indivíduo sujeito. Como observa Donna Haraway (2004, p. 220) acerca do pensamento ocidental, “não ter a propriedade do eu é não ser sujeito e, portanto, não ter 42 capacidade de atuação”. É por este motivo que Andréa defende, de forma enfática, a existência de uma lésbica genuína, portadora de uma natureza detentora de certas características que a tornaria singular em um universo de pessoas que compartilham experiências homoeróticas. É por isto, também, que ela tenta delinear o que seria uma lésbica, quais os seus contornos, as performances adequadas, enfim, tudo que é capaz de demarcar os limites deste sujeito em cujo espectro ela se reconhece. Tornar palpável este sujeito é, antes de tudo, condição para a sua própria existência. Podemos conceber, então, que o movimento da personagem cassandriana é orquestrado em torno da perspectiva de um sujeito político, que ela denomina como mulher e lésbica, capaz de reivindicar legitimidade. Sendo esta inferência pertinente, cabe trazer a discussão em torno da questão da política da identidade apontada por Butler (2008) que, partindo das concepções dos feminismos, afirma que, historicamente, o termo mulher foi concebido como passível de denotar uma identidade comum, uma essência universal que acompanha mais da metade das pessoas que habitam o planeta. Neste sentido, a luta pela visibilidade política das mulheres empreendida pelos movimentos feministas pressupôs, sempre, a necessidade de um sujeito estável, permanente, definido em torno de uma suposta unidade e denominado por um termo único. Colocando-se em uma posição de questionamento destas concepções, a teórica norte-americana afirma: Se alguém „é‟ uma mulher, isso certamente não é tudo que esse alguém é; o termo não logra ser exaustivo, não porque os traços predefinidos de gênero da „pessoa‟ transcendam a parafernália específica do seu gênero, mas porque o gênero nem sempre se constitui de maneira coerente e consistente nos diferentes contextos históricos, e porque o gênero estabelece interseções com modalidades raciais, classistas, étnicas, sexuais e regionais de identidades discursivamente constituídas. (BUTLER, 2008, p. 20). Assim, duas questões são, precisamente, ressaltadas pela autora. A primeira, “o gênero nem sempre se constitui de maneira coerente e consistente”, sugere que não necessariamente haverá uma correspondência entre o sexo biológico, o gênero e, tampouco, o desejo sexual, correspondência esta discutida em termos do que Butler (2008) chama de inteligibilidade de gênero. A ideia de que seria natural uma correspondência entre sexo, gênero e desejo é construída discursivamente. Assim, se acreditamos que uma pessoa biologicamente “fêmea” deve exibir atributos “femininos” e desejar sexualmente homens é porque vivemos em um mundo em que a norma que regula a organização social é a heterossexualidade. Logo, não existe uma natureza que justifique tal modelo, mas dispositivos 43 que os constroem e mantêm. Diante disto, não é possível considerar que as construções de gênero sejam estáveis. A segunda questão para a qual a teórica chama a atenção diz das interseções políticas e culturais imbuídas no processo de constituição e manutenção dos gêneros: os contextos sociais e culturais nos quais se situam as pessoas estão, constantemente, exercendo influência nas subjetividades e, consequentemente, no que se chama de identidades. A categoria “mulheres”, portanto, ao pretender ser globalizante, acaba por se firmar como normativa e, ao ignorar outras dimensões demarcadoras de privilégios, como, por exemplo, raça, excludente. Nesse sentido, a formulação sugere que, ao invés de pensarmos em termos de uma categoria disposta paralelamente às outras, quando projetamos cartografias dos indivíduos, é mais rentável pensar em uma movimentada intersecção, na qual, segundo Cláudia Costa: [...] vários vetores de diferença estão em constante sobreposição, deslocando uns aos outros, abrindo espaços intermediários (in-betweenspaces) ou interstícios nos quais o sujeito se posiciona, não importando quão provisoriamente. (2002, p. 81). É evidente que os indivíduos e estamos, aqui, nos referindo àqueles denominados mulheres experimentam situações tão múltiplas quanto é possível falar da multiplicidade do que se pode denominar suas identidades. Por este motivo, seria inconcebível que um “significante estável”19 (mulher) fosse suficiente para dar conta da diversidade diante da qual as feministas se encontram. Nem mesmo a utilização do termo no plural abarcaria tamanha heterogeneidade de demandas, de desejo, enfim, de subjetividades de mulheres. É neste sentido que Butler elabora a sua crítica à questão da política e ao conceito de representação. De acordo com o argumento da teórica norte-americana, política e representação se configuram como termos polêmicos, pois: Por um lado, a representação serve como termo operacional no seio de um processo político que busca estender visibilidade e legitimidade às mulheres como sujeitos políticos; por outro lado, a representação é a função normativa de uma linguagem que revelaria ou distorceria o que é tido como verdadeiro sobre a categoria das mulheres. (BUTLER, 2008, p. 18). 19 V. Butler, 2008. 44 Observemos como a protagonista de As traças vivencia essas tensões explicitadas por Butler. A representação se configura para ela como algo crucial, absolutamente indispensável. No entanto, este sujeito que tenta representar é, na verdade, o produto de um discurso da cultura. A lésbica que Andréa tenta forjar, e que lhe parece ideal, é apenas uma das inúmeras formas de expressão da lesbianidade possíveis.O próprio romance vai permitir esta constatação ao fazer proliferar outras condutas, outros modos de vida, enfim, outras representações encarnadas em diferentes personagens. Tratando, ainda, sobre a construção política do sujeito do feminismo, podemos concluir que esta se vincula a objetivos de legitimação e de exclusão (BUTLER, 2008) e é, justamente, a partir desta noção que alguns sujeitos serão alvo das reivindicações feministas enquanto outros serão constantemente invisibilizados, apagados, na história do movimento. Os alvos da política feminista foram sempre os sujeitos de gêneros “inteligíveis”. Estes são os que instituem e mantêm “relações de coerência e continuidade entre sexo, gênero, prática sexual e desejo” (BUTLER, 2008, p. 38). Os espectros de incoerência e descontinuidade concebíveis apenas em função da existência de normas de continuidade e coerência são proibidos, constantemente, em um processo que, inicialmente, se dá de forma oculta e que termina por ser naturalizado. A matriz cultural por intermédio da qual a identidade de gênero se torna inteligível exige que certos tipos de „identidade‟ não possam „existir‟ isto é, aquelas em que o gênero não decorre do sexo e aquelas em que as práticas do desejo não „decorrem‟ nem do „sexo‟ nem do „gênero‟. (BUTLER, 2008, p. 39). A mulher que se relaciona afetivamente com outra mulher estaria, portanto, rompendo a linha “sexo, gênero, prática sexual e desejo” e, por esta razão, seria dentro de uma prática discursiva na qual a heterossexualidade compulsória jamais havia sido questionada e continuava a ser a norma o proibido e, como tal, os seus interesses não estariam incluídos na agenda do feminismo. Mais que isto, elas eram apagadas, ocultadas no discurso das feministas. Beatriz Preciado (2012) apresenta uma noção bastante precisa da invisibilidade a que são submetidas muitas mulheres especialmente aquelas que mantêm relações homossexuais no discurso do movimento feminista que ela chama de conservador20. 20 Preciado (2012) usa o termo “conservador” para se referir ao feminismo anterior à onda crítica dos anos 1970 e 1980 que culminaria em importantes revisões no movimento. 45 Segundo a teórica, os projetos revolucionários destes movimentos objetivaram “um feminismo cinza, normativo e puritano que vê nas diferenças culturais, sexuais ou políticas, ameaças a seu ideal heterossexual e eurocêntrico de mulher”. Dessa forma, quando o movimento feminista lutava por direitos jurídicos, pela ocupação de cargos na política, por postos importantes no mercado de trabalho, pelo direito de tomar decisões concernentes ao próprio corpo, sobretudo quando o que estava em jogo era a sexualidade para falar apenas de algumas pautas deste feminismo conservador a que se refere Preciado (2012) –, sua luta contemplava apenas alguns sujeitos dentre todos aqueles que estavam vulneráveis a formas de opressão decorrentes do gênero. Toda a luta destes movimentos visava, então, as mulheres brancas, de classe média e, sobretudo, heterossexuais, aquelas que, ao preservar a sua “feminilidade”, sustentariam, também, o modelo de mulher idealizado culturalmente e que se refletia no movimento feminista. Concepções feministas, no entanto, terão uma importante contribuição no conceito que a personagem cassandriana tem deste sujeito denominado mulher, que ela reivindica, tanto no que tange ao desejo de um sujeito uno, alvo da representação, quanto na questão de pensar para as mulheres outros espaços para além do lar e do casamento. Cabe enfatizar, portanto, que o fato de apontarmos o feminismo como lócus discursivo para as personagens cassandrianas não pretende, necessariamente, camuflar as crises entre militantes do movimento feminista e lésbicas, uma relação que, segundo GilbertaSoares e Jussara Costa (2012), “tem sido historicamente marcada por tensões localizadas no campo epistêmico e no político”. Pensemos, então, as interfaces entre a mulher estamos, aqui, pensando na representação do sujeito do feminismo e a lésbica. Conforme Patrícia Lessa (2003, p. 5), “o Feminismo, como marco epistemológico e político, possibilitou-nos pensar na organização sexuada e hierárquica da sociedade”, uma sociedade marcada por polarizações tais como certo versus errado, macho versus fêmea, branco versus negro, dentre inúmeros outros pares. Neste contexto, a mulher foi marcada como o oposto do sujeito legítimo, o homem, e taxada a partir de noções como passividade, natureza, sensibilidade, etc. Assim, apesar do seu papel significativo, o feminismo, em sua ânsia por uma representação de mulher, excluiu diversas subjetividades, como a lesbianidade, que jamais foi tida como prioridade no seio do movimento e, silenciando acerca da experiência da lesbianidade na vida das mulheres, contribuiu significativamente para a manutenção da sua invisibilidade. 46 O questionamento à heterossexualidade obrigatória não teve espaço na formulação epistemológica e na agenda política do movimento feminista brasileiro, tendo sido priorizada a agenda relacionada às vivências de mulheres heterossexuais, como a contracepção, o aborto, a esterilização, a gravidez e o parto. (SOARES; SARDENBERG, 2011, p. 6). Foram as militantes lésbicas assim como as militantes negras que, ao considerarem não apenas as diferenças intergêneros, mas, também, as diferenças intragênero, obrigaram a pensar não em um termo único para designar o contingente de sujeitos que o feminismo pretendia representar. Assim, ao invés de “mulher”, a exigência passou a ser “mulheres” (NAVARRO-SWAIN, 2000). O texto de Cassandra Rios, desta forma, se situa na discussão em torno de uma política em favor de um grupo de mulheres que estava à margem das reivindicações dos próprios movimentos feministas que, no Brasil, de acordo com Ana Alice Costa e Cecília Sardenberg (2008), assumiram formas diversas de lutas, diferentes facetas e levantaram bandeiras diversas21. 2.2 AS TRAÇAS, UMA IMAGEM DO FEMINISMO LÉSBICO Algumas visões enaltecidas pelas teóricas críticas do feminismo, como Judith Butler, propiciam um importante suporte para discutir, a partir do romance As traças, questões como política e representação. A forma como a personagem Andréa narra a identidade da mulher lésbica, baseada em uma suposta essência, nos permite perceber que o sujeito de uma política é sempre forjado, em um processo contínuo e persistente. Em outras palavras, o sujeito de uma política é, inevitavelmente, uma construção. Teresa de Lauretis (1999, p. 217), em sua crítica ao feminismo, ratifica a noção da construção de sujeitos políticos ao identificar que “o sujeito do feminismo é uma construção teórica (uma forma de conceitualizar, de entender, de explicar certos processos e não as mulheres)”. Assim, esta mulher que Andréa reivindica é também um constructo, proposto para atender às necessidades de um grupo de pessoas inserido em um determinado contexto histórico-cultural e não um espelho que reflete a “realidade” ou “as realidades” das mulheres. Essa questão nos leva a outra igualmente importante: para Andréa, afirmar-se mulher não é, apenas, uma estratégia para conseguir visibilidade; é, também, uma espécie de 21 De acordo com Costa e Sardenberg (2008), para garantir às mulheres liberdade e igualdade de direitos, os movimentos feministas brasileiros já foram sufragista, anarquista, socialista, comunista, burguês e reformista. 