girão 1904 - Francisco Girão

Transcrição

girão 1904 - Francisco Girão
francisco
1904
girão 1973
Um inovador da vitivinicultura
do Norte de Portugal
volume ii
volume i
5 Prefácio
Francisco Girão
— Vida e Obra
8 Francisco Girão (1904-1973)
— O percurso de um homem
do Douro nos Vinhos Verdes
O Douro e os Verdes — Duas
histórias que se cruzam
76 Sobre os porquês
e motivações desta obra
Nuno Magalhães
Amândio Barros
100 Marcos da viticultura
no Norte de Portugal
António Barros Cardoso
volume ii
As inovações nas regiões demarcadas do Douro
e dos vinhos Verdes, a partir dos anos 60
a viticultura
6 A viticultura da Região dos
Vinhos Verdes — os primórdios
e do virar do século à actualidade
Rogério de Castro
42 A viticultura da Região do Douro
— dos primórdios às grandes
mudanças no virar do século
Nuno Magalhães
a enologia
80 As grandes transformações da
enologia na Região dos Vinhos
Verdes ao virar do século
Anselmo Mendes
100 Vinha, vinho e vida
— um retrato da Região do
Douro dos últimos tempos
João Nicolau de Almeida
as instituições
152 A evolução da organização
institucional da Região
dos Vinhos Verdes
Manuel Pinheiro
a genética
204 Selecção das castas de
videira — uma história com
raízes nas Regiões do Douro
e dos Vinhos Verdes
Antero Martins
168 A evolução da organização
institucional da Região
do Douro
Jorge Dias
4
As inovações nas
Regiões Demarcadas
do Douro e dos
Vinhos Verdes,
a partir dos anos 60
a viticultura da região dos vinhos verdes
5
6
7
A viticultura da Região
dos Vinhos Verdes
Os primórdios e do virar
do século à actualidade
Rogério de Castro
Rogério de Castro Natural de Gondomar, no Douro Litoral, licenciou-se em Agronomia
pelo Instituto Superior de Agronomia da Universidade Técnica de Lisboa, pela qual se
doutorou em Ciências Agrárias em 1984. Desde 1994 é Professor Catedrático na área
da Viticultura naquela Universidade. A sua carreira de docente-investigador foi aplicada
apaixonadamente à modernização da viticultura, com particular desempenho nas
formas de condução da videira, pelo que criou soluções e patentes, aplicáveis não
só à viticultura dos Vinhos Verdes, mas também a outras regiões vitícolas internacionais,
nalgumas das quais presta a sua orientação técnica por intermédio da Universidade
onde lecciona. A sua actividade de experimentação é também permanentemente
aplicada na sua propriedade em Lousada (Região dos Vinhos Verdes), onde produz
vinhos de estilos diversos, cuja qualidade tem sido abundantemente reconhecida
pela imprensa especializada e em concursos de vinhos.
8
Vinha em Lousada,
Região Demarcada dos Vinhos Verdes
Perante a iminência de “mudanças climáticas” e sendo a Região dos Vinhos Verdes a mais
Primórdios
e introdução
fresca e pluviosa, será potencialmente a mais auspiciosa no panorama vitivinícola nacional. Situados na Ibéria, e citando Caldas (1991), “longe do berço das civilizações agrárias do
‘Crescente Fértil’, entre o Nilo e a Mesopotâmia, o território [português] foi passagem do mundo civilizado mediterrânico”… “o adoçamento do clima glaciar permitiu que muito lentamente o paleolítico
que precede a Agricultura, mantivesse povos recolectores e caçadores nas grutas e nas cavernas, até ser
suplantado por migrações que a luta pela sobrevivência, na busca ecológica, determina e comanda”.
Também como referiu Viana na sua “Arqueologia Prática” (1962), citado por aquele autor,
“o clima era por vezes bastante mais quente que o actual…” E citando de novo Caldas
(1991), “…neste longínquo período era possível passar a vau o estreito que hoje forma a ligação entre
o Atlântico e o Mediterrâneo. Supõe-se por isso que há 35.000 anos, grupos humanos de origem africana tivessem procurado a Península Ibérica, estabelecendo-se aqui o homem que recebeu o nome de
Neandertal. De 35.000 a 8.000 anos AC, verifica-se nova vaga Cro-Magnon provinda de África ou Leste
asiático. As profundas modificações de clima ocorridas no Epipaleolítico, desde o 8.000 AC a 5.000 AC,
preparavam a alvorada do Neolítico que coincide com os primeiros passos da Agricultura”.
Afinal as mudanças climáticas, tão propaladas hoje em dia, não são de agora, serão
cíclicas, mas o futuro constrói-se hoje.
De facto, tem-se constatado recentemente a ocorrência de níveis anormais de alguns
elementos climáticos. Em 2005, a temperatura nalgumas regiões do País, mesmo nas de
clima mais ameno, como a Bairrada, atingiu valores que provocaram intenso escaldão em
castas consideradas adaptadas à região. Em 2003, na passagem episódica, pela região dos
Vinhos Verdes, de geógrafo francês envolvido em estudos do clima, pôde registar na Estação Vitivinícola da Região (EVAG), em Arcos de Valdevez, num só dia (3 Agosto), valores de
temperatura do ar anormais para esta região, oscilando entre 41,1 e 48,4 ºC.
Com o flagelo dos incêndios, destroem-se bouças, queimam-se vinhas… aí sim, há
alterações bruscas. No último decénio, o Entre-Douro e Minho terá sido a região do País
mais fustigada pelo fogo. No presente ano de 2010, os fogos devoraram milhares de hectares. A frescura e o verde característicos da região foram drasticamente afectados – esgotase o potencial de matéria orgânica, reduz-se a pluviosidade e as primeiras chuvas deparam com solo desprotegido, com reduzida capacidade de retenção para a água e aumento
do risco de erosão. Assim, o equilíbrio será mais difícil, o sistema agrário mais afectado e
naturalmente o clima, e a fertilidade do solo, tenderão para maior instabilidade, exagero
térmico e escassez de água. É a componente cultural, cívica, a comandar a agricultura, a
viticultura… A propósito, recorde-se a análise crítica do Lente de Agronomia, autor da mais
notável obra sobre castas portuguesas, sobre a reforma do ensino agrícola em Portugal
e seus reflexos na agricultura (Cincinato da Costa, 1892): “De uma maneira geral se pode
dizer que tanto maior se manifesta a prosperidade agrícola de um paiz ou região quanto mais profunda
e completa ahi existe a instrução technica”. O mesmo autor, insurgindo-se com a reforma do
Ensino Superior de Agricultura de então, levada a cabo na única escola Superior desta área,
escreveu: “Suprimiram-se os seis lugares de lentes substitutos, principalmente encarregados das lições
práticas … reduziram-se algumas verbas de despeza expressamente votadas para trabalhos práticos …
retiraram-se pequenas quantias destinadas a excursões agrícolas…”. Mas estas preocupações de
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a viticultura da região dos vinhos verdes
Viticultura é arte, cultura, ciência, tecnologia…
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ordem cultural, educacional e sua importância vêm de longe, como refere Caldas (1991):
“… o que não oferece dúvida ter chegado com os Romanos ao território hoje português foi a mensagem
da Agronomia, como ciência ao serviço do bem comum”. Daqui em diante, justifica-se o dizer de
L’abbé Beaurredon em “Voyage agricole chez les anciens, ou L’Economie Rurale dans l’Antiquité” ao
constatar os tratadistas Romanos: “A ciência esclarece a Prática e a Prática controla a Ciência; sem
uma, como sem outra não pode haver boa agricultura…” – e como vai o pragmatismo do nosso ensino Superior Agrário e quanto vale hoje o saber fazer?! Francisco Girão, homem de direito
em Lisboa, ao retirar-se para a Quinta de Vilacetinho no Marco de Canaveses, dando largas
à sua veia de agricultor revela enorme sensibilidade e reconhecimento pelos Tratadistas
Romanos, ao colocar nos jardins junto à casa a centenária estátua de Columela, autor das
clássicas obras Res Rustica (Os trabalhos de campo).
Regressemos aos Vinhos Verdes, a região do país com mais drásticas mutações no sistema agrário, onde as questões da fertilidade do solo e das disponibilidades hídricas se
colocam com a maior acuidade. A história da Região e o tipo de vinhos que na actualidade
são solicitados dentre os verdes brancos – frescos, jovens, frutados e aromáticos – exigem
o regresso às origens, à manutenção de adequados níveis hídricos e de fertilidade sem
os quais aqueles objectivos se tornam difíceis de alcançar. Esta é, de facto, a região mais
pluviosa do país, com vasta tradição e conhecimento empírico sobre rega, e de copiosa
aplicação de estrume. É sabido que nesta Região, na primeira fase do ciclo até ao vingamento, as disponibilidades hídricas são naturalmente satisfeitas. Porém no Verão poderá
ser, e é quase sempre, necessário fornecer água à vinha. Sabe-se que assim era dantes e que
assim terá de ser – considerando sobretudo os brancos. Para o tipo de vinho pretendido, o
potencial hídrico foliar de base (Yb) não deverá ultrapassar -0,2 MPa, ao contrário do que se
passa na generalidade dos vinhos doutras regiões, sobretudo no caso dos tintos, em que
as exigências hídricas são menores, devendo o Yb entre o pintor e a maturação situar-se
entre -0,4 e -0,6 MPa (página seguinte). A questão hídrica em viticultura é actualmente da
maior relevância, pela exiguidade da água e seu custo, pelas alterações climáticas e pela
sua influência no tipo de vinhos a obter (Ojeda, 2007; Ojeda et al., 2004).
Convém sempre ter presente o efeito moderador da água na temperatura, designadamente das folhas. E se isto é importante ao nível da fotossíntese em geral – inibida por excessos térmicos –, mais importante a questão se torna quando se trata dos Vinhos Verdes.
Associada a todos estes aspectos está a questão da localização das vinhas, a zonagem vitícola. A visão dominante e a maneira de encarar esta questão nos Vinhos Verdes tem sido diversa ao longo dos tempos, e de certo modo cíclica e bem diferente do
conceito clássico que vem sendo vulgarmente expendido noutras regiões vitivinícolas.
Recuando no tempo, às “Geórgicas” de Virgílio (19 a.C.), pode ler-se: “… procura saber primeiramente se é preferível plantar a vinha em colinas ou em terreno chão…”… “Não podem todas as
terras tudo produzir… Baco compraz-se nos outeiros desafrontados” (Mayer, 1948). Estas sábias
reflexões sobre zonagem vitivinícola, do insigne Agrónomo da época da Romanização e
um dos seus maiores ideólogos, recomendam atenção e sempre adequação às épocas, às
regiões e ao tipo de vinhos que se pretende produzir.
A vinha sempre foi marcante na paisagem do Noroeste português. Estudiosos e defensores do equilíbrio do sistema agrário regional preconizaram, até passado recente, a
localização da vinha nas zonas férteis e mesmo nas baixas. Curiosamente, nos últimos
a viticultura da região dos vinhos verdes
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Evolução do potencial híbrido
foliar de base no caso da produção
de vinhos jovens ou vinhas em
formação (adaptado de Ojeda, 2004)
Evolução do potencial híbrido foliar
de base no caso da produção de
vinhos tintos, concentrados e aptos
para guarda (adaptado de Ojeda, 2004)
decénios tem-se assistido à defesa da transferência da vinha, das baixas para a encosta
ou meia-encosta. Assim, com frequência a vinha foi ganhando terrenos das tradicionais
bouças, conquistando zonas mais soalheiras. Porém, a frágil viabilidade económica das
culturas anuais não tem sido alternativa para ocupação das terras mais férteis, como se
almejava. Estes factos têm conduzido ao abandono dessas terras. As exigências ecológicas para as vinhas da actualidade levarão, naturalmente, ao retorno a estas zonas mais
férteis e providas de mais água, como convém aos actuais vinhos verdes.
A Região
A antiguidade do vinho verde perde-se no tempo, mas a mais antiga das formas de armação – o “Enforcado” – mostra que certamente a herdámos dos Romanos, já que ela é a mesma a que se referia o poeta
“ulmique adjungare vitis” (Galhano, 1986).
A Região dos Vinhos Verdes é um autêntico anfiteatro sujeito à influência atlântica,
mais marcada na orla marítima sendo assegurada a penetração dos ventos oceânicos
pelos seus rios que correm na direcção dominante este-oeste. São as bacias destes rios e
dalguns dos seus afluentes que marcam as sub-regiões dos Vinhos Verdes.
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Os solos são predominantemente de origem granítica – sobretudo granitos porfiróides, com boa permeabilidade, mas baixa retenção para a água. São naturalmente
pobres, ácidos e dominando os franco-arenosos. É frequente ler-se que esta região é rica
em matéria orgânica e daí a tendência de elevado vigor das suas vinhas, como escreveu
Rebelo da Costa (séc. XVIII) ao referir-se ao Entre- Douro e Minho “terra muito fértil cujas
frutas eram transportadas através dos grandes rios…”. Assim terá sido, mas nos dias de
hoje será bem diferente. De facto, sucessivas gerações forneceram copiosas quantidades
de estrume fazendo, de pobres graníticos, terras férteis.
A Região dos Vinhos Verdes é um caso raro de uma linda história que após 20 séculos voltou às suas origens. À época da romanização da Península, terão coexistido
vinhas nas bordas dos campos e campos de vinhas estremes. A frase “vinea integra” que
aparece em documentos, referido por Alberto Sampaio in “As villas do Norte de Portugal”, 1923 (cit., Fontes, 1951), assim o sugere. Por outro lado, a pressão demográfica, toda
uma sociedade rural vivendo da agricultura ou em ofícios dela dependentes (ferreiros,
ferradores…), relevou a necessidade de produzir de tudo e em toda a parte. A vinha era,
de facto, tecnologicamente subsidiária de diversas outras culturas (hortícolas, cereais…). Com a “colonização” do milho (sécs. XVI e XVII) acentuou-se esta realidade. O milho dava o pão, base da alimentação humana e alimento fundamental para o gado (penso
verde do desbaste, pendão aquando da floração, e finalmente palha e folhelho das espigas,
como preciosos complementos alimentares no Inverno). Este gado, fornecedor de carne
e leite, era por sua vez o principal suporte dos trabalhos agrícolas (transporte, lavoura,
puxar à manjorra para tirar a água nos engenhos…) e também a principal fonte de fertilidade das terras (estrume decorrente das suas camas, verdadeiras fábricas de matéria
orgânica, “alimentadas” do tojo das bouças). Mas a cultura do milho, associada à bouça/
corte dos matos, que dominou por séculos o sistema agrário regional, teve uma evolução tecnológica muito lenta, como documenta Caldas (1991): “… A nossa experiência pessoal,
muito breve em relação aos milénios da História, diz-nos que, numa região minhota, “o semeador de
milho”, o mais simples, de uma só carreira, de tracção humana, foi introduzido nas rotinas locais, em
meados da década de 50 do século XX. Antes, há cerca de quarenta anos, semeava-se a lanço, como no
Evangelho, o Semeador. Se acaso o semeador “mecânico” foi o primeiro a ser “patenteado” na história da Agricultura, tornou-se necessário, para que a “inovação” fosse adoptada pelos agricultores de
Arcos de Valdevez, vencendo o percurso que vai da Babilónia às doces terras dos nossos encantos, que
decorressem nada menos do que 3.271 anos”.
Mas foi de facto neste harmonioso equilíbrio que os Vinhos Verdes se desenvolveram até meados do século passado – vinha em bordadura, cujos amanhos culturais dependiam das culturas anuais, com destaque para o milho como vimos referindo. Ao desabrochar da Vitivinicultura desta Região, em meados do século XX e início de uma nova
era para os Vinhos Verdes, estão associados dois nomes incontornáveis, João Vasconcelos e Amândio Galhano. Mas seria sobretudo este último a maior referência de sempre
na Região e na “sua” Comissão de Viticultura da Região dos Vinhos Verdes (CVRVV, 2001).
Numa Região onde não havia Ensino Superior ou Centro de Investigação nesta área, o
Eng.º Galhano criou uma verdadeira Escola, sobretudo através da realização de distintas
Teses, cujos autores viriam a ser as principais referências da Região, por vários decénios.
a viticultura da região dos vinhos verdes
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Ramada em bordadura
de um campo de milho
Não ignorando muitos outros, destacamos três documentos verdadeiramente notáveis:
Babo, 1949; Pinho, 1955 e Araújo, 1956.
Ao longo destes vinte séculos nunca terá deixado de haver vinha contínua com
relevância no extremo norte da Região. Em todo o caso, o predomínio da cultura do
milho/vinha em bordadura relativizou sua importância. Porém, no ultimo quartel do
século XIX, após invasão da filoxera, a Quinta da Aveleda em Penafiel terá incrementado vinha contínua, inicialmente em bardo mas já mecanizável. Na primeira metade do
século XX surgiram pontualmente vinhas contínuas quase sempre empreendidas por
quem olhava para além da Região, como foi o caso de A. Lagos Cerqueira em Amarante
nos anos 30 e a Casa de Vilar em Lousada, já nos anos 20. Mais tarde nos anos 50, também Francisco Girão terá seguido idêntica orientação na Quinta de Vilacetinho, sendo
entretanto um dos precursores duma dinâmica frente da actividade vitivinícola – produtor/engarrafador - nos Vinhos Verdes.
A evolução da viticultura dos Vinhos Verdes é claramente interdependente do sistema cultural agrário, em grande parte pelo sistema de condução da vinha, sendo os
sistemas adoptados em cada época o indicador mais marcante desta evolução. Aqui
adoptaremos o termo no seu sentido mais amplo, isto é: o conjunto de todas as operações
directas sobre as videiras, acrescidas das formas e das decisões ao nível da geometria de plantação.
Assim, esta vertente naturalmente merecerá maior ênfase ao longo do presente texto.
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Uveira
A cultura da vinha evoluiu desde a Antiguidade, segundo dois contextos diferentes. Por um lado, desen-
A condução da vinha
volveu-se a condução baixa, com cepas livres e sem apoios, formando “taças” com forte ramificação basal.
Era o tipo de cultura das regiões secas do Médio Oriente, também da região Mediterrânica (França, Espanha, Centro e Sul de Portugal, Itália) e de certo modo das regiões setentrionais da Europa (Alemanha e
Suíça). Esta é a viticultura de concepção grega, a cultura das grandes densidades, sujeita à poda minuciosa
com elevada intervenção do homem. Coexistindo, desenvolveu-se um outro tipo de viticultura, de grande
expressão vegetativa, com cepas de longo tronco e grande volume, apoiadas em geral nas árvores
(plátanos, choupos, cerejeiras…). Este tipo de cultura instalou-se sobretudo nas regiões mais
húmidas e montanhosas, dando origem à viticultura celta ou etrusca: é a viticultura de vegetação abundante e livre, da vinha larga e alta, com densidades reduzidas. São as Pérgolas,
Alberatas Capavolto e Raggi Bellussi de Itália, da zona da Emília Romana e da Toscana, o Enforcado, Arjoado, Festões e Ramadas da Região dos Vinhos Verdes (Araújo, 1956; Castro, 1984;
Castro e Magalhães, 1984; Fregoni, 1985; Galhano, 1986). Sobre a origem Etrusca da viticultura
dos Vinhos Verdes, não podem restar dúvidas. A atestar tal evidência destacam-se entre outros documentos, o notável trabalho de Edgar Fontes (1951) e sobretudo a obra do eminente
Professor Mario Fregoni: “Origines de la vigne et de la viticulture” (1991).
A vinha encontra-se em cultura no noroeste português desde tempos remotos. É mal
conhecida a data de introdução. Porém, é sabido que já existiam vinhas quando os Roma-
a viticultura da região dos vinhos verdes
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Arjoado
nos ocuparam a Região. “Políbio, Estrabão, Plínio, Mela, etc., falam de plantas cultivadas
na Lusitânia, em especial vinhas, oliveiras, figueiras…” (Correia, 1924). Admite-se que, em
tempos recuados, nos Vinhos Verdes também se tenha cultivado a vinha contínua. “As inquirições (1220-1258) estão cheias de depoimentos relativos às vinhas baixas e em prazos de casais minhotos. Até ao séc. XVIII as formas baixas e altas coexistiram”. Porém, a “colonização cultural” do
milho no séc. XVI, a grande densidade demográfica e, por consequência, a falta de terra
viriam a consagrar a viticultura dos Vinhos Verdes em bordadura, sob formas de grande
expansão vegetativa, constituindo uma das referências mundiais da viticultura de concepção etrusca (Castro, 1976, 1984, 1987 e 1989). Estas formas de cultura chegaram aos
nossos dias e mantiveram-se até meados do século passado com a maior importância.
São formas sempre de grande expansão vegetativa, quer crescendo em altura apoiadas
em tutores vivos (Uveiras), quer dispostas em sebes altas, estas igualmente suportadas
por tutores vivos (Arejão ou Arjoado). Todas estas formas de cultura da vinha sobre tutores vivos são denominadas de “Enforcado” (Galhano, 1949 e 1986).
Babo (1949), no seu Relatório de Final de Curso sobre “influência do sistema de cultura
da videira”, escreveu: “sobre a nossa cultura que poderia trazer ainda desastrosas consequências pelo
empobrecimento dos terrenos em matéria orgânica continuou a prevalecer a policultura, porque real
tem sido através dos tempos a crescente densidade demográfica da região, a imperiosa necessidade de
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Ramada
produzir o máximo e obrigatório o integral aproveitamento das terras.” Esta é uma preocupação
que sempre mereceu a maior atenção de diferentes personalidades da região e de fora
dela, ao longo dos tempos.
No início do séc. XX, outra forma de condução, da qual já havia referência do tempo
dos Suevos, se viria impondo gradualmente nas bordaduras dos Vinhos Verdes – a Ramada – expandindo-se mais rapidamente nas zonas próximas do litoral e muito lentamente
no centro e interior da região. Cardoso (1956) referia o grande predomínio da vinha de Enforcado no concelho da Póvoa do Lanhoso (90%), havendo uma expansão muito lenta da
Ramada. Já para o concelho de Guimarães o mesmo autor referia haver apenas um ligeiro
domínio do Enforcado sobre as Ramadas, estando estas no entanto em franca expansão.
Também em 1956, outro agrónomo da Região dos Vinhos Verdes, ao abordar este fenómeno na sua Tese de Fim de curso, escrevia: numa região em que, como esta, a propriedade está
muito dividida e a densidade populacional é elevadíssima em relação à riqueza produzida, as condições
económico-sociais do lavrador deverão ser tomadas como factores determinantes que mais têm condicionado a substituição do enforcado pela ramada (Araújo, 1956).
A Ramada, não obstante ser uma forma mais dispendiosa à instalação e mais artificiosa
que o Enforcado, impôs-se ao longo do século passado, como alternativa de vinha em bordadura, às formas de condução mais naturais e tradicionais. Para incremento da vinha em
a viticultura da região dos vinhos verdes
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Cruzeta
bordadura também terá contribuído a própria legislação de então sobre “condicionamento
do plantio”, ao proibir a vinha contínua e autorizando a vinha em bordadura nesta região.
Actualmente, não é possível manter uma viticultura empresarial e competitiva,
com tais sistemas culturais, sem apoios subsidiários, mas a sua sobrevivência deveria
ser assegurada em defesa dum património, vivo e regional, da paisagem e da sombra,
com produtividade – são verdadeiros museus vivos em via de extinção. Os novos vinhedos nos últimos decénios têm sido instalados em vinha contínua, tendo-se consagrado
na segunda metade do século XX uma nova forma, a Cruzeta.
“Foi em Moure, no concelho da Póvoa do Lanhoso que parecem ter sido levantados há cerca de
trinta anos os primeiros exemplares…, a ideia parece ter sido descoberta pela entidade que os mandou
erguer, numas armações que havia visto em Dornelas, concelho de Amares” (Araújo, 1956).
A forma Cruzeta, até se consagrar segundo este nome, tomou vários outros. Festão
terá sido o seu nome na primeira fase e correspondeu a uma tentativa de adaptação das
Uveiras a formas mais manuseáveis e ergonómicas. O trabalho desenvolvido por Araújo
(1956) constitui um precioso e oportuno documento de apoio ao estudo da evolução
da Cruzeta. Esta nova forma (Festão) garantia grande expansão vegetativa com varas
Festão, percursor da Cruzeta
(Araújo, 1956)
caindo em “balseiros” ou “sacavinhos”. É também este tipo de armação designado abreviadamente por T, pelo facto de a lança estar presa ao pilar formando uma cruz. Este
elemento recebe então o nome de Cruzeta, que se viria a consagrar no sistema. A Cruzeta
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terá atingido a sua máxima expansão na região dos Vinhos Verdes nos anos sessenta a
oitenta. Ela é, de facto, o resultado da adaptação e inspiração das tradicionais formas de
bordadura (Uveiras, Arjoado e mais tarde Festão). A sistematização, fomento e consagração da Cruzeta em vinha estreme, que viria a provocar autêntica revolução nos Vinhos
Verdes, deve-se sobretudo ao trabalho persistente e sinérgico de devotados especialistas
da Região na área da viticultura: O. Pinho e também J. Vasconcelos e, na área enológica, A. Galhano. Desta época, algumas Quintas são exemplos emblemáticos pelo arrojo
e espírito inovador designadamente, Brejoeira e sua timoneira Dona Hermínia Paes,
São Cláudio e a família Costa Leme, Aveleda – que produz vinho há mais de trezentos
anos e hoje líder de mercado dos Vinhos Verdes, Tormes - hoje Fundação Eça de Queiroz e Vilacetinho de Francisco Girão. Com a Cruzeta pretendia-se, sobretudo, simplificar
as operações culturais respondendo à necessidade de redução dos custos de produção,
sobretudo no que respeita a tratamentos fitossanitários, poda e vindima. Procurava-se
simultaneamente encontrar uma forma de condução para vinha contínua que incorporasse as principais prerrogativas das tradicionais bordaduras e preservasse as características enológicas dos Vinhos Verdes. Quanto à sua estrutura, a Cruzeta criada em Portugal
é em tudo semelhante ao GDC (Genève Double Curtain – Shaulis et al., 1966) reinventado
nos Estados Unidos da América nos anos sessenta pelo Professor Nelson Shaulis. Não
obstante a criação da Cruzeta ser anterior à do GDC, é esta a designação consagrada em
todo o mundo. O GDC foi intensamente utilizado em grandes áreas vitícolas do “novo
mundo”. Para Itália, foi importada dos Estados Unidos e, no final do séc. XX, ocupava
cerca de 10.000 hectares. Originariamente, a Cruzeta pretendia constituir uma forma com
dois cordões paralelos segundo um mesmo plano horizontal, independentes, sendo
cada qual suportado apenas por um arame correspondendo-lhe uma sebe “retombante”.
Infelizmente, na maioria das vinhas em Cruzeta, as duas sebes perderam a independência formando uma única, espessa, com uma parte horizontal e duas verticais, originana
c
do consequentemente um túnel em cujo interior predomina elevada percentagem de
folhas ao abrigo da luz. Tal situação conduz inevitavelmente à criação de um deficiente
microclima ao nível do coberto vegetal, por falta de luz e de arejamento, excesso de hu-
b
A. Com dois cordões (cordão duplo
horizontal) com um arame para cada
cordão — a forma inicialmente mais usada.
B. Com dois cordões com mais de
dois arames (4 a 7), com recurso à
desponta — aparece em Guimarães.
d
midade, e consequentemente um ambiente propício ao desenvolvimento de doenças.
