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nº 108 | janeiro de 2006
FILAS
OS BANCOS
À MARGEM
DA LEI
TOM ZÉ
NOVAS IDÉIAS
PARA VELHOS
PROBLEMAS
BRINQUEDO
TUDO TEM
CONSERTO
DÍVIDA DE
SANGUE
Apesar das ações recentes
contra a desigualdade racial,
o Brasil ainda tem um longo
caminho a trilhar
Casal de idosos
do quilombo
Tapuio (PI)
CARTAAOLEITOR
Publicação mensal do Sindicato dos
Bancários e Financiários de São Paulo, Osasco e
Região – Rua São Bento, 413, Centro, São Paulo,
CEP 01011-100, ☎ (11) 3188-5200.
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“PAÍS DE
TODAS AS
RAÇAS”
Ainda falta
muito para
alcançarmos
essa condição
erá possível reparar os estragos causados à população negra por
séculos de escravidão, humilhações e o mais severo nível de exclusão e pobreza encontrado na pirâmide social brasileira? Por mais
complexa que seja essa questão, parece que o Estado brasileiro tenta encará-la. O movimento negro vê essa ações com críticas e reservas,
mas boa parte dele reconhece as diferenças, como mostra matéria de capa desta edição.
Aliás, o papel dos movimentos sociais é mesmo reivindicar, propor, fiscalizar, cobrar. Do desempenho desse papel dependerá, inclusive, que nação resultará deste Brasil que está sendo passado a limpo. Em tempo de
balanços e planos, cabe a todos que sempre lutamos e sonhamos com um
mundo melhor dar novos passos em direção ao lugar em que queremos
viver.
Isso passa pela forma como tratamos o nosso planeta, como usamos
nossa água, como dispensamos o nosso lixo, a responsabilidade com que
consumimos. A natureza está no limite e tem dado mostras inegáveis do
seu cansaço. Precisamos agir com responsabilidade todo dia, e não com
responsabilidade virtual à qual se adere por modismo – não é mesmo, senhores banqueiros?
O Brasil que queremos, o da apuração e da depuração de todas as sujeiras, não tem espaço para que sobressaiam os que esquecem a ética,
que abandonam ideais, que desistem da luta. Que 2006 seja o ano das
boas intenções transformadas em ações, em verdade, em vida, sem espaço para que a história ande para trás.
A diretoria
S
[email protected]
REVISTA DOS BANCÁRIOS |
3
D E S TA Q U E
Depois de intensa mobilização do Sindicato, FetecCUT/SP, CNB-CUT e Afubesp, a direção do Grupo Santander Banespa assumiu compromisso de que não haverá
mais demissões em massa na
empresa e que dispensas consideradas irregulares seriam
revistas. As negociações foram
iniciadas depois de atividades
de protestos no Casa (unidades 1, 2 e 3) e em agências da
região central da cidade.
Os bancários mantêm-se em
estado de atenção sobre possíveis novas demissões e para que
o banco atenda reivindicações
específicas. Além das manifestações, as entidades lançaram
campanha de denúncias junto
à opinião pública em outdoors
e rádio. O assunto foi também
tema de reunião no Ministério
do Trabalho e Emprego.
Mundo afora
Já no dia 21 de novembro,
MAURICIO MORAIS
LUTA CONTRA DEMISSÕES NO GRUPO SANTANDER BANESPA
Muitas manifestações e negociações rolaram durante o mês de dezembro para evitar as demissões
começaram as atividades sindicais da Jornada Internacional de Luta, com objetivo de
construir Acordos Marcos,
tendo como parâmetro as
convenções da Organização
Internacional do Trabalho
MAURICIO MORAIS
Leci: carisma e competência,
no samba e na luta contra
o preconceito
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| REVISTA DOS BANCÁRIOS
(OIT) e o respeito às legislações e acordos locais. A campanha começou pelo BBVA,
que não está mais presente no
Brasil, e prosseguiu no dias seguintes no ABN e no HSBC,
com atividades realizadas no
Uruguai, Paraguai, Argentina
e Chile. No dia 24, foi a vez
do Grupo Santander Banespa.
Em seguida, o Banco do Brasil. Nas atividades foram distribuídos informativos em inglês, espanhol e português.
CONSCIÊNCIA NEGRA
A sambista Leci Brandão comandou o show na Quadra do
Sindicato que encerrou o mês
da Consciência Negra. Ela bateu duro no preconceito: “Hoje as pessoas não podem ser gordas, não podem envelhecer, não
podem ser negras. Se estiverem
nessas condições enfrentam situações muito mais difíceis”,
afirma. Os convites para o show
foram trocados por alimentos
não perecíveis, depois distribuídos a entidades assistidas pelo
Comitê Betinho dos Funcionários do Santander Banespa. O
mês de novembro também foi
marcado pela Marcha Zumbi+10 Contra o Racismo, pela
Igualdade e a Vida, que reuniu
milhares de manifestantes na
Esplanada dos Ministérios.
de novembro, após longo período de negociações com a federação patronal. A data-base
dos financiários é em 1º de junho. A PLR deve ser paga até
14 de janeiro.
FINANCIÁRIOS TÊM
REAJUSTE DE 7,5%
Abono de R$ 650 e PLR de
80% do salário mais R$ 600,
além do reajuste, fazem parte
do acordo aprovado no dia 7
BANCÁRIO CONQUISTA
“JABACULÊ” NO ITAÚ
Seria creditada até o último
dia 23 de dezembro a suada
complementação de Participação nos Lucros e Resultados dos
funcionários do Itaú. O “plus”
de R$ 850 para todos os funcionários foi resultado da campanha “Queremos nosso Jabaculê
de Natal”, que pressionou a direção do banco com manifestações no Centro Empresarial Itaú
Conceição (Ceic-Itaú) e no Centro Técnico Operacional (CTO),
com direito a jabá com abóbora aos funcionários. No dia 22
de novembro as negociações entre banco, Sindicato, CNB-CUT
e Comissão de Empresa foram
abertas; a decisão foi anunciada
no último dia 19, quando foi fechada esta edição.
PARCELA PREVI
É REDUZIDA NO BB
Os participantes da Previ –
fundo de previdência complementar do pessoal do Banco
do Brasil – aprovaram no final de novembro a redução da
Parcela Previ de R$ 2.200,00
para R$ 1.468,00. Com a decisão, acompanhada do manejo de recursos do Fundo Paridade, melhoram a situação
atuarial da Previ e também as
futuras complementações de
45 mil bancários hoje da ativa, além de cerca de 20 mil
AUGUSTO COELHO
DEZ ANOS DE PLR EM
CONVENÇÃO COLETIVA
A obrigatoriedade de patrões
e empregados negociarem a estipulação de PLR surgiu por
medida provisória em 1994 e
não assegurava participação de
sindicatos na conversa. Até hoje existem setores e empresas
que não falam sobre o assunto. Os bancários fizeram fazer
valer o seu direito independentemente da MP. Com muita
mobilização, a conquista da
primeira PLR num acordo nacional de trabalho aconteceu
na campanha salarial dos bancários de 1995, então com o
valor de 72% do salário mais
R$ 200.
Delegação do Sindicato acompanhou pelo 2º ano a marcha por uma política de valorização do salário mínimo
aposentados desde 1997. A redução foi aprovada por
86,79% dos participantes do
Plano 1 – aposentados, pensionistas, participantes e contribuintes externos – dos quais
79,75% dos bancários em atividade. Os funcionários do
Banco do Brasil ainda estão na
batalha por uma nova proposta de custeio da Cassi. E devem recorrer à Justiça caso o
banco mantenha a postura de
não cumprir a isenção de tarifas, prevista em acordo coletivo – a direção do BB foi notificada disso no último dia 22.
POR UM IR MENOR E UM
SALÁRIO MÍNIMO MAIOR
A 2ª Marcha Nacional em defesa da valorização do salário
mínimo e pela correção da tabela do imposto de renda, convocada pelas centrais sindicais,
reuniu cerca de 15 mil trabalhadores em Brasília, no dia 29 de
novembro. No mesmo dia, lideranças sindicais e ministros da
área econômica e social do governo debateram propostas para 2006. Os sindicalistas pediam
aumento superior aos R$ 321
previstos no orçamento e correção de 13% na tabela. Na quar-
ta, 30, foi criada comissão para
discutir uma política de valorização permanente do salário mínimo. Outros dois encontros
aconteceram nos dias 15 e 21 de
dezembro. Até o fechamento
desta edição, não estavam definidos percentuais de correção do
salário mínimo e da tabela do
IR.“Queremos mais. Não vamos
desistir de tornar mais justa a
questão tributária. O mínimo
deve cumprir sua função social”,
avalia o presidente do Sindicato, Luiz Cláudio Marcolino, que
participou de todo o processo
de negociação.
“Nenhuma sensação de constrangimento é comparável ao
sentimento de pavor ao ter uma
arma apontada para sua cabeça”, essa é uma das muitas manifestações enviadas por bancários ao Sindicato, durante a
campanha pelo veto à lei que
proibia a utilização de portas
com detector de metais nas
agências bancárias da cidade.
De autoria do vereador Dalton
Silvano (PSDB), a lei, aprovada
em 23 de novembro pela Câmara de Vereadores, colocava
em risco a vida de clientes e
funcionários de bancos e deixou o Sindicato em alerta. No
dia 15 de dezembro, a entidade entregou documento à Se-
cretaria de Governo da Prefeitura, com toda a sustentação jurídica necessária ao veto. O documento foi sugerido pelo próprio secretário de governo,
Aloysio Nunes Ferreira Filho,
em audiência com o presidente do Sindicato, Luiz Cláudio
Marcolino, em 7 de dezembro.
O Sindicato apresentou um histórico do movimento realizado
pelos bancários na década de
1990 e que resultou na conquista das portas como medida de
segurança. O veto do prefeito
José Serra, publicado no dia 16
de dezembro, voltou à Câmara,
que pode mantê-lo ou derrubá-lo. Não há um prazo determinado para essa apreciação.
MAURICIO MORAIS
FIM DAS PORTAS DE SEGURANÇA É VETADO
Luiz Cláudio em audiência com o secretário de governo, Aloysio Nunes (dir.)
REVISTA DOS BANCÁRIOS |
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BANCOS
ÉTICA
NO FIM
DA FILA
Para respeitar os
consumidores e ter
uma relação ética com
bancários e clientes os
bancos não precisam
sacrificar seus lucros
astronômicos.
Precisam apenas tornar
o seu capitalismo
menos selvagem
e pôr em prática
o discurso da
responsabilidade social
Por Paulo Donizetti
de Souza
o último mês de novembro, o
Itaú deu um “presente” ao
cliente Eraldo Costa, recémmigrado do Banco do Brasil
por decisão do prefeito de São
Paulo. O servidor público municipal recebeu três cartões, dois deles de
crédito, e foi surpreendido com um limite de crédito de 900 reais. “Os cartões eu
vou devolver, vindo de banco, nada é de
graça. E o limite também não é para o meu
bico, pois não ganho nem 1.000 reais por
mês”, disse o cliente. A recepcionista Daniela Santos, que trabalha num laboratório clínico, também foi agraciada pelo Bradesco em novembro. Ganhou limite de 600
reais, quase do tamanho do seu salário de
750, e um novo débito em seu extrato, de
22 reais: “tarifa cheque especial”.
Os casos de Eraldo e Daniela estão cheios
de coincidências. São clientes dos maiores
bancos do país. Não têm a conta por livre
escolha, mas de seus empregadores. Nada do
N
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| REVISTA DOS BANCÁRIOS
que receberam desses bancos foi pedido e
têm uma conduta rara entre os brasileiros,
o de não querer crédito maior que as pernas, pois sabem que mais tarde ou muito
cedo os bancos cobrariam pelos tais “presentes”. A famosa tática “se-colar-colou” consiste em empurrar produtos e, caso o cliente não reclame, manda-se a conta depois.
Com o limite de crédito, por exemplo, a conta deixa de ser uma simples conta-salário e
passa a desfrutar de um serviço tarifado, como constatou a recepcionista.
Outro ponto em comum entre esses personagens: para dispensar os presentes tiveram de perder seu precioso tempo. Daniela telefonou para a agência no dia em que
viu o estranho débito: “Eu não quero isso”, chiou. “Então vá à agência e converse
com o gerente”, recebeu como resposta. O
funcionário público Eraldo também passou aborrecimentos com o Itaú. Depois de
ter perdido muito mais que meia hora para migrar sua conta para o banco, voltou
a ter dor de cabeça só para dizer ao banco que a tática, para ele, não colou. Assim,
além de cometer o mais comum dos desrespeitos ao Código de Defesa do Consumidor, os bancos inauguraram a versão
paulistana da Lei das Filas, ou Lei dos 15
minutos, com o mesmo desdém.
