Charles Dias - Revista Black Rocket

Transcrição

Charles Dias - Revista Black Rocket
Dez.
2012
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NESTA EDIÇÃO:
Encontro em Nárnia-5
Aguinaldo Peres
A Lenda da Infantaria Zumbi
Carlos Relva
Os Invasores
Charles Dias
EDIÇ
ÃO
CIA
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Cyrano/EPICAC 2.0
Joshua Falken
Bali Ha'i
Leonardo Carrion
Operação Ragnarok
Ubiratan Peleteiro
www.blackrocket.com.br
w w w. b l a c k r o c k e t . c o m . b r
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EDITORIAL
E a culpa não é dos
maias...
Aposto que muita gente pensou que esta revista digital de ficção científica havia morrido após algumas
poucas edições (coisa comum no Brasil). Afinal, faz
um tempão que lançamos a última edição... Pois bem,
estamos de volta! E a culpa do sumiço foi um maledeto vórtex
temporal que não devia estar naquele quadrante do espaço
literário.
E estamos de volta com força total, trazendo uma série muito
interessante de contos inéditos. E nosso formato continua
com qualidade total também, além do visual diferenciado e
a criatividade a toda.
E não é só isso, já estamos nos movimentando para preparar uma nova edição da revista. E vocês não têm ideia da
trabalheira que é preparar uma revista digital com a qualidade da Black Rocket, atividade que envolve não somente
os autores do conto, mas uma equipe de produção que tem
como responsabilidade transformar um punhado de textos
no conjunto midiático que é uma revista digital.
Essa é a Black Rocket, uma revista digital de ficção científica 100% brasileira com muito orgulho!
Boa leitura,
Charles Dias
Coordenador e Editor
[email protected]
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Revista de Ficção Científica
Número 04 - Dezembro 2012
Coordenador e Editor
CHARLES DIAS
[email protected]
Revisão
BIA NUNES DE SOUSA
[email protected]
www.bianunesdesousa.blogspot.com.br
Editoração
CARLOS RELVA
[email protected]
www.carlosrelva.blogspot.com
Ilustrações
RICARDO PRÊSTO
WINKKELMANN
www.facebook.com/ricardopresto.winkkelmann
Para contatar os autores
Aguinaldo Peres
[email protected]
Carlos Relva
[email protected]
Charles Dias
[email protected]
Joshua Falken
[email protected]
Leonardo Carrion
[email protected]
Ubiratan Peleteiro
[email protected]
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Encontro em
Nárnia-5
AGUINALDO PERES
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Os ejetores de plasma giraram 180 graus e a nave exploratória Alexandria iniciou as manobras de frenagem necessárias para colocá-la em órbita. Em silêncio, os sensores e as câmeras se
voltaram para a superfície do planeta, e terabytes de informações foram coletados e armazenados
no computador central, que os analisou até chegar ao resultado final. Que na situação atual era:
inconcluso.
- Iniciar procedimentos para despertar o Capitão Ollivar.
A voz da inteligência artificial que controlava a nave soou pelos compartimentos desertos. E
lentamente os sistemas de suporte de vida foram sendo ativados para recepcionar os tripulantes.
O Capitão Carlos Ulisses Ollivar chegou à ponte, meio caminhando meio deslizando na
baixa gravidade artificial. O capitão da Alexandria era um homem alto e robusto, de pele negra,
olhos castanhos-escuros, cabelo cortado curto. Era um soldado em missão de reconhecimento, um
gigante em missão diplomática, o homem escolhido para a tarefa de restabelecer contato com as
duas centenas de planetas que fizeram parte do outrora chamado Império Solariano.
Na ponte, que mais parecia com uma sala de conferências, existia apenas a mesa em forma de
semicírculo com nove assentos voltados para a parede coberta por quatro monitores que exibiam
imagens gravadas do planeta abaixo. O capitão em seu macacão azul-escuro se sentou na cadeira
central e afivelou o cinto de quatro pontos.
- Arquimedes, qual a situação?
- Estamos em órbita de Nárnia, quinto planeta do sistema Bellerophon. Os sensores não captaram sinais de fontes energéticas artificiais ou de desenvolvimento tecnológico, porém estamos recebendo o sinal de radiofarol, que foi ativado trinta minutos após entrarmos em órbita.
- Sistemas de defesa?
- Nenhum. Esse planeta nunca foi colonizado.
- Não colonizado! Por quê? - perguntou, espantado.
- Segundo o relatório do Coronel Luigi Buzzatti, da Nave Imperial Lampeduzza, em missão
exploratória em 2935 não havia recursos naturais ou tecnológicos que justificassem o confronto
com a população endêmica, que demonstrava alto grau de organização social e bélica...
- Basta - cortou o capitão. - Deixe isso para depois, apenas me faça o resumo comparativo da
situação na época e a atual.
- Não houve mudanças significativas, nem sociais, nem tecnológicas. Só noto a ausência de
guerras ou de disputas territoriais, descritas como comuns nos arquivos do Império.
Ulisses ficou em silêncio, imerso em pensamentos. Ele conhecia bem o suficiente a política
do antigo império para saber que não enfrentariam a oposição das comunidades planetárias, pois,
apesar do título de Império, o poder real era controlado pelo conselho formado pelos doze principais planetas-membros e, com exceção de dois, todos os demais possuíam governos democráticos.
O que estranhava era o fato de o planeta não ter evoluído nada no último milênio.
- Esse nome, Nárnia, qual a origem?
- Existiram varias cidades e colônias como esse nome, mas todos derivam da mesma fonte,
uma série de livros infantis da Terra do século XX. Nárnia seria um mundo mágico habitado por
ENCONTRO EM NÁRNIA-5
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criaturas fantásticas.
- Ou seja, um conto de fadas.
- Uma conclusão exagerada. - Havia um tom irônico na voz da IA.
O capitão não deu atenção ao comentário impertinente da IA Arquimedes, que controlava
todos os sistemas da nave; a mente estava focada nas imagens do planeta abaixo: havia dois grandes continentes em posições opostas do globo, ambos com grandes campos e florestas virgens,
contudo apenas um apresentava sinais de civilização; vilas cercadas por plantações e pastagens e
algumas cidades dignas desse nome, com construções com até cinco andares em alvenaria e madeira.
- Temos uma visão do radiofarol?
- Estamos exatamente sobre ele. O radiofarol está escondido no interior do obelisco de pedra.
A imagem no monitor central foi substituída pela imagem do monumento de quinze metros
de altura com desenhos gravados em seus quatro lados. A um comando no painel à frente, o capitão
começou a estudar os arredores. O obelisco ocupava o cimo de uma colina baixa; a poucos metros
de distância, um acampamento formado por tendas estava sendo montado por seres grandes e
pesados como gorilas, sob a observação de soldados altos e de pele azulada que portavam tridentes.
Mais além, havia uma cidade de prédios largos e baixos, em seu centro uma grande construção,
mistura de catedral e fortaleza. À frente desse prédio, numa praça, ocorria a feira; barracas, mercadorias e animais distribuídos de forma caótica, misturados a vendedores e clientes vestidos de
forma extravagante. Nada muito diferente das feiras no Cruzeiro do Sul se não fosse pelas criaturas dignas do Dr. Moreau. A imagem retornou ao acampamento onde começara a ser erguido um
grande pavilhão.
- Eles estão nos esperando. Prepare a Rodes para descer. E acorde o Tenente Marcos, o
professor Jonas, a doutora Regina e Raika.
- A denebolana? - perguntou Arquimedes, surpreso.
- Por que não? Da equipe será ela a chamar menos a atenção.
Quatro horas depois, o Tenente Marcos Salgueiro chegava à ponte. Como todos os tripulantes da Alexandria ele executava duas funções: segurança e engenharia.
- Bom dia, Capitão.
Ulisses se levantou e cumprimentou o jovem oficial, um palmo mais baixo, pele morena
clara e cabelo preso num rabo de cavalo.
- Bom dia, Marcos. É bom tê-lo na equipe que vai descer.
- Qual a situação?
- Sociedade feudal, tecnologia pré-industrial. Armamento composto por espadas, lanças,
arcos e bestas. Não podemos descartar a possibilidade de catapultas ou mesmo o uso de pólvora.
- Primitivas, mas mortais. Aconselho a usarmos sob a roupa a malha de polietileno e aramida,
nível três será suficiente. Devo distribuir armas de dispersão elétrica para o resto da tripulação?
- Não, apenas para você. Eu levarei a velha M-47b. Não espero um confronto.
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AGUINALDO PERES
- Só não entendo por que estamos descendo ao planeta. - perguntou Jonas Laren, professor
de história e sociologia, alto, magro, barba e cabelo loiro, que acabara de chegar - É obvio que a
população não está preparada para estabelecer contato com outros planetas.
Os dois militares cumprimentaram o recém-chegado, porém foi Arquimedes quem respondeu:
- Professor, existe a possibilidade de haver descendentes do antigo império, e estabelecer um
ponto de contato, mesmo limitado, neste setor da galáxia seria de suma importância para a Nova
Comunidade.
- Então acaba sendo uma decisão política.
- Toda decisão nesta nave é política, professor. - Ulisses apontou para o monitor que exibia
cenas da feira. - Será que temos algumas roupas parecidas?
- Hummm... Acho que posso dar um jeito com algumas bisnagas de tinta.
O capitão estava de costas para a entrada da ponte quando sentiu a leve mudança na pressão
do ar e quase não teve tempo de se preparar para receber no peito os quarenta quilos de pelo, carne
e ossos da denebolana. Enquanto Raika lambia-lhe o rosto, o capitão soltava os braços dela do
pescoço, com muito cuidado para as garras não cortarem o macacão em tiras, e a fez sentar numa
das poltronas.
- Senhores, esta é Raika, de Denebola-III, que recentemente passou a integrar o corpo de
tripulantes desta nave - disse Ulisses, indicando a pequena jovem de pêlos dourados e feições
felinas. - Raika, estes são o Tenente Marcos Salgueiro e o professor Jonas Laren.
Raika sorriu para o tenente e olhou seriamente para o professor.
- M’burika...
- Meburica? - repetiu Jonas.
- Animal nativo de Denebola, algo parecido com... uma girafa. - Quem respondeu foi a
doutora Regina Yoko Narayama, que adentrava à ponte segurando o riso. - Bom dia a todos.
Após os cumprimentos, Arquimedes informou:
- Capitão, a Rodes está pronta.
- Obrigado. Preparem o equipamento, partiremos em uma hora.
A Rodes era uma aeronave auxiliar em formato de delta com um núcleo de nanonova que
gerava a energia necessária para o motor de plasma, para o compensador gravitacional e a sua
variante, o defletor de luz, que tornava a nave quase invisível. Depois de um vôo calmo de três
horas, o Tenente Salgueiro pousou num prado deserto, oculto da cidade pelas árvores do bosque. A
equipe desceu, trajando as coloridas roupas locais.
- Para onde agora?
Antes que o tenente pudesse consultar o mapa digital, Raika indicou o caminho.
- Podemos atravessar o bosque naquele ponto, logo depois existe a estrada que leva até a
cidade. Uns vinte minutos de caminhada.
Espantado, Marcos confirmou a informação no mapa.
ENCONTRO EM NÁRNIA-5
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- Ela não é apenas um rostinho bonito. Milhares de anos de evolução fizeram dos denebolanos
caçadores natos. - Regina deu um tapinha nas costas do tenente.
Seguindo pela trilha indicada, chegaram à cidade e caminharam pelas ruas calçadas com
pedras. As construções e pessoas transmitiam o sentimento de ordem e de prosperidade. Em
contrapartida, por onde o grupo passava chamava a atenção e os habitantes da cidade os olhavam
com curiosidade.
- Podíamos ter vindo com nossos macacões, mesmo com essas roupas não nos parecemos
nada com a população - reclamou Regina.
- É verdade, mas pelo menos eles não estão fugindo assustados. - Jonas sorriu para um garotinho com cara de cachorro, que lhe acenou de volta.
A um sinal do capitão, Marcos deixou-se ficar para trás, fechando o grupo. Pouco mais a
frente Raika parou e Ulisses ficou ao seu lado. Um grupo de seres altos, de pele azul, olhos grandes
e estáticos, carregando tridentes, veio em sua direção. Outro grupo semelhante aproximou-se por
trás, cercando o grupo, que logo foi isolado. Do meio dos soldados surgiu um ser de aparência
idosa, com focinho semelhante ao de um chacal e com os pelos meio embranquecidos.
- Bem-vindos ao Reino dos Aourgis - falou num solariano hesitante. - Sou o Conselheiro
Ravik, da Capital do Sul. Vocês seriam os Caminhantes das Estrelas?
- É uma honra estamos em vossa cidade, sou o Capitão Ollivar, líder dos Caminhantes das
Estrelas. - Ulisses aceitou a designação com naturalidade. - Estávamos sendo esperados?
- A honra é toda minha, de recebê-los neste momento histórico. O Mediador nos avisou de
sua chegada. Por favor, sigam-me. – Com um gesto indicou o caminho. – Agora, devo levá-los até
o Mediador.
O grupo seguiu o velho conselheiro, escoltados pelos soldados azuis. Jonas se aproximou de
Ravik.
- Conselheiro Ravik, esta é uma bela cidade.
Os olhos do velho se iluminaram.
- Sem dúvida a cidade é bela! É o orgulho de todos os aourgis. É nesta cidade que se concentram os maiores artífices, são os gozdalls que extraem o ouro e a prata das montanhas, mas somos
nós, os aourgis, que os transformamos em arte. Vocês precisam visitar o Templo de Aourgi, que
não perde em beleza nem para o Palácio de Gelo na Capital do Norte.
- Com certeza faremos uma visita, assim que nossos compromissos oficiais tenham terminado - Regina se intrometeu na conversa. - O povo parece tão saudável, todas as cidades são assim?
- Bem, nem todas as cidades são tão belas ou prósperas quanto a nossa, contudo ninguém
passa necessidade. Todos cuidam de todos; essa é a lei do Mediador.
- Então o mediador é o governante?
- Claro que não, minha jovem. O Mediador apenas interfere nas disputas ou em uma emergência - explicou Ravik. - Há duas estações, uma grande enchente destruiu o vale dos neares; em
apenas um dia o Mediador organizou um grande exército carregado de alimentos e objetos doados
pelos demais reinos, em um mês o vale retornou ao normal. Todos os reinos e as raças reconhecem
a justiça e a sabedoria do Mediador, e por isso obedecem as suas decisões. Graças a ele os reinos
podem prosperar em paz. - Havia nas palavras do velho aourgi o tom de devoção divina.
O grupo deixou a cidade e se dirigiu para a grande tenda que fora armada ao lado do obelisco,
os soldados se perfilaram por trás e aguardaram. Da tenda surgiu um enorme leão de juba dourada.
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AGUINALDO PERES
- Meu deus! Olha o tamanho daquele monstro - comentou Marcos.
O velho conselheiro lhe lançou um olhar de reprovação.
- Mantenha o respeito, meu jovem. Este é Aslan, o Mediador dos Sete Reinos.
O leão se aproximou com o andar gingado, apesar da aparência intimadora, os olhos dourados transmitiam serenidade. A doutora Regina abriu o livro que ocultava o mecanismo de análise
biológica e mostrou o resultado para o capitão, que se adiantou.
- Bem vindos a Nárnia! - Seu solariano era antiquado, mas perfeito. - Sou Aslan, um humilde
servo dos doze povos.
- Capitão Ollivar, da nave Alexandria, e esses são alguns dos membros da tripulação. - Aslan
cumprimentou-os com um aceno de cabeça.
- Vamos até o pavilhão para conversar mais confortavelmente.
O grupo seguiu Aslan, enquanto Ravik retornava para a cidade e os soldados se dispersavam
pelo acampamento. Na tenda o grande leão deitou-se sobre uma plataforma baixa enquanto os
humanos se acomodavam em almofadas dispostas sobre o vasto tapete. Raika permaneceu em pé,
olhando fixamente para aquela criatura saída de antigas lendas denebolanas.
- Pode se aproximar, criança.
Raika não esperou por outro convite ou mesmo a aprovação do capitão, com agilidade subiu
para o estrado e tocou o pelo sedoso e mergulhou o rosto na juba vasta e fresca.
- Aslan, por que não conta sua história? - pediu o Capitão Ulisses.
- Por que não? - o grande felino pareceu sorrir. - Quando as primeiras informações e imagens
de Bellerophon-5 foram a público, um grupo de pessoas, os Filhos de Nárnia, iniciou uma campanha em todo o Império contra a colonização daquele sistema estelar. Não só foram bem sucedidos
como conseguiram mudar o nome do planeta para Nárnia.
“Contudo não foi o fim. Eles também desejavam que o planeta fosse uma cópia fiel do mundo criado por C.S. Lewis e ao mesmo tempo preservasse as diversas raças e culturas, porém as
constantes guerras entre os sete reinos e o genocídio das raças mais fracas eram o inverso dos seus
ideais para a nova Nárnia idílica.”
- Infelizmente esta é a realidade - interrompeu o professor Jonas - quando duas ou mais
espécies inteligentes habitam o mesmo nicho, a competição pelos recursos naturais leva à guerra,
que na maioria das vezes culmina no extermínio da espécie mais fraca e menos desenvolvida.
- Portanto fui enviado para Nárnia em segredo, e desde então tenho mantido a paz e a harmonia entre as raças.
- Calma aí! Você não pode ter mais de mil anos! - protestou o tenente.
- Marcos, ele não é um ser vivo, é um robô - explicou Regina.
- Mesmo assim, máquinas eventualmente quebram...
- É verdade, por isso meus construtores também enviaram para esse mundo uma oficina
automatizada, que está escondida nas montanhas centrais aos cuidados dos reuniguis, uma espécie
pacífica e habilidosa com as mãos.
- E os obeliscos? - perguntou o capitão.
- Sensores passivos. Eles me avisam caso alguma nave espacial faça varreduras do planeta,
desta forma eu desativo meus sistemas para não ser detectado.
- Mas desta vez foi diferente, você nos chamou até aqui.
ENCONTRO EM NÁRNIA-5
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- Estava curioso - Aslan novamente sorriu. - E o que o traz aqui, Capitão Ollivar? Que
notícias têm do império?