Este histórico problema teria sido evitado se a reflexão apresentada por Araújo em 1956
tivesse merecido a devida atenção. Se os vindouros tivessem lido atentamente as suas
mensagens, os erros graves cometidos na Cruzeta teriam sido evitados e em casos de
reduzida mecanização, como então predominava na região, teria sido um excelente sistema até aos nossos dias. Assim, pela ignorância e ousadia se perdeu bruscamente uma
forma sistematizada e, por outro lado, se deu largas à criatividade e imaginação. Entre-
C. Com três cordões (cordão triplo
em triângulo) cada um apoiado num
só arame — aparece em Amares.
tanto, ao tentar minorar aquelas deficiências do sistema criadas pelo homem ao longo
D. Com três cordões (cordão triplo
horizontal) com três arames e recurso
à desponta — aparece em Famalicão.
diversas adaptações, em geral desastrosas, algumas das quais estão esquematicamente
Corte transversal de diversos
tipos de Cruzeta
(Castro, 1984)
dos tempos e também com o objectivo de aumentar a produtividade, foram ensaiadas
representadas no diagrama junto – cortes transversais de diversas alternativas. De facto,
estas tentativas de melhoria do sistema não terão atingido o cerne da questão – garantir
a independência de duas sebes “retombantes”, mantendo-as com a devida dimensão em
altura (H). Houve, sim, a tendência para assegurar lavoura cruzada sob o coberto, e para
ência das Uveiras?) e posteriormente despontas intensas, permitindo que as operações
culturais se realizassem em todos os sentidos. Esta excessiva intensidade de desponta
terá sido a maior castração do sistema. Seria, outrossim, prioritário (1) proceder à distribuição das cepas de modo independente, homogéneo e equidistantes ao longo das
linhas e (2) realizar as intervenções em verde prioritariamente a partir do interior das duas
sebes. As entrelinhas seriam o espaço privilegiado para actuação das máquinas nas diferentes operações culturais, ficando reduzido ao mínimo e apenas de modo complementar,
as intervenções manuais a partir deste espaço – entrelinhas – tais como ligeiras despontas
e sobretudo a “penteia”.
Não obstante significativos progressos nos últimos decénios e até passado recente,
a condução da vinha na região foi tradicionalmente dominada por (1) baixa densidade de
plantação, (2) heterogénea distribuição das cepas, (3) deficiente colonização do espaço aéreo
e subterrâneo, (4) tardia entrada em plena produção = longo período de carência económica,
(5) desequilíbrio no vigor e (6) deficiente microclima do coberto (Castro, 1984 e 1987).
Em cada época, a escolha dos sistemas de condução da vinha é o resultado da interacção de múltiplos factores de ordem económica, social e ecofisiológica. A influência desta é
determinante, sobretudo pelos conhecimentos disponíveis de fisiologia e das suas relações
com o clima, local e a enologia. Os factores económico-sociais são mais mutáveis no tempo, dependendo em grande parte da conjuntura económica, da disponibilidade e qualidade
da mão-de-obra e pressão da mecanização. Nas decisões sobre sistemas de condução merecerão maior importância dois aspectos (1) economia máxima no consumo de energia e (2)
captação óptima da energia disponível (radiante, hídrica, …). Os actuais países de viticultura
próspera pertencem ao “Novo Mundo vitícola” (EUA, Austrália, …) ou, sendo da “velha e tradicional viticultura” fizeram em devido tempo a reestruturação e adequação dos seus vinhedos, procurando aligeirar os trabalhos mais penosos, adequando-os à mecanização nas mais
diversas operações. Ora, esta era uma das maiores limitações do sistema Cruzeta.
É sabido que a região dos Vinhos Verdes é historicamente povoada por gente laboriosa de espírito criativo. A passagem da vinha de bordadura para vinha estreme abriu
caminho e criou espaço para alimentar esta extraordinária criatividade. Porém, o parcelamento da região, a reduzida dimensão das vinhas e cumulativamente esta criatividade
e consequente multiplicidade de modelos sempre dificultaram a mecanização, sobretudo ao nível da economia de escala. Depois de vários anos de predomínio e certa sistematização da Cruzeta, impôs-se o sistema designado Cordão Duplo ou Sobreposto, dando
cada cepa origem a um cordão unilateral com vegetação “retombante” e cada qual a diferente cota. Em verdade, apenas a cepa com cordão à cota superior originaria vegetação
“retombante”, havendo grande promiscuidade de orientação, nos sarmentos oriundos
do cordão inferior. A maior limitação deste sistema residia na cota do cordão superior
que, ou era suficientemente alto, logo demasiado caro, ou excessivamente baixo, perdendo eficiência ao nível do microclima e do comando da vegetação. Este predomínio,
ao longo de meio século, de sistemas biplano (Cruzeta e Cordão Sobreposto) tem a sua
lógica perante a consagração do princípio de entrelinhas largas e ocorrendo em região
de terra cara e exígua, mas com uma mecanização pouco específica para a vinha (apoiada
em geral em tractores standard – multifunções – e volumosos).
19
a viticultura da região dos vinhos verdes
tal foram adoptados critérios de agrupamento de cepas à volta de cada “esteio” (influ-
20
Durante séculos, as mais prestigiadas regiões vitícolas do mundo tenderam para
uma viticultura de elevada densidade. O advento do “Novo Mundo” e o seu sucesso vieram questionar este conceito, e uma nova viticultura com maior afastamento das linhas
e maior capacidade de mecanização foi-se impondo.
A corrente favorável à “vinha larga e alta” veio a encontrar, em meados do século
passado, o seu principal mentor no viticultor austríaco Lenz Moser que ficaria consagrado no sistema com o seu próprio nome (Moser, 1960). Moser terá sido um marco histórico na aproximação cultural das duas concepções de viticulturas “Etrusca” e “Grega”. As
suas posições tiveram grande eco não só na Áustria, como mesmo em França e na Suíça,
onde ainda hoje é usado o seu “modelo” em estudos sobre sistemas de condução. Este
modelo viria então a sofrer forte contestação, sobretudo nas regiões mais tradicionais e
mais intimamente presas à viticultura “Grega”. Era acusado principalmente de exagerado rendimento e vigor das cepas e perda de qualidade dos vinhos. Em todo o caso, deve
reter-se, entre outros aspectos da obra, a preocupação do autor quando se refere ao controlo do vigor e à relação folhas/frutos. Cremos que este viticultor, à época considerado
um visionário e altamente contestado pelas “Academias”, não teria conhecido os Vinhos
Verdes, mas as suas reflexões pareciam destinar-se a esta Região. Hoje é emblemático ou
mesmo ex libris da Áustria – Fundação Lenz Moser.
Mais recentemente, ao proceder-se a estudos comparativos de diferentes afastamentos
das linhas associados à existência de 1 ou 2 sebes por linha, repôs-se a questão das vantagens
da vinha larga designadamente ao nível ecofisiológico e da mecanização. Estes estudos, partindo sobretudo da inspiração Etrusca (Araújo, 1956; Baldini e Intrieri, 1978; Castro, 1984, 1987
e 1989; Castro et al., 1989, 1990, 1993, 1996 e 2004; Intrieri, 1989; Mota, 2005; Mota et al., 1989;
Garrido et al., 1996); Shaulis et al., 1966), mas também de zonas de inspiração Grega (Carbonneau 1979 e 1989; Schneider et al., 1989) têm evidenciado possibilidades de vinha larga, eventualmente com ganhos, desde que sejam consideradas semelhantes cargas por unidade de
área, assim como superfície foliar exposta (SFE) e adequado controlo do vigor. A utilização
óptima da energia solar tem como objectivo central assegurar a melhor qualidade organoléptica possível dentro de níveis de produção satisfatórios. O produto final é essencialmente
o resultado do microclima do coberto vegetal que o originou, que por sua vez depende do
ambiente e das suas próprias características.
O parâmetro densidade de plantação tem sido dos mais discutidos, sobretudo pela
importância que habitualmente lhe é atribuída pelos regulamentos (denominações de
origem, …). As questões devem ser postas sobretudo ao nível da qualidade da produção
e colonização do espaço pelas raízes. No que respeita aos reflexos da densidade na qualidade dos vinhos, na concepção clássica, ela diminui com a densidade de plantação.
Porém, a qualidade não diminui necessariamente com a menor densidade de plantação,
desde que a vinha seja conduzida de maneira a manter uma superfície foliar exposta
adequada, evitando o excesso de folhagem como resultado de adaptação da forma à
densidade de plantação (altura da paliçada, abertura da folhagem). Na nova concepção
defendida por vários autores, a densidade radicular pode ser idêntica qualquer que seja a
densidade de plantação, desde que a superfície foliar por hectare seja análoga. Em parte,
o sistema radical desenvolve-se em função da extensão da parte aérea. Se a superfície
foliar acresce em função da sebe, então as necessidades em água e em nutrientes são
a viticultura da região dos vinhos verdes
21
Densidade de plantação
em novas vinhas
elevadas. O sistema radicular deve então desenvolver-se para alimentar correctamente a
parte aérea. Por outro lado, a diminuição da densidade de plantação não impõe aumento
de vigor dos sarmentos, mas do total da cepa (quantidade de matéria seca produzida), o
que é considerado um elemento positivo.
As análises e conclusões feitas por diversos autores merecem particular atenção na
região dos Vinhos Verdes. Se é verdade que os princípios são aplicáveis, já os valores da
densidade em questão são muito diversos. De facto, quando são referidas baixas e altas densidades, em geral está-se a tratar de valores da ordem de 2.500 e mais de 4.000
cepas/ha, respectivamente. No caso dos Vinhos Verdes, quando se analisam densidades
baixas vs. altas, está-se em presença de valores da ordem de 1.000 vs 2.500 cepas/ha. Isto
significa que a concepção moderna demonstrativa do potencial das baixas densidades
(qualidade e colonização radicular) satisfaz os níveis mais elevados de densidade considerados na região, mas não necessariamente as baixas densidades (~1.000 cepas/ha).
Na economia actual, o maior inconveniente de tão baixa densidade deve-se ao facto de
provocar um período de carência económica demasiado longo (Mota et al.,1989).
É sabido que a colonização do espaço pelas raízes tem reflexos na rentabilidade da
vinha. É também reconhecido que os primeiros anos da vinha (até 3 anos) determinam
grande parte da sua eficácia futura. A preparação do terreno e a selecção dos materiais
merecem a maior atenção. Porém, há decisões culturais a ter em conta, nomeadamente
antes, depois e durante a plantação, que influenciam fortemente a expansão e densidade de raízes, das quais destacamos: (1) decisão conjugada da escolha do porta-enxerto
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e pH do solo (sua correcção). A título de exemplo e citando estudos realizados por Conradie (1988) na África do Sul, verificou-se que no porta-enxerto SO4 com um pH do solo
entre 4 e 5, o peso de raízes desenvolvidas sofreu uma redução de 1/3 a 1/2 do das raízes
dos porta-enxertos 140Ru, 110R ou 99R; mas, quando o pH foi corrigido para 6, já o peso
das raízes do SO4 passou a ser superior ao de todos os outros porta-enxertos. Fenómeno
idêntico, mas com valores ainda mais afastados, verificou o mesmo autor ao comparar
os resultados do 101-14 com os daqueles três porta-enxertos; (2) Carbonneau e Pouget
(1983) em ensaios com diferentes doses de nutrientes, na modalidade com o dobro da
concentração, o sistema radicular apenas colonizou metade do volume de terra. Este ensaio, ainda que laboratorial, não deixa de ser um bom indicador sobre os inconvenientes
decorrentes dos exagerados “cuidados culturais” ao nível local, em prejuízo da preparação de “todo o terreno”. Este aspecto toma particular acuidade para o caso da região dos
Vinhos Verdes onde se consagraram técnicas de plantação que contemplam tais excessos junto à planta e a inexistência de fertilização nas entrelinhas. Felizmente, na nova
viticultura, a preparação é feita por todo o terreno e não só na vala.
A questão da “orientação das linhas” tem sido menos polémica e merecido menor
atenção do que a “densidade de plantação”, não obstante a sua grande importância. A influência deste factor torna-se mais relevante nas situações-limite de disponibilidade luminosa e também nos sistemas de condução em vinha alta, sobretudo com sebes divididas.
Porém, numa região com a estrutura fundiária e características das parcelas como a dos
Vinhos Verdes, muitas vezes outros factores se tornam mais relevantes do que a captação da luz. No que respeita à orientação das linhas nas condições de Portugal, em geral, a
orientação ideal, em termos energéticos, será N/S ou mesmo NE/SW especialmente, para
os sistemas pluriespaciais como o Lys, onde esta orientação assume um papel mais relevante. Porém, na maioria dos casos, devido à estrutura fundiária, o factor que acaba por
ser mais relevante é a orografia, a dimensão da parcela e, consequentemente a mecanização, ao nível da segurança, ergonomia e operacionalidade das máquinas. Deve-se então
orientar as linhas segundo o maior comprimento, para reduzir o número de linhas curtas
ou “mancas” e de viragens do tractor; no caso do terreno ser inclinado, deve-se orientar,
preferencialmente, segundo o maior declive (vinha ao alto), para que não haja inclinação
lateral das máquinas. Dependendo da configuração da parcela, para além dos aspectos já
referidos, há toda a vantagem em que as linhas sejam o mais perpendicular possível em
relação às cabeceiras (formando ângulos tão próximo de 90º quanto possível). Ângulos
muito afastados da perpendicularidade dificultam a viragem das máquinas ou, para igual
exequibilidade, é exigido cabeceiras mais largas. É curioso constatar que já nos anos 50,
Francisco Girão, em Vilacetinho, ao proceder à reconversão das vinhas de Enforcado para
“vinhas estremes”, optou pela orientação Norte/Sul e por sua vez, nos terrenos inclinados,
por “vinha ao alto”. Estudos da influência da orientação das linhas têm merecido a maior
atenção da parte de consagrados especialistas de todo o mundo. Em Itália, Baldini e Intrieri (1985 e 1987), em trabalhos realizados na Emília Romana (em latitude ligeiramente
superior à dos Vinhos Verdes) sobre sistemas de condução semelhantes aos usados ou potenciais desta Região, concluíram: (1) é evidente que, tendo em conta a altura e largura dos
nossos modelos, a orientação das vinhas constitui o mais influente factor da distribuição
da energia radiante sobre a vegetação; (2) com a orientação N-S, a taxa de fluência de fotões
te da sebe; nesta altura, as temperaturas de Julho andam à volta de 25 ºC, o que corresponde ao óptimo para a actividade fotossintética; (3) com a orientação E-W, o máximo do PFR
ocorre pelo meio-dia; as temperaturas são em geral demasiado altas para a eficiência da
fotossíntese; e (4) os nossos resultados confirmam seguramente as conclusões de vários
outros autores que consideram a orientação N-S a mais defensável.
Será oportuno e curioso referir a orientação preferencial N-S, também dada às Uveiras
na região dos Vinhos Verdes. Fontes (1951), no seu relatório final de curso de Eng.º Agrónomo e Arquitecto Paisagista, refere: sempre que pode haver liberdade de escolha, isto é, desde que
as filas de uveiras não estejam a bordejar propriedades, caminhos ou regatos a sua orientação é regra
geral a N-S. A justificação encontrada tem perfeita actualidade: com a orientação N-S, a sombra
só cai na fila à hora de maior calor, precisamente aquela em que a incidência directa do sol poderia ser
prejudicial e em que é menor a área ensombrada. Champagnol (1984) demonstrou que, à hora
de maior calor no Verão, o rendimento fotossintético é superior nas folhas parcialmente
ensombradas. As folhas muito expostas fotossintetizam menos, não só porque atingem
temperaturas muito superiores ao nível de máxima eficácia fotossintética, mas também
porque frequentemente se encontram em stress hídrico, consequentemente, com menor
abertura dos estomas, havendo por isso menos trocas gasosas.
Outro aspecto importante é a orientação espacial dos sarmentos. As grandes alturas de tronco estão em geral associadas a fracas densidades de plantação. Também se
considera com muita frequência que o tronco alto exerce um efeito desvitalizador sobre
a planta e que as produções são de menor qualidade. Considera-se, pois, que a vinha
alta apresenta uma maturação retardada porque não aproveita as restituições de calor
do solo. Sabe-se que, para igual densidade de plantação, a altura do tronco não afecta
a qualidade das uvas por diversas razões (Carbonneau, 1990): do ponto de vista microclimático, é possível favorecer o aquecimento da planta utilizando, em primeiro lugar,
as formas que permitem interceptar uma grande quantidade de energia luminosa. A
proximidade do solo não é pois determinante. É preciso não confundir tronco alto com
orientação da vegetação. Muito frequentemente confundem-se efeitos do tronco alto
com os de porte “retombante”. Em boa verdade, ao tronco alto poderão estar associados todos os tipos de orientação da vegetação. Nos estudos desenvolvidos, as modalidades com vegetação “ascendente+descendente” associadas a troncos altos (Castro et
al., 2004; Mota et al., 1999), revelaram maior produtividade sem que a qualidade viesse
afectada. Tais acréscimos resultaram directamente da maior fertilidade observada. Estes acréscimos da fertilidade dever-se-ão fundamentalmente ao mais eficiente controlo
do crescimento e melhor microclima, sobretudo ao nível dos cachos e dos sarmentos
eleitos à poda para constituírem as unidades de frutificação. De resto, se observarmos
atentamente algumas das formas tradicionais de tronco alto nesta região (Enforcado),
podemos encontrar teores de álcool consideráveis (Araújo, 1956). Em boa verdade, o Enforcado bem conduzido proporciona varedo com duas funções: a parte “retombante”,
após produzir, é suprimida; e da parte ascendente são eleitas as necessárias unidades
de frutificação para a produção do ano seguinte. Aliás, fenómeno idêntico se passa nas
regiões da Bairrada e Dão, onde em vinhas tradicionais, responsáveis por vinhos de alta
qualidade, com troncos relativamente altos, a viticultura usava (e usa) tutores, canas ou
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a viticultura da região dos vinhos verdes
(PFR) era maior no começo da manhã e fim da tarde, respectivamente nas faces Este e Oes-
24
ramos de pinheiro – que na prática exercem a mesma função da árvore nas Uveiras dos
Vinhos Verdes, permitindo que uma parte dos sarmentos se desenvolva com orientação
ascendente, ficando os restantes “retombantes”.
É sabido que na generalidade das espécies lenhosas os ramos crescem tanto mais
quanto mais a sua orientação se aproxima da vertical ascendente. Kliewer et al., 1989,
verificaram na casta Cabernet Sauvignon que os sarmentos na posição vertical ascendente, um mês após a sua orientação, tinham já o dobro do comprimento em relação aos
descendentes e que, no final do ano, o peso seco das varas ascendentes era cerca de cinco
vezes superior ao das varas descendentes.
Embora seja evidente, como já o demonstraram vários autores, que o gravimorfismo
exerce influência sobre o crescimento dos sarmentos e natureza dos seus gomos, torna-se
difícil separar, sobretudo no caso da videira, o efeito directo da orientação, do efeito resultante da iluminação. De facto, quando os sarmentos estão orientados na vertical ascendente, dispõem em geral de melhor exposição à luz. É sabido que a intensidade luminosa
influencia o vigor e a natureza dos gomos, o vingamento e a maturação, e mesmo o estado
sanitário da planta (Rives, 1972; Vautier et al.,1978). Da divisão da “cortina” de vegetação em
duas partes segundo o mesmo plano vertical, uma descendente, com menor vigor, e outra
ascendente, como fizemos em diversos ensaios em várias castas e em diferentes regiões,
com mais acuidade se verificarão os referidos aspectos ecofisiológicos. De facto, a parte
ascendente não só beneficia das prerrogativas de tal orientação, como ainda da menor
densidade de sarmentos e, consequentemente, de menor concorrência à luz (Castro, 1986,
1992; Castro & Lopes, 1990; Garrido et al., 1996).
Os efeitos da altura do tronco deverão ser analisados também como resultado de
maior ou menor volume de estrutura permanente e, por consequência, de reservas que
poderão ser mobilizadas nos momentos mais importantes, por exemplo ao vingamento.
Koblet (1987), na Suíça, em ensaios usando o sistema Lenz Moser, ao aumentar a parte
permanente em 20 cm por cepa, encontrou um ganho médio de rendimento de 20% sem
afectar a qualidade, Mas as respostas às diferentes alturas de tronco não só poderão vir
afectadas pelas respectivas formas, como também pelos próprios hábitos de vegetação
e frutificação das castas. Babo (1949), comparando duas formas associadas a diferentes
troncos e utilizando para o efeito 8 castas, verificou que duas das castas regionais (Vinhão e Azal) respondiam sistematicamente em sentido oposto, considerando a acidez
total, teor em ácido málico ou açúcares redutores. Sobre este aspecto, profícuo trabalho
foi desenvolvido e publicado na região, sob a égide da EVAG/CVRVV, sobretudo a partir
dos anos oitenta (Castro & Martins, 1986).
Tem-se verificado que no sistema em Cordão Sobreposto, por vezes, ao cordão superior
correspondem mais elevados teores de açúcar. Pode pois concluir-se que a altura do tronco,
por si só, não terá em geral uma importância relevante, mas, outrossim, aspectos a ele associados com reflexos na SFE e no microclima do coberto vegetal. Em todo o caso, convém evitar alongamentos excessivos (valores necessariamente dependentes das características das
castas e das regiões) porque as dificuldades de alimentação hídrica poderão anular os efeitos
favoráveis da maior estrutura permanente e consequente aumento de reservas.
O vigor é por vezes confundido com o desenvolvimento vegetativo da videira e com
a “potência” da cepa. Por se recear competição entre as uvas e o crescimento dos sarmen-
potencial de maturação não pode ser obtido senão através de plantas pouco vigorosas
é largamente aceite. Deste modo, torna-se necessário precisar o conceito de vigor: o vigor revela o crescimento dos órgãos e traduz-se, entre outros, pelo ritmo e duração do
crescimento, e não só pela quantidade de folhagem ou peso da lenha de poda. Como já
foi referido, um aumento de vigor poderá provocar um aumento de rendimento, já que a
fertilidade da videira cresce com o vigor (Huglin, 1986).
Aqui, e mais uma vez, se repõem os riscos de contradição existentes na Região dos
Vinhos Verdes – tradicionalmente associada a solos férteis (mas que na realidade são
originariamente pobres, sobretudo em matéria orgânica, mas enriquecidos pelas incorporações maciças de estrume). O aspecto verdejante desta região e a capacidade de vigor
e de produtividade das videiras não se podem perder, ou perder-se-á a região!
Admite-se que habitualmente, numa considerável percentagem das vinhas em Cruzeta e em Cordão Sobreposto na região dos Vinhos Verdes, não obstante existir em geral
um elevado valor de área foliar total, predominam indicadores altamente desfavoráveis
no que respeita quer ao número de camadas de folhas (LLN/ncf), quer à relação área foliar total/área foliar exposta (LA/SA). Esta situação resultará, sobretudo, da poda curta,
da baixa carga por hectare, do exagerado comprimento dos eixos permanentes, do forte
vigor ao longo de todo o ano, e do exagerado adensamento da folhagem (Castro, 1987).
Esta situação, agravada pela frequente ligação das duas sebes, origina um deficiente microclima no interior do coberto vegetal, sobretudo ao nível dos cachos.
Em trabalho realizado na Alsácia, onde as condições são bastante distintas das dos
Vinhos Verdes, mas nem por isso muito afastadas no que respeita ao vigor, (Scheneider
et al., 1989) referem que a penetração das radiações luminosas no interior do coberto vegetal está condicionada pela sua própria estrutura, com reflexos directos na distribuição
da energia luminosa e, consequentemente, sobre a intensidade fotossintética. Portanto, na prática é preciso privilegiar os sistemas de condução que permitem dispor de uma
superfície foliar importante, com bom microclima luminoso e térmico.
Na Bulgária, Nikov (1979), trabalhando em vinha larga e de certo modo alta, analisou o efeito do vigor sobre o rendimento fotossintético, tendo constatado que, nas suas
condições de local e casta, no estado normal de vigor bastariam 18 cm2 de área foliar para
produzir um grama de açúcar, enquanto que nas condições de excesso ou de escassez de
vigor era necessário 4 a 5 vezes mais (80 a 100 cm2) para produzir a mesma quantidade
de açúcar. A questão do controlo do vigor revela-se, pois, da maior importância, mas
deverá ser considerado ao longo de todo o ciclo anual de vegetação. É sabido que exagerado vigor na fase mais avançada do ciclo contraria a maturação e favorece a ocorrência
de doenças criptogâmicas. Esta era uma das características marcantes na viticultura em
bordadura, tecnologicamente condicionada e subsidiária das culturas do interior dos
campos, mas de certo modo criou a imagem dos Vinhos Verdes. A passagem para a vinha
contínua, sem os “sobejos” nutricionais das culturas anuais, requer muita atenção. Para
vinha contínua, será necessário rever as necessidades de nutrientes (estrume, adubos e
água) consentânea com o tipo de vinhos pretendidos, sobretudo os brancos – frescos,
frutados, aromáticos… não demasiado “maduros”.
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a viticultura da região dos vinhos verdes
tos, impõe-se por vezes a redução no vigor. Por outro lado, o conceito de que um elevado
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“Não cuides de saber, antes de experimentar” (Pedro Nunes, Matemático, séc. XVI).
Alternativas de
condução para a região
dos Vinhos Verdes
Após longo período de muitas experiências exploratórias, mas não sistemáticas ou
sequenciais, sobretudo eivadas de imaginação e empirismo, os últimos anos têm sido
profícuos em estudos e publicações sobre condução da vinha. Em todo o caso, os trabalhos levados a cabo e respectivas publicações incidiram fundamentalmente nos aspectos
produtivos e da qualidade da uva, e menos sobre mecanização e aspectos económicos. A
estrutura fundiária dominante na região e sobretudo o parcelamento, associados às produtividades e actual valor da uva, obrigam a questionar modelos que fizeram sucesso e
que não resistem à conjuntura actual. Após predomínio da Cruzeta e do Cordão Sobreposto, o seu declínio, foi devido mais aos erros tecnológicos cometidos do que à sua ineficácia
potencial – ambos pouco mecanizáveis porém com resultados agronómicos satisfatórios
– está a dar-se o seu gradual desaparecimento. Em todo o caso, o factor mecanização não
terá sido a principal causa do seu retrocesso, já que a região, para além dos tratamentos fitossanitários e das operações culturais sobre o solo, então pouco se mecanizou (pré-poda,
desfolha, desponta, vindima). Foi neste contexto, como alternativa e ainda em simultaneidade, que surgiu e se impôs o Cordão Simples, como é vulgarmente designado na Região (mais correctamente “monoplano vertical ‘retombante’” – MVR). Sendo um sistema
a viticultura da região dos vinhos verdes
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Página anterior Cordão simples “retombante”
mais simples e mais barato, tem merecido bom acolhimento, não obstante a sua menor
Em cima Monoplano vertical ascendente
capacidade produtiva em vinhas largas, quer pela menor capacidade de colonização, quer
pela menor capacidade de captação de energia ou excessiva exposição das uvas – mas é
mesmo assim, um sistema passível de certo grau de mecanização e sobretudo menos absorvente de mão-de-obra. Será pois um bom sistema/compromisso.
