Rome, March 8th

Transcrição

Rome, March 8th
Roma, 8 de Março de 2008
Prot. N. PG 028/2008
PARA TODA A ORDEM
IRMÃOS, COLABORADORES, VOLUNTÁRIOS, BENFEITORES
E TODOS AQUELES A QUEM SERVIMOS MEDIANTE O CARISMA DA HOSPITALIDADE
Introdução
A Festa litúrgica anual do nosso Fundador, S. João de Deus, no dia 8 de Março, dá-nos o ensejo de
nos familiarizarmos mais com ele. Dado que S. João de Deus é a nossa inspiração e guia no trabalho
que fazemos todos os dias, esta data é uma boa oportunidade para dedicarmos algum tempo a
reflectir sobre a sua vida e, de modo particular, sobre a sua missão. Julgo que a vida de S. João de
Deus não só nos oferece motivação para o trabalho que realizamos em seu nome, mas é também
imensamente útil para a vida pessoal de cada um de nós. Acredito que Deus, no seu amor infinito,
nos enviou certos homens e mulheres, não muito diferentes de nós sob muitos pontos de vista, como
modelos para nos encorajar, inspirar com o seu exemplo e interceder por nós no céu. Estes homens
e mulheres tiveram algo especial que os manteve incentivados e serenos face às dificuldades e aos
obstáculos que tiveram de enfrentar – por vezes, enormes – e tornou-os capazes de perseverar até ao
fim no modo de vida escolhido ou na própria vocação. Penso que os santos não são apenas modelos
ou exemplos no nosso trabalho – embora, obviamente, isso seja muito importante. Eles são também
exemplos de um modo de viver que é vivificante. Obviamente, estes dois aspectos estão
relacionados – são as duas faces da mesma moeda, poderíamos dizer. Como Albino Luciani quando
ainda era bispo (e que agora conhecemos sob o nome de João Paulo I) declarou no Congresso da
Juventude Feminina, no dia 1 de Outubro de 1963, “Dizei aos jovens que não são só os que estão
no céu, representados nos quadros as paredes de igrejas e casas, que são santos, mas também todo
o crente que ama o Senhor com um compromisso forte.”
João “nasceu de novo” (Jo 3, 3)
Meus queridos Irmãos e amigos, ninguém que eu saiba teve um compromisso mais forte e amou
mais o Senhor e os seus semelhantes do que João Cidade. Por isso, dado que a Festa do nosso Santo
Fundador se aproxima, gostaria de reflectir convosco sobre apenas dois aspectos da vida de João.
O primeiro é o período de confusão total e tumulto por que passou toda a vida de João. Algo tomou
posse do ser interior de João, fazendo com que ele, poderíamos dizer, “renascesse de novo” (Jo 3, 3).
O “novo” João nunca olharia para trás, mas “imitou a Cristo, amando como também Cristo nos
amou e se entregou a Deus por nós como oferta e sacrifício de agradável odor” (Ef 5, 1-2).
Designamos este episódio da vida de João como o da sua conversão. Uma experiência de conversão
não é tanto o afastamento de uma vida passada de escuridão e pecado, como antes um voltar-se para
a luz que é Cristo (Jo 14,6).
Os seus biógrafos fornecem-nos uma data específica para este momento crítico na vida de João
Cidade. A experiência da sua conversão, o seu voltar-se para a luz, Cristo, aconteceu na Festa de S.
Sebastião, no dia 20 de Janeiro de 1539. Não sabemos ao certo se João estava contente ou se era
infeliz com a sua vida até ao momento da sua conversão. Sabemos que ele mudou de profissão
muitas vezes, mas isso até não era raro. Parece-me que Deus tinha um plano no qual João
representaria um papel central. Tudo quanto acontecera antes na vida de João fora uma preparação
para o novo desafio da sua vida, a sua vocação. É verdade que havia uma inquietude em João e,
para usar as palavras que S. Agostinho utilizava para descrever o próprio estado de espírito no
momento da sua conversão, “o seu coração estava inquieto”, e isso manteve-o num equilíbrio
precário. Com esse estado de espírito, poderíamos dizer que ele estava disponível, ou susceptível,
para um chamamento a fazer algo novo e radical – ou que tinha enlouquecido, como diziam as
pessoas. Não era claro que caminho João iria seguir – excepto que lhe parecia que o trabalho da sua
vida futura seria entre os pobres e marginalizados de Granada. Do mesmo modo que S. Paulo no
momento da sua conversão, João estava um pouco cego. Paulo foi levado a um santo homem,
chamado Ananias, para recuperar a visão e um sentido para a sua vida (Act 3, 3-19). João foi ter com
o Pe. João de Ávila, o qual aceitou ajudá-lo e guiá-lo. João Cidade rezou também para pedir
orientação: “Jesus Cristo me conceda tempo e me dê a graça de eu ter um hospital, onde possa
recolher os pobres desamparados e faltos de juízo, e servi-los como desejo”. 1
Um momento decisivo na longa caminhada de João
Permitam-me que evidencie apenas dois aspectos deste episódio extraordinário, fundamental, na