47 caminho inevitável. Esta colocação é sustentada pelo argumento de que, para ela, o sexo biológico determina o gênero da pessoa. Pelo que sugere a narrativa, é em função do sexo biológico que a personagem apreende uma performance que legitima o seu pertencimento à categoria mulher. Assim, em sua visão, um corpo que tem uma genitália reconhecidamente de fêmea, uma vagina, é, inevitavelmente, um corpo de mulher. E ser mulher pressupõe corresponder, até certo ponto, a imperativos culturais. Essa forma de interpretar o sexo, em sua relação com o gênero, valida a noção já problematizada por teóricas feministas das duas últimas décadas, de este ser tido como um dado natural do qual não é possível se afastar e que conduz os indivíduos a um destino inteligível: o destino de ser mulher ou de ser homem. Butler, por exemplo, defende o ponto de vista de que, assim como o gênero, o sexo é culturalmente construído, o que implica dizer que o sexo existe dentro de uma rede de significações que lhe determina sentidos. Ela conjectura, ainda, que “talvez o sexo sempre tenha sido gênero, de tal forma que a distinção entre sexo e gênero revela-se absolutamente nenhuma” (2008, p. 25). Uma visão mais precisa sobre essa noção pode ser apreciada na seguinte colocação: [...] o „sexo‟ é um constructo ideal que é forçosamente materializado através do tempo. Ele não é um simples fato ou a condição estática de um corpo, mas um processo pelo qual as normas regulatórias materializam o „sexo‟ e produzem essa materialização através de uma reiteração forçada destas normas. (BUTLER, 2000, p. 154). Nesse ponto, podemos identificar o que consideramos um dos motivos do paradoxo na interferência de Andréa que, apesar de tornar visível que os sujeitos são construídos por meio do discurso, não consegue fugir do essencialismo. A questão talvez esteja em não perceber que o próprio corpo, como sugere Butler (2000), é, em si mesmo, uma construção. Ao tomar o corpo como natural, a personagem não percebe que os corpos não têm uma existência significável que anteceda a marca de gênero. Ao não conseguir perceber que o próprio sexo é constituído discursivamente, também não percebe que as estruturas binárias de sexo e gênero, mantidas por normas culturais hegemônicas, cumprem a função de estabelecer limites para as possibilidades de configurações de gênero entre os indivíduos na sociedade. Em uma análise da obra de Butler, Sara Salih (2012, p. 112) conclui que “em vez de simplesmente nascermos „mulher‟, somos chamadas a assumir o nosso sexo”. Butler explica este processo a partir do conceito de “interpelação” do qual se apropria. 48 O conceito de interpelação é utilizado por Butler (2000) para se referir à maneira como as posições de sujeito são atribuídas e assumidas através do ato pelo qual a pessoa é chamada. Isto significa que o processo de interpelação não é um ato unilateral: para que funcione, é necessário que o indivíduo se reconheça no papel que lhe é conferido e, acima de tudo, o aceite. A interpelação é a lei funcionando para constituir os sujeitos. Mas o sujeito pode reagir à lei de maneira a desestabilizá-la ou mesmo enfraquecê-la, o que não quer dizer que seja possível se colocar em uma instância exterior a ela, mas que é possível desobedecer, pois é nela que os atos de insubordinação devem ocorrer. Mesmo os sujeitos que resistem à própria construção estão apoiados na lei para fazê-lo e o seu agenciamento deriva do fato de estar enredado nas mesmas estruturas de poder contra as quais se rebela. Tal perspectiva possibilita a subversão da ordem. A lei regulatória pode se voltar contra si mesma, produzindo pontos que colocam em xeque o seu próprio caráter hegemônico e inquestionável. Ao refletir acerca das constatações de Butler, Salih (2012, p. 112) presume que “deve ser possível assumir o sexo de maneira a desestabilizar a hegemonia heterossexual”. É neste sentido que podemos apontar a viabilidade do empreendimento de Andréa: a sua convicção de que o sexo, inevitavelmente, produz mulheres conhece seus limites na configuração de uma mulher que não é heterossexual. Dito de outra forma, a personagem evidencia a existência de mulheres que estão fora do discurso produtivo da heterossexualidade enquanto norma reguladora da cultura pelo fato de serem lésbicas. Temos nesse empreendimento uma consonância com a crítica ao feminismo realizada pelas mulheres lésbicas. Referimo-nos ao questionamento da heterossexualidade compulsória. Conforme afirma Navarro-Swain (2004), o lesbianismo surge no movimento feminista como a máxima recusa aos valores e ao sistema patriarcal e é por este motivo que o ponto fulcral desta crítica é a heterossexualidade: a heterossexualidade que rege as relações sociais, que está na base da constituição dos papéis de gêneros e da definição dos lugares que os indivíduos ocupam na sociedade. Se, como insiste Navarro-Swain (2004), o lesbianismo, nos anos 1980, reaparece fazendo coro à reflexão que interrogava a categoria “gênero” naquilo que é o seu maior fundamento, a naturalização da divisão binária da sociedade em dois sexos o que pressupõe a heterossexualidade , então, as personagens cassandrianas demonstram um prenúncio desta perspectiva ao assumirem, de outra maneira, o sexo. A essa altura parece evidente o quanto é importante para as mulheres pôr a heterossexualidade em questão: a heterossexualidade está na base do sistema que mantém o poder masculino sobre elas e, numa lógica cujo poder é masculino, a mulher não tem outro 49 papel senão obedecer aos ditames culturais. Nem mesmo a própria sexualidade lhes é dada como direito: usufruir do próprio corpo e fazer escolhas só é possível, portanto, ao passo que é questionada a heterossexualidade como a expressão de uma ordem natural. A mulher lésbica é, neste sentido, a alternativa de uso do corpo e dos prazeres. É precisamente esta possibilidade que as personagens de As traças apresentam para os/as leitores/as. Mas, como dito anteriormente, a questão não se esgota aqui. Uma observação de Navarro-Swain nos remete a outras reflexões: Se por um lado a contestação da heterossexualidade contribui para um aprofundamento do debate na modificação das estruturas mentais e representacionais, o próprio lesbianismo é uma questão enquanto categoria, pois na dissolução das identidades em frações infinitesimais, o que significa ser lésbica? (1999, p. 110). A despeito do romance, podemos observar que é uma preocupação das personagens se autodefinirem lésbicas. Mas, poderíamos perguntar, o que é uma lésbica? Acerca disto, Eliane Beirutti afirma que existem, pelo menos, três concepções girando em torno do termo “lésbica” no universo dos queerstudies, que são: a lésbica política, a emocionalmente comprometida com outras mulheres e a genital22. A primeira é aquela que considera o lesbianismo uma luta política contra o patriarcado; algumas feministas heterossexistas encaixam-se nessa categoria. A segunda é a lésbica que se envolve em questões de mulheres, tais como aborto, estupro e violência corporal. A terceira é a mais aceita – ser lésbica significa manter relações sexuais exclusivamente com mulheres. (BEIRUTTI, 2010, p. 64). Apesar dessa classificação, Beirutti (2010) enfatiza que essas categorias não se excluem e que os sujeitos denominados lésbicas, muitas vezes, não se enquadram em nenhuma delas o que reforça as questões levantadas por Navarro-Swain acerca do que seria este ser denominado “lésbica”. Ao questionar se esta seria uma existência à parte, Beirutti utiliza Leila Míccolis (1983) para responder que não existe uma raça à parte denominada lésbica; homossexualidade e heterossexualidade são atos que as pessoas praticam e não elas em si mesmas. Assim, a própria divisão da mulher em lésbica e não lésbica necessita de questionamento e de revisão. As autoras ainda concordam que existem problemas na designação de uma identidade a partir de uma prática, seja sexual ou qualquer outra. O argumento é que se a 22 A classificação utilizada por Beirutti está em Johnston, 2007. 50 prática homossexual é capaz de produzir um indivíduo a lésbica , a prática heterossexual também produziria a “mulher verdadeira”, que seria a condição necessária para o lugar marginal das lésbicas. Nesse sentido, a questão que surge para nós é: como a presença das lésbicas na narrativa de Cassandra Rios interroga a categoria gênero em seu fundamento a divisão binária da sociedade em dois sexos que pressupõe a heterossexualidade? Ou, ainda: em que medida as personagens do romance As traças promovem uma crítica à categoria gênero como categoria fundamental de inteligibilidade do sujeito “mulher”? Primeiramente, precisamos relembrar que, se é a naturalização do sexo biológico que a lesbianidadequestiona, sobretudo no que concerne ao binarismo natureza versus cultura, os sujeitos da narrativa de Rios, ao se afirmarem mulheres e, ao mesmo tempo, rejeitarem a obrigatoriedade das práticas heterossexuais estão, precisamente, tomando conta deste questionamento. Talvez, elas demonstrem, em consonância com Butler (2008), que o gênero não é meramente o significado cultural assumido por um corpo sexuado pré-discursivo. Mesmo Andréa, que interpreta o gênero feminino como uma consequência inevitável do sexo biológico, cultiva esta crítica, ao pensar uma mulher tendo prática e desejo homossexuais. O próprio conceito de mulher, oriundo de sua posição em uma cultura e da naturalização das práticas heterossexuais, poderia aí ser questionado. Poderíamos supor que o empreendimento de Andréa permite pensar de uma outra forma este sujeito. Mesmo que a personagem pretenda construir uma lésbica próxima de um modelo heterossexual, seu esforço já traz em si uma contradição, pois essa mulher rompe as barreiras de uma lógica heterossexual. Esta perspectiva crítica é levada ao limite por via das outras personagens. Mas, é possível afirmar que a naturalização dos corpos e do sexo é questionada pelo texto? Parece-nos que a resposta a esta questão perpassa pelo entendimento da narrativa como uma tentativa de corrosão das estruturas tradicionais de pensamento e, neste sentido, a imagem da traça pode ser concebida como estratégica. Rick Santos23 (2005) sugere que o termo traças, no romance, adquire o sentido do apagamento a que as lésbicas foram historicamente submetidas. Como as traças, as mulheres que amam mulheres também vivem escondidas, disfarçadas, invisibilizadas, privadas de um senso de comunidade e história. Observemos que esta noção de traça disponibilizada pelo autor traz uma importante contribuição para compreender o movimento das personagens, mas, conforme acreditamos, não deixa de assimilar um caráter passivo que, segundo nos parece, 23 Na apresentação crítica do romance. 51 não descreve com precisão as personagens do romance, sobretudo Berenice, que utiliza o termo para se autodenominar, e Rosana, a masculinizada. Decerto que um sentido para traça pode estar associado à vida escondida, na escuridão dos armários, mas não cremos que o sentido se encerre aí. Julgamos ser necessário tentar mais uma vez definir traças antes de prosseguir. As traças são insetos com algumas características bastante peculiares: são minúsculas, de aparência esquisita, possuem finas escamas nas asas e se alimentam de resíduos de sujeira encontrados em tecidos, tapetes ou folhas de livros24. Quando adultas, escondem-se em locais escuros a fim de evitar a luz. A ação destes insetos provoca danos na superfície dos livros e também em tecidos, tapetes, etc. Em suma, podemos dizer que o lugar das traças é, sempre, sujo, escuro, escondido da luz e dos olhares. Mas isto, esta condição aparentemente tão frágil e abjeta, não é, sob quaisquer circunstâncias, reles. Ao contrário, é uma condição propícia para lutar pela sobrevivência. Das traças poder-se-ia dizer que estão inseridas na sujeira, que são nojentas, impuras, mas, nunca, que são insignificantes: elas não podem, simplesmente, ser esquecidas, pois existem e sua existência é extremamente incômoda. A imagem da traça é tomada, neste trabalho, como uma metáfora, um operador para a leitura do texto. “Traça” como algo que, apesar de jogado em uma condição desfavorável, sombria, reage destruindo a imagem da harmonia, do equilíbrio, do belo, do normal que criou a própria condição abjeta ou, ainda, como aquilo que pretende destruir todo e qualquer discurso que se sustente a partir de uma vontade de verdade, uma destruição que se dá pela corrosão das oposições. Nesse sentido, cabe-nos evocar Berenice e o seu papel na narrativa. Ao observar que a personagem é acessível, na grande maioria das vezes, por outros olhares podemos concebê-la como algo que não se permite descrever, mas que observa as estruturas de poder e tenta miná-las. A única forma de problematizar a sua condição marginal é minar o poder que a colocou na marginalidade. Não à toa a professora repete com profundidade a frase: “Sou aquilo que destrói pouco a pouco...” (RIOS, 2005, p. 226). Ao longo da narrativa, a professora vai se comportando com deboche: esta é sempre a sua estratégia. Com as instituições sociais, ela vive uma relação dúbia: por um lado, finge obedecer-lhes, por outro, as escracha. Para nós, leitoras/es, ela não passa despercebida não consegue se esconder como uma traça , pois produz uma espécie de repulsa. Talvez aqui seja adequado colocá-la numa posição de anti-heroína, visto que nos impede de viver o 24 Fonte A traça inseto. Tudo sobre borboletas. <http://www.borboleta.org/2012/01/traca-inseto.html>. Acesso em: Disponível em: 52 romantismo inocente e pueril das histórias de amor; por seu intermédio, assistimos ao declínio do sonho do amor romântico. Não que ela não ame. Ela ama, mas sua maneira de amar é diferente das convenções que sustentam a vida