Actualmente parece haver certa tendência para se evoluir no sentido de sistemas
mais universais, tais como o “monoplano vertical ascendente” (MVA). Este sistema poderá ser mesmo excelente, se pelo menos duas das operações habitualmente manuais forem mecanizadas – desponta e pré-poda – e, preferencialmente, também a vindima. Doutro modo, e está a acontecer, será desaconselhável a vários níveis: (1) menor capacidade
produtiva; (2) reduzida dimensão da sebe e com frequência deficiente relação entre altura
H
da sebe e valor da entrelinha (H/E). Com frequência, neste sistema e na Região, o valor de
H decorre de troncos longos e sebes curtas, originando baixa capacidade de captação de
luz. Acresce que neste sistema todos os sarmentos são ascendentes e, na situação desejável de fertilidade do solo e adequada alimentação hídrica, como convirá às castas brancas
E
0,6 < H/E < 0,8
H/E = 1
(Alain Carbonneau)
(Richard Smart)
Relações: entrelinha/altura das sebes
na região, haverá riscos de excesso de vigor. Este hipotético avanço tecnológico, que não
potencia as questões de gravimorfismo, associado ao controlo do vigor, corresponde a
um desperdício do saber fazer, criado secularmente na região, e também a um maior risco
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Formas pluriespaciais. Em biplano
de desequilíbrio, ao nível do vigor. O histórico da região e leis universais da ecofisiologia
recomendam alternativas e cautelas. Assim, será recomendável:
(1) Monoplanos, se as entrelinhas são inferiores a 3m – podendo ser ascendente (MVA),
se houver capacidade de mecanização ao nível das intervenções directas sobre as videiras, ou “retombantes” (MVR) quando não existir aquela capacidade de mecanização –
este poderá ser o sistema mais adequado de todos, se, para além da escassez de mecanização, não houver elevada capacidade técnica dos respectivos empresários e operadores;
(2) Formas pluriespaciais/bi ou triplanos, para entrelinhas superiores a 3 m. O sistema
Lys poderá ser recomendável sempre que exista suficiente nível profissional, pela sua
mais elevada capacidade de captação de energia e consequente produtividade e qualidade. Sendo não propriamente uma forma, mas um conceito dinâmico, é sobretudo um
sistema com grande flexibilidade, ao nível do controlo do vigor, porque permite diferentes orientações dos sarmentos no espaço (parte vertical ascendente, partes “retombantes” ou intermédias), explora o fenómeno do gravimorfismo e origina também eficiente
microclima, sobretudo ao nível dos cachos (Afonso et al., 1999; Carbonneau e Cargnello,
2003; Carvalho et al., 1997; Castro, 1987; Castro et al., 1987, 1995, 1998, 2005, 2006; Garrido et
al., 1996, 1998; Mota, 2005; Mota et al., 1999, 2000, 2001).
a viticultura da região dos vinhos verdes
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Formas pluriespaciais.
Em triplano. Sistema Lys
Uma grande vantagem das vinhas largas com coberto vegetal pluriespacial, ao contrário dos monoplanos, está na mais eficiente gestão da sanidade da vinha, associada a
menor número de passagem das máquinas por unidade de área de vinha em cada operação. Uma outra alternativa em biplano será o sistema R5C ou o seu sucedâneo R5C2.
Trata-se de um sistema em que a uma linha de videiras corresponderão dois planos verticais “retombantes”, paralelos e independentes, afastados cerca de 45 cm. Haverá no
caso R5C um cordão unilateral com espáduas alternadas para cada lado e, no caso R5C2,
haverá dois cordões paralelos e bilaterais partindo, de cada qual, espáduas só para um
dos lados (opostas entre si), criando-se alternância no conjunto dos dois cordões pareados. Este segundo modelo tem-se revelado mais fácil de equilibrar em termos físicos,
mais expedito e rápido na formação e, sobretudo, comporta menos riscos de perda de
sarmentos decorrente da quebra pelo vento. Esta é uma limitação de muitos sistemas,
nomeadamente no R5C agravada quando estão associados a poda curta, em que aumenta o risco de “desnoca” (quebra do sarmento na inserção), como acontece na casta Loureiro ou noutras mais castas sensíveis à escoriose – doença que vem flagelando muitas
castas desta e de outras regiões.
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31
Trata-se de tema recente, já que nesta região a vinha, até há poucos anos, se cultivava em
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Manutenção do solo
bordadura. Ao longo de séculos, os campos bordados de videiras eram construídos com ligeiros declives, mesmo quando situados em encostas declivosas. Fossem lameiros, hortas
ou campos de cereal, sempre eram preparados para rega por gravidade com reduzido risco
de erosão. Eram então campos planos com ligeira inclinação, com boa drenagem superficial, constituindo plataformas muitas vezes de pequenas dimensões, havendo taludes ou
muros de suporte, sempre que o declive natural o exigia, para que a sua inclinação final
fosse reduzida. Estes taludes não constituíam terra perdida nem elementos de agressão
à paisagem. Antes, eram revestidos de vinha, de Enforcado ou Ramada. Quando escasseava “penso” para o gado no interior dos campos, era ainda destes taludes que o agricultor tradicional cegava a erva para sustento do gado. Os campos cultivados no interior das
vinhas em bordadura eram lavrados na Primavera, para a cultura dominante – o milho,
que se cultivava tradicionalmente em consociação com feijão e azevém. À lavoura era incorporado o estrume. Posteriormente, apenas se procedia a mobilizações superficiais – as
sachas e a arrenda, na última das quais se semeava então o azevém entre o milho. O feijão,
de ciclo mais curto, era colhido e não mais haveria mobilizações, ficando assim o terreno
sempre protegido, sem risco de erosão mesmo havendo algum declive e muita chuva. À
colheita do milho, já o azevém se havia desenvolvido dando, entretanto, o primeiro corte
para alimentação do gado e assim sucessivamente, até novo ciclo se reiniciar. Ao longo do
Verão, e só após a raiz do milho colonizar em certa profundidade (início do stress hídrico) se iniciavam as regas, sempre por gravidade, com água originária de minas/fontes ou
poços (engenhos). Esta era, naturalmente, também a rega da vinha. O parcelamento dos
prédios, muitas vezes distantes entre si, e a disputa das águas de consortes fizeram dos
agricultores do Entre-Douro-e-Minho verdadeiros gestores “hídricos”, dotados de profundos conhecimentos de rega, fruto do saber fazer. Estes saberes vão-se perdendo e não se
tem conseguido alternativas tecnológicas e económicas em tempo útil.
Ao dar-se a reconversão vitícola da vinha em bordadura para vinha contínua, surge
a oportunidade de emparcelamento evitando-se taludes à custa de ligeiros acréscimos
de declive dos respectivos campos, agora vinhas. É uma necessidade em ordem à mecanização e por imperativos económicos, e não poderá ser uma oportunidade perdida
(Castro & Santos, 1990; Castro et al., 2010). Porém, a tradição dos campos planos e de
reduzido declive mantém-se e tende a influenciar as decisões dos construtores das novas vinhas, levando ao exagero da criação de enormes taludes procedendo a drásticos
aterros e desaterros, sempre caros e constituindo elementos de agressão à paisagem.
Urge ultrapassar esta tendência, criar vinhas harmoniosas, mecanizáveis, ocupando ligeiros declives. Exemplo desta harmonia pode ser observada nas vinhas da Sociedade
dos Vinhos Borges, na Quinta de Simãens. A rigidez da “planificação topográfica” cria
heterogeneidade na fertilidade dos solos, agressão à paisagem e custos elevados de
instalação e de manutenção dos taludes. Na actual conjuntura, na região dos Vinhos
Verdes, a vinha não deverá ser cultivada em terrenos com inclinação superior a 30%
(preferencialmente < 25%) e assim não será necessário criar taludes. As vinhas deve-
Página anterior Vinha ao alto
com enrelvamento do solo.
Quinta de Simãens, Felgueiras
rão ser instaladas segundo o maior declive (vinha ao alto) e, em consequência, mais
mecanizáveis. De um modo geral, a vinha nos Vinhos Verdes, se não for mecanizável,
não tem viabilidade económica. No que respeita estritamente à manutenção do solo, a
havia mobilizações profundas, pelo menos uma vez por ano, em função das culturas
anuais. Estas mobilizações serviam também para incorporar estrume e eventualmente
macro-elementos (fósforo e potássio). Criou-se mesmo a convicção de que as mobilizações em profundidade aumentavam o teor em matéria orgânica no solo. Sabe-se que
assim não acontece, bem pelo contrário, sucessivas mobilizações conduzem à perda de
matéria orgânica. Hoje, será mesmo recomendável mobilização mínima ou nula com
enrelvamento. O enrelvamento com sucessivos cortes é hoje técnica recomendável na
manutenção das entrelinhas, havendo necessidade absoluta de limpeza das linhas, recorrendo ora a herbicidas, ora a inter-cepas, e eventualmente ao trabalho manual no
combate pontual de algumas infestantes.
Em geral, na região dos Vinhos Verdes existe rica flora de “infestantes” (Guimarães,
1994) e o enrelvamento natural, se for bem conduzido, constitui técnica eficaz de manutenção do solo. O ideal será não proceder a mobilizações no período das chuvas. Nesta
época, o terreno deve estar revestido, evitando a erosão. Quando se pretende proceder
a enrelvamento introduzido, a sementeira não deverá ser feita no período das chuvas,
a não ser que as respectivas espécies não careçam de mobilizações, como será o caso do
azevém. O uso de outros cereais, como a aveia ou centeio – que carecem de sementeira a
certa profundidade, até porque se assim não for os pássaros comem a semente –, constitui erro, pelos riscos acrescidos de erosão. O recurso a leguminosas estremes ou consociações poderá ser uma alternativa, mas sempre com o cuidado de não se desproteger
o solo na época das chuvas. Quanto à fertilidade do solo, é sabido que a sua tendência
natural é para diminuição, e que, por outro lado, o tipo de vinhos hoje solicitado exige
situação oposta. Felizmente tem havido certo incremento de estudos neste âmbito (Pacheco et al., 1997, 1998, 2001).
Tal como noutras regiões, o recurso a porta-enxertos deu-se após invasão filoxérica, na se-
Os materiais
biológicos: castas
e porta-enxertos
gunda metade do séc. XIX. Nesta região, a sua evolução foi também influenciada pelo sistema
cultural em que a vinha se inseria – vinha em bordadura, tecnologicamente interdependente
das culturas anuais. O facto de alguns dos porta-enxertos introduzidos, além de imunes às
doenças, serem produtores de uvas, também influenciou a sua expansão, tal como aconteceu com Jacquez e Isabelle. Antes da revolução tecnológica da viticultura da região iniciada
em meados do século passado, predominavam os porta-enxertos designados por regionais.
Destes, destacam-se o Corriola que chegou aos nossos dias com sucesso. O sistema cultural
então vigente, da vinha com copiosa incorporação de estrume e água, fazia com que o sistema radicular pastadeiro e a satisfatória afinidade com as castas regionais originasse bons
resultados. Além dos porta-enxertos já referidos, outros foram entretanto experimentados
na região, estando hoje em total desuso, tais como Vigorosa, Filipe, Estopa, Perre, admitindo-se
que este último será o Vialla. Entretanto, outros porta-enxertos de carácter mais universal foram introduzidos. Nos últimos anos, muitos têm sido os estudos desenvolvidos na região,
em diferentes combinações entre castas e porta-enxertos com predomínio da casta Loureiro,
quer sob a égide da EVAG/CVRVV, quer da EFV da Direcção Regional de Agricultura (Amaral et
al., 1995; Leme et al., 1993; Malheiro et al., 1995; Mota et al., 1996; Pinho, 1993).
33
a viticultura da região dos vinhos verdes
região divide-se segundo duas tendências, ambas com cariz residual. Tradicionalmente
34
Enxerto-pronto em vaso
Será compreensível esta preponderância, pela importância crescente que vem tomando esta casta. Em todo o caso, é sabido que a opção do porta-enxerto deverá ser função
da casta, mas também do “terroir” (Clímaco et al., 1998, 1999), que na região tem sido muito variável consoante o sistema agrário, as doutrinas expendidas em cada época e consequentes opções de zonagem. Durante vários anos, o principal porta-enxerto foi o SO4,
com resultados satisfatórios. A expansão da casta Loureiro e a ocorrência da sua aparente
incompatibilidade tornou-o um porta-enxerto proscrito na região. Porém, esta falta de afinidade é apenas anatómica/morfológica, havendo efectivamente compatibilidade funcional. A ascensão do SO4 deu-se na fase inicial da expansão da vinha estreme, sendo muitas
vezes usado em terrenos demasiado húmidos e mal drenados. O SO4 seria também apontado como demasiado produtivo. Assim, viria a ser substituído pelo 196-17, mais resistente
à acidez do solo e considerado menos produtivo ou propiciador de melhor qualidade das
uvas. Esta questão da produtividade originada pelos porta-enxertos deve ser analisada de
um modo mais compósito, pois há por vezes interacções com outros factores que poderão
levar a conclusões erróneas. No caso vertente, bastará adequar a carga à poda, em média
atribuir mais um olho por vara, e já o 196-17 terá produtividade semelhante ao SO4.
Entretanto, como sucedâneo do SO4, além do 196-17, impôs-se o 1103P que é um
excelente porta-enxerto, muito ecléctico e particularmente vocacionado para a casta
Arinto. Porém, em condições ideais de fertilidade do solo para produção de vinho verde
a viticultura da região dos vinhos verdes
35
Enxertos-prontos em vaso. Estação
Vitivinícola Amândio Galhano
branco – aromático, fresco, frutado –, poderá tornar-se inconveniente, por originar excesso de vigor. Este aspecto tenderá a agravar-se com a actual expansão do sistema MVA,
nomeadamente na casta Loureiro. É, em todo o caso, um porta-enxerto recomendável
para a generalidade das castas e locais. Entretanto, pelos estudos e experiência adquirida, serão de admitir outros porta-enxertos, ainda que actualmente pouco usados, tais
como: Gravesac para solos ácidos; 101-14 para solos mesmo de baixo pH, desde que corrigido para próximo da neutralidade. O 101-14, nestas condições, tem-se revelado particularmente interessante para a casta Loureiro, pelo elevado potencial de rendimento e de
maturação, e pela possibilidade de antecipação da vindima fugindo à época das chuvas.
Deverá também ser experimentado nas outras castas regionais. Uma outra alternativa a
considerar será o 140 Ru, em condições especiais, mas que existem e poderão tornar-se
mais relevantes na região – terrenos pobres com défice de matéria orgânica e menor
alimentação hídrica. Sobre este porta-enxerto, na região, a experiência é escassa, mas
a tendência para a vinha ocupar terrenos daquele tipo e na iminência do aquecimento
global e escassez de água, será de experimentar este porta-enxerto, bom “colonizador”
do terreno. Fica, no entanto, uma advertência no que respeita ao uso do 140 Ru: deverão
ser usados “enxertos-prontos” e não deverá admitir-se a tradicional técnica de enxertia
no local definitivo – neste caso, origina mais insucesso e consequente heterogeneidade
na vinha, e prolongado período de carência.
Volvidos vinte séculos, a região dos Vinhos Verdes retornou à vinha estreme, agora como
36
As castas
dominante, tomando então maior relevância no âmbito das diferentes actividades agrárias. A esta profunda transformação não terá sido estranho o encepamento nas diferentes
épocas. Em tempos mais recuados, os tintos da região eram abertos, pouco carregados,
portanto, oriundos de castas não tintureiras. Tal verificou-se por exemplo no Alto Minho,
em terras hoje de Alvarinho. Entretanto, a principal tintureira nacional, a casta Vinhão,
tornou-se rainha entre os tintos dos Vinhos Verdes e a sua imagem de marca. Também outras castas são cultivadas, variando a sua importância dentre as sub-regiões. O Brancelho
impôs-se no alto Minho, Padeiro em Terras de Basto, e o Espadeiro no Vale do Sousa. São
também cultivados, em várias sub-regiões, Azal e Amaral, frequentemente tomadas como
sendo a mesma casta, mas, de facto, são castas diferentes. Até passado recente, houve predomínio dos tintos. O avanço da vinha estreme sobre as bordaduras tem sido acompanhado da mudança para brancos, sentido contrário à tendência da época, pelo mundo vitícola
em geral. Assiste-se, pois, ao re-questionar do encepamento com consagração em tintos
apenas da casta Vinhão (também cultivada no Douro, aí designada Sousão). Das castas
não autóctones com interesse cultural, será de referir Alfrocheiro e Touriga Nacional.
Pela relevância actual, trataremos com mais detalhe as castas brancas, apoiandonos fundamentalmente em texto já publicado (Castro e Mendes, 2001). É sabido que a
casta é um factor decisivo na qualidade de um vinho. A sua adaptação encerra, com os
factores edafo-climáticos, a obtenção do produto cuja genuidade e “tipicidade” o Homem determinou. Neste contexto encontramos o segredo da diversidade do Vinho Verde. A frescura do aroma atravessa um quase infindável número de descritores, desde os
florais aos frutados, e o sabor provoca-nos os sentidos. As castas também ajudam a criar
diversidade, e nos vinhos verdes são várias e diferenciadas, mas com origem e habitat
próprios, ora restritos na área de cultura, ora mais eclécticas.
As castas de maior importância actualmente em cultura na região dividem-se em 3 tipos:
(1) Castas genuínas da região: Azal Branco, cultivada em grande parte da região
com predomínio nas bacias do Tâmega e do Sousa; e Avesso, localizada sobretudo no
concelho de Baião.
(2) Castas do Noroeste Peninsular: Alvarinho, Loureiro e Trajadura.
(3) Casta Nacional climaticamente mais plástica: Arinto (sin. Pedernã).
Se é verdade que as castas constituem um pilar fundamental para a qualidade dos vinhos,
não é menos verdade que dois factores condicionam os seus produtos finais: a eficaz gestão
da vegetação, sobretudo através das intervenções em verde, e a oportunidade da vindima.
Loureiro – será a casta branca economicamente mais importante dos Vinhos Verdes.
O aspecto dourado do cacho, quando as uvas têm grande qualidade e estão bem maduras,
terá dado o nome à casta. É uma casta de porte erecto e de vigor médio. No abrolhamento
é temporã e na maturação intermédia, a seguir à Arinto e Avesso, mas muito antes da Azal.
É uma casta naturalmente fértil e produtiva, denotando-se variabilidade clonal, nomeadamente ao nível aromático. O sistema cultural, o “terroir” e o porta-enxerto usado
condicionam o seu comportamento, a relação entre o rendimento e a qualidade. Quando a
produção é excessiva, não amadurece bem, a acidez é alta e o aroma varietal não se revela
escoriose, ao oídio e podridão dos cachos, e mesmo aos ácaros, mas menos ao míldio. O
excesso de vigor aumenta naturalmente a ocorrência daquelas doenças e provoca frequentemente fasciação e divisão nos sarmentos. Este aspecto evidencia-se de modo variado em
diferentes clones e, por vezes, é confundido com sintomatologia de vírus. O seu habitat
parece ser mais o litoral do que o interior, destacando-se a sub-região Lima.
Dentre as características genéticas desta casta, como mais negativa e com implicações na escolha do sistema de condução é a sua sensibilidade à desnoca. Assim, recomenda-se o recurso a arames pareados, se a vegetação é ascendente e, para a vegetação
“retombante”, o recurso a unidades de maior carga e flexibilizando a zona de origem dos
sarmento. É aromaticamente a casta de Vinhos Verdes de maior expressão. Alvarinho – ex libris dos brancos dos Vinhos Verdes e das maiores referências qualitativas da Ibéria, tem o seu habitat de excelência em Monção e Melgaço. No entanto,
ultimamente tem-se expandido por toda a região e mesmo no país. Em França brevemente fará parte do seu encepamento oficial, havendo já um clone certificado. É fértil,
mas pouco produtiva, pois os seus cachos são de dimensões reduzidas. Exige poda longa e os sistemas de condução devem permitir suficiente alongamento dos sarmentos, já
que os seus entrenós são de grande dimensão. O aspecto visual da folhagem faz lembrar
alguns híbridos produtores directos, sugerindo também familiaridade com a casta francesa Petit Manseng. As uvas, quando bem maduras, atingem níveis elevados de açúcar,
mantendo simultaneamente elevada acidez. É uma casta de tripla aptidão, já que, embora esteja consagrada na produção de vinhos tranquilos – os mais distintos da região –,
tem também revelado excelentes resultados em espumantes e aguardentes.
Trajadura – casta temporã de ciclo curto. É, das 6 castas aqui consideradas, a última
a abrolhar e a primeira a amadurecer. É vigorosa e com entrenós muito curtos. É sensível
ao míldio e sobretudo à podridão. Logo na Primavera, mesmo antes da floração, por vezes
atinge grande sensibilidade a esta doença, ora na zona apical das inflorescências, ora no
pedúnculo, é também sensível ao desavinho. De um modo geral, os cachos são compactos, as películas dos bagos são finas e a polpa, rija, frequentemente racha e apodrece. Estas
características recomendam que a selecção incida sobre clones de cachos mais “frouxos”,
com vista à melhor maturação, sanidade por cacho e em todo o bago. Embora sendo uma
casta temporã, para atingir qualidade as suas uvas têm de estar bem maduras, tornandose por vezes rosadas, transmitindo estes tons aos vinhos. Se as uvas não atingem boa maturação, os mostos ficam herbáceos. É, em todo o caso, uma casta pouco ácida quando as
uvas estão bem maduras, mas sempre bastante neutra. Esta casta acompanha tradicionalmente a nobre Alvarinho, mas é essencialmente uma casta de lote. Tem a vantagem de
ser temporã, mas logo que se inicia a maturação também se desenvolve a podridão. Não
é uma casta de aroma sublime, mas acompanha outras castas. Faz contraponto em muito
vinhos da região, porque a sua baixa acidez pode equilibrar a maioria das outras castas.
Azal – casta de ciclo longo. Está em oposição à Trajadura, sendo a primeira a abrolhar e a última a amadurecer, caindo a vindima frequentemente em período de chuvas.
É uma casta vigorosa e de hábitos muito “selvagens”. Tem tendência para rebentações
37
a viticultura da região dos vinhos verdes
na sua plenitude. Não suporta stress hídrico, nem pobreza de solo. É uma casta sensível à
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múltiplas, frequentemente trigémeos, com a agravante de enrolar e ainda originar netas.
As intervenções em verde são imprescindíveis (desladroamento, desponta, orientação,
penteia, desfolha) e exige um rosário de contínuas intervenções. De facto, se não houver
criteriosas e aturadas intervenções em verde, o microclima ao nível dos cachos torna-se
adverso à maturação, já de si tardia, e favorável à ocorrência de doenças. Mas é uma casta
de grande rentabilidade. Os vinhos da casta Azal, mesmo com boa maturação, têm uma
acidez muito elevada. Se, porém, as decisões culturais não forem as mais adequadas
em ordem à criação de um microclima favorável, têm deficiente maturação. O previsível
aquecimento global e a tendência para a escassez de frescura dos vinhos poderão fazer
da Azal uma casta de futuro.
Avesso – casta de grande rusticidade. As cepas, mesmo abandonadas, sobrevivem
e são recuperadas facilmente! É uma casta muito vigorosa, com um desenvolvimento
muito rápido da sua estrutura permanente (troncos, braços, …). Tem a folha distinta
das restantes castas – glabra (sem pêlos) e em forma de rim, mais larga que comprida e
com dentes compridos. As extremidades são acobreadas e a folhagem brilhante. É uma
casta muito sensível ao míldio e também à podridão. É capaz de atingir excelentes maturações, mas, quando amadurece mal, os vinhos são neutros, muito desequilibrados e
evoluem negativa e rapidamente. Sem dúvida que o seu solar é Baião, podendo originar
bons vinhos nalgumas encostas do Tâmega e Sousa.
Arinto/Pedernã – a casta da região mais adaptada a diferentes condições ecológicas:
vegeta bem e produz uvas de qualidade, desde o Douro e Alentejo, até ao Pico e Vinhos
Verdes, passando pelo Ribatejo, Estremadura ou Bairrada. Trata-se de uma casta vigorosa e de porte erecto, sensível ao míldio e podridão, também atreita à cigarrinha verde. É
uma casta de baixa fertilidade, mas na região dos Vinhos Verdes dá boa produtividade.
É muito moldável e naturalmente de fácil condução. A densidade de sarmentos, ainda
que condicionada pela carga à poda, é naturalmente moderada e conducente a um bom
microclima, capaz de propiciar um coberto vegetal eficaz, captador de energia radiante. Adapta-se facilmente às formas de condução pluriespacial, revelando aí as maiores
potencialidades: rendimento, qualidade e sanidade. Sendo uma casta bem adaptada a
diferentes «terroirs», é na encosta do Sousa e do Tâmega que as suas potencialidades
melhor se exprimem.
a viticultura da região dos vinhos verdes
39
Porque a prosperidade de uma região se maximiza quando voltada para o mundo que a
rodeia, libertando-se da redoma, sempre buscando esperança, citamos, também como
homenagem, a quem de modo tão magnífico soube cantar o Douro:
Vamos ressuscitados, colher flores!
Flores de giesta e tojo, oiro sem preço…
Vamos àquele cabeço
Engrinaldar a Esperança!
Temos a Primavera na lembrança;
Temos calor no corpo entorpecido;
Vamos! Depressa!
A Vida recomeça!
A Seiva acorda, nada está perdido.
Miguel Torga
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a viticultura da região dos vinhos verdes
41
42
43
A viticultura da
Região do Douro
Dos primórdios
às grandes mudanças
no virar do século
Nuno Magalhães
Nuno Magalhães Natural do Porto, licenciou-se em Engenharia Agronómica pelo
Instituto Superior de Agronomia (Universidade Técnica de Lisboa). É Professor Emérito
da Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro onde se doutorou em Engenharia
Agrícola e leccionou a maior parte da sua vida nas áreas da viticultura e da enologia.
Desde 2000 que integra a Comissão Organizadora do International Master of Science
Vintage, do programa Erasmus/Mundus.
Uma vida incansável de profunda dedicação à vinha e ao vinho, é uma referência
incontornável do Douro – seu espaço por excelência de experimentação – região e causa que
tem projectado em todo o mundo. Funções de consultoria a empresas privadas do sector
vitivinícola permitiram-lhe realizar trabalho de Norte a Sul do país (dos Vinhos Verdes ao
Algarve) e mesmo no estrangeiro, colocando numa posição privilegiada de conhecimento
a viticultura nacional e internacional. Em 2008, publicou o Tratado de Viticultura – A Videira,
a Vinha, o Terroir que, em 2010, obteve o prémio da melhor obra do ano sobre viticultura,
atribuído pelo Office International de la Vigne et du Vin. Em Maio de 2010 recebeu do Senhor
Presidente da República a Comenda de Ordem de Mérito Agrícola.
44
A diversidade da paisagem do Douro
actual. Diferentes formas de sistematização
da encosta, tradicionais e modernas
encaixam-se no matagal mediterrânico
original. Vale do Rio Pinhão
des marcos responsáveis por alterações profundas que ocorreram quer no sistema produtivo, quer na paisagem, tendo tido o segundo, relativamente recente e ainda em curso, um
impacto mais significativo do que o primeiro, sobre grandes modificações, a nível global.
Apesar da cultura da vinha ter já visibilidade na Alta Idade Média – nos extensos
domínios agrícolas do Convento de Cister, instalados na sub-região agora designada por
Da Idade Média
à crise filoxérica
Baixo Corgo –, é a partir dos finais do século XVII, quando se dão as primeiras exportações de Vinho do Porto para Inglaterra, as quais posteriormente crescem exponencialmente até um pouco antes da Demarcação Pombalina da Região do Douro (1756), que a
viticultura começa a assumir um carácter quase monocultural e são traçados os contornos técnicos e visuais ainda hoje globalmente subsistentes.
Independentemente das perturbações económicas e comerciais que ciclicamente
sempre afectaram o sector vitivinícola da Região, o primeiro marco de mudança corresponde a uma grande crise registada na segunda metade do século XIX, por invasões,
em catadupa, de doenças e pragas oriundas do continente Americano. Primeiro o oídio
(1851), depois a antracnose, como que indiciam a tragédia concretizada pela total destruição dos vinhedos pela filoxera, cujos primeiros sinais de alerta foram dados em 1872,
mas com rápida progressão a partir de então, apesar de o primeiro foco se ter registado
anteriormente, na Quinta dos Montes, em Gouvinhas, no Cima Corgo, em 18631. Finalmente o míldio, introduzido na Região em 1893, ajudou à catástrofe. É uma etapa dramática, que se prolonga por mais de vinte anos, até à quase exaustão social e económica
da região, mas à qual a tenacidade do Duriense põe termo, após várias soluções frustradas, ao introduzir o enxofre e o cobre no combate às doenças e o recurso à plantação
de espécies de videiras americanas, sobre as quais foram enxertadas as castas locais da
espécie europeia. Há que destacar, pela aplicação desta técnica que ressuscitou o Douro,
a figura de Joaquim Pinheiro de Azevedo Leite, de Provezende, a partir de experiências
de enxertia em vinhas da zona de Vale de Mendiz2. Ao reinstalar as vinhas, altera-se a
configuração da paisagem e, também, embora provavelmente com pouco significado, o
comportamento da videira e consequentes reflexos na qualidade dos vinhos.