vida de João Cidade: em primeiro lugar, a longa caminhada que João teve de percorrer até à sua
conversão. Preparou-se bem durante um longo período de tempo. Afinal, tinha pouco mais de
quarenta anos de idade. Mesmo sem se aperceber disso, Deus conduzia-o através de um percurso
que ele não tinha escolhido por si mesmo. Tinha experimentado mil altos e baixos, frequentemente
de natureza aventureira, ao longo da sua vida. Finalmente, a sua alma estava preparada e disponível:
“Como o terreno da sua alma estava bem preparado pelas confissões e exercícios de caridade […], a
semente da palavra de Deus frutificou nela sobremaneira”. 2
A inquietude de João levou-o facilmente a seguir a multidão dirigia para a ermida a fim de escutar o
famoso pregador João de Ávila, no dia 20 de Janeiro. As palavras ardentes deste santo pregador
tocaram a alma de João como nunca tinha acontecido antes. Para João, a partir de então, não haveria
nenhum retorno ao passado; pelo contrário, esquecendo-se daquilo que está para trás e lançando-se
para o que vem à frente (Fl 3,13), independentemente do que poderia ser ou da forma que pudesse
tomar. João colocou-se sob a direcção do Padre João de Ávila, no qual confiava completamente,
reconhecendo nele a pessoa nomeada por Deus para o orientar e guiar na sua nova vocação de vida.
João estava tão convicto acerca disso que pôs de lado a sua própria visão das coisas, mesmo quando
sentia que ela poderia provir de Deus, e confiou antes na sabedoria, santidade e julgamento do
1
Castro, Francisco de, História da vida e obras de S. João de Deus, Cap. 9.
2
Idem, Cap. 7
2
Padre de Ávila, e renunciando à sua própria intuição. Este processo manteria João humilde e
eliminaria o seu orgulho e presunção. Mantendo-se plenamente dócil aos conselhos do seu director
espiritual, João não caiu na tentação de fazer prevalecer o princípio subjacente da sua vida – como
tão frequentemente acontece, até mesmo com pessoas bem-intencionadas, que pretendem ser
“benfeitoras” mas acabam por impor o seu poder e controlo sobre os outros, em vez de se tornarem
servidores de todos – algo a que João aspirava e pelo qual rezava.
A remodelação da vida de João
O segundo aspecto que desejo fazer notar na conversão de João de Deus é o modo como ele
remodelou a sua vida com base nesta inspiração de Deus. “Recordai os primeiros dias nos quais,
depois de terdes sido iluminados, suportastes a grande luta dos sofrimentos, tanto sendo expostos
publicamente a insultos e tribulações, como sendo solidários com os que assim eram tratados”,
escreve S. Paulo na sua Carta aos Hebreus (10, 32-33). Estas palavras descrevem a experiência de
João que foi o ponto de partida para o novo modo de seguir a Jesus. Viria a ser humilhado e
espancado na cela do Hospital Real e, ao mesmo tempo, compartilhou os sofrimentos e a
degradação dos que se encontravam na sua mesma situação.
Mas tudo isso pertencia agora ao passado, juntamente com tudo aquilo que já tinha acontecido
antes. O passado deixaria de existir para João. A partir de agora, João tinha uma nova missão, um
novo propósito na vida e um novo nome: este novo nome foi-lhe dado pela população de Granada,
profundamente impressionada com a mudança que tinha ocorrido na sua vida, e que as pessoas só
podiam atribuir à intervenção directa de Deus. Por isso, chamaram-lhe João DE DEUS. Ele era
certamente um homem novo, um homem completamente renovado. Isso reflectia-se na missão que
João desempenhava. O seu trabalho de hospitalidade seria não só inovador, em termos da
qualidade dos cuidados prestados, mas inovador acima de tudo em termos do clima humano que ele
criou na sua “Casa de Hospitalidade”, na qual os pobres e os doentes eram servidos com amor e
carinho, à sua maneira. Convicto, determinado e firme, mantendo-se simultaneamente dócil,
humilhe, respeitoso e generoso, ele sabia como cuidar do seu próximo, com espírito de
compreensão e um amor infinito.
O desafio para nós hoje
Hoje, faz parte da nossa responsabilidade sermos João de Deus na nossa própria época e tornarmonos hospitalidade para os outros como João de Deus nos indicou. Este é o verdadeiro desafio que
cada um de nós tem pela frente, independentemente da posição que ocupa na Ordem, como Irmão
ou Colaborador. Precisamos de renovar a nossa Ordem e cada um dos seus membros precisa de
realizar a sua própria renovação. A conversão do nosso Fundador ainda nos interpela hoje e diz-nos
como é vitalmente importante partir de novo, focalizar de novo, reavivar, renovar para fazermos
sentido no nosso tempo. Tudo começou quando João se voltou para a luz e começou a caminhar na
luz, inaugurando um novo estilo de vida.