Questão de tempo
Embora a Febraban tenha orientado seus
representados a se adequar – os bancos tiveram quatro meses para isso –, para eles
a lei é só uma questão de tempo (com o
perdão do trocadilho): a tendência é o setor tentar barrar na Justiça a aplicabilidade da lei, como tem conseguido, por meio
de liminares, em várias das cidades do país
que já haviam estipulado a regra. Enquanto isso, todo banco tem de cumpri-la – sob
pena de receber multa de 564 reais a cada
autuação, dobrada em caso de reincidência. Nas primeiras semanas da lei, em vigor desde 29 de setembro, em agências de
MAURICIO MORAIS
Fila para fora da
agência. A nova
moda dos bancos
JAILTON GARCIA
ESPERTALHÕES
A LEI É PARA TODOS Atividade do Sindicato, em parceria com o Idec, contra a tentativa dos
bancos de não obedecer ao Código de Defesa do Consumidor. A ação está em julgamento no STF
maior movimento ou visibilidade houve
obediência. Mas na maioria, nos bairros e
na periferia, não.
O supervisor de caixas de uma agência
do Bradesco na zona Oeste, Adilson Moreira, afirma que respeitar os 15 minutos
é utópico. “Em dias mais críticos não há
espera menor que meia hora. E ainda fazemos triagem para, antes de dar a senha
ao cliente e contar o tempo, ver se o assunto não pode ser resolvido no auto-atendimento. Abrimos um caixa só para os
‘boys’. Tem boy que sozinho consome os
15 minutos”, relata o bancário, lembrando
que os caixas ainda sofrem pressão para
convencer as pessoas a aderir ao débito automático, utilizar o auto-atendimento, ter
cartão de crédito. “Para piorar, não é raro
você estar atendendo e de repente o equipamento travar. Trabalhamos com gambiarras recicladas”, reclama.
A contar com o potencial dos bancos em
descumprir a lei das filas, a prefeitura faturaria alto com multas. Mas se depender
da capacidade de fiscalização, as autuações
não farão nem cócegas nos banqueiros. A
Secretaria de Coordenação das Subprefeituras, encarregada de fazer a lei pegar, conta com 700 fiscais para toda a cidade, onde existem mais de 2 mil pontos de atendimento. E esse contingente, convocado para um esforço concentrado enquanto a lei
está na mídia, é o mesmo que tem de atender a todas as outras irregularidades praticadas contra o município – ambulantes,
poluição do ar, sonora e visual, obras irregulares, enfim, coisas nada raras na cidade.
Raros, aliás, serão os clientes encorajados a
denunciar. Do início de outubro até o último dia 15 de dezembro, segundo a Secretaria, houve apenas 1.152 queixas. No mesmo período, o esforço concentrado de fiscalização conseguiu aplicar 324 multas.
A federação dos banqueiros considera
que as agências irão se adaptar aos poucos, já que, apesar dos enormes investimentos em tecnologia para manter os
clientes longe do caixa, muita gente não
abre mão de ter sua conta paga, depósito
ou movimentação autenticados por um
profissional treinado para isso. Segundo a
Febraban, o aumento no número de clientes também dificulta a meta de melhorar
o atendimento. Há cinco anos, havia 56
milhões de correntistas; hoje são mais de
75 milhões. De acordo com o Sindicato
dos Bancários de São Paulo, Osasco e Região, esse volume representa uma média
de 187 contas por bancário, três vezes mais
do que há uma década.
O presidente do Sindicato, Luiz Cláudio
Marcolino, considera positiva toda a legislação orientada para uma relação mais ciREVISTA DOS BANCÁRIOS |
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vilizada entre os bancos e a população. “Em
vez de os bancos ficarem procurando brechas legais para validar suas atitudes ilegítimas, deveriam mudar sua mentalidade em
relação ao público”, afirma. “O número de
funcionários na ponta, no atendimento, diminuiu em escala muito maior que a redução da categoria como um todo. A introdução do regime de trabalho em turnos
com ampliação do horário para das 9h às
17h acabaria com os transtornos dos clientes, o estresse dos bancários e abriria cerca de 161 mil postos de trabalho. E o que
isso representaria em acréscimo na folha de
pagamentos em nada abalaria a sólida e
crescente lucratividade do setor.”
Dados do Banco Central apontam que
o período entre janeiro e setembro deste
ano já rendeu perto de 20 bilhões de reais
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| REVISTA DOS BANCÁRIOS
em lucros para os bancos, 39% mais que
no mesmo período em 2004. Esse resultado vem das taxas de juros praticadas pelo
sistema bancário, que cobra em um mês
algo igual ou superior à inflação do ano;
ou recupera em três meses um ano de taxa Selic. Vem também das receitas com tarifas e serviços, que bateu nos 30 bilhões
de reais até setembro – um salto de 22,5%
ante o ano passado. Um dos lados perversos desse resultado, além daquele notado
no bolso dos clientes, é sentido no dia-adia dos bancários, no ritmo de trabalho a
que são submetidos para dar conta das metas que lhes são impostas.
Corda no pescoço
A bancária Julia Maria Silva, gerente de
atendimento do Bradesco Prime, confirma
a prática descrita pelos clientes como rotina nas agências, tanto do varejo quanto
no Prime. E explica por quê: tem de haver vários produtos por conta – cheque especial, utilização do limite, crédito “automático” pré-aprovado, cartão de crédito. O
objetivo é chegar a seis itens – mais seguro e previdência, por exemplo. “O banco
cobra pelo limite e, de preferência, ganha
também com alguns dias de saldo negativo do cliente, a gente tem que dar a corda para o cliente se enforcar”, conta Julia.
Como nem todo cliente reclama, muitas
vezes dá certo. O mesmo vale para o envio de cartão de crédito.
“Quando o cliente pede alguma coisa, empréstimo por exemplo, é outra oportunidade de exercitar a ‘empurroterapia’, barganhar um seguro ou, como virou febre nes-
OS DOIS LADOS DA MESMA FILA Agência do Banco do Brasil em Carapicuiba: clientes
FOTOS: PAULO PEPE
espremidos, crianças de colo e muita pressão em cima dos bancários
te final de ano, um plano de previdência
inteligente que gera dedução do IR”, relata.
Segundo a gerente, de tempos em tempos
o programa de metas é incrementado por
campanhas pontuais, como a da previdência neste final de ano, ou a migração de investimentos para operações que interessam
circunstancialmente ao banco. “Temos que
dizer que tal aplicação é de preferência sem
explicar como funcionam as outras.”
Guilherme Ferreira, gerente de conta de
pessoas físicas do ABN Real, ratifica a estratégia. “A gente tem de ver o cliente como número. Não tem nada de ética ou responsabilidade social.” Segundo ele, fazer
com que 100% dos clientes tenham cheque especial, crédito automático, cesta de
serviços e cartão de crédito é o mínimo.
“Você é obrigado a ser chato.”
Sobre a possibilidade de ter postura diferente, ambos consideram impraticável.
“Se a cada três campanhas de produto você não atinge os objetivos, está ameaçado,
é rua. Então, não tem como humanizar a
relação com o cliente, isso não passa de
marketing”, revela Guilherme. “Quando
chega o final do dia, a gente vai ser sempre questionada: ‘como é, não vendeu por
quê?’ Se ficamos longe das metas, nosso
emprego fica ameaçado. Se atingimos, fizemos a obrigação. O banco não vai nem
querer saber a que custo, se a gente teve de
abordar cliente como se fôssemos uns coitados: ‘pelo amor de Deus, faz uma previdência para me ajudar’. Não vai querer saber se tivemos de iludir o velhinho ingênuo a tirar seu dinheirinho da poupança
para botar numa previdência”, dispara Julia. “O foco é o produto. O foco é o lucro.”
Grita geral
Entidades de defesa do consumidor engrossam o coro dos descontentes com a
falta de responsabilidade social dos bancos. O setor costuma ocupar lugar de destaque na lista de queixas do Idec, parceiro dos bancários em diversas frentes de batalha por uma nova conduta do sistema financeiro. A mais recente é pelo julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (Adin) movida pelos bancos pedindo
para serem “café-com-leite” diante do Código de Defesa do Consumidor. A ação já
tem dois votos contra os bancos no STF,
mas o julgamento vem sendo sucessivamente adiado desde 2002. O último adiamento, dia 14 último, empurrou a decisão
para fevereiro do ano que vem. Nos bastidores, é sempre notada forte presença dos
advogados dos bancos no Supremo.
“Não entender a relação de cliente bancário como relação de consumo é um grande retrocesso. Se um banco aluga um imóvel para instalar uma agência o contrato é
baseado na lei de inquilinato, não há norma específica. O mesmo vale para cessão
de crédito e venda de produtos dos bancos para os consumidores de seus serviços”, defende a advogada do Idec, Maíra
Feltrin.
A entidade tem promovido diversas campanhas em parceria com o Sindicato para
conscientizar a população e mobilizar a sociedade contra os abusos praticados pelos
bancos. Na mais recente, em dezembro,
mais de duas mil pessoas enviaram mensagens aos ministros do STF pedindo respeito ao Código. Antes, em novembro, a
Confederação Nacional dos Bancários
(CNB-CUT) promoveu seminário para
discutir soluções para o atendimento bancário. Participaram representantes do Banco Central, Ministério do Trabalho, sindicatos, entidades de consumidores e do Instituto Observatório Social. Os banqueiros,
convidados, não deram as caras.
Para o presidente do Sindicato, Luiz
Cláudio Marcolino, os bancos respeitarem
relações básicas como os direitos dos consumidores e a lei das filas é ponto de partida para começar a “limpar” sua imagem
e a pôr em prática um pouco do discurso de responsabilidade social de que tanto falam. “Numa relação ética não haveria espaço nem para pressões indecentes
por metas nem para exploração dos clientes”, acredita. ❚
Nota da Redação: foram empregados alguns
nomes fictícios para preservar a identidade
de bancários e clientes.
REVISTA DOS BANCÁRIOS |
9
C APA
REPARAÇÃO
AINDA QUE
TARDIA
O país tem bom
desempenho no
combate à discriminação
e na promoção da
igualdade racial. Mas
diante do tamanho da
dívida social com a
população negra, ainda
há muito a ser feito
Por Rose Silva
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| REVISTA DOS BANCÁRIOS
líder comunitária Maria Rosalina dos Santos nasceu em
Queimada Nova (PI), na comunidade quilombola de Tapuio,
onde vivem 138 habitantes, entre eles 46 crianças. Para concluir o ensino fundamental, há duas décadas, ela caminhava 24 quilômetros diariamente. Uma geração depois, pouco mudou
na vida cotidiana. As crianças continuam
caminhando oito quilômetros para ir à escola, não há energia elétrica, água encanada, saneamento, telefone ou posto de saúde. Em época de chuva a comunidade fica isolada pelos riachos que circundam o
local, na seca os moradores devem cavar a
A
areia ou andar grandes distâncias para obter a água utilizada para lavar roupas. Um
dos exemplos mais gritantes da exclusão
social brasileira que afeta particularmente
a população negra rural.
Essa realidade começou a ser enxergada
e modificada pelo programa Brasil Quilombola, coordenado pela Secretaria Especial de Promoção da Igualdade Racial (Seppir) e executado em parceria com 21 ministérios. Criado justamente para melhorar a qualidade de vida das comunidades
remanescentes de quilombos, o programa
tem investimento de 130 milhões de reais
previsto até 2007. Em agosto, o quilombo
Tapuio foi contemplado com um projeto
citação de 200 pós-graduandos e gestores
públicos federais no tema, o financiamento de 23 milhões de reais para pesquisas
que enfocam a saúde dos afro-descendentes, o recente lançamento de uma campanha nacional que enfatiza a relação entre
o racismo e a vulnerabilidade dos negros
à Aids e a concessão de bolsas de iniciação científica do Projeto Afro-Atitude a 550
negros cotistas de universidades públicas.
A segunda edição do livro Saúde Brasil:
uma Análise da Situação de Saúde, este ano,
incluiu pela primeira vez o recorte racial.
A publicação explora informações dos sistemas do Sistema Único de Saúde (SUS).
Para o gestor e especialista em saúde pública Luiz Antônio Nolasco, a inclusão desses dados em uma publicação oficial é um
grande avanço. “A legitimação dessas informações é a base para o Estado assumir
que existem diferenças com base na exclusão social e econômica, que geram discriminação e precisam ser sanadas”, afirma.
Ações integradas
Na educação, um marco foi a aprovação
da lei 10.639, em 2003, que obriga o ensino de história afro-brasileira nas escolas.
Entre as iniciativas tomadas para garantir
que essa lei seja de fato implementada, destaca-se o projeto A Cor da Cultura, que
produziu 56 programas sobre cultura afrobrasileira. Os vídeos farão parte de kits
educativos que chegarão a 2 mil escolas em
2006, com a capacitação de 4 mil professores, em sete estados brasileiros.