No período pré-filoxérico, o terreno das encostas era sistematizado segundo calços
separados por pequenos muros de pedra seca, em cujos estreitos terraços, ou geios, se
procedia à plantação de uma ou duas fiadas de videiras com tutores individuais. O acesso entre calços era feito por pequenas escadas, também em pedra de xisto, incrustadas
nos próprios muros ou com pedras salientes. A vinha era então instalada, após “arroteia”
para retirar os matos, a que se seguia o “desmonte” ou “rompimento”, para construção
de calços e geios, e o “saibramento” que consistia na abertura de valados para criar solo
e aí instalar as videiras. Todo este trabalho era feito a poder de braço; “ aberta a penedia a
guilho, e de alvião ou de marreta em punho… o ferro vai penetrando até fender a laje, que
depois de moída, desfeita em cascalho miúdo, compõe a terra dos geios… as mulheres
carregam as lajes aos pedreiros para construção dos muros… ajoeira-se a terra nas pás,
cava-se a folha larga e assim vagarosamente o valado avança…”3. “…levantadas as paredes dos geios, que impedem os danos calamitosos da enxurrada, e evitam o desgaste
lento e constante da erosão, é do xisto da serra que o cavador mói e cria o chão fértil
em que planta a vinha”4. É de referir que, mais tarde, aquando da construção das vinhas
45
a viticultura da região do douro
Na já longa História da Vitivinicultura Duriense, pode-se considerar, grosso modo, dois gran-
Notas históricas
da viticultura duriense
anterior a meados
do séc. xx
46
À esquerda Trabalhos de “saibramento”
para instalação da vinha, início de Séc. XX
mecanizadas a partir dos anos 70 do século XX, apesar dos meios e conhecimentos téc-
À direita A poda, início de Séc. XX
devida atenção aos problemas da erosão e respectivas defesas, contrastando com o que
Fotografias de Álvaro Cardoso de Azevedo
(Casa Alvão). Colecção do Instituto dos
Vinhos do Douro e do Porto, IP
outrora era respeitado e executado, pelo conhecimento empírico acumulado ao longo de
nicos serem supostamente mais avançados, nem sempre se deu, pelo menos de início, a
muitas gerações. “Em tudo o que é novo ou inovatório, apesar de representar um avanço
para o desenvolvimento, raramente é tomada a atitude humilde de não esquecer o que
de correcto foi feito pelos “antiquados” antepassados…!”5 A videira, “unhada” de “péfranco”, pois não necessitava de porta-enxerto, já que a filoxera não havia ainda chegado,
era conduzida em forma livre, apenas amparada por tutores, designados por “pau de
espera”; o mais junto ao tronco da cepa, o “pau do meio ou de forrar”, e o “pau do fim”6.
É, contudo, nos finais do século XIX, simultaneamente com a luta à crise que assolou a
Região, concretizada em particular pela plantação com bacelo americano, pela enxertia
e pela utilização dos tratamentos contra as doenças entretanto chegadas, que surgem
as primeiras vinhas “embardadas” com esteios de xisto – provenientes das pedreiras
de Vila Nova de Foz Côa, que então iniciaram a sua exploração –, para suportarem duas
ou três fiadas de arame por onde as varas e a folhagem das videiras eram conduzidas,
no decorrer do seu ciclo vegetativo7. A densidade de plantação era, então, relativamente elevada (quando reportada à superfície do geio), pelo que o vigor e a produtividade
unitária eram reduzidos. Fertilizantes químicos não existiam ainda, sendo aplicados
pontualmente, para a nutrição da videira, estrumes, ou enterrado o tremoço. Os tratamentos fitossanitários não eram necessários, até ao aparecimento do oídio, em 1851, e,
mais tarde, do míldio, em 1893.
As castas, em grande número (embora Vila Maior, 1876, faça referência apenas a 20
tintas e 8 brancas, como predominantes), já que o clima da Região do Douro, quente
e seco, permite, mais cedo ou mais tarde, a maturação de todas elas, encontravam-se
aleatoriamente misturadas na vinha. Os granjeios, quer na videira, quer no solo para
a viticultura da região do douro
47
À esquerda A “escava” das videiras
com enxada, início de Séc. XX
controlo das ervas infestantes, eram executados manualmente ou com ajuda de mu-
À direita A “enxofra” — aplicação de
enxofre para combate ao oídio, ainda
por meios manuais, início de Séc. XX
designada por “desmadeiramento”, para permitir, de seguida, a execução da poda,
Fotografias de Álvaro Cardoso de Azevedo
(Casa Alvão). Colecção do Instituto dos
Vinhos do Douro e do Porto, IP
ares. O primeiro trabalho na vinha consistia em retirar os tutores à videira, operação
também designada por “chapota”, na altura, com uma “podoa”, cortando e traçando
as varas segundo a medida adequada à condução. Entretanto, ainda no período do
repouso vegetativo, era a “escava de água”, com auxílio de enxadas de ganchos, para
retirar a terra de junto das cepas e permitir uma melhor infiltração das águas das chuvas, bem como, após o aparecimento da filoxera, cortar as raízes que nasciam acima da
zona de enxertia e facilmente atacáveis pelo insecto. Também neste mesmo período,
havia que replantar as falhas com bacelo, neste caso com videiras Europeias, ou por
mergulhia, de uma vara ou da cepa inteira, esta designada por “lançar de cabeça” ou
“camear”. Após a rebentação da vegetação, na Primavera, era executada uma primeira
“erguida” dos pâmpanos, a “levanta” e, mais tarde, uma segunda, a “apensa” ou “arregaça”, a fim de endireitar os tutores para que os cachos não tocassem no chão. Ainda
durante a fase activa da vinha, no solo eram feitas mobilizações para combate às ervas
infestantes, também com recurso a enxadas: primeiro, a “cava”, para dispor o perfil do
terreno uniforme ou, por vezes, também simultaneamente, para incorporar o tremoço
como fertilizante verde; depois, a “redra” ou “cava rasa” ou “arrenda”, para combate às
infestantes de Primavera-Verão8.
Apesar do trabalho árduo, quer na instalação da vinha, quer no seu granjeio, e dos
conhecimentos, ditos técnicos, serem rudimentares, o viticultor comunga sabiamente
com a Natureza. Este estado de equilíbrio “Meio – Videira – Homem” constitui o ecossistema-base para a produção dos “vinhos finos” de então9. Aliás, este “estado de graça”
vem a manter-se posteriormente, já na fase pós-filoxérica, nas vinhas tradicionais ainda
não mecanizáveis então instaladas, até aos dias de hoje, salvo introdução de algumas
técnicas novas, que oportunamente se referirão.
A crise provocada pela filoxera e pelas doenças que destruíram os vinhedos constitui um
48
Da crise filoxérica aos anos
60/70 do século XX
primeiro marco de mudança da viticultura duriense, ao registar-se algumas alterações,
mais ou menos significativas, no cultivo da vinha e no plano geográfico, na economia
regional, nas relações sociais e na transferência da propriedade (novos proprietários acederam à posse de quintas, tornando-se viticultores), “…mantendo-se o Douro, no entanto, agarrado a muitos elementos da tradição…”10. Contudo, é durante este mesmo período que o comboio chega ao Douro (em 1879, à Régua; em 1880, ao Pinhão), carregando o
sulfureto de carbono para o combate à filoxera, assim como outros produtos, facilitando
o êxodo de jornaleiros e de viticultores para o Porto, dos quais alguns emigraram para o
Brasil, de onde, mais tarde, muito dinheiro aí ganho viria a ser aplicado na reconstituição dos vinhedos, já nos inícios do século XX11.
Relativamente às mudanças no plano vitícola, as primeiras dizem respeito, naturalmente, à introdução de porta-enxertos resistentes à filoxera, e à necessidade do recurso
à enxertia, técnica que anteriormente se realizava, muito pontualmente, no mundo da
fruticultura em geral, mas nunca com aquele fim. Cada videira passa, então, a ser constituída por dois biontes de características distintas, fornecendo, um, a parte radicular;
outro, a parte aérea e respectiva frutificação. Dependendo da adaptação de cada variedade de porta-enxerto ao solo e à influência que exerce sobre o comportamento da casta,
assim esta já não é dependente apenas dela própria e do meio onde está inserida, para
passar a ser influenciada por mais um factor, neste caso biológico, o porta-enxerto, na
altura o montícola (Rupestris du Lot), que se vai reflectir na sua expressão vegetativa, na
produtividade e nas características qualitativas do mosto. Um traço comum, contudo,
mantém-se: é elevado o número de castas (embora agora sujeito a uma nova escolha ou
selecção), promíscua e aleatoriamente instaladas em cada parcela de vinha.
Uma segunda alteração, embora ainda decorrente do final do período anterior, consolida-se em definitivo: o combate ao oídio e ao míldio, permanecendo ainda os mesmos
produtos – o enxofre, para a primeira; e a calda bordalesa, com base no cobre, para a segunda –, bem como a forma da sua aplicação, por aparelhos manuais, geralmente a dorso
de homem. Devido à persistência de acção daqueles produtos ser reduzida e por serem
facilmente arrastados pelas chuvas, o número de tratamentos é frequentemente elevado
e nem sempre com absoluta eficácia. Por outro lado, embora o seu grau de toxicidade ou
de poluição seja reduzido, não deixa de haver alguma acumulação de resíduos de enxofre
e de cobre, traduzindo-se de forma negativa, nomeadamente em solos de reacção ácida.
A condução da vinha sofre, igualmente, alterações em relação à praticada no período anterior, quando as videiras eram conduzidas em forma livre, com uma vara e uma
espera, apoiadas por tutores. Pelo embardamento com esteios de xisto e arames, as videiras dispõem-se, então, em fiadas (bardos), para facilitar a passagem de homens e de
animais de trabalho, na realização das diversas operações culturais. Mas neste segundo
período, já no século XX, esta forma de estrutura passa a ser generalizada, sendo a videira conduzida geralmente em Guyot duplo, com duas varas e duas esperas, para renovação da poda seguinte ou, outras vezes, quando o solo é mais pobre ou em situações
mais “cálidas”, em poda “torneada”, comportando a videira dois, três ou mais braços, na
extremidade de cada qual são talhados talões com dois a três olhos (gomos ou gemas).
a viticultura da região do douro
49
Socalcos pré-filoxéricos replantados,
com muros baixos arredondados.
Quinta do Noval, Alijó
A forma de sistematização do terreno da encosta sofre, também, alterações. Após vencida a crise filoxérica, as novas plantações são feitas com surribas um pouco mais fundas; os
socalcos pré-filoxéricos, de muros baixos e tortuosos, de geios estreitos e horizontais, são
substituídos por outros, mais largos e com alguma inclinação, de muros sólidos, altos e rectilíneos12. Um pouco mais tarde, estes irão dar lugar, provavelmente por alguma escassez de
mão-de-obra ou altos custos, a terraços com declive a acompanhar de perto o da encosta,
separados por pequenos muros para arrumação de pedra e para reter os escorrimentos das
águas pluviais, contendo aqueles 20, 30 ou mais fiadas de videiras. Em qualquer dos casos, as
videiras dispõem-se segundo densidades elevadas, conforme as curvas de nível do terreno.
Apesar de os antigos calços terem dado lugar a terraços mais largos e mais inclinados, separados por muros comportando, cada, um número muito superior de videiras, o
espaçamento entre elas não deixa de ser muito semelhante (4 x 6 ou 7 palmos, de 22 cm,
segundo as bitolas e designação regional), pelo que a expansão vegetativa e a capacidade produtiva de cada cepa também não deve ter diferido muito.
Quando comparados os dois sistemas, o pré e o pós-filoxérico, não se pode deixar de registar alterações, mais ou menos significativas, quer nas formas de armação do terreno, quer
na forma de condução e técnicas culturais, quer, ainda, a nível da paisagem. Contudo, sob o
ponto de vista socioeconómico e do comportamento das videiras e seu potencial produtivo
e qualitativo, não se registam alterações tão importantes como, à partida, seria de pensar.
50
52
Socalcos pós-filoxéricos
com muros rectilíneos.
Quinta de La Rosa, Sabrosa
Relativamente ao primeiro ponto, os duríssimos trabalhos de saibramento, para
instalação da vinha, continuam a ser realizados integralmente por meios manuais, à profundidade de 5 a 6 palmos (de 22 cm), exactamente da mesma forma e com os mesmos
meios de antigamente: “…ranchadas de Galegos saibram as encostas de caras acima a ferro
e fogo”13. Também se recuperaram alguns calços antigos, segundo surriba de través, designada por “chorandar”. A dureza do trabalho é extensiva a todas as operações culturais
subsequentes, as quais são acrescidas de mais alguns trabalhos, tais como a enxertia, a
erguida e ampara dos pâmpanos aos arames, os tratamentos fitossanitários e os arranjos
ao embardamento (“arriosta”). Os salários permanecem baixos, os horários de sol a sol,
o transporte das uvas em cestos “vindimos” de 70 kg, às costas dos homens, e as 4 horas
nocturnas de pisa no lagar mantêm-se, as condições de alimentação, alojamento e higiene, nos cardenhos, permanecem péssimas. Parece, pois, não ter havido grande distinção,
em termos de condições de trabalho, em geral, entre os períodos pré e pós-filoxérico. O
mesmo poderá ser sugerido quanto à estrutura social e fundiária. A população duriense
continua a ser constituída essencialmente por pequenos proprietários, já que os donos
de terras maiores são, no geral, absentistas, mas sobretudo por rurais jornaleiros e, ainda,
barqueiros, marinheiros, pescadores e profissionais de vários ofícios. E há, ainda, a considerar outros grupos profissionais de grande importância nessas épocas: os galegos, na
Página anterior Socalcos pré-filoxéricos
replantados e geias pós-filoxéricas.
Vale do Rio Torto
construção dos socalcos e instalação das vinhas, e as “rogas”, constituídas por pessoal contratado geralmente das zonas serranas das Beiras e do Minho, que se instalavam nos cardenhos das quintas do Douro, durante o período das vindimas. Sob orientação do rogador
a viticultura da região do douro
53
Calços pré- filoxéricos, à esquerda,
e “geias” pós-filoxéricas, à direita.
Vale do Rio Torto
e do feitor da Quinta que marcava, com uma navalha, num pau de marmeleiro, o número
de cestos entregues. As mulheres vindimavam, as crianças acarretavam as uvas, em cestas,
despejando-as nos “cestos vindimos” que os homens transportavam às costas, socalcos
acima, ou abaixo, para as dornas que os carros de bois conduziam até à adega. Após um
dia inteiro de trabalho, seguia-se a “meia noite” de lagar, em que, durante quatro horas, os
homens ao ritmo do “marcador” e depois ao som da concertina, cortavam o lagar em linha,
centímetro a centímetro pisavam aleatoriamente as uvas.
Depois de caída a folha da videira, novas rogas chegavam ao Douro, estas constituídas apenas por homens válidos, para escavarem junto das cepas e reporem falhas de
videiras mortas. Depois, para a realização da poda, eram contratados ranchos de pessoal
especializado, oriundo de terras de tradição afamada, protegidos do frio invernal por
mantas, capotes e “crossas” de palha14.
As “rogas” mantiveram-se nestes moldes, para a realização da vindima e granjeios da
vinha, até aos anos 60 do século XX, enquanto as equipas de podadores das tais “terras afamadas” subsistiram, embora com cada vez menos representatividade, até aos nossos dias.
Quanto à vinha ou à videira, em si, se os custos de produção se agravam por incorporação de um maior número de operações, já o reflexo das novas condições de cultivo,
sobre o potencial produtivo e qualitativo, não terá tido grande significado. Se as castas
de videira deixaram de ser plantadas em “pé franco”, para serem enxertadas sobre portaenxertos de variedades americanas resistentes à filoxera, predominando então o Montícola e algum Aramon e Ripárias, o seu vigor e produtividade ficou mais reduzido. O tipo
de poda e o número de gomos deixados na poda não terão diferido muito, já que este
54
é condicionado, neste caso, sobretudo pelas características do solo e do clima, as quais
não sofreram modificações de monta, neste período. O vigor, produtividade individual e
condições de maturação, também não terão tido alterações significativas por influência
da densidade de plantação, a qual, reportada à superfície ou volume útil do solo, não
foi muito distinta entre os dois sistemas de armação do terreno. A altura e estrutura da
cepa, como uma das bases fundamentais para a resistência à secura em viticultura de
sequeiro, basicamente, são semelhantes.
Ou seja, o referido equilíbrio entre o Meio, a Videira e o Homem não terá sido molestado, pelo que as características dos mostos e dos vinhos também se terão mantido
muito semelhantes.
Um segundo marco na História da Região do Douro, responsável por alterações impor-
as mudanças
ao virar do séc. xx
tantes na sua vitivinicultura, regista-se cerca de um século após o primeiro. Apesar de
não corresponder a uma crise dramática como foi esta, não deixou de ter impactos profundos, ainda hoje em curso, que alteraram, de forma muito mais radical, as técnicas e
soluções vitivinícolas, a paisagem e o panorama socioeconómico da Região.
Convém, no entanto, referir que essas importantes e significativas modificações, antes
O embrião — das grandes
transformações à fase
embrionária
de emergirem quase bruscamente, resultaram, quer da diminuição de mão-de-obra que
gradualmente se vinha sentindo, quer das alterações da conjuntura do meio rural – verificadas não só no Douro, como também em todo o País, por razões socioeconómicas e
políticas –, quer da consciencialização, por parte de alguns Homens do Douro, e do próprio
Estado ao criar estruturas institucionais na Região, de que havia necessidade de mudança
e, para tal, haviam já iniciado estudos e acções para que ela viesse a concretizar-se.
Nesse sentido, o Estado Novo, preocupando-se com a protecção e valorização dos
vinhedos, e segundo o seu modelo Corporativo, cria, em 1932, a Casa do Douro, como
uma Federação dos Viticultores da Região do Douro, então tutelada pelo Ministério da
Economia, o Grémio dos Exportadores de Vinho do Porto – tendo como uma das suas
principais funções a fixação dos preços de vindima –, e o Instituto do Vinho do Porto,
tutelado pelo Ministério do Comércio15. Anteriormente, em 1931, havia sido criada a Estação Vitivinícola da Região Duriense, através da fusão do Posto Agrário do Pinhão com a
Escola Agrícola Móvel da Região Duriense e a Escola Agrícola Macedo Pinto, de Tabuaço.
Até 1958, a Estação era vulgarmente conhecida por Posto Vitivinícola, recebendo mais
tarde, em 1979, a designação de Centro de Estudos Vitivinícolas do Douro. Era missão
da Estação Vitivinícola promover estudos e ensaios para melhoria da viticultura, fazer
formação técnica nas áreas da vinha e do vinho, dar assistência técnica no âmbito da
viticultura e prestar informações, e ainda proceder a análises de mosto. Contudo, apesar
da justificação e bondade dos objectivos, o Estado nunca concedeu à Estação, até meados da década de 70, os meios humanos e materiais necessários para que ela pudesse
promover as acções para que havia sido incumbida. Não pode, no entanto, deixar de ser
referido o facto de que os meios de acesso e o subdesenvolvimento regional tenham
constituído pretexto para exercer uma maior pressão junto do Governo, no sentido de
captar verbas e promover o desenvolvimento de estudos e correspondente análise de
resultados, tão necessária para a sua transferência prática para o campo. Assim, infelizmente, a esmagadora maioria dos dados colhidos, durante décadas, com grande dedicação e esforço pelos poucos técnicos da Estação, nunca foram trabalhados, tendo-se
perdido nos depósitos das instituições centralizadas na capital.
Durante este período embrionário das grandes transformações que viriam mais tarde a surgir na Região do Douro, são de referir acções e personalidades que, então, muito
contribuíram para que aquelas tomassem corpo.
Mas voltando ainda um pouco mais atrás, e para estabelecer uma corrente histórica
da vitivinicultura desde meados do século XIX até aos nossos dias, não podem deixar
de ser referenciados, de forma muito genérica e sumária, trabalhos importantes que,
nos finais daquele século e início do século XX, foram desenvolvidos e publicados, particularmente no âmbito do levantamento de castas cultivadas e algumas das suas características botânicas, ampelográficas e culturais, nomeadamente, de Pinto de Menezes
e de Marques de Carvalho, entre outros, publicados nos Boletins da Direcção Geral de
Agricultura; em “O Portugal vitivinícola. Estudos sobre a Ampelografia e o valor enológico das principais castas de Portugal”, de Cincinnato da Costa; os promovidos pela
Comissão Anti-Filoxera; e, sobre as técnicas de viticultura do Visconde de Villa-Maior,
no seu Manual de Viticultura Prática. Todos estes trabalhos não deixam de constituir
um certo pioneirismo para os alicerces da viticultura moderna, mesmo que assentes na
cultura empírica ou abordados segundo as técnicas então disponíveis.
Uma primeira acção de referência e de grande importância para o embrião de desenvolvimento da Região, posta em prática pelo Estado Novo, diz respeito ao seu levantamento físico e vitícola, através do Cadastro realizado pela Casa do Douro, iniciado em 1937. O
cadastro começa, então, a ser construído através de 6 brigadas, constituídas por um Engenheiro Agrónomo, um Regente Agrícola, um Classificador de castas e um anotador, as
quais, durante anos, percorreram toda a Região, palmo a palmo, recolhendo de cada parcela de vinha, nomeadamente, os seguintes elementos: identificação geográfica da parcela,
nome e residência do proprietário, limites da propriedade, natureza do terreno, sua inclinação e altitude média, espaçamento entre videiras, estado geral das vinhas e aspectos da
sua condução e cultivo, castas cultivadas, percentagem de falhas e, ainda, outras informações consideradas úteis. Constituiu um trabalho fundamental para o levantamento e consequente gestão e zonagem da Região, e a tarefa gigantesca de cadastrar minuciosamente
cerca de 30.000 viticultores, quase 100.000 parcelas e mais de 200 milhões de cepas…!
Uma outra questão fundamental que então se pôs foi a de estabelecer os quantitativos de mosto a beneficiar com aguardente vínica, para a sua transformação em Vinho
do Porto, e também os correspondentes critérios qualitativos. De facto, sendo a Região
do Douro tão heterogénea em relevo, clima e distribuição de castas, as potencialidades
para produzir melhores ou menos bons vinhos são distintas, de encosta para encosta,
entre margens do mesmo rio ou ribeira, entre diferentes cotas e exposições. De início,
os quantitativos de mosto a beneficiar não eram limitados. Solicitados os pedidos de
55
a viticultura da região do douro
contribuído para a dificuldade de fixação de técnicos na Região, o que, a verificar-se, teria
56
benefício, a Casa do Douro apenas os registava, funcionando depois as leis de oferta e
procura do mercado. Tal situação criava, com certa frequência injustiças e originava insuficiente controlo, já que nem sempre a quantidade de mosto beneficiado coincidia
com a procura de mercado e, por outro lado, mostos de distinto nível qualitativo eram,
por vezes, valorizados de igual modo. Em 1938, a Casa do Douro dá um primeiro passo
para minimizar o problema, eliminando os pedidos de benefício para qualquer uma das
seguintes situações: vinhas em cotas abaixo dos 70 m ou acima dos 500 m, terrenos de
areia, várzea ou aluvião, ramadas e terrenos de granito ou de transição xisto/granito.
Posteriormente, em 1949, e já com base nos elementos cadastrais entretanto recolhidos
e na qualidade organoléptica reconhecida dos vinhos produzidos em diferentes locais,
e após trabalho minucioso de Moreira da Fonseca, que viria a ser presidente da Casa do
Douro, é publicado um método de zonagem, designado por Método de Pontuação de
Moreira da Fonseca, o qual classifica cada parcela por um dado número de pontos, baseados em 3 factores fundamentais: o solo, o clima e as condições culturais. Cada um
destes é, por sua vez, subdividido em 4 parâmetros: o solo, em natureza do terreno, grau
de pedregosidade, produtividade e declive; o clima, em localização, altitude, abrigo e
exposição; as condições culturais, em castas, forma de condução, idade das videiras e
compasso. A cada um destes 12 parâmetros era atribuído um gradiente de classificação
próprio. O somatório de todos eles dá a pontuação e classificação das parcelas e correspondente nível qualitativo potencial, a que é atribuída uma letra, designada por letra de
benefício. Assim, segundo uma escala crescente de qualidade e consequente remuneração, bem como o quantitativo de mosto autorizado a beneficiar, a letra F corresponde à
pontuação entre 201 a 400, a E entre 401 e 600 pontos, a D entre 601 e 800, a C entre 801 e
1000, a B entre 1001 e 1200 1, a A acima de 1.200 pontos. Este método, ainda hoje aplicado
para a distribuição do benefício, sofreu posteriormente sucessivas alterações, no sentido de o ajustar às realidades temporais.
A IV Brigada Móvel do Plantio da Vinha, integrada na Estação Vitivinícola da Região
Duriense, tinha, por sua vez, competências para autorização de novas plantações, reconversões e transferências de direitos de plantação de vinha, e fiscalização das mesmas. A
chefiar esta Brigada, surgem nomes de relevo que muito contribuíram para a vitivinicultura regional: António Morais Sarmento, de 1937 a 1939; Gastão Taborda, de 1945 a 1958;
a que se seguiu Armindo Martinho, quando tomou posse de Director da Estação através
da qual desenvolveu um trabalho notável de experimentação vitivinícola, de extensão e
de comunicação, pessoalmente deixando um importante legado, constituído por apontamentos e dados de ensaios, por ideias e por projectos para o desenvolvimento futuro
do Douro, trabalho esse que viria, de facto, a ser tomado em consideração por aqueles
que se lhe seguiram, já numa fase em que os meios humanos, técnicos e materiais eram
significativamente mais abundantes.
