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O Kitabkhana: a casa do livro persa medieval
Tai Nunes
Pós-lit UFMG, doutoranda
RESUMO: Este artigo apresenta uma breve introdução aos processos
de produção, iluminação e edição dos livros persas medievais e seu
funcionamento dentro dos Kitabkhanas – oficinas nas quais esta produção
se insere no período timúride entre os séculos XIV e XVI. Os detalhes
sobre a plasticidade destes livros no que diz respeito aos pigmentos e
pincéis utilizados, à composição das páginas, decoração das capas e
diagramação do texto em relação às imagens que os compõem, representa
um projeto estético peculiar que manifesta a identidade cultural, política
e econômica da arte do livro no mundo islâmico. Destaca-se também a
desmistificação da identidade iconoclasta dos islâmicos no que se refere
a tais produções, bem como de que forma a composição das imagens
tende a romper com padrões formais essenciais ao Ocidente no mesmo
período, como por exemplo, no uso da perspectiva. Estas informações
foram extraídas da pesquisa de doutorado que desenvolvo atualmente no
Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários UFMG.
Palavras-chave: arte do livro; Pérsia medieval; iluminação.
ABSTRACT: This article introduces the production, illumination and
editing processes of Medieval Persian books and their functioning within
the Kitabkhanas – workshops in which this production happens in the
Timurid period between the fourteenth and sixteenth centuries. Details
about the plasticity of these books with respect to the pigments and brushes
used, the composition of the pages, the decoration of the covers and the
layout of the text in relation to the images that compose them, represent
a unique aesthetic project that expresses the cultural, political and
economic identity of the book art in the Islamic world. Also noteworthy
is the demystification of the iconoclastic identity of Islamists in relation
to such productions, as well as how the composition of the images tends
to break with essential formal patterns of the West in the same period,
such as the use of perspective. This information was extracted from
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my doctoral research currently being developed in the Literary Studies
Graduate Program of the Federal University of Minas Gerais.
Keywords: art of book; medieval Persian culture; illumination
O auge do Império Persa está vinculado à liderança e ao carisma
de Timur, um líder político nascido em 8 de abril de 1336, cuja dinastia
se estendeu até o século XVI por meio não apenas de sua historiografia,
mas também das práticas ritualísticas e culturais que ele incentivou
ao longo de seu reinado. Diz a lenda que Timur é o filho de Maomé e
Alanqoa, deusa mítica mongol, cuja união fez nascer filhos do Céu e de
sua divina luz.
Segundo Razzaq Samarqandi, os príncipes timúrides recebiam a
mais humanística educação irânico-islâmica em diversas áreas: ciências
tradicionais: alfabeto arábico, recitação do corão e sua memorização,
gramática e retórica; ciências racionais: lógica, filosofia, teologia,
astronomia, geometria e astrologia; Tafsir: interpretação e comentários
do corão, do Hadish: tradição profética – feitos do profeta Maomé;
da prosódia: correta pronúncia das palavras; e também tinham amplo
conhecimento de poesia.
Com Timur não foi diferente. O domínio de tais conhecimentos
tornou possível a Timur a elaboração de um amplo projeto estético
aplicado aos livros, objetos decorativos e arquitetura, que foi retomado e
reafirmado por sua dinastia ao longo de duzentos anos como mantenedor
de seu poder.
A patronagem da confecção de livros e objetos decorativos
confirmava, portanto, a escala de poder do rei, seu prestígio e sua
influência, que eram estendidos para a arquitetura, demonstrando assim
o interesse destes líderes em compor um sistema das artes com a sua
identidade.
Após a morte de Timur, as oficinas de produção dos manuscritos
persas, os Kitabkhanas, foram o cérebro do complexo cultural timúride,
estabelecendo uma linguagem visual coesa e unificada e fazendo com que
seu legado artístico fosse reverenciado em todo mundo islâmico, que se
baseou no modelo do Kitabkhana, estabelecido no século XIV na cidade
de Tabriz, por um dos líderes dos ilkanids, Rachid-al-Din.