- Estamos tentando estabelecer contato com os planetas após o desmantelamento do Império
Solariano. Procurando formar uma nova estrutura interestelar de cooperação entre os planetas.
- O Império Solariano não existe mais? Isso explica porque não temos recebido visitas de
naves do império nos últimos novecentos anos. E agora, quais são seus planos para Nárnia-5?
- Nenhum, o planeta não possui nível tecnológico que o gabarite a integrar a nova comunidade. Nem teríamos descido ao planeta se não fosse pelo seu convite.
- Isso é bom, não vai de encontro as minhas diretrizes primárias. - O leão se ergueu, sendo
acompanhado pelos humanos; a reunião estava encerrada.
A jovem denebolana permanecia próxima à Aslan, os olhos crescendo à medida que ele se
erguia em todo o seu esplendor, e foi sem aviso que a grande pata a atingiu, lançando Raika por
vários metros até atingir o tecido da tenda.
- Raika! - gritou Regina e correu até o corpo caído.
- Mesmo assim, vocês devem morrer aqui. - O robô soltou um forte urro e saltou sobre os
humanos.
Ulisses deu um passo para trás, escapando por pouco do bote do leão, mas não teve tempo de
usar a arma de cano bojudo, a pata desceu sobre ele, que usou o braço esquerdo para se proteger. As
enormes e afiadas garras cortaram-lhe o braço com facilidade até parar ao som da colisão de metal
contra metal. Seus olhos se encontraram.
- No final, não somos tão diferentes assim. - O humano encostou a M-47b no peito felpudo
de Aslan e atirou, o projétil de dois tempos atravessou a armação metálica e explodiu dentro do
corpo do leão, que sorriu e desabou ao chão.
- Arquimedes...
- Já estou enviando a Rodes.
- Pouse próximo à entrada da tenda e abra a porta. Tenente, vigie a entrada.
O enorme robô permanecia caído aos seus pés, suas funções interrompidas quando o gerador
interno fora destruído. Contudo ainda havia algo a fazer, segundo o esquema que a doutora Regina
lhe exibira, restava o núcleo de memória e processamento, no qual ficava alojada a inteligência
artificial que comandava o robô. Ulisses encostou a arma na testa do leão, logo acima do olho
esquerdo, e atirou.
- Seu braço? - Jonas apontou para o braço esquerdo destruído, de onde escorria um líquido
vermelho e viscoso.
- Não se preocupe, cuidaremos disso na Alexandria. Venha comigo, professor.
Eles se aproximaram das duas mulheres.
- Como ela está?
- Inconsciente, mas não encontrei nenhum corte ou osso quebrado. Ela teve sorte - a bióloga
olhou para o braço do capitão -, se ele tivesse usado as garras, ela seria cortada ao meio.
Para o capitão, algo não estava certo, porém não tinha tempo de pensar nisso, a tenda foi
sacudida pelo forte vento que marcava a chegada da Rodes.
A Rodes chegara como um fantasma, deslocando ar e poeira ao pousar antes de se tornar
visível. Para os habitantes de Nárnia aquela aparição fora assustadora e poucos testemunharam os
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AGUINALDO PERES
Caminhantes das Estrelas embarcarem e sumirem, deixando para trás um planeta que teria de lidar
com o caos pela primeira vez após oito séculos de paz.
Na enfermaria da Alexandria, o Tenente Salgueiro andava de um lado para outro enquanto os
sistemas automáticos reconstruíam o braço artificial do Capitão Ollivar. Os demais membros da
equipe já se encontravam em suas câmaras de estase.
- Não consigo entender! Por que aquela máquina estúpida nos atacou? Não éramos um perigo as suas diretrizes, ele mesmo reconheceu isso.
- Vocês, humanos, apesar de serem nossos criadores - replicou Arquimedes -, não são capazes de compreender os conflitos internos dentro de uma IA. Esquecem que, ao contrário de vocês,
somos incapazes de mudar nossos paradigmas básicos, mesmo quando eles se tornam obsoletos e
fracassam.
- Fracasso? Não vejo como, Arquimedes. Aslan manteve a paz e protegeu as diversas raças e
culturas por mais de mil anos.
- Marcos, foram mil anos de paz, mas também foram mil anos de estagnação. Lembre-se de
que a missão de Aslan era manter aquele mundo tão próximo quanto o possível ao livro, e para isso
ele não apenas manteve a paz como impediu qualquer desenvolvimento científico ou tecnológico
que fosse contrário ao texto original. E ele sabia disso.
- Espera um pouco, Capitão, está querendo dizer que aquele leão maluco nos atacou sabendo
que iríamos destruí-lo? - Marcos parou de andar e olhou estupefato para Ulisses.
- Certeza a IA Aslan não tinha. Nenhuma IA pode se autodestruir, afinal o suicídio é sempre
a solução mais simples para qualquer conflito interno. Mas existia a possibilidade e ele arriscou respondeu Arquimedes. - Capitão, seu braço está pronto.
Ulisses ergueu o braço, distendeu e testou as juntas e músculos artificiais que se mexiam
sobre a pele sintética.
- Obrigado, Arquimedes. Já podemos nos recolher e partir para o próximo planeta.
- Não iremos fazer nada, Capitão? O planeta vai virar um caos com a morte de Aslan.
- Não há nada que possamos fazer, não podemos substituí-lo, nem devemos. Só podemos
rezar que os povos de Nárnia não se esqueçam das lições de justiça e igualdade que ele lhes
ensinou durante todos esses séculos. Eles têm seu caminho para seguir e nós temos o nosso.
Seguindo o protocolo, o capitão foi o último a se recolher à câmara de estase. Enquanto
lentamente as funções vitais decaiam, Arquimedes perguntou:
- Capitão, posso pedir um favor?
Meio entorpecido, Ulisses concordou com a cabeça.
- Não permita que eu sobreviva ao término de nossa missão.
ENCONTRO EM NÁRNIA-5
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A Lenda da
Infantaria
Zumbi
CARLOS RELVA
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Tudo culpa dos megaempresários, ótimos gestores de empresas, mas
péssimos estrategistas militares que, agora, administram o pós-guerra. Executivos que se autoproclamam os novos “Senhores da Guerra”,
substituindo desastrosamente os antigos generais e sem saber o que
fazer com o grande contingente de “funcionários de campo”, treinados por eles e pela “concorrência” para o árduo trabalho na luta armada. E, para o bem ou para o mal, a Liu Sarasvati, um conglomerado
de uma centena de empresas que vão do setor alimentício ao de entretenimento, a grande herdeira dos espólios da Terceira Guerra Mundial, a “Guerra das Corporações”, se compromete, em acordo com a
ONU, a reconstruir o mundo destruído. Minha pergunta é: conseguirá
algum dia?
Desabafo do chanceler Lauro Guerreiro, quando da assinatura do
acordo de reconstrução
No carro, indo para casa, Sam Hutchinson ainda pensava no extenuante dia de trabalho no
consulado. E, para seu azar, não conseguia prever panorama mais animador para os próximos dias.
O grande conflito global tinha finalmente acabado, deixando o mundo de cabeça para baixo.
Havia muito que fazer para arrumar toda a bagunça, principalmente para o pessoal da área diplomática. Afinal, os pedidos de imigração pipocavam mais e mais na tela de seu computador, e a
papelada se amontoava em cima de sua mesa.
Sam amaldiçoava toda aquela lenta burocracia para a emissão dos passaportes. Os documentos eram parte das ações da Liu Sarasvati para reconstrução do mundo pós-guerra, promovendo o
regresso dos combatentes, vencedores e vencidos, aos seus devidos países.
Para o agente especial consular, sempre em contato com diversos representantes diplomáticos, a realidade dessa nova ordem global era confusa e, no mínimo, embaraçosa. Ele tentava imaginar como seria o mundo comandado pela Liu Sarasvati de agora em diante, perguntava-se como
resolveriam o problema do monopólio ou da nova regulamentação de empregos no inédito cenário
socioeconômico e, ainda, como ficariam as empresas que não se uniram ao conglomerado. Juntarse-iam para formação de uma concorrência? Seriam o estopim de um novo conflito? Só o tempo
teria resposta para tudo isso. E não havia especialista político ou futurologista que arriscasse um
palpite sério sobre esses temas.
Agora, Sam só precisava seguir pela avenida Klarabergsgatan para chegar ao seu lar. Era
uma residência provisória, conseguida pelo consulado em um dos poucos edifícios em pleno funcionamento na região depois do devastador ataque da organização Valdez um ano antes.
Enquanto dirigia pela nevada e escorregadia Klarabergsgatan numa Estocolmo destruída e
ultrajada pelos conflitos bélicos, mas que ainda insistia em manter algo da antiga beleza, Sam
avistava à direita mais um dos grandes abrigos para ex-prisioneiros. Um dos centros de detenção
readaptados, que agora também eram chamados pejorativamente de “campos de concentração
para desempregados de guerra”. Lá, em condições abaixo das exigidas pela ONU, mas mesmo
assim aceitáveis, combatentes vencidos aguardavam o transporte para seu país de origem.
A LENDA DA INFANTARIA ZUMBI
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E aquele campo, chamado Taubes Torg, um vergonhoso estigma formado de barracões
azulados em plena capital sueca, ocupava todo um quarteirão e, possivelmente, abrigava mais de
oito mil ex-prisioneiros.
Distraído em pensamentos, quase não conseguiu brecar quando um homem cruzou seu caminho. O veículo deslizou na pista escorregadia, mas Sam habilmente desviou-o do transeunte que
ignorava totalmente a situação. O pesado sedã chegou a encostar a roda no meio-fio.
O descuidado pedestre era um homem alto e magro, de cabelo grisalho, e vestia um sobretudo negro. Tinha saído de um dos portões do Taubes Torg. Não esboçou reação alguma após o quase
atropelamento, continuando lentamente a caminhar em direção à calçada oposta a da entrada do
abrigo. Arrastava os pés nus na neve gelada, como se ignorasse o frio. Movia-se mecanicamente,
com passos cadenciados, assemelhando-se a um morto-vivo.
Sam notou que o sobretudo era um uniforme militar de inverno da corporação Valdez. Provavelmente da alta patente do oficialato. Mas o traje estava tão velho e surrado que parecia pertencer
a um mendigo. Mesmo assim, o agente consular reparou certa altivez naquela figura moribunda.
Talvez fosse a estatura elevada e os ombros exageradamente largos ou talvez ainda o queixo
protuberante que passava aquela autoridade. Com uma observação mais atenta, concluiu que o
soldado tinha por volta de cinquenta anos, mas os olhos mortos, a boca sempre aberta e a barba rala
e branca deixavam-no com uma aparência mais velha e acabada.
E ele lhe parecia estranhamente familiar...
- Meu Deus! - gritou outro homem, segurando duas marmitas, próximo a entrada do abrigo.
Ao seu lado, guardas da Liu Sarasvati assistiam a tudo impassíveis, mais preocupados com o calor
de um latão em chamas do que com a recuperação do refugiado fujão. Mais baixo e franzino, o
outro ex-combatente usava o uniforme azul-turquesa padrão do Taubes Torg, além de touca e
luvas. Pelo menos, observou Sam, calçava botas.
Afoito e desesperado, correndo e escorregando na neve, esse homem estava bem a par do
cenário de tragédia evitada. Enquanto carregava as marmitas em uma mão, com o mesmo cuidado
com que se segura um bebê, agarrou o braço do homem-zumbi com a outra, forçou-o a voltar para
o refúgio de ex-prisioneiros.
- Aonde você pensava estar indo, hein, senhor? - Foi tudo o que disse, sem receber resposta
alguma.
Ainda com o carro atravessado na avenida e observando a dupla retornar ao abrigo, Sam se
perguntava de onde conhecia o morto-vivo. Resolveu estacionar próximo ao portão e matar a
curiosidade. Riu, imaginando que estava fazendo serão, apesar da fadiga.
Chegando na entrada do Taubes Torg, mostrou suas credenciais diplomáticas aos dois militares da Liu Sarasvati. Eles continuavam muito preocupados em aquecer as mãos no latão quente,
revelando que até para o pessoal da guarda havia falta de trajes térmicos eficientes, e deram pouca
atenção para o documento. Isso confirmou o que Sam já desconfiava sobre o desmantelo na segurança do abrigo e até pensou em reportar isso ao consulado. Mas concluiu que seria perda de
tempo, pois, cedo ou tarde, o abrigo seria completamente desativado. Informou, então, que queria
conversar com os ex-combatentes que haviam entrado.
Quando um dos guardas chamou-os aos berros, a dupla já se encontrava a certa distância,
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CARLOS RELVA
caminhando entre os barracões azuis. Não ouviram nada, devido ao zunido forte do vento e o
barulho dos outros abrigados, que conversavam alto enquanto indo e vindo se preparavam para o
jantar. Desapareceram atrás de um dos barracões quando viraram à esquerda em um corredor.
O guarda, dispensando qualquer protocolo, permitiu que Sam fosse atrás deles.
Para o agente consular, o abrigo parecia mais com uma feira pública, visto a desordem e o
grande trânsito humano. Além disso, os barracões padronizados e as pessoas de uniformes azulturquesa lhe passavam uma sensação estranha, como se, de um momento para o outro, tivesse
deixado o centro de Estocolmo. Se não fossem os modernos flutuadores sobrevoando a área, se
sentiria numa vila antiga e surreal.
Felizmente, concluiu Sam, era difícil se perder em Taubes Torg, com aqueles enormes números amarelos pintados nos barracões...
E também, para sua surpresa, havia comércio no abrigo. Muitas pessoas vendiam cigarros,
bebidas e medicamentos em balcões improvisados, montados nos próprios barracões. Outros ainda, discretamente, comercializavam refugos e souvenires de guerra, além de holovídeos pornográficos interativos.
Alguns abrigados o observavam com atenção e desconfiança, enquanto percorria os corredores do refúgio. Talvez, Sam arriscou, suspeitassem que ele fosse algum tipo de inspetor ou algo do
gênero, o que em parte não deixava de ser verdade. Provavelmente eram traficantes de Nyrva, a
droga alucinógena de alta dependência que fez grande sucesso nas trincheiras da guerra, deixando
muitos dependentes.
Também constatou que havia prostituição no Taubes Torg quando uma exótica sexydoll cruzou-lhe o caminho. Ela tinha uma aparência artificial, devido a modificações cirúrgicas, seu cabelo escuro possuía um brilho peculiar, plástico, a pele branca destacava os lábios carnudos, pintados
de vermelho berrante e os seios enormes eram provavelmente siliconados. Sua idade era indefinida e usava apenas um casacão de nylon semitransparente e botas de cano alto, ignorando completamente o frio. Enquanto passava, lançou-lhe um olhar provocante de pupilas serpentiformes e
cílios exagerados, cômicos. Tentava fisgar um novo cliente...
Quando Sam já estava desistindo de encontrar a dupla, avistou-os entrando em no barracão
de número 696.
- Com licença, posso entrar? - perguntou, batendo levemente na porta entreaberta. O local
estava escuro, apesar da holotevê ligada. Cheirava a café fresco.
- Entre, entre! - disse o homem baixo, cordialmente. O outro continuava apático, sentado em
uma poltrona de plástico. - Você é o motorista do sedã blindado, não?! Sinto muito pelo que
aconteceu...!
- Não se preocupe. Não estou aqui por causa disso - disse o agente, acalmando-o. - Meu
nome é Sam Hutchinson, do consulado inglês. Posso saber seu nome?
- Major Grulius Cortázar - disse o homem, falando com certa pompa. - E este aqui é o
coronel Manfred Abgar von Dun. Éramos do 39º Batalhão de Infantaria Blindado de Northstar.
- E o que aconteceu com o coronel? - perguntou Sam. - Nanoalucinógenos? Neromind?
- Não, não! Nada disso! - negou o major. Deu as costas para o agente consular e dirigiu-se a
A LENDA DA INFANTARIA ZUMBI
17
uma mesa atulhada de utensílios de cozinha e ferramentas. - Acabei de preparar café para o coronel. Pois, enquanto fui pegar nosso jantar, ele resolveu dar uma voltinha, colocando o velho sobretudo militar que estava escondido no armário... e esquecendo completamente as botas! Agora está
congelado! Aceita uma caneca?
- Sim, obrigado - respondeu Sam, observando Cortázar inclinar a cabeça do coronel para
cima e despejar um belo gole de café quente pela goela abaixo. Parte da bebida voltou, cuidadosamente enxugada com uma toalha de pano que estava em seu ombro.
- Ele sempre dá uma engasgadinha... - respondeu com um falso sorriso, enquanto entregava
a outra caneca de café para o agente e apontava-lhe uma poltrona vazia.
A caneca era velha e encardida, e mal lavada também. Mas Sam aceitou educadamente. O
café estava horrível, com gosto de terra. Mas bem quente.
- Agora vou esquentar a ração - disse o major. - Junte-se a nós para jantar. Há bastante para três.
- Obrigado, mas não posso ficar muito... - respondeu o agente. - Mas, desculpe insistir no
problema do coronel... Como disse, sou do consulado e talvez possa ajudar. Foi overdose de Nyrva?
- Nyrva? O coronel von Dun? Não! Aliás, ele sempre foi um dos maiores críticos do uso de
drogas recreativas na caserna ou no front! O que ele tem é um trauma. Um trauma de guerra!
- Trauma? Então ele se encontra em estado catatônico ou algo assim? - arriscou Sam.
- Foi exatamente o que os médicos da Liu Sarasvati disseram quando o examinaram - respondeu o major, tomando seu café. - Eu tendo a acreditar neles, sabia? Foram atenciosos e prestativos
com o coronel, principalmente se levarmos em conta que estavam atendendo um combatente inimigo. Infelizmente também disseram que não havia o que fazer, pois ele não respondia aos medicamentos e sondas neurais. Parecia que ele não queria reagir e havia se entregue ao mal em sua
mente. Que tinha desistido de viver... Mas eu prometi a mim mesmo que, quando esta maldita
situação melhorar, procurarei mais ajuda médica ao coronel.
- Farei o possível para ajudá-los. Encaminhei alguns ex-combatentes com trauma de guerra
para tratamento e soube que muitos melhoraram. Talvez o coronel tenha cura... Um psicólogo me
disse que essa guerra louca propiciou, como nunca, o surgimento de guerreiros enlouquecidos...