Das acções desenvolvidas pela Estação Vitivinícola, para além das funções que lhe
estavam confiadas e já referidas, é oportuno salientar algumas que mais impacto tiveram na viticultura.16
Em 1946 surge, com grande intensidade, uma anomalia nas videiras, a “maromba”, já
conhecida no século anterior, então designada por “gomosa” ou “mal negro”. Inicialmente
roses nas folhas, afectando fortemente a produtividade, por queda precoce de bagos ou pelo
seu enegrecimento e destruição posterior. Pelos estudos efectuados, então, por Humberto
Dias, da Estação Vitivinícola Nacional, este investigador veio a constatar não se tratar de uma
doença, mas sim de uma deficiência num micronutriente, o boro, a qual poderia ser completamente ultrapassada através de correcções ao solo. Na luta contra esta deficiência nutritiva,
assume a Estação, a partir de 1952, um papel determinante, tendo, como responsáveis, o seu
Director, Eduardo Serpa Pimentel, e Gastão Taborda. Esta acção de informação junto dos viticultores, sobre como tratar a “maromba”, terá tido como reflexo, segundo o último relatório
da Estação Vitivinícola (então já designada por Centro de Estudos Vitivinícolas do Douro –
CEVD), datado de 1979, um aumento de 30 a 35.000 pipas de vinho.17
Desde a resolução do problema da filoxera – através da plantação de variedades de
videira de origem americana resistentes à praga, para sua posterior enxertia com castas
europeias –, várias variedades de porta-enxertos foram utilizadas, muitas delas decorrentes da experiência francesa, onde a filoxera havia sido anteriormente introduzida,
bem como a respectiva solução, pelo recurso à enxertia. As dúvidas sobre quais daqueles
seriam os mais apropriados para as condições do Douro, contudo, subsistiam. No sentido do seu esclarecimento, entre 1946 e 1948, são instalados os primeiros campos de ensaio para o estudo do comportamento de porta-enxertos e do seu comportamento com
algumas das castas mais importantes cultivadas no Douro. Foram, então, cinco as parcelas instaladas, procurando representar as 3 sub-regiões em que o Douro se divide, de
acordo com as respectivas características climáticas, tendo sido duas no Baixo Corgo, em
Mesão Frio e Cever; duas no Cima Corgo, na Quinta de Santa Bárbara, pertencente à Estação Vitivinícola; e uma no Douro Superior, junto ao Pocinho. Cada campo experimental
incluía entre 14 a 16 porta-enxertos e 16 castas tintas. Relativamente aos primeiros, estava sempre presente a cultivar Rupestris du Lot – designada regionalmente por Montícola, como porta-enxerto mais correntemente utilizado na Região – e outros híbridos, de
Berlandieri x Rupestris e de Berlandieri x Riparia, que posteriormente caíram em desuso,
provavelmente por o primeiro ter demonstrado sempre melhor comportamento em todas as parcelas de ensaio e pelo surgimento de outros, mais rústicos e produtivos. As determinações, feitas durante cerca de 10 anos, consistiam na avaliação da percentagem de
videiras pegadas, em produção por complexo, número de cachos por videira e seu peso
médio, produção média por pé e peso da lenha de poda. Esta primeira abordagem ao estudo da problemática da adaptação dos porta-enxertos e seu reflexo no comportamento
das castas, além de ter constituído um contributo através de algumas conclusões importantes, sensibilizou os Serviços do Estado para a implementação de uma rede mais vasta
de ensaios de afinidade casta x porta-enxerto, a nível das principais regiões vinhateiras
do País, incluindo, naturalmente, a Região do Douro. Nesta foram instalados, no início
Baixo Corgo
dos anos 60, sete novos campos experimentais, distribuídos da mesma forma pelas três
Cima Corgo
sub-regiões, abordando 12 castas e 8 porta-enxertos, dos quais um na Quinta de Santa
Douro Superior
As sub-regiões da Região
Demarcada do Douro
Bárbara e outro numa cota mais alta, de clima mais fresco, em Sabrosa, para estudo de
castas brancas. Os campos são agora instalados segundo um delineamento experimental, a fim de permitir a análise estatística dos resultados, entregue a Machado Grácio,
57
a viticultura da região do douro
tomada como uma doença, a maromba provocava raquitismo na videira, deformações e clo-
58
da Estação Agronómica Nacional, sendo a condução e a colheita de dados, os quais incluíam já determinações enológicas para o mosto além das vitícolas, executadas pela
equipa de técnicos e auxiliares chefiada por Gastão Taborda. Durante cerca de 20 anos,
foram efectuados registos e feitas colheitas e pesagens, enviando-se anualmente relatórios para o Centro Nacional de Estudos Vitivinícolas, cujos resultados, infelizmente, só
numa pequena parte foram analisados na Estação, embora sem tratamento estatístico,
e mais tarde também pela Associação para o Desenvolvimento da Viticultura Duriense
(ADVID), nesta já com aplicação da estatística, o que, mesmo assim, associado aos conhecimentos de observações no campo, permitiu chegar a algumas conclusões bastante
úteis para serem postas na prática.18
Em 1958, quando Gastão Taborda assumiu a Direcção da Estação Vitivinícola, foram
instalados na Quinta de Santa Bárbara, cerca do Pinhão, ensaios de fertilização, com o
propósito de substituir as tradicionais adubações com matéria orgânica – sob a forma de
estrumes ou pelo enterramento de tremoço (siderações) –, por outro tipo de fertilizantes naturais de reacção alcalina, já que a maioria dos solos da Região têm reacção ácida,
e também para averiguar quais os processos mais correctos da sua aplicação ao solo.
Simultânea ou subsidiariamente, foram promovidos ensaios sobre a eficácia de fertilizantes químicos de síntese, com diversas formulações, de composição simples ou composta, e ainda sobre aplicação de fertilizantes por via foliar, quer de borato para a cura da
maromba, quer de sais de potássio e de magnésio, e depois com azoto, fósforo e potássio. Registe-se que estes primeiros ensaios sobre fertilização da vinha marcam o começo
de uma inovação das técnicas e critérios da fertilização da videira, através da substituição dos adubos orgânicos tradicionais pelos químicos industriais, mais controláveis em
termos das necessidades da planta, mais fáceis de aplicar e geralmente mais baratos,
particularmente na sua aplicação. Refira-se, por outro lado, que, pese embora o facto de
esta solução ter constituído uma inovação técnica nunca antes posta em campo na RDD,
mais tarde, já nos nossos dias, foi limitada através das normas de Produção Integrada da
vinha, que apontam para a utilização exclusiva de produtos naturais.
É também naquela data que a Estação inicia, na sua vinha experimental da Quinta do
Paço, na Régua, o emprego de herbicidas para o controlo de infestantes, cujos resultados
de ensaio permitiram a sua aplicação posterior noutras vinhas particulares, e a generalização desta técnica, praticamente por toda a Região, a partir dos anos 70.
Ainda naquela década de 50, são iniciados estudos de sinonímia e de análises de
mosto, a partir das colecções ampelográficas instaladas na Quinta do Paço e na de Santa
Bárbara, as quais incluíam, respectivamente, 129 e 120 castas cultivadas na Região. Daquelas consideradas, à partida, como mais interessantes, passaram a ser marcadas, em
diversas outras vinhas, videiras para fornecimento de “semente” (estacas para enxertia)
aos viticultores, pelos Serviços de Condicionamento do Plantio, os quais integravam a
estrutura orgânica da Estação Vitivinícola do Douro.19
Com o aparecimento de novos fungicidas, de síntese, para o combate ao míldio
em alternativa à tradicional calda bordalesa, que coincidiu com a introdução de pulverizadores de dorso motorizados (atomizadores), a Estação aplicou-se num estudo que
abordou quer os problemas inerentes ao emprego dessas substâncias e produtos co-
de aplicação e sua eficácia, quer sobre as formas mais eficazes de utilização daquelas
máquinas. Estes estudos e ensaios viriam a dar origem, em 1964, à primeira Estação de
Avisos Fitossanitários criada no País, para apoio aos viticultores sobre as formas de luta
contra pragas e doenças da vinha, na qual a Estação, através de Gastão Taborda, se empenhou, assessorando o seu fundador Xavier da Cruz, o qual viria a ser seguido, durante
cerca de duas décadas, por Álvaro Queiroz.
Em 1963, é criado o Centro Nacional de Estudos Vitivinícolas (CNEV) que vem a constituir um organismo-chave para o desenvolvimento da viticultura portuguesa e, neste caso,
em particular para a região do Douro. De uma forma resumida, alguns dos principais objectivos definidos no programa geral do Centro eram: orientar a política do condicionamento do plantio da vinha; rever e reestruturar a organização político-administrativa da
vitivinicultura; conhecer o potencial produtivo e os factores que a ela presidiam, de molde
a imprimir-lhes as alterações mais convenientes à obtenção do equilíbrio entre os complexos culturais e a ecologia regional; colher os elementos e estudar os factores mais adequados à redução dos custos de produção; determinar, no campo enológico, as formas e os
métodos técnicos e económicos susceptíveis de conduzirem a maior economia de fabrico;
organizar, em bases de se alcançarem resultados eficientes, os serviços de preparação de
pessoal, de divulgação técnica e de assistência à vitivinicultura. A criação do Centro teve,
certamente, algum impacto nalgumas acções então promovidas na Estação Vitivinícola do
Douro. É justamente por esta época que são iniciados estudos na Quinta de Santa Bárbara,
nomeadamente sobre sistemas de poda e de empa, sobre formas de implantação da vinha
e de avaliação de riscos de erosão, e sobre o potencial qualitativo de castas. Já em 1962,
haviam sido instaladas duas parcelas de vinha, uma com os bardos orientados segundo
as linhas de maior declive (vinha ao alto) e outro segundo patamares horizontais, tendo
a primeira, na sua parte inferior, receptores para as águas de escorrimento superficial e de
partículas de terra e pedra por ela removidas, para estudos de erosão. Também as mesmas
tinham como objectivo estudar a viabilidade de mecanização das operações culturais na
vinha. Apesar de os resultados obtidos através deste estudo terem sido pouco desenvolvidos e pouco conclusivos – salvo a componente da erosão que revelou ser, na vinha ao
alto, praticamente nula –, a sua implantação não deixa de ser pioneira, relativamente às
soluções de sistematização do terreno de encosta e de mecanização. Estas viriam a concretizar-se, passados uns dez anos, pela instalação das primeiras vinhas em patamares,
através da Brigada de Mecanização e Reconversão do Douro, em 1972, a seguir referida, e de
patamares e de vinha ao alto, por empresas privadas que implantaram estas duas formas
mecanizáveis nas suas quintas. Quanto ao estudo de castas, permito-me transcrever, do
último relatório da Estação Vitivinícola (então já designada por CEVD), elaborado em 1979
por Gastão Taborda, o seguinte excerto:
“O número exageradíssimo de castas de uvas para vinho existentes na Região – mais de 130 –
constitui um dos problemas mais graves e difíceis de resolver, mas que é preciso encarar a sério, dada
a influência que a casta tem na qualidade do Vinho do Porto. Para já, temos analisado os mostos de
castas existentes nos mostruários e nos campos de ensaio e, desde 1967, feito vinhos de 18 castas das
mais representativas da Quinta de Santa Bárbara, cuja evolução é acompanhada com análises e pro-
59
a viticultura da região do douro
merciais que começaram a surgir no mercado, nomeadamente sobre doses, intervalos
60
vas feitas periodicamente no IVP. Para estes estudos, aproveitámos ainda vinhos elementares feitos
de 1932 a 1939, que existiam nas nossas garrafeiras”.
Embora a Estação tenha sido, de certo modo, pioneira também nesta importante
área, não se conhecem resultados publicados sobre estes estudos. É, contudo, certo
que as longas conversas que Gastão Taborda teve com José António Rosas, da empresa
Ramos Pinto, tenham motivado este, dando-lhe primeiras sugestões para os ensaios
vitícolas e de vinificação que promoveu com o seu sobrinho João Nicolau de Almeida,
mais tarde, a partir de meados da década de 70, e pelos quais obtiveram e publicaram os
primeiros e importantíssimos dados sobre as características enológicas das principais
castas, tintas e brancas, o que constituiu uma orientação fundamental na revolução do
encepamento duriense, em anos posteriores, na reconversão e constituição de novas vinhas, orientadas quer para a produção de Vinho do Porto, quer para vinhos DOC Douro.
Durante o período compreendido entre os inícios da década de 50 e inícios da de 70,
ocorre uma outra importante transformação, neste caso, a nível da estrutura de comercialização das uvas, mas que não deixa de o ser também a nível da viticultura, pela criação da rede de Adegas Cooperativas, para apoio à produção dos pequenos viticultores,
no escoamento quer de vinhos do Porto, quer dos vinhos de pasto, cujas uvas, de baixo
valor, não tinham qualquer hipótese de ser vendidas às Casas Exportadoras de Vinho do
Porto, ou mesmo por outras vias de comercialização. Em 1954, entram em funcionamento as Adegas de Mesão Frio e da Régua, representadas por 140 associados, seguindo-se
outras, até um total de 24 já em 1974, então com 8000 associados. Actualmente, já na
primeira década do século XXI, o número de Adegas Cooperativas diminuiu para 20, uma
vez que houve a fusão de algumas – Régua com Armamar e Tabuaço, Santa Marta com
Cumieira e Medrões –, com o objectivo de criar não só sinergias, sobretudo a nível comercial, mas também nos recursos e na evolução técnica. O número total de associados
passa, então, para cerca de 20.000, o que revela um importante aumento da adesão dos
viticultores ao sistema cooperativo, o qual, a nível da comercialização dos vinhos da Região, representa 30% dos generosos e 40% dos vinhos não beneficiados.
Chegados aos finais dos anos 60, apesar da quantidade apreciável dos trabalhos
e estudos desenvolvidos e atrás sumariamente referidos, se “olharmos” para a Região
do Douro, constatamos que, estruturalmente, muito pouca coisa mudou: a paisagem
vitícola é praticamente idêntica à reconstruída após a filoxera; os granjeios não se alteraram, nem os respectivos meios; o trabalho de sol a sol, as rogas para as vindimas, para
a escava e para as podas permaneceram; o modo e condições de vida não progrediram;
as relações sociais e a estrutura da propriedade, idem; a inovação técnica, apesar dos esforços pertinazmente assumidos por alguns, muito pouco; as castas, na sua diversidade
e mistura nas vinhas, as mesmas. No dizer de Amândio Barros, “Naquela época o trabalho,
passe o exagero, continuava praticamente igual ao que se fazia nos séculos XVIII e XIX: muita força de
braços e de bestas de carga”. Mas o embrião, fruto da persistência de meia dúzia de homens
de talento e também da dinâmica da História, havia vingado, pelo que se adivinhavam,
já, modificações profundas e irreversíveis, no sentido da modernização da Região e de
todo o sector. “O Douro beneficiou da capacidade de homens que viveram intensamente este período e estas alterações na mentalidade científica e na forma de actuar no terreno”20.
a viticultura da região do douro
61
Formas modernas mecanizáveis
de implantação da vinha — vinhas
ao alto e patamares. Quinta
do Ventozelo, São João da Pesqueira
Aliás, é interessante verificar que, na Região Demarcada dos Vinhos Verdes, algo de profundamente semelhante se passou, o que é possível constatar pela leitura dos textos desta
obra sobre a mesma. De igual modo, as grandes transformações técnicas, estruturais e socioeconómicas que aí ocorreram, a partir de 60 e 70, foram precedidas, também, por uma fase
embrionária de mais de 20 anos de estudo e divulgação, na qual pautou a Comissão de Viticultura da Região dos Vinhos Verdes, liderada por Amândio Galhano e seus discípulos, com
quem alguns viticultores empresários, ainda muito poucos, de mente aberta, colaboraram e
inovaram nas suas propriedades, dando origem à moderna vitivinicultura.
Mas voltando ao Douro e citando Gastão Taborda no relatório da Estação elaborado
já em 1979, dá-se conta da crise então vivida e das perspectivas já pensadas para o começo da sua resolução: “A evolução no sentido da utilização de cada vez menos mão-de-obra tem-se
vindo a processar nestas últimas duas dezenas de anos, mas não com aquela rapidez e conhecimentos técnicos que permitam encarar com optimismo o futuro das vinhas existentes. De início deu-se a
substituição da enxada pela charrua e depois pelo herbicida, e o bulldozer substituiu o ferro e a pá
nas surribas. Mas tudo isto é insuficiente para a sobrevivência da vinha na Região, e há que instalar
as vinhas de forma a permitir a mecanização do maior número de operações culturais”.
Na realidade, nas décadas de 60 e 70, a disponibilidade de mão-de-obra, para os traba-
62
Do início da modernização
da estrutura vitícola e das suas
técnicas à actualidade
lhos agrícolas na vinha, inicia um ciclo de decréscimo acentuado, devido à diminuição
da população, em termos absolutos, a qual se vem a intensificar nas décadas seguintes.
Consequentemente, o valor dos salários aumenta. Estes dois factores – acrescidos, de
forma indirecta, pelo substancial aumento dos preços à produção, verificado logo entre
1972 e 1974, pela intervenção de comerciantes do Douro, e também pelo aumento da procura interna e externa de Vinho do Porto – irão implicar a introdução da mecanização das
vinhas, quer para a sua instalação, quer para grande parte das operações culturais que se
processam ao longo do seu ciclo vegetativo21.
No início da década de 70, através do Plano de Fomento Intercalar e das novas
competências e meios de actuação da Estação Vitivinícola do Douro, e pela tomada de
consciência da necessidade de introduzir alterações profundas nas técnicas e formas de
cultura da vinha, em particular na sua mecanização, é criado, em 1971, pela Secretaria de
Estado da Agricultura, um grupo de trabalho para a “Reestruturação socioeconómica da
Região do Douro a partir da reconversão dos seus vinhedos”, que se vem a concretizar
em 1972, pela implementação da “Brigada de Mecanização e Reconversão do Douro”,
que vem então a ser chefiada por Machado Grácio, do CNEV, com apoio e concretização
no terreno de Rogério Félix e Barrigas de Azevedo. Os primeiros ensaios de mecanização
da vinha, em patamares largos comportando 4 a 5 bardos, são então conduzidos, com
um modelo de tractor “pernalta” importado de França, nas Quintas da Roeda, de Varjelas, e d Pacheca , de Serpa Pimentel, na Régua. Este, para além das suas funções como
Director de Organismos vitivinícolas Oficiais, foi também um vitivinicultor apaixonado
e inovador. Este modelo de tractor veio, contudo, a revelar-se rapidamente desadequado às condições orográficas da Região do Douro, pelo que passou rapidamente a ser
substituído por tractores vinhateiros, de lagartas ou de tracção às 4 rodas, em patamares horizontais com talude em terra, com cerca de 4 metros de largura, para comportarem dois bardos de videiras. Com o 25 de Abril de 1974, os trabalhos da Brigada são suspensos, regressando Machado Grácio ao CNEV. Continuou, no entanto, embora ainda
timidamente, a processar-se a reconversão de vinhas para a sua mecanização, segundo
aquela solução de armação do terreno.
Sob o ponto de vista social, esboçam-se, por essa altura, algumas melhorias, nomeadamente no que diz respeito a definição de horários de trabalho e à sua remuneração,
as quais não deixam de constituir um marco histórico para as condições de trabalho no
Douro, nunca antes verificado de forma tão significativa.
Quanto às funções e, principalmente, aos meios disponíveis para o desenvolvimento da viticultura por intermédio da Estação Vitivinícola, nada se alterou até 1976, quando
António Barreto, Ministro com tutela conjunta para o Comércio e a Agricultura, apesar
das enormes dificuldades financeiras que o País atravessava, não deixou de disponibilizar as verbas necessárias ao reequipamento material e humano, pelo aumento do corpo
técnico, para aquela Estação e também para o Centro de Estudos Vitivinícolas do Dão, já
que considerava prioritária, para a economia dessas regiões, a implementação de trabalhos de experimentação e divulgação de resultados, junto dos protagonistas do sector.
Os desafios que se punham, para o desenvolvimento e transformação, no sentido de
a viticultura da região do douro
63
Patamares mecanizáveis de dois bardos.
Quinta de Ventozelo, São João da Pesqueira
uma viticultura moderna, à região do Douro eram enormes, bem evidentes na proposta
de estudos a realizar, elaborada, por essa altura, por Gastão Taborda, cujos grandes temas se transcrevem:
- Estudos sobre a influência, na qualidade do vinho do Porto, das alterações que será
necessário introduzir na cultura da vinha para esta ser mecanizada, a realizar nas
três sub-regiões, incluindo as instalações segundo vinha ao alto e em patamares,
compassos e densidade de plantação e processos de condução da videira.
- Estudo das máquinas e alfaias para a mobilização do solo e tratamentos fitossanitários.
- Estudo, nas diversas zonas do Douro, das castas mais aptas à produção de vinho
do Porto de alta qualidade.
- Melhoramento de castas seleccionadas em cada zona.
- Estudos sobre a rega da vinha.
- Estudos sobre a produção de plantas em vaso.
- Estudos sobre análise e diagnóstico foliar.
- Estudos sobre novos processos de fabrico de Vinho do Porto e seu envelhecimento.
- Estudo e caracterização de vinhos regionais.
64
Como facilmente se adivinha, o caderno de encargos que esta análise/proposta representa, para uma região tão grande e complexa, exigiria, para a sua concretização, um
enorme volume de meios, quer materiais, quer humanos, estes das mais diversas competências e especialidades. Por outro lado, nomeadamente pelo primeiro ponto enunciado, é desde logo dado o alerta sobre a noção clara de que alterações tão profundas,
que seria necessário introduzir na viticultura, poderiam seguramente alterar a qualidade
ou o perfil dos vinhos, implicando, por isso, estudos atentos para esta problemática,
não só no sentido de confirmar tais relações, mas também de reencontrar equilíbrios
adequados, através da adaptação das novas técnicas ao comportamento das videiras.
Com a década de 70 dá-se, então, início a uma fase nova e completamente distinta
da viticultura Duriense, envolvendo praticamente todas as técnicas vitícolas, desde a
surriba, às diferentes formas de instalação da vinha, às operações culturais, aos materiais vegetais, à organização do trabalho, até aos tipos e categorias de vinhos produzidos. Até à década de 90, ocorre também o maior incremento de sempre na produção,
exportação e valorização do Vinho do Porto, chegando a atingir, em 80, as 140.000 pipas
comercializadas para o exterior do País, tornando-se a França o maior mercado importador em volume. “Foi neste período que ocorreram transformações fundamentais no
processo produtivo e comercial, com relevo para o engarrafamento, o aparecimento de
Vinhos de Quinta, a plantação de novas vinhas, a mecanização da viticultura e a modernização dos processos de fabrico”22. Se as mudanças ocorridas e introduzidas após a
crise filoxérica, relativamente ao período anterior, pouco tinham alterado na substância,
a condução e operações culturais da vinha, a paisagem, as condições de trabalho, e a
estrutura fundiária, agora elas passam a ser muito mais profundas e, de certo modo,
definitivas, implicando a procura e aplicação de novas soluções técnicas através de um
corpo técnico especializado, no sentido da rentabilização da cultura, da preservação do
equilíbrio e diversidade da paisagem, e mesmo melhoria dos vinhos, que rapidamente,
para além do Porto, irão incluir vinhos tintos e brancos ditos de consumo (DOC Douro)
Moscatel do Douro e espumantes de qualidade elevada.
As surribas, que até então eram executadas a braço de homem, com recurso a ferramentas tradicionais, passam a ser feitas com potentes “bulldozers” que, equipados com
uma lâmina frontal e ferros subsoladores traseiros, rasgam o solo alterando a orografia
quando necessário, traçam e surribam terraços (patamares) onde a vinha irá ser plantada.
Os anteriores trabalhos de arroteia, desmonte e construção de socalcos separados por muros de pedra seca, que ocupavam dezenas de homens, durante dias inteiros, num inaudito
esforço, é agora substituído por máquinas, ainda com algum apoio de homens que deslocam pedras de maiores dimensões para o fundo da vala de corte da surriba. Para destruir
veios ou afloramentos de xisto mais rijo, são utilizados compressores que perfuram a rocha, para introdução de dinamite para os destruir, transformando-os num solo cascalhento, mas passível de ser cultivado, depois de retirados alguns calhaus que ainda restaram.
Bastam, então, cerca de 120 horas de trabalho de máquina, para arrotear, saibrar e construir
um hectare de vinha em patamares. O solo resultante continua a ser designado por Antrossolo (solo fabricado pelo Homem, a partir da rocha-mãe destruída). Só que, se dantes era
apenas o homem, com a força dos seus braços, que o construía, agora é a máquina, pela
máquina, quer para os auxiliares (geralmente, dois por máquina), trabalhando sob poeira
e calor intensos no Verão, ou sob chuva e frio durante o Inverno. Pela evolução técnica, a
dureza destes trabalhos vem a ser atenuada, já ao passar do século, através da introdução
de novos tipos de máquinas, designadas por “giratórias”, equipadas com cabines, por vezes, climatizadas, cujo trabalho de surriba dispensa auxiliares exteriores.
Terracear a encosta segundo patamares, na altura, com cerca de 4 m de largura, para
plantar duas fiadas de videiras (bardos), possibilita o trabalho de tractores vinhateiros geralmente de rastos, com cerca de 1,2 m de largura, circulando entre os bardos, procedendo a
mobilizações do solo, executando tratamentos fitossanitários, aplicando herbicidas e transportando as uvas da vindima. Pela mecanização, o número de horas de trabalho manual
reduz-se, assim, para metade, ou mesmo um terço, das dispendidas nas vinhas tradicionais.
Mas a introdução da mecanização não se limitou a facilitar os trabalhos e a reduzir
os custos de instalação da vinha e da sua manutenção. Alterou a orografia e a paisagem,
implicou novas soluções de combate à erosão, de princípio, aliás, bastante ignoradas e
cujas consequências foram frequentemente perversas culminando na destruição de largas
extensões de vinha no Inverno de 2001. Por outro lado, ao terracear a encosta desta forma,
o terreno perdido pela superfície dos taludes chega a atingir metade da superfície total da
vinha e, para que os tractores possam circular, a densidade de plantação diminui drasticamente, de quase 7.000 cepas/ha nos terraços pós-filoxéricos, para 2.500 a 3.000 cepas/ha nos
novos patamares. Se há menos cepas por unidade de superfície, as raízes de cada uma dispõem de um maior volume de solo, adquirindo assim um vigor superior e uma maior capacidade produtiva (ou seja, com menos plantas, pode obter-se uma produção por hectare
semelhante à das vinhas tradicionais, estas com mais videiras por unidade de superfície,
mas de pequena produtividade). A ajudar, os porta-enxertos tradicionais (Rupestris du Lot
ou “Montícola”, na sua maioria; Aramons e Riparias em solos mais férteis), adaptados a solos secos e pedregosos, mas indutores de baixas produtividades, são substituídos, nesta
reconversão das vinhas, por outros, também adaptados à secura, mas com superior potencial produtivo: o 99R, numa fase inicial predominante e depois, o 110R, o 1103P e o 196-17.
As produções por videira chegam, então, a duplicar ou a triplicar, o que altera, naturalmente, as características qualitativas das uvas no final da sua maturação. Para contrariar este
efeito e procurar novo equilíbrio entre vegetação e produção, a parede vegetativa torna-se
mais ampla, ganhando em altura (1,6 a 1,8 m contra 1,2 m das vinhas tradicionais).
A forma de condução das videiras também se altera substancialmente. O tradicional
Guyot de tronco baixo, ou as formas “torneadas”, dão lugar ao Cordão Bilateral ou, mais
recentemente, ao Unilateral, de tronco mais alto, podado a talões, para reduzir o tempo de
trabalho com a poda, comportando um número de gomos por cepa geralmente superior
ao daquelas formas implantadas nas vinhas não mecanizadas. Contudo, o equilíbrio até
então encontrado, de forma natural, entre o meio, a videira e o viticultor, é agora quebrado. As técnicas de poda e de condução da videira são suficientemente diferentes, para que
o viticultor as aplique de imediato, correctamente, o que se vai reflectir negativamente na
condução e na durabilidade da vinha, por vezes, até na qualidade. Serão necessárias duas
décadas, por vezes mais, para que um novo equilíbrio se estabeleça.
65
a viticultura da região do douro
força do seu motor. Não deixa de ser, ainda, uma tarefa árdua, quer para o operador da
66
É por esta altura, no sentido de solucionar a escassez de mão-de-obra e seu maior
custo, que passam a ser utilizados herbicidas, em substituição das tradicionais mobilizações, não só nas linhas e taludes dos novos patamares, mas também na grande maioria das vinhas tradicionais, recorrendo, nestas, a atomizadores de dorso. Também para
os tratamentos fitossanitários de combate ao míldio, oídio e mais raramente a pragas,
são usados os atomizadores nestas vinhas, em alternativa aos pulverizadores tradicionais não motorizados, poupando em tempo de trabalho (e metade da água necessária) e
a pulverizadores acoplados ao tractor, nas novas vinhas mecanizadas. Os produtos fitossanitários tradicionais, à base de enxofre e de cobre, irão ser gradualmente substituídos
por produtos de síntese, mais eficazes e flexíveis, permitindo reduzir o número de tratamentos anuais. Contudo, se estas novas técnicas contribuem para minimizar os custos
de produção e os tempos de trabalho, por outro lado, são, por vezes, co-responsáveis
por desequilíbrios naturais, traduzidos pela acumulação de resíduos nocivos no solo
e águas, pelo aparecimento de novas pragas e doenças, pela inversão da flora autóctone pela degradação biológica dos solos e poluição de linhas de água e eutrofisação do
próprio rio Douro. Só mais tarde, pela aplicação das normas da Protecção Integrada e
da Produção Integrada e da Viticultura Biológica, é retomado um sistema de viticultura
mais racional e consentâneo com as regras da Natureza.