cotidiana. Ela ama com sexo, com erotismo, com possessão. O seu amor não é, nunca, conduzido por valores como respeito, fidelidade, cumplicidade. Seu amor também não é idealizado ou eterno; tem a durabilidade dos momentos ardentes que consegue protagonizar e é extremamente lascivo. Talvez por essas características, a professora seja chamada, por Andréa e por outras personagens do romance, de pervertida e vulgar. Endossa esta afirmação o fato de Berenice ter seduzido a mãe de Andréa, sua amante. Porém, se dizemos que ela seduziu a mãe de sua amante, poderíamos também dizer o contrário: ela pode ter seduzido a filha de sua amante, pois não sabemos em que circunstância se deu o romance, se houve mesmo um romance ou apenas um envolvimento frívolo. De qualquer forma, este quadro torna visível uma espécie de antirromantismo na narrativa, sobretudo quando pensamos o impensável de um possível triângulo amoroso entre três mulheres dentre as quais duas são mãe e filha e, ainda, que o romantismo sempre foi usado para incutir o sonho heterossexual. Mas outras questões são suscitadas a partir da performance dessa personagem. Se Andréa oferece uma crítica à cultura heteronormativa que condenou à condição patológica o/a homossexual e busca uma identidade como forma de tentar subverter esta ordem, Berenice vai além, ao permitir pensar que talvez esta identidade possa operar “sob rasura”, no intervalo entre a inversão e a emergência. Dito de outra forma, a identidade talvez possa ser entendida como “[...] uma ideia que não pode ser pensada da forma antiga, mas sem a qual certas questões-chave não podem sequer ser pensadas” (HALL, 2012, p. 104). Se a imagem de traça cabe para Berenice e se, no decorrer da narrativa, ela está sempre sustentando a ideia de desobediência, então, ela nos autoriza a tratá-la como uma personagem que reconhece as normas reguladoras da vida e não se permite conformar. Sua conduta pervertida é lida, assim, neste trabalho, como uma tentativa de rasurar as leis. É necessário esclarecer, mais uma vez, que tomamos de Berenice rastros de ações e de pensamentos, além de suposições, muito mais do que atos concretos. No entanto, temos, ainda, Rosana, personagem que, segundo acreditamos, amplia a intervenção de Berenice, porque é com um corpo materializado que ela cria uma estratégia de resistência. Enquanto a intervenção de Berenice pode ser pensada operando ao nível de uma construção discursiva, não materializada, Rosana seria representante da materialidade ou da subversão pela materialidade. Seria o corpo de Rosana uma crítica à metafísica da 53 substância? Ao criar um corpo diferente estaria ela denunciando a construção do sexo e do corpo como entidades materiais “naturais”, autoevidentes, tal como coloca Butler (2008)? A figura da lésbica masculinizada encarnada por Rosana põe em debate os papéis sociais de homem e mulher. Assim, por via da personagem, a feminilidade, assim como a masculinidade, é vista como construção social e não como consequência inevitável da biologia. Optamos por abordar a imagem de Rosana com mais profundidade nos textos que seguem. Por hora, satisfazemo-nos com a expectativa de que a/o leitor/a possa ter compreendido o argumento de que o texto de Rios está, constantemente, simulando uma rede de forças, relações de poder que criam, ao mesmo tempo, as bases para um processo de emancipação e a própria prisão que nos oprime. 2.3 LUGARES EXPROPRIADOS: SUJEITOS DE FRONTEIRAS A imagem de traças se configura como um operador para a leitura crítica que elaboramos aqui. Por certo, poderíamos ser indiferentes à potência de tal imagem e considerála apenas uma palavra que intitula uma narrativa, mas optamos por tentar fazer inferências a partir de sua presença. A grande questão talvez gire em torno dos motivos que levaram à escolha de um termo que denomina insetos espécie, para o senso comum, reles, insignificante para nomear um texto que, hipoteticamente, tem como intuito falar de sujeitos que se pretende positivar por via da constituição de uma identidade. Uma possibilidade de resposta perpassa por um jogo, uma espécie de encenação que o texto produz. Acreditamos que o romance, a partir de um emaranhado de performances apresentadas por suas personagens, atua no sentido de trazer para o/a leitor/a uma diversidade de discursos que circulam no imaginário social acerca dos indivíduos considerados estranhos por não assumirem uma relação de coerência entre o sexo biológico, a construção de gênero, as práticas sociais e os desejos. Se pensarmos o romance a partir do que Santos descreve como as intenções da literatura de Cassandra Rios, a saber, a rejeição de “visões monolíticas e elitistas da homossexualidade” (2003, p. 19), podemos, de fato, concebê-lo como uma tentativa de colocar em cena uma miríade discursiva em torno da lesbianidade. [...] Cassandra incorporou o olhar do seu opressor, enquanto mantinha em mente uma outra visão de si própria e do outro do gay e da lésbica que ele, o olhar dominante, não podia ver nem ouvir (e, por extensão, censurar ou controlar). Porque Cassandra podia ver de ambas as posições, através do 54 uso do simulacro e da farsa, ela era capaz de deslocar seu olhar e inscrever significados resistentes e complexos onde o olhar dominante os enterraria. (SANTOS, 2003, p. 23). Os argumentos do autor para justificar a concepção do texto de Rios como uma espécie de simulacro são, ao que nos parece, produtivos e, ao mesmo tempo, passíveis de questionamentos. Se nos permitimos problematizar estes argumentos no que concerne à afirmação de que a estratégia do simulacro teve, exclusivamente, o intuito de driblar a censura militar, é porque a produção literária assinada por Cassandra Rios já era alvo de censura antes mesmo da instauração do regime – tanto que, em 1962, a autora respondia a processo e tinha pelo menos oito, de dez livros publicados até então, proibidos (RIBEIRO, 1970). Mas, por outro lado, se julgamos este ponto de vista imprescindível é pelo fato de aceitarmos a ideia de que o texto nos apresenta um jogo de esconde no qual a superfície funciona de forma a camuflar. Em outras palavras, é o simulacro a estratégia que garante a proliferação de sentidos no texto. Interessa-nos, na visão de Santos (2003, p. 23), a possibilidade flagrante na literatura de Rios de “ver em ambas as posições”. Consideremos, por exemplo, que, quando Andréa toma a palavra para tentar determinar o que seria uma lésbica, a sua fala ultrapassa os limites de um sujeito que narra a própria experiência e assume o lugar da representação de um discurso que se declara com direito de dizer sobre mulheres que vivenciam práticas afetivas/sexuais com outras mulheres. Andréa é uma espécie de voz institucionalizada que reclama, mas que se reveste de arrogância e, sobretudo, que pretende falar por uma coletividade. Isto, no entanto, só é visualizado pelo/a leitor/a porque outras personagens estão lá, tentando se distanciar do ponto de vista da protagonista, discordando dela, criando tensões em torno da sua forma de analisar a homossexualidade e, ao mesmo tempo, defendendo outros posicionamentos discursivos. Imaginemos Andréa como uma voz que fala sobre a lesbianidade e cujo ponto de vista passa incólume a questionamentos. O resultado, provavelmente, seria a instauração de um discurso que poderia ser tomado como verdadeiro, como referência. Por isto, a necessidade de problematizar a voz da protagonista. É nesse sentido que a presença das outras personagens é fundamental: elas expõem a fragilidade do discurso de Andréa, o minam e impedem a instauração da ordem. Talvez a própria crítica das outras personagens tenha como alvo o desejo de uma referência sustentado por Andréa. Levando em conta o seu papel de protagonista, daquela a partir de quem a história é narrada, de uma voz de poder, este dado assume a significação de insurgência contra a hegemonia dos discursos. 55 Berenice e Rosana estão em explícita tensão com Andréa: uma porque não aceita sucumbir às regras apontadas por ela e a outra porque constrói um corpo esquisito. De qualquer forma, o fato é que elas estão lá, demonstrando que qualquer discurso que se pretende hegemônico está coexistindo, constantemente, com resistências. Não foi à toa a afronta de Rosana a Andréa, quando esta questionava as mulheres lésbicas de performances masculinizadas. Assim, ao não sucumbir à reprovação e ao se afirmar andrógina e extremamente satisfeita com a sua forma de ser, Rosana está reivindicando para si o direito de defender uma postura diferente daquela que a protagonista considera ideal. Também a “pegação” de Berenice é bastante reveladora, pois significa não aceitar ser enquadrada nos conceitos considerados ideais. Observemos que, para Berenice e Rosana, não aceitar a vontade de um único modo de ser imposta por Andréa é operar no sentido de descentralizar um elemento de poder, o que representa pôr em questão uma voz que se coloca, ao menos nos primeiros momentos da leitura, como responsável por ressignificar o conceito de homossexualidade. Talvez as duas personagens se situem em uma posição temerosa com relação a esta compulsão por uma identidade e, por este motivo, ofereçam resistência à ideia. Se Andréa pretende ser a expressão de uma unidade, de uma verdade, as outras atuam no sentido de desestabilizá-la e o fazem revestidas por condutas e corpos subversivos. Podemos arriscar dizer que a narrativa demonstra distintos planos constantemente desestabilizadores: primeiramente, Andréa desautoriza e desestabiliza uma cultura heteronormativa, com suas dúvidas e vontade de criar um conceito de homossexualidade outro que afronte toda uma tradição discursiva ocidental; depois, Berenice e Rosana, que operam no sentido não só de desestabilizar a cultura heteronormativa como também o próprio discurso de emancipação que Andréa representa. Assim, ao mesmo tempo em que “traça” um discurso hegemônico sobre a homossexualidade, a protagonista é “traçada” pelas outras personagens que não se permitem ser representadas por ela. Desta forma, a narrativa parece colocar o/a leitor/a diante de um viés prático da desconstrução de discursos. Pela estratégia adotada, estes discursos entram em conflito e se destroçam, mostrando que toda e qualquer tentativa de ordem não funciona ou, ainda, que mesmo que ocorram tentativas constantes de reprimir o múltiplo, ele é sempre inevitável e estará, constantemente, ressurgindo, retornando por diversos meios. A imagem da traça poderia, portanto, ser tomada em uma associação com o método da desconstrução de Derrida (2001). Andréa é a primeira traça, mas sua condição de traça é abandonada, quando pretende criar uma ordem, daí a necessidade de outras traças para 56 que a corrosão seja contínua e constante. Neste sentido, ela também vira alvo da ação das traças, que vão roendo, minando e destruindo o seu desejo. Podemos concluir, portanto, que a obra desalinha o sistema que reúne uma única visão acerca das coisas, pois a cultura dada é, a todo momento, instigada pelas personagens. Assim sendo, a obra que ampara a estrutura linear, num padrão de significados que inicia, desenvolve e finaliza o conteúdo não é pertinente para a escrita de Rios. A significância da obra oferece uma legião de signos que solicitam ser desconstruídos. Mas porque a necessidade de um tal modo de ler? O discurso encenado pela protagonista de As traças evidencia a estruturação binária da sociedade. Ao se afirmar lésbica, homossexual, Andréa o faz em oposição ao heterossexual. Da mesma forma, ao se afirmar lésbica genuína, legítima, ela tira a legitimidade de outros sujeitos que preferem a diversidade de práticas sexuais. Há, ainda, a construção do corpo, que se dá a partir de um processo de negação do corpo masculinizado, e outras formas de oposição binária vão surgindo, a exemplo da relação entre normalidade versus perversão, pureza versus impureza. Assim, é sempre em oposição a um outro que a protagonista está constituindo sua identidade lésbica, necessitando, sempre, de uma relação com o outro para se afirmar enquanto sujeito. Vejamos, então, porque pensar a imagem das traças pelo viés da desconstrução. Para Derrida (2001, p. 47), a estratégia geral da desconstrução deveria “evitar simplesmente neutralizar as oposições binárias da metafísica e, ao mesmo tempo, simplesmente residir, no campo fechado dessas oposições e, portanto, confirmá-lo”. Segundo o teórico, em uma oposição filosófica clássica, não lidamos com a coexistência pacífica de dois termos, mas com uma violenta hierarquia. Em outras palavras, um dos dois termos sempre ocupa um lugar hierarquicamente mais alto, ou seja, exerce uma relação de superioridade. Esta relação é bastante clara na análise da performance de Andréa. Em sua interferência, ela acaba reconstituindo o sistema binário que a excluiu, pois, ao lançar mão da filosofia das relações binárias para se constituir, não observa que a relação de hierarquia que mantém a exclusão também se sustenta. Para Derrida, o primeiro passo para a desconstrução seria inverter a hierarquia. Embora não cronológica, esta, segundo ele, é apenas uma fase, pois a necessidade da análise é interminável. Ater-se a esta fase é operar no interior do sistema desconstruído. A necessidade dessa fase é estrutural; ela é, pois, a necessidade de uma análise interminável: a hierarquia da oposição dual sempre se