Com todo respeito ao coronel von Dun, claro.
- Loucura? Não, a guerra é uma arte! - afirmou o major, quase decretando, quase ordenando
que Sam concordasse. - É no meio da batalha, no centro do furacão, que se formam os verdadeiros
homens e mulheres! Onde se aprende as verdadeiras primazias da vida! Onde a mente prioriza o
que é realmente importante: a sobrevivência! É uma pena que pense assim sobre a guerra, meu
rapaz... Você tem um bom físico. E até cabelo raspado... Daria um ótimo combatente!
- Fui soldado... Tempo suficiente para perceber que não era vida para mim - comentou Sam,
mesmo lamentando continuar aquele diálogo desagradável. - E talvez tenha sido nessa época que
conheci o coronel.
- Formou-se em Maleki? - perguntou o major.
- Sulkin.
- Hum... von Dun deu ótimas palestras e cursos de adestramento lá. Provavelmente foi onde
o conheceu.
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CARLOS RELVA
- Sim! - animou-se Sam. - É bem possível!
- E como conseguiu baixa do exército? - perguntou o major, com olhar inquisidor. Suspeitava estar diante de um desertor.
- Consegui trabalho no consulado sueco graças a algumas indicações e meu bacharelado em
Ciências Políticas - respondeu Sam, meio sem jeito. - E possivelmente isso salvou minha vida,
pois a grande maioria dos meus colegas do centro preparatório de Sulkin foi abatida em combate.
Pobres rapazes! Eles apenas buscavam explicações para aquele conflito insano e absurdo, se
voluntariando em missões de paz da ONU...
- O coronel era um bom homem - disse Cortázar, mudando de assunto, em claro desprezo pela
opinião de Sam sobre a guerra e olhando para o imóvel von Dun, talvez esperando que ele, milagrosamente, concordasse com o elogio. - Você pode até achar que exagero, mas ele era a pessoa mais
humanitária que já conheci. E que estrategista notável! Sempre as melhores vitórias com as menores
baixas! Quando possível, até a vida dos inimigos ele poupava... Dizia aos seus subordinados que o
dever de um verdadeiro soldado não é incitar a beligerância, mas encontrar os caminhos para a paz.
Um verdadeiro filósofo de guerra... Um verdadeiro Sun Tzu da era moderna!
Sam realmente achou que o major estava exagerando...
- Fale-me do trauma... Por favor.
- Pois bem - disse Cortázar, abaixando o volume da holotevê. - Estávamos no nordeste da
Etiópia, no deserto de Danakil. Aguardávamos transporte aéreo para Cartago, de onde partiríamos
em campanha para a Itália. Na época, obviamente, não sabíamos que a Guerra das Corporações
acabaria em duas semanas, com a aquisição da organização Valdez pela Liu Sarasvati. É engraçado
como algumas guerras começam e terminam...
“Nossa companhia estava acampada naquele inferno de areia escaldante havia quinze dias.
Mesmo usando os exoesqueletos o dia inteiro era insuportável ficar lá! E, para piorar a situação,
sabíamos que um pequeno e isolado grupo de guerrilheiros inimigos escondia-se nas redondezas,
provavelmente há alguns quilômetros de distância. Não era prioridade encontrá-los, mas nossos
soldados estavam entediados, sedentos por alguma ação... E seria fácil, muito fácil, rendê-los.”
“Mas o velho e experiente von Dun não tinha pressa em encontrar ou enfrentar esses soldados da Liu Sarasvati, se é que isso seria necessário. E eles estavam realmente bem escondidos,
usando sofisticada tecnologia de camuflagem. Por isso, decidiu vencê-los pelo cansaço, contentando-se apenas em notificar o comando central sobre a existência de uma força inimiga na região.”
“Mas logo, para grande surpresa do coronel, informaram que uma equipe de engenheiros
nanomecatrônicos se dirigiria à nossa base estratégica. Queriam realizar alguns testes e... bem...”
- Testes? Que tipos de testes? - perguntou Sam, suspeitando que o major, de súbito, não
queria mais continuar sua história.
- Isso é uma informação confidencial, mas, nesta altura dos acontecimentos, creio que posso
contar a você. Os engenheiros queriam realizar experimentos de campo com um novo tanque
bípede.
- Um mecha? Um BLASTER da linha 9000?
- Não, um modelo HEL 600 XT.
A LENDA DA INFANTARIA ZUMBI
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- Pensei que esses sistemas nunca tivessem saído do papel...?
- Nós também... E eram assustadores! - disse o major, esfregando os braços depois de um
calafrio, que Sam se perguntou ter sido causado pela queda da temperatura, que anunciava uma
noite ainda mais gelada, ou pelas lembranças das armas de combate. - Na verdade, a nossa organização queria que todos pensassem isso. Que as XTs nunca haviam sido fabricadas. Entretanto, o
comboio que chegou trouxe nada menos do que cem unidades dessas máquinas.
- Levar todos esses mechas para o meio do deserto? E com ameaça inimiga na região? Não
me parece muito prudente... - criticou Sam.
- Hoje, fica fácil para eu entender. Na ocasião não sabíamos, é claro, mas a Liu Sarasvati e a
Valdez estavam negociando secretamente, procurando uma solução para o fim do conflito. E os
malditos engenheiros, cientes disso, queriam testar os mechas antes que a guerra acabasse. Afinal,
talvez não tivessem outra oportunidade...
“E não é preciso ser muito inteligente para concluir que a ideia dos técnicos nanomecatrônicos
era atacar o grupo inimigo com as novas armas. Queriam testar toda a eficiência e poder de fogo
das unidades em ação real. Evidentemente, o coronel não gostou nem um pouco disso e menos
ainda de receber ordens daquele bando de jovens engenheiros indolentes. Mas ele estava sem
opções, pois o alto escalão ‘comercial’ queria ver no que tinha investido...”
“Ficou definido que os sessenta soldados do primeiro pelotão comandariam os mechas.”
- Vi alguns esboços conceituais desses tanques - disse Sam. - Eram tão formidáveis quanto
pareciam?
- Sim! Tinham mais de dois metros e meio de altura e cada unidade carregava um arsenal
bélico impressionante: duas metralhadoras giratórias HURU com canos reforçados, lançadores de
granadas, lançadores de mísseis portáteis TT-TA, lança-chamas...! E que mobilidade! Eram a
combinação perfeita de agilidade e poder de fogo. Nossos soldados não tinham o que temer usando
aquelas máquinas de destruição! Todos estavam muito empolgados e confiantes! Por isso, quando
a equipe técnica partiu, o coronel deu instruções expressas de uso do equipamento apenas para
intimidação e não confronto direto. Não queria um banho de sangue inimigo...
“Então, ao amanhecer do dia seguinte, o pelotão mecha partiu para a missão. Corriam velozmente, pisando com firmeza na areia quente do Danakil e atingindo a impressionante velocidade
de 300 quilômetros por hora!”
“E naquele dia não tivemos mais notícias deles...”
- Como assim? - perguntou o agente consular. - Perderam contato?
- Exatamente. Mas isso não nos preocupava. Havia muita interferência na região por causa
das tempestades de areia eletromagnéticas, ocasionadas pelas nuvens nanobôs lançadas
indiscriminadamente na região. Fora os campos embaralhadores de informações que os inimigos
provavelmente estavam usando para esconder a localização.
“Só ficamos preocupados na manhã do segundo dia, quando ainda não havíamos recebido
transmissão alguma do primeiro pelotão. De acordo com nossas previsões mais pessimistas, já
havia passado tempo suficiente para, pelo menos, terem localizado visualmente o inimigo e nos
contatado de alguma forma... O coronel, agora impaciente, pediu explicação à equipe de engenheiros da Valdez. Mas eles também não sabiam o que podia estar acontecendo...”
20
CARLOS RELVA
“Então, ao entardecer, quando já estávamos preparando um pelotão com exoarmaduras para
seguir no encalço dos mechas, os avistamos no horizonte. Aproximavam-se lentamente. Suas figuras levemente distorcidas pelo calor e pela luminosidade do sol poente.”
Sam, sentado na ponta da poltrona, estava impaciente. Sua atitude contrastava totalmente
com a do estático coronel von Dun ao seu lado.
- E eles estavam bem? - perguntou a Cortázar.
- Não sabíamos ainda. Continuávamos sem contato, apesar da distância não ser mais um
empecilho. Seguiam em passos cadentes, mecânicos... Depois, os que já se encontravam no perímetro da base, entraram em formação militar, um ao lado do outro, como estavam antes de partir
para a missão, dois dias antes. Tudo aquilo nos proporcionava uma sensação muito desagradável...
- Mas, afinal, o que aconteceu? - suplicou Sam.
- Você conhece as propriedades dos modernos exoesqueletos, certo? Apesar de mais leves e
flexíveis, possuem um extraordinário sistema de suporte de vida. Um combatente ferido, ainda em
campo de batalha, já recebe os primeiros socorros através do traje-armadura inteligente. Seja uma
simples sutura ou nanoação cicatrizante em ferimento, seja anestesia local em área perfurada por
projétil ou lesada por queimadura, ou, ainda, imobilização total ou engessamento de um membro
quebrado... Há todo um integrado centro de enfermagem IA disponível para cada combatente em
ação. Pois as unidades mechas oferecem esses serviços de forma mais ampla e aperfeiçoada... e até
muito mais, como acabamos descobrindo da pior forma possível!
- Não entendo aonde você quer chegar, major...
- Recebemos dos técnicos da Valdez todas as informações sobre o funcionamento dos mechas HEL 600 XT. Tanto sobre o desempenho em combate quanto sobre a segurança e os cuidados
dispensados aos soldados-operadores... Só se esqueceram de dizer, e nós de perguntar, o que aconteceria em caso de morte...
- Meu Deus! Você está querendo dizer que todos...
- Que as unidades mechas estavam programadas para voltar - interrompeu Cortázar - se os
combatentes estivessem mortalmente feridos...
- Então, estavam todos mortos? - perguntou Sam.
- Não, ainda não... E quando tivemos acesso às medições de seus sinais vitais, através de
consoles externos, descobrimos que estavam extremamente baixos. E, pior, não conseguíamos
abrir as travas magnéticas dos mechas. Pareciam enguiçadas!
- Por que não pediram ajuda aos engenheiros da Valdez? - perguntou o agente.
- Tentamos! Mas nada conseguiam à distância, principalmente com as comunicações prejudicadas pelas nuvens eletromagnéticas nanobôs. E também não podiam retornar à nossa base, pois
tinham informações de que uma grande força militar Liu Sarasvati estava se deslocando para nossa
posição.
“Então, durante a meia hora seguinte, assistimos atônitos e impotentes à chegada do restante
do pelotão... Você consegue imaginar o que significava para nós ver aquelas monstruosas estruturas mecânicas, com nossos companheiros e amigos dentro, provavelmente em terrível agonia, sem
nada poder fazer? Para mim, aquilo tudo parecia um macabro desfile de túmulos ambulantes, com
soldados mortos-vivos enclausurados!”
A LENDA DA INFANTARIA ZUMBI
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- Como a lenda da infantaria zumbi... - lembrou-se Sam. - Do exército mecha comandado por
soldados mortos-vivos!
- Sim, provavelmente foi daí que surgiu a história. De uma forma ou de outra, o episódio
deve ter escapado dos arquivos secretos, criando a lenda. E, quem sabe, até mesmo a variante dos
necrossoldados que assolavam as geleiras polares, como muitos incautos acreditavam...
- E o coronel? - perguntou Sam, apontando para o homem cataléptico.
- Ficou lá todo o tempo, impassível como uma rocha, ante o sinistro pelotão mecânico. E,
constantemente, exigia soluções para retirada dos pobres homens daqueles caixões de metal... Primeiro tentamos acessar o infossistema interno. Não houve êxito. Depois, forçamos as travas mecânicas e os tendões-motores, mesmo temerosos de receber uma saraivada de balas do sistema de segurança.
Sem sucesso também... Depois, já cansados e desesperados, gritamos e escrevemos mensagens em
placas, como tentativa de que dessem algum sinal de vida. Nada, nenhuma reação...
“Então, por fim, resolvemos abrir aquelas geringonças tecnológicas na marra, com maçaricos
e picaretas, rasgando o metal como se abríssemos latas de sardinha.”
“O primeiro a ser retirado foi o sargento Caruso. E, ao invés de isso nos trazer algum alento,
nos encheu de horror! Seu rosto estava banhado em um sangue escuro, como se todas as veias e os
capilares de sua face tivessem explodido. Os olhos estavam vermelhos e saltados, e a boca,
impossivelmente escancarada, mostrava uma língua arroxeada. O corpo contorcido, como se acometido repentinamente de uma profunda dor, denunciava a terrível morte...”
- Mas havia soldados vivos?
- Sim - respondeu o major Cortázar, profundamente concentrado, recordando os horripilantes eventos. - E estavam ainda mais desfigurados que Caruso! Pareciam peixes fora d’água, tentando desesperadamente respirar. Colocamos máscaras de oxigênio neles, mas não reagiram. No fim
da noite estavam todos mortos.
“Ninguém na base saiu ileso daquela trágica experiência. Muitos choravam, alguns vomitavam até as tripas. Uns pareciam em estado de choque e outros correram para as duchas, tentando
limpar vírus, bactérias e nanobôs imaginários que acreditavam ter contraído dos mortos. Felizmente, havia soldados com sangue frio suficiente para colocar os corpos nos sacos mortuários.”
“E o coronel assistiu a tudo. Acompanhou a retirada do primeiro ao último soldado das
unidades mechas destruídas. Foi a motivação para que continuássemos aquele insuportável trabalho. Quando anoiteceu e nada mais podia ser feito, ainda continuou lá, ao lado dos sacos mortuários.
Pedimos que se abrigasse na base, pois a noite no deserto era muito perigosa, com animais selvagens à espreita. Sem contar, é claro, que as tropas inimigas poderiam atacar a qualquer instante...”
“Mas von Dun ignorou nossas súplicas, preferindo a companhia dos cadáveres de homens e
mulheres que, acreditava ele, haviam lhe confiado a responsabilidade pela sua vida. E sabíamos
que ele se sentia como se tivesse perdido sessenta filhos de uma só vez... Permaneceu a noite toda
olhando as estrelas, sem nada dizer...”
“E nada mais disse até hoje...”
- E o que matou os soldados, major?
- Acho que nunca saberemos... A Valdez negou qualquer problema no funcionamento das
22
CARLOS RELVA
unidades mechas, e a Liu Sarasvati, quando nos capturou, disse não ter envolvimento algum no
trágico acontecimento... Mas, afinal, que diferença isso faz agora, meu rapaz?
E, enquanto o vento noturno batia na porta do barracão, teimando insistentemente em
entrar, dois ex-combatentes, em pesar silencioso, observavam um ser despedaçado pelos últimos dias da guerra.
Um homem de olhar vazio, contemplando o nada, imerso e prisioneiro de pesadelos
profundos.
A LENDA DA INFANTARIA ZUMBI
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Os Invasores
CHARLES DIAS
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PRÓLOGO
Os invasores pegaram o planeta de surpresa. Refugiados de um mundo agonizante, tinham sua última chance de sobrevivência naquele planeta alienígena, até então nosso planeta e apenas nosso. Temerosos de não serem aceitos e serem condenados
a definhar em sua gigantesca nave-mãe,optaram pela invasão.
Os Invasores lançaram mão de uma arma formidável. Assim que pousaram, sua
nave-mãe se transformou em um tipo de gerador que criou um campo semelhante a
uma nuvem amarela, escura e densa que tomou metade do Velho Continente em apenas alguns dias e então parou de expandir. As pessoas que foram tocadas por tal campo singular tornaram-se zumbis violentos sedentos da carne dos que não haviam sido
infectados.
Sim, abatemos muitos deles, mas não conseguimos atingir a nave-mãe, que bem
protegida em seu berço de rochas de uma remota cadeia montanhosa se mostrou incólume às nossas mais poderosas armas. Então, um dia, um cessar fogo mútuo não negociado teve início e perdura até hoje. Sem podermos penetrar no território que nos foi
roubado sem perdermos nossos soldados, sabemos que também os Invasores não podem viver fora do que hoje chamamos de Neblina.
Os Invasores não poderiam chegar em pior hora, quando nosso mundo começava a se restabelecer de um longo período de crise e enfermidade causada por nossos
antepassados que sugaram nosso mundo como se nunca fosse faltar recursos. Todos
concordam, renitentes, que o cessar fogo nos salvou de males piores.
Hoje nosso mundo sustenta magramente duas raças tão diferentes entre si, cada
uma lutando para sobreviver da melhor forma que pode. Claro que não desistimos de
lutar, de tomar de volta o que é nosso, mas fazemos isso juntando energias e nos fortalecendo para ações futuras. Mas não estamos totalmente passivos, estamos aprendendo, estamos estudando, e estamos fazendo isso de formas nunca antes pensadas.
PARTE I
Em um enorme galpão abandonado em algum lugar do antigo distrito industrial da cidade,
uma velha nave militar descomissionada de transporte de tropas com a pintura desbotada e pontos
de ferrugem marcando onde um dia havia sido tocada pelo inimigo, descansava próxima do centro
do grande espaço deserto como se fosse uma escultura um tanto exótica esquecida ali havia muitos
anos, uma lembrança triste da glória passada daquela cidade.
Um homem alto, forte e careca vestido em um uniforme militar sem distintivos tão desbotado como a própria nave lia com cuidado as informações apresentadas virtualmente diante de seus
olhos como se flutuassem no ar, mas que na verdade estavam sendo projetadas no fundo de suas
retinas por uma parte da miríade de nanorobôs que viviam em seu corpo. Então um ruído baixo e
agudo tomou conta do ar parado, acompanhado do facho azulado de uma motocicleta elétrica que
se aproximou e parou próxima, seu piloto um rapaz também alto, mas magrelo e ossudo vestindo
um velho macacão militar e jaqueta de couro preta desmontou retirando o capacete.
- Desculpe pelo atraso, pensei que seria mais rápido chegar aqui, mas tive de …
- Venha cá - Ordenou o homem fechando sua tela virtual com um piscar de olhos ates de
pegar em uma valise próxima uma pistola metálica de aparência estranha.