O Ministério da Educação desenvolve
atualmente quarenta ações voltadas à pro-
moção da igualdade racial, destacando-se
o programa Universidade para Todos
(ProUni), que beneficia 112 mil alunos, dos
quais 38 mil são negros. Cerca de 36 mil
afro-descendentes receberam financiamento do Fundo de Financiamento ao Estudante do Ensino Superior para concessão
de crédito a estudantes de cursos superiores não gratuitos, com o estabelecimento
do recorte racial. No ensino público, 11
mil negros foram incluídos pelo programa
de cotas adotado em dezoito universidades estaduais e federais.
A representante do Ministério do Trabalho no Conselho Nacional de Promoção
da Igualdade Racial, Eunice Lea de Moraes, avalia que houve um grande avanço
desse tema com a atuação da Seppir. “A
própria criação do Conselho demonstra isso, pois ele não trata apenas das questões
negras, mas das várias raças e etnias, indígenas, judeus, árabes, ciganos – uma população que também é discriminada”, afirma. Outro ponto importante para ela é a
transversalidade entre os ministérios. “Os
programas já existentes na área de igualdade racial e de gênero foram ampliados,
e temos hoje vários novos programas no
Ministério do Trabalho”, diz. Eunice exemplifica com a área que coordena, de qualificação profissional. De 142,3 mil pessoas
inseridas no Plano Nacional de Qualificação, 62% são negros e descendentes de indígenas. Essa proporção de atendimento
ocorre também nos Consórcios Sociais da
Juventude, que desenvolve ações de qualificação voltadas para encaminhamento de
jovens ao primeiro emprego.
AGÊNCIA BRASIL
INCLUSÃO DIGITAL
Matilde Ribeiro acompanha
a entrega de computadores
na comunidade do
Engenho II
VALTER CAMPANATO/ABR
de desenvolvimento sustentável no valor
de R$ 700 mil, em parceria com a Petrobrás, no apoio à atividade de beneficiamento de cerâmica vermelha.
Essa é apenas uma das ações desencadeadas no Brasil após a criação da Seppir,
há quase três anos. Vinculada à Presidência da República, essa secretaria especial
tem a missão de integrar ações, junto aos
organismos do governo federal, voltadas à
inclusão da população negra. Desde a
sua criação, por exemplo, foram
implantadas 70 medidas de ações
afirmativas dentro do Programa
Nacional de Saúde da População
Negra. Entre as principais, a capaREVISTA DOS BANCÁRIOS |
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Identidade quilombola
O Programa Brasil Quilombola tem desenvolvido uma série de ações que podem
transformar a vida dessas comunidades em
todas as regiões do país. Segundo a Seppir,
desde 2003 foram instaurados pelo Ministério de Desenvolvimento Agrário 270 processos de regularização fundiária para os
quilombolas – que, como outros trabalhadores rurais, são vítimas de violência no
campo por não possuírem a documentação
que comprova a posse da terra. Mas não
basta regularizar a posse da terra, é preciso
enfrentar as carências decorrentes da ausên12
| REVISTA DOS BANCÁRIOS
EM BUSCA DA CIDADANIA
Crianças negras vivendo na miséria ou à
procura de trabalho, como o engraxate
abaixo, atestam o longo caminho a trilhar.
“O Brasil tem uma dívida social muito grande
com a população negra. É preciso avançar
nas políticas sociais compensatórias e
reparatórias”, alerta Neide Fonseca, do Inspir
AGÊNCIA BRASIL
O Relator Especial sobre Formas Contemporâneas de Racismo, Discriminação
Racial, Xenofobia e Intolerância Correlata,
Doudou Diène, que visitou o Brasil recentemente a convite da Seppir, comentou em
reunião da ONU o engajamento do Brasil
no combate ao racismo e à xenofobia: “Em
que pese a persistência de resistências fortes a essa mudança histórica, sobretudo por
parte do setor privado, há uma verdadeira
vontade política para superar o racismo e
a discriminação”. Segundo a ministra Matilde Ribeiro, responsável pela Seppir, é necessário tornar esta política cada vez mais
viável, assimilada no planejamento, na definição do orçamento e na ação cotidiana
das administrações públicas em todo o país.
A 1ª Conferência Nacional de Promoção
da Igualdade Racial – realizada este ano –
mobilizou 95 mil pessoas em sua fase preparatória e reuniu em Brasília 1.019 delegados dos 26 estados da federação e do Distrito Federal. Pela primeira vez a sociedade civil e os governos municipais, estaduais
e federal foram convocados para discutir e
encaminhar políticas que combatam desigualdades relacionadas às etnias de origem
negra, indígena, cigana, árabe, palestina e
judia. Para a ministra, essa atuação só é
possível por meio da parceria entre os vários segmentos, ministérios, fundações, instituições governamentais e não governamentais, organismos internacionais.
Dentro dessa perspectiva, foram criados
o Conselho Nacional de Promoção da
Igualdade Racial, de caráter consultivo,
composto por vários ministérios e instituições da sociedade civil, e o Fórum Intergovernamental de Promoção da Igualdade
Racial, que conta atualmente com 400 adesões de estados e municípios e tem a missão de planejar, executar e monitorar políticas públicas voltadas à inclusão social
de negros. Os resultados desse trabalho na
política pública se traduzem em termos de
cooperação, capacitações profissionais e
convênios, que beneficiam famílias de comunidades quilombolas e urbanas.
cia secular do Estado nessas regiões. Nessa
direção a secretaria lista alguns exemplos.
Na comunidade do Engenho II, em
Goiás, estão sendo investidos 4 milhões de
reais em construção de moradias, infra-estrutura, saneamento básico, eletrificação e
informatização de escola. Em Garanhuns
(PE), foram instaladas pelo governo federal cinco tele-salas para a educação de jovens e adultos nos quilombos Castainho,
Estrela, Estiva, Timbó e Kaluete. E também
celebrado um consórcio dos municípios do
agreste pernambucano para o atendimento de dezenove outras comunidades.
Em Campinho da Independência, Parati (RJ), foram investidos recursos em atividades de turismo e artesanato e está em
andamento o programa Cultura Viva, que
inclui cursos de cestaria, cerâmica, capoeira, confecção de tambores, jongo (dança
tradicional) e percussão voltados para geração de trabalho e renda. “As comunidades conseguiram ampliar o diálogo com o
poder público e participam da definição
das prioridades em suas regiões”, diz o líder comunitário Vagner do Nascimento.
Maria Rosalina, do quilombo Tapuio
AGÊNCIA BRASIL
manejo de mudas, artesanato, piscicultura, criação de búfalo, suinocultura, construção de casa de farinha, fruticultura e
outras. Os moradores aprenderam em uma
oficina a definir e estruturar seus próprios
projetos, patrimônio que permanecerá
com eles para o futuro, como destaca Pedro Alencar, da comunidade local. “Não
estamos criando nada de estranho e sim
resgatando o que já foi feito no passado e
estava perdido, trazendo de volta o trabalho que dava resultados e nos desfazendo
de outros que eram fantasias, apenas”, diz.
A PRESENÇA FAZ A DIFERENÇA
VALTER CAMPANATO/ABR
Sandra de Sá no quilombo Tapuio (PI):
“nos sentimos fortalecidos”, diz a líder
comunitária Maria Rosalina (dir.)
(PI), recebeu em agosto a visita de integrantes da Seppir acompanhados da cantora Sandra de Sá, com o objetivo de fazer intercâmbio cultural e uma posterior
produção artística, dentro do projeto Quilombo Axé, idealizado para difundir a cultura dos quilombolas a partir de incursões
de artistas consagrados em várias comunidades do país. “Um dia antes havíamos sido agredidos pela polícia porque reagimos
à retirada de água da fonte da comunidade de Sumidouro, que é a única da região.
Nos sentimos fortalecidos com a presença
destas pessoas, mostra que não estamos sozinhos. Foi um dia de sonho”, relata.
Uma parceria com a Eletronorte, no
Amapá, possibilitou destinar 2,2 milhões
de reais a 24 projetos de desenvolvimento
sustentável preparados por mais de uma
dezena de comunidades, onde vivem cerca de 15 mil quilombolas. A partir de janeiro, serão incrementadas atividades de
Coragem para melhorar
Há um reconhecimento por parte de setores do movimento negro quanto aos esforços do governo nesse tema. Mas também há críticas. Entre as principais, que a
capacidade de influência dos movimentos
sociais nas decisões poderia ser maior. O
ritmo do que chamam de “transversalidade” (integração de ações entre os vários órgãos públicos visando a otimizar resultados – uma das finalidades da criação da
Seppir) também é menos efetivo do que
esperam as entidades.
De acordo com Neide Fonseca, presidenta do Instituto Sindical Interamericano pela Igualdade Racial (Inspir), o governo Lula fez mais do que qualquer outro em termos de políticas afirmativas de promoção
da igualdade e combate à discriminação.
“Mas precisa fazer mais. O Brasil tem uma
dívida social muito grande com a população negra. É preciso avançar nas políticas
sociais compensatórias e reparatórias até
que se criem oportunidades de inclusão e
acesso à cidadania para que cada um, numa sociedade mais igual, possa caminhar
e se desenvolver de acordo com suas competências e habilidades”.
Uma grande oportunidade de consolidar os avanços até agora alcançados, segundo ela, está agora nas mãos do Congresso e depende de empenho do governo: o Estatuto da Igualdade Racial, que
passou em primeira votação na Câmara:
“Se o Estatuto previr a definição de fundos públicos e autonomia de ação, não precisa de mais nada, será um passo irreversível. Se não, sua aplicação será limitada”,
alerta Neide, que é também secretária de
Relações Sociais da Confederação Nacional dos Bancários (CNB-CUT). “Um Estatuto da Igualdade Racial, com autonomia orçamentária, pode vir a ser a verdadeira ‘carta de alforria’.” O problema é o
futuro do Estatuto, com fundos públicos,
que ainda precisa vencer a política “mãofechada” da equipe econômica. ❚
Colaborou Isabel Clavelin
REVISTA DOS BANCÁRIOS |
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E N T R E V I S TA TO M Z É
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O
TROPICALISTA
QUE SE
REINVENTA
Cantor, compositor, tropicalista... Há muitos
rótulos aplicados a Tom Zé, mas nenhum deles
mostra o criador original que não pode ser
classificado em nenhum estilo musical,
até porque ele vive mudando em busca
de seu caminho, a singularidade
Por Frédi Vasconcelos
Fotos de Augusto Coelho
REVISTA DOS BANCÁRIOS |
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oucas vezes uma entrevista precisou contar tanto com o acaso para acontecer. Pautado pela Revista dos Bancários para entrevistar o músico baiano, entrei em contato com sua mulher, Neusa, que também
é sua empresária. Estava difícil, a agenda
carregada de viagens no período em que deveria
acontecer a conversa. A opção dada foi enviar as perguntas por e-mail para que ele, “numa madrugada
em que fica no computador”, nas palavras dela, pudesse responder. Teria que me conformar com a opção, no lugar de uma entrevista feita com contato
pessoal.
Aí entrou o acaso. Numa viagem a Brasília a trabalho, na sala de embarque estavam Tom Zé e sua banda, que fariam show à noite na capital e embarcariam
no mesmo vôo. Me aproximei e expliquei minha pauta. Ele foi receptivo, mas ainda assim manteve a solução dada por Neusa: mandar por e-mail. Ao entrar
no avião, porém, mudou de idéia: “A gente não vai
fazer nada mesmo na próxima hora e meia, vamos
conversar.” Troquei meu cartão de embarque com um
de seus músicos e assim saiu esta entrevista.
“Mas estou sem gravador”, ressalvei. “Não tem problema, falo bem devagarinho e você anota tudo”, concordou Tom Zé, baiano que, em 2006, faz 70 anos.
Difícil acreditar para quem vê a vontade e a energia
com que compõe, enfrenta o palco e discursa sobre
qualquer assunto. Veja a seguir os principais trechos
dessa conversa permitida pelo acaso.
P
Quando
a cada
significado
há uma
etimologia,
quando tudo
que dá à
palavra valor
desaparece,
o que adianta
dizer alguma
coisa ?
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| REVISTA DOS BANCÁRIOS
Revista dos Bancários – Na atual crise política,
os intelectuais foram cobrados por ficarem em silêncio, diferentemente de outros momentos. O que
está acontecendo?
Tom Zé – Neste ano, o Caderno Mais da Folha de
S.Paulo publicou crônicas falando como uma coisa
pode se transformar em narrativa... numa cultura secularizada onde não há mais um Deus vingativo. Inicialmente a imprensa não sabe nem noticiar evento.
Para os intelectuais, o cataclismo do esfacelamento
dos valores tem sido tão radical, que ele fica incapaz
de abrir a boca. Quando a cada significado há uma
etimologia, quando tudo que dá à palavra valor desaparece, o que adianta dizer alguma coisa? Democracia, por exemplo, o que democracia quer dizer
agora? É bom que se cobre, mas a resposta mais intelectual que teve até agora não veio dos intelectuais,
veio da facção do PT que saiu para formar o PSOL.
RdB – Já que estamos falando de política com
um baiano, como é possível a permanência até hoje de coronéis como Antônio Carlos Magalhães posando de moralista junto com seu neto nas CPIs?