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Em uma petição datada de 1420 encontrada na cidade de Herat
– cidade mais importante dos séculos XIV e XV – encontramos os
seguintes dizeres:
Do mais humilde servo da biblioteca real, cujos olhos são
espectadores da poeira lançada pelos cascos do corcel real,
tal como os ouvidos atentos daqueles que ouvem o grito de
Deus é grande, mestre Abdul-Rahim se ocupa de realizar
desenhos para encadernadores, iluminadores, fazedores de
tendas e telhas. Também Mir Dawlatyar desenha em couro,
mestre Mir Hassan é o copista e Mir Shamsuddin, filho de
mestre Hassan juntamente com o artista Dawlatkhawaja
ocupam-se de executá-los em madrepérola (LENTZ;
LOWRY, 1989, p. 160).
O mesmo documento menciona em torno de 22 projetos em
desenvolvimento, incluindo manuscritos, objetos, tendas e projetos
arquitetônicos. São citados também 23 artistas – pintores, iluminadores,
calígrafos e encadernadores – bem como as regras utilizadas para a
execução de cada trabalho realizado individualmente ou por temas, muitas
vezes por equipes com grande escopo de materiais, esboços e decalques.
As informações contidas no mencionado documento sugerem
que as funções dos artífices dentro dos Kitabkhanas eram dadas por
especificidade e domínio e envolviam uma equipe – os warraqin. O
mestre geral dos warraqin era o kitabdar, que poderia ser também
o patrono, uma vez que muitos dos reis eram poetas, calígrafos ou
ilustradores.
Havia também nos Kitabkhanas um grupo de artesãos que
executavam o que um design propunha. Segundo a pesquisadora Sheila
Blair, o desenvolvimento dessas habilidades específicas facilitou a
instauração de uma dinastia de estilos e o grau de importância dos
kitabkhanas que, como podemos ver, ia muito além da exclusiva produção
de livros.
Quanto à produção dos livros, era a patronagem dos kitabkhanas
que definia quais os textos seriam escritos – normalmente de narrativa
épica, romanesca ou mística e mítica. Definia também quais as
imagens e a forma como essas imagens deveriam estar organizadas
nas composições, que consistiam basicamente em apresentar cenas de
caça e batalhas, coroamento de reis, jardins internos da corte, amores
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reais, formas de convívio cotidiano – tudo isto fundamentado conforme
indicação dos textos literários clássicos – embora seja notável a forma
como as imagens às vezes extrapolam a narrativa textual.
Segundo David Roxburg, tudo tinha início com a confecção do
papel, seguida de seu corte segundo o tamanho desejado – sempre de
pequenas dimensões, sendo o máximo em torno de 30cm. Ao contrário
dos chineses,1 que faziam seus papéis com fibra de amoreira, trapos de
tecido e brotos de bambu, o papel persa era feito, invariavelmente, de
fibras de linho originado de trapos e fibras de cânhamo – adicionadas
de vez em quando.
O lugar do texto e das imagens era definido pelo escriba com o
uso do mastar (um quadro de madeira com linhas de seda cruzadas na
posição vertical e horizontal de forma perpendicular) formando assim um
guia de quatro colunas verticais pautadas para que o escriba realizasse
seu trabalho.
Segundo Sheila Blair, o mastar definia um quadro menor
dentro de outro maior na página inteira. Esta borda externa ao mastar é
normalmente mais brilhante, mais polida; quando a diagramação funciona
neste formato, é denominada de “folha emoldurada”.
Outra forma de diagramação da imagem é a inserção de uma
terceira borda, localizada entre aquela definida pelo mastar e a página
inteira e que é normalmente escura. A autora argumenta que, colocando-se
a página contra a luz, é possível perceber três padrões de transparência:
do texto central (e imagem), da borda escura e da página inteira. Estes
efeitos eram conseguidos não só por meio do polimento, também por
processo de laminação.
A inserção da imagem tinha por procedimento comum a ocupação
de 2/3 da superfície demarcada pelo mastar para o texto, mas encontramos
também a proporção de 1/3 e, às vezes, a ocupação de toda a demarcação
do mastar ocupada pela imagem, que poderá ocupar também a página
inteira.
Uma cópia do Khamsa de Nizami, que está atualmente em Bagdá,
possui 23 ilustrações e outras 23 páginas demarcadas para ser ocupada
por outras ilustrações que não foram feitas. Isto denota o fato de que elas
Enquanto o papel na China é inventado por volta de 105 a. C, o papel na antiga Pérsia
chega após a invasão árabe, em torno do ano de 751 d. C. Anteriormente eles usavam
os papiros egípcios para produção de livros e documentos.
