Considerações sobre a hermenêutica constitucional
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Considerações sobre a hermenêutica constitucional
1 Considerações sobre a hermenêutica constitucional Primeiramente cabe esclarecer o conceito de hermenêutica, que provém do latim hermeneutica (que interpreta ou explica): o termo é empregado na técnica jurídica para assinalar o meio ou modo por que se devem interpretar as leis, a fim de que se obtenha delas o exato sentido ou o fiel pensamento do legislador. Na hermenêutica jurídica, assim, estão encerrados todos os princípios e regras que devam ser judiciosamente utilizados para a interpretação do texto legal. E esta interpretação não se restringe ao esclarecimento de pontos obscuros, mas toda elucidação a respeito da exata compreensão da regra jurídica a ser aplicada aos fatos concretos. Interpretar é também expor, dar sentido, dizer o fim, significar o objetivo (…) (In: DE PLÁCIDO E SILVA. Dicionário Jurídico. Atualizadores Nagib Slaibi Filho e Gláucia Carvalho. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2010. p. 397). Segundo Hilton Japiassú e Danilo Marcondes, hermenêutica provém do grego hermeneustikós, de hermeneuein: interpretar. Termo originalmente teológico, designando a metodologia própria à interpretação da Bíblia; interpretação ou exegese1 dos textos antigos, especialmente dos textos bíblicos (…) (In: Dicionário Básico de Filosofia. 3ª ed. rec. atualizada. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1996). Contemporaneamente, a hermenêutica constitui uma reflexão filosófica interpretativa ou compreensiva sobre os símbolos e os mitos em geral. Paul Ricoeur cogita duas hermenêuticas: a) a que parte de uma tentativa de transcrição filosófica do freudismo, concebido como um texto resultando da colaboração entre o psicanalista e o psicanalisado; b) a que culmina num “teoria do conhecimento”, oscilando entre a leitura psicanalítica e uma fenomenologia. De Hermes, deus grego que, entre muitos atributos,2 possuía o conhecimento sutil, e é considerado o grande mensageiro dos deuses da mitologia grega. Seus 1 Exegese é a profunda interpretação de texto religioso, jur ídico ou literário. Requer práticas implícitas e intuitivas. A verdade é que os textos sagrados foram os primeiros a ocuparem os exegetas na tarefa de interpretar e dar seu significado. A palavra “exegese” provém do grego exegeomai, exegesis; ex tem o sentido de extrair, externar, exteriorizar, expor (movimento para fora); por isso, o vocábulo em questão significa revelar o sentido de algo ligado ao mundo do humano, mas a prática se orientou no sentido de reservar a palavra para interpretação dos textos bíblicos. 2 O atributo mais característico de Hermes é o caduceu (em grego, kerykeion, “bastão de arauto”), similar ao que era usado nas assembleias gregas por quem estivesse com a palavra. 2 símbolos incluem a tartaruga3 o galo, as sandálias aladas, o chapéu4 alado e o caduceu (que foi dada a ele em troca da lira). Alguns estudiosos defendem que o termo “hermenêutica” deriva do deus grego Hermes, considerado o patrono da comunicação e do entendimento humano, e a quem se atribui a origem da linguagem e da escrita. .Por isso, ele também é considerado o patrono dessa ciência. De fato, o termo “hermenêutica” originalmente exprimia a compreensão e exposição de uma sentença dos deuses, a qual precisa de interpretação para ser corretamente apreendida. Outros estudiosos, no entanto, alegam que o termo descende do grego ermeneutiké, que significa ciência ou técnica que tem por objetivo a interpretação de textos poéticos ou religiosos especialmente da Ilíada e da Odisseia. A interpretação do sentido das palavras e dos textos, teoria, ciência voltada à interpretação dos signos e de seu valor simbólico. A nova interpretação constitucional relaciona-‐se ao desenvolvimento de algumas formas originais de realização da vontade da Constituição Federal. A interpretação jurídica consiste em processo silogístico5 de subsunção dos fatos à norma: a lei é premissa maior, os fatos representam a premissa menor e a sentença é a conclusão. O papel do juiz consiste em revelar a vontade da norma, desempenhando atividade de conhecimento, sem envolver qualquer parcela de criação do Direito para o caso concreto. Simbolizava a condição de arauto e mensageiro dos deuses, e, além disso, era considerado capaz de induzir o sono. Nas representações antigas, duas serpentes se enrolavam na sua ponta. 