Tom Zé – A ocasião faz o santo. Quando o grupo
representado por José Serra e pelo PSDB queria destruir Magalhães, transformou-o no bode, não deu
certo. Ele não era o bode, mas o diabo em pessoa.
Ele aceitou esse papel humilde que agora representa como estratégia para canalizar a força na direção
dos netos.
RdB – Há muitas histórias do tempo em que vo-
cê estava no ostracismo, não fazia sucesso. Uma
delas é que iria voltar para Irará, a cidade em que
nasceu na Bahia, e virar gerente de posto de gasolina, é verdade?
Tom Zé – É verdade, o posto está lá até hoje, é do
meu sobrinho, Deguinho, outro dia mesmo abasteci o carro lá. Para entender melhor, não tenho estrutura para aceitar um cargo de favor numa secretaria de cultura. Preferia um trabalho igual ao da minha infância. Até a universidade trabalhava no balcão da loja de meu pai.
RdB – E como aconteceu a virada, dizem que o
David Byrne (ex-Talking Heads) entrou numa loja
procurando discos de samba e comprou um LP
seu por engano, o Estudando o Samba, que de
samba tradicional não tem nada. Onde isso aconteceu?
Tom Zé – Foi numa loja do Rio de Janeiro que ele
não lembra o nome. Quando voltou para Londres,
botava um disco por dia para ouvir. Quando escutou o Estudando o Samba botou para tocar de novo. Anteontem mesmo (em setembro, nota da redação) li numa revista francesa que ele disse que parecia uma banda pós-moderna de Nova York. Aí ele
telefonou para o Arto Lindsay (músico brasileiro,
compositor e arranjador), que sabia quem eu era. O
Matinas Suzuki foi entrevistar o Byrne no apartamento dele, que cheguei a conhecer, e viu num papel em cima da mesa: no Brasil, procurar Tom Zé.
O Matinas publicou isso na entrevista e nós lemos.
Quando veio para cá, um mês depois, falou no Jornal do Brasil que ia a São Paulo me encontrar. Sem
saber o que fazer, ligou para o Matinas, que montou o encontro.
RdB – (Neste momento Tom Zé, lembrando que
estava falando para a Revista dos Bancários, começa a falar espontaneamente)
Tom Zé – Na época do CPC (Centro Popular de
Cultura, que funcionava ligado à UNE antes do Golpe de 1964), ia para o Sindicato dos Bancários da
Bahia, cantar, fazer teatro, cordel. Nas passeatas, já
tinha música para cantar. Em 1962 participei de uma
greve lá na Bahia. Me senti tão útil, foi tão impressionante, trabalhando o dia inteiro para manter o
sindicato vivo, ficando no plantão na greve.
RdB – Voltando à sua carreira internacional, que
disco foi lançado primeiro no exterior?
Tom Zé – Foi em 1990, o The Best of Tom Zé, que
a revista Rolling Stones considerou um dos cem melhores da década. Em 1993, lancei o Ancas da Tradição, em 1997, o Com Defeito de Fabricação.
RdB – É desse CD que as gêmeas Isabela e Carolina tiraram a música que usaram na apresentação de nado sincronizado nos Jogos Pan-americanos de Winnipeg, no Canadá, onde ganharam
medalha de bronze...
Tom Zé – A música é Xique-Xique, e elas foram
para lá e nem avisaram, foi uma surpresa. Voltando aos discos, o Jogos de Armar não foi lançado fo-
ra por causa de desentendimento entre gravadoras,
a Waka Bop (de David Byrne) se desligou e aí a
França passou a ser o centro de atração maior. Agora, o Estudando o Pagode a França já lançou e a Waka Bop se interessou e deve lançar. Mas, lembrando, quando os Estados Unidos receberam o The Best,
ele entrou na parada da Bill Board e fez o maior
sucesso no mundo cult. Aí não pude mais voltar
para Irará.
RdB – Você lançou neste ano o CD Estudando
o Pagode, o que acha que vai acontecer com um
fã de pagode que leve por engano o seu CD para casa, ele vai entender alguma coisa? Por que
me parece que não tem muito a ver com pagode,
como o Estudando o Samba não tinha com o samba mais popular.
Tom Zé – Não dá para calcular antes como as pessoas vão entender o Estudando o Pagode, mas é preciso levar em consideração que no Brasil as classes
mais pobres não podem ser confundidas com as classes mais estéreis esteticamente. No Estudando o Samba, a situação era semelhante. Em 1974, 1975 (o disco é de 1976), o samba estava denegrido, vilipendiado, posto no ostracismo, recusado, igual ao que acontece com o pagode agora. Pode ser que lá nas classes desprotegidas algum garoto faça uma viração para o pagode e de repente a gente ouça aí algo proteínado, que inverta a Segunda Lei da Termodinâmica, que oficializou a entropia – o enfraquecimento
estético do estilo.
RdB – Num show a que assisti, você contou a
história que nos anos 70 fez sucesso com uma
música e foi acusado de plágio, depois, só de sacanagem, pegou trechos de várias outras músicas, fez o plágio e ninguém percebeu. Que música era essa e de quem você pegou as frases?
Tom Zé – Era Se o Caso é Chorar. Na letra tinha
esses versos: “Hoje quem paga sou eu”, que é de um
tango do Nelson Gonçalves; “O Remorso Talvez”, de
uma música do Lupicínio; “As estrelas do Céu”, letra do Nelson Gonçalves; “Também refletem na Cama”, inversão de uma letra do Caetano; “de noite na
lama”, do Caetano, “no fundo do copo”, Ari Barroso em Risque; “rever os amigos/me acompanha/o
meu violão”, Boêmia, de Nelson Gonçalves. A melodia era uma imitação de Antonio Carlos e Jocafi,
que já imitavam o Chico Buarque. Mas só o Caetano percebeu.
RdB – Você falou do Caetano, mas não houve
uma divisão entre os que continuaram fazendo
sucesso e os outros que, como você, ficaram um
tempo no ostracismo?
Tom Zé – Nunca fui tolo para transformar em
queixa a morte a que fui submetido na divisão do
espólio do Tropicalismo, quando fui enterrado vivo.
Isso que é não fazer queixa (risos)! Mas fui um defunto bem procedido, não apareci nem para fazer
queixa em sessão espírita.
RdB – Mas essa fase passou e você hoje faz
muito sucesso com os jovens, como explica isso?
Tom Zé – Talvez seja porque quando um estilo
musical morre, em vez de me enterrar com ele, aborrecido e queixoso, mergulho no zero e vou aprender
de novo.
RdB – Muitas de suas músicas parecem crônicas, contam histórias, é isso mesmo?
Tom Zé – Comecei a fazer crônicas porque muito cedo, ao tentar fazer a primeira música, descobri
que era péssimo músico, cantor e compositor, péssimo tudo. Essas deficiências é que me ajudaram a
construir o caminho que percorri, a singularidade.
Aliás, me lembrei, e isso é importante numa revista
de bancários, que em 1959, trabalhei no Banco Nacional, na Cidade Baixa, em Salvador.
RdB – Como é sua relação com a mídia. Ela também esqueceu Tom Zé no período de ostracismo?
Tom Zé – Não, sempre fui muito carinhado, não
tenho queixa de porra nenhuma. Mas as pessoas não
podiam resolver meus problemas, engabelado que estava com meia dúzia de idéias que não estavam prontas. O Estudando o Samba teve boa crítica, mas como ninguém lê, não vende disco. Na época esse disco foi uma coisa ridícula de venda. Agora, a Warner
relançou e acabou na hora, no sebo custa uma fortuna.
RdB – Você tem várias músicas que falam de
São Paulo, como São Paulo Meu Amor, A Briga do
edifício Itália contra o Hilton Hotel, Augusta, Angélica, Consolação, entre outras. Por quê?
Tom Zé – O Assis Ângelo, que faz o programa, São
Paulo Capital Nordeste, na Rádio Capital diz que eu
sou o compositor que mais tem músicas sobre a cidade, não sei se é... Mas faço música com o que está em volta, e isso mostra minha incapacidade para
lidar com temas contemplativos. E a música para
mim é como um apostolado, um vício. Sou aquilo
que se chama de workaholic, se parar de trabalhar eu
morro.
RdB – Mas você trabalha ainda como jardineiro do seu prédio?
Tom Zé – É, e eles até subiram meu salário de jardineiro para dois mínimos por causa do diploma
universitário.
RdB – Dá para ver na viagem que você tem uma
boa relação com a banda...
Tom Zé – Essa banda são os meus herdeiros, minha família, meus amigos, as viagens são uma alegria, são pessoas ótimas, é uma felicidade viajar com
eles. Mas só dá para ter essa convivência nas viagens
(faz questão de dizer o nome de todos). Até pensei
em um dia morar todo mundo junto no mesmo prédio. Pensei também em chamar todo mundo para
fazer uns almoços lá em casa, mas ainda não deu
certo.
RdB – Isso foi quando?
Tom Zé – Faz uns cinco anos. ❚
A música
para mim é
como um
apostolado,
um vício.
Sou aquilo
que se
chama de
workaholic,
se parar
de trabalhar
eu morro
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ECOLOGIA
ANO
DE FÚRIA
SOBRE A
TERRA
Enquanto sobreviventes
do tsunami reconstroem
suas vidas em meio ao
desemprego e ao cenário
de guerra, o planeta
continua enviando recados
aos mortais quanto ao mau
uso de seus recursos
e o desrespeito aos seus
limites naturais
Por Moacir Assunção
os poucos, um ano depois da
tragédia do tsunami – que
atingiu treze países asiáticos e
pode ter matado mais de 220
mil pessoas em dez deles – a
população vai lutando para retomar sua vida. Ainda há, é claro, muitas
marcas da onda gigantesca com a incrível
velocidade de 800 quilômetros por hora
que, de repente, por causa de um abalo
submarino de 9,1 graus na costa de Sumatra, surgiu em frente a turistas, pescadores
e moradores de países como Indonésia, Tailândia, Sri Lanka e Paquistão, arrastando
tudo o que havia pela frente.
Em uma praia na costa ocidental sul da
Tailândia, uma lancha da polícia costeira daquele país permanece plantada na areia, –
segundo relato do jornalista Francis Deron,
A
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| REVISTA DOS BANCÁRIOS
do jornal francês Le Monde –, como um
“monumento” a lembrar o dia 26 de dezembro do ano passado quando morreram 135
turistas estrangeiros e 54 empregados tailandeses que inauguravam uma nova estação
balneária. Ao todo, o tsunami deixou 5.400
mortos identificados, metade deles visitantes, e 2.800 desaparecidos no país oriental,
famoso pelas praias paradisíacas. Foram instalados grandes postos dotados de alto-falantes em 16 pontos de alto risco da orla.
A maior preocupação local é o desemprego. “Para este mês de dezembro, temos
um faturamento previsto inferior em 30%
ao do ano passado. Para este Natal também. Mas a partir de 28 de dezembro e
para o Ano Novo, nos dias que se seguirão ao ‘aniversário’ estamos lotados... de
reservas”, diz Rudolf Borgesius, o patrão
holandês do Le Méridien, um dos hotéis
chiques da praia de Patong.
De acordo com a cônsul da Tailândia em
São Paulo, Thassanee Wanick, a tragédia
ao menos fez com que os tailandeses percebessem a importância da sustentabilidade nas construções. “A reconstrução está
andando devagar, mas sempre. No começo, pensávamos que os recursos internacionais deveriam ir para países mais atingidos como Indonésia e Sri Lanka, mas
percebemos que precisávamos, também, de
toda ajuda possível”, conta. Segundo ela, a
Tailândia, assim como o Brasil, é um país
que não registra desastres naturais como
erupção de vulcões e ciclones. Thassanee,
que dirige uma organização não-governamental voltada à proteção de ambientes
naturais, diz que as praias da Tailândia es-
ARKO DATTA/REUTERS (FOTO VENCEDORA DO WORLD PRESS PHOTO 2004)
MORTE, DESTRUIÇÃO E LÁGRIMAS
KIMIMASA MAYAMA/REUTERS
Mulher indiana chora a morte de um parente
pelo tsunami. Abaixo o que restou da cidade de
Banda Aceh, na ilha de Sumatra, Indonésia,
após a passagem da onda gigante
tão mais bonitas do que antes do tsunami. A melhor forma de ajudar, avisa, é
aproveitar para conhecer o país.
Assim como na Tailândia, a Indonésia
também tenta se recuperar. O cônsul honorário do país em São Paulo, Paulo Camiz da
Fonseca, afirma que a maior aposta dos indonésios para reconstruir suas vidas é a solidariedade. “A Indonésia já tem a tradição
do cooperativismo e da ajuda mútua. O país
está sendo refeito pela própria população”,
conta. O Brasil mandou 770 toneladas de
alimentos e 220 de remédios ao país.