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realmente eram feitas após o trabalho do calígrafo e que demoravam
mais a serem terminadas, definindo o tempo de duração da confecção
dos livros. O início ou o término desse processo pode ser encontrado
inscrito nos colofões das páginas, acompanhado de um medalhão que
define a assinatura do ilustrador.
Os artistas persas, definitivamente, não desenhavam diretamente
sobre a superfície do papel, mas transferiam a imagem a ser pintada a
partir de um desenho realizado em um tecido que era delicadamente
perfurado em seus contornos. Em seguida, a partir de um pequeno saco
de pano, polvilhavam pó de carvão sobre este rascunho, transferindo
detalhes de fisionomias ou paisagens para o papel a ser pintado.
Pintores e ilustradores marcavam o seu desenho em um papel à
parte com uma ponta seca e o transferiam para a folha do livro, aplicando
posteriormente a tinta, o ouro e a prata sobre o desenho decalcado. Após
a pintura, toda a folha era polida e realizavam-se também ajustes entre as
linhas do texto, além de pequenos reparos e cortes necessários. As folhas
eram reunidas em um conjunto, costuradas e encadernadas.
Quanto aos pincéis, estes eram produzidos a partir de pelos de
esquilos ou gatos, cortados do mesmo tamanho e passados dentro de uma
pena, puxados por sua extremidade mais grossa até a mais fina.
Os pigmentos poderiam ser de origem animal, vegetal ou mineral.
Como aglutinantes usavam albumina (provavelmente clara de ovo) e,
mais tarde, já no século XVI, como resultado da influência europeia,
passaram a utilizar também a goma arábica, uma resina natural derivada
da planta acácia, nome científico acacia senegal, cuja denominação
“arábica” está relacionada a seu uso pelos egípcios no processo da
mumificação.
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Exemplo de como os desenhos eram transferidos para o papel
nos livros persas medievais
Flores na Jarra (detalhe). Shaficc Abbasi. 1670. Fonte: CANBY, 1993, p. 14.
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Quando tudo estava pronto, entravam em cena os encadernadores.
A encadernação dos livros islâmicos segue o padrão dos livros coptas
(antigos cristãos do Egito). A referência mais antiga é o Nag Hammadi, de
conteúdo gnóstico cristão do século IV, encontrado dentro de um frasco
na pequena vila egípcia de mesmo nome, perto do antigo monastério de
Chenoboskion por Jean Doresse e Togo Mina no ano de 1945.
A encadernação é de caixa (conforme classificação de François
Déroche) com uma aba, cuja localização segue a orientação do final da
leitura (embora já tenha sido encontrada invertida, fato atribuído mais
aos restauradores do que relacionado à encadernação original).
Os ferros de inscrição das decorações nas capas – tais como os
clichês – tendiam a configurar medalhões, mas havia também desenhos
vegetais, de arabescos ou de natureza geométrica, que eram aplicados
lado a lado, configurando estruturas maiores e mais complexas e dando
origem às margens decorativas.
Era constante também o uso da técnica de laqueadura das capas:
A produção de uma encadernação laqueada persa é
um processo trabalhoso. Camadas de goma-laca são
aplicadas com pincel sobre o substrato de papelão.
Depois que o projeto da pintura é desenvolvido,
a pintura é bloqueada em camadas de tinta opaca
constituídas por pigmentos ligados com cola animal.
Intrincados detalhes são pintados sobre esses blocos
de cor. Após a conclusão da pintura, toda a superfície
é revestida com goma-laca. Qualquer dourado ou
decoração metálica é colocada a partir desta laca
pegajosa. A peça termina quando uma superfície
homogênea e macia é atingida após aplicações
repetidas de goma-laca intercaladas com lixa.2
Quanto à identidade das imagens que compõem os livros persas,
é possível dizer que eram imagens de pequena dimensão e ilustravam
manuscritos e álbuns. Por sua delicadeza e pequena escala, edificam um
olhar cuidadoso, um olhar exigido em seus limites que, hipnotizado por
uma belíssima complexidade, obedece encantado ao imperativo da busca
numa escavação delicada por formas e cores.
Disponível em: <http://cool.conservation-us.org/coolaic/sg/bpg/annual/v28/bp28-02.
pdf>. Acesso em: out. 2013.