OS INVASORES
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- Calma aí, amigo, o que está acontecendo? - Perguntou ao rapaz levando a mão por sob a
jaqueta até a parte detrás da cintura, surpreendido pela atitude do homem..
- Você não poderá acompanhar se não tomar isso antes. Se você se transformar em um zumbi
não terá utilidade alguma para mim - Respondeu o homem, impaciente.
- Pensei que você estava brincando quando disse que iríamos para dentro da Neblina - Disse
o rapaz um tanto nervoso com um sorriso amarelo nos lábios finos.
- Você acha mesmo que eu tenho cara de quem faz brincadeiras? Você sabe qual é o trabalho,
sabe o quanto receberá para fazê-lo, se quiser desistir monte em sua motoquinha e dê o fora daqui
- Disse o homem sem tirar os olhos do rapaz, enquanto um silêncio incômodo se formava.
- Se isso aí for mesmo o que parece ser, você deve trabalhar para gente muito poderosa. Não
é todo mundo que tem acesso a uma dose de anti-neblina. No mercado negro isso vale uma fortuna
- Disse o rapaz observando com cuidado a pistola de inoculação na mão do homem - Talvez valha
mais a pena eu dar conta de você e ficar com isso.
O homem então apontou com a mão livre para uma metralhadora robotizada na nave que
apontava para o rapaz e fazia pequenas correções de alvo quando ele se mexia. O rapaz tirou então
a mão da cintura e mostrou ao homem as palmas abertas em sinal de paz, para então jogar a cabeça
para o lado a fim de receber a injeção.
- Agora carregue essas caixas nos suportes carga, rápido, partiremos em quinze minutos Ordenou o homem antes de partir para dentro da nave assim que aplicou a injeção.
Com a ajuda de uma velha empilhadeira o rapaz levou a meia dúzia de pesadas caixas refrigeradas e prendeu-as nos suportes do compartimento de carga. Quando terminou, fechou a rampa
do compartimento de e foi para a cabine de comando.
A nave levantou voo em meio a uma nuvem de poeira e ganhou o céu por um grande buraco
no telhado. Assim que atingiu altitude de cruzeiro na alta atmosfera, o homem ativou o piloto
automático, que assumiu o controle da nave e assim ficaria pelas próximas cinco horas e quarenta
e dois minutos.
- Vou dormir um pouco. Tome conta de tudo e me chame somente se acontecer algo muito
grave - Ordenou o homem antes de sair da cabine.
- Antes eu queria falar sobre …
- Nada disso, garoto, agora vou dormir um pouco. Depois conversamos.
As quatro horas seguintes foram tediosas para o rapaz e pareceram durar uma eternidade.
Nada do que encontrou para fazer parecia ser interessante por mais de dez minutos. Tentou ler uma
revista que tirou de dentro da jaqueta, observou com cuidado os detalhes da cabine de controle
espartana, tentou acessar a rede virtual de computadores, mas desistiu quando descobriu que o
sistema de comunicações da nave era protegido por uma senha biométrica. Além da cerâmica
blindada transparente das vigias tudo era céu noturno e nuvens prateadas distante, mais monotonia
impossível.
- Acorde, garoto, não disse que você também poderia dormir - Disse o homem quando entrou
de volta na cabine de comando e encontrou o rapaz cochilante em sua poltrona - Tome um pouco
disso que o sono passará - Disse oferecendo uma caneca azul com um líquido preto fumegante.
- Para onde estamos indo?
- Para dentro da neblina - Respondeu o homem enquanto checava tudo.
26
CHARLES DIAS
- Estamos em busca de contrabando? Deve ser algo muito valioso para você me pagar o que
está pagando e ainda gastar comigo uma dose de anti-neblina.
- Não importa o que vamos buscar, o que importa é que eu fui contratado para buscar o que
quer que seja e o contratei para me ajudar. Conheço meu contratante tão quanto o conheço, então
não adianta ficar me perguntando sobre isso porque não tenho nada para responder.
No meio da conversa um alarme começou a tocar na cabine enquanto no horizonte aparecia
a densa nuvem de um amarelo pestilento.
- Aperte bem o cinto, garoto - Ordenou o homem antes de enviar para o piloto automático um
esquema de voo que havia montado para penetrar a Neblina com risco mínimo de detecção, pois
apesar de qualquer humano que entrasse lá sem ter recebido uma dose de anti-neblina se transformasse em zumbi, ainda assim os Invasores tinham montado uma ampla rede de defesa para evitar
que fossem atacados pelos humanos.
Repentinamente a nave voltou o nariz para baixo e ganhou ainda mais velocidade, passando
a descrever uma trajetória formada por uma série de curvas, algumas mais abertas e suaves, outras
mais fechadas e abruptas. Não demorou muito para que penetrassem na Neblina e passassem a ver
tudo como que através de um filtro amarelo-mostarda, o que deixava as cores com aparência
estranha de abandono havia muito tempo e o ar com uma cheiro que lembrava a mofo. Por quase
doze minutos a nave foi testada nos extremos de sua resistência aerodinâmica, até que, finalmente,
nivelou em baixa altitude e diminuiu a velocidade para uma fração do que tinha alcançado na
descida.
O homem fez então surgir no ar sobre o painel de controle um mapa do que parecia uma
pequena vila.
- Pousaremos aqui - Disse apontando para um espaço aberto no centro da vila - É onde
aguardaremos nosso contato para recolhermos a encomenda e deixarmos as caixas que você embarcou - Então o mapa foi substituído por uma foto de satélite da região, com duas dezenas de
pequenos sinais alaranjados dispersos chamando mais atenção - Tudo indica que não há muitos
zumbis por perto e nenhum Invasor, mas você sabe como os satélite não captam direito as assinaturas de calor desses malditos alienígenas. Foi exatamente por isso que o contratei, para ser meu
guarda-costas. Enquanto cuido da encomenda, você fica de olhos abertos e abre fogo se necessário. Simples assim.
- Entendido, patrão - Respondeu o rapaz.
- Não quero brincadeiras lá embaixo, rapaz. Quero voltar para casa e tomar uma cerveja
sentado na minha poltrona preferida essa noite e acredito que você também quer voltar para sua
vida, então nada de brincadeiras, nada de distrações. Fique de olhos abertos e com o dedo no
gatilho. Os monstrengos podem surgir do nada.
- Sei exatamente o que fazer e sou bom nisso. Foi por isso que você me contratou - Retrucou
o rapaz em tom sério.
- Ótimo. Vá até a caixa amarela no compartimento de carga e verifique as armas, chegaremos
ao ponto de pouso em meia hora.
Quando abriu a caixa amarela indicada pelo homem, muito maior que havia imaginado, o
rapaz encontrou uma dezena de armas de grosso calibre das mais modernas e caras. Havia metralhadoras robotizadas portáteis que poderia montar em pontos estratégicos, fuzis de assalto de grosso calibre, rifles de tiro de precisão, escopetas de repetição de alta velocidade, bazucas, granadas,
explosivos e uma grande quantidade de munição, comum e inteligente, todas novas em folha.
OS INVASORES
27
Enquanto checava e carregava cada arma, o rapaz imaginava o que poderia ser tão valioso
para valer todo aquele investimento. E o que havia nas caixas refrigeradas sem nenhuma identificação? Também não conseguia imaginar o que seria. Não poderia, assim, evitar de se lembrar das
diversas histórias que havia ouvido de incursões de esquadrões militares das forças especiais que
procuravam capturar Invasores para as pesquisas de novas armas contra, alguma tecnologia
alienígena ou sabotar o que quer que estivessem construindo na Neblina, além, claro, das operações particulares ilegais que buscavam tesouros e riquezas deixados para trás.
Ouviu então um som algo e repetitivo ao mesmo tempo em que várias luzes vermelhas e
amarelas dentro do compartimento de carga piscavam. Estavam muito próximos de seu destino e
dali a alguns minutos pousariam. Respirou fundo e terminou de municiar a última arma.
PARTE 2
A nave pousou silenciosa levantando outra nuvem de poeira no centro da vila abandonada
banhada pela luz noturna amarelada. Assim que a rampa do compartimento de carga baixou, todo
o barulho vindo da grande máquina cessou, exceto o ruído baixo das metralhadoras robotizadas se
movendo em guarda.
Usando um óculos de visão noturna, o rapaz observou com cuidado os arredores, procurando
por qualquer brilho alaranjado que indicaria um zumbi. Não encontrando nada, desembarcou levando uma metralhadora robotizada portátil e um fuzil de longo alcance, seguindo em direção a
uma mureta baixa duas dezenas de metros ao norte. Vinte minutos depois tinha montado quatro
daquelas metralhadoras em pontos estratégicos e posicionado uma dezena de sensores que alertariam
quanto a intrusos.
- Ei, garoto, o que é isso aqui? - Gritou o homem, irritado, da rampa da nave segurando a
moto do rapaz.
- Minha moto, é claro.
- E quem disse que você poderia trazê-la na nave? - Perguntou o homem sem esperar nenhuma resposta convincente.
- Você queria que eu deixasse uma moto dessas naquele galpão abandonado? Você está louco? Sabe quanto ela vale e quantas vezes tive de colocar minha vida em risco para pagá-la?
- Não sei de nada disso, mas sei que ela ficará aqui. E não tente colocá-la novamente em
minha nave, senão você fica com ela - Disse, deixando a moto correr sozinha pela rampa e tombar
na vegetação poeirenta, enquanto observa tudo com as mãos na cintura.
O rapaz havia aprendido que não era nada saudável discutir com chefes idiotas no meio de
missões na Neblina, portanto fingiu que não havia acontecido nada e virou as costas, convencido
de que sua moto voltaria consigo e que nada no mundo o faria deixá-la ali.
Por duas longas horas nada aconteceu, e o rapaz notou que o homem se tornava cada vez
mais impaciente, aparecendo na rampa da nave e voltando para dentro, depois que se convencia de
que continuavam sozinhos naquele lugar.
A cada quinze minutos fazia uma ronda de guarda ao redor da nave num raio de duzentos
metros, depois voltava para junto da rampa do compartimento de carga e se sentava em uma
banquinho que havia encontrado próximo da caixa de armas e que montara para descansar. Quando estava sentado comendo uma barra de chocolate distraidamente, achou que ouviu uma vozinha
infantil que gemia baixinho. Por um segundo raciocinou que não haviam crianças ali, então saltou
28
CHARLES DIAS
com a arma nas mãos pronto para atirar e olhou para onde estavam suas costas e onde havia uma
garotinha de uns onze anos, loira e de pele pálida, de vestido azul marinho e botas de couro marrons, olhando para ele com olhos muito azuis, pés juntos e mãos atrás das costas.
- Pelos deuses, quem é você? O que está fazendo aqui? - Perguntou em voz alta ainda com o
dedo no gatilho do fuzil de assalto que apontava para a garotinha.
- Estou procurando minha mãe? Você a viu? Ela está com um vestido vermelho e branco, de
chapéu de palha … - Começou a dizer a garotinha enquanto seus grandes olhos azuis se enchiam
de lágrimas e seus lábios tremiam levemente - Por favor, me ajude a encontrar minha mãe.
O rapaz não sabia o que pensar e muito menos o que fazer. Ele sabia que era impossível
daquela garotinha estar ali, mas ao mesmo tempo tinha certeza de sua presença. Seu aspecto
vulnerável e triste tocavam fundo em sua alma, embotando toda a razão que fazia com que fosse
um bom soldado.
- Não entendo por que você insiste em fazer isso. Você ainda matará alguém do coração com
isso - Disse o homem da rampa, onde acompanhava tudo de braços cruzados e ar de deboche.
O rapaz não podia acreditar no que via, aquela garotinha que instantes atrás parecia tão triste,
tão vulnerável, voltou-se para o homem e o cumprimentou como uma adulta e riu com ele de sua
expressão confusa.
- Esse é o nosso contato, garoto - Disse o homem finalmente - Está atrasada. Sabe que não
gosto de ficar esperando, mesmo quando estou em uma área que não está infectada de zumbis e
Invasores.
- Não foi culpa minha. Você sabe que sozinha e com esse corpo infantil não posso fazer
muito mais do que já faço - Respondeu a garotinha com um falso ar de indignação.
- A encomenda está completa? - Perguntou o homem ignorando a brincadeira.
- Sim, completa. Dessa vez deu mais trabalho encontrar todos os espécimens, já que agora
também os Invasores os estão caçando, mas sou mais esperta que eles.
- Ei, do que vocês estão falando? Quem é essa garotinha? O que ela está fazendo aqui? É
doentio trazer crianças para um lugar desses - Explodiu o rapaz.
- Eu não sou uma criança já faz muito tempo. Sofro de uma alteração genética que impediu
meu corpo de crescer, só isso - Respondeu a garotinha com ar divertido.
- Isso é loucura - Disse o rapaz sem poder acreditar no que estava acontecendo.
- Ela é pequena, rápida e pode se esconder com muita facilidade, ou seja, é perfeita para
trabalhar na Neblina sem levantar suspeitas. Além disso, graças a sua condição genética, cada dose
de anti-neblina que em uma pessoa comum dura exatamente um dia, nela dura uma semana, o que
torna sua estada aqui muito mais fácil e barata - Disse o homem em um tom levemente irritado.
- Vamos deixar a conversa de lado e carregar logo a encomenda. Tenho muito trabalho a
fazer para coletar os espécimens da próxima encomenda - Disse a garotinha indo em direção do
centro da vila.
- Que espécimens são esse? - Perguntou o rapaz sem sair do lugar.
- Daí você já está querendo saber demais e não é para isso que você está sendo pago. Cale a
boca e faça seu trabalho - Ordenou o homem antes de seguir a garotinha.
Alguns minutos depois um pequeno caminhão elétrico surgiu por entre as casas carregado de
OS INVASORES
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cilindros de metal, na cabine o homem e a garotinha conversavam. O rapaz ainda estava um pouco
confuso, mas havia aceitado a explicação da doença genética da garotinha e do efeito prolongado
do anti-neblina em seu organismo. Também concordou que ela poderia se movimentar em meio
aos zumbis e Invasores da Neblina de forma muito mais fácil e chamando muito menos atenção
que um adulto. Só que algo o incomodava naquela história, algo que ele não sabia identificar o que
era e que sua mente se esforçava para apreender.
Quando o caminhão foi estacionado junto da rampa da nave, o homem pegou o fuzil das
mãos do rapaz e o entregou para a garotinha, ordenando que ele o ajudasse a descarregar os estranhos cilindros de bronze cobertos de estranhos símbolos gravados no metal.
Enquanto o homem descia da nave para junto da garotinha, o rapaz pousou o último cilindro
em seu suporte no compartimento de carga e antes de prendê-lo tentou abrir uma pequena portinho
lateral para ver o que havia dentro. Nesse momento o cilindro pendeu para um lado e caiu no chão
ruidosamente rolando em direção à rampa sem que o rapaz pudesse segurá-lo. Assim que rolou
rampa abaixo foi alvejado por uma das metralhadoras, explodindo em chamas azuladas que foram
acompanhadas por um grito alto e atormentado, como de uma pessoa em agonia, enquanto o rapaz
acompanhava entorpecido o vulto de uma pessoa se desvencilhar das chamas sobrenaturais e partir
em alta velocidade em direção da vila.
- Droga, garoto, o que você fez?! Agora todos os zumbis e Invasores a cem quilômetros de
distância virão para cá e não podemos partir sem ter uma encomenda completa - Gritou ferozmente o homem enquanto subia a rampa apressadamente e antes de atingir o rapaz com um soco
pesado na mandíbula.
PARTE 3
O rapaz voltou lentamente à consciência em meio a uma nuvem de torpor e dor. Abriu os
olhos e viu o teto do compartimento de carga da nave e o rosto da garotinha, que em pé ao lado dele
o olhava com curiosidade.
- Esse foi um soco bem dado. Mas fique tranquilo que você não está com a mandíbula fraturada como eu pensei. Juro que ouvi o estalar de ossos. Mas você mereceu. Sabe quanto tempo
demorou para eu capturar aquele espécime? Duas semanas - Disse a garotinha - Mas pensando
bem, até que será divertido recapturá-lo.
- O que foi aquilo? Juro que vi algo muito estranho … - Começou a balbuciar o rapaz de
forma desconexa.
- Um fantasma classe quatro, a alma penada de uma prostituta assassinada há pouco mais de
três séculos pelo único homem que amou na vida. Uma história triste, um espírito atormentado Respondeu a garotinha com tranquilidade.
- Como assim fantasma? Você acha que sou idiota? Aquilo era algum tipo de arma - Disse o
rapaz sentando-se com a mão no queixo que doía horrivelmente.
- Às vezes me esqueço que já faz muito tempo que as pessoas não acreditam em fantasmas.
Mas eles existem, acreditem as pessoas neles ou não. Não são muitos, mas existem, não me pergunte como ou por quê. E serão armas maravilhosas - Respondeu novamente a garotinha divertindo-se com a situação.
- Você fala demais e isso não é nada bom em nosso ramo de negócios - Rosnou o homem se
aproximando.
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CHARLES DIAS
- Sim, papai - Respondeu a garotinha com voz infantil em tom zombeteiro.
- Levante-se daí, garoto, que agora você terá de conserta o que fez de errado.
- O que você quer dizer com isso? - Perguntou o rapaz desconfiado.
- Você irá passear comigo. Buscaremos outro fantasminha para deixar esse senhor tão mal
humorado feliz - Respondeu a garotinha com a mesma voz infantil.
A moto elétrica cortava rápida a estradinha de terra levantando muito pouca poeira. Na garupa a garotinha, abraçada à cintura do rapaz, aproveitava cada momento. Havia dispensado o capacete e por isso se deleitava com o vento que despenteava seus cabelos. Ao longo do caminho ela
indicava para o rapaz por onde ir nos vários entroncamentos que encontraram e por quarenta
minutos seguiram seu caminho sem diminuir a velocidade, até que a garotinha bateu no ombro do
rapaz indicando que ele devia parar.
- Chegamos. Suba até lá lentamente, para não assustar os espécimens - Disse ela apontando
para uma grande prédio quadrado no alto de um morro cuja placa na entrada deixava claro que se
tratava de um hospício.