No espírito de renovação, como João de Deus, nós devemos hoje rezar, reflectir e ser
suficientemente corajosos até ao ponto de deixarmos para trás as estruturas do passado que já não
correspondem às necessidades actuais. A nossa oração deveria reflectir o tipo de oração que João
faria hoje: O Senhor Jesus nos conceda a graça de podermos oferecer um lugar seguro… onde
possam encontrar refúgio os marginalizados, os doentes, os pobres, os imigrantes…, de modo a
podermos servi-los. Quando caminhamos na luz da presença de Deus não temos nada que temer;
3
pelo contrário, temos tudo a esperar. É Ele quem toma a iniciativa dentro de nós, e Ele não pode
senão fazer grandes coisas.
O que estamos a fazer seria insensato se não fosse dirigido por Deus. Poderíamos ser os melhores
organizadores sociais no sistema de cuidados médicos, e contudo, sem o Espírito, a nossa presença
de nada serviria. Quando confrontados com problemas organizativos, estruturais, técnicos e
financeiros, devemos sempre primeiro dirigir-nos a Deus, através da oração, e depois procurar o
conselho de especialistas, sempre que isso seja possível. Quando sentirmos que já não há mais
soluções ou recursos, só dirigindo-nos a Deus é que podemos encontrar a energia e a coragem para
seguir em frente, a originalidade criativa e a vitalidade fresca. “Miserável é o homem que coloca a
sua confiança nos homens” (2GL 9; 1DS 6), como diria mais tarde S. João de Deus, citando a
Bíblia. Também a nossa posição será fraca e frágil se pensarmos que podemos resolver os nossos
problemas baseando-nos somente no conselho de grandes peritos ou recorrendo a alguma nova
teoria económica. Obviamente, temos que recorrer a pessoas competentes e servir-nos do
conhecimento de peritos e profissionais, mas só nós é que podemos garantir, como seguidores,
discípulos e admiradores de S. João de Deus, a presença do Carisma da Hospitalidade.
Voltemos às origens
O Concílio Vaticano II incitou os religiosos a usarem, como meios para a renovação da própria vida
e do seu ministério, a Sagrada Escritura e a inspiração original do instituto, isto é, do fundador. O
futuro da nossa Ordem Hospitaleira depende da nossa capacidade de renovação pessoal e
comunitária, exactamente como o Espírito diz à Igreja hoje. E a nossa conversão, os nossos
sacrifícios e os nossos sofrimentos têm um contributo a dar a esta renovação, assim como a dor e o
sofrimento de todas as pessoas a quem servimos através dos serviços e programas disponíveis nos
nossos Centros. É este o espírito do Evangelho e é este o espírito que somos chamados a viver:
“Procurai primeiro o Reino de Deus e a sua justiça, e tudo o mais vos será dado por acréscimo”
(Mt 6,33).
Poderíeis observar que, até certo ponto, esta é a nossa “teoria económica”. A procura do Reino de
Deus implica primeiro a necessidade de pôr de lado todo o egoísmo, o desejo de poder e domínio, e
de sermos generosos, colaborantes e construtivos. Significa superar a arrogância para nos podermos
sentar e prestar atenção aos sofrimentos dos outros homens e mulheres e, em conjunto, procurar
soluções para eles. Procurar o Reino de Deus significa afastar as nossas paixões para nos deixarmos
possuir pela grande paixão por Cristo e pela paixão pela humanidade sofredora que animava João
de Deus. Procurar o Reino de Deus é a única possibilidade que temos de dar esperança à nossa
Ordem. E se as pessoas não podem encontrar esperança entre nós, onde a poderão encontrar? A
hospitalidade vivida e praticada à maneira de S. João de Deus dá esperança às pessoas – seja a
quantos a exercem, seja a quantos são servidos de um modo especial graças a ela.
Conclusão
Para concluir, nós da nossa Família Hospitaleira não poderemos sobreviver por muito tempo sem
constantemente olharmos para a vida, as obras, o carisma e a espiritualidade de S. João de Deus. Ele
é o modelo de tudo quanto fazemos na nossa vida, do que somos chamados a propor aos outros ao
longo do tempo, na época à qual a providência de Deus nos destinou.
Que a sempre-virgem Maria, Mãe do Bom Conselho, de quem S. João de Deus era muito devoto,
nos guie ao longo do caminho de renovação e na nossa vida pessoal, comunitária e familiar.
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Esperando em Deus – para parafrasear S. João de Deus... – envio a cada um de vós as minhas mais
calorosas e afectuosas felicitações, juntamente com os mais férvidos votos por um Dia de Festa
muito feliz!
Com uma saudação fraterna em S. João de Deus,
Ir. Donatus Forkan, O.H.
Superior Geral
5

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