A região de Aceh, ao norte de Sumatra,
foi a mais atingida pelo tsunami. Na área
foram instaladas, em parceria com o governo alemão, bóias especiais de 7 metros
de altura que dão alerta via satélite se houver sinais de terremotos no mar. Está preREVISTA DOS BANCÁRIOS |
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vista a instalação de um sistema de sirenes. Segundo Reinhold Olig, cientista do
Ministério de Educação e Pesquisa da Alemanha, acertar na instalação e operação do
sistema na Indonésia é crucial. “Esta é a
área mais perigosa do Oceano Índico. Então, este projeto que estamos realizando
com nossos amigos indonésios tem um papel chave para a segurança das pessoas na
região. Esta é a nossa linha de frente.” Todos concordam que a falha geológica na
região de Sumatra ainda é instável e pode
ocorrer outro terremoto na área.
Viver do quê
Outro “monumento” à tragédia erguido
na ilha tailandesa de Phuket, é descrito pelo repórter do Le Monde: “Um ‘templo’ dotado de tetos pontudos e afiados, projetado
no estilo tailandês, com a sua estrutura complexa de múltiplos pavilhões, ergue-se frente ao mar dos Andaman. Ele transmite primeiro a impressão de ter sido assolado por
alguma guerra local e então abandonado.
Contudo, não se trata de um templo. É o
que restou do hotel Sofitel-Khao Lak, que
acabava de ser inaugurado, três meses antes do desastre, nesta praia de sonho”.
Na Tailândia, narra o jornalista, o tsunami também “criou” milhares de sobreviventes, e a sua condição não é nem um
pouco invejável, apesar do esforço sem precedente de solidariedade internacional que
se seguiu à catástrofe. A região de Khao
Lak passou a abrigar vilarejos dotados de
casinhas idênticas, e cujo batismo foi feito de maneira inovadora: cada aldeia leva
o nome do principal doador, enquanto as
pessoas já começaram a ser chamadas e a
se reconhecer por esse nome – iTV, canal
de televisão tailandês, os Thai Farmers
Bank, os Mercy Foundation, os World Vision, os Samsung... Do lado do governo, a
ajuda foi precária. Apenas eletricidade e
água (não potável) voltaram a ser fornecidas. Os terrenos foram novamente viabilizados, só que de maneira incompleta.
Relata Francis Deron que a ajuda internacional aos sobreviventes não cicatriza as
chagas e que o maior problema é o desemprego. Um antigo presidente do Rotary International, o ex-vice-primeiro-ministro
tailandês Bhichai Rattakul, ouviu reclamações sem rodeios sobre a questão, quando
estava inaugurando uma das aldeias do clube. “É uma bonita casa, mas, daqui para
frente, iremos viver do quê?”, indagou um
dos novos habitantes da aldeia.
A Terra grita
Tsunami e terremotos. Tufões, nevascas,
ciclones, furacões no Caribe e Golfo do México. Vendavais no Sul do Brasil e seca na
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| REVISTA DOS BANCÁRIOS
Amazônia, a região mais bem servida de
água do mundo. Derretimento das calotas
polares e furacão Katrina, nos Estados Unidos. O que está acontecendo, afinal, com a
Terra? Praticamente não passa uma semana sem que os habitantes deste frágil planeta tenham notícia de algum fenômeno
climático extremo, nome pelo qual os cientistas e ambientalistas designam as mais intensas (e danosas) manifestações da natureza. Os anos de 2004, quando houve o tsunami na Ásia, e 2005, marcado pelo furacão Katrina que afogou Nova Orleans, certamente ficarão na história, mas há na comunidade científica e entre os defensores
da natureza muitas dúvidas sobre o que ainda pode ocorrer em um futuro próximo.
A questão é saber se essas manifestações
temíveis são eventos normais que já ocorreram em outras épocas da história da humanidade ou se as mais catastróficas previsões, de que nos aproximamos perigosamente ou até já ultrapassamos os limites
de esgotamento de todos os recursos naturais – principalmente ar e água – com a
conseqüente extinção da raça humana, estão se cumprindo. “A seca na Amazônia
deve ser entendida como um aviso para
pararmos de desmatar e de poluir o ar e
as águas”, alerta o especialista em águas
subterrâneas do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo (IEAUSP), Aldo Rebouças.
Somente nas últimas semanas de novembro a água voltou a cobrir, por conta das
chuvas de verão, as áreas ressequidas. Mais
cauteloso, o pesquisador Carlos Nobre, do
centro de pesquisas climáticas ligado ao
Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais
(Inpe), concorda que há muitos eventos
extremos ocorrendo ao mesmo tempo, mas
prefere esperar um pouco mais para opinar. “Estamos na situação de alguém que
atravessou uma porteira, viu um pequeno
declive e não sabe o que pode vir pela frente, se a continuação da descida ou o despenhadeiro”, compara.
Segundo Nobre, entretanto, muitos cientistas, entre os quais ele próprio, acreditam que os tais fenômenos extremos tendem a se tornar cada vez mais freqüentes.
“Podemos estar vivendo a era das mudanças climáticas, em que o planeta se tornará mais quente”, justifica. Não é à toa a
A “Floresta Chuvosa”, como é
conhecida a Amazônia no exterior,
experimentou sua maior seca
em 2004. Já o sul dos EUA foi
alagado e devastado
pelo Katrina
Aquecimento global
Em um ponto, pelo menos, ambientalistas e cientistas concordam: a temperatura da
Terra tem aumentado gradativamente. Chegou a ficar cerca de 1,5 grau Celsius mais
quente nos últimos 100 anos, o que ajudou
a produzir alguns dos efeitos mais curiosos
e preocupantes: o derretimento de gelo em
áreas de neves eternas como os picos de
montanhas e problemas na produção de alimentos, principalmente nos países pobres.
Para complicar um pouco mais, os Estados Unidos de George W. Bush, o maior
RICK WILKING/REUTERS
A FALTA E O EXCESSO
FLÁVYA MUTRAN/FOLHA IMAGEM
constatação. O Ártico perdeu 20% de sua
cobertura de gelo desde 1979 e a Amazônia foi desfalcada em 700 mil quilômetros
quadrados de árvores.
O coordenador da organização ambientalista Vitae Civilis, Rubens Born, tem uma
visão pessimista. “Estamos em uma situação extremamente crítica. Mesmo que, por
um milagre, parássemos de poluir a atmosfera com gases venenosos, o planeta continuaria se aquecendo porque essas substâncias se acumulam”. Born, que participou do encontro de Montreal (CoP 11),
no Canadá, uma grande discussão sobre o
aquecimento global que ocorreu entre 28
de novembro e 9 de dezembro, diz que alguns impactos na natureza por conta da
excessiva queima de combustíveis fósseis
(petróleo e carvão, além do gás CFC, usado na fabricação de geladeiras) são irreversíveis.
poluidor do planeta, se recusam, de todas
as formas, a aderir ao Protocolo de Kyoto,
programa internacional que prevê a redução – por parte dos países desenvolvidos e
em desenvolvimento – das emissões de gases estimuladores do efeito, discutido em
Montreal. O negociador americano Harlan
Watson chegou a sair da sala durante uma
discussão sobre a proposta do país-sede de
estabelecer a data de 2012 para fazer valer
as ações contra o efeito estufa.
O governo americano alega que prejudicará o desenvolvimento do país se aceitar limites às emissões de poluentes. O expresidente Bill Clinton criticou a atual administração de seu país por se negar a aderir ao acordo. A ministra do Meio Ambiente do Brasil, Marina Silva, fez coro. “Preocupa-me a forma como alguns países têm
tratado a questão, com base em seus interesses imediatos, de ordem puramente econômica”, reclamou.
Ao menos sobrou um dado positivo. Estados do EUA têm feito acordos diretamente com governos estrangeiros. A Califórnia, por exemplo, governada pelo exator Arnold Schwaznegger, fez um acordo
independente com o estado de São Paulo
para trocar tecnologia de combate à poluição urbana e ao efeito estufa. O Brasil
defende a adoção de incentivos da comunidade internacional aos países que conseguirem defender suas florestas.
Neste ano, segundo o Ministério do Meio
Ambiente, houve uma redução de 31% nos
índices de desmatamento na Amazônia. Por
outro lado, como muitos desastres climáticos ocorreram nos EUA, Nobre acredita que
a parcela da opinião pública que ainda concorda com Bush vai mudar de opinião. “Hoje, seguramente, há muitos mais americanos
que acreditam nas conseqüências do efeito
estufa do que há alguns meses”, afirma.
O fato é que se a humanidade quiser sobreviver terá que mudar seus paradigmas
e estilo de vida. Isso inclui usar tecnologias menos poluentes e limpas, diminuir o
uso de combustíveis fósseis e reciclar tudo
o que for possível. É importante, também,
reduzir o desperdício de água. Dono de
mais de 12% de toda a água disponível no
planeta, o Brasil ainda é campeão de desperdício do mais importante insumo à vida. “Podemos trocar caixas de descarga,
que gastam até 20 litros de água pelas modernas que usam seis litros para o mesmo
serviço”, diz Rebouças. O tempo pode ser
curto, se não se tomarem medidas. “Acredito que as chances de nossa civilização sobreviver até o fim do século não passam
de 50%”, avisa o cientista da Universidade
de Cambridge, Martin Rees, em seu livro
Hora Final. ❚
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PERFIL
OS DIAS
SEGUINTES
A bancária Kátia Ito conta como recuperou memória,
movimentos, parte da visão e força para enfrentar os
desafios. Diz que a sua história não acaba ao final de
seu livro, pois todos os dias tem novos limites
a superar. Como? Brincando de viver
Por Marcelo Santos
la olhava no espelho e não se reconhecia.
Era uma sensação de imenso vazio; o seu
reflexo não representava nada, apenas uma
imagem sem legenda que não conseguia
decifrar. Foi assim que Kátia Yuriko Ito, de
41 anos, foi apresentada a si mesma, quando encarou o espelho de sua casa no ano de 1983,
logo após retornar da Alemanha, onde foi submetida a uma cirurgia no cérebro.
“Não sabia quem eu era. Não entendia porque minha cabeça havia sido raspada e o motivo de estar
deitada sobre uma maca, sem movimentos”, relembra. Como quem buscasse peças para completar um
grande quebra-cabeça, a imagem refletida não se assemelhava em nada às histórias contadas por amigos
e parentes que faziam menção a uma garota de 19
anos e cheia de vida. Uma estudante de medicina que
quis viver de forma independente, tocava piano, falava inglês, um pouco de japonês e alemão.
A Kátia do espelho estava com a cabeça raspada,
envolta em ataduras. Não conseguia ler, escrever nem
mesmo falar. Vivia deitada e, mesmo cercada por
muitas pessoas, estava imersa num mundo sombrio,
aprisionada a um corpo que não respondia às ordens de seus pensamentos. O mergulho de um mundo para outro aconteceu num verão de 1983, enquanto nadava na piscina de um clube. Era janeiro
e ela acabara de concluir o primeiro ano de Medicina, na Universidade Estadual de Londrina.
Havia retornado para São Paulo, onde pretendia
passar as férias com a família e o namorado. “Eu cheguei até a borda da piscina e me senti muito cansada. Pedi ajuda e desmaiei”, conta. Foram dez dias de
coma e, quando retornou, os médicos aconselharam
a família a se preparar para o pior. O diagnóstico
apontava o surgimento de um angioma cerebral, uma
espécie de má-formação nos vasos sanguíneos e que
desencadeou em um sangramento no cérebro, semelhante a um derrame. A súbita doença não lhe dava
nenhuma expectativa de vida, mas seus pais não de-
E
“A vida nos
oferece
coisas boas
e ruins, eu
prefiro olhar
para as
coisas boas”
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sistiram e resolveram procurar a ajuda de um especialista na Alemanha, um médico brasileiro chamado Mario Brock. Ele lecionava na Universidade Livre
de Berlim e era considerado uma das principais referências médicas em neurocirurgias no mundo.
Donos de uma barraca de peixes na feira, os pais
de Kátia sofreram para conseguir custear a viagem
para a Europa. Venderam um imóvel, rifaram um
carro e tomaram empréstimos com familiares. O esforço foi recompensado e a operação salvou a vida
da filha.
Mas era apenas o começo. Ficaram como seqüelas a amnésia, a perda da capacidade de falar, de andar – já que o lado direito do seu corpo ficou paralisado – e ainda sofria de diplopia, o efeito na visão
que duplica as imagens que os olhos tentam focalizar. “Eu ficava muito angustiada, pois não conseguia
entender o que as pessoas diziam, da mesma forma
que não me entendiam. Era dependente para tudo.
Estava em estado vegetativo”, lembra Kátia.
Brincar de Viver
A angústia quase a levou ao suicídio, mas durante
as sessões de fisioterapia descobriu que toda aquela
situação não seria um ponto final em sua vida. “Todos os dias, durante a fisioterapia, tocava a música da
Bethânia, Brincar de Viver. Eu sempre me emocionava muito”, comenta. A canção-convite da cantora baiana foi aceita pela estudante de medicina. Quase um
ano e meio após a primeira sessão de fisioterapia ela
conseguia falar, o diplopismo havia regredido, já podia ler e começava a dar os primeiros passos sozinha.