3 A lebre, por sua fertilidade. Dizia-se que Hermes tinha posto nos céus a constelação da Lebre e deu ao animal o poder de engravidar quando ainda está parindo a ninhada anterior. O falcão ou gavião (o termo grego hierax vale para ambos), provavelmente por sua velocidade. Em alguns mitos, Hermes transforma humanos em gaviões. A tartaruga porque, além de ter inventado a lira a partir de uma casca de tartaruga, Hermes teria transformado em animal uma ninfa chamada Quelone (Khelone, “tartaruga” em grego) que recusou um convite para ir à festa dos deuses. 4 Chapéu de Aidoneus (“escondido”), ao qual era atribuído o poder de tornar seu portador invisível. 5 Silogismo, do grego syllogismós, significa método de dedução de uma conclusão a partir de duas premissas, por implicação lógica. Para Aristóteles, considerado o primeiro formulador da teoria do silogismo. O silogismo é argumento em que, estabelecidas certas convenções, resulta necessariamente delas, por serem o que são, outra coisa distinta do anteriormente estabelecido. (Primeiros analíticos, I, 24) (…). In: JAPIASSÚ, Hilton & MARCONDES, Danilo. Dicionário Básico de Filosofia. 3ª ed. revista e ampliada. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1996. p. 247) 3 Mesmo dentro da dogmática jurídica tradicional, já haviam sido sistematizados diversos princípios específicos de interpretação constitucional, sobretudo em função da “legislação infraconstitucional, e, mais especificamente, do direito civil”. Na verdade, a evolução da interpretação constitucional pode ser analisada de acordo com os diferentes paradigmas do Estado de Direito. Convém recordar que as primeiras constituições escritas, rígidas e dotadas de supremacia surgiram no final do século XVIII com as Revoluções Francesa e Norte-‐Americana. A partir de 1804, com o Código de Napoleão, surge a chamada escola de exegese cujo apogeu foi entre 1830 e 1880. Reinava então o paradigma do Estado Liberal6 sob o primado individualista e patrimonialista que recomendava a interpretação feita pelo Poder Judiciário deveria ser essencialmente uma atividade mecânica calcada na literalidade dos textos legais. Bem exemplifica tal leitura mecanista da hermenêutica a frase do deputado Bergasse, que era constituinte de 1789, na qual afirma que “o Poder Judiciário estará (…) mal organizado se o juiz gozar do privilégio perigoso de interpretar a lei ou de acrescentar algo a suas disposições” (SAMPAIO, José Adércio Leite. Discurso de legitimidade da jurisdição constitucional e as mudanças legais do regime de constitucionalidade no Brasil, p. 193). A jurisdição era vista como longa manus da lei. No Etat Legal a profunda desconfiança dos revolucionários franceses em relação aos juízes não deixava margem para adjudicação da Constituição, sendo atribuído ao juiz o papel de mera “boca da lei”. Desta forma, o juiz, cuja missão se iniciava exatamente onde a do legislador terminou, era escravo do direito posto. . Ao fim da Primeira Guerra Mundial, ocorre uma sensível transformação estrutural do Estado de Direito, o qual abandona sua postura abstencionista para enfim assumir uma nova atitude de intervenção nas relações sociais, econômicas e laborais. 6 Na França, naturalmente se defendeu o Etat Legal, que sublinhava a supremacia não da Constituição, mas da lei fundamentada na vontade popular que exprime o parlamento. Já no contexto alemão cogita-se no Rechtstaat, no qual prevalece a noção de Estado mínimo, nos moldes de um Estado Liberal de Direito, onde vige séria separação entre Estado e sociedade, já que a intervenção estatal representava potencial perigo à liberdade e à propriedade. 