A partir dos anos 70, para além das novas formas de sistematização do terreno de encosta, com vista à mecanização da vinha, outras importantes mudanças estruturais ocorreram.
Pouco depois do 25 de Abril de 1974, ainda em pleno período revolucionário em que as directrizes relativas às formas de desenvolver a Região eram ainda pouco esclarecidas, o Centro
de Estudos promove e leva a cabo um trabalho de fundo, “O Inventário dos Mortórios do
Douro”23, com potencial de valorização vitícola, o que viria a permitir, mais tarde, já em 1982,
um plano-base para o alargamento da área de vinha plantada para produção de Vinho do
Porto de alta qualidade, através da implementação do Projecto de Desenvolvimento Rural
Integrado de Trás-os-Montes (PDRITM), ao qual, de novo, se fará referência. Por este inventário, os técnicos daquele Organismo contabilizaram mais de 3.700 ha de área de mortórios
com potencial de reconversão, agora para formas mecanizáveis e para plantação com castas
de superior potencial qualitativo, e segundo novas formas de condução.
Apesar dos estudos sobre castas, anteriormente conduzidos pela Estação Vitivinícola, em colaboração com o Instituto do Vinho do Porto e apoio de alguns Enólogos de
nomeada, tais como John Smith, José Rosas, António Serôdio, John Graham, Bruce Guimaraens, serem ainda insuficientemente conclusivos, uma vez que as condições e meios
de estudo não eram os melhores, já se havia chegado a uma selecção prévia daquelas
que, à partida, poderiam ter mais interesse para a produção de Vinho do Porto. Como
consequência, algumas importantes linhas de trabalho sobre castas foram iniciadas a
partir de meados da década de 70.
Como já foi anteriormente referido, o número de castas cultivadas na região do Douro ultrapassa uma centena, das quais não se conhecia, com rigor, nem o seu comportamento vitícola, nem o enológico. Apenas, e com base em conhecimentos empíricos, havia
uma classificação das castas segundo o Método de Moreira da Fonseca para atribuição de
benefício, subdividindo-as em Muito Boas, Boas, Regulares, Medíocres e Más. Mas esta
a viticultura da região do douro
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Aplicação de enxofre em pó
por meios mecânicos
classificação era manifestamente insuficiente, pois carecia de uma avaliação técnica ou
científica mais rigorosa, e de uma análise do comportamento e adaptação de cada casta às
diversíssimas características dos múltiplos ecossistemas existentes. Em 1976, José Rosas e
João Nicolau de Almeida iniciam um estudo de caracterização vitícola e enológica de uma
dezena de castas tintas e uma meia dúzia de brancas, através do registo de estados fenológicos, da evolução da maturação, seguindo-se microvinificações de vinhos elementares
(por tecnologia para Porto e para Douro), o qual se prolonga até 1981, quando são publicados os primeiros resultados nas Jornadas Vinorde realizadas nesse ano, em Vila Real.
Esta primeira selecção de castas para estudo baseou-se, contudo, já em critérios prévios de
apreciação de vinhos elementares, atrás referidos. Partindo do pressuposto de que cada
casta pode ter comportamento distinto, em função das condições edafo-climáticas onde é
cultivada, assentaram o estudo, em paralelo, nas três sub-regiões, numa parcela do Baixo
Corgo, em duas a diferentes altitudes no Cima Corgo, e numa no Douro Superior. Pelos
resultados analíticos dos mostos e organolépticos dos vinhos, realizados em cada um dos
cinco anos de estudo, elegeram cinco castas tintas (Touriga Nacional, Touriga Franca, Tinta
Roriz, Tinta Barroca e Tinto Cão) e três brancas (Viosinho, Rabigato e Arinto), com superior potencial qualitativo para qualquer uma daquelas sub-regiões. Em consequência dos
resultados deste estudo, aquelas cinco castas tintas vieram a ser as obrigatórias na instalação de novas vinhas instaladas ao abrigo do PDRITM, em 1982. É também justo referir a
consistência daquelas conclusões, pois ainda hoje qualquer uma das castas referidas, para
além de mais algumas que entretanto vieram a revelar-se também de boa qualidade, geralmente figura em novas plantações, seja com o objectivo da produção de Vinho do Porto,
seja de DOC Douro, denominação regulamentada também no ano de 1982.
68
Um outro importante e indispensável estudo, complementar ao agora sumariamente descrito, sobre o valor enológico de castas, iniciou-se em 1979, a nível nacional, mas
começando pelo Douro. Refere-se à selecção clonal das castas, então conduzido por Antero Martins, do Instituto Superior de Agronomia; Luís Carneiro, da Estação Agronómica Nacional; e pela equipa de Viticultura do então Instituto Politécnico de Vila Real (mais
tarde, a partir de 1986, Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro). A selecção clonal
parte do princípio de que, para cada casta, existe um sem número de variantes genéticas,
na sua maioria invisíveis, que se reflectem em comportamentos distintos, traduzidos por
diferenças frequentemente acentuadas na produtividade, no açúcar, na acidez e noutros
componentes do vinho. Através de metodologias próprias, é possível seleccionar, para
cada casta, um número variável de clones com aptidões mais interessantes, seja do ponto de vista vitícola, seja do enológico, ou de ambos. A selecção clonal era já praticada, há
algumas dezenas de anos, noutros países Europeus, em particular na Alemanha, França,
Itália, Suíça, Espanha, enquanto em Portugal constituía uma inovação. Iniciada a selecção no Douro, naquele ano pela Touriga Nacional, rapidamente se estendeu, por todas as
regiões vitícolas do País, a outras castas, pelo contributo activo de várias dezenas de técnicos de organismos oficiais e privados que contaram com o contributo precioso de empresas vitivinícolas, nomeadamente, pela cedência de terrenos para ensaios e multiplicação
dos materiais seleccionados, constituindo o que veio a designar-se, mais tarde, por Rede
Nacional para a Selecção da Videira em Portugal; a qual deu lugar, em 2010, à Associação
Portuguesa para a Diversidade da Videira (PORVID). Passados poucos anos do início deste
projecto, foram introduzidas metodologias inovatórias a nível Mundial, baseadas na genética quantitativa, o que faz com que Portugal seja, hoje, o País mais evoluído do mundo
vitícola, na área da selecção e preservação de recursos genéticos da videira. Em resultado,
existem actualmente 60 castas portuguesas com selecção massal genotípica, sendo cerca
de 20 da Região do Douro e umas 10 da Região dos Vinhos Verdes; e ainda, para cada uma
delas, populações mais vastas, representativas da sua variabilidade genética, constituindo
um reservatório de genes para o futuro. São ainda de referir dois aspectos importantes a
considerar no âmbito deste trabalho. Um diz respeito à Touriga Nacional, hoje a mais importante casta tinta portuguesa, cuja alta qualidade começa a ser reconhecida, a nível dos
principais países vitícolas mundiais. Quando do início da selecção, encontrava-se quase
extinta, devido à sua baixíssima produtividade. Graças àqueles trabalhos, é actualmente
uma das mais plantadas nas regiões vitícolas portuguesas, com uma divulgação crescente
em muitos países vitícolas, particularmente nos do chamado Novo Mundo Vitícola. O outro aspecto que importa citar diz respeito ao facto de todas as equipas terem trabalhado
em paralelo, segundo idêntica metodologia e motivação, até porque algumas castas eram
comuns a mais do que uma região. Visando esta obra o cruzamento de duas regiões nortenhas, a dos Verdes e a do Douro, através de transformações que sofreram, em paralelo ou
em comum, ao longo das suas histórias, e sobre as quais se salientaram protagonistas de
relevo, também neste capítulo da selecção se podem referir castas de grande importância
e de cultivo comum, das quais se salienta o Sousão, tradicional no Douro e actualmente
em expansão significativa, e a designada por Vinhão, nos Verdes, onde é a tinta mais importante e representativa, tratando-se, afinal, da mesma casta; pelo que, para o seu estudo, estiveram presentes plantas oriundas das duas regiões. Finalmente, estes trabalhos
internacional de castas portuguesas, neste caso oriundas das duas regiões abordadas, de
que são exemplo a já referida Touriga Nacional, o Alvarinho do Alto Minho, a Tinta Roriz
– apesar de comum ao Aragonêz Alentejano e ao Tempranillo Espanhol –, e de outras que
seguramente virão a ser reconhecidas lá fora, tais como o Loureiro e o Avesso, dos Verdes;
a Touriga Franca, o Gouveio, ou o Viosinho, do Douro.
Ainda no que se refere às castas, a sua caracterização e rigorosa identificação constituem um conhecimento indispensável para uma viticultura moderna. Em caso contrário, há o risco, tantas vezes concretizado no passado, de não se saber o que se planta, de
se julgar estar a usar uma determinada casta que afinal é outra, ou de confundir nomes,
situação muito corrente até tempos recentes, antes de terem sido desenvolvidos trabalhos de ampelografia. Aquela última situação decorre de problemas de sinonímia e de
mononímia, ou seja, respectivamente, de uma mesma casta possuir nomes distintos
conforme designações regionais, ou de duas castas distintas terem igual nome. Nos finais do século XIX, surgem já descrições botânicas de castas portuguesas elaboradas por
diversos autores. Embora úteis, não são suficientes para uma caracterização segura, já
que eram muito personalizadas e portanto algo subjectivas, além de que não assentavam em descritores padronizados. Daí que, hoje, nem sempre tenhamos a certeza de que
uma determinada casta então descrita corresponda à que actualmente tenha idêntica
designação. Mais tarde, na primeira parte do século XX, João Vasconcelos e Pereira Coutinho publicam um livro sobre castas portuguesas, com base numa descrição botânica,
já técnica e cientificamente mais elaborada. Mas só nos anos 50 surge um método filométrico e carpométrico de caracterização de castas, elaborado por Acúrcio Rodrigues, da
Estação Agronómica Nacional, assente em medições e determinações matemáticas suficientemente rigorosas para uma identificação segura das mesmas, através da caracterização das folhas e dos frutos. No entanto, e apesar da fiabilidade do método, passaramse décadas sem que fosse posto em prática em Portugal, só pontualmente na Itália… Até
que, já nos inícios da década de 80, Mário Cardoso, no CEVD e depois na Casa do Douro,
utilizando aquele método e o de caracterização botânica designado por UPOV, adoptado
pelo Office Internacional da la Vigne et du Vin (OIV), caracteriza as principais castas da
Região do Douro, tendo sido objecto de duas publicações, por parte daqueles Organismos. Constituiu, pois, um primeiro contributo muito importante para a caracterização e
identificação de castas durienses, e para esclarecer problemas de sinonímia e de mononímia, nomeadamente através da confrontação com outros trabalhos da mesma índole,
desenvolvidos por técnicos de outras regiões do País, dos quais sobressai Eiras-Dias, da
Estação Vitivinícola Nacional.
Ainda no período que decorre em meados da década de 70, prolongando-se pela de
80, regista-se um facto inédito e importante, pelas alterações significativas que passaram a ocorrer na Região do Douro. As Empresas Exportadoras de Vinho do Porto, até então sediadas em Vila Nova de Gaia, cujos responsáveis técnicos se deslocavam ao Douro
praticamente apenas no período das vindimas, para controlo das mesmas e para compra
de vinhos, poucos meses depois, transportados para os seus armazéns em Gaia, passam
a dedicar-se também à viticultura. Compram quintas, instalam novos vinhedos, constroem adegas recorrendo aos modelos de equipamentos mais recentes, passam, enfim,
69
a viticultura da região do douro
de selecção clonal, iniciados em finais de 70, muito contribuíram também para a projecção
70
a controlar a qualidade da matéria-prima e a vinificação, introduzindo simultaneamente
inovações, quer na viticultura, quer na enologia. Apercebem-se de que, apesar dos esforços antes desenvolvidos pelos poucos técnicos a trabalhar na Região, já antes citados, e
dos incentivos dados ao CEVD pelo Ministério de António Barreto, a carência de respostas aos novos problemas postos pela viticultura moderna, que então dava os primeiros
passos, era enorme. Os investimentos na instalação das vinhas e sua manutenção eram
muito elevados, pelo que era urgente procurar, permanentemente, novas soluções técnicas para redução de custos, aumento da produtividade e melhoria da qualidade das
uvas. Um grupo de Administradores, representante de empresas exportadoras de Vinho
do Porto (José Rosas, Jorge Ferreira, José Gaspar e António Filipe), decide e põe em prática uma Associação sem fins lucrativos, com o objectivo de dar continuidade a estudos
particulares já encetados, sistematizar e promover novos estudos e experimentação no
âmbito da viticultura duriense e dar apoio técnico às explorações dos seus associados.
Fundada em 1982, toma o nome de Associação para o Desenvolvimento da Viticultura
Duriense (ADVID), englobando então 11 empresas. Com um grupo de técnicos inicialmente reduzido, que se foi progressivamente alargando à medida que o volume de trabalho se incrementou, teve como primeiro Director Nuno Cancella de Abreu, a que se
seguiu Bianchi de Aguiar, depois, e até á data, Fernando Alves. Das diversas vertentes de
estudo da viticultura, salientam-se as dos âmbitos da mecanização, motorização e racionalização das operações culturais, da sanidade da vinha, das relações hídricas e comportamento ecofisiológico das castas, da análise de custos de produção, da participação na
selecção clonal de castas, quer por realização directa de trabalhos, quer indirectamente
pela disponibilização de parcelas de vinha dos associados para instalação de campos
experimentais e, ainda, de acções de formação técnica e de divulgação, através de folhetos informativos, publicações diversas e participação em seminários, simpósios e congressos nacionais e internacionais. Quase em paralelo com a criação da ADVID, nasce na
UTAD o primeiro curso superior, a nível nacional, de formação em Enologia, incluindo
no seu curriculum uma componente forte, também, em viticultura. Com o crescimento rápido do número de novos projectos de vinha e de adegas, do surgimento de pequenas e
médias empresas, e dos investimentos na Região por parte das empresas exportadoras,
os jovens licenciados em Enologia ou em Engenharia Agrícola por aquela Universidade,
bem como do Instituto Superior de Agronomia e de outras Escolas de formação superior recentemente criadas um pouco por todo o País, facilmente encontram emprego no
Douro. Pela sua formação, juventude e espírito empreendedor, vêm a dar uma forte dinâmica ao sector e à modernização da RDD, que se vem revestindo, até aos dias de hoje,
de uma importância inequívoca. Recorde-se que, até então, o número de Agrónomos e
de Enólogos a trabalhar no Douro contava-se pelos dedos de uma mão.
Em 1997, pelo aparecimento crescente de novos agentes económicos, nomeadamente
de produtores-engarrafadores, de empresas vitivinícolas de dimensão variada, e do enorme desenvolvimento das Quintas das empresas exportadoras, a ADVID sentiu a necessidade de rever os seus estatutos, no sentido de poder ser alargada a sua acção a outros
produtores e entidades, o que de imediato se veio a concretizar, implicando um reforço
da sua equipa técnica. Dada a credibilidade técnica e científica demonstrada no âmbito da
mais tarde, em 2003, para a Produção Integrada. Tendo-se candidatado ao Programa Operacional de Factores de Competitividade (POFC) promovido pelo Ministério da Economia
e Inovação, foi reconhecida para liderar o “Cluster dos Vinhos do Douro”, como “Estratégia de Eficiência Colectiva”. A ADVID conta actualmente com 9 empresas exportadoras, na
qualidade de membros principais, e com mais de 70 empresas e instituições privadas e
oficiais, incluindo universidades, como membros individuais parceiros do “Cluster”.
É também em 1982 que, por iniciativa de Valente de Oliveira, então presidente da
Comissão da Região Norte, se iniciam os trabalhos do PDRITM, projecto de desenvolvimento rural de Trás-os-Montes, já referido, em particular os referentes ao incremento da
instalação de vinhas mecanizáveis, neste caso, pelo terraceamento das encostas segundo
patamares horizontais com cerca de 4 m de largura, comportando, cada um, dois bardos
de videiras. O objectivo da componente vitícola do Projecto visava não só fazer face à escassez crescente de mão-de-obra, mas também o alargamento da área de produção de vinhos
do Porto de qualidade superior. Assim, durante os anos seguintes, foram instalados 2.500
hectares de vinhas através daquela forma de sistematização do terreno, em zonas de classificação A, B e nalguns casos, C.
O Projecto financiou, ainda, a reconversão de mais 1.000 hectares de vinhas de formas
antigas, para mecanizáveis. Mas estas reconversões não se limitaram à construção de terraços permitindo a mecanização de operações culturais. Para facilitar os trabalhos de poda
e diminuição dos tempos de trabalho respectivos, as tradicionais formas de condução
em vara e talão foram substituídas pelo cordão bilateral tipo “Royat”, constituído apenas
por talões, o que eliminava, logo à partida, a operação da “empa” das varas. Recorreu-se a
porta-enxertos resistentes à secura, mas mais produtivos do que o tradicional Montícola”, predominando então o 99 R nas novas plantações. Com a finalidade de incrementar
a qualidade dos vinhos tintos do Porto, só foram permitidas, no âmbito do PDRITM, as
cinco castas seleccionadas a partir dos trabalhos de José Rosas e Nicolau de Almeida, atrás
citadas. Pese embora o facto de os primeiros patamares deste tipo terem sido já instalados
na década anterior, na sequência dos trabalhos iniciados pela Brigada de Mecanização, foi,
de facto, o PDRITM que deu o grande impulso à modernização da viticultura regional, a
qual veio sofrendo, depois e até à data, alterações e aperfeiçoamentos, nomeadamente
pelo recurso a outras formas de condução e de armação do terreno, outras castas e portaenxertos, novas soluções de mecanização e novas técnicas culturais.
No ano de 2000, é criada uma outra Associação, designada por “Lavradores de Feitoria”, sociedade por quotas, que reúne actualmente quinze produtores, num total de 18
Quintas, e accionistas não produtores. O seu objectivo principal visa promover e valorizar
os vinhos não fortificados, ou seja, os DOC Douro, cujas uvas eram pagas a preços muito
inferiores às destinadas a Vinho do Porto. Estas seguiam o destino normal de mercado de
cada associado, sendo as restantes entregues aos Lavradores de Feitoria para vinificação
sob orientação da sua equipa de Enólogos, recorrendo à própria adega ou às de alguns dos
produtores, desde que suficientemente equipados enologicamente. Antes da vinificação,
o controlo da evolução da maturação é executado pelo corpo técnico (Enólogos e Técnicos
de viticultura). Depois dos vinhos feitos e avaliados organolepticamente, são classificados
71
a viticultura da região do douro
sanidade da vinha, foi acreditada como associação para a Protecção Integrada da Vinha e,
72
Desponta mecânica da vegetação
segundo as categorias Base, Superior e Extra, sendo então pagas as uvas que lhes deram
origem, a preços diferenciados correspondentes. Actualmente, a Empresa comercializa
cerca de um milhão de garrafas para o mercado nacional e mercados internacionais, sob a
designação comum de Lavradores de Feitoria, acrescidas das designações Três Bagos, Três
Bagos Grande Escolha ou ainda pelo nome da Quinta onde as uvas foram produzidas. Deste modo, os viticultores associados, para além da receita proveniente do vinho do Porto,
podem tirar partido de uma valorização das uvas excedentárias ao benefício, geralmente
muito mal remuneradas na Região, já que, neste caso, são vinificadas por enólogos competentes, dispondo de equipamentos enológicos modernos e adequados, e de uma comercialização e marketing comuns, assegurados também por um corpo técnico especializado.
A nível da viticultura, os associados podem dispor de acompanhamento técnico, quer a
nível da Protecção e Produção Integradas, quer do conselho para boas práticas vitícolas,
com vista a reduzir custos de produção, melhorar a qualidade das uvas e aumentar a produtividade quando tal se justifique. Apesar de esta Empresa incluir um número reduzido
de Produtores, não deixa de ter grande importância para a promoção dos vinhos da região
do Douro, e de representar um modelo associativo a ser seguido por outras que se venham
a constituir. Aliás, outras associações e sociedades formalizadas, por exemplo, a Associação dos Viticultores Produtores Engarrafadores de Vinhos do Porto e Douro (AVEPOD), e
outras menos formais mas de grande impacto e visibilidade nos mercados internacionais,
vêm sendo, pouco a pouco, constituídas durante os anos mais recentes.
em 1998, sob a presidência de Miguel Cadilhe, e naquela data já sob a presidência de Luís
Braga da Cruz, é aceite e aprovada a candidatura à Convenção do Património Mundial
da UNESCO, para reconhecimento do Alto Douro Vinhateiro (ADV), à luz do conceito de
paisagem cultural evolutiva viva. A superfície do ADV considerada Património Mundial
estende-se desde o Extremadouro (Mesão Frio), acompanhando as margens do rio Douro e parte das dos seus afluentes Corgo e Pinhão, da margem direita, e do Távora e do
Torto, da margem esquerda, até ao Saião (Pocinho), já na sub-região do Douro Superior,
num total de 24.600 ha, incluídos nos 250.000 ha da Região Demarcada do Douro. Este
estatuto vem dar uma visibilidade importante da Região do Douro, a nível Internacional, aliás inteiramente merecida, que se reflecte na promoção não só dela própria, mas
também, naturalmente, dos vinhos nela produzidos.
Na qualidade de paisagem cultural, evolutiva e viva, e como património de reconhecido interesse universal, seria necessário regulamentar as intervenções humanas no
Alto Douro Vinhateiro, de modo a conciliar a componente económica com a salvaguarda
do padrão da paisagem e dos valores naturais e históricos nele existentes. Nesse sentido, foi elaborado um Plano Intermunicipal de Ordenamento do Território – Alto Douro
Vinhateiro (PIOT – ADV), que veio a ser aprovado em 2003 por Resolução do Conselho
de Ministros, pelo qual são definidas as condicionantes às referidas intervenções, que
sumariamente se mencionam24:
- Não implicar a obstrução ou destruição das linhas de drenagem natural, nem a
alteração da morfologia das margens dos cursos de água.
- Apresentar estudo de sistemas de drenagem para declives superiores a 10%, no
caso de novas plantações.
- Interdição de plantações de vinha em encostas com declive superior a 50%, salvo
em situações já ocupadas com vinha ou outras culturas permanentes, ou por “mortórios”, sendo então autorizada a plantação em micropatamares.
- Para declives da encosta entre 40% e 50%, só são autorizadas plantações segundo
patamares estreitos, de uma só linha, ou em micropatamares.
- A plantação em “vinha ao alto” só pode ser efectuada em encostas com declive
máximo de 40%.
- As plantações em parcelas já ocupadas com vinha, olival ou amendoal, armadas
com muros, ou ainda em “mortórios”, têm de ser feitas com recurso a patamares estreitos, mantendo os muros de suporte.
Muito mudou, pois, a Região do Douro, desde os anos 60/70 a esta parte, quer do
ponto de vista técnico, quer do socioeconómico, quer mesmo do paisagístico, cujas principais modificações a seguir se sintetizam.
As vinhas tradicionais, de compassos estreitos, trabalhadas manualmente ou pelo
recurso a muares nas mobilizações, dão progressivamente lugar a vinhas mecanizáveis,
segundo terraços com talude em terra, ou segundo as linhas de maior declive (vinhas ao
alto), estimando-se que a sua área actual ocupe cerca de 30% da Região. É, contudo, a
partir daquela época, em virtude da escassez de mão-de-obra, que o controlo de infestantes por herbicidas se começa a generalizar, em geral por aplicação com pulverizadores de
dorso, reduzindo substancialmente os custos de produção. Mas, não há bela sem senão;
73
a viticultura da região do douro
No ano de 2001, na sequência de estudos patrocinados pela Fundação Afonso Henriques,
a viticultura da
actualidade / o douro
património mundial
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Patamares mecanizáveis
com um só bardo
passados anos, alguns efeitos nefastos começam a fazer-se sentir, pela dominância de
determinadas infestantes vivazes, contaminação das águas por herbicidas residuais e
esterilização biológica dos solos. Daí que, hoje em dia, se veja cada vez mais reduzida a
lista de substâncias activas autorizadas e que a prática de relvamentos nas entre-linhas
constitua uma prática frequente nas novas vinhas mecanizadas, com reflexos positivos
para a revitalização do solo e para a qualidade da paisagem. O porta-enxerto dominante
nas vinhas tradicionais era o “Montícola” que, apesar da sua rusticidade na adaptação
aos solos secos, pobres e pedregosos do Douro, induzia a produtividade baixa. Nas novas plantações, deixou de ser utilizado, sendo substituído por outras variedades, igualmente adaptadas ao meio, mas com potencial produtivo bastante mais elevado. A conjugação deste potencial com a diminuição, para cerca de metade, da densidade de
plantação imposta pela mecanização conduziu a aumentos significativos da produtividade unitária, com evidentes reflexos nas características do produto final. Para a manutenção dos níveis qualitativos dos vinhos, houve então que recorrer à plantação exclusiva de castas mais nobres, à alteração e aperfeiçoamento de práticas culturais, no sentido
de reencontrar equilíbrios entre produtividade e qualidade dos mostos. Dessas práticas,
salientam-se o aumento da dimensão da parede vegetativa e a manipulação do coberto
vegetal por intervenções em verde, diversas e rigorosamente determinadas, segundo
Página anterior Patamares e vinha
ao alto na zona do Pinhão
métodos de viticultura tecnicamente moderna. Se nas vinhas tradicionais as castas se
misturavam aleatoriamente e em número elevado em cada parcela, as novas plantações
a viticultura da região do douro
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Adaptação de antigas “geias”
para micropatamares mecanizáveis
dispõem-se segundo talhões monovarietais, possibilitando intervenções vitícolas diferenciadas, em função das características de cada casta, e um controlo rigoroso da evolução da maturação das uvas, no sentido de melhorar a sua qualidade. A redução drástica
do número de castas utilizadas nas novas plantações pode conduzir, no entanto e a breve prazo, a uma erosão varietal muito significativa, pela extinção de muitas castas que,
apesar de agora consideradas de menor qualidade, são indispensáveis para a manutenção do rico património genético que o País, e em particular o Douro, possuem. Por outro
lado, a implementação, a partir dos finais da década de 70, da selecção clonal de castas,
segundo novas metodologias que respeitam a manutenção da variabilidade, permitiu
não só a sua preservação a nível de clones, mas também a recuperação de castas de alta
qualidade que se encontravam em vias de desaparecimento, devido à sua baixa produtividade. Relativamente às técnicas culturais anualmente praticadas na vinha, são de referir, também, alterações mais ou menos profundas entre o tradicional e o actual. A poda,
antes executada em vara e talão, ou torneada, passou a cordão uni ou bilateral, para permitir a sua mecanização e diminuir os tempos de trabalho manuais. Algumas intervenções na vegetação passaram a ser mecanizadas, como a desponta mecânica, em substituição da tradicional “enrola” manual. As fertilizações, dantes feitas, muitas das vezes,
por enterramento de tremoço ou por incorporação de estrumes, são rapidamente substituídas por adubos químicos de síntese. Estes, presentes no mercado segundo numerosas formulações e de fácil aplicação, eram e são, ainda, frequentemente utilizados sem
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critérios rigorosos. No entanto, através da assistência técnica de profissionais e pelas
regras estabelecidas para a Produção Integrada, cada vez mais os viticultores recorrem a
análises de solo e foliares, no sentido de aplicar os nutrientes de que a vinha, de facto,
necessita, segundo as doses recomendadas. Também quanto ao diagnóstico e controlo
de doenças e de pragas, algo de semelhante de passa. Dantes, apenas produtos de origem natural, o cobre e o enxofre, eram utilizados como tratamentos contra as doenças.