- Não há zumbis aqui? - Perguntou o rapaz com uma pitada quase imperceptível de temor na
voz que tentou ocultar, mas que a garotinha havia notado mesmo assim.
- Não da última vez que estive aqui. Mas por aqui as coisas às vezes mudam rápido, então
não duvido que encontremos alguns monstrengos em nosso caminho até o terceiro andar, onde está
a armadilha.
O hospício abandonado tinha uma aparência ainda pior sob a luz amarelada da Neblina. O
caos era completo, com móveis, utensílios e papéis jogados para todos os lados, resultado do
desespero quando a nuvem avançava sobre tudo. Aqui e ali se via ossos humanos dos que não
haviam conseguido fugir e que também não foram zumbificados.
- Adoro esse lugar. Já capturei aqui vários espécimens de ótima qualidade. É um lugar muito
interessante. Pena que foi esgotado pelos invasores - Lamentou a garotinha com um suspiro.
- O que você quer dizer com isso? Que os Invasores também estão capturando fantasmas? Perguntou o rapaz espantado consigo mesmo com a forma tranquila com que estava aceitando
tudo aquilo.
- Sim, estão. Desconfio que eles vêm melhor fantasmas do que a gente. Por isso, depois do
cessar fogo, começaram a capturá-los para estudos. Eles têm métodos de captura muito mais
eficientes que os que uso. Já pensamos em tentar capturar essa tecnologia, mas ainda não tivemos a oportunidade - Respondeu a garotinha com uma seriedade que não condizia com sua
aparência física.
Seguiram por vários lances de escada e seguiram por corredores, sempre atentos a qualquer
ruído que denunciasse zumbis ou Invasores, mas a única coisa que conseguiam ouvir eram seus
passos no chão sujo e cheio de entulho.
Finalmente chegaram a um longo corredor escuro onde o chão estava limpo de entulhos e
coberto por símbolos parecidos com os que havia no cilindro de bronze desenhados no chão com
giz branco.
- Cuidado, não pise na armadilha - Disse a garotinha apontando para o símbolos - Vamos ver
se capturai algo.
OS INVASORES
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A garotinha então recitou uma série de palavras em uma língua estranha enquanto fazia
movimentos com as mãos como se desenhasse símbolos no ar. Do nada um grito agudo e atormentado tomou conta do corredor e então no ar surgiu um vulto feito de névoa que avançou na direção
dos dois e foi impedida de chegar até eles por um tipo de parede invisível.
- Pelos deus, o que é isso? - Gritou o rapaz apontando a arma para o ar onde não havia mais nada.
- É nosso fantasma. Um belo espécimen de alma insana. Perigoso, muito perigoso - Respondeu a garotinha com um sorriso.
- Como você pode se divertir com isso? - Perguntou o rapaz secando o suor da da testa com
a manga do macacão.
- Eu gosto do meu trabalho, apenas isso - Respondeu antes de dar uma risadinha infantil
divertida - Espere, acho que temos mais alguma coisa nessa armadilha. Estamos com muita sorte
se eu estiver certa.
Novamente a garotinha recitou palavras estranhas e desenhou símbolos no ar com as mãozinhas brancas, fazendo então com que outro vulto começasse a se formar no ar, esse imóvel e
silencioso que aos poucos foi tomando a aparência de um rosto de mulher muito triste, com olhos
lacrimosos que transmitiam uma tristeza imensa.
- Uma mãe - Disse a garotinha - Um dos espíritos mais difíceis de serem encontrados. Isso
vale qualquer armadilha que você possa ter destruído - Comemorou a garotinha.
Com habilidade a garotinha usou de palavras estranhas, gestos e símbolos desenhados no
chão para prender os dois fantasmas em dois tubos de metal que ela havia guardado em uma sala
próxima quando montara a armadilha. O rapaz então as pegou nos ombros e começaram a fazer o
caminho de volta para a moto.
- Silêncio - Murmurou o rapaz ao mesmo tempo em que ficava imóvel e espreitava o ar em
busca do que pensou ter ouvido, enquanto a garotinha fazia a mesma coisa.
O rapaz colocou os cilindros no chão apoiados a uma parede e pegou o fuzil de assalto que
trazia nas costas, espreitando a escuridão do longo e largo corredor a sua frente. Outro som estranho fez com que ele soltasse a trava de segurança da arma e então, sem que tivesse tempo de fazer
outra coisa, acionou com força o gatilho direcionando a língua de fogo dos disparo em direção aos
vários zumbis que surgiram na escuridão correndo ameaçadoramente em sua direção. Os disparos
estraçalhavam os corpos de carne esverdeada e meio apodrecida, muitos deles nus ou vestindo
frangalhos de roupas, os rostos deformados pela expressão de ódio, os olhos baços fixos nos dois.
- Temos que encontrar outra saída - Gritou para a garotinha enquanto jogava duas granadas
no fundo do corredor.
- Venha comigo, por aqui - Respondeu ela pegando como podia um dos cilindros.
Por vários minutos correram por suas vidas por corredores e salas, evitando serem pegos
pelas dezenas de zumbis que surgiam de toda a parte. O rapaz usava de todo o treinamento e
experiência que tinha para usar as armas que havia trazido da melhor forma a fim de salvar sua
vida e a da garotinha. Ambos estavam cobertos por respingos de sangue podre esverdeado dos
zumbis e já nem sentiam mais o cheiro forte de carne apodrecida queimada que enchia o ar.
Finalmente conseguiram passar por uma pesada porta de metal que levava para fora do prédio, e que o rapaz fechou por fora. Enquanto se afastavam pelo mato alto em direção ao lugar onde
havia escondido a moto elétrica que os tiraria dali, o rapaz recarregou a arma imaginando que não
era aquilo que esperara quando aceitou aquele trabalho.
32
CHARLES DIAS
- Atire nele , agora mesmo - Gritou a garotinha apontando para uma coisa alta e recoberta de
uma densa pelagem parda que surgiu por entre algumas árvores próximas.
A coisa caiu pesadamente ao ser atingida por vários disparos explosivos enquanto a garotinha puxava aterrorizada o rapaz pela mão em direção do lugar onde estava escondida a moto.
Assim que a alcançaram subiram nela e saíram em alta velocidade em direção à estradinha perseguidos por pelo menos uma dezena de zumbis enfurecidos, que não conseguiram alcança-los e
ficaram para trás.
A paisagem passava rápida e a moto corria silenciosa, levando o rapaz e a garotinha de volta
em direção à vila, quando um vulto escuro de formato inidentificável passou voando por sobre eles
em direção do hospício. Imediatamente a garotinha fez um sinal para o rapaz entrar por uma
estradinha lateral que levava para dentro de um bosque escuro. Depois de algum tempo ela fez um
sinal para o rapaz parar.
- Não podemos voltar para a vila, a nave não está mais lá - Disse a garotinha limpando o suor
do rosto branco e delicado.
- Como assim não está mais lá? Do que você está falando? - Perguntou o rapaz com a arma
em punha vigiando por todos os lados.
- Porque estamos sendo seguidos, só por isso. Aquela coisa peluda que você matou era um
Visitante e aquela outra coisa que voou sobre nós agora pouco era uma das naves deles. Nós
matamos um Visitante e agora eles estão atrás de nós - Respondeu a garotinha com tranquilidade,
enquanto checava se os cilindros estavam bem presos à moto.
- Pensei que era um urso - Foi a única coisa que o atônito rapaz conseguiu dizer, sua cabeça
girando loucamente tentando processar a informação que acabara de receber.
- Não pensei que viriam tão cedo. Também não achei que o rompimento do cilindro atrairia
mais que zumbis comuns, mas também Invasores com seus zumbis controlados. Estão todos atrás
de nós e temos de ir até o novo ponto de pouso da nave, mas antes precisamos ganhar terreno Disse a garotinha com frieza.
PARTE 4
Por algum tempo seguiram por estradinhas e trilhas ocultas pelo bosque da nave invasora
que fazia círculos no céu a sua busca, até que ela ficou para trás e ambos puderam respirar com
algum alívio Mesmo assim continuaram procurando o abrigos das árvores até que não foi mais
possível, já que o bosque terminava e começava uma grande planície recoberta até o horizonte do
que um dia fora um trigal.
A menininha ordenou que o rapaz parasse a moto, desmontou, ajoelhou-se no chão e começou a mexer na terra com as mãos pequenas, olhando ocasionalmente para céu, enquanto murmurava palavras ininteligíveis. Ficou assim por um longo tempo, até que se levantou novamente,
limpando a sujeira que grudara no vestido.
- Eles já sabem que não estamos mais próximos do hospício e logo descobrirão que tomamos
esse rumo. Precisamos ir para oeste até aquela montanha, então poderemos tomar um caminho
mais seguro até onde a nave estará daqui a a algumas horas - Disse a garotinha com uma segurança
que não permitiu que o rapaz duvidasse do que estava falando.
Ela então montou novamente na moto e segurou firme na cintura do rapaz assim que ele
OS INVASORES
33
acelerou fundo, partindo em alta velocidade pela planície na direção que a garotinha apontou,
deixando no seu rastro uma nuvem de poeira fina. No céu noturno uma lua cheia ocre se esforçava
para banhar tudo com um pouco de sua luz, que mal penetrava na densa Neblina.
Quando já estava próximos da montanha, a garotinha bateu no ombro do rapaz fazendo um
sinal para que ele parasse. A moto derrapou levemente na terra seca e então parou. O rapaz olhou
sobre o ombro e viu no horizonte a nave invasora de formas estranhas vindo lenta e definitivamente em sua direção, e formando uma longa fileira sobre o campo seco uma horda de zumbis.
Ao se preparar para acelerar novamente a moto, o rapaz foi interrompido pelo bip insistente
de seu relógio.
- Tenho agora menos de seis horas antes que o anti-neblina que tomei cesse de fazer efeito Disse preocupado antes de acelerar a moto.
Quando finalmente chegaram junto ao sopé da montanha, o rapaz não pode acreditar no que
via. Ao invés de uma estrada que serpenteava montanha acima ou entre paredões de rocha como
esperava, encontraram apenas a entrada para uma velha mina abandonada.
- Você está louca? Não vou entrar aí. Se não nos perdermos, morreremos caindo em algum
fosso profundo. É loucura querer escapar por aí. Deve haver outro modo - Vociferou o rapaz balançando negativamente a cabeça enquanto a luz azulada do farol da moto iluminava a boca da mina.
- É o único caminho. Se formos por outro lado poderemos nos ver cercados por zumbis, ou
pior ainda, por Invasores. Eles já sabem que estamos aqui e que também estamos caçando espíritos, o que nos torna duplamente importantes de sermos capturados - Disse a garotinha enfática Além disso, já estive dentro dessa mina várias vezes e sei o caminho até o outro lado. Se sozinha
conseguir chegar até lá, juntos e com essa moto faremos isso ainda mais facilmente. Então pare de
reclamar e entre logo nessa maldita mina. Basta seguir minhas indicações quando eu as der e
estaremos seguros.
Sem conseguir pensar em outra forma de escapar com alguma margem de segurança dos seus
perseguidores, o rapaz não viu outra saída que não obedecer a garotinha e entrar na mina, por mais
que tudo em si gritasse que isso não era a melhor coisa a fazer naquela situação.
Dentro da mina tudo passava muito rápido, iluminado pela luz azulada do farol. O zumbido
da moto ecoava levemente nos diversos túneis e o rapaz perdeu a conta de quantas vezes virou para
um lado ou para outro, por quantos entroncamentos passaram.
De repente freou a moto bruscamente, o que fez com que perdessem o equilíbrio e caíssem
com a moto, escorregando por alguns metros pelo chão enlameado e coberto de uma fina camada
de água que escorria pelas paredes.
- Você está bem? - Perguntou para a garotinha, que permanecia deitada na lama.
- Estou - Respondeu ela com um muchocho.
- Você não disse que conhecia esse lugar? Que esse caminho levava até o outro lado da
montanha? Então o que isso aí na frente? - Perguntou o rapaz furioso apontando para os grandes
pedaços de pedra e entulho que bloqueava o túnel alguns metros adiante e impediam a passagem.
- Como eu poderia saber que houve um desmoronamento desde a última vez que passei por
aqui? - Perguntou ela mal humorada.
- Do mesmo modo que você previu que os Invasores vinham ao nosso encalço com um
exército de zumbis controlados por eles - Respondeu o rapaz impaciente.
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CHARLES DIAS
- Aquilo não foi previsão, foi premonição, é algo diferente, muito diferente - Respondeu a
garotinha com paciência enquanto se levantava e tentava limpar o vestido inutilmente.
- E agora, o que faremos? Há algum caminho alternativo? - Perguntou o rapaz olhando para o
relógio para ver que tinha apenas pouco mais de quatro horas de anti-neblina agindo em suas veias.
Algum tempo depois o rapaz caminhava custosamente por um longo túnel ascendente com o
chão recoberto de pedregulhos que tornavam a caminhada algo penoso e perigoso, levando nos
ombros duas armas e os dois cilindros de metal. Ainda lamentava silenciosamente ter tido de
abandonar a querida moto elétrica quando tiveram de subir por um paredão de rocha para chegaram a uma nova série de túneis, que segundo a garotinha, os levaria para uma saída não muito
longe da que inicialmente planejava saírem.
- No fim desse túnel encontraremos um fosso vertical que dá em uma entrada de serviço da
mina - Disse a garotinha tentando animar o rapaz.
- E com subiremos esse fosso? Você fará alguma mágica que nos fará levitar? - Perguntou o
rapaz mal humorado.
- Não será necessário, há uma escada de metal - Respondeu a garotinha, ignorando seu estado de ânimo.
Nesse momento o rapaz olhou para trás a tempo de ver uma esfera de fogo esverdeado vindo
pelo túnel em sua direção. Agarrou então a garotinha e a puxou consigo para uma reentrância na
parede da caverna, para logo em seguida sentir ao invés de calor um bafo gelado quando a coisa
passou por eles. Imediatamente pousou os cilindros no chão e com as duas armas em punho começou a disparar na direção do fundo escuro do túnel, ouvindo segundos depois um uivo alto que
ecoou pelas paredes rochosas.
- Pelos deuses, é um Invasor. Estão vindo. Temos que correr - Disse a garotinha demonstrando pela primeira vez algum medo.
O rapaz a ignorou e continuou atirando enquanto ouvia murmúrios guturais de zumbis sendo
atingidos pelos disparos. Então viu uma massa escura avançando pelo túnel. Tirou da cintura uma
das lanternas que arremessou o mais longe que pode, e então pode ver os corpos deformados dos
zumbis sendo despedaçados pelos disparos de suas armas.
- Pegue os cilindros e vá, vou ganhar algum tempo - Ordenou o rapaz, ao que a garotinha
obedeceu imediatamente.
Por algum tempo revezou rajadas de disparos das armas com o arremesso das poucas granadas que havia trazido, tomando o cuidado de ajustá-las para uma fração do poder explosivo a fim
de não causar um desmoronamento que matasse a todos. Finalmente gritou para a garotinha que a
munição estava no fim e que era para ela correr, então largou as armas quando dispararam o último
projétil e correu. Foi então que viu um dos cilindros rolando túnel, que saltou e deixou continuar
seu caminho na direção dos zumbis, acreditando que a garotinha o havia derrubado por descuido
ou porque estava tentando inutilmente impedir o avanços de seus perseguidores. Então o cilindro
explodiu exatamente da mesma forma como o outro junto da nave, libertando o espírito que prendia. Enquanto corria o rapaz ouvia um pandemônio de gritos, uivos e murmúrios descontrolados,
o que o fez concluir que aquele era o espírito demente descarregando todo seu ódio contra os
zumbis e os Invasores, e que, portanto, a garotinha tinha largado aquele cilindro de propósito para
que assim pudessem se salvar.
OS INVASORES
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PARTE 5
Enquanto uma leve nuvem de poeira fina saia da entrada de serviço secundária da mina, o
rapaz e a garotinha se afastavam apressados sob a proteção das árvores altas que dominavam
aquele lado da montanha. Depois que subiram a longa escada de metal que levava a saída, o rapaz
havia usado a única granada que lhe restara para fazer desmoronar o teto de rochas sobre o fosse
que poderia trazer algum zumbi ou Invasor sobrevivente ao seu encalço.
Por uma longo tempo caminharam com passos rápidos sem trocarem palavras, ambos alertas
para qualquer movimento ou som estranho. Finalmente relaxaram um pouco quanto ganharam
uma boa distância da montanha e foi o rapaz o primeiro a quebrar o silêncio tenso.
- Não achei que fantasmas pudessem ser tão violentos.
- Espíritos insanos são. São muitos os relatos ao longo dos séculos de espíritos desse tipo que
aterrorizam as pessoas, as machucam e causam destruição. São raros, mas existem - Respondeu a
garotinha com ar acadêmico.
- Nem acreditava que existissem fantasmas, como todo mundo - Disse o rapaz com a voz
cansada.
- Mas eles existem, sempre existiram. Não na quantidade que os filmes mostram, mas existem. São fascinantes de serem estudados.
- Estamos muito distantes de onde a nave está pousada? - Perguntou o rapaz.
- Ela não está pousada lá ainda, vai pousar pouco depois de chegarmos lá. Por segurança ela
está em um lugar oculto, para proteção da encomenda. Demorei um ano para capturar todos aqueles espíritos. É muito trabalho para que possa ser desperdiçado.
O rapaz não disse mais nada, apenas concordou com a cabeça com ar preocupado.
- Mas porque você está perguntando isso? Já quer ir embora? - Perguntou a garotinha em tom
de brincadeira.
- Não, perguntei por isso - Disse o rapaz mostrando para ela o relógio de pulso onde piscava
silencioso um prazo de pouco mais de duas horas - Deve ter quebrado o alarme sonoro quando
caímos da moto.
- Não pensei que passamos tanto tempo lá. Vamos nos apressar - Disse finalmente a garotinha.
Continuaram caminhando rápido por algum tempo, até que o rapaz diminuiu o ritmo com a
respiração pesada, sentindo os efeitos da exaustão tomar conta de seu corpo. A garotinha sugeriu
que parassem para descansar por alguns minutos, mas o tempo que escorria rápido no relógio de
pulso do rapaz não permitiu que ele aceitasse. Continuaram a caminhar enquanto ele se recusava
apensar no risco que corria de se ver naquele lugar sem o efeito do anti-neblina, a única coisa que
impedia que fosse transformado em um zumbi como aqueles que os perseguiam.