reconstitui. Diferentemente de certos autores dos quais se sabe que estão mortos em 57 vida, o momento da inversão não é jamais um tempo morto. (DERRIDA, 2001, p. 48). A desconstrução deve, ainda, [...] através de um duplo gesto, uma dupla ciência, uma dupla escrita, pôr em prática uma reversão da oposição clássica e uma substituição geral do sistema. É somente nessa condição que a desconstrução proverá meios de intervir no campo de oposições que critica, que é também um campo de forças não-discursivas. (DERRIDA, 2001, p. 48-49). De acordo com Culler (1997, p. 100), “[...] o praticante da desconstrução trabalha com os termos do sistema, mas de modo a rompê-lo”. Talvez seja um pouco o que as outras personagens fazem. Apesar de ainda se afirmam lésbicas, não o fazem a partir de uma relação de negação do outro; não se constroem por meio de uma relação binária de oposições hierárquicas. Em decorrência disto, elas demonstram não se enquadrar em um modelo de mulher lésbica padronizado, uno. Elas não aceitam uma identidade lésbica constituída dentro de uma economia heteronormativa. De certa forma, Berenice e Rosana experimentam de liberdade para viver a orientação sexual. Nesse sentido, retomemos Culler. Às formulações da desconstrução, ele apresenta a seguinte contribuição: Desconstruir um discurso é mostrar como ele mina a filosofia que afirma, ou as oposições hierárquicas em que se baseia, identificando no texto as operações retóricas que produzem o fundamento de discussão suposto, o conceito chave ou premissa. (CULLER, 1997, p. 100). Parece-nos, portanto, que o romance permite pensar nos problemas que envolvema decisão de assumir uma identidade lésbica, fixa, estável. Se as relações binárias que estabelecem e sustentam a hierarquia e a supremacia de um termo sobre o outro são a base do pensamento metafísico ocidental, então elas são alvo da desconstrução. Este discurso é problematizado a fim de promover a emergência de outros discursos. Andréa é questionada e isto nos parece muito significativo. Um percurso crítico para esta situação é revelado pela teoria queer. Ao permitir questionar a identidade estável, perfeitamente delineável, acabada, a narrativa nos possibilita enveredar para outros campos de leitura, para outras possibilidades, outros desejos. É importante observar que estamos, aqui, rastreando indícios, interesses, anseios, potências de uma literatura, talvez sinais, como sugere Carlo Ginzburg (1990), que permitam decifrar algo 58 opaco, camuflado, das mais diversas formas, por uma escrita cativante: o queer como a diversidade que não quer ser contida. A ruptura com a norma, que ocorre de forma dupla primeiro, a protagonista, que rompe com a noção de patologia e, depois, as duas personagens, que rasuram a identidade , pode nos levar à referência de um desejo mais radical, talvez de um corpo e um modo de vida queer. No próximo capítulo, abordaremos, a respeito dos estudos queer, como e por quais caminhos ele pode ser questionado na escrita de Cassandra Rios, o que implicar trazer a imagem da mulher que incorpora alguns sentidos que são pertinentes ao universo destes estudos. Um deles é perscrutar até que ponto Andrea, personagem romanesca, interfere na conduta de si, que relações são desconstruídas e importam vê-la como aquela que nega ser uma mulher-anjo e visada pela sua posição de desejos muito próximos da heterossexualidade. Com isto, o queer não apenas rompe com os estigmas de posicionamentos do desejo heterossexista, mas com atos, pensamentos, atitudes, performances que alteram um modo de vida. É com estas questões que iremos propor uma leitura mais acirrada, tendo como mote a forma como o narrador representa as personagens. 59 3 MULHERES AFETADAS E AS DESORDENAÇÕES DE SENTIDOS Ao demonstrar a construção discursiva das sexualidades, já tratada anteriormente, Foucault (1988) mostra, também, como, através de uma série de discursos, foram produzidas e multiplicadas as classificações sobre “tipos” e “espécies” de sexualidades. Neste contexto e a despeito do “ser homossexual”, afirma o teórico que os dispositivos discursivos que criaram esta “espécie” não apenas a inscreveram sob o signo da marginalidade e do estigma, mas, também, da unidade. Este “ser homossexual”, esta espécie, foi descrita de forma homogênea, como se não houvesse uma multiplicidade de desejos e de modos de vida para ele. “O homossexual do século XIX torna-se uma personagem: um passado, uma história, uma infância, um caráter, uma forma de vida; também é morfologia, com uma anatomia indiscreta e, talvez, uma fisiologia misteriosa” (FOUCAULT, 1988, p. 50). Neste sentido, podemos pensar em uma política cujo projeto esteja voltado para a contemplação da multiplicidade, para fazê-la aflorar. É esta necessidade que certifica a leitura a partir dos estudos queer. Os estudos queer têm provocado, com cada vez mais intensidade, o pensamento cartesiano. Parodiando a estrutura do signo, aposta-se na posição de sujeitos que encaram as tensões vivenciadas por indivíduos que, simplesmente, querem alcançar o direito a exercer a liberdade de amar como também a de questionar os conceitos arraigados, movidos pela significação reducionista de ver os sentidos das coisas. Ainda trazendo Foucault, podemos dizer que, em função da sua epistemologia, ele soube interpretar uma realidade que se move sob as torturas das idealizações impostas. Isto pode ser interpretado em obras como As palavras e as coisas (1966), História da loucura (1961) e História da sexualidade (19761984), que nos oferecem uma forma de dizer e de enunciar o rompimento da estrutura sígnica. As ideias desenvolvidas neste capítulo têm o propósito de refletir sobre como o romance As traças, de Cassandra Rios, ao trazer conflitos sociais e culturais acerca de gênero e diversidade cultural nas narrativas de personagens femininas, nos oferece um amplo leque de possibilidades de leitura. Ao pensar o modo como estas personagens atuam na escrita, propõe-se uma leitura próxima àquela que os estudos queer vêm priorizando no momento atual: descrever as identidades dos sujeitos a partir de uma série de normas, atitudes e comportamentos que foram e são regrados para a formação do indivíduo. Há, como afirma Ana Luisa Amaral (2001, p. 83), “conceitos fulcrais” que são desafiados pela teoria queer: estão entre eles “o heterossexismo, a ordem patriarcal, e, sobretudo, os dualismos sobre o qual a cultura se constrói”. Neste sentido, é bastante 60 esclarecedora a explicação de Miskolci sobre os empreendimentos queer que, segundo o autor, [...] partiram de uma desconfiança com relação aos sujeitos sexuais como estáveis para focar nos processos sociais classificatórios, hierarquizadores, em suma, nas estratégias sociais normalizadoras. Ao colocar em xeque as coerências e estabilidades que, no modelo construtivista da teoria social, fornecem um quadro compreensível e padronizado da sexualidade, o queer revelou um olhar mais afiado para os processos sociais normalizadores que criam classificações, as quais, por sua vez, geram a ilusão de sujeitos estáveis, identidades sociais e comportamentos coerentes e regulares. (2009, p. 7). Conforme o referencial crítico de Miskolci (2009), podemos identificar no romance As traças uma série de processos sociais classificatórios nos quais as personagens estão, conscientemente, envolvidas. No entanto, são estas personagens que simulam sua própria condição e mostram a si mesmas como reguladas pelo sistema hegemônico e patriarcalista. Nesse sentido, o que desejamos, ao ler a partir de pressupostos da teoria queer, é identificar, na referida obra, pistas para a problematização e a implosão dos binarismos; a problematização das identidades fixas, estáveis, coerentes; a explicitação dos processos de criação dos sujeitos “normais”, legítimos que, consequentemente, cria uma massa de ilegitimidade; e o questionamento de um sistema de referência. Assim, uma leitura da literatura da escritora Cassandra Rios a partir de um olhar queer é justificada pela crença de seu texto configurar uma vontade de se opor e de desafiar as normas, rompendo com o próprio sistema de pensamento que, a partir de uma lógica binária, cria indivíduos hegemônicos considerados produtos saudáveis da natureza e indivíduos inscritos como produtos defeituosos, desviantes, anormais os quais são, constantemente, estigmatizados e obrigados a viver sob o signo da invisibilidade. 3.1 ÂNGULOS E FACETAS DO “ARMÁRIO” LÉSBICO O romance As traças compartilha com o/a leitor/a uma tensão que se estabelece entre uma vontade de uma forma única de representação do sujeito que vivencia o amor lésbico e a multiplicidade real de formas de identificar-se. Neste sentido, ao menos três formas de representação de sujeitos que vivenciam relações afetivas/sexuais entre iguais podem ser flagradas entre as personagens disponíveis no texto de Cassandra Rios. Tomando a 61 ótica de Andréa como referência, podemos descrever estes três modelos da seguinte forma: Andréa seria a lésbica “feminina”, a femme(NAVARRO-SWAIN, 2004), aquela que é identificada como do gênero feminino e que conserva todas as características de um feminino institucionalizado, incluindo o papel passivo na relação25; Berenice, descrita como uma figura andrógina (PERRIN; CHETCUTI, 2002), que teria uma conduta de imitação do masculino, seria considerada a “pegadora”, a pervertida; e Rosana, que representa as lésbicas masculinizadas, as fanchonas. Uma primeira questão que talvez seja pertinente observar, no que concerne à performance das personagens, diz respeito à decisão de ter ou não a orientação sexual exposta ou publicamente confessada. Neste sentido, faz-se necessário analisar cada personagem detalhadamente. Comecemos por Andréa, a personagem que é o olho observador de todas as outras personagens. Aos dezessete anos de idade, ela esbanja beleza, sensualidade e “feminilidade”. Tendo tido o seu destino traçado para atender às aspirações sociais delineadas para a figura feminina de classe média alta da sua época por um lado, educada, portadora de uma profissão e inserida no mercado de trabalho e, por outro, cumprindo o papel de esposa e mãe , ela sente toda a estabilidade em que até então se apoiara cair por terra ao se confrontar com o amor por uma mulher, amor que vinha acompanhado por um desejo perturbador e insaciável de beijos, de carícias, da pele, do corpo da mulher amada. Estivera louca? Que poder era aquele que a comandava como se o seu espírito se convertesse num escravo do corpo, obrigado a submeter-se a coisas vergonhosas? Era uma vergonha o que fizera. Mastubara-se. Amara o próprio corpo num delírio doentio, como uma débil mental, imaginando que estava sendo possuída, estuprada. Por Berenice. Por Berenice? Como? Idéias absurdas, pensamentos incríveis criavam cenas na sua mente alucinada. (RIOS, 2005, p. 85). As exacerbadas emoções que a adolescente experimenta ao se encontrar com Berenice levam-na à exploração incansável do próprio corpo, com a finalidade de obter aquilo que julgava ser impossível sentir com outro corpo que não o da professora, que passara a simbolizar para ela a única possibilidade de prazer, de gozo, de saciedade. Isto representou uma crise que a fez imergir em um universo obscuro de incertezas, de temores. No entanto, em momento algum, estes temores a levaram a cogitar desistir de viver o amor/sexo com a 25 Em nenhuma das cenas em que se relaciona sexualmente com uma mulher, a personagem tem uma postura ativa. Ela sempre é beijada, “chupada”, “penetrada” pela outra. Seu papel é sempre dar-se. 62 mestra. Ao contrário, considerava que aquele era o seu caminho e que entregar-se àquela forma de amor era o único meio de se tornar plena. [...] frisava bem: queria viver. Viver como? Amando. Como? Quem? A uma semelhante. A uma mulher! Sentiu-se um ser misterioso. Alguém que teria de viver de mentira, de disfarces, de simulações, enganado a todos porque não queria enganar a si própria. (RIOS, 2005, p. 122). A certeza da disposição para viver o amor lésbico não corresponde, entretanto, ao desejo de se expor, de tornar pública a sua preferência. Aliás, a possibilidade de assumir publicamente o desejo lésbico é inconcebível para Andréa. Se, por um lado, a jovem não abre mão do direito de se relacionar afetivo-sexualmente com uma mulher, por outro, está convencida de que terá de viver “de mentiras, de disfarces, de simulações”. Para ser feliz, sendo lésbica, era preciso enganar à família, aos amigos, enfim, a todos os que não compartilhassem de semelhante desejo. Estavam todos notando a mudança que se operara em seu comportamento, que os sintomas eram mesmo de uma mulher apaixonada. A mãe notara. O pai notara. Meu Deus! Que horror se descobrissem por quem. Passar-lhe-ia pela cabeça? Não. Nunca. Não poderiam sequer imaginar. O que poderia acontecer? O que fariam com ela? O que tentariam fazer se descobrissem como ela era? [...] Que fazer? Trocar a alma, ab ideia, os impulsos naturais por outros forjados, calcados, condicionar-se a viver uma vida falsa, de mentiras, sufocando sonhos, aquela paixão, aquela vontade insuportável de ser beijada por outra mulher, de se estorcer nos braços de outra mulher, de pertencer a outra mulher? (RIOS, 2005, p. 72). É evidente, portanto, que, para Andréa, lançar mão de disfarces para manter oculto aquele desejo “estranho” era crucial. Como não dispunha de instrumentos suficientes para enfrentar a violência institucionalizada contra as lésbicas, a personagem rejeita em seu corpo toda e qualquer marca que, segundo as suas crenças, possa, de alguma forma, denunciar a sua orientação sexual. Assim, dos trejeitos à maneira de se vestir, tudo implicava uma vontade de se tornar invisível diante dos olhares e das indagações de indivíduos que ela julgava serem “menos dotados de solidariedade humana”26 (RIOS, 2005, p. 61). Quando se parte para a investigação da personagem Berenice, tem-se um comportamento duplamente marcado, por vezes, contraditório. A professora vive diversas aventuras amorosas e, a julgar pela magnitude dos riscos, sem grandes preocupações com o fato de ser “descoberta”. Sua vida pessoal, suas conquistas, seu desejo por mulheres é alvo 26 Pensamento de Andréa em relação às pessoas homofóbicas. 