Pelo surgimento de novos produtos de síntese, a utilização daqueles passa a ter um carácter pontual, já que estes são, em geral, mais eficazes e permitem um número mais
reduzido de aplicações. Contudo, devido a efeitos secundários na aplicação destes pesticidas, surgem, por vezes, novas pragas e fenómenos de resistência das doenças aos produtos. Então, se uns saem do mercado, outros, com novas formulações, passam a estar
disponíveis, devido a superior eficácia, menores efeitos secundários, ou inferior toxicidade para homens e animais. Pela complexidade desta problemática, face ao grau de
conhecimento da maioria dos viticultores, são criadas associações, primeiro para a Protecção Integrada e, mais recentemente, de Produção Integrada, para apoiar os seus associados no sentido do diagnóstico de pragas e doenças, e da recomendação de quais,
quando e em que doses utilizar os produtos mais indicados. Na instalação da vinha, até
sensivelmente aos anos 60, as surribas eram efectuadas exclusivamente à custa da força
humana, com recurso a ferros de monte, pás e outras ferramentas, de igual forma e pelos
mesmos meios como eram executadas desde o nascer da Região. A partir daquela altura,
entram as máquinas, potentes tractores que desfazem a rocha de xisto, constroem terraços e criam o solo para a plantação da vinha, poupando esforço humano e custos de
instalação. As videiras são plantadas já enxertadas, técnica inovatória na Região; as pedras de xisto, para sustentação dos arames que conduzem as videiras, passam a ser substituídas por paus de madeira tratada e por postes metálicos, o que permite uma mais
fácil execução de algumas operações culturais. Sob o ponto de vista social, também muito mudou. O trabalho de sol a sol, os salários baixos, as condições de alojamento e de
alimentação dão lugar à fixação de horários de trabalho, à regulamentação das remunerações, à segurança social e a melhores condições de transporte e de vida em geral. As
rogas para a poda e para as vindimas, de homens, mulheres e crianças, vindos das aldeias das montanhas limítrofes, desaparecem. Os trabalhos nas vinhas passam a ser
assegurados por permanentes ou assalariados e, recentemente, por empreiteiros que
garantem quer a instalação da vinha, quer operações especializadas. O absentismo, praticamente generalizado relativamente às Quintas de maior dimensão, torna-se cada vez
menos frequente, pela fixação, na Região, de proprietários, gestores e técnicos, surgindo
uma nova figura, a de Produtor Engarrafador. Também as Casas Exportadoras de Vinho
do Porto, que dantes não possuíam vinhas, limitando-se a adquirir uvas ou, mais frequentemente, vinho que rapidamente seguia para Gaia, onde era lotado, acompanhado
e envelhecido até à sua comercialização, compram terras e Quintas, instalam novos vinhedos segundo técnicas modernas, constroem adegas e contratam Agrónomos e Enólogos para acompanhar as vinhas e fazer o vinho. Se naquela época não muito remota,
dos anos 60 e 70, os poucos técnicos de viticultura se sediavam no Centro de Estudos e
na Casa do Douro, agora contam-se às dezenas, a trabalhar na vitivinicultura do Douro,
ou de apoio à vitivinicultura, para Produtores Engarrafadores e outros proprietários de
média dimensão. Para além do Vinho do Porto, a Região passa a produzir outros vinhos,
tintos e brancos de alta qualidade, sob a designação DOC Douro, ou Terras Durienses, e
ainda espumantes e Moscatéis licorosos. A paisagem muda e diversifica-se, num mosaico de vinhas tradicionais, de patamares largos e estreitos, de vinha ao alto, de recuperação de geios filoxéricos, de adaptação de antigos terraços com muros em pedra à mecanização. Por tudo isto, a UNESCO inscreveu o Alto Douro Vinhateiro na categoria das
“paisagens culturais, evolutivas e vivas”, ou seja, uma paisagem que valor excepcional e
universal construída pelo Homem, que vai evoluindo ao ritmo das transformações sócio-económicas e técnicas para que se mantenha rentável e viva25.
1 PEREIRA, Gaspar Martins — Morte e
ressurreição : o Douro perante a filoxera in “ O
Douro Contemporâneo”, Lisboa, 2006, p 151-161
10 PEREIRA, Gaspar Martins — Morte e
ressurreição : o Douro perante a filoxera in “ O
Douro Contemporâneo”, Lisboa, 2006, p. 151-161.
2 11 Idem.
Ibidem.
3 MENDES, Manuel — Roteiro Sentimental,
Douro, 2002, Edição Fundação do Museu do
Douro, p. 185.
12 PEREIRA, Gaspar Martins — Morte e
ressurreição : o Douro perante a filoxera in “O
Douro Contemporâneo” , Lisboa, 2006, p.151-161.
4 Ibidem.
5 Idem.
13 PEREIRA, Gaspar Martins — morte e
ressurreição : o Douro perante a filoxera in “O
Douro Contemporâneo”, Lisboa, 2006, p. 151-161.
6 MAYOR, Visconde Villa — Manual de
Viticultura Prática, Imprensa da Universidade de
Coimbra, 1976.
7 BARRETO, António — Douro, Edições INAPA
s.a., 1993, p. 171.
8 MAYOR, Visconde Villa citado por
MAGALHÃES, Nuno — A cultura da vinha na
região do Douro in “Enciclopédia dos vinhos de
Portugal: O vinho do Porto – Vinho do Douro”,
Edições Chaves Ferreira, p. 171.
9 MAGALHÃES, Nuno — Técnicas vitícolas
e seu impacto na estrutura socio-económica
da exploração Duriense e na qualidade do
produto, in “O Douro Contemporâneo”,
GEHVID, 2006, p.171-177.
14 MENDES, Manuel — Roteiro Sentimental,
Douro, Edição Fundação do Museu do Douro,
2002, p.185.
15 BARROS, Amândio — Gastão Taborda e a
construção do Douro Contemporâneo, Edição
Fundação do Museu do Douro, 2008.
16 BARROS, Amândio — Gastão Taborda e a
construção do Douro Contemporâneo, Edição
Fundação do Museu do Douro, 2008.
17 BARROS, Amândio — Gastão Taborda e a
construção do Douro Contemporâneo, Edição
Fundação do Museu do Douro, 2008.
18 BARROS, Amândio — Gastão Taborda e a
construção do Douro Contemporâneo, Edição
Fundação do Museu do Douro, 2008.
19 BARROS, Amândio — Último relatório da
Estação Vitivinícola (1979) in “Gastão Taborda
e a construção do Douro Contemporâneo”,
Edição Fundação do Museu do Douro, 2008.
20 BARROS, Amândio — Gastão Taborda e a
construção do Douro Contemporâneo, Edição
Fundação do Museu do Douro, 2008
21 BARRETO, António — Douro, Edições
INAPA s.a., 1993, p. 171.
22 BARRETO, António — Douro, Edições
INAPA s.a., 1993, p. 171.
23 Antigos calços pré-filoxéricos
abandonados após a devastação das vinhas
pela filoxera, agora reocupados pela vegetação
indígena.
24 AGUIAR, Fernando Bianchi de; DIAS,
Jorge —A evolução das tecnologias vitícolas e
o padrão da paisagem. O caso do Alto Douro
vinhateiro in “O Douro Contemporâneo”,
GEHDIV, 2006, p.163-170
25 CCDRN — Alto Douro Vinhateiro Património
Mundial, Edição CCRDN, 2006, p. 211.
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a viticultura da região do douro
para as grandes empresas, para as adegas cooperativas, para associações de investigação
80
81
As grandes
transformações
da enologia na Região
dos Vinhos Verdes
ao virar do século
Anselmo Mendes
Anselmo Mendes Natural de Monção no Alto Minho da Região dos Vinhos Verdes.
Licenciado em Engenharia Agro-Industrial pelo Instituto Superior de Agronomia da
Universidade Técnica de Lisboa, e pós-graduação em Enologia pela Universidade
Católica do Porto. No início da sua carreira foi enólogo responsável na empresa Vinhos
Borges pela elaboração de vinhos do Porto e de Douro, de Verdes e de Dão. Em 1997
é considerado pela conceituada “Revista dos Vinhos” como Enólogo do Ano. A partir
de 1998 passa a ser consultor técnico de várias empresas vitivinícolas de nomeada, nas
regiões dos Vinhos Verdes, Douro, Dão e Alentejo. Nos finais dessa década, as suas origens
e competência chamam-no a tornar-se produtor de uvas de Alvarinho, das quais elabora
alguns dos mais conceituados vinhos dessa casta, na sub-região de Monção Melgaço,
e em Ribeira Lima vinhos da casta Loureiro, dignos de registo por parte da imprensa
especializada nacional e internacional (Wine Spectator, Decanter, Wine and Spirits, etc.)
82
Zona da recepção das uvas,
na Adega Cooperativa de Amarante
nho. Falamos de há 2 milhões de anos, quando o Australopitecos, “Macaco do Sul”, passa das 4 patas para a forma erecta. Aqui, possivelmente começa a apanhar bagas (uvas)
das vinhas selvagens enroscadas nas árvores. Contrariamente ao que muitos antropólogos pensam, a alimentação esteve sempre na base da civilização. A procura de comida e a
dieta humana condicionam os povos na sua atitude, nos seus movimentos e migrações,
nas guerras, etc. Essas bagas, com certeza, fermentavam, quer esmagadas quer inteiras
(fermentação intracelular). Para criar alguma polémica e teoria, podemos dizer que a cerveja é da era do cultivo e dos grãos, o vinho anterior àquela era.
Hoje, à luz dos conhecimentos actuais, é mais fácil, de forma espontânea, obter um
fermentado de bagos, do que de grãos. Os grãos estão mais associados à sedentarização.
As bagas com origem em trepadeiras são mais rústicas, espontâneas; não são, contudo,
do género vitis; melhor, não são exclusivamente uva, mas poderão ser amoras e frutos
que normalmente têm elevados teores de açúcar, conduzindo mais facilmente a uma bebida alcoólica. O vinho não teria de ser necessariamente como hoje o conhecemos, mas
a facilidade com que se obtém fermentação com intervenção humana mínima coloca
em dúvida, para mim, a sustentabilidade de que a cerveja é anterior ao vinho. Isto só faz
sentido na história da sedentarização.
Tendo sido alvo de muitos estudos, fascinante é pensar como terão sido os primeiros
O VINHO E A GRANDE
MARCHA
vinhos antes mesmo da sedentarização e, mais recentemente, no tempo dos Romanos, Gregos e da Época Medieval. Hoje é privilégio de alguns provar vinhos com mais
de 200 anos, mas imaginar como seriam os vinhos há 3.000-4.000 anos é um exercício
interessante. Mesmo antes, já as populações neolíticas tinham iniciado a grande marcha
e abandonado o coração do Médio Oriente, pois a revolução agrária e a sedentarização
levaram à explosão demográfica e aquela grande marcha entra, a ocidente, pela Europa
e Escandinávia; a sul, pela Africa; a norte e leste, pela Rússia. Mais tarde, os Gregos, para
suster a catástrofe alimentar, exportam artigos de luxo. Considerados os seus melhores
produtos o vinho e o azeite, fundam, por assim dizer, grandes feitorias em Itália e na Gália. Mas nunca o vinho esteve no centro das grandes lutas e conquistas, mas sim o cereal
e o pão. À semelhança de hoje com o petróleo, a luta do poder pelo cereal (trigo) levou a
que surgisse a grande nação que foi Roma. O vinho torna-se o luxo do banquete romano,
onde foram adoptados os excessos doutro povo que colonizou a Magna Grécia (Itália),
a norte, vindo da Ásia Menor: os Etruscos. Estes comiam e bebiam em excesso. Mesmo
assim, os Romanos copiaram-nos e conseguiram excedê-los. Aqui, o vinho, aliado a uma
dieta assente em trigo e frutas, era o Rei da festa.
83
as grandes transformações da enologia na região dos vinhos verdes ao virar do século
Antes da era do cultivo, terá acontecido um dos factos mais marcantes nas uvas de vi-
NO PRINCÍPIO
ERA O VINHO
84
São atribuídas aos Etruscos as formas altas das vinhas. Será que eles estiveram na Pe-
SOBREVIVER EM ALTURA
nínsula? No Noroeste português, as vinhas altas têm influência sua? Não me parece e
podemos dizer que estas formas são um acidente de 3-4 séculos. Estas formas tornam o
vinho mais perecível e este não aguentaria as viagens, no século XIV, a partir de Viana,
onde existia uma feitoria inglesa. Esses vinhos provinham do vale do Minho e Lima, não
sendo por acaso que aqui ocorreu a resistência às formas altas, associadas com árvores.
Hoje não é possível avistar nesta zona uma vide enleada numa árvore, o que demonstra
ter havido uma forte cultura da vinha baixa.
Mas quão questionável é hoje o aparecimento, no Noroeste, de formas altas... Não
é nenhum legado histórico, é fundamental haver obra de engenharia humana e uma
adaptação a novas circunstâncias e mudanças no quadro económico.
Principalmente os séculos XVII e XVIII assistem a grandes mudanças na nossa economia e demografia. Na verdade, a grande aptidão nacional para a cultura da vinha leva
esta a coabitar, em todo o país, com cereal (trigo e centeio), mais notoriamente nos séculos XV e XVI. Porém, nos séculos XVII e XVIII, a vinha tem forte expansão, sofrendo, no
final deste período, a acusação pombalina de conquistar área considerável ao cereal. Mas
Formas altas de condução
tradicional da vinha, na Região
Demarcada dos Vinhos Verdes
o Noroeste, neste período, tem quase 40% da produção nacional, mesmo tendo em conta
os factores contrários: expansão feroz do milho, crescimento demográfico (+ 50% em 100
anos), escassez de terras de cultivo.
ouro do Brasil, explosão demográfica, promovendo os agregados domésticos um maior consumo e uma maior procura de fontes de rendimento suplementares. Estão criadas as condições para plantar vinha em qualquer canto, bordadura de linha de água, beiras, caminhos,
etc… Aqui, o máximo aproveitamento requer altura para a produção máxima. A população
do Noroeste é 5-6 vezes superior ao resto do país, aproximadamente 30 habitantes / km2, em
vez de 6 a 10, no máximo. Claro que o excesso de produção rapidamente se fez sentir.
Em meados do século XVIII, o mercado interno atinge a saturação absoluta, dá-se a
completa queda dos preços, queda de vendas. Neste caso, a viticultura torna-se vítima
das suas próprias condições de crescimento.
Parece-me ter encontrado as fortes razões e os condicionamentos que levaram à
existência da vinha alta.
Mas porque não noutras regiões do país, as formas altas? A estrutura fundiária muito particular no Noroeste, minifúndio, a proximidade dos rendeiros e proprietários, uma
certa inaptidão do resto do país à produção cerealífera fazem com que a pressão sobre a
vinha não seja tão feroz como no Minho.
Convém relembrar que a importação forte do vinho, por parte da Inglaterra, é o
factor primordial do crescimento vitícola, muito sustentado pelo facto das lutas anglofrancesas e anglo-espanholas. Contudo, e mesmo num período áureo da economia portuguesa, com balanço comercial positivo, em pouco tempo não conseguimos resistir à
pressão externa e, no início do século XIX, as invasões napoleónicas põem fim ao áureo
sistema mercantil português. O resto já é sabido, o príncipe regente D. João, a troco da
protecção inglesa, abre os portos do Brasil ao comércio internacional, rui o exclusivo
colonial e com ele toda a lógica de funcionamento do sistema mercantil e a própria inserção portuguesa na economia mundial.
Os anos seguintes são de pouco engenho e de decadência económica. No caso da vinha do
Noroeste, cumpre a função do autoconsumo, não evolui e chega aos nossos dias. A história
repete-se e ensina-nos, pelo menos, alguns caminhos errados que devemos evitar no futuro.
A condução da vinha em altura, que tem a ver com a explosão demográfica e as descober-
A DESCOBERTA DE UM
VINHO NOVO E MUDANÇA
NA ALIMENTAÇÃO
tas marca um tipo de vinho popular que se afirmou no Mundo, o Vinho Verde. Contudo,
não está nas formas altas a originalidade, mas na capacidade dos homens domesticarem
e civilizarem um vinho agressivo para o palato. Sem dúvida que a alimentação minhota,
nas suas formas mais típicas e fortes, surge como forma de se harmonizar com aquele
tipo de vinho. Mesmo relegado para a borda dos campos, o engenho e arte do Homem
são capazes de fazer o milagre da “multiplicação do vinho”, com menos videiras a fazer
mais quantidade. Aquela comida forte e gordurosa aparece a criar harmonia com este
novo tipo de vinho, fruto da necessidade e “engenharia” humana.
Hoje as castas têm forte importância na determinação de um perfil de vinhos. Neste
caso, o factor principal foi o Homem que determinou, embora por pressões externas, o
85
as grandes transformações da enologia na região dos vinhos verdes ao virar do século
Naquele tempo, ocorre o crescimento vitícola desordenado, devido, em parte, à procura inglesa (mais de 90% do mercado externo), fundação do mercado colonial, mineração do
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Pipas numa adega tradicional.
Amarante, 2010
perfil do vinho hoje designado por verde. Penso que, com a pressão sobre a produção, os
vinhos teriam metade ou pouco mais do teor alcoólico dos nossos dias. Mesmo assim,
as zonas do vale do rio Minho e do vale do Lima com forte cultura vínica mantinham os
seus vinhos num nível superior, em qualidade e preço. Os grandes mercados eram Porto
e Lisboa, onde só podiam chegar vinhos com um nível alcoólico razoável. Os restantes
eram para consumo caseiro e muito perecíveis.
Alberto Sampaio, historiador e escritor, redigiu apontamentos que trocava com o seu
amigo Antero de Quental, no final do século XIX. Ele dedicou-se ao estudo da viticultura
do Minho e à enologia, fazendo numa quinta perto de Famalicão (Quinta Boamense)
experiências com castas e vinhos varietais. Concluiu que se devia fazer dois vinhos no
Minho, o tradicional de formas altas com castas indígenas, vinho de baixo grau e popular; e um outro, fino, com castas não só portuguesas como estrangeiras, em vinhas localizadas nas bouças, de formas baixas e vigor controlado. Este historiador podia assim
falar porque era conhecedor de grandes vinhos franceses e italianos. Com a antecipação
de mais de um século, traçou, grosso modo, o que podia ser a região, referindo já questões de zonagem e perfis de vinho.
O tal vinho novo está, no século XXI, prestes a dar lugar a outro vinho que, não sendo
pior nem melhor, é uma forma mais contemporânea e civilizada de vinho. Contudo, não
perde originalidade, porque esta advém das castas, solos e clima. Fruto das condições
económicas, o Homem adapta-se em tudo, mesmo na feitura dos vinhos. Outrora foi
Prensa e lagar numa adega
tradicional. Amarante, 2010
engenhoso, acabando surpreendido por um vinho novo; hoje, explorando o potencial,
caminha para uma competitividade duradoura que é a singularidade e originalidade dos
novos vinhos brancos do noroeste.
Não há no Mundo do vinho palavras tão controversas como VINHO VERDE. As justifica-
A CONTROVÉRSIA
DO “VINHO VERDE”.
UM ACIDENTE
DE 3-4 SÉCULOS
ções são diversas para esta denominação. Uns justificam-na pela paisagem verdejante do
Noroeste, outros pela expressão vegetativa da videira. Mas nada é feito ao acaso e há sempre uma justificação para os acontecimentos. A necessidade de fazer uvas em altura, com
menos área e maior produção, origina um vinho completamente diferente dos restantes
do país, mesmo do Mundo. Este vinho é um vinho de baixa graduação alcoólica, 8-9%, muito ácido e na verdade difícil de consumir numa alimentação mediterrânica. Daí, chamá-lo
“verde” por encerrar em si deficiente maturação. Na verdade, aparece um vinho novo e tinto que, durante mais de 3 séculos, vai condicionar um povo e a sua alimentação. Talvez, na
história do vinho, nunca algum tenha desempenhado tal papel de mudança. Os alimentos
da dieta humana do Noroeste Português mudaram com o aparecimento deste novo vinho.
A clivagem está dada e é total: de predominantemente tinto, passa a branco, mais
civilizado e de maior diversidade.
O primeiro branco de nível internacional foi o Alvarinho que obtém legislação diferenciando o produto por ter um teor alcoólico superior e um limite mínimo de 11,5% v/v,
as grandes transformações da enologia na região dos vinhos verdes ao virar do século
87
correspondente ao máximo para Vinho Verde. Um verdadeiro estrangulamento artificial,
88
como mais tarde se veio a verificar por alteração da lei anterior. Conforme as vinhas se
tornavam racionais, não só na sua condução como na escolha dos melhores solos e mais
bem expostos, também o teor alcoólico aumentava. Alguma da resistência à mudança
para formas baixas assentou em maiores teores de málico como garante do vinho único,
Vinho Verde. Tão pouco para garantir genuidade e autenticidade!!!
Os tintos que dominaram até finais dos anos 70 do séc. XX deram lugar aos brancos. E
OS TINTOS DÃO LUGAR
AOS BRANCOS
este ponto de viragem é um facto relevante, quase uma descoberta do elevado potencial
do Noroeste Português para a produção de brancos excelentes.
Os brancos são alvo de estudo e aparecem de imediato as castas brancas. O Alvarinho
já tinha dado alguns passos e a sua descoberta remonta aos anos 30, com expressão diminuta, dando-se a sua explosão nos anos 70-80-90. Já era considerada uma casta à parte, pelo
seu equilíbrio e harmonia do teor alcoólico, acidez e potencial de envelhecimento.
Mas outras castas entram em cena: Loureiro, Trajadura, Arinto, Azal e Avesso.
Digamos que o Loureiro é aquela que, a seguir ao Alvarinho, toma a posição de casta
aromática e singular, com o Vale do Lima como seu centro de estudo.
Mas a grande revolução que acompanha a expansão das castas brancas, dá-se na
enologia e no incremento tecnológico. Novas adegas, quintas em autêntica mudança
com novas vinhas, novas sistemas de condução.
As adegas construídas para fazer vinhos tintos – com lagares, autovinificadoras, desengaçadores centrífugos – dão lugar a adegas cheias de cubas inox, com equipamentos
de refrigeração, prensas horizontais de pratos e pneumáticas, desengaçadores e bombas
de transporte de massas modernas.
A história agora é outra, há que proteger os vinhos da oxidação, os brancos são mais
sensíveis e castas aromáticas como o Loureiro e o Alvarinho são alvo de estudo. Os primeiros vinhos, uns oxidam rapidamente, outros têm excesso de SO2. A acidez continua
elevada, em alguns casos imbebível.
Há um conceito, centrado na tradição, de que o Vinho Verde tem baixo grau alcoólico e os novos vinhos raramente ultrapassam 11%, com níveis de acidez sempre acima
de 7-8 graus/litro.
Nesta primeira fase, é privilegiada a parte aromática das castas e não o todo. O teor
alcoólico baixo é condicionado pela legislação que impede, à excepção do Alvarinho, que
os vinhos ultrapassem 11,5% vol.
A Região continua a inovar em tecnologia enológica e vitícola, mas sempre com o jugo
INOVAÇÃO AGARRADA
À TRADIÇÃO
da tradição, comparável a um limitador de velocidade. Poderei dizer que eram castradas
as possibilidades de equilíbrio de maturação e não raramente se ouvia que “este ano
fomos apanhados de surpresa e quando vindimamos já havia 12,5-13 graus em potência”.
Mas naquele cantinho do Alto Minho onde o Alvarinho mostrou a sua excelência,
essa limitação não existia, até porque podemos afirmar haver ali uma cultura vínica su-
as grandes transformações da enologia na região dos vinhos verdes ao virar do século
89
Lagar numa adega tradicional.
Amarante, 2010
perior ao resto da região, continuando a sonhar com o antes do “acidente Vinho Verde”.
Mas o que vai mudar? A região não fica indiferente à revolução vínica ocorrida nos anos
80 e 90 em todo o país, ao aparecimento de novas regiões, CVR, líderes de opinião, universidades a leccionar enologia, nova geração de enólogos e dirigentes, etc…
Pelo sucesso do Alvarinho, a região desperta, criou-se sub-regiões de acordo com os
vales, um princípio de zonagem, digamos, sem um estudo profundo, esta zonagem e a
sua ausência é provavelmente o “Calcanhar de Aquiles” da região.
Mas o engenho dos homens do Noroeste não existiu somente há 3-4 séculos, continua na actualidade. Nos anos 70-90, o elevado nível de exportação de Vinho Verde assenta
em vinhos de baixo grau alcoólico, equilibrados duma forma artificial com a presença de
açúcar residual e gás. Estes factores ainda hoje marcam a difusão deste vinho no mundo.
Nós hoje sabemos que caracterizar a região pelo baixo grau alcoólico não é intelectualmente correcto, revelando falta de argumentos que, no meu entender, sobejam.
A originalidade das castas e a acidez marcante que lhe confere frescura são elementos
por si só diferenciadores. Claro que os aspectos de zonagem e criação de identidades de
vinho ao longo dos vales da região é um trabalho ainda por fazer.
90
91
O Vinho Verde é assumido, no conjunto dos vinhos portugueses, como um vinho popular.
92
GLÓRIA E DECADÊNCIA
DE UM NOVO VINHO COM
PRETENSÕES ELITISTAS
Outro vinho aparece com um forte elitismo associado a quintas do Minho, algumas com
história, outras fruto de investimento com capitais vindos doutras áreas do negócio, nada
que não viria mais tarde a acontecer no país. Temos de dizer que no Minho começou a
revolução do vinho com identidade, castas, quintas e mesmo posicionamento. Esta revolução no Minho não pára, mas as quintas têm poucos anos de vida e vêm na verdade a
deteriorar-se até aos nossos dias. Contudo, não há um vinho novo com total diferenciação de tipicidade relativamente ao tal vinho de baixo grau alcoólico, doce e com CO2. Não
aparecem vinhos com posicionamento alto no mercado, focados na história das quintas.
Mudaram os vinhos, as ramadas e latadas deram lugar a vinhas contínuas de castas bem
identificadas em cruzetas, a imagem das garrafas mudou, mas na verdade o vinho pouco
mudou, são muito frutados e florais, com deficiente maturação e acidez pouco ou nada civilizada. Durou alguns anos a moda, mas rapidamente estes vinhos se eclipsaram porque
pouco ou nada acrescentaram aos vinhos existentes, que eram bem feitos do ponto de
vista tecnológico, fizeram sucesso no mundo e ainda fazem; claro, com preços que dificilmente sustentam uma viticultura racional, equilibrada, e o resultado está à vista: vinhas
decrépitas em auto-sustentação a necessitar de rápida reestruturação.
Aquelas quintas que podiam ter sido a glória da região fizeram novas vinhas, novas
adegas, mas não um vinho que marcasse a diferença. Que vinhos eram esses? Que características tinham? Eram, na sua maioria, muito aromáticos, muito ácidos e efémeros no
seu envelhecimento, evoluíam rapidamente para aromas oxidativos. Mas onde está o
problema? Na viticultura? Na enologia?
Lembro-me bem e também participei nos inúmeros ensaios feitos pela CVRVV nos anos
VITICULTURA E ENOLOGIA,
CAMINHOS DIVERGENTES
80, trabalhos de grande mérito orientados por uma equipa que encarnava o espírito
científico e de rigor do Eng.º Amândio Galhano. Estudavam as castas, métodos de vinificação, utilização do frio, temperaturas de fermentação, leveduras e enzimas. Entre
os investigadores da adega e os da vinha, a barreira de transmissão de conhecimento
era quase nula. Ninguém ousava questionar o que o outro fazia. Os homens da vinha
estudavam sistemas novos de condução, pensando que estaria nas formas o sucesso do
Vinho Verde. Contudo, um jugo estava sobre os seus ombros: Vinho Verde, vinho leve,
baixo grau alcoólico e acidez alta. Inovar na tradição nem sempre avalia potencial e dificilmente se criavam clivagens capazes de por em causa o existente.