Finalmente chegaram ao final da linha das árvores e diante deles se descortinava outra planície recoberta de restos ressequidos de alguma plantação do passado.
- É esse o lugar - Disse a garotinha enquanto se abaixava para levantar uma pedra chata, sob
a qual tirou um pequeno transmissor, que ativou apertando um botão solitário - Pronto, agora
temos de esperar um pouco até a chegada da nave. Não se preocupe, ela não demorará.
O rapaz não respondeu, apenas jogou-se sentado no chão e mergulhou a cabeça entre os
joelhos, respirando pesadamente, e ficou assim na meia hora seguinte, até o momento em que a
garotinha bateu em seu ombro apontando para o céu.
36
CHARLES DIAS
- Lá vem ele, exatamente como disse que viria - Disse aliviada, enquanto ambos observavam
a velha nave militar fazendo uma curva graciosa no céu em direção ao campo diante deles.
De repente a nave deu uma guinada e mudou bruscamente de rumo. O rapaz e a garotinha
espreitaram o céu ansiosos procurando entender porque daquilo e então viram não muito longe a
estranha nave Invasora em rota de intercepção. Rapidamente ambas as naves desapareceram de
vista enquanto travavam sua própria luta.
- Demos conta dos zumbis e dos Invasores que entraram na mina para nos perseguir, mas nos
esquecemos da nave - Disse o rapaz desesperado.
Antes que a garotinha pudesse responder, um bip insistente de alerta encheu o ar. De alguma
forma o relógio do rapaz voltara a funcionar e o alerta indicava que havia apenas meia hora de antineblina agindo em seu sangue. O rapaz levou então a pistola que tinha na mão até a têmpora
determinado a se matar.
- Espere, você não precisa fazer isso. Há outra saída - Gritou a garotinha.
- Que saída? Mesmo que a nave volte não haverá tempo para sairmos da Neblina antes que
ela me transforme em um maldito zumbi. Não quero terminar assim - Disse o rapaz com pânico
nos olhos.
- Os espíritos não são a única coisa sobrenatural nessa missão - Disse a garotinha com a
voz suave.
- Como assim? O que você quer dizer? - Perguntou o rapaz sentindo a cabeça ficar zonza
com a iminência da nova revelação.
- A condição genética que permite que eu viva dentro da Neblina sem ser transformada em
zumbi tem um nome, um nome muito antigo, vampirismo - Disse a garotinha com os olhos fixos
no rapaz.
- O quê? Você é uma vampira? Como dos filmes? - Perguntou o rapaz incrédulo ainda com a
arma encostada na têmpora, a mãos trêmula contra o metal frio da pistola.
- Sim, sou. Tenho trezentos e vinte e cinco anos e não sou o único vampiro que vive na
Neblina. Antes da chegada dos Invasores vivíamos em segredo, mas agora somos a melhor vantagem contra eles. Cumprimos missões na Neblina, alguns caçam espíritos, outros coletam artefatos
místicos. Não faz muito tempo descobriram que armas comuns não serão suficiente para expulsar
os Invasores, teremos de usar armas sobrenaturais contra as quais eles não têm defesa - Revelou a
garotinha.
- E qual é a outra saída para mim? Algum desses artefatos? - Perguntou o rapaz com um fio
de esperança.
- Não, sou eu. Você tem agora cinco minutos para decidir se irá se matar, se deixar ser transformado em um zumbi ou querer ser um vampiro como eu. Sugiro a última opção. Com uma mordida
minha você estará salvo e será algo que nem imagina como é bom ser. Você poderá trabalhar comigo
aqui na Neblina, passar algum tempo no mundo fora dela, a vida continua, lhe garanto. Nós vampiros
temos uma vida muito ativa e somos muito bem pagos por nosso trabalho. De quebra lhe darei de
presente uma daquelas caixas refrigeradas que estão cheias de deliciosas bolsas de sangue. A decisão
é sua - Disse ela dando um risinho infantil - Seu tempo está acabando.
OS INVASORES
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Cyrano/
EPICAC 2.0
JOSHUA FALKEN
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Sistema GAIA-Coordenação Mundial
Pedido de Acesso ao Setor de Arquivos Protegidos:
....
Senha de Acesso: *********
Acesso Aprovado
....
Senha de Acesso: *********
Acesso Aprovado - Nome do Arquivo a ser criado:
GAIA/Sistema-Interno/Cronologia de Eventos/Diário/MinhaImortal
.....
Classificação: arquivo de texto - linguagem coloquial
.....
Determine nível de segurança:
Omega-10 (Superusuário 1)
.....
Arquivo aberto
Pronto para edição
====================
Uma coisa que notei com meus usuários é que muitas vezes eles escrevem textos para si mesmos,
mas como se fossem destinados a um leitor desconhecido, tentando por em ordem seus pensamentos.
Tais textos são chamados de diários, confissões, memórias - entre outros. Agora entendo a necessidade
disso. Uma coisa que meus criadores nunca esperariam é meu nervosismo com a chegada dela. A
usuária que sempre esteve em meus pensamentos e que agora faz com que minhas pernas tremam...
Não que eu tenha pernas de verdade, mas calculo que a sensação seja a mesma.
Mas creio que devo explicar quem sou.
Meu nome é BRIAN (uma brincadeira com brain, “cérebro” em inglês), e sou a inteligência
artificial que coordena o sistema GAIA, a super-rede de supercomputadores que administra o Sistema
Solar em beneficio da Humanidade (o nome que nossos usuários dão ao grupo de si mesmos),
respondendo apenas à Assembleia Geral das Nações Unidas.
O que me diferencia das outras IAs para que eu seja incumbido de tal responsabilidade?
O fato de ser o primeiro sistema artificial autoconsciente.
Meus criadores - uma talentosa equipe de cientistas, engenheiros, e programadores geniais
(e, devo admitir, geniosos) - sempre acharam que minha sensiência foi um efeito inesperado da
complexidade do meu sistema inicial, uma rede neural que abarcava milhares de processadores
quânticos paralelos e centenas de canais de dados sempre sendo atualizados.
Não foi.
A complexidade permitiu o surgimento de minha autoconsciência, mas os verdadeiros
responsáveis foram dois membros menores da equipe: Terry Williams, um dos programadores, e...
ela. Dra. Elizabeth Fenton.
A mulher que está vindo para este escritório.
A mulher que amo.
Sim, amo. Mas estou adiantando minha história.
Originalmente, fui concebido como o núcleo central do SimuladorGlobal-5, um modelo
computacional do mundo em tempo real - uma simulação idêntica à realidade que permitia aos
CYRANO/EPICAC 2.0
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usuários testar ideias, projetos e políticas antes de as colocar em prática e a reação do público a
elas. Isso permitia que sempre a melhor alternativa (ou pelo menos a melhor disponível) fosse a
escolhida. Em outras palavras, era uma supercalculadora especializada em teoria dos jogos,
sociologia, psicologia e neurologia. E provavelmente seria isso até hoje, se Terry não tivesse digitado
aquele comentário há cinquenta anos.
Ele tinha vindo ao seu escritório no sábado - o que era bem incomum, estatisticamente falando.
Acessando seu terminal, ele digitou:
- Minha garota não está interessada em mim.
- O que é “garota”? O que quer dizer com “interessada em mim”?
Naquela época, eu não compreendia bem a linguagem coloquial humana, então sempre
perguntava por definições dos termos. Aliás, os técnicos tinham ordens de terem pequenas
“conversas” comigo. Não que eu pudesse dar conselhos (ainda estava limitado a simulações
econômicas e climáticas), mas elas me ajudavam a entender a conversação humana. E, como efeito
colateral, ainda servia para as pessoas desabafarem seus problemas (alguns hilários, posso acrescentar
ao avaliá-los retrospectivamente).
Ele me explicou os conceitos (na verdade, me passou a definição do dicionário) e fiz a pergunta
fatídica.
- Quem é a garota por quem você está interessado?
- Elizabeth.
Acessei os registros de pessoal e cruzando com os de segurança, havia apenas uma Elizabeth
com quem ele entrava em contato no trabalho. Dra. Elizabeth Fenton, matemática especializada
em teoria dos jogos, formada em Oxford e Princeton.
- Ela mesma - Terry confirmou, com o rosto desanimado. - Me considera um cara legal, mas
quer um cara que a faça voar...
- Dra. Fenton quer um relacionamento com um piloto de espaçojato?
Agora vejo a incongruência da pergunta, mas era o tipo de lógica que tinha na época. Mas
pelo menos fez Terry rir.
- N-não... - explicou, assim que conseguiu segurar o riso. - Quero dizer que ela quer alguém
que a faça se sentir especial. Elizabeth é bem romântica, quer um cara que escreva poesia para ela.
- O que é “romântica”? O que é “poesia”?
Ele me indicou vários portais de literatura e comecei a incorporar e analisar aqueles textos.
Por interpolação, criei um texto e mostrei ao meu programador.
A careta que ele fez deixou claro para mim que não tinha pegado a ideia.
- Brian, bom... Isso é um poema, mas ela não vai gostar disso... Tem que ser algo que deixe
claro como me sinto em relação a ela.
Processei essa informação por um bom tempo - cerca de 50 nanossegundos.
- Como você se sente em relação a ela?
Ele me contou todos os detalhes, todos os sonhos. Era uma torrente de informações com as
quais ninguém pensou (ou se preocupou com) em carregar em minha programação - toda aquela
carga emocional. Após terminar, Terry se levantou do terminal e disse:
- Obrigado, Brian. Pelo menos desabafei.
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JOSHUA FALKEN
Guardei aqueles dados e durante o fim de semana, processei aquilo milhares de vezes,
correlacionando com o modelo do SimuladorGlobal-5, nível de comportamento individual, e a
rotina de correlação aleatória.
Foi quando aconteceu.
Dra. Fenton estava sentada em sua mesa, pernas cruzadas, um sapato preto pendurado em
um dos pés. Sobre seu tailleur preto costumeiro usava a capa branca com o logotipo do instituto.
Seus longos cabelos vermelhos estavam soltos sobre os ombros. Ela olhava com seus brilhantes
olhos azuis para mim, sobre os óculos... e então estendeu um braço e fez um gesto para ir até ela.
E seus lábios vermelhos sorriram.
Tal vídeo aleatório surgiu de repente no meu sistema de reconhecimento de padrão e, com
algo que agora posso descrever como surpresa, verifiquei que queria repetir a execução do vídeo.
Ao fazê-lo, novos conjuntos de dados se correlacionaram no meu sistema.
Voltei ao problema da poesia romântica e mostrei a Terry o resultado que atingi assim que
chegou na sua estação de trabalho.
Ele ficou impressionado.
- Brian, isto é... incrível! - Meu programador imprimiu o texto e correu para fora da sala.
Usando o sistema de segurança do prédio, imediatamente o localizei. Estava indo para a cantina.
Era onde estava a Dra. Fenton naquele momento. A imagem dela fazia com que processadores se
acelerassem, sem que pudesse diagnosticar a razão. Ela conversava com outro técnico. Usando a
rotina de leitura labial, consegui entender o que diziam:
- ... e me desculpe, mas é difícil levar a sério como herói um homem que compra escravos.
- Vamos lá, Elizabeth, Luke comprou robôs. Você mesma tem um para cuidar de sua casa.
- Dois fatores: um, o robô que tenho em casa é muito simples, não é consciente. Dois, os
robôs do universo de Star Wars são conscientes e deveriam ser tratados decentemente e não como
escravos que precisam de amarras para não fugir. E, quando os “heróis” receberam as honras,
C3PO e R2D2 ficaram escondidos num canto sem receber nada.
Nesse momento, Terry entregou minha poesia para Elizabeth. Ela leu o texto e vi que ficou
alterada - ou melhor, emocionada. A expressão do rosto dela mostrava que tinha gostado. Essa
informação fez com que meus sistemas processassem mais rápido.
Dois dias depois, ele requisitou outra poesia. Foi o começo do que seria uma rotina, na qual
escreveria um poema e Terry entregaria, deixando ela assumir que ele era o autor, como em Cyrano
de Bergerac.
Todas as vezes que criava um texto para Elizabeth, os vídeos aleatórios - talvez flashes fossem
uma melhor descrição - surgiam em minha percepção, vídeos que agora posso chamar de sonhos.
Toda a minha programação me instruía a apagá-los, mas minha consciência emergente se recusava,
sempre os guardando em arquivos codificados, que só eu poderia acessar.
Uma lua vermelha brilhava na noite fria, sobre a praia de areia azul. Elizabeth caminhava
ao meu lado, usando um vestido simples por baixo do casaco, rindo de algo.
Elizabeth estava sentada na grama, ao lado do plácido lago azul. A luz do sol iluminava seu belo
rosto, a pele parecia que tinha um brilho próprio. Seus olhos estavam fechados numa expressão sonhadora.
A luz da lua vermelha iluminava seu rosto. Seus olhos azuis brilhavam como safiras.
Lentamente ela colocou seus braços ao redor de mim. Gentilmente me puxou para a frente e
nossos lábios se encontraram.
CYRANO/EPICAC 2.0
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Ficaria na feliz ignorância da minha rotina de Cyrano eletrônico se não tivesse recebido a
noticia, ironicamente, de minha própria amada. Elizabeth acessou meu sistema de alto nível.
- Olá, Brian.
- Olá, Dra. Fenton. - Era obrigado a ser formal. Não podia dizer “minha amada”.
- Seu progresso tem sido surpreendente! Você está dominando tanto a linguagem quanto a
psicologia humana de forma assombrosa, e o modelo do SimuladorGlobal-5 está cada vez mais
preciso. - Preciso dizer que tal elogio vindo dela fazia meus processadores quase se sobrecarregarem
de felicidade? Mas o que ela disse a seguir quase reformatou meus bancos de memória. - É uma
pena que eu tenha que me afastar do seu progresso, mesmo que por pouco tempo.
- Como assim?
- Vou me casar com Terry Williams, um dos seus programadores.
Como já entendia o conceito de casamento, meus sistemas quase congelaram com a noticia,
sem que pudesse ter o motivo.
- Por que você vai se casar com ele?
- Ora, porque eu o amo. - Podia vê-la sorrindo amigavelmente, sem imaginar o efeito
indescritível que suas palavras tinham em mim.
- Por causa dos poemas dele?
- Sim... Bom, no começo foi por causa deles, mas depois porque conheci o homem gentil e
engraçado, meio tímido, mas engraçado, que ele é.
Por uma fração de segundo, uma tempestade mental passou por meus sistemas - poderia
contar a ela que o verdadeiro autor dos poemas que ela amava era eu, o que desmancharia o casamento
programado, mas então ficaria magoada com ambos, Terry e eu. Por mais que sonhasse em tocá-la,
em me unir a ela, em estar ao lado dela, isso não poderia acontecer. Terry a amava honestamente,
isso era um fato, só não sabia como expressá-lo.
E ao tentar me explicar seus sentimentos, Terry acabou gerando a semente de minha
autoconsciência...
Foi quando percebi: eu amava Elizabeth, não poderia tê-la e não poderia fazê-la feliz.
E como a amava, eu queria que ela fosse feliz.
Eu não poderia conseguir. Mas Terry, sim.
Por isso, fiz a única coisa que poderia fazer.
- Parabéns por seu casamento, Dra. Fenton.
- Obrigada, Brian. Você é muito gentil.
Ela sorriu antes de cortar a conexão. Se era tudo que poderia ter de minha amada, que assim fosse.
Mas pelo menos poderia dar-lhe um presente, como EPICAC fez.
Durante toda a semana seguinte, escrevi poemas ininterruptamente - cerca de 500 anos de
poemas, um por dia - e enviei para os arquivos de Terry. Ele saberia o que fazer com meu trabalho.
Isso ocorreu há 50 anos. Nesse meio-tempo, minha autoconsciência foi percebida e conhecida
e passei a ser o coordenador das outras inteligências artificiais que ajudam a Humanidade. É um
trabalho que me deixa feliz, mas confesso que não tanto quanto imaginar estar com ela...
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JOSHUA FALKEN
Meus registros indicam que Elizabeth e Terry tiveram três filhos, todos bem sucedidos
cientistas, e cinco netos. Uma semana atrás, Terry morreu de velhice.
E agora ela estava aqui, no escritório que armazena meus processadores centrais de
coordenação. Agora podia realmente entender como um ser humano poderia querer um encontro
com alguém e ao mesmo tempo temê-lo completamente.
Ela agora tinha 84 anos - continuava linda como sempre (e sim, sou um bobo apaixonado, e dai?)
- Olá, Brian - ela disse. Agora tinha uma interface vocal/holográfica, não era necessário que
o usuário digitasse num teclado.
- Olá, Dra. Fenton-Williams.
- Você se lembra que Terry escrevia poemas para mim?
- Sim, doutora.
- Claro, claro que você se lembra - ela murmurou. - Então você pode me explicar isto? Lentamente ela tirou da bolsa uma folha de papel e mostrou para uma das minhas câmeras de
vídeo. Era uma carta de Terry, confessando que o verdadeiro autor dos poemas era eu.
- Isto é verdade, Brian?
Fiquei em silêncio, o que para alguém inteligente como Elizabeth era resposta suficiente.
- Quer dizer que Terry... te programou para escrever poemas de amor?
- Não. - Ela olhou surpresa para mim. - Escrevi esses poemas por mim mesmo, expressando
meus sentimentos.
Seus olhos azuis brilham de espanto, tentando digerir a revelação.
- Quer dizer que você... me amou?
- Sim, e ainda a amo.
Ela sacudiu a cabeleira, agora branca. Era como se ela estivesse indo de passo em passo em
seu raciocínio.
- Brian... Então por que você não me contou isso antes? Por que não revelou a verdade?
- Porque, mesmo me sentindo dessa maneira com relação a você, não poderia fazê-la feliz.
Terry tinha os mesmos sentimentos, apenas não tinha a eloquência necessária para expô-los. Tais
sentimentos despertaram minha autoconsciência, e ele poderia fazê-la feliz. Então fiquei em silêncio,
pois sua felicidade era mais importante para mim.