63 constante dos mexericos entre alunos/as, que parecem não ter a menor dúvida acerca da conduta da mestra. Mas esta liberdade nos atos, paradoxalmente, não isenta Berenice de tentar, assim como Andréa, camuflar sua opção. Na sugestão de sua excentricidade e de uma certa androginia, a narrativa permite entrever uma personagem que ainda utiliza inúmeros disfarces para tentar parecer “normal” e usufruir das benesses sociais desta condição. Dentre estas estratégias, a principal talvez seja aparecer em locais públicos na companhia de um noivo. [...] viu que dona Berenice também estava dançando. Envolvida pelos braços de seu acompanhante, sorria, parecia mesmo envolvida por ele. Quem poderia suspeitar que aquela exuberante mulher, com todo o seu charme, na sua beleza excêntrica, fosse uma lésbica? Ela disfarçava bem ou seriam apenas boatos maldosos? (RIOS, 2005, p. 138, grifo da autora). O grifo da autora (envolvida) demonstra que, para a mestra, não bastava aparecer em locais públicos acompanhada por um homem; havia, também, a necessidade de parecer envolvida, apaixonada, entregue. É certo que a narrativa, em nenhum momento, dá a Berenice a oportunidade de falar sobre o seu suposto noivo: nem mesmo sabemos se ele realmente existe, que tipo de relação têm ou se não passa de uma figura meramente ilustrativa. Possivelmente, o motivo da quase total ausência de explicações acerca deste personagem está relacionado ao fato de que o único interesse concernente a esta questão é expor a necessidade de fingimento de Berenice. O que fica evidente é que a própria mestre, ao se definir como uma traça, afirma viver “tentando passar despercebida” ou se escondendo “entre as costuras dos livros” (RIOS, 2005, p. 226) e, nesta tentativa, apresenta diferentes formas de comportamento, buscando se adequar ao contexto com o qual está interagindo. O disfarce afrouxa, apenas, quando ela, abalada por conta do turbilhão de emoções provocado pela paixão por Andréa, por alguns instantes, sucumbe, sob os olhares atentos de seus/as alunos/as. Está mais sensível, embrutecida, deliciosamente irritada e nervosa, mais humana, menos calculista e mestra [...]. Não está simulando. Vê-se perfeitamente o que ela é. Está de acordo com seus traços andróginos. Nada feminina. Parece que se libertou dos medos e está sendo ela mesma. (RIOS, 2005, p. 213). Parece inegável, portanto, que tanto Andréa quanto Berenice, em suas vidas sociais, se situam naquilo que Sedgwick (2007) aponta como o “armário gay”. As escolhas de cada uma indicam a insegurança em revelar a vivência de práticas não heterossexuais, temor 64 que, sob quaisquer circunstâncias, é injustificado. A necessidade de não dizer publicamente sobre a homossexualidade se consolida como uma tentativa de adquirir uma blindagem contra uma série de opressões a que estes sujeitos estão expostos. Ao focalizar os atos de Andréa, podemos pensar que se trata de uma mulher que não tem referências positivas acerca da homossexualidade. Ela vive uma tensão provocada pelo desejo de definir positivamente a homossexualidade e pelas informações que chegam ao seu alcance que desenham as lésbicas como portadoras de variados tipos de patologia. Neste cenário, o medo que a personagem experimenta é previsível: ela teme a reação da sua família burguesa, dos amigos, enfim, de um mundo marcado pelas regras heterossexistas, daí a aversão por se declarar publicamente lésbica. Sofre, se tranca em um universo particular, se autoflagela, quase enlouquece por ter de viver sozinha, enfrentar sozinha e de forma silenciosa a descoberta de um desejo “estranho”. Este comportamento é justificável em um contexto social no qual “a injúria, a experiência de ser xingado e, portanto, desprezado e humilhado, incentiva o segredo e a busca de invisibilidade” (MISKOLCI, 2007, p. 59). No caso da mestra, talvez a sua posição social sirva de justificativa para o uso do disfarce. Berenice é uma intelectual, autora de livros didáticos, professora respeitada por sua trajetória profissional, requisitada, inclusive, em instituições universitárias, enfim, uma figura pertencente a um contexto em que a existência de uma lésbica é inconcebível. Ela temia se declarar publicamente e sofrer perdas insustentáveis, talvez até o fim de uma carreira bem sucedida. Por isto, seu caminho é a mentira, é viver tentando se esconder. Do outro lado desse posicionamento do disfarce está Rosana, a machona. Rosana é “ativa. Sem medo. Estabelecida no que era, para viver e fazer o que bem entendesse”. É um exemplo bem delimitado de uma pessoa com características culturalmente descritas como masculinas: corpo atlético, roupas de esportista, cabelos curtos, jeito masculino. Não era sua pretensão camuflar a homossexualidade, ao contrário, parecia querer revelá-la, expô-la como forma de afirmação da identidade. “Todos sabiam o que Rosana era. A reputação da moça já estava feita. O cabelo, o tipo o olhar, as maneiras, era uma autêntica lésbica” (RIOS, 2005, p. 27; 80). Assim como Berenice, a sexualidade de Rosana era motivo de comentários na escola. No entanto, se a homossexualidade não declarada de Berenice causava uma espécie de frisson que a tornava desejada pelas alunas, a homossexualidade exposta de Rosana provocava a necessidade, por parte das chamadas moças de famílias, de se afastarem, no intuito de preservar a própria imagem. Isto é confirmado pela forma como a personagem é comentada pelos colegas de classe. Em determinado momento, um estudante da mesma turma 65 tenta alertar Andréa sobre o risco de uma amizade com Rosana, uma pessoa que, segundo o olhar de todos27, era anormal. Sabe, Andréa, talvez você me ache fofoqueiro pelo que vou falar, mas, se hoje resolvi abordá-la desta maneira, foi para defendê-la de certa, de certas coisas que poderão prejudicá-la. Andréa bem entendeu a que ele se referia, mas se fez de ingênua. Do quê? É que o comportamento e a moral de Rosana não são muito recomendáveis, e a gente percebeu que ela anda perturbando você. (RIOS, 2005, p. 105). Diante da indignação de Andréa, ele prossegue: “Rosana é esquisita. Ela, bem, não sei como dizer...” (RIOS, 2005, p. 105, grifo nosso). Esquisita: esta é a melhor denominação atribuída a Rosana. Enquanto Andréa é descrita a partir da beleza, Berenice, pelo carisma e pelo talento como se o seu problema fosse, de alguma forma, amenizado por um certo valor , Rosana é a “esquisita”, um ser humano que, por sua explícita diferença, não era confortável classificar. O que Rosana era, então? mulher? homem? um corpo cuja definição, certamente escapava ao processo de nomeação do sistema binário heteronormativo. Talvez Rosana seja o que o romance oferece de mais próximo daquilo que Louro (2008) denomina de corpo estranho. Um corpo que se destaca na multidão de “normais” por ser diferente, por não identificar o que é culturalmente esperado. Retomemos a metáfora do armário. Para o senso comum, uma pessoa homossexual pode estar “dentro ou fora do armário”: vivendo “dentro do armário”, estaria protegida, livre dos ataques que os/as mais corajosos/as, aqueles/as que optaram por “sair do armário”, sofreriam. O disfarce funcionaria, portanto, como uma espécie de cápsula protetora para estes indivíduos. Poderíamos, entretanto, lançar um questionamento a este respeito. Até que ponto o disfarce funciona? ou: até que ponto se está dentro do armário? Para Sedgwick (2007, p. 38), “nenhuma pessoa pode assumir o controle sobre todos os códigos múltiplos e muitas vezes contraditórios pelos quais a informação sobre a identidade e atividade sexuais pode parecer ser transmitida” e esta parece ser uma noção muito bem explorada no romance, já que o não querer tornar pública a homossexualidade e utilizar estratégias para isto não foi suficiente para que Andréa e Berenice conseguissem, verdadeiramente, se esconder. Ao contrário, as estratégias são percebidas pelos olhares atentos e a sexualidade, sobretudo da professora, é devastada pelas mais diversas formas de 27 Referência que explicita a “anormalidade” da personagem, visto que ela não estaria incluída no contingente de “todos”, aqueles considerados normais. 66 especulação. Em comentários, os alunos de Berenice não demonstram ter dúvidas acerca da orientação sexual da mestra. Todos compartilham da certeza de que Berenice é “lésbica” e de que Andréa é “entendida” ou seja, também tem desejo por mulheres. Assim como Rosana, as duas personagens são identificadas como portadoras do mesmo tipo de desejo que, para aquelas pessoas, era anormal. Essa constatação pode, ainda insistindo na imagem do armário, nos remeter a outra questão. Para quem o armário efetivamente funcionaria? Um esboço de resposta passaria pela noção de que “o armário é a estrutura definidora da opressão gay no século XX” (SEDGWICK, 2007, p. 26). Neste sentido, estaremos diante de um falso problema sempre que pensarmos tal opressão em termos simplistas de “ficar ou sair do armário”. O armário como um dispositivo de regulação da vida social no século XX (MISKOLCI, 2007) significa, em outras palavras, que, a partir deste dispositivo, as vidas das pessoas são controladas e os seus lugares na sociedade determinados. Ele é a imagem do instrumento que garante privilégios para os indivíduos que se relacionam com o sexo oposto, ao passo que oprime aqueles cuja orientação é voltada para os semelhantes. Em suma, o armário não diz respeito apenas aos homossexuais, mas, também, aos heterossexuais. A pergunta acerca de para quem o armário funcionaria pode ser respondida no sentido de que ele mantém o regime de poder basilar da cultura ocidental, regime “assentado na oposição heterossexualidade/homossexualidade” (LOURO, 2008, p. 47). Ratificar a dicotomia hetero/homo significa manter um sistema classificatório e hierárquico segundo o qual o primeiro termo é a expressão da natureza, portanto, a referência, a forma correta, legítima, de viver a sexualidade, e o segundo termo, a sexualidade defeituosa, que precisa ser escondida. O disfarce, o sigilo, segundo Sedgwick, funcionam, portanto, como a prática subjetiva na qual as oposições privado/público, dentro/fora, sujeito/objeto são estabelecidas, e a santidade do primeiro termo permanece inviolada. E o fenômeno do „segredo aberto‟ não produz, como se poderia pensar, o colapso desses binarismos e de seus efeitos ideológicos, mas, ao contrário, atesta sua recuperação fantasmática (Miller, 1988 “Secretsubjects, open secrets”28). (SEDGWICK, 2007, p. 21). Diante dessas questões, qual seria, então, o sentido de personagens inscritas no armário pela narrativa cassandriana? E a personagem que se encontra “fora” do armário, como poderia ser lida? O argumento aqui é que a narrativa dramatiza o “dentro do armário” e 28 Ver MILLER, D. A.The novel and the police.Berkeley/Los Angeles: University of California Press, 1988. 