4 A superação do antagonismo existente entre a igualdade política e a desigualdade social fez surgir um novo modelo de Estado de Direito: o Estado Social.7 Com ele, dá-‐se um incremento na complexidade do ordenamento jurídico, o que requer maior sofisticação dos cânones interpretativos. Diante de tais mudanças, o labor do juiz passa a ser visto como algo mais complexo e compromissado em assegurar finalidades sociais que recaem pesadamente sobre os ombros do Estado. Os métodos hermenêuticos refinam-‐se para serem capazes de libertar o sentido da lei das garras da vontade do legislador, indo mais na direção objetiva da própria lei, com suas diretrizes materializadoras do Direito empenhadas na dinâmica das necessidades dos programas e tarefas sociais. No início do modelo hermenêutico resta contaminado pela ilusão hipnótica da neutralidade. Não há de se compadecer com as injustiças da lei. As profundas remodelações do Estado e do Direito recebem o decisivo esforço hermenêutico da parte de Hans Kelsen no sentido de tentar limitar a interpretação da lei através de uma ciência do Direito encarregada de delinear o quadro das leituras possíveis para a escolha da lei a ser aplicada ao caso concreto. Na concepção kelseniana, a relativa indeterminação do ato de aplicação do direito é representada pela ideia de moldura ou quadro. A determinação ou vinculação da norma superior (lei) em relação à norma de escalão inferior (sentença judicial) nunca é completa, em razão da impossibilidade de estabelecer uma vinculação do ato de aplicação em todas as direções e sob todos os aspectos. A norma jurídica possui uma espécie de moldura estabelecida por seu texto, dentro do qual o aplicador do direito tem margem de livre apreciação – maior ou menor – para preenchê-‐la, podendo optar pela aplicação que julgar mais adequada entre as várias possíveis. Para Herbert Hart, um dos principais expoentes do positivismo jurídico no sistema da common law, a questão central referente à interpretação jurídica está ligada à ideia de textura aberta do direito. 7 O Estado Social é, de fato, um modelo que se mostrou em vários regimes, e cujas principais propostas podem ser exemplificadas em três documentos históricos. O primeiro deles foi a Declaração dos Direitos do Povo e do Trabalhador, na Revolução Russa de 1917. Os outros dois foram a Constituição Mexicana de 1917, resultado da Revolução Mexicana, e a Constituição de Weimar de 1919, surgido em uma Alemanha arrasada pela Primeira Guerra Mundial (e base para a sustentação futura do regime nazista). Os EUA não optaram por um novo documento, mas, quando a questão social se intensificou com a crise da década de 1930, novas interpretações de sua Constituição liberal deram rumos mais intervencionistas ao Estado. 5 Tais aberturas devem ser preenchidas à luz das circunstâncias, entre interesses conflitantes que variam de peso conforme o caso. De fato, Hart não chega elaborar uma plena teoria da interpretação, restringindo-‐se a elaborar informações essenciais para a compreensão dos problemas da linguagem no Direito, apontando os exageros e insuficiências do formalismo e do ceticismo, para então buscar uma postura intermediária entre os dois extremos. O fim da Segunda Guerra Mundial foi o marco histórico no surgimento de outro novo modelo de Estado que tanto busca consolidar as conquistas e superar as deficiências das experiências anteriores: o Estado Democrático de Direito.8 Neste Estado, o papel desempenhado pelo Judiciário é fortalecido pela ampliação de sua competência para invalidar atos legislativos e interpretar criativamente as normas jurídicas à luz da Constituição. O limite de discricionariedade na aplicação do Direito é ampliado com o uso de técnicas de ponderação e argumentação. A maior exigência da postura judicial contemporânea surgiu como consequência da crescente sofisticação da doutrina e da jurisprudência, sendo principalmente decorrente do processo contínuo de complexidade da sociedade atual. O fim dos processos de interpretação é limitar a discricionariedade do intérprete, por meio da fixação de parâmetros destinados a reduzir o subjetivismo. A necessidade de se ter métodos próprios de interpretação baseados na superioridade hierárquica da Constituição e na natureza principiológica das normas consagradoras dos direitos fundamentais. Sem dúvida, a textura aberta, o caráter polissêmico e indeterminado dos princípios, além da falta de estrutura proposicional, exigiram não só uma interpretação maior, mas também uma densificação do conteúdo a ser aplicado. Analisemos o método hermenêutico clássico ou jurídico que teve em Ernst Forsthoff um importante estudioso e parte da premissa de que a Constituição, por ser uma espécie de lei, deve ser interpretada por meio dos mesmos elementos tradicionais desenvolvidos por Savigny para a interpretação das leis em geral, sendo estes elementos sistemáticos, históricos, gramaticais e lógicos. 