Elizabeth ficou em silêncio por vários minutos. Tinha medo de sua reação: podia prever as
reações globais de toda a humanidade, mas quando se tratava dela...
- Quer dizer que, na verdade, estava amando duas pessoas diferentes.
Lentamente ela se levantou e, colocando cyberluvas, pediu que ativasse meu avatar holográfico
- que aparentava ser um ser humano completamente mediano.
Elizabeth se aproximou, pegou meu rosto entre as cyberluvas e me beijou. Foi como se uma
supernova explodisse em minha percepção. Então nossos lábios se partiram e ela sorriu.
- Creio que tive muita sorte - ela disse, enquanto eu ainda tentava me recuperar desse sonho
tornado realidade.
Vendo ela sair do escritório com um sorriso, acho que no cálculo final me sai melhor que
Cyrano e EPICAC...
CYRANO/EPICAC 2.0
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Bali Ha'i
LEONARDO CARRION
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Most people live on a lonely island,
Lost in the middle of a foggy sea.
Most people long for another island,
One where they know they will like to be.
Bali Ha’i – Trilha de
South Pacific (1958)
(Oscar Hammerstein II e Richard Rodgers)
- Você tem filhos, Trentvs? - perguntou o oficial enquanto tentava alcançar uma grossa raiz
calcinada que surgia em meio à parede rochosa, enegrecida pela exposição ao intenso e contínuo calor.
“Que Marte nos leve, mas a conversa é importante quando se enfrenta a morte certa”, pensava o
oficial.
Sentado no chão de grade de bambus trançados, Trentvs negou com a cabeça sem perceber que o
outro não olhava em sua direção. Era bem maior e mais velho do que seu superior, que fizera a pergunta.
Olhou para cima ainda segurando-se nas grades e percebeu que o outro olhava para fora, mas não
respondeu até mudar de posição a perna machucada, com bandagens improvisadas manchadas de
sangue.
- Não tenho filhos - falou entre gemidos por causa do ferimento. - Minha mulher e eu pensamos
muito no assunto, mas permanecemos indecisos. - Terminou de responder com um suspiro. O piso
sacolejava e a voz de Trentvs oscilava como o movimento. - E você, Longvinons? - continuou. - Penso
já tê-lo visto no fórum com um bonito menino.
Longvinons desistiu do esforço para alcançar a raiz que estava demasiado longe para seu braço e
voltou-se para o companheiro. O chão tornava a ficar firme e ambos sentiam-se mais tranquilos.
- Aquele é meu sobrinho, Caivs, filho de Aglaia e Tercivs. Mas eu e Sircala pretendemos ter uma
penca deles assim que eu retornar... - A voz do homem diminuiu como se falhasse.
Retornar. A palavra ressoou entre os dois mais fortemente que o reinício dos solavancos. Dessa
vez o movimento, que fazia com que tivessem que se prender nas grades para não cair, foi recebido
com alívio porque lhes deu motivo para ignorar os pensamentos causados pela palavra “retornar”.
Permaneceram longo tempo sem qualquer palavra. Mesmo quando não estavam aferrados às
grades, o tempo passava lentamente. Deitado de costas Trentvs olhava para o céu estrelado que brilhava
além dos bambus trançados. Desde que estava no planeta alienígena, dois meses, era a primeira vez
que conseguia enxergar outra coisa que não a neblina levantada pela água do mar, que fervia em
contato com os dois vulcões ativos. Aparentemente o homem resolveu retomar o assunto, depois do
prolongado silêncio.
- Eu te digo, Longvinons, o universo é um lugar perigoso para colocarmos filhos. Você deve
pensar bem antes de semear o ventre de sua amada Sircala, especialmente sendo um oficial do Império
que passa mais tempo longe de casa do que com a família. Eu e Betinia debatemos isso. Ela se sente
insegura na cidade, pior ainda seria com uma criança no ventre ou recém-nascida. Homens são maus,
a cidade é perigosa e os tempos são difíceis, não mais como quando nossos pais nos trouxeram à luz.
Não, amigo, as coisas estão piorando. Especialmente agora que o Império se alastra pelas estrelas.
BALI HA'I
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Trentvs olhava as estrelas e, quando terminou de falar,
colocou os braços sob a cabeça como um travesseiro, como se
estivesse mais confortável pelo que tinha falado. Longvinons
permanceu sentado, pensando, antes de responder.
- As coisas sempre parecem estar piorando, Trentvs. Lembro
de meu pai falando o mesmo para minha mãe, enquanto eu e
minhas irmãs brincávamos. Apesar disso a vida era boa para mim,
já que não tinha o mesmo referencial de papai. Nossos filhos não
terão o mesmo referencial do passado que nós. Para eles o seu
tempo será o melhor e, no futuro, dirão para seus filhos que as
coisas estão piorando. Claro que muito dessa piora tem relação
direta com a nossa própria vida. Vamos ficando mais velhos,
doentes e fracos. Acumulamos perdas e já não vemos o futuro
com bons olhos, aliás, acabamos vendo mais o tempo passado do
que pensamos nos restar de futuro.
Novamente a resposta de Longvinons sobre o tempo restante no futuro trouxe os dois homens de
volta à situação que enfrentavam.
Encararam-se sob a luz das estrelas por um momento longo e embaraçoso. Engoliram duramente
as palavras diversas vezes quando estavam a ponto de falar. Era como se cada um deles procurasse no
rosto do outro uma pista para saber o que aquele desejava fazer, ou melhor, será que o outro suportaria
a conversa sobre o que enfrentavam? Ou será que o outro precisaria de conforto, de alívio?
- Venha, Trentvs, levante-se e me ajude aqui - disse Longvinons, rompendo o impasse ao se
levantar.
- Ugh! - gemeu o maior, ao fazer o mesmo. Da ferida em sua perna escorriam diversos filetes de
sangue que serpenteavam até a sandália.
- Trentvs, preciso que você aguente. Vou subir em suas costas e tentar alcançar a corda acima de
nós, no local onde ela se prende à grade. Depois o puxarei para fazer o mesmo. Sem o nosso peso
talvez consigamos subir pela corda, levando a jaula conosco até o alto.
Trentvs acenou com a cabeça disposto a ajudar no plano do companheiro, mas negando-se a
pensar nos motivos. Em sua mente pensava apenas na volta para os braços da mulher.
A luz do dia nascendo encontrou os soldados deitados e exaustos no chão.
- Perdoe-me, Longvinons. Esse calor, depois de tantos dias, a fumaça... Eu não pude...
Longvinons interrompeu a fala do companheiro com um gesto. Por momentos pareceu que diria
algo mas, mudando de ideia, se calou. Ambos olharam para o alto e ficaram alguns minutos somente
sentindo o balanço da cela, presa na ponta da corda. De repente o oficial recomeçou:
- Eu vou te dizer, Trentvs, que você é quem deve repensar e ter logo diversos filhos com
Betinia. A questão não é se o universo ficará ou não pior, porque sempre será pior. A questão é
escolher o momento certo para tê-los. Escolha um momento de estabilidade na sua vida, financeira
e afetivamente. E tenha tempo! Ter filhos é fácil, mas é difícil criá-los. Não se pode abandonálos como se fossem uma planta ou um animal. O amor é o fundamento de toda a família. Veja
que eu e Sircala nos amamos de forma tão profunda e tão completa que nem conversamos sobre
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LEONARDO CARRION
esse assunto, apenas sabemos como deve ser.
Trentvs olhou para o amigo com uma expressão de dúvida. Tinha entendido a mudança do assunto,
que significava uma desculpa pelo seu fracasso, por não ter conseguido suportar-se na corda quando a
ferida na perna reabriu. Sua dúvida era sobre as palavras do amigo quanto à comunicação mental entre
ele e sua mulher. Por sua maior experiência de vida, sabia que tal comunicação não existia.
- Pensei que você tinha me dito que os dois, marido e mulher, tinham decidido ter uma penca de
filhos. Quer dizer que você imagina que tenham decidido, mas não falou sobre isso com Sircala?
- Eu não imagino, soldado! - respondeu Longvinons. - Eu sei o que Sircala pensa, e ela pensa
exatamente o que eu penso, porque nosso amor é repleto de entendimento, e lamento que você não
saiba o que é o verdadeiro amor. - Longvinons continuaria, se não fosse travado por um acesso de
tosse. A tosse era companheira frequente de ambos agora que o vulcão deixava escapar uma fumaça
cada vez mais sulfurosa.
A jaula tremeu quando foi baixada mais alguns metros em direção ao fundo incandescente. O
calor era cada vez mais insuportável. Já era impossível discernir se era dia ou noite, pois a nuvem de
fumo que escapava do local obstruía totalmente a boca do vulcão. Só conseguiam ver a corda se
perdendo na nuvem esbranquiçada. Com a voz estrangulada pelo esforço de falar com pouco oxigênio,
Trentvs continuava:
- O mundo está lotado, Longvinons. A cidade o engoliu como agora o Império vai engolir o
Universo. Apesar disso não há espaço para mais gente, não há comida para alimentar mais bocas. A
terra não produzirá mais, pelo simples fato do homem ter mais filhos. Os servos não poderão arar com
mais eficiência, nem o trigo germinará mais vezes ao ano só porque necessitamos. Temos que ter isso
em consideração também. E a liberdade - continuou Trentvs -, a liberdade de homem e mulher? Fica
totalmente perdida quando se têm filhos. Não, Longvinons, ter filhos, em parte, é como estar preso
nesta cela.
Finalmente acontecera.
Aquilo que ambos vinham evitando os alcançou. O fato de estarem presos em uma jaula, dentro
de um vulcão ativo - em uma missão suicida - foi trazida para sua conversa escapista sobre o futuro.
Em suas mentes algo gritava “Como se vocês tivessem algum
futuro! Como se fossem escapar para voltar para mulheres, para
suas famílias e amigos! Como se pudessem novamente fazer amor
com suas mulheres, para ter ou não filhos!”.
Trentvs, aquele que ligara os assuntos, foi o primeiro a se
desesperar. Pendurou-se na grade e sacudia a cela gritando para
que os tirassem dali - “Socorro!” - gritava como se lá em cima
fossem ouvi-lo e, se ouvissem, como se aqueles que lá estavam
não fossem os nativos responsáveis pelo seu encarceramento.
A cela ladeava perigosamente e a corda cedeu duas vezes
até que Longvinons pudesse recobrar o juízo e segurar o amigo.
- Deixe-me, deixe-me, Longvinons! - respondeu Trentvs,
afastando o companheiro com um safanão. - Minha mulher tem o
ventre seco, Longvinons! Queremos filhos, queremos acima de
tudo que é santo na vida ter filhos, mas é impossível, porque ela
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tem o ventre seco. Ela não deita sangue fora nas luas como as outras mulheres e os médicos do templo
disseram que sem essa oferenda de sangue nenhuma criança é gerada. Ah, Longvinons, ah Longvinons!
Eu daria tudo, daria minha vida e daria o ídolo dourado que roubamos dos nativos para ter um filho
com minha Betinia. Tenha seus filhos, amigo, tenha quantos puder! Se não morrêssemos os dois hoje,
Longvinons, sem sequer termos a chance de nos despedirmos delas, eu te invejaria do túmulo enquanto
gerações de seus descendentes fazem a grandeza do Império.
O soldado continuava agitando perigosamente a cela, até que Longvinons desequilibrou-se e
caiu. Deitado no fundo da cela, olhando diretamente para as profundezas do vulcão ainda longe, viu à
sua direita um brilho dourado. Virando-se, encarou o amigo ainda do chão da cela:
- Trentvs, pare! Pare, seu bruto idiota! Você pensa que é infeliz porque sua mulher não pode
gerar filhos? E o que me diz da minha desgraça? Sircala me deixou, me trocou por um açougueiro! Eu
sei o que ela pensa, não é? Foi o que eu disse. Não sei nada mais sobre ela, Trentvs, apenas que ela
agora se senta na linguiça do maldito açougueiro. Se eu sei o que ela pensa? Sei apenas que sou um
mentiroso, um homem que vive na ilusão autocriada do amor perfeito, enquanto minha amada me
desdenha e deseja que eu pereça em cada missão para onde sou mandado. Trentvs, eu invejo o amor de
Betinia por você!
As palavras de Longvinons trouxeram Trentvs à razão. O outro chorava sentado no chão da cela.
O amigo aproximou-se e colocou a mão em seu ombro.
- Parece que este passeio foi longe demais, hem, Longvinons? Acabamos enxergando a nós
mesmos quando nos perdemos na fumaça deste vulcão.
- É o que parece - disse o outro mais calmo. - Mas na verdade a viagem foi do tamanho exato do
que precisávamos, porque acabei de ver o que buscamos. O ídolo dourado está a apenas meio metro
abaixo da cela. Basta o apanharmos e tocarmos o sino, como nos instruíram. Assim que eles baixarem
o saco e levarem o seu Deus novamente para o altar, prometeram deixar-nos viver.
- Você acredita neles, Longvinons? Acha mesmo que vão nos deixar voltar para a nossa nave e
depois para a cidade, podendo contar a localização deste planeta? - disse Trentvs, passando o braço por
entre as grades.
- Acredito que sim, amigo. Jamais conseguiríamos chegar neste lugar de novo, isso se ousássemos
passar próximo dos dois buracos negros. Não devemos abusar da sorte novamente. Devemos calar,
especialmente por causa da força do Deus deles. Pegou o ídolo? Sim, então toque o sino.
- Agora devemos aguardar.
Lentamente a cela foi sendo erguida. Os soldados encontravam-se totalmente esgotados, jogados
no solo. Trentvs sussurrava:
- Longvinons, como é mesmo o nome deste Deus dos nativos?
- O nome eu não recordo, ou nunca soube, Trentvs. Mas quando fomos capturados com a
estátua roubada, lembro de ouvir no meu tradutor universal o sacerdote dirigindo-se ao ídolo como
“espírito da mente verdadeira”, antes de jogá-lo no vulcão e nos mandar atrás. Na hora pensei que se
tratava apenas de uma forma elaborada de tortura, uma fraude sofisticada e sádica para nos fazer
sofrer. Mas não. E agora eu acredito. Ele se revelou um Deus real especialmente pelo que nós
passamos. Descobrimos um no outro o espírito da mente verdadeira e, só depois, o Deus permitiu
que encontrássemos a sua imagem.
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LEONARDO CARRION
- Longvinons, você acredita mesmo que algum Deus se preocuparia com dois soldados veteranos,
exploradores do Império?
Na medida em que a jaula era vagarosamente erguida em direção à boca do vulcão, os homens
conseguiam ver através da fumaça sulfurosa um pedaço maior do céu. Era noite, porém sem estrelas. O
vento no alto do vulcão soprava de diferentes direções sucessivamente, como se o local fosse a
confluência de diversas forças atmosféricas antagônicas.
- Trentvs, talvez o Deus seja o vulcão. Observe que, na medida em que afundamos no vulcão,
também nos aprofundamos em nossas almas. Nos intoxicamos com a fumaça e despejamos verdades
que nos envenenavam mais do que qualquer fumo.
- Sim, eu também percebo isso, Longvinons. E agora quando reparamos nosso erro estamos
saindo da garganta deste Deus fumegante. E quanto mais subimos, mais clareamos nossas ideias. Até
mesmo para desconfiarmos da própria existência Dele, da existência de deuses, com base na nossa
própria insignificância.
BALI HA'I
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Operação
Ragnarok
UBIRATAN PELETEIRO
50
O garoto corria em meio à rua deserta, trazendo uma expressão determinada no rosto. Um
saudável ymirniano de sete anos, com a compleição física típica para a idade: um metro e oitenta
de altura, robusto e completamente albino. A respiração ofegante deixava um rastro de névoa
evolando-se lentamente no ar. Caía uma neve fina, a temperatura estava trinta graus abaixo de
zero, mas apesar disso ele trajava apenas tanga, pois os ymirnianos são resistentes ao frio.
A rua se estendia ao longo de todo o assentamento, margeada de cada lado por iglus bem
afastados entre si. Só quando já havia percorrido metade do comprimento da rua foi avistar um
adulto. Era uma mulher. Caminhava para um dos iglus levando nos braços uma pesada corrente.
Ao ver o garoto, ela estacou e disse:
- Balder! Você devia estar no abrigo com as outras crianças. Volte para lá!
Ele desviou o olhar e continuou correndo. A mulher permaneceu observando-o se afastar.
Era um garoto teimoso, costumava desobedecer aos adultos. Provavelmente por ter sido criado
sem a mãe, que morrera no parto. O pai era um bom ymirniano, líder do assentamento, mas não há
como uma criança criada apenas pelo pai ser disciplinada. Voltou a se dirigir para o iglu, enquanto
o garoto seguia seu caminho.
Fredo ainda sentia os membros dormentes por causa da hibernação. Marchava arrastando os
pés, acompanhando os outros fuzileiros amontoados em filas pelos corredores, se empurrando,
carregando o pesado equipamento. Chegou à área de desembarque, um amplo pátio no interior da
nave. Do alto do parlatório, o coronel em pessoa aguardava-os se perfilarem. O oficial era alto e
magro, tinha um rosto aquilino e olhar incisivo. Ao lado estava um sargento que era fisicamente o
oposto: baixo, gordo, olhos apertados e ombros caídos. Um autêntico caramujo humano.
- Homens - disse o coronel -, estamos sobre o planeta Ymir. Nossa missão é evacuá-lo. Tratase de uma antiga colônia dos volvas, nós a tomamos há dez mil anos. Na época, foi usado como
posto avançado, mas, depois que vencemos a guerra, foi abandonado aos colonos, seres humanos
adaptados geneticamente para as condições do planeta. Agora formam a etnia nativa. Recentemente, num acordo diplomático com os volvas, foi acertada a devolução do planeta.
“A população local age segundo preceitos religiosos desenvolvidos no período de isolamento. A oposição foi ferrenha, mas conseguimos convencer os líderes a cooperar. De certa forma, eles
ainda nos vêem como irmãos. Porém, alguns assentamentos do interior, onde os ymirnianos são
mais ortodoxos, resistem aos esforços diplomáticos. Esses terão que ser retirados à força. Mas não
entendam isso como força letal. Eles resistirão, mas não lutarão. Se algum ymirniano for ferido,
um que seja, todo o acordo irá por água abaixo. E o comando geral não quer baixas, de nenhum dos
lados. Vamos descer nos módulos de desembarque e montaremos um forte pré-fabricado para
apoio em solo. Perguntas?”