67 o “fora do armário” no intuito de provocar a discussão acerca da funcionalidade destes lugares. Uma primeira leitura poderia supor que há uma defesa em torno da própria noção de estar “dentro do armário”, visto que Andréa, cuja voz guia toda a narrativa, acaba por defender a discrição, o sigilo. No entanto, a análise das personagens permite uma leitura que identifica esta questão como falsa, pois o texto evidencia que tanto Rosana, que está “fora do armário”, quanto Andréa e Berenice, que se utilizam de disfarces, estão subordinadas às mesmas leis que oprimem os indivíduos não heterossexuais. Dentro ou fora do armário, a ordem social não se altera, permanece a mesma; dentro ou fora do armário se está subordinado à “mesma lei que rege a verdade como posse dos que não se relacionam com pessoas do mesmo sexo” (MISKOLCI, 2007, p. 62). Efetivamente, não há uma opressão menor para as personagens que estão dentro do armário. O que elas vivenciam são desdobramentos do mesmo sistema de opressões: seja porque falam ou porque não falam, a condição destes sujeitos é sempre marginalizada. O barco é o mesmo para os que expõem e para os que se calam. Nesse sentido, é evidente, na narrativa, a denúncia de que a opressão é produto de um sistema que funciona a partir da produção de um centro hegemônico e de margens que o compõem, sistema este que sempre produzirá a mesma situação, os mesmos parâmetros de exclusão para os sujeitos não heterossexuais. A conclusão, portanto, é que o desmascaramento das regras de funcionamento deste sistema e dos seus efeitos é a única opção para promover a sua implosão. Assim, não seria o dentro ou fora do armário o ponto crucial de tensão no romance, mas a própria existência de um tipo de regulação que a narrativa torna evidente. Desmascarar, portanto, as regras do sistema permite a emergência do múltiplo, da diversidade que parece própria dos seres humanos. Assim, as personagens de As traças, conforme tentamos demonstrar até então, permitem a visualização de sujeitos que, ao não se conformarem com a condição a que foram relegados culturalmente criam estratégias para problematizar não apenas as narrativas sobre suas identidades, seus corpos, seus desejos, enfim, sobre suas subjetividades, mas, e sobretudo, o próprio sistema que origina e sustenta estas narrativas. Se dentro ou fora do armário não há um lugar possível para as homossexuais, então, a solução está na implosão da estrutura que sustenta a noção de armário. Vejamos mais de perto esta questão. O armário é uma forma de regulação da vida social de pessoas que se relacionam com outras do mesmo sexo, mas temem as conseqüências nas esferas familiar e pública. Ele se baseia no „segredo‟, na „mentira‟ e na „vida dupla‟. Esta tríade constitui mecanismos de proteção que também 68 aprisionam e legam conseqüências psíquicas e sociais àqueles que nele se escondem. (MISKOLCI, 2007, p. 58). A citação parece descrever, perfeitamente, o destino de Andréa. O segredo, com toda a série de elementos que o envolvem, jogou a protagonista em uma espécie de decadência física e psíquica. Sem meios para vencer a pressão para ser uma jovem “normal”, ela recorre ao uso de substâncias alucinógenas como forma de tentar sobreviver à tortura de estar vivendo uma paixão inconfessável, uma vida dupla e a incerteza sobre ser ou não correspondida. A decadência de Andréa é provocada pelo emaranhado de fios originados da experiência de desejar uma sua igual. A jovem se torna uma viciada, uma toxicômana, incapaz de responder por muitos dos seus atos: incapaz de estudar, de se socializar, arredia, fria, triste... Viciada! Isso era ela. E como livrar-se? Parecia que, quanto mais se aterrorizasse, mais a atraía o vidro de pílulas. Há quanto tempo se tornara escrava daquelas cápsulas? Os dias passados mergulhavam-se em trevas, em cenas fantásticas em que ela se via rodeada por fantasmas e seres terríveis. Do inferno das sensações que a consumiam era sempre Berenice, como galho emergindo de pantanal lúgubre e nevoento. (RIOS, 2005, p. 241). Também Berenice é vítima do sistema opressor. A revelação ou a confissão do seu segredo a faria cair, daí porque era melhor manter a vida dúbia que lhe garantia a existência social. Mesmo a sua trajetória profissional, marcada por importantes realizações, pelo sucesso, não era suficiente para lhe garantir a existência, no caso de uma confissão. Rosana, ao romper com as barreiras do segredo, pagou o preço de ser apontada nas ruas, de ser evitada por moças que preferiam se preservar, de ser confundida com os rapazes, enfim, de ser esquisita, diferente de todos. A ausência de saída, de opções para as personagens confirmam a argumentação acerca do falso problema que seria pensar a condição das lésbicas em termos apenas de “sair ou ficar no armário”. Desta forma, podemos pensar que a obra traz a possibilidade de mover o conceito sobre mulher, gênero e sexualidades, também, dentro do perfil da cultura queer. Andréa, Berenice e Rosana provam que, dentro desta estrutura heterossexista, jamais haverá, para os que não se relacionam afetiva e sexualmente com o sexo oposto, alternativa que não o silêncio, o estigma, o privado, a exclusão. Diante dessas questões, a literatura cassandriana serve como um espaço privilegiado de discussão. Um espaço no qual é possível trazer à tona as estruturas que determinam a ordem social e que estigmatizam alguns sujeitos. 69 3.2 O QUE CABE AFIRMAR? RUMORES NA ESCRITA As diferenças entre as personagens do romance As traças não se restringem às formas de representação da lesbianidade. Na verdade, apostamos em diferentes posicionamentos discursivos refletidos na performance das personagens cujo intento é a desestabilização de constructos discursivos sobre a homossexualidade. É por este sentido que pensamos ser possível a identificação de um devir queer no romance; se, conforme afirma Louro (2008), queer vem para romper com qualquer normalização, venha ela de onde vier, parece que imagens deste desejo, o que chamamos de desejo queer, podem ser visualizadas no texto. As personagens, com suas performances, embaralham a ordem e criam a possibilidade de pensar na desordem, na antinorma. Observemos o empenho dessas personagens no sentido de pôr em tensão as noções que materializam os sujeitos que vivenciam práticas homossexuais. Mesmo que a narrativa possa, em alguns momentos, parecer paradoxal, levando o/a leitor/a a se confrontar com um discurso aparentemente disciplinador a exemplo da pretensão de Andréa de regular comportamentos, na tentativa de criar uma imagem da lesbianidade livre de estigmas , apostamos que os posicionamentos das personagens são estratégias de uma escrita que pretende legitimar a existência de certos sujeitos. É o que, conforme já foi descrito, acontece com Andréa. Poderíamos dizer que a sua concepção acerca da lesbianidade, limita as práticas homoeróticas femininas em dois grupos: de um lado, o das lésbicas femininas; de outro, o das lésbicas masculinizadas. Esta visão da personagem é, possivelmente, herdeira do que Nadia Nogueira destaca como “fantasmas do lesbianismo”, que seriam “rótulos, marcas, signos que estigmatizaram e identificaram uma única elaboração para as relações afetivas e sexuais entre mulheres”. A partir desta categorização que, segundo a autora, está em consonância com as configurações discursivas criadas pelo pensamento dominante para refletir acerca das práticas homoeróticas femininas, as lésbicas estariam classificadas em: ativas, que representariam o polo masculino da relação; e passivas, que corresponderiam ao polo feminino (NOGUEIRA, 2008, p. 77). Esse ponto de vista leva a protagonista a situar Rosana como a representação do polo ativo, correspondente ao masculino da relação e, como tal, caberia a ela todas as atitudes culturalmente atribuídas ao homem. Berenice, apesar de não apresentar um corpo masculino, seria, também, ativa, pois sua conduta sobretudo a atitude de “pegadora” e de dominadora 70 na relação respaldaria tal classificação. Andréa, por outro lado, seria a passiva, portanto, feminina. Se observarmos as relações sexuais entre Andréa e Berenice, verificaremos que a primeira se coloca sempre em uma posição de passividade, esperando que Berenice a tome, que a possua: Agarrou-lhe a cabeça entre as mãos e suas bocas esmagaram-se num beijo devorador. Berenice derrubou-a para o lado voltando-a de costas, beijou-lhe a nuca, mordiscou-a toda, voltou-se de frente. Venha... seja minha agora... eu a desejo... isso como que faz parte de mim, tal a minha alucinação por você... é um sonho... uma loucura que preciso realizar, senão endoideço. Faça de conta que sou seu homem, seu macho, que você vai dar pra mim, que sou um animal, seu bicho, sua amada, que eu a amo, que você me ama. Entregue-se, por favor, dá você pra mim, me dá... (RIOS, 2005, p. 180-181). Da mesma forma acontece quando o envolvimento se dá com Rosana: Ficou quieta onde estava quando ela se afastou e apagou a luz. Esperou que voltasse e seguia-a quando Rosana a levou pela mão. Tateando no escuro, empurrou-a sobre o sofá. Apertou os dedos com força em seus braços, com medo de que ela fugisse, desconfiando de sua passividade. [...] Estava sentindo alguma coisa estranha e continuava atenta ao que ela fazia. Rosana deslizou o corpo mais para baixo, levou um seio à boca. (RIOS, 2005, p. 154-155). A partir dessa forma de conceber o “ser lésbica”, duas questões podem ser explicitadas. Primeiramente, concordamos com Nogueira (2008) quando afirma que as figurações normativas constituídas em torno de um binarismo masculino/feminino, ativo/passivo são empecilhos para a emergência de uma multiplicidade de formas de desejos e de relacionamentos. Andréa, ao entender as mulheres que se relacionam afetivamente com outras mulheres a partir de modelos fixos, poda a criatividade e a diversidade que pode existir nos modos de vida e nas formas de relacionamentos. Outro argumento do qual podemos lançar mão para criticar a afirmação de Andréa de que as lésbicas masculinizadas eram mulheres fracas cujas práticas estariam, ao lançar mão de convenções heterossexuais, voltadas para “imitar homens”, pode-se aliar à reflexão de Butler: A „presença‟ das assim chamadas convenções heterossexuais nos contextos homossexuais, bem como a proliferação de discursos especificamente gays da diferença sexual, como no caso de „butch’ e „femme’ como identidades históricas de estilo sexual, não pode ser explicada como a representação 71 quimérica de identidades originalmente heterossexuais. E tampouco ela podem ser compreendidas como a insistência perniciosa de constructos heterossexistas na sexualidade e na identidade gays. (2008, p. 56). Nesse sentido, o que Andréa concebe como uma imitação acrítica e incoerente da figura masculina é justamente o lugar onde as categorias de gênero estão sendo embaralhadas, perturbadas e desnaturalizadas. Ao representar escrachadamente uma forma de masculinidade, algumas mulheres estão desenvolvendo o que Nogueira (2008) chama de processo de criação, a fim de resistir ao sistema opressor. Em outras palavras, são corpos que, ao negar uma cultura do feminino, se constroem para encenar o estranho, o esquisito, como forma de afrontar a heterossexualidade hegemônica que invisibiliza a diversidade de formas de expressão das subjetividades. É por via desta concepção que podemos entender quando Foucault (1982, p. 6) afirma que a resistência não é, unicamente, negação: “Ela é um processo de criação. Criar e recriar, transformar a situação, participar ativamente do processo, isso é resistir”. Observemos mais de perto a personagem Rosana. A cena transcrita a seguir demonstra o momento em que ela para o carro à frente de uma boate frequentada especificamente pelo público lésbico, a fim de mostrar a Andréa um pouco do universo da homossexualidade de mulheres. Uma jovem usando cabelo Black Power acenou para Rosana e gritou: Oi, bicho, não vai entrar com a boneca? Hoje não. Andréa recuou assustada. Rosana, vamos embora, isso é o fim do mundo. Essas mulheres assim vestidas, andando desse jeito, o que pensam? Que são homens? Aquela grandalhona parece chofer de caminhão. Meu Deus, será que não sabem ser lésbicas sem imitar homem? Rosana suspirou e olhou de lado, pôs a cabeça para fora do carro, deu ré, esterçou e saiu. Já olhou bem para mim? Já conseguiu me imaginar de vestido? Vejo você todos os dias de saia. E o que pareço? Uma mulher. Não me acha esquisita? Não acha que fico melhor de calças compridas? Bem, de certo modo, sim. Mas não vem ao caso, você não tem a aparência dessas que acabamos de ver. E que tipo tenho? Andréa sentiu-se encurralada. Bem, mão é um tipo comum. Eu diria desportista, uma moça que pratica muitos esportes, isso. Qual nada. Todos me identificam, basta olhar para mim e ver o que sou. Andrógina. 72 É. Isso aí. Bem especificado. Assim deveria estar no meu registro. (RIOS, 2005, p. 150-151). O desconforto de Andréa ao tentar descrever a aparência de Rosana demonstra a estranheza que o corpo da outra lhe causa: corpo másculo, forte, recoberto de atrevimento. Ao longo da narrativa, encontramos diversos comentários acerca desta estranheza, da forma como Rosana é diferente. Para algumas pessoas, sua condição é tida como prejudicial, pois mulheres como ela representariam uma espécie de praga social que poria em risco outras mulheres. [...] As fanchonas, elas estão por toda parte, é uma desgraça, você sabe o que é? Parece praga. Rosana é uma, mas é legal paca. Se todas fossem como ela não tinha problema. Ela disputa com classe, parece homem, a gente fala que ta de olho na mina, e ela desafia: será de quem conquistar, aí um sai da jogada. (RIOS, 2005, p. 251). A performance de Rosana é, inclusive, alvo de ensaios que buscam justificar tanto a sua preferência por iguais quanto o seu jeito másculo, uma justificativa que perpassa, invariavelmente, pelos valores falocêntricos e heterossexistas da cultura. Você não acha que Rosana é assim porque nunca experimentou homem? Ela tem tipo esquisito, másculo; os rapazes, de modo geral, não se interessam por ela como se interessam por você. Se ela tivesse encontrado um cara que lhe desse uns amassos e uma prensa bem dada, não acha que entraria nos eixos? E, depois, essas menininhas se embeiçam por ela por quê? Porque ficam com vergonha de fazer com rapazes certas coisas, e fica mais fácil dormir com uma fanchona disfarçada que vai dormir com elas sem que ninguém pense nada. E então é aquele esfrega e roça e faz coisa que, com homem, seria melhor. (RIOS, 2005, p. 256). De acordo com a preconceituosa explicação dos colegas de classe de Rosana, sua masculinização, assim como o desejo lésbico, seria produto da incapacidade de ser olhada pelos homens, de despertar-lhes interesse ou mesmo de “experimentar” um corpo masculino. No entanto, o masculino, de acordo com Perrin e Chetcuti, pode ser pensado como uma maneira de [...] escapar às definições impostas e estereotipadas das características que parecem corresponder à categoria mulher. A vestimenta masculina permite uma neutralização ou uma resistência ao que a heterossexualidade designa como ser mulher. (2002, p. 11). 