8 O Estado Democrático de Direito passou por várias transformações ao longo dos tempos. Dos direitos fundamentais reconhecidos sob o prisma das liberdades, passou-se ao foco nos direitos econômicos, sociais e culturais, cujas políticas de redistribuição e reconhecimento procuram efetivar e concretizar a igualdade. A conformação entre os poderes constituídos também acabou por se modificar, delineando um Executivo forte, um Legislativo que fiscaliza leis mais do que as promulga e materializa o conteúdo social das constituições e um Judiciário ativo e cidadanizante. 6 A força normativa da Constituição estaria assegurada pela sua dupla relevância enquanto texto sendo, simultaneamente, ponto de partida e limite para a interpretação. A Constituição como lei conforme a tese da identidade é uma conquista do Estado de Direito e um fundamento de sua estabilidade. As inegáveis particularidades da Lex Fundamentallis devem ser consideradas tão somente como elemento adicional, incapaz de afastar a utilização das regras clássicas da interpretação. Apesar de a maioria dos doutrinadores entender que a Constituição Federal de 1988 é uma carta principiológica, Humberto Ávila considera falsa a afirmação de que ela seria “composta mais de princípios do que de regras”, tanto que a mesma costuma ser classificada como analítica, justamente por ser detalhista e pormenorizada, características estruturalmente vinculadas à existência de regras, em vez de princípios (In: Neoconstitucionalismo: entre ciência do direito e o direito da ciência, p.189-‐190). Marcelo Novelino, no entanto, entende que tal característica e a utilização deste argumento no direito constitucional brasileiro, tendo em vista que a Constituição Federal de 1988, possui, sobretudo no âmbito dos direitos fundamentais, um expressivo número de cláusulas abertas se comparado com as leis infraconstitucionais. De qualquer forma, o uso isolado do método clássico revela-‐se insuficiente para uma adequada interpretação, principalmente diante dos casos difíceis. O método científico-‐espiritual tem sua origem em conhecido artigo no qual Forsthoff, ao rejeitar a concepção integrativa proposta por Rudolf Smend, utilizou a denominação de Geisteswissenschafiliche Methode. Este método parte da premissa de que a interpretação constitucional deve considerar o sistema de valores subjacentes à Constituição (método valorativo), assim como a importância desta no processo de integração comunitária (método integrativo). Os institutos do direito constitucional não podem ser compreendidos sem a conexão que guardam com o sentido de conjunto e universalidade expressos pela Lex Mater. Deve ser a Constituição interpretada como um todo, numa visão sistêmica, sendo levados em consideração os fatores extraconstitucionais, tais como a realidade social captada a partir do espírito reinante naquele momento (método sociológico). A principal diferença em relação aos métodos positivistas é o fato de este ser extremamente crítico no tocante ao conteúdo constitucional, apreciado globalmente em seus aspectos teleológicos e materiais, os quais devem servir de critério para interpretação. 7 Devida a extrema proximidade entre a interpretação constitucional e as ciências sociais, a Constituição adquire uma feição mais política que propriamente jurídica.9 O método tópico-‐problemático foi retomado particularmente por Theodor Viehweg com sua obra de 1953, sendo uma forma de reação do positivismo jurídico reinante nos meados do século XX. Inicialmente, apesar de limitado ao estudo do direito civil, a tópica acabou repercutindo também em outras áreas. O mestre alemão de Munique compreende a tópica como sendo uma técnica do pensamento problemático. O objeto da tópica são raciocínios que derivam de premissas aparentemente verdadeiras, elaboradas com base em opiniões amplamente admitidas. Os argumentos (topoi) são submetidos a opiniões favoráveis e contrárias, a fim de descobrir qual a interpretação mais conveniente: “no lugar do reflexo, entra a reflexão.” Compreendidos como “esquemas de pensamento”, formas de raciocínio e de argumentação, pontos de vista ou lugares-‐comuns, os topoi são extraídos dos princípios gerais, decisões judiciais, crenças e opiniões comuns, tendo como função intervir, em caráter auxiliar, na discussão em torno de um