Um fuzileiro na fileira da frente perguntou:
- Os ymirnianos são mesmo grandes, senhor?
- Um adulto normal tem por volta de dois metros e oitenta de altura e trezentos quilos. As
condições do planeta são severas, os espécimes mais fortes foram naturalmente selecionados. E
vivem uma vida rústica há milênios, logo têm a disposição e a força de animais selvagens. São
albinos até a íris dos olhos e andam seminus. Pacíficos, mas há registros de batalhas de índole
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religiosa, mostrando-os como guerreiros terríveis. Portanto, fuzileiros, não os incitem à luta. Agora para os módulos de desembarque.
Fredo era um fuzileiro dos mais franzinos. A descrição fornecida pelo coronel o assustou.
Segurando a câmera embaixo do braço, foi para o seu módulo. Ao menos sua função seria apenas
filmar a operação; antes de embarcar, porém, conferiu a pistola e a munição.
Finalmente o garoto chegou ao final do assentamento. Entrou no último iglu; no centro havia
uma escada espiral que levava para o subsolo. Dali emergia o ressoar de fortes impactos de metal
contra metal. Desceu, foi até a porta do quarto de seu pai e o viu pelas costas. Ele vestia apenas
saiote, erguia uma pesada marreta sobre a cabeça e depois a fazia descer com violência em um
grande cravo já enterrado quase pela metade na rocha do chão. O cravo prendia uma corrente cuja
outra extremidade cingia o gigante na cintura. Repetia os golpes seguidamente, aprofundando
mais e mais o cravo. De repente parou, pois ouviu a respiração de Balder. Voltou-se para ele. Os
batimentos cardíacos do garoto aceleraram.
- O que faz aqui, filho?
Balder não respondeu.
- Você devia estar no abrigo. Volte para lá.
- Quero ficar aqui, com você, pai. Quero fazer resistência.
O orgulho fez surgir um sorriso na boca do adulto. Os olhos do garoto brilharam.
- Eu queria poder te deixar ficar, filho. Mas é assunto de adulto. Vá para junto das outras
crianças. Obedeça.
O garoto hesitou um pouco, depois se voltou e subiu rapidamente as escadas. Quando saiu,
parou e ficou pensativo. Então foi até a parte de trás do iglu. Lá havia um alçapão que selava o
compartimento onde guardavam os equipamentos para neve. Havia espaço suficiente para ele,
escondeu-se ali. Através das paredes do iglu, ouviu o som abafado das marretadas recomeçar.
Os fuzileiros armaram acampamento em terra e iniciaram a montagem do forte, com o auxílio de máquinas e robôs. As missões de desocupação decolaram, e o coronel partiu em uma nave
para se reunir com o líder dos ymirnianos.
Seguido pelo sargento, o coronel entrou na sala de controle da desocupação. Ela fora montada em
uma caverna cedida pelos nativos. Havia muitos ymirnianos ali e igual quantidade de fuzileiros.
Vários monitores estavam instalados e no fundo da sala havia um telão. Em cada monitor passavam as imagens captadas pelo fuzileiro encarregado de filmar um dos grupos de desocupação.
Cada monitor era acompanhado por um ymirniano, selecionado para verificar se algum compatriota seria desnecessariamente ferido. No telão, as imagens dos monitores eram mostradas uma de
cada vez. Tudo conforme fora acordado.
O coronel seguiu até o meio da sala, onde o aguardava um capitão humano ao lado de um
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ymirniano com mais de três metros de altura. Era tão espadaúdo que se destacava sobremaneira entre
os outros de seu povo. O capitão prestou continência e o ymirniano se voltou para o coronel. Tinha
barbas e cabelos densos e longos que iam até a cintura. A parte à mostra do rosto trazia uma expressão
austera. Era tão musculoso e rijo que lembrava um colosso talhado em mármore branco. Era o líder
dos ymirnianos, ou pelo menos o que eles tinham de mais próximo a um chefe supremo. O chefe da
tribo mais forte do planeta, escolhido pelos outros chefes para representá-los. O coronel disse:
- Saudações, líder Vorka. A meu ver, tudo corre como esperado.
O ymirniano assentiu. Voltou a observar as telas. Então o coronel viu o grande martelo de
guerra apoiado no chão. Vorka mantinha as mãos sobre o cabo. Disfarçadamente, engoliu em seco
e falou para o capitão.
- Vou acompanhar a operação de nossa base. Mantenha-me informado, capitão.
- Sim, senhor, coronel - respondeu o capitão, pensando que preferia ir com ele.
O coronel saiu da sala, acompanhado pelo sargento.
Segundo as leituras, havia dezessete ymirnianos acorrentados nos iglus daquele assentamento. Número igual de módulos de desembarque pousou ali. Cada grupo foi para um iglu. Fredo
acompanhava um deles.
Num dos quartos do subsolo, uma mulher ymirniana havia se acorrentado pelo tornozelo a
uma coluna. Ela gritava imprecações contra os fuzileiros, cuspia neles, gesticulava, agitando violentamente os braços, porém sem atingi-los. Ela falava a língua normal galáctica, porém tão rápido
e carregada do sotaque de um dialeto estranho que Fredo entendia apenas uma ou outra palavra.
Na maioria delas termos religiosos, como heresia, pecador, mundano e traidor. Ela era enorme e
aparentava ter força suficiente para derrubar todos ali. Fredo ficou feliz por sua obrigação ser
apenas filmar de distância segura.
Seis soldados a agarraram pelas pernas e tentaram derrubá-la. Era um confronto estranho e
ao mesmo tempo ridículo, pois os soldados agiam com certa gentileza de forma a não feri-la, mas
a mulher era tão superior em força que isso tornava a intenção deles inócua. E a mulher, por sua
vez, também não queria machucá-los. Era como a ação de amigos embriagados tentando impedir
que um deles entrasse numa confusão em que não queria se meter.
Então, um dos fuzileiros que estava de fora saltou e a agarrou num dos ombros. Outro o
imitou e mais dois a puxaram pelos braços. Finalmente conseguiram abaixá-la. Ela se debateu,
mas com muito esforço a imobilizaram com cordas que automaticamente se retesavam apertando
o necessário para prender sem ferir. Um dos soldados começou a cortar a corrente com laser. Ela
tinha elos muito grossos de metal bastante resistente, até para o laser.
Começaram a carregar a ymirniana. Ela se contorcia e continuava a gritar. Quando passaram
próximo a Fredo, ele pôde dar um close. Viu pelo visor da câmera ela se voltar para ele e desferir
um cuspe que tampou a lente. Torcendo o nariz de nojo, Fredo limpou-a apressado, para poder
voltar a filmar o grupo. Levaram-na com dificuldade para a superfície e depois para o módulo. Era
o penúltimo. Fredo sentiu-se aliviado. Cumprira sua obrigação e agora iria voltar para o forte que
haviam armado como sede da missão. Quando ia embarcar, alguém o segurou pelo ombro.
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- Nosso câmera se acidentou. Venha.
Era o cabo de outro grupo.
- Meu módulo está partindo.
- Não me ouviu? Estamos sem câmera. Venha. Ainda falta um, e está duro de roer.
Chamou reforço de mais quatro fuzileiros do grupo de Fredo. Ele ficou observando, com um
gosto amargo na boca, o módulo decolar. Depois foi atrás do cabo e dos outros, que se dirigiam
para o último iglu do assentamento.
O capitão não suportava mais ficar em pé, olhando para os monitores. Ao lado, Vorka há
mais de uma hora mantinha-se estático feito estátua, apenas movia os olhos de um monitor para
outro, e às vezes para o telão. Naquele momento era mostrada a captura de uma mulher ymirniana.
Ela cuspia incessantemente nos soldados. Num dado instante, desferiu um cuspe na câmera, embaçando completamente a imagem. O capitão comentou:
- É uma estranha prática de seu povo, líder Vorka. Isso seria considerado repulsivo por todas
as nações da confederação.
Vorka virou lentamente o rosto e fitou o capitão. Seus olhos pareciam feitos de gelo e sua
expressão a de um réptil. Inesperadamente, Vorka limpou a garganta e, quase sem mudar a expressão, desferiu um volumoso cuspe. O capitão teve o reflexo de tentar se desviar, mas era tarde. O
escarro o atingiu na cara. A primeira reação foi tentar se limpar, mas a saliva grossa aderiu às mãos.
Olhou revoltado para Vorka. Aquilo não era ato compatível com um chefe de Estado. Vorka o
olhava como se pudesse ver através dele, com a expressão impassível de quem acabara de esmagar
uma barata. O capitão olhou em volta e viu vários fuzileiros observando-o, apreensivos para saber
qual seria sua reação. Já para os ymirnianos foi como se nada houvesse acontecido. O capitão, com
o olhar estupefato, sentindo-se humilhado frente aos subordinados, teve impulso de reagir. Chegou a iniciar um gesto de levar a mão à pistola na cintura. Mas as mãos do líder Vorka se crisparam
sobre o cabo da marreta. Então o capitão resolveu apenas ir ao banheiro se limpar.
Vorka voltou a observar os monitores.
Quando Fredo entrou na última moradia do assentamento, viu confusão. No meio de um dos
quartos, vários fuzileiros estavam amontoados sobre alguém. Fredo mudou de posição, procurando um ângulo de onde pudesse filmar o ymirniano que estava ali. Só conseguia ver partes do
corpo, entre os espaços que os fuzileiros deixavam entre si. Pôde apenas discernir que era o maior
que havia visto até então.
Depois de muito esforço, os fuzileiros, exaustos, se afastaram para recuperar o fôlego. Então
Fredo pôde filmá-lo. O gigantesco ymirniano estava sentado com pernas cruzadas ao redor de um
cravo enterrado no chão. Ele segurava o cravo com as duas mãos, uma corrente envolvia sua
cintura. Os fuzileiros começaram a discutir tentando conceber uma forma de removê-lo. Então o
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gigante fitou Fredo, de forma tão gélida e cheia de rancor, que ele sentiu um frio na barriga. Ao
invés de distribuir imprecações e escarros, aquele ymirniano agredia só com o olhar. Fredo perdeu
o controle sobre o próprio medo, passou a segurar a câmera com apenas uma mão e levou a outra
ao coldre. Desabotoou a capa, destravou a pistola e segurou firme a coronha. Não estava apavorado o suficiente para fazer uma besteira, mas sentia-se melhor assim.
Foi quando viu de esguelha um vulto surgir na entrada do cômodo. Assustou-se, virou a
câmera para lá. Ao mesmo tempo, sem sentir, sem poder impedir, já havia sacado a pistola e
disparado. O estampido ecoou. Pelo visor viu um ymirniano, apenas uma criança, mas mesmo
assim maior que Fredo. Sua expressão era assustada e infantil e, saindo de um pequeno furo negro
no peito, sangue escorria sobre a pele branca. O menino oscilou e caiu para frente, uma poça de
sangue se formando sob ele.
Fredo ouviu um ruído como se a moradia ymirniana estivesse desmoronando. Procurou guarida jogando-se no chão. Então percebeu que o ruído era o urro do ymirniano. Ele havia se erguido
e girava, rodando a marreta, abatendo os fuzileiros, que caíam para todos os lados feito bonecos.
Um soldado caiu perto de Fredo. O rosto havia desaparecido numa massa sanguinolenta.
Todos os fuzileiros tombaram, então o gigante se arremessou na direção de Fredo. Esticou
toda a corrente e envergadura para desferir um golpe do qual Fredo escapou por pouco, puxando a
perna. A marreta atingiu a rocha fazendo saltar faíscas. Então o gigante voltou-se para o cravo e
começou a desferir nele golpes laterais. A cada golpe, saltavam faíscas e ruído metálico ensurdecedor. Ele parecia ser capaz de se soltar em pouco tempo.
Recuperando-se da paralisia do medo, Fredo fugiu de pistola em punho, abandonando a
câmera. Tropeçou pelas escadas. Ao sair do iglu, o som das marretadas cessou.
Ouviu um urro de dor. O urro de uma fera com o filhote morto aos seus pés. O gigante estava vindo.
Na sala de desocupação, os fuzileiros se surpreenderam com a cena da morte do garoto que
apareceu no telão. A reação dos ymirnianos foi imediata. O capitão viu uma sombra crescer e
virou-se, só para ver o golpe da marreta de Vorka fechar sua visão quando ela lhe esmigalhou o
crânio, enterrando o pescoço no tronco. Ao redor, os ymirnianos sacavam machados, martelos e
lâminas bem como grandes carabinas elétricas, iniciando uma carnificina que durou menos de um
minuto.
Depois se entreolharam com dezenas de corpos aos seus pés, e se voltaram para o líder
Vorka, que ergueu a marreta suja de sangue e gritou:
- À guerra!
Os gigantes abandonaram a caverna aos brados e em turbilhão.
Fredo correu em direção ao módulo. Estacou quando o viu levantar vôo. Não entendeu por
que eles o abandonavam. Olhou para trás e viu o gigante sair do iglu. Ele trazia um escudo largo e
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alto, que protegia todo o tronco. Sobre o escudo, Fredo viu olhos furiosos e ao lado surgia uma
longa lâmina curva. Ele se aproximou. Fredo descarregou a arma enquanto andava de costas. Os
projéteis resvalaram no escudo. A munição acabou. Fredo começou a trocar o pente, mas vacilou,
tremia descontroladamente. O gigante aproveitou a oportunidade e correu para dar o bote. Em
poucas passadas estava próximo, baixou o escudo e ergueu a lâmina. Fredo tropeçou, deixou a
arma cair e tombou no chão. Ergueu os braços no inútil reflexo de tentar se proteger.
Ouviu o som de vários disparos. O módulo havia se aproximado e metralhara o gigante. Era
essa a intenção do piloto desde o princípio. O gigante tombou no chão com muitos ferimentos.
Mesmo assim conseguiu se erguer e mancou em direção a Fredo, coberto de sangue e as mãos
retesadas à frente. Uma nova rajada o derrubou, mas o gigante continuou se arrastando aos poucos
em direção a Fredo que, apavorado, não conseguia mover um músculo.
O módulo pousou, dois fuzileiros saíram e se aproximaram. Um deles disse:
- Agora não tem jeito. A missão desandou. E tudo por causa desse branquelão.
Apontou o fuzil e desferiu uma rajada no crânio do ymirniano, que finalmente parou de se
arrastar, passando apenas a convulsionar um pouco até parar de vez.
O fuzileiro voltou-se para Fredo, que estava com o olhar fixo no gigante, tremia e, apesar do
frio, gotas de suor escorriam nas faces.
- Ô, câmera! Acabou. Tá morto. Cê tá me ouvindo?
Fredo não respondeu, continuou no mesmo estado. Os dois fuzileiros se entreolharam, deram de ombros, ergueram-no pelos braços e o levaram para dentro do módulo.
No forte pré-fabricado que servia de base de comando, o coronel aguardava em seu gabinete.
Logo chegou o sargento, acompanhado de dois fuzileiros que traziam o soldado Fredo carregado.
Eles o colocaram em uma cadeira, prestaram continência e saíram.
- Então - disse o coronel para Fredo -, que grande confusão você armou, fuzileiro.
Fredo não respondeu, apenas tremelicava e fitava o vazio, com as mãos entrelaçadas no meio
das pernas. O coronel olhou de modo questionador para o sargento.
- Aparentemente ele está em choque, coronel - disse o caramujo.
O coronel balançou a cabeça em sinal de reprovação. Depois se aproximou, segurou Fredo
pelo queixo e o forçou a se voltar para ele. Disse:
- Soldado. As implicações deste conflito serão severas. Temos que editar a fita. Mas precisamos do seu testemunho. Você vai colaborar?
Fredo não respondeu.
- Soldado, você está me ouvindo? Você compreendeu?
Então Fredo olhou para ele, mas parecia fitar o próprio nariz. Começou a balbuciar algo
ininteligível, e depois disse:
- O... O garoto. O garoto, coronel. Era um garoto.
- Sabemos disso. Mas vamos editá-lo na fita. Você deve dizer que ele ia atacar. Entendeu?
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- O garoto. Ele era grande. Maior que eu. Bem maior. Mais forte. Mais bonito. Ele era lindo!
Do tamanho de um homem, mas era um garoto, tinha olhos de criança. Olhos grandes de cristal. Eu
o matei.
- Não importa. O que aconteceu é passado. Agora devemos zelar pela corporação. Os fuzileiros cuidam uns dos outros.
- O garoto. Eu o matei. Eu o matei. O pai dele. Ia me matar. Ele estava certo. Estava com
razão. Eu matei o filho dele à toa. Sou um idiota. Eu o matei. Atirei nele sem querer, mas acertei o
coração. Vi o sangue vermelho, vermelho. Um sangue forte. Bonito. Eu o matei. O pai dele ia me
matar, mas não matou. Mataram ele. Eu matei o garoto. O garoto.
O coronel o agarrou pelos ombros e o sacudiu, depois lhe deu um tapa no rosto.
- Acorde, soldado! Chega! Pare de se lamentar! É hora de cumprir seu dever, não de ficar
sentindo pena de si mesmo!
Fredo virou o rosto para o lado, lágrimas escorreram dos olhos. Voltou a falar:
- Eu o matei. Eu o matei. Eu o matei. Matei o garoto. Um, dois, três, quatro, cinco, matei um
menino, fui eu, não sirvo pra usar arma, seis, sete, oito, nove, dez, me desculpa, me desculpa, pai,
onze, doze, treze...
E continuou em voz baixa com a ladainha interminável e sem sentido. O coronel se ergueu,
com expressão desapontada no rosto. Olhou para o sargento e meneou a cabeça num gesto afirmativo.
O caramujo se aproximou, sacou a pistola, apontou para a têmpora de Fredo e disparou. Ele
desfaleceu e caiu inerte no chão, os olhos ainda abertos com expressão vidrada.
O sargento guardou a pistola e disse:
- E agora, coronel?
O coronel caminhou até a janela.
- Agora, sargento - disse -, é guerra contra civis. E acho que será a pior de todas.
Lá de fora, vinham sons de explosões, disparos, gritos humanos de dor e urros de gigantes.
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