Decidiu voltar a estudar, optou por se preparar para
cursar Fonoaudiologia e, apesar de sofrer com distúrbios de memória, o que fazia com que esquecesse um
texto que acabara de ler minutos antes, Kátia foi aprovada no vestibular da PUC de São Paulo.
Parecia viver por música. Retomou os estudos de
inglês, japonês e alemão e, como quem quisesse “tomar o mundo todo como se fosse uma garrafa de
Outra vez
O ano havia sido de muitas conquistas e o calor
de um domingo de novembro levou Kátia outra vez
ao clube onde o primeiro sangramento cerebral havia ocorrido. Agora com 33 anos de idade, ela olhou
para o local onde esteve treze anos antes e preferiu
não entrar. Procurou outra piscina que ficava ao lado e mergulhou. “Quando cheguei na borda e olhei
para o relógio vi que a imagem estava duplicada e
comecei sentir meu lado direito ficar todo paralisado novamente”. Numa terrível coincidência, ela reviveu o mesmo drama de um angioma. Outra vez
teve um sangramento e outra vez teve que voltar para a Alemanha às pressas para ser novamente operada.
Os prejuízos desta vez foram menores, e Kátia demorou cerca de cinco meses para voltar às atividades que tinha antes. Por conta do novo susto, decidiu contar sua história num livro, Do Outro
Lado do Sol, publicado em 2002, pela editora O Nome da Rosa. “Creio que tenho uma missão. Muitas pessoas desanimam diante das dificuldades e, através
do livro, posso ajudá-las a viver um pouco melhor”, analisa. No mesmo ano em
que publicou seu livro ela ingressou como assessora de câmbio da área internacional do banco Itaú, por intermédio de um programa de
contratação de
pessoas deficientes – que
aliás, por força
de lei, toda média e
grande empresa deveria ter. São noventa minutos do
trabalho até em casa dentro de um ônibus. Mas ela
não reclama. Kátia é uma pessoa de sorriso fácil, entusiasmada com os desafios que enfrenta. “A vida nos
oferece coisas boas e ruins, eu prefiro olhar para as
coisas boas.”
Ela fica feliz quando alguém diz ter lido seu livro
e se identificado com sua história. Sente-se bem em
poder ajudar alguém, apesar de que, para isso, pa-
gue um preço alto demais. “Quem lê o meu livro
pensa que eu apenas atravessei uma fase difícil. Na
realidade, minha história não acaba com o final do
livro, eu vou ter que conviver com as limitações para o resto da vida”, diz, enxugando as lágrimas. Ela
sabe que a vida nunca será fácil, mas não se resigna. Nem jamais abre mão de brincar de viver. ❚
“Minha
história não
acaba com o
final do livro,
eu vou ter
que conviver
com as
limitações
para o resto
da vida”
PAULO PEPE
refrigerante”, resolveu se politizar. Afiliou-se a uma
organização internacional de jovens profissionais e
empreendedores, a Junior Chamber Internacional.
Por conta disso, viajou para Porto Rico e para os Estados Unidos, representando o Brasil na Organização das Nações Unidas e chegou a presidir a entidade em São Paulo. Arrumou outros trabalhos, juntou
dinheiro e viajou pela Europa. Conheceu Holanda,
Dinamarca, França, Inglaterra e retornou para a Alemanha, para rever o palco de seu renascimento.
Algumas limitações nunca a abandonaram. Kátia
permanecia com o corpo parcialmente paralisado,
com dificuldade para falar e sem enxergar do lado
direito dos olhos, o que não lhe permitia dirigir. Devido à deficiência visual, quase foi atropelada diversas vezes. Mesmo assim, matriculou-se para cursar a
pós-graduação em Administração com especialização em Comércio Exterior na Universidade Mackenzie e concluiu seu mestrado em 1996.
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HISTÓRIA
1968
REVISITADO
Filhos de imigrantes convidados a construir o desenvolvimento
econômico e a levar a vida nos guetos de pobreza desafiam a França
de hoje e, como os rebeldes dos anos 60, gritam contra o sistema:
liberdade, igualdade e fraternidade para quem?
Por Ana Lúcia Santana
m 1968, na França como ao redor do planeta, manifestantes liderados por intelectuais da esquerda fizeram valer valores culturais divergentes do establishment. Eles não queriam ser assimilados pelo sistema, nem integrados a
um universo padronizado, como o dos
tempos atuais, forjados pela globalização.
Pode-se dizer que esse também é um de-
E
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| REVISTA DOS BANCÁRIOS
sejo dos atuais rebeldes e de todos os imigrantes que habitam o Velho Mundo. Governos de países como França, Holanda,
Inglaterra e Bélgica têm elaborado políticas de integração lenta e gradual desses
imigrantes, mas interessados menos em
preservar e respeitar seus valores do que
em anulá-los e enquadrá-los nos padrões
culturais vigentes na Europa branca e civilizada.
Sacrifica-se a diversidade cultural, a diferença, a multiplicidade em prol da sobrevivência do lema da Revolução Francesa. Afinal, “liberdade, igualdade e fraternidade” para quem? Para o chamado “Poder
Branco” ou para os filhos e netos de imigrantes, convidados a construir o desenvolvimento econômico e a levar a vida nos
guetos de pobreza?
Os movimentos recentes da França, que
também ameaçam estender-se para Bélgica, Holanda, Alemanha, tiveram início no
subúrbio de Clichy-sous-Bois. Desocupados, ociosos, impedidos de cultivar suas
crenças e tradições, sem acesso ao Estado,
sem representantes no Parlamento, sem
chances de prosseguir nos estudos, para esses filhos e netos de imigrantes foi um pulo buscar proteção na formação de gangues, nos conflitos de ruas com outros grupos – em rituais de auto-afirmação de suas
identidades. Em um desses confrontos,
ocorrido em 27 de outubro, dois adolescentes muçulmanos fugiam da polícia, dos
interrogatórios constantes a que os imigrantes são submetidos, e acabaram eletrocutados em um transformador de energia. Foi o estopim para a onda de incêndios e repressões que duraria semanas.
Antecedentes
O que mudou desde maio de 68? O que
queriam aqueles rebeldes e o que querem
os do universo moderno forjado na Europa? A questão do saber sempre foi essencial para os estudantes franceses. As garantias da soberania, da cidadania e dos direitos estão na consciência que se tem deles, perpetuada através da história cultural
e da educação. Uma vez preterida a formação de intelectuais disseminadores desta reflexão histórica, dando-se lugar à formação de tecnocratas, esses valores são
ameaçados. Em maio de 1968, as universidades corriam o risco de superlotação e
de se desviar da sua ênfase humanista.
O presidente Charles de Gaule havia posto fim ao regime partidário, a pretexto de
buscar solução para a crise instalada desde a desocupação nazista, em 1945, e agravada pela Guerra da Argélia. O autoritarismo e a crise político-social se acentuam.
Parte da esquerda, oportunamente, troca
ideais e utopias revolucionárias por pretensões eleitorais e sofre deserções em seus
quadros. Floresce uma nova esquerda. O
quadro é de desgaste dos partidos tradicionais e de repulsa à política “oficial”. Recusa-se o Parlamento, a esquerda ortodoxa, o stalinismo, os profissionais da contestação, os sindicatos aparelhados pelo
Partido Comunista – tudo que apresentasse vínculo com os velhos canais de política. O cenário era de salários baixos, 600
mil jovens estão à procura do primeiro emprego, disparidades entre Paris e o interior,
entre o salário do homem e o da mulher,
semana de 48 horas, proliferação de favelas, falta de infra-estrutura.
O contexto atual dos novos rebeldes
franceses e suas preocupações são outros.
Eles têm em suas mãos não o saber acadêmico, mas o conhecimento de suas tradições culturais, de seus valores, dos laços
que os unem às suas comunidades, o que
leva ao fracasso toda tentativa do governo
francês de criar uma sociedade supostamente laica, pressupondo Estado e Igreja
rigidamente separados. O Islã confere a esses grupos identidade, legitimidade, marca claramente sua diferença dos franceses,
que se tornam “o outro”.
O povo francês foi surpreendido pelo
aparecimento repentino de uma corrente que flui nos subterrâneos dos bairros
pobres habitados por imigrantes, uma espécie de grupo muçulmano de manutenção da lei e da ordem, um poder paralelo. Talvez o germe de uma zona independente, com leis próprias, independente do
Estado. Não era esse o sonho de estudantes e trabalhadores em 68? Um poder à
margem de governos, sindicatos, partidos
políticos? E também eles não buscavam
FALANDO ALTO
Encurralados nos guetos,
os franceses filhos de
imigrantes despertam
medo na Europa
REVISTA DOS BANCÁRIOS |
THOMAS COEX/GETTY IMAGES
A REVOLTA MORA AO LADO
Para quem acreditou no sonho
de bem-estar do primeiro mundo,
acordar embaixo de uma ponte
do Rio Sena, em pleno centro de
Paris, foi um tombo
ERIC FEFERBERG/GETTY IMAGES
As chamas se multiplicaram, atingindo
na 16ª noite de conflitos o índice de 502
veículos incendiados e 206 detenções. O
presidente Jacques Chirac e o primeiro-ministro Dominique de Villepin oscilaram do
silêncio dos cinco primeiros dias – apostando no desgaste do ministro do Interior,
Nicolas Sarkozy, postulante à presidência
da França – ao endurecimento do toque
de recolher e da proibição de reuniões nos
finais de semana. Os manifestantes, ao contrário do maio de 68, não são estudantes
e trabalhadores franceses natos, mas filhos
de imigrantes da África do Norte e Subsaariana, marginalizados, obrigados a contentar-se com os restos de uma civilização
rica e desenvolvida.
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REG LANCASTER/GETTY IMAGES
REBELDES COM CAUSA Em maio de 1968 os estudantes franceses incendiaram Paris com barricadas, carros tombados e pedradas em policiais
sua própria identidade?
Estão presentes novamente os coquetéismolotov, os atiradores de pedras e um certo fanatismo, mas os rebeldes atuais não
têm seus alvos definidos. Podem se voltar
contra o Estado, contra suas instituições
culturais, como também contra outras comunidades de imigrantes.
Um fator comum a essas manifestações,
incluindo as de 1968, é o nível de ocupação. Sempre que o subemprego ou o desemprego em massa assustam os jovens,
corroem seus sonhos e roubam suas perspectivas, à primeira fagulha o incêndio se
alastra. Resta, também, a exclusão dos círculos sociais: pesquisa recente revela que
95% dos britânicos brancos têm apenas
amigos brancos e que 37% dos imigrantes
também preferem amizades em sua própria comunidade.
Dimensão cultural
Os loucos anos 60 contagiaram o mundo com uma explosão cultural pouco experimentada em outras décadas. Época da
contracultura, do movimento hippie, da
ascensão do rock, das “viagens” de LSD, da
rebeldia e do amor “livre”. Em meio a um
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movimento que se desenrolou principalmente nas ruas da França de 1968, a arte,
a poesia, a cultura ocuparam o espaço público e se apropriaram da cidade. Os estudantes falavam em revolução cultural. Novos jornais são lançados, revistas, slogans
(“somos todos judeus-alemães”), grafites,
espetáculos teatrais “selvagens”.
O surrealismo quer alcançar uma nova
declaração dos direitos do homem. A arte
pela arte, dizia Breton, é tão tola quanto a
revolução pela revolução – aquele que fala de revolução sem mudar a vida cotidiana tem na boca um cadáver.
O álbum lançado pelos Beatles onze meses antes das barricadas, Sgt. Pepper’s Lonely Heart Club Band, é uma espécie de
caleidoscópio psicodélico dos anos 60 –
cultua as drogas (Lucy in the sky with Diamonds) e faz incursões pela Índia (Within
you Without you). O mercado, voraz, percebe a lucratividade dos produtos rebeldes
e cria um marketing da rebeldia. Há reação. No despontar de 68, Jean-Luc Godard
passa a fazer filmes sobre e para a classe
operária. O Festival de Cannes é encerrado na marra antes do tempo, com Godard
dependurado em sua principal cortina. O
movimento que agitava as telas européias
na época era a Nouvelle Vague. Seus mais
conhecidos representantes seriam Godard,
François Truffaut, Alain Resnais, Agnes
Varda, Claude Chabrol, Louis Malle e Jacques Rivette.
Os rebelados de novembro de 2005 não
construíram as mesmas Barricadas do Desejo que os de 1968 nem teceram a mesma dimensão cultural, mas disseminam a
sua influência por toda a Europa, a ponto
de alguns americanos começarem a chamá-la de “Eurábia”. Um entre dez cidadãos
holandeses nasceu no exterior. Na França,
estima-se a presença de mais de 5 milhões
de muçulmanos. A revista Time registra o
surgimento de uma “Geração Jihad” se formando no continente.