problema concreto a ser resolvido. Há duas espécies de topoi: os gerais, elaborados por Aristóteles, Cícero e seus sucessores, os quais são universalmente aplicáveis a todos os problemas, e que consistem em generalizações muito amplas; e os especiais, aplicáveis a um determinado ramo, que servem apenas para um círculo específico de problemas. O método tem como ponto de partida a compreensão prévia do problema e da Constituição e, como ponto de apoio, o consenso, os quais são revelados, por exemplo, pela doutrina dominante ou pela jurisprudência prevalente e pacífica. É uma técnica de chegar ao problema “onde ele se encontra”, elegendo os critérios recomendáveis a uma solução adequada. Apesar do intenso caráter assistemático do pensamento tópico, existem conexões essenciais entre problema e sistema. A tópica é um procedimento de busca de premissas, ao passo que o raciocínio sistemático se apoia em premissas já 9 A luta pela conquista do Estado de Direito se espalhou pelo Ocidente, particularmente no contexto do Estado Liberal de países como Inglaterra, Estados Unidos, França e Alemanha. Dentro do contexto inglês, o Estado de Direito ou rule of law designa a busca por processo justo e pelo reconhecimento da supremacia da lei, do direito de acesso aos tribunais e ao due process of law que restaram estabelecidas explicitamente na Magna Carta. 8 conhecidas. Aquela mostra como se acham as premissas, este as recebe e as elabora. Os maiores defensores do uso deste método sustentam que o eminente caráter prático da interpretação aliado à estrutura normativo-‐material da Constituição impõe que seja dada preferência à discussão dos problemas, mesmo que a textura aberta da letra constitucional não permita qualquer dedução subsuntiva. As maiores críticas à utilização da técnica tópica são: a) ausência de investigação jurisprudencial séria e profunda; b) possibilidade de conduzir ao casuísmo ilimitado e, por consequência, a interpretação, assim como a norma e o sistema são tratados como simples topoi; c) fato de que a interpretação deva partir da norma para a solução do problema, e não do problema na busca da norma que justifique o resultado desejado pelo intérprete. Entre suas principais utilidades estão o preenchimento de lacunas e a complementação e comprovação dos resultados obtidos de outras formas. Os críticos à obra de Viehweg apontam a falta de clareza, que pode ser facilmente percebida em Tópica e jurisprudência e que também influenciou (e ainda influencia) os debates. Para melhor entender a proposta do mestre alemão, é preciso analisar o contexto onde ela floresceu, em 1953. O jurista Karl Larenz explica que a tópica jurídica surgiu como uma alternativa à jurisprudência positivista do século XIX, cujo método era deduzir as decisões jurídicas de normas e conceitos ordenados em um sistema que partia de axiomas. No entanto, percebeu-‐se que o método axiomático-‐dedutivo era insuficiente e não garantia que as decisões fossem justas. Assim, o método tópico seria uma forma de encontrar decisões justas para os casos jurídicos que eram então tratados como problemas. Os problemas jurídicos deveriam ser examinados por diversos ângulos, levando-‐ se em conta diferentes pontos de vista, inclusive os do senso comum. A partir da consideração das várias opiniões sobre a questão, seria possível chegar a um consenso sobre o que seria justo. Tais pontos de vista, na tópica de Viehweg, inserem-‐se no que foi denominado de “tópicos” ou lugares comuns. Afirma o mestre alemão que as jurisprudências da Roma Antiga e da Idade Média eram tópicas. O procedimento do jurista romano era propor o problema para o qual procurava argumentos. As soluções eram buscadas nas coleções de regras ou tópicos, os quais eram legitimados ao serem usados, por homens de prestígio. Na Idade Média, os juristas estudavam Retórica antes do Direito, e o estilo de ensino na época se baseava na discussão de problemas. 