73 Se, conforme Butler (2008, p. 59), o gênero é “a estilização repetida do corpo, um conjunto de atos repetidos no interior de uma estrutura reguladora altamente rígida [...]”, Rosana assume o papel de pôr em evidência o caráter construído dos gêneros. A sua intervenção burla a lógica desta estrutura reguladora e perturba as categorias de gênero, ao inscrever um corpo incoerente, estranho. Em outras palavras, o seu corpo deixa transparecer que os homossexuais são, assim como os heterossexuais, constructos culturais. Se Rosana foi capaz de construir um gênero, isto significa que o gênero é efeito de um sistema cultural, ou seja, construído. Isso nos parece muito pertinente no contexto da obra, sobretudo se colocarmos em pauta Andréa e Rosana, duas personagens que têm práticas homoeróticas, mas que apresentam construções distintas de gênero. A distorção daquilo que Butler chama de “inteligibilidade do gênero”29 exigida pelo sistema heteronormativo está, portanto, colocada em evidência e o caráter fictício deste sistema demonstrado. Retornemos, mais um pouco, para Andréa. Talvez as próprias condições em que se situa a personagem sejam determinantes da sua forma de conceber as mulheres que, como ela, vivenciam o desejo erótico por outras mulheres. Andréa é uma adolescente insegura, confusa, totalmente inexperiente, vivendo em um ambiente familiar e social conservador. Obviamente, neste contexto, sua visão de mundo seria restrita e estaria contaminada pelo modelo heteronormativo e pelo pensamento hegemônico sobre a homossexualidade. Sua pouca experiência, portanto, pode, em muitos momentos, tê-la levado a compreender as coisas conforme as referências de que dispunha, o que explicaria a intolerância às diferentes formas de viver a sexualidade que parece ter, quando, por exemplo, considera os bissexuais, masoquistas e sádicos como degenerações. Outra razão que pode nos levar a tentar compreender o movimento de Andréa tem a ver com o próprio desejo de conhecer, decifrar, desnudar o termo homossexualidade, ou lésbica. A ânsia por um conceito, por uma definição, inevitavelmente, levou-a a criar limites e contornos para aquilo que pretendia compreender. Se a vontade de disciplinar e a consequente assimetria criada por esta vontade são problemas identificados na voz de Andréa,ela teria, por outro lado, o mérito de chamar a atenção para a linguagem que fala sobre a homossexualidade. Ao retomar uma tradição escrita para tentar compreender aquilo que se denominava homossexualidade, a personagem, inevitavelmente, insere a linguagem no campo da discussão. 29 Judith Butler (2000) chama de “gêneros inteligíveis” aqueles que instituem e mantêm relações de coerência entre sexo, gênero, prática sexual e desejo. 74 Passava a maior parte do tempo trancafiada no quarto, ou então na biblioteca, vasculhando livros à procura de explicações que nunca dizia o que era, respondendo laconicamente a perguntas que lhe faziam: Estou tentando definir mais adequadamente o sentido de algumas palavras. Na realidade, o que lhe interessava tanto eram as palavras relacionadas a sexo. Rosana emprestara-lhe alguns livros, e ela mudava as capas por capas de livros de estudo para poder lê-los. Eram livros sobre homossexualismo e, lógico, haveriam de querer saber por que razão ela estaria interessando-se por aquela espécie de leitura. (RIOS, 2005, p. 161). O propósito de Andréa ao se debruçar sobre tais leituras era muito claro: definir mais adequadamente o sentido de algumas palavras30. Mas, obviamente, não eram quaisquer palavras que estavam no cerne do seu interesse: eram as palavras que se relacionavam a sexo, mais precisamente aquelas que se relacionavam com o sexo das lésbicas. A falta de informação precisa acerca de tais palavras e das referências utilizadas para a pesquisa31 pode levar a inúmeras conjecturas. Pode-se, mesmo, pensar que a leitura a que Andréa tinha acesso fosse constituída apenas por material erótico sobre homossexualidade que teria como objetivo, e efeito, a incitação do seu desejo sexual, visto que a exploração do próprio corpo se tornara para ela obsessiva. No entanto, à intenção pronunciada de definir, de forma mais adequada, o sentido de alguns termos pode ser atrelada um grau maior de complexidade, permitindo uma leitura mais aprofundada da questão. A pergunta que poderia começar por se fazer seria: o que, exatamente, poderia significar o desejo de definir de forma mais adequada o sentido de algumas palavras? ou ainda: como a personagem poderia estar sendo afetada por estas palavras? A impressão decorrente da leitura é que Andréa, de alguma forma, trava uma espécie de luta com a linguagem que diz sobre a homossexualidade. Definir de forma mais adequada o sentido de certos termos pode sugerir, por um lado, que a personagem estava usando alguns textos como fonte de conhecimento, na tentativa de esclarecer as muitas dúvidas que uma mulher jovem vivendo sob o signo da repressão poderia ter sobre homossexualidade; mas pode, também, demonstrar relevantes desconfianças com relação a estes termos, o que enuncia que a personagem constatara que seus significados não foram atribuídos de forma adequada para a necessidade de sujeitos como ela. 30 31 Entendemos o uso de sentido, aqui, como sinônimo de significado. A personagem, de acordo com esta leitura, pretendia rever o significado de alguns termos. O romance não informa sequer os tipos de livros de que a personagem se valia para fazer suas inferências. A única certeza é a de que Andréa lia. 75 Ao apontar para a questão dos termos, dos sentidos de alguns termos, Andréa, inevitavelmente, submete o/a leitor/a a pensar sobre a linguagem enquanto constituidora de sujeitos. Não poderia, aliás, ser diferente, pois, se a discussão, aqui, perpassa pela questão das construções discursivas acerca da homossexualidade estas agenciadas por diferentes vozes, oriundas de lugares distintos , não podemos nos furtar a tratar desta questão, pois, como afirma Roland Barthes (1978, p. 11), o “objeto em que se inscreve o poder, desde toda eternidade humana, é: a linguagem – ou, para ser mais preciso, sua expressão obrigatória: a língua”. Recorrendo a Barthes (1978) para justificar como a referência à linguagem na obra pode ser importante para a leitura da personagem, verifica-se que a língua nos obriga sempre a escolher entre um dos termos de um par opositivo. Somos obrigados a escolher, por exemplo, entre o masculino e o feminino, enquanto que a neutralidade ou a complexidade são veementemente proibidas. A própria estrutura da língua não só implicaria a possibilidade de relações de sujeição, como garantiria a manutenção destas relações. A este respeito, é pertinente retomar as palavras de Derrida: Ora, a „língua usual‟ não é inocente ou neutra. Ela é a língua da metafísica ocidental e transporta não somente um número considerável de pressupostos de toda ordem, mas pressupostos inseparáveis e, por menos que se preste atenção, pressupostos que estão enredados em um sistema. (2001, p. 25). Pensemos, portanto, que, por intermédio da linguagem, se estabeleceu uma forma “normal” de viver a sexualidade a linguagem da ciência, a linguagem da religião, a linguagem do Estado, etc. , e isto nos permite perceber que a linguagem está sempre aliada a um poder. Em outras palavras, é por intermédio da linguagem que pode ser disseminada a ordem que gerencia e garante o funcionamento do sistema. Nesse sentido, Andréa é astuciosa. Ela desconfia que a linguagem é agenciadora das opressões e procura, com os recursos de que dispõe, entender suas regras de funcionamento, para, utilizando uma expressão de Barthes (1978, p. 16), tentar “trapacear a língua”. É justamente neste momento que a personagem irá redefinir, dizer novamente o que é homossexualidade. Ora, não há para ela outra opção. Diante da constatação de que sujeitos como ela só existem na condição de doentes ou, no caso específico das lésbicas, na invisibilidade ela vai empenhar todos os esforços no intuito de inventar-se enquanto sujeito. Ao penderem para o campo do significado, os esforços de Andréa nos propiciam uma importante estratégia de leitura e demonstram significativos avanços no que concerne à 76 possibilidade de desmontagem de constructos discursivos. A personagem, possivelmente, percebe que, se vive sob o regime de uma linguagem que a construiu de uma forma patológica e a invisibilizou, é no seu interior que esta linguagem “deve ser combatida, desviada” (BARTHES, 1978, p. 15). Dessa forma, Andréa nos permite pensar no que Osmar Santos chama de a palavra mágica que, na visão do autor, diz de uma “vontade de expressão cósmica e transcendental” (2010, p. 122) que é disseminada via linguagem. Assim, este conceito está atrelado a uma linguagem que nomeia as coisas e os indivíduos, caracterizando-os, dizendo de suas forças, possibilidades e desejos, criando-lhes uma essência determinadora de tudo que ele é e produzindo um lugar de cada pessoa, para cada grupo no espaço histórico e cultural. Segundo o autor: A palavra não nasce grudada na coisa que representa, uma coisa representada pode, além da palavra, ser recoberta de outros signos, embora haja sempre uma comunidade semântica que encena um imperativo da fala e impõe uma transcendência do significado, uma multiplicidade de agências (a escola, a igreja, o estado, o partido, o dicionário, etc.) [...] (SANTOS, 2010, p. 123). Se a palavra não nasce grudada na coisa, se tudo é nomeado a partir de determinados interesses, e Andréa deixa entrever esta noção quando diz, por exemplo, que ser lésbica é “lindo, puro”, então, o seu empreendimento demonstra progresso no sentido de criar condições para se pensar acerca de uma cultura da linguagem no Ocidente. É importante salientar que o avanço da intervenção da personagem não está em conseguir, efetivamente, desconstruir, no sentido derridiano em muitos momentos ela retorna ao essencialismo ao defender, por exemplo, um homossexual “genuíno” , mas de fornecer os caminhos para que este tipo de leitura seja empreendido. Nesse sentido, podemos imaginar Andréa não mais apenas como uma voz doutrinária, mas como uma contradição que tem como consequência a sua própria destruição. Talvez o propósito da narrativa com a inserção da personagem seja trazer à cena um discurso que, ao disponibilizar os seus próprios limites, não se sustenta, permitindo, assim, a sua própria implosão. A própria autodestruição física e psicológica protagonizada pela personagem pode ser entendida como a destruição, a inviabilidade das crenças que a constituem e que, na sua inserção no universo das relações homoeróticas, estão sendo, em alguns momentos, repetidas e, em outros, reformuladas. 77 É Andréa uma leitora: uma leitora inconformada, sagaz que, sob a máscara de tentar definir mais adequadamente o sentido de algumas palavras, opera em uma perspectiva de desestabilizar a fixidez dos termos. Se o feminino como repudiado e excluído em um sistema de dominação masculina constitui uma possibilidade de ruptura com os conceitos hegemônicos deste sistema (BUTLER, 2008), a função de Andréa enquanto mulher e lésbica é, também, desestabilizar conceitos solidificados e hegemônicos. Berenice também cumpre esse papel, ao se intitular “traça”. Se recorrermos à linguagem coloquial para identificar um outro sentido para o termo, verificaremos que traça também pode assumir a significação de uma atitude voltada para a construção de uma ideia de masculino, que diz de alguém que vive de conquistar, de seduzir, de “pegar”. Por esta definição temos uma visão bastante precisa de Berenice. A personagem é uma “pegadora”. Vive a desfrutar os belos corpos juvenis que cruzam o seu caminho, sem nenhum pudor ou qualquer forma de remorso. É uma caçadora que está sempre à espreita das presas que não se furtam a cair na armadilha. Se, na intimidade, Berenice assume o papel de macho, do predador, de alguém que traça, fora deste espaço ela não apresenta uma performance visualmente masculina. Berenice não é a figuração da fanchona ou sapatão. Também não é a ladyou sapatilha32. Desta forma, se, do ponto de vista do comportamento, a professora se mostra uma “pegadora”, do ponto de vista da identidade de gênero, não se pode afirmar que ela seja uma estranha a um modelo heterossexual hegemônico. No máximo, a professora é identificada como portadora de uma “dúbia feminilidade”, ou seja, uma performance que se situa em uma espécie de jogo entre mostrar-se e ocultar-se, que reflete o seu caráter perturbador. Viu a perna dela aparecer pela abertura da porta, depois a outra. Eram perfeitas, lindas, gostosas de olhar. Saiu do carro. Estava trajada com simplicidade. Saia curta, blusa branca colada ao corpo. Era uma mulher bem-feita de corpo. Bonita mesmo. Estranhamente bonita, na sua dúbia feminilidade. (RIOS, 2005, p. 80). Berenice não pretende assimilar a forma de comportamento das relações heterossexuais. Ela não é fiel, não é ética e não se permite enquadrar. É como se a personagem fugisse ao controle, aos contornos estabelecidos por Andréa. Se, por um lado, sua postura ativa nas relações não corresponde a uma aparência de masculino, por outro lado, a 32 Segundo Nogueira (2008), “fanchona ou sapatão” é a designação construída para as mulheres cuja performance é visualmente masculina. Enquanto que a “lady ou sapatilha” tem uma atitude feminina. Esses tipos seriam, respectivamente, ativas ou passivas durante o ato sexual. 