Pode ser que a história ande mesmo em
círculos, que a era do egoísmo yuppie seja sucedida por uma nova avalanche de jovens idealistas tentando mudar este mundo globalizado – avesso à diversidade –,
por outro mais justo, onde prevaleça a multiplicidade cultural, a aceitação do “outro”.
Quem sabe algumas das experiências adquiridas no turbilhão de idéias e práticas
do Maio Francês sejam recicláveis. ❚
INTELECTUAL
ENGAJADO
Sartre escreveu livros,
ensaios e tratados filosóficos.
Fundou uma revista
(Le Temps Modernes),
um jornal (Liberátion), fez
discursos inflamados ao
longo de seus 74 anos de
vida e influenciou gerações
Por Luciana Bento
ão foi somente a teoria que
marcou a existência do filósofo, dramaturgo e escritor francês Jean-Paul Sartre, cujo centenário de nascimento e 25
anos da morte foram lembrados neste 2005. Para ele, era inadmissível
que um intelectual não colocasse em prática, na vida cotidiana, as idéias que pregava. Foi um militante radical, colecionou admiradores e desafetos. Afastou-se de amigos por causa de suas posições políticas.
Não por acaso, Sartre esteve na linha de
frente das manifestações de maio de 1968,
quando milhares de estudantes secundaristas e universitários deixaram, literalmente, Paris em chamas ao enfrentar o governo do general Charles de Gaulle – numa
revolta que se tornou símbolo de toda uma
geração inconformada com os valores capitalistas e burgueses. Na época, Sartre estava com 62 anos e já havia escrito todas
as suas obras fundamentais: A Náusea
(1938), O Ser e o Nada (1943) e O Existencialismo é um Humanismo (1946). O que
não impediu que seus escritos influenciassem, juntamente com os do filósofo alemão Herbert Marcuse, os agitados líderes
de 1968.
“Não apenas as manifestações dos estudantes em Paris, mas os jovens que protestavam contra a ditadura no Brasil, o Festival de Woodstock, os movimentos ecológicos, feministas e pacifistas tiveram influência da obra de Sartre, do existencialismo”, diz o professor da PUC-SP Fernando José de Almeida, autor do livro É proibido proibir – Sartre. Para Almeida, o grande mérito do filósofo foi propagar a idéia
de que o ser humano não tem originalmente uma essência, mas tem de buscá-la:
“Da existência temos que achar nossa essência. Você tem que ser feliz apesar dos
J. CUINIERES/GETTY IMAGES
N
outros e não pôr a culpa em ninguém”.
Apesar de sua simbólica participação nos
movimentos de maio de 68, o engajamento político de Sartre vinha de muito antes.
Já a partir da década de 40, o filósofo não
se furtou de tomar partido em situações
polêmicas, como a resistência ao nazismo,
à Guerra Fria, ao colonialismo – notadamente a ocupação francesa da Argélia –, à
Guerra do Vietnã, à invasão da antiga URSS
na antiga Tchecoslováquia, entre tantas outras causas que considerava justas. Com a
mesma intensidade defendeu a Revolução
Cubana e o regime soviético, com quem viria a romper mais tarde, desfiliando-se do
Partido Comunista Francês.
“Responsabilidade e engajamento são as
palavras-chave do pensamento de Sartre
sobre o papel do intelectual”, afirma An-
nie Cohen-Solal, principal biógrafa do filósofo e professora titular da Universidade de Caen, na França. Para ela, a militância política “só melhorou o rendimento
teórico da obra do filósofo”.
Intenso, Sartre foi preso pelos nazistas na
Segunda Guerra Mundial, teve os seus escritos condenados pelo Santo Ofício, em
1948, esnobou o Prêmio Nobel de Literatura que ganhou em 1964 e manteve uma
longa e polêmica relação – para alguns libertária, para outros meramente poligâmica – com a também filósofa e feminista Simone de Beauvoir, ao lado de quem está
sepultado no cemitério de Montparnasse,
em Paris. Seu enterro, aliás, juntou mais de
50 mil pessoas no dia 29 de abril de 1980,
ocasião descrita por muitos como a última
manifestação de Maio de 68. ❚
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C O M P O RTA M E N TO
RESTAURADORES
DE PAIXÃO
Corrossel em
miniatura restaurado
pelo Hospital das
Bonecas
Procuradas por
gente de 8 a 80 anos,
oficinas recuperam
brinquedos e a
felicidade de crianças,
colecionadores ou
daqueles que querem
simplesmente resgatar
momentos inesquecíveis
de sua infância
Por Cristina Veiga Judar
e Miriam Sanger
Fotos de Jailton Garcia
s motivos são variados: saudade dos tempos de infância,
apego a um objeto adorado,
necessidade de fazer economia
e até a manutenção de uma
coleção particular. Seja qual
for, são eles que mantêm viva a tradição
das oficinas que, há décadas, se dedicam a
recuperar brinquedos e bonecas e conquistaram espaço garantido no mercado – prova viva de que, apesar do consumismo característico dos tempos atuais, nem tudo é
tão descartável quanto parece.
O Hospital das Bonecas, Brinquedos e
Games é uma destas empresas. Fundado
em 1947 pelos imigrantes italianos Primo
Cappello e Antonia Cappello, é especializado na reconstrução dos sonhos de infância das centenas de pessoas que, a cada
mês, procuram seus serviços. Hoje, quem
se encontra à frente do negócio que cresceu e rendeu frutos é Leandro Primo Cappello, 49 anos, neto do casal. A oficina tem
três lojas e uma equipe de 33 funcionários
que coordenam um hospital de verdade,
com centro cirúrgico, pronto-socorro e
berçário – local onde muitas crianças buscam suas bonecas “curadas”. A estrutura
O
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| REVISTA DOS BANCÁRIOS
não pára aí: o Hospital das Bonecas possui uma frota de sete “ambulâncias”, que
retiram em casa qualquer tipo de brinquedo, em todos os cantos da cidade. “Também recebemos brinquedos de outros locais do Brasil, por correio”, afirma Leandro.
Apesar de a indústria de brinquedos oferecer um número cada vez maior de opções para todos os bolsos e gostos, há muitos motivos para recuperar os modelos do
passado. “Até por uma questão econômica, não jogamos tudo fora, pois, financeiramente, ainda compensa consertar um
brinquedo”, explica Leandro. Mas, segundo ele, a principal razão para o seu negócio dar certo é o apego emocional. “O povo brasileiro é muito saudosista, tem amor
por suas coisas. Todo mundo tem um brinquedo que não joga fora, pois o valor sentimental daquele objeto é muito grande.
Muitas vezes recebo crianças que pedem
para que os pais, em vez de comprar um
novo, consertem o velho. Também é muito comum os adultos restaurarem seus
brinquedos de infância para dar de presente aos filhos. Eu mesmo conservo, até
hoje, um cavalinho de lata que o meu pai
me deu.”
Ao longo dos anos, seu negócio precisou se modernizar para acompanhar todas
as mudanças do mercado. “Nossa técnica
foi se aprimorando, principalmente devido à influência das novidades tecnológicas, como os videogames e jogos eletrônicos em geral”. Contudo, as bonecas, desde
as mais novas às mais antigas, ainda são o
produto mais recebido pelo hospital. Normalmente, vêm de senhoras de 70, 80 anos,
que confiam a ele a recuperação de algum
brinquedo que marcou sua infância. “Nossa responsabilidade é muito grande. Quando recebemos uma boneca antiga para restauração, não podemos deixá-la com cara
de nova. Precisamos ter o máximo cuidado e utilizar tintas e tecidos especiais para que ela fique perfeita, como na época
em que foi produzida”, explica Leandro.
conserva até hoje, inclusive, a primeira boneca que ganhou na vida: aquela que foi
pendurada na porta do quarto da maternidade onde nasceu. A partir daí, a coleção não parou de crescer. Sua vocação de
colecionadora começou cedo.
“Quando criança, não queria ganhar bicicleta nem videogame, só queria mesmo
brincar de boneca, o que fiz até os 14 anos.
Ao restaurar uma delas, não estou somente consertando um objeto. Estou, na verdade, recuperando algo importante que vivi, como a lembrança inesquecível de um
Natal, de um aniversário. É uma parte da
minha infância que está sendo preservada”, afirma.
Extremamente cuidadosa e dedicada a
suas “filhas” – ninguém, além dela, está autorizado a realizar a limpeza das bonecas
e pouquíssimas crianças têm permissão para entrar no seu quarto –, ela já utilizou,
várias vezes, os serviços de restauração dos
hospitais de brinquedos. “Tenho cerca de
setenta bonecas de uma coleção espanhola. Trinta delas são originais e as restantes,
cópias. Um dia, ao limpá-las, notei que o
cabelo das réplicas estava caindo. Imediatamente levei-as a uma oficina de restauração, onde me alertaram que a única solução para o caso seria criar perucas especiais para todas. O único ‘porém’ é que o
serviço ficaria muito mais caro do que o
valor das bonecas. Não pensei duas vezes:
mandei arrumar o cabelo de todas.”
Mas às vezes é mesmo a economia – conciliada à questão emocional – que leva as
pessoas a deixarem seus objetos aos cuidados desses especialistas. A designer Lílian de Sá, 25, mãe de Gabriel Vinícius, de
5 anos, ficou tão triste quanto o filho ao
deparar com o carrinho de controle remoto – presente do pai no primeiro aniversário – quebrado após uma queda. “Era
um brinquedo sofisticado, foi trazido de
uma viagem do exterior e dificilmente seria encontrado à venda no Brasil”, explica
Lílian.
A solução foi tentar restaurá-lo. “Leveio a uma oficina de conserto de videogames e brinquedos eletrônicos. Foi perfeito: depois de 10 dias, além de me entregarem o carrinho em perfeitas condições, me
DOUTOR EM BRINQUEDOS
Leandro Cappello: “Até por
uma questão econômica, não
jogamos tudo fora, pois,
financeiramente, ainda
compensa consertar
um brinquedo”
Perucas de bonecas
Não são apenas as pessoas mais idosas
que buscam este tipo de serviço – há,
em todo o mundo, centenas de colecionadores que elegem um tipo de
brinquedo no qual investem tempo,
energia e dinheiro para manter. A jornalista Pryscilla Paiva, de 25 anos, que
vive em São Paulo, é um exemplo: sua coleção de bonecas já conta com 622 peças,
das mais simples às mais sofisticadas. “Já
paguei de 1,50 por uma de palha a 1.600
reais por uma de porcelana, exemplar único no mundo”, conta, orgulhosa. Pryscilla
REVISTA DOS BANCÁRIOS |
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passaram dicas importantes sobre cuidados fundamentais para a conservação”. Embora na época Lílian tenha desembolsado
pelo conserto um valor razoável, o serviço custou cerca de 20% do valor original
da peça. “Depois dessa experiência, e com
a orientação do restaurador, o Gabriel
aprendeu a ser cuidadoso com o carrinho,
com o qual brinca até hoje.”
Do ponto de vista financeiro, realmente
a recuperação vale a pena. Segundo Bartolomeu de Alencar, de 45 anos, proprietário do Pronto-Socorro das Bonecas, Brinquedos e Games, o conserto de videogames e jogos eletrônicos é mais fácil – e,
conseqüentemente, mais barato –, pois as
peças originais são facilmente encontradas
no mercado. “No caso de games antigos, o
preço pode ficar mais alto pela dificuldade de encontrar itens para reposição. Mas,
de forma geral, por todos os serviços que
realizamos cobramos, em média, 30% do
valor do produto”, explica.
Já o conserto de bonecas antigas exige
mais “cacife” pois, em muitos casos, o restaurador precisa comprar de colecionadores as peças que utilizará para a reposição.
“Restauramos exemplares de massa, biscuit
e louça, às vezes com mais de 100, 200
anos. Nestes casos, o serviço pode custar
de 200 a 1.000 reais, dependendo do estado do brinquedo.”
O gerente comercial Gilson Pires, de 45
anos, já deixou a infância bem lá atrás, mas
guarda, até hoje, seu Autorama HO com
um cuidado todo especial. Há alguns anos,
um dos carrinhos e a pista de corrida apresentaram problemas. “Ganhei-o de presente de meu pai quando fiz 10 anos. E como é de um modelo antigo, fora de linha,
tive de fazer uma ampla pesquisa para encontrar o local apropriado para a realização desse tipo de serviço, pois já não se
encontram no mercado peças originais para reposição. Acabei encontrando uma oficina de confiança. Meu autorama retomou
a ‘boa forma’ e está perfeito até hoje.” O
brinquedo, inclusive, já está entretendo
uma nova geração da família: foi herdado
pelos filhos, Gilson Jr. e Marcelo. “Se depender de mim, um dia meus netos estarão se divertindo com ele”, diz.
Viagem no tempo
Em pleno século 21, os anos 80 estão na
moda. E, como não podia deixar de ser, os
brinquedos que marcaram essa década
também: boneco Falcon, o brinquedo eletrônico Genius, boneca Amiguinha, boneca Guigui, Pega-Vareta, Cai-não-Cai – estes dois últimos de gerações ainda anteriores –, entre tantos outros.