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A natureza destas imagens está como vimos, vinculada à
dimensão dos livros, mas também ao fato de que a própria elaboração
retórica utilizada na configuração dos textos poéticos usava recursos
alegóricos que se repetiam em diferentes autores e obras, certamente
para facilitar a memorização.
As imagens timúrides mantêm um padrão de repetição semelhante.
São decalcadas, copiadas e transferidas de umas para as outras, seguindo
os modelos dos primeiros mestres.
Thomas Lentz e Glenn Lowry (1989, p.42) assim descrevem
estas imagens:
Esta pintura de tão poucas inovações, praticamente
desprovida de grandes saltos, caracterizada pela
uniformidade, equilíbrio, composição coerente e
impecável precisão técnica, não é fruto de inclinações
artísticas pessoais, mas de uma concepção de pintura que
envolveu a integração de um restrito conjunto de imagens
estereotipadas na composição.
A composição das iluminuras não obedece às leis da perspectiva.
A imagem persa é um convite a entrar, a adentrar o espaço. Não estamos
fora a observar, não somos meros espectadores. Segundo o pesquisador
italiano Mario Bussagli (1986, p.18),
a imagem persa, assim como as chinesas, não busca, como
regra, a evocação alusiva de uma espacialidade real, mas
destina-se a uma construção interiorizada entre o sonho e a
memória, na qual o componente principal deve ser encontrado
num “filtro humano”, isto é, o autor tende a aludir, não a
descrever, de modo que o espectador possa aproveitar a
vibração de amor que produziu a obra e a tornou o que ela é.
Esta composição, fundamentada em planos sucessivos com
personagens e figuras de tamanho inalterado ao longo da composição,
está relacionada ao fato de que não existe uma intenção representativa
comprovadora do real; ao contrário, as imagens perguntam todo o tempo
sobre a validade de sua natureza mimética. Prova disto é estarem, quase
sempre, avançando, rompendo com as margens limitantes da composição.
Os lugares, como num cenário, ganham, portanto, mais
importância que o assunto ilustrado. Como são raras as descrições
históricas dos ambientes da corte em documentos escritos, pesquisadores
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atribuem às imagens este papel – o de serem, por um lado, um espelho
indicial da geografia urbana e natural daquele tempo e, ao mesmo tempo,
paradoxalmente, a manifestação de um imaginário espacial possível para
a realidade cruel do deserto.
Os livros não eram apenas para serem lidos, mas apreciados como
objetos de luxo ricamente ornados com arabescos, margens decoradas,
motivos florais em ouro. Há padrões vegetais, criaturas fantásticas e
animais não relacionados aos textos. É notória a influência da iconografia
chinesa como, por exemplo, no modelo de montanhas, nuvens e árvores,
bem como na presença de animais fantásticos como o dragão.
Importa mencionar também que a escrita nastaliq, desenvolvida
pelo discípulo de Baysungur, neto de Timur, Mir ali ibn Hasan, torna-se,
a partir dos timúrides, um recurso visual tão imagético quanto as figuras
na composição dos livros.
Os livros islâmicos e, consequentemente, os persas, fazem parte
de uma disputa histórica, religiosa e política (assim como no ocidente);
por isso foram destruídos, queimados e sofreram diásporas, foram
fragmentados, vendidos aos pedaços, tornaram-se raridade.
O mito do iconoclasmo islâmico é, na verdade, o lugar do
aniconismo, da não idolatria da imagem; esta está lá, figurada nos livros e
na geometria do infinito que encanta os olhos nos templos e construções.
Referências
BUSSAGLI, Bussagli. La via dell´art tra Oriente e Occidente: due
millenni di storia. Riviste Art Dossier, Florença, Itália, Giunti Editore,
n. 8, 1986.
BLAIR, Sheila S. Text and image in Medieval Persian art. Edimburgo:
Edinburgh University Press, 2014.
CANBY, Sheila. Persian painting. Northampton: Interlink Books, 1993.
LENTZ, Thomas W. Timur and the Princely Vision: Persian art and
culture vision in the fifteen century. Thomas Lentz and Glen D. Lowry.
Los Angeles: Museum Associates, 1989.
ROXBURG, David J. The eye is favored for seeing the writing form:
on the sensual and the sensuous in Islamic Calligraphy. Disponível em:
<http://www.jstor.org/stable/27811125>. Acesso em: 22 set. 2014.
SZIRMAI, John A. The archaeology of medieval bookbinding. Londres:
Routledge, 1999.