9 O grande desafio é decifrar a definição de topoi ou tópico, mas devemos levar em conta o fato de o conceito de “tópico”, que vem do grego topos, ser historicamente impreciso, inclusive nos escritos de Aristóteles e Cícero, pois é usado em diversos sentidos, como o de argumento, como ponto de referência para a obtenção de argumentos, como enunciados de conteúdos e como formas argumentativas. Sobre a definição de tópicos jurídicos, Atienza concorda com a conclusão de Garcia Amado; assim, identificamos os tópicos como sendo pontos de vista diretivos, referidos ao caso, regras diretivas, lugares-‐comuns, argumentos materiais, enunciados empíricos, conceitos, meios de persuasão, critérios que gozam de consenso, fórmulas heurísticas, instruções para a invenção formas argumentativas etc. E como tópicos citamos os adágios, conceitos, recursos metodológicos, princípios de Direito, valores, regras da razão prática, standards, critérios de justiça, normas legais etc. (GARCIA AMADO Amado apud ATIENZA, 2006, p. 53). In: SZYNWELSKI, Cristiane. Tópica jurídica – solução ou problema? Revista CEJ, Brasília, ano XIII, n. 41, p. 67-‐73, abr./jun. 2008, disponível em: <http://www.estig.ipbeja.pt/~ac_direito/CristianeS.pdf>. Mas esse método tem como uma das suas principais utilidades o preenchimento de lacunas e a complementação e comprovação dos resultados obtidos de outras formas. O método hermenêutico-‐concretizador foi inspirado também nas obras de Viehweg e Luhmann e sua sistematização foi elaborada por Konrad Hesse, responsável pela elaboração de um catálogo de princípios interpretativos dirigentes e limitadores, utilizados na consideração, coordenação e valorização dos pontos de vista elaborados para a resolução do problema. Parte do pressuposto de que a interpretação constitucional é uma concretização, entendida como norma preexistente na qual o caso concreto é individualizado. A plurissignificação da Constituição deve ser feita sob a inclusão da realidade a ser ordenada. Por não haver interpretação constitucional independente de problemas concretos, interpretação e aplicação consistem em um processo unitário. Os elementos basilares deste método são: norma a ser concretizada, compreensão prévia do intérprete e problema concreto a ser resolvido. A concretização pressupõe um entendimento do conteúdo da norma a ser concretizada, que, por sua vez, é inseparável da pré-‐compreensão do intérprete e do problema concreto. O intérprete há de contemplar os fatos concretos da vida, correlacionando-‐os com as proposições normativas da Constituição, pois a interpretação adequada deve ser capaz de concretizar o sentido da proposição normativa dentro das condições reais dominantes numa determinada situação. 10 É uma metodologia positivista atenta à realidade concreta pautada em um teor empírico e casuístico, que rejeita a ideia de que a Constituição contém um sistema concluído e uniforme, lógico-‐axiomático ou hierárquico de valores, adotando um procedimento tópico guiado e limitado normativamente. Ao contrário do método tópico-‐problemático, no hermenêutico-‐problematizador há a primazia da norma sobre o problema, partindo-‐se do resultado da concretização normativa para a solução do caso concreto. O método normativo-‐estruturante de Müller também foi inspirado na tópica, e apresenta um esquema estruturante desenvolvido especialmente para o entendimento constitucional. A ciência jurídica é fruto de uma compreensão equivocada da estrutura da realização prática do direito. A partir da premissa de que direito e realidade não subsistem autonomamente, por ser impossível isolar a norma da realidade, deve-‐ se falar em concretização, não em interpretação. Esta é apenas um dos elementos, ainda que dos mais importantes, do processo de concretização. Por fornecerem complementarmente os componentes necessários à decisão jurídica, na concretização normativa o operador deve considerar principalmente os elementos resultantes de interpretação do programa normativo. O resultado do conjunto formado pelo programa e pelo âmbito normativos é a norma jurídica, que deve ser formulada de maneira abstrata e genérica. Müller faz distinção entre a norma e o texto normativo. Pois o texto não possui normatividade, não é lei, mas apenas a forma da lei; atua como diretriz e limite das possibilidades legais de uma determinada concretização material do direito (função diretiva e limitativa). A normatividade, como um processo estruturado que se manifesta nas decisões práticas, decorre não só do texto da norma, mas também de numerosos textos que transcendem o seu teor literal, como os materiais legais, os manuais didáticos, os comentários e estudos monográficos, os precedentes judiciais e o material fornecido pelo direito comparado. O texto só ganha sentido quando colocado numa operação ativa de concretização. A concretização das normas é realizada por meio dos elementos clássicos desenvolvidos por Savigny e aliados a alguns elementos adicionais, divididos em dois grupos. O primeiro abrange os recursos do tratamento do texto da norma; o segundo, os passos de sua concretização. 