“É uma febre. Atualmente temos recebido no hospital vários clientes querendo
QUESTÕES DO CORAÇÃO
Gilson ganhou o Autorama HO
de presente do seu pai quando fez
10 anos. Consertado numa oficina
escolhida a dedo, hoje ele faz
a alegria de seus filhos Júnior
e Marcelo. A recordação dos bons
momentos da infância também fez
Pryscilla guardar a primeira boneca
que ganhou na vida, a que enfeitava
a porta do quarto da maternidade
onde nasceu. Aos 25 anos, sua
coleção conta com 622 peças, que
vão desde bonequinhas de 1,50 real
a exemplares exclusivos de porcelana
de 1.600 reais. Muito cuidadosa,
constantemente recorre aos
especialistas em reparos
de brinquedos
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consertar os modelos típicos dos anos 80.
Esse interesse repentino é justificado pelo
fato de que esses brinquedos eram infinitamente melhores. Os de hoje em dia podem até ser mais bonitos, mais modernos,
apresentarem funções diferentes. Mas não
têm ‘coração’ como os dessa época”, afirma Leandro.
Hoje é muito comum encontrar pessoas
na casa dos 30 anos, saudosos dos tempos
de infância, à procura desses exemplares,
que, cada vez mais difíceis de encontrar,
muitas vezes são disputados a peso de ouro: um Genius original, funcionando, chega a custar 150 reais.
No entanto, esse valor pode ser conside-
rado irrisório se comparado ao de objetos
ainda mais antigos: em novembro deste
ano aconteceu, em Londres, um leilão de
uma coleção de robôs e brinquedos espaciais. O lote de mais de setecentas peças
foi avaliado em 334 mil dólares (aproximadamente 835 mil reais). Foi arrematado de um colecionador por outro colecionador, uma categoria que ganha adeptos a
cada dia. A ponto de criar-se até uma designação para eles: há a categoria dos incard collectors, que mantém seus bonecos
nas cartelas, sem nunca abri-los, e dos loose collectors, que abre todos, sem exceção.
Ou seja, uma legítima brincadeira para
gente grande. ❚
SERVIÇO
Hospital das Bonecas, Brinquedos e Games
www.hospitaldasbonecas.com.br. Rua Capitão Avelino Carneiro, 110, Penha, tel. (11) 6647-7516 e
6646-6869. Rua Barão do Triunfo, 368, Brooklin, São
Paulo, tel. (11) 5041-6024. Rua Pedroso Alvarenga,
852, Itaim Bibi, São Paulo, tel. (11) 3167-5131.
SOS das Bonecas
http://sosdasbonecas.vilabol.uol.com.br. Rua da
Mooca, 2636, Mooca, tel. (11) 6618-1682. Rua Alfredo Pujol, 91, Santana, tel. (11) 6283-1034. Rua
Alonso Calhamares, 17, Tatuapé, São Paulo, tel. (11)
6671-5802.
Pronto-Socorro das Bonecas, Brinquedos e Games
www.psdasbonecas.com.br. Continental Shopping
– Av. Leão Machado, 110, Jaguaré, São Paulo, tel.
(11) 3714-5619. Rua Brasília Marcondes Buarque,
173, Jaguaré, São Paulo, tel. (11) 3763-3678. Rua
Turiassu, 2137, Pompéia, tel. (11) 3865-6357.
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VIAGEM
Fraternidade e a
cultura gaúcha unem
duas cidades de dois
países, separadas
apenas por uma linha
imaginária nos pampas
gaúchos
Texto e fotos de
Gerardo Lazzari
FRONTEIRA DA
PAZ
antana do Livramento e Rivera
formam um ponto eqüidistante, cerca de 500 quilômetros,
entre Porto Alegre e Montevidéu respectivamente. A fronteira é uma linha imaginária no
chão, no Parque Internacional, simbolizada por um obelisco de 30 metros de altura, ladeado pelas bandeiras do Brasil e do
Uruguai. Vistas de cima, Livramento e Rivera são a mesma cidade. E a fronteira, ao
invés de separar, torna mais estreitos os laços entre as duas cidades.
Livramento, com pouco mais de 90 mil
habitantes, se auto-intitula “cidade símbolo da integração do Mercosul”. É nesta cidade, fundada em 1823, a partir da construção da capela de Nossa Senhora do Livramento, que todo ano acontece o festival folclórico Um Canto para Martin Fierro. O evento, sempre no mês de dezembro, celebra a reafirmação da cultura gaúcha e a integração dos países que absorvem a extensão do pampa: Brasil, Uruguai
e Argentina.
O nome do festival é uma homenagem
da cidade ao poeta argentino José Hernan-
S
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Loja na fronteira: cidades e países se confundem
des, autor do livro que iniciou o registro
do gaúcho na literatura, El gaucho Martin
Fierro. Segundo os historiadores, Hernandes esteve exilado em Livramento no período de 1871 e 1872, e morou numa pensão da Rua Rivadávia Correa, esquina com
a Rua Uruguai. E teria sido exatamente aí
que começou a escrever a obra.
As festas e a cultura são compartilhadas,
como acontece na Semana Farroupilha, em
setembro, quando se monta um galpão binacional no Parque Internacional e representantes de ambos os lados participam.
No Carnaval, acontece coisa parecida, só
que do lado uruguaio.
Na área econômica não é diferente. Rivera, criada em 1823 por decreto do governo local, com o objetivo estratégico de
ocupação do território fronteiriço, foi
transformada em “zona franca”. Faz a festa de turistas que a invadem atrás de bebidas, produtos eletrônicos e roupas de lã.
No inverno, 60% da receita do comércio
riverense sai do bolso dos brasileiros. Em
contrapartida, os riverenses são responsáveis por 40% das vendas das lojas e supermercados santanenses.
Livramento atravessou momentos de
prosperidade quando despontaram os
grandes lanifícios e frigoríficos. Atualmente, a maior fonte provedora de empregos
é a vinícola Almadén. A empresa, hoje, pertence a uma multinacional francesa. Está
na região desde 1974, e é considerada pioneira na campanha gaúcha. Estudos encomendados a especialistas norte-americanos
identificaram essa região, do paralelo 31,
como a mais apta para a produção de vinho no Brasil. Seus 1.200 hectares plantados se estendem por uma paisagem salpi-
Cerro Palomas:
marco da região
FESTA À MODA DOS PAMPAS
A semana farroupilha une povos e culturas
cada de colinas. A de Palomas serve de
marco para as 6 mil toneladas de uvas viníferas produzidas por ano e dá nome ao
melhor vinho da marca.
Se o assunto é agitação, a melhor escolha é o lado uruguaio. Rivera, nos finais de
semana, vê aumentada sua população de
67 mil habitantes. A Avenida Sarandí se
transforma num desfile de motos e carros
de ambos os países. Muitos estacionam e
montam microbares nos porta-malas dos
carros, onde não faltam bebidas, música e
até banquinhos para se acomodar na calçada. Adultos e crianças também fazem a
festa nas ruas, à sua maneira. Até altas horas, o “portunhol” é o idioma dominante
nas sorveterias, bares e praças.
Para comer, o lado uruguaio também leva ligeira vantagem, sobretudo as “parrillas”, que acabam praticando preços mais generosos. Além de degustar uma cerveja Pílsen brasileira ou uma Patrícia, uruguaia, o
visitante pode experimentar diferentes tipos
de carne, em cortes clássicos compartilhados pelos gaúchos dos três países, como o
“vacilo”, a “tira de assado” ou a “costela de
ripa”, e alguns mais usados no Uruguai e na
Argentina, como “chinchulines” ou a “morcilla” (tipos de “frios” conhecidos no Brasil
como chouriço, o primeiro de origem bovina e o segundo, suína).
Enfim, de passagem durante uma viagem ao Sul do país, a visita a esse ponto
no mapa da América do Sul vale a pena.
Ela desvenda um exemplo de fraternidade entre cidadãos de dois países, fruto de
uma identidade em comum, a cultura dos
pampas. ❚
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ARTIGO
DA RUA PARA A
CIDADANIA
Há dez anos, uma iniciativa pioneira conseguiu
reunir em uma só organização setores distintos
da sociedade – sindicatos de trabalhadores, bancos,
empresas, entidades. Para a Fundação Projeto Travessia
o futuro melhor que sonhamos passa pela inclusão de
nossas crianças e adolescentes Por Ana Tércia Sanchez
Travessia carrega consigo um desafio
imenso, marcado pela necessidade de
transformação social a partir de objetivos muito bem definidos: garantir os
direitos das crianças e dos adolescentes que vivem em situação de risco pessoal e social. Afinal, em que basta ser a 11ª economia do mundo se ainda falta entre nossos iguais, e
como falta!, acesso aos pressupostos básicos da cidadania. O melhor espelho dessa realidade foram
as ruas e praças do centro da maior metrópole brasileira. Foi por aí que o trabalho se iniciou e ganhou respeitabilidade.
A ação com as crianças e adolescentes em situação de risco, mais do que alguns possam imaginar,
não passa pela “higienização” do centro ou do local onde eles ou elas estejam. O empenho dos educadores tem sido uma marca da seriedade e do respeito estabelecido na relação existente entre as partes. E esse trabalho não é tarefa fácil. É preciso muita determinação para compreender o universo, os
limites e as possibilidades das crianças e adolescentes que, por inúmeras circunstâncias, encontraram
na rua o seu espaço.
Nas etapas dessa “travessia da rua para a cidadania” não pode haver pressa no trato com essas pessoas tão vulneráveis e não podemos buscar apenas
resultados estatísticos. Portanto, é um imenso equívoco retirá-las da rua a qualquer custo pois, por
mais que não nos agrade topar com algumas formas de degeneração da integridade da pessoa humana em qualquer rua ou esquina, é necessário
ponderarmos sobre suas causas estruturais. Mexer
com isso leva tempo e acima de tudo envolve a vontade de diversos atores sociais, sobretudo, do poder
público.
Quando falamos de crianças e adolescentes em
situação de risco pessoal e social, na maior parte
das vezes referimo-nos a pessoas que tiveram em
sua trajetória de vida laços sociais e afetivos rom-
O
Ana Tércia Sanchez
é secretária de Estudos
Sócio-econômicos do
Sindicato dos Bancários
de São Paulo, Osasco
e Região e vicepresidenta da Fundação
Projeto Travessia
(www.travessia.org.br)
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pidos. Eles, como todo ser humano, buscam sobreviver de alguma forma e, nesse ímpeto, recorrem
algumas vezes a meios inadequados. Por isso, no
trabalho do Travessia há uma aproximação necessária com esse público, busca-se permissão para entrar na sua vida, pois parte-se do pressuposto de
que não são objetos que podem ser retirados ou
transportados de lá para cá. Isso não resolveria o
problema deles, tampouco o do Brasil.
Invariavelmente, nossa idéia de inclusão social é
revestida de um simplismo reconfortante, muitas
vezes reduzida ao acesso a uma vaga na escola, uma
lata de leite, uma pequena quantia em dinheiro ou
outra medida paliativa. E não precisamos ser tão
duros ao ponto de excluir dessas iniciativas seu caráter real de bondade e vontade de mudança. Mas
podemos, a partir de um olhar crítico, checar se essas iniciativas, se desconexas, conseguem dar conta
da complexidade do problema social enfrentado por
milhares de crianças e adolescentes.
A questão dos que vivem na chamada situação
de risco passa necessariamente pela família, o que
levou o Travessia a ampliar sua atuação e penetrar
na vida comunitária nos pontos mais distantes do
Centro. Afinal é de lá que partem aqueles que estão mais vulneráveis. A saída de crianças e adolescentes das ruas é um processo que requer envolvimento do menino, da menina, de sua família e por
isso leva o tempo que a cada um ou a cada grupo
for necessário.
Nunca o Travessia se propôs a substituir o poder
público e, ao contrário, sempre buscou formas de
dar visibilidade ao tema pautando-o na agenda das
políticas públicas divulgadas periodicamente pelos
governos de plantão. Temos ainda a convicção de
que fazemos uma construção coletiva e que nossa
ação se inscreve no mesmo cenário em que vários
movimentos sociais buscam fazer algo pelo tão almejado futuro melhor. Esse futuro com certeza passa por nossas crianças e adolescentes. ❚
Sindicato, seu melhor lugar
255 mil reais recuperados
Para ser mais preciso, o cheque de Manoel Aladir
Moraes, ex-bancário do Sudameris, tinha estampado
o valor de R$ 255.572,49. Manoel foi à luta em
parceria com o Sindicato e numa ação movida pelo
departamento jurídico recuperou seus direitos: horas
extras, adicional de transferência e multa do FGTS.
Se os seus direitos também não estão sendo
respeitados pelo banqueiro faça como o Manoel, entre
em contato com o Jurídico do Sindicato pelo telefone
3188-5200 e marque uma conversa.

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