78 performance de gênero feminina, ou dúbia, não tem uma correlação com sua performance sexual. Assim sendo, Berenice estaria dentro de uma noção de multiplicidade, de quebra dos papéis estabelecidos. Além disto, não podemos saber se a professora assume um papel ativo em todas as relações afetivo-sexuais que vive. Na hipótese de o noivo ser uma realidade em sua vida, não sabemos qual o papel que a personagem desempenha com ele. Da mesma forma, não dispomos de informações acerca da intimidade com D. Cristina, seu caso. Nestas relações visto que não acontecem com pessoas inexperientes e mais jovens, mas com pessoas que estão na mesma faixa etária de Berenice e que também já viveram inúmeros relacionamentos , os papéis desempenhados podem ser alternados, o que poria por terra a fixidez destes lugares (ativo/passivo) ao se pensar a personagem. De qualquer forma, Berenice é a obscura. Aquela cujas informações acerca de sua intimidade não são completamente dadas. Sabemos, sim, que ela não abre mão de ser traça e esta imagem pode ser sugestiva, no sentido de possibilitar pensar outras figurações de lesbianidades para além do binarismo ativa x passiva, butch x femme ou para além das classificações perfeitamente decifráveis e inteligíveis. O comportamento da professora parece expressar uma rejeição ao processo de homogeneização das identidades. A imagem da traça em sua denominação pode ser lida como a representação de um sujeito que, mesmo inserido em um contexto discursivo no qual as identidades emergem como estratégia política, aponta para uma noção, em alguns pontos, menos engessada pelos modelos considerados ideais, como é o caso da lésbica feminina reivindicada por Andréa. No sentido do que foi descrito acerca das personagens destacadas no romance, cumpre buscar justificar o sentido de usar a teoria queer como instrumento de leitura da narrativa. Perguntamod, então: Em que medida pode-se defender que as personagens apontam para um devir queer na literatura cassandriana? É preciso prestar mais esclarecimentos acerca de algumas questões referentes à teoria queer. No que concerne ao termo, identifica Louro (2008) que este pode ser traduzido, dentre outros significados, como estranho, excêntrico. No entanto, segundo a autora, pode, ainda, ser entendido como a forma pejorativa de designar homens e mulheres homossexuais. Enquanto conceito filosófico pós-estruturalista, o termo queer abandona o seu uso coloquial de gíria norte-americana referente aos não heterossexuais. Para o pós-estruturalismo, queer não significa classificar as pessoas como homossexuais ou bissexuais, mas “emerge com uma preocupação de que é preciso desconstruir o caráter permanente da oposição binária masculino-feminino” (SOUZA; 79 CARRIERI, 2010, p. 64). Para o pensamento queer, pôr em xeque a polaridade construída dos gêneros significa “problematizar tanto a oposição entre eles quanto a unidade interna de cada um (LOURO, 2008, p. 31-32). Queer tornou-se, assim, sinônimo de desafio aos paradigmas dominantes da cultura heterossexista. O termo utilizado para inscrever em um lugar marginal aqueles que não se enquadravam nos moldes da normalidade é, então, usado com o intuito de bater de frente, de desafiar. Considerando as complexidades sexuais, queer funciona como um termo „guarda-chuva‟, sob o qual diferentes minorias sexuais poderiam ser estudadas e discutidas. A conclusão a que se pode chegar é a de que a teoria queer significa tanto se opor quanto desafiar a norma. (BEIRUTTI, 2010, p. 29). A defesa, aqui, é que cada uma das três personagens destacadas contribui, mesmo que timidamente, para fazer aflorar uma imagem queer no romance. Andréa traz, por exemplo, a perspectiva de operar com a linguagem por reconhecer que é deste lugar que os sujeitos são constituídos. Ao desconfiar da linguagem, ela está, também, tornando possível o abalo de todas as certezas cristalizadas, o questionamento de pontos de referências seguros. Sem dúvida é este o ponto de partida para tornar imaginável o deslocamento de sentidos e de conceitos. Foi em função desta estratégia proposta pela personagem que o método derridiano da desconstrução pôde ser convocado como possibilidade de análise do texto. Por outro lado, Rosana estaria, antes de tudo, constituindo uma estética corporal cujo objetivo é legitimar sua diferença. O corpo, então, é um lugar de resistência “ao ponto de vista „universal‟, à história branca, colonial e straight do „humano‟”. Ser mulher, para ela, é utilizar vestes masculinas, ter trejeitos e atitudes masculinos, relacionar-se afetiva e sexualmente com mulheres, dentre outras inúmeras possibilidades. Ao mesmo tempo, Rosana representa uma forma de tornar visível a existência das lésbicas, possibilitada através deste corpo esquisito, masculinizado, abjeto. Um corpo que contribui para o florescimento de uma cultura e de uma política dos “anormais” (PRECIADO, 2011, p. 15). Finalmente, Berenice simboliza a antinorma: o desejo desafiador de debochar das instituições, das normas e de desestabilizar o estável. Se, em muitos momentos, recua, em outros, a personagem deixa o legado da desobediência: desobedecer à norma, ao institucional, ao sistema com o único fim de simplesmente viver. As três personagens investem contra a lógica da “inteligibilidade do gênero” (BUTLER, 2008) provando que a existência de tecnologias para a produção de sujeitos 80 “normais”, de gêneros inteligíveis, não resulta, sob quaisquer circunstâncias, em determinismo para os indivíduos ou mesmo em uma impossibilidade de ação política. Ao contrário, no seio destes discursos, estes indivíduos emergem como potências questionadoras e desestabilizadoras da ordem social. Se existem lugares possíveis para além daqueles que o nosso olhar foi educado pela cultura para reconhecer, então é preciso vislumbrá-los. Mais do que isto, é preciso criar as condições para que esses lugares possam aflorar a fim de tornar possível o desejo, as práticas, enfim, a vida em toda a sua magnitude. 81 CONCLUSÃO Desde as primeiras linhas deste trabalho, não cessamos de pensar acerca de como ver, no romance escolhido como objeto de pesquisa, As traças, de Cassandra Rios, um investimento na desestabilização de constructos discursivos acerca da homossexualidade e, mais precisamente, da lesbianidade. Foi com esse intuito que perscrutamos as personagens e caminhamos por um trajeto metodológico que contemplou, antes de tudo, suas falas e, por diversas vezes, seus silêncios. O ponto de partida foi a identificação de uma protagonista lésbica que, colocando-se em um lugar de leitora crítica de uma cultura, demonstrou ser possível duvidar de tudo o que a cultura dizia sobre ela. Tendo sido o seu maior alvo o discurso científico, que descreveu a homossexualidade como patologia, a personagem nos deu a possibilidade de inserir na discussão os estudos de Michel Foucault (1982; 1984; 1988), sobre os dispositivos da sexualidade utilizados no Ocidente. Daí se tornou possível perceber que este sujeito, homossexual, foi forjado no interior de um dispositivo discursivo, em uma cultura heteronormativa. Assim, foi colocado como inferior, como anormal, como portador de distúrbio. Isto justificou a necessidade de voltar aos textos que narraram este indivíduo, com o intuito de desestabilizar conceitos e deslocar sentidos ditos verdadeiros. Este foi o primeiro movimento crítico identificado na narrativa, empreendimento necessário, pois o questionamento de uma vontade de verdade é crucial para a proliferação de outros saberes, de outros desejos. O segundo movimento crítico oriundo da leitura do romance veio da identificação de uma espécie de paradoxo na narrativa que tem a ver com o desejo de positivar a lesbianidade pela constituição de uma identidade forjada a partir de noções essencialistas. O segundo movimento crítico apontado foi, portanto, a problematização desta concepção de identidade lésbica baseada em uma essência e com autoridade para determinar comportamentos, modos de vida e para deslegitimar aqueles/as incapazes de a ela se conformarem. Hall (2012) e Woodward (2012) foram os teóricos que fundamentaram a discussão em favor da concepção de identidade antiessencialista, por se entender que o sujeito cartesiano foi deslocado e por serem as identidades entendidas como fragmentadas, deslocadas, fraturadas. Apontamos, ainda, o desejo de uma política de representação como justificativa para a compulsão por uma identidade. Assim, foi possível recorrer a Butler (2008) para compreender como política e representação podem se configurar questões polêmicas, pois 82 podem, inevitavelmente, ser excludentes e repetir as mesmas leis que pretendem combater. Neste sentido, a voz da protagonista que anseia por uma política em favor das lésbicas foi vista, também, como um dispositivo que tentava produzir corpos sexuados. Diante de tal constatação, emergiu a estratégia de subtrair um elemento de poder na narrativa (DELEUZE, 1979). Assim, a compulsão por uma identidade foi neutralizada para permitir a emergência de outros sujeitos, de outras vozes. Esta estratégia possibilitou a emergência de personagens que, de alguma forma, correspondiam a um discurso de resistência à compulsão pela identidade, quando assumiam uma diferença perturbadora. Por este meio, detectamos que as personagens poderiam ser lidas como uma reação ao processo de normatização imposto pela política de identidade. As identidades não são fixas, acabadas, estáveis e estas personagens permitiram a demonstração de tais questões ao se constituírem de forma diferente à da protagonista. A partir dessas personagens exploramos a imagem das traças uma metáfora para a leitura da intervenção delas na narrativa. A imagem de traça foi o operador utilizado para conceber um desejo visceral, evidente no romance de Cassandra Rios, de arrebentar tudo aquilo que é harmônico, tudo que está dado, tudo que corresponde a uma ordem. Uma metáfora associada à desconstrução de Derrida (2001), que visa por em cheque toda uma lógica discursiva, pautada em no binarismo que produz hierarquias e exclusões, e que privilegia o masculino e heterossexual. Daí, então, o terceiro movimento crítico se tornou visível: o movimento de corrosão, de desconstrução da estrutura vigente como única alternativa para garantir a existência digna de sujeitos não heterossexuais. Tal percepção permitiu trabalhar em um movimento de resgate de sentidos não previstos, não imaginados durante o ato de escrever, mas que podem ser depreendidos da narrativa. Buscou-ses, portanto, uma leitura do texto voltada para ultrapassar os seus próprios limites, os seus próprios contornos. O texto foi percebido em sua potência de constituir linhas de fuga para outras possibilidades de sentidos, outros desejos. Todas as reflexões apontaram para um fundamento teórico queer. Se os teóricos queer – Butler (2008), Miskolci (2007, 2009), dentre outros – investem contra os fundamentos de uma cultura heteronormativa, então a narrativa permitiu, a partir das tensões estabelecidas pelas personagens, enveredar por este enfoque e apostar em indícios de uma política queer no romance. Ao se fazerem traças de uma ordem vigente, ao recusarem as normas, romperem com posições hierárquicas, construírem corpos que embaralham as noções culturalmente dadas de gênero, as personagens apontam para uma política dos anormais (PRECIADO, 83 2012) e permitem pensar o texto de Rios como uma produção de grande relevância para o cenário literário nacional, não apenas por inserir personagens invisibilizadas, mas também por permitir a emergências de configurações diversas destes personagens. Todos os questionamentos levantados foram possíveis por conta de fundamentos teóricos pós-estruturalistas aplicados à leitura da obra. E a própria leitura do texto só se fez possível em virtude da filiação da pesquisa aos Estudos Culturais, que tem como pretensão fazer audíveis todas as vozes, de todos os sujeitos, oriundos de todos os lugares de uma cultura. Talvez seja pertinente encerrar este texto enfatizando que a própria literatura cassandriana assume um papel de traça no cenário nacional. Após décadas vivendo a contradição de, por um lado agradar a milhões de leitores/as e, por outro lado, ser excluída da historiografia literária, a autora, agora, desperta o interesse da Academia e, com a inegável riqueza literária dos seus textos, insere uma literatura impura, protagonizada por sujeitos igualmente avaliados. 84 REFERÊNCIAS AMARAL, Ana Luisa. Desconstruindo identidades: ler novas cartas portuguesas à luz da teoria queer. Cadernos de Literatura Comparada. Corpo e Identidades, n. 3/4, p. 78-92, dez. 2001. Disponível em: <http://www.ilcml.com/Var/Uploads/Publicacoes/Artigos/4eaea29d10dc4.pdf>. Acesso em: 7 jul. 2011. BARTHES, Roland. Aula. Tradução Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Cultrix, 1978. BATAILLE, Georges. A literatura e o mal. Tradução Suely Bastos. Porto Alegre: L&PM, 1989. BEIRUTTI, Eliane Borges. Gays, lésbicas, transgenders: o caminho do arco-íris na cultura norte-americana. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2010. BORDINI, Maria da Glória. 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