11 Os elementos metodológicos compreendem os tradicionais da interpretação (gramatical, histórico, genético, sistemático e teleológico10), os princípios de interpretação da Constituição, entendidos como casos das regras tradicionais (efeito integrador, princípio da unidade, concordância prática, força normativa…) e os problemas da lógica formal e da axiomatização no direito constitucional. Em razão da ausência da normatividade, nunca se poderá estabelecer uma ordem hierárquica vinculante entre esses elementos metódicos, tendo fracassado todas as tentativas neste sentido. O processo de aplicação do direito deve utilizar dados da sociologia, da ciência política, da economia, além de outros saberes exigidos pelo âmbito normativo da prescrição a ser concretizada. Os elementos do âmbito da norma são fecundos e decisivos para a concretização, motivo pelo qual a práxis jurisprudencial de tribunais constitucionais tem um valor paradigmático em termos de conhecimento. O âmbito da norma não consiste na soma dos fatos, mas em um nexo formulado em termos de possibilidade real de elementos estruturais que são destacados da realidade social11 na perspectiva seletiva e valorativa do programa da norma e estão, via de regra, conformados de modo ao menos parcialmente jurídico. Os elementos dogmáticos compreendem a doutrina e a jurisprudência que, por serem estruturadas linguisticamente, também necessitam de interpretação. Os elementos de técnica de solução buscam, pelo caminho da tópica, pontos de vista problematicamente orientados com a finalidade de buscar a espécie de estruturação e argumentação no texto da decisão. Funcionam como fatores auxiliares sem conduzir a suposições e resultados inerentes e contrários à norma. Os elementos teóricos contribuem, sobretudo, para a pré-‐compreensão, em teoria, da Constituição, produzindo efeitos decorrentes da força caracterizadora de determinadas posições metódicas fundamentais das próprias teorias do direito, do Estado e da Constituição, tais como o positivismo, o decisionismo, o normologismo e o sociologismo. A dogmática jurídica pode ser entendida como subsistema de técnicas de comunicação no universo jurídico. Segundo Müller, para se cogitar em dogma no exato sentido da palavra, falta o caráter de obrigatoriedade. 10 ( ...) A interpretação gramatical, que procurava o sentido vocabular da lei, a interpretação lógica, que visava ao seu sentido proposicional, a sistemática, que buscava o sentido global ou estrutural, e a histórica, que tentava atingir o sentido genético (…). 11 No Brasil, o Estado Social tem sua origem na Era Vargas. Já o Estado Social e Democrático demorou mais. Marcado por ditaduras, o Estado brasileiro teve dois momentos democráticos mais longos, entre 1945 e 1964 e o atual, consagrado a partir da Constituição de 1988. 12 Os elementos de política constitucional fornecem valiosos pontos de vista materiais para a compreensão e implementação práticas de normas constitucionais, com referência à ponderação das consequências e à consideração valorativa de conteúdos. É importante salientar que os elementos metodológicos do âmbito da norma e dogmáticos, por estarem em relação direta com a norma, seriam hierarquicamente superiores aos demais. E, segundo Paulo Bonavides, este é o ponto falho do método normativo-‐ estruturante que, após se abrir para a realidade, tem sua última postulação assentada numa estrutura jurídica limitativa. Tais métodos, por se basearem em premissas diferentes, em verdade, são complementares, podendo ser usados conjuntamente para promover a concretização da Constituição. O uso dos métodos interpretativos na delimitação e redução da influência subjetiva do intérprete pode ser questionado por diversas razões. São utilizados mais como instrumentos capazes de racionalizar o resultado das decisões do que propriamente como um critério determinante para se chegar até elas. Mesmo assim, a presença e a influência dos métodos de interpretação podem ser verificadas, por exemplo, no julgamento envolvendo a aplicabilidade imediata das alterações introduzidas pela LC nº 135/2010 (Lei da Ficha Limpa). Em seu voto, o Ministro Joaquim Barbosa afirmou que “apreciaria o caso a partir da perspectiva de valorização da moralidade e da probidade no trato da coisa pública, sob uma ótica de proteção dos interesses públicos e não dos puramente individuais (STF-‐ RE 631.102/PA, Rel. Min. Joaquim Barbosa, 27/10/2010) (Informativo 622/STF). Para concluir, recorro ao brilhante Lenio Streck, que alude: “Os 18 anos da Constituição do Brasil e as possibilidades de realização dos direitos fundamentais diante dos obstáculos do positivismo jurídico”. Por isso, é possível dizer que é correta ou incorreta a interpretação.Recomendamos a leitura imperdível de sua obra Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do direito. A visão mais conservadora da interpretação constitucional é taxada de textualista, originalista ou preservacionista. Um dos defensores mais extremados da moderação judicial é Robert Bork, que sustenta que os juízes devem seguir o entendimento original dos fundadores da Constituição, por ser este o sentido pretendido pela sociedade daquela época. 13 Os principais pontos característicos do interpretativismo são: a) respeito absoluto ao texto constitucional e, em particular, à vontade do constituinte histórico; b) utilização somente de princípios neutros (Wechsler) que são postuladores fundadores (framers), sem o acréscimo dos princípios ou fins do intérprete; c) limitação ao previsto ou contemplado como possível pelo constituinte histórico, e como forma de efetivar sua mensagem, sem que sejam acrescentados ao texto direitos não previstos originariamente; d) a interpretação estrita da demanda capaz de efetivar a única resposta constitucional correta, razão pela qual os aplicadores da Constituição não possuem opções exegética discricionárias; e) afastamento da mensagem do constituinte. No entanto, tal enfoque reducionista conferido à interpretação constitucional não se mostra compatível com a amplitude e o conteúdo marcadamente axiológico de grande parte dos dispositivos consagrados atualmente na Constituição Federal. Referências AVILA, Humberto. Neoconstitucionalismo: entre ciência do direito e o direito da ciência. In: NETO, Cláudio Pereira de Souza; SARMENTO, Daniel; BINENBOJM, Gustavo (coords.). Vinte anos da Constituição Federal de 1988. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008. BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 6ª ed. São Paulo: Malheiros Editores, 1996. CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Estado de direito. Lisboa: Fundação Mário Soares Gradiva Publicações, 1999. DE PLÁCIDO E SILVA. Dicionário Jurídico. Atualizadores: Nagib Slaibi Filho e Gláucia Carvalho. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2010. JAPIASSÚ, Hilton; MARCONDES, Danilo. Dicionário Básico de Filosofia. 3ª ed. rec. atualizada. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1996. NOVELINO, Marcelo. Direito Constitucional. 5ª ed. revista, atualizada e ampliada. Rio de Janeiro: Forense, 2011. SLAIBI Filho, Nagib. Direito Constitucional. 3ª ed. revista e atualizada. Rio de Janeiro: Forense, 2009. STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do Direito. 8ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009. 14 SZYNWELSKI, Cristiane. Tópica jurídica – solução ou problema? Revista CEJ, Brasília, ano XIII, n. 41, p. 67-‐73, abr./jun. 2008, disponível em: http://www.estig.ipbeja.pt/~ac_direito/CristianeS.pdf>. Sobre a autora do artigo: Gisele Leite Professora universitária com mais de duas décadas de experiência em magistério superior, mestre em direito, mestre em filosofia, graduação em direito pela FND-‐ UFRJ, graduada em Pedagogia pela UERJ, conselheira do Instituto Nacional de Pesquisas Jurídicas, ganhadora de prêmios nacionais e internacionais por artigos jurídicos, ensaios, e obras publicadas.Leciona em faculdades públicas e privadas de relevante conceito no mercado de ensino superior. É mais conhecida apenas pelo primeiro e último nome, assim sendo por `Gisele Leite`. Aliás, é assim que assina a farta produção acadêmica que possui. Também leciona na Escola de Magistratura do Rio de Janeiro e de Rondônia.
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