Os homens da enologia eram poucos e jovens enólogos não existiam. Havia agrónomos com elevados conhecimentos em enologia e alguns bons adegueiros. E os empresários? Uns, acomodados ao seu negócio; outros investiam em tudo e mais qualquer coisa,
menos em recursos humanos e produção de vinho.
Os vinhos, de qualquer modo, continuam a melhorar e aqui são os enólogos que
Página anterior Cubas de fermentação,
na Adega Cooperativa de Amarante
lançam mão a novas tecnologias e dão avisos para a viticultura sobre que uvas querem e
em que estado as querem. Percebem o que se faz no resto do mundo, chegam perto dos
as grandes transformações da enologia na região dos vinhos verdes ao virar do século
93
Quinta de Azevedo, Barcelos
consumidores e recebem aplausos dos críticos. Ainda conquistam pequenos nichos de
mercado com experiências de novos vinhos, com maceração pelicular, fermentados e
estagiados em madeira, técnicas menos oxidativas, etc..
A Enologia descobre que há mais para além do duo baixo álcool / acidez elevada.
Existe por fazer a exploração do carácter varietal de cada casta, a localização das mesmas
para atingir o perfeito equilíbrio, formas diferenciadas de vinificação para cada uma delas. É também pela Enologia que se destroem mitos. O Alvarinho poderá viajar com sucesso pela Região? Com certeza. E o Loureiro, no Vale do Tâmega e Douro? Porque não?!!!
E o Avesso, em Monção, para substituir a Trajadura? Talvez…
Hoje, sem qualquer dúvida, o sucesso do Alvarinho dos anos 90 levou a que toda a região se
EMBALADOS PELO
SUCESSO DO ALVARINHO
contaminasse desse sucesso. Com a casta Alvarinho e outras, tentou-se imitar o que se passava no Vale do Rio Minho. Aqui surgiram novas quintas, mas essencialmente vinificadores
que, usando toda a tecnologia disponível, conseguiam fazer na adega o que nem sempre
era conseguido na vinha. Por si só, os vinhos não se tornam reconhecidos e felizmente em
Portugal surgem críticos de vinho, conhecedores do mundo vinícola, aqui e além fronteiras,
94
Palácio da Brejoeira, Monção
que começam a avaliá-los e a dizer claramente que, do que conhecem no mundo, o Alvarinho
poderá ser um caso de sucesso. E os consumidores e o trading ficam atentos.
Os outros vinhos varietais disparam e o Loureiro, merecidamente, como casta de uma
forte originalidade, também conquista os consumidores. Infelizmente, não mantém a
consistência e só volta a ser falada 20 anos depois. Trajadura, Avesso, Arinto e Azal surgem,
como cogumelos, numa fase importante para avaliar o potencial de cada uma delas e seus
blends. Há grande empenho em associar vales e castas, mas verdadeiramente sem algum
estudo científico. O caminho a seguir está nos vinhos feitos nesses vales que, com o seu
sucesso, determinam qual a casta a plantar em novas vinhas ou em reestruturações.
Num curto espaço de tempo, 30 anos, os vinhos passam de uma média de 9-10 graus para
O QUE MUDOU
FOI A ATITUDE
11-12 graus, aparecendo muitos vinhos já acima de 13 graus. O que mudou? Não foi o aquecimento global, nem as tecnologias vitícolas, um pouco as enológicas; na verdade, foi a
atitude de viticólogos e enólogos que, em conjunto, decidem não ter limitador de velocidade e aguardar pelos bons níveis de maturação e equilíbrio ácidos/açúcar. Os viticólogos,
com as noções bem claras da relação folhas/frutos, maximização da energia disponível, in-
as grandes transformações da enologia na região dos vinhos verdes ao virar do século
95
Palácio da Brejoeira, Monção
tervenções em verde e avaliação da maturação, contribuem para a mudança. Os enólogos,
preocupados com os efeitos da intervenção na vinha na qualidade do vinho, o transporte,
a temperatura das uvas, a decantação, a temperatura da fermentação, as leveduras utilizadas, os estágios sobre borras totais e borras finas, contribuem igualmente não só para
a subida do grau, mas também para o aperfeiçoamento e internacionalização do vinho.
Tudo isto leva a um novo vinho, com dotes de boa evolução em garrafa e capazes de ombrear, em provas internacionais, com grandes vinhos do mundo. Claro que, por vezes, há
excessos de ordem tecnológica que fazem perigar a originalidade dos vinhos.
Quando procuramos excelência, temos de ter cuidado com os excessos. Nos últimos
NÃO HÁ REVOLUÇÃO
SEM EXCESSOS
anos, houve uma tendência para os vinhos ficarem muito iguais, aromas tecnológicos,
frutos tropicais em excesso, cópias de carácter de grandes castas brancas do mundo
(Chardonnay e Sauvignon Blanc). Fazendo parte deste trajecto e desde que o objectivo
seja manter a originalidade, nós temos as castas capazes de realizar este objectivo. No
entanto, se em determinada região os recursos são escassos, por vezes a originalidade
tem custos e o caminho mais fácil é a imitação do que tem sucesso lá fora.
Brancos com elevada capacidade de envelhecimento já existem, fermentados com ou
96
OS BRANCOS DO NOSSO
CONTENTAMENTO
sem madeira, originais, com uma acidez inigualável no mundo e um carácter forte. Mas
a região com tantos vales tem agora, para cada um encontrar o caminho certo, as castas
adequadas e as vinhas bem delineadas.
Contudo, o Vale do Rio Minho com o Alvarinho, o Vale do Lima com o Loureiro e o
Vale do Douro e Tâmega com o Avesso parecem-me ter encontrado o perfil internacional de vinho com carácter e competitividade duradoura. Porém, os vinhos, para além da
originalidade, têm de ter harmonia, equilíbrio e, no mínimo, evoluírem bem durante os
primeiros 5 anos. Para consolidarmos tudo isto, todos os vales do Noroeste necessitam
de fazer a sua zonagem. É fundamental designar os locais onde elevar o potencial das
nossas castas, contudo, sem comprometer a paisagem vitícola; pelo contrário, há que
enaltecê-la. O jugo das formas altas está a chegar ao fim, sem termos perdido originalidade e competitividade. Aqueles vales têm “ambientes” associados à casta certa, lembrando uma frase que um anónimo dizia: “ Não há só petróleo na Arábia…”
Casta de baixo rendimento na vinha, dificilmente ultrapassa 6.000 kg/ha. Na adega con-
A FORÇA ENOLÓGICA
DAS CASTAS BRANCAS
DO NOROESTE PORTUGUÊS
tinua a ter rendimento baixo, talvez no mundo a casta de mais baixo rendimento, em
média 60% (1.000 kg – 600 litros).
Os níveis de álcool aceitáveis situam-se entre 12 e 13,5 % v/v. Abaixo de 12%, os vinhos são
muito vegetais e excessivamente ácidos, muito desequilibrados. As formas unicamente
Alvarinho
retombantes, em anos de muita produção, ficam desequilibradas, com relação folhas/
frutos baixa e originando vinhos herbáceos.
Em anos de maturação com temperaturas elevadas, a acidez baixa para níveis inferiores
a 5 g/l em acidez total, expressa em ácido tartárico, e pH superior a 3,4, pondo em causa a
harmonia gustativa, levando a uma perda de aromas varietais e a uma evolução rápida.
Na adega é medianamente sensível ao O2, tem teores elevados de taninos para uma casta
branca, permite macerações peliculares com ganhos consideráveis e mesmo curtimenta.
Devido a uma forte carga fenólica, evoluem sem oxidar para amarelos-limão e mesmo
amarelos-torrado (4-5 anos).
Requer decantações extremas, dá excelentes vinhos fermentados e estagiados em madeira. Perde muita da sua originalidade pelo uso de leveduras aromáticas.
Os descriptores sensoriais apontam para o carácter mineral dos vinhos provenientes de
encostas cujos solos se caracterizam por alta permeabilidade, e florais ou frutados em
cotas mais baixas em solos com calhau rolado e teor médio em argila.
O estágio em madeira sobre borras totais e em inox sobre borras finas confere-lhe longevidade. O envelhecimento em garrafa é positivo, desde que limitando o teor de oxigénio
nas operações de pré-engarrafamento.
Casta de produção média, poderá ultrapassar os 10.000 kg/ha. Rendimento, na adega, de 70-75%.
Trajadura
Consegue bons equilíbrios açucares/acidez com 10% v/v. Tendência a perder acidez na
maturação. Não é uma casta de elevado potencial, tem problemas de podridão. Na adega,
suporta bem o oxigénio, que não interfere muito na mudança dos aromas varietais.
Os seus aromas são ligeiramente amílicos e evoluem para aromas a verniz e farmácia.
A evolução em garrafa é negativa, a partir de 2 anos.
O seu casamento com o Alvarinho permite corrigir o excesso de acidez deste, na
maioria dos anos.
A casta mais aromática da região. Produção média 8.000 kg/ha. Não suporta produções
Loureiro
elevadas; mais que 15.000 kg/ha tornam os vinhos imbebíveis.
É capaz de, na maioria dos anos, dar vinhos equilibrados com 10,5 % v/v. Os anos de
maturação quente são-lhe favoráveis, mas precisa de temperaturas baixas na colheita
(<15ºC). Muito sensível à presença de oxigénio.
A maceração pelicular é favorável em anos de bom equilíbrio aromas/ácidos/açúcares. A decantação extrema é importante. Suporta fermentações a temperaturas baixas. A
sua alta intensidade aromática dispensa a utilização de leveduras aromáticas.
O estágio sobre borras é fundamental para a sua longevidade, mas o aparecimento
de compostos de enxofre é frequente e nefasto.
Ao contrário das opiniões dos anos 80, que diziam estarem oxidados os vinhos da casta
Loureiro ao fim de 1 ano, posso hoje dizer que alguns suportam para lá dos 10 anos em garrafa. Os aromas iniciais são florais e cítricos, evoluindo para uma mineralidade excelente.
Casta de grande plasticidade, tem engrandecido muitos vinhos no país.
Arinto
Requer maturações perto de 13% v/v e, em anos frescos, o carácter vegetal prejudica-a.
De média a alta produção, é talvez das castas do Noroeste que suporta bem produções altas.
Aparentemente, suporta bem o oxigénio, mas este tem efeitos irreparáveis no vinho final. As decantações não podem ser extremamente clarificantes, o que leva a vinhos com tendências redutivas e à formação de compostos de enxofre, com frequência.
Os seus vinhos são medianamente aromáticos, a frutas verdes, com evolução para
aromas minerais e apetrolados com o tempo de estágio em garrafa.
A fermentação em madeira é favorável ao equilíbrio da casta e o estágio sobre borras
finas e nunca totais tem tanto de favorável como de perigoso. É necessária uma prova
diária dos vinhos, após fermentação alcoólica.
Uma grande promessa. Casta para níveis altos de açúcar, sem perder os ácidos. Mediana
Avesso
a produzir, as altas produções acentuam-lhe o carácter vegetal e metálico. Ao contrário
do Alvarinho e do Loureiro, precisa de luz nos cachos e é normal encontrar vinhos com
14% v/v e acidez total acima de 7 g/l em ácido tartárico.
Favorável a processos redutivos, o estágio sobre borras totais ou finas requer alguns
microgramas de O2. Não necessita de leveduras aromáticas, porque tem muito carácter
e expressão frutada.
O envelhecimento em garrafa é muito positivo, desde que acauteladas as ausências de O2
no pré-engarrafamento. Não necessita de maceração pelicular, sendo esta, por vezes, nefasta.
97
as grandes transformações da enologia na região dos vinhos verdes ao virar do século
Permite fermentações a baixa temperatura e suporta leveduras aromáticas. A decantação a frio é fundamental e as borras finas ou totais pouco engrandecem esta casta.
Muito controversa. Em alguns anos, surpreende-nos. Pelo seu nível alto de acidez, foi a
98
Azal
casta que muitos pensavam caracterizar o Vinho Verde.
Quase insensível ao O2, só dá vinhos equilibrados em anos muito quentes e de maturação excelente.
Do ponto de vista aromático, é quase neutra e beneficia com a utilização de leveduras aromáticas. Sobre borras finas, melhora os aspectos gustativos. Juntamente com a
Trajadura, são, do meu ponto de vista, as de menor interesse.
Os tintos do séc. XIV da zona de Monção são uma opção dos ingleses, em alternativa aos
OS TINTOS EM RECESSÃO
tintos da Borgonha, por causa da guerra dos 100 anos, tendo-se tornado uma alternativa de
qualidade a estes. Mesmo sem adição de álcool, eles viajam bem e são apreciados. Jamais
se refere que sejam excessivamente ácidos ou de baixa graduação alcoólica. Longe estavam
esses vinhos de ter a designação Verde. Esta aparece com a necessidade de produzir mais
comida e mais vinho para uma população que, em 50 anos, duplicou. Realmente, nasce um
vinho novo que muda a paisagem, a alimentação e o modo de vida das pessoas do Noroeste português. Só nos finais do séc. XX este vinho entra realmente em decadência. Não será
a casta Vinhão que inverterá aquela tendência; os brancos fizeram a revolução e com os
tintos ela não ocorreu. Não haverá potencial para tintos? Nem pensar, porque os grandes
vinhos do mundo foram sempre vinhos elegantes e finos (os do séc. XIV eram finos, com
certeza, pois foram os escolhidos para substituir os Borgonha, de perfil elegante e fino).
Hoje, os vinhos tintos “potentes” são moda, mas a moda passa e o carácter fica. Penso
que faltam as castas adequadas à elaboração de tintos de nível mundial e, obviamente, o
seu estudo. Decerto o conde da Borgonha mandou trazer, no séc. XII, para o Noroeste de
Portugal, vides da Borgonha. Os tintos de Monção do séc. XIV são referidos de cor palhete,
fortes de álcool e sabor macio. Ainda ficaram para os dias de hoje algumas resistências aos
vinhos com muita cor nesta região e a casta Vinhão, muito apreciada na sua rusticidade,
não condiz com a elegância e finura de um grande vinho tinto.
Como equacionar a revolução nos vinhos? Um perfil de vinho que se manteve 3-4 séculos
VINHOS DO NOROESTE
OU VINHO VERDE
mostra bem quanto de genuíno e original há nele. Mas, se introduzirmos alterações às
formas altas e invertermos a maior parte da produção para vinhos brancos, fará sentido
chamar verde a um vinho ? Seguramente, porque a Demarcação da Região constitui um
património histórico e porque os vinhos, quer brancos então em maioria, quer tintos,
manterão as características fundamentais que originaram a sua distinção relativamente
a vinhos de outras Regiões vitícolas. E o tal vinho de baixo grau, doce e com CO2 perdurará? Talvez porque são vinhos procurados, mas nunca terão estatuto de grande vinho e
dificilmente sustentarão uma viticultura de qualidade.
A discussão verde ou não-verde assentará mais na forma do que no conteúdo e poderá
resistir mesmo a uma mudança de paisagem vitícola.
A notoriedade desta região do Noroeste está agora no início, podendo a sua afirmação durar algumas décadas.
O património é rico, de castas genuínas com elevado potencial de produção de vinhos, rios que serpenteiam vales com mais ou menos influência marítima, solos com
alguma fertilidade, que já mostraram produzir bons vinhos brancos e tintos.
A zonagem é um ponto fraco, será necessário fazê-la, a dimensão de propriedade tem
de ser alterada, menos parcelas com os mesmos proprietários, em prol da paisagem vitícola e considerando a escassez de recursos materiais e humanos. Os vinhos têm de ganhar
notoriedade internacional, em suma, caminhar rumo a uma região vitícola de reconhecimento mundial pela qualidade e nível dos seus vinhos, dos seus homens e da sua história.
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100
101
Vinha, vinho e vida
Um retrato da Região do
Douro dos últimos tempos
João Nicolau de Almeida
João Nicolau de Almeida É natural do Porto, com fortes ligações familiares e
profissionais quer à região do Douro quer à dos Vinhos Verdes. Diplomou-se
em Enologia pela Universidade de Bordeaux. Terminado o curso dedicou-se de
imediato à enologia tendo efectuado estudos inovatórios sobre as principais castas
durienses, cujos resultados muito contribuíram para a reconversão e modernização da
vitivinicultura da Região do Douro. Até à data, sempre ligado à empresa Ramos Pinto,
da qual é actualmente Enólogo Director e Administrador Delegado, criou inúmeros
vinhos, do Porto e de designação Douro, de qualidade superior, que lhe valeram os
mais elevados galardões na imprensa, e em concursos nacionais e internacionais. Ele
próprio como enólogo tem recebido as maiores distinções, das quais se salienta a
atribuição de Enólogo do Ano a nível Mundial, pela revista Wine & Spirits, em 1998.
102
Sala de provas: “o piano”
nasci no seio de duas famílias estreitamente ligadas a casas exportadoras.
Aos 7 anos, decorria o ano de 1956, o meu irmão gémeo e eu tivemos autorização
para jantar à mesa com os meus pais e irmãos mais velhos. Todos os dias sem excepção
era obrigatório jantar de blazer e gravata. Depois de banho tomado e já de pijama, tínhamos que vestir um casaco e uma gravata com o nó já feito, que nos esganava o pescoço
com um elástico sempre muito bem apertado. Estavam assim cumpridos todos os requisitos para sermos aceites à mesa senhorial.
Depois de uma refeição cheia das repreensões do costume (tira os cotovelos da
mesa, come com a boca fechada, está quieto com as pernas, etc.), tínhamos direito a um
cálice de vinho do porto tawny, costume que era um ritual obrigatório lá em casa.
Mais tarde, quase diariamente, éramos confrontados à mesa com amostras que o
meu pai, Fernando Nicolau de Almeida, trazia da Ferreirinha. O seu grande objectivo
era saber o veredicto da nossa mãe. Disfarçadamente, punha as diferentes amostras em
cima da mesa, observando pelo canto do olho a reacção dela enquanto todos nós dávamos palpites, a torto e a direito.
Outra cena característica destes jantares era o facto de o nosso provador-mestre nunca
se apresentar à mesa com uma só garrafa. Havia sempre duas, uma quente, quase em ebulição, e outra fria, com que fazia blends para obter a temperatura ideal. Se fosse jantar fora, a
cena repetia-se: levava as suas duas garrafas, não só por causa do problema da temperatura,
mas também porque achava que a maior parte dos vinhos que lhe ofereciam eram péssimos. Na realidade, a grande maioria dos vinhos, se não tivesse acidez volátil, tinha uma boa
dose de aromas exteriores ao vinho, ligados ao vasilhame, considerados aceitáveis na época.
Ao longo do tempo, fomos igualmente apreciando as pinturas humorísticas que o
nosso pai fazia sobre o mundo vinícola.
Outro contacto com o vinho era feito durante as férias, em que o meu irmão e eu
éramos obrigados a ir trabalhar para os armazéns da família, Adolfo Oliveira & Nicolau
de Almeida, como castigo por termos tido más notas ou mesmo chumbado nos exames.
Às 6 da manhã, o meu irmão e eu apanhávamos o eléctrico n.º 1, cujo cheiro a sardinha e
a xaile húmido nos despertava para um novo dia. De seguida, um trolley deixava-nos nas
Devezas, perto dos ditos armazéns. O cheiro que reinava lá dentro era magnífico. Uma
infinidade de aromas exóticos escapava-se dos balseiros de Porto que o meu pai comprava novos, envelhecia com grande mestria e neles fazia tawnies ultra-exuberantes. Eram
vinhos generosos que, segundo a sua definição, tinham de ser bons para si e para os
outros, ou seja, tinham que ter uma concentração de sabores e aromas suficiente forte
para se poderem balizar com outros menos intensos, conferindo-lhes, assim, qualidade
e elegância. Por isso estes vinhos eram cuidadosamente trabalhados para serem vendidos, a granel, às casas exportadoras, a fim de que estas os balizassem para poder fazer as
diversas categorias comerciais de Vinho do Porto. Os lotes eram feitos essencialmente
com duas medidas: os almudes e as canadas, que eram recipientes de madeira com 25
Um provador na Idade Média
Pintura de Fernando Nicolau de Almeida
Arquivo pessoal JNA
e 2 litros, respectivamente. Nos armazéns viam-se constantemente trabalhadores com
estas vasilhas à cabeça, para se fazer o lote aprovado na sala de provas.
103
vinha, vinho e vida
Entrei muito mais cedo no mundo do Vinho do Porto, do que no mundo do Douro, pois
A PRETO E BRANCO,
MEMÓRIAS DO PASSADO
104
O meu pai chegava pouco depois da abertura, ou mesmo antes, para controlar as suas
tropas. Vinha sempre de fato e gravata, cabelo com Brylcream e chapéu de feltro. Mal entrava, punha as suas sensibilidades olfactivas alerta, detectando por vezes algum cheiro que
não lhe agradava. Aí, o caldo ficava entornado. Pegava então num copo de vinho tawny que
nos dava a cheirar, perguntando-nos se aquele cheiro tinha alguma coisa a ver com aquele
outro, desagradável, que ele sentia por ali. Lá tínhamos, então, que lavar tudo repetidíssimas vezes, até que a dominante fosse simplesmente cheiro a limpo, cristalino.
Ao almoço comíamos, com o resto dos empregados, uma posta de bacalhau assado
na brasa, regado com uns copos de vinho. Se não suspeitássemos de que o nosso pai
poderia aparecer, dormíamos uma bela sesta debaixo dos balseiros, entre o cheiro húmido da terra e os aromas dos tawnies. Ainda hoje tenho uma forte recordação daqueles
vapores dos vinhos velhos, tão raros de se encontrar, hoje em dia.
Socialmente, a relação com o sector do Vinho do Porto era igualmente forte, pois
os meus pais davam-se muito com a comunidade inglesa. Eram constantes os cocktails e
jantares em casa de ingleses ou na Feitoria, sempre bem regados: champagne velho para
o aperitivo, Barca Velha para acompanhar a refeição, e o Vintage bebia-se com os queijos
sempre à luz de velas, seguido-se o Tawny, que acompanhava os doces. Nós, os mais novos, tínhamos que ir às festas dos amigos ingleses. Muitas delas eram no Oporto Golf
Club ou no Oporto Cricket Club, onde só se falava inglês e onde participavamos em todos os seus jogos e desportos: corridas enfiados em sacos de serapilheira ou levando
na boca uma colher com uma batata que não se podia deixar cair e, como desporto, o
famoso cricket cujas regras nunca consegui perceber. No Natal, a festa na Feitoria inglesa
era obrigatória. Não sabíamos falar inglês, mas as conversas eram fluentes. Até hoje, não
entendo como é que isso acontecia.
Em relação ao Douro, apenas sabia que era um sítio muito longínquo e muito quente. Diziam-me que o vinho nascia da pedra e isso fascinava-me. Mas eis algumas recordações que retive dessa região:
Em águas calmas, num barco rabelo, encontra-se o meu pai, de chapéu de feltro, gravata e casaco de linho, a controlar os preparativos do almoço para os seus convidados ingleses, referindo-lhes, ao mesmo tempo, algumas características daquela terra e daquelas
gentes. Na ré, o arrais, já com as velas em baixo e os remos no interior do barco, faziam uma
pequena fogueira para aquecer os potes em ferro preto, cujos tripés estavam sempre na
iminência de virar. Ao lado, numa espécie de chapa, assava o bacalhau, enviando periodicamente uma baforada para os visitantes que, apesar do calor, não tomavam banho. Penso
que seria muito complicado tirar toda aquela indumentária: chapéu, casaco, colete, gravata, suspensórios, calças, etc., etc… Refrescavam-se com um Porto branco, aperitivo. Para
acompanhar o bacalhau, vinha um tinto, selando-se a refeição com um delicioso Porto. A
sorna instalava-se, para alegria do arrais e companheiros, que tiravam os restos do vinho a
limpo. Mas eis que era chegada a hora de enfrentar os próximos rápidos. Com emoção, os
vapores alcoólicos davam lugar à curiosidade, ao medo, à aventura.
«Larga o barco, porra, não está bem! Atira a corda, salta para dentro» – e, lentamente, a barcaça de toneladas de madeira começava a deslizar. Ao avistar as primeiras espumas do estreito, começa a gritaria. «Vira para a direita, mete o remo para dentro, segura
a vela!» O barco avança com todo o seu peso no limite do desgoverno, entre as pedras,
vinha, vinho e vida
105
Fernando Nicolau de Almeida
atrás e Jaime Olazabal a meio,
com clientes no Douro
Arquivo pessoal JNA
batendo por baixo, pelos lados, um ruído ensurdecedor; e, como que por milagre, quando abro os olhos, estamos novamente em águas calmas.
«Venha daí um copito para aliviar a malta» – dizia o arrais (ouvi dizer que as pipas,
cuja capacidade é de 550 litros, eram então de 600 litros para que se pudessem subtrair as
aflições do percurso). Havia dois tipos de barcos rabelos: os que levavam mais de 40 pipas eram os “barcos”; e os mais pequenos, que transportavam 20 a 40 pipas, chamavamse “barquinhas” ou “barquinhos”.
Outra, das boas recordações que tenho da minha infância, era as idas ao Douro à
vindima. Naquela altura (anos 60), apenas nesta época os provadores ficavam no Douro,
onde o calor era abrasador, os mosquitos incansáveis, o pó secava a boca e as noites não
arrefeciam. Partiam no início da vindima, por estradas de terra batida, e só apareciam 1
ou 2 meses depois, com um cheiro totalmente diferente daquele a que estávamos habituados e cobertos de pó que se entranhava em todas as reentrâncias dos carros, sapatos,
bolsos, cabelo, etc., sendo recebidos como verdadeiros heróis. Depois de atravessar a
estrada em terra batida, que dava acesso à região através do Alto do Cavalinho, chegávamos à Régua, que parecia perdida no tempo. Não se assistia a qualquer mudança nessa
cidade, havia muitos anos. Havia apenas um restaurante, onde os empregados vestiam
um smoking, reluzente e ultra-coçado. Era aí que se encontravam os provadores de Gaia
106
Na década de 70 a maioria
das casas das aldeias ainda
eram construídas em xisto
com os respectivos responsáveis durienses, o que constituía uma cerimónia pitoresca,
de V. Exa. para cá, V. Exa. para lá. Depois de algumas conversas nos escritórios da Régua, partíamos então para a visita das quintas: Valado, Quinta do Porto, Eira Velha, Roriz,
Bom Retiro (esta a título particular, pois era da família da minha mãe), Ventozelo e outras. Por último, a mítica quinta do Vale do Meão.
Saíamos de madrugada e, durante 8 horas, a conversa era sempre a mesma: do Porto até
ao Marão, o clima é atlântico, os solos são graníticos e o vinho é verde. Do Marão para lá, o
solo é de xisto, o clima é mediterrâneo e os vinhos são maduros. Obrigados a apontar todas
as informações num caderno para o efeito, o enjoo era frequente. A meio do caminho, pernoitávamos no único sítio público minimamente decente em todo o Douro, a estalagem de
Alijó. Lembro-me de que era uma senhora belga que explorava o estabelecimento.
No dia seguinte, pelas 6 horas, ala que se faz tarde, rapazes, temos que chegar
depressa ao Meão.
Esta quinta era diferente de tudo que já conhecíamos no Douro. Era muito, muito
longe, mais quente e mais árida que todas as outras, dando-nos, quando lá chegávamos,
uma sensação de conquista. Para lá do Meão, era o infinito!!! O meu irmão e eu ficávamos
horas a discutir o que estaria para lá daqueles montes. O fim do mundo?
ções das uvas para poder produzir o Barca Velha, o primeiro vinho de consumo, engarrafado numa estratégia comercial, feito no Douro. Este vinho obteve um enorme sucesso,
pois em relação aos vinhos existentes representou um enorme salto qualitativo. Até aí,
os vinhos, na sua maior parte, eram rústicos e com muitos defeitos, devido às vasilhas
que eram impróprias, a alterações microbiológicas e às fermentações a altas temperaturas, que originavam fermentações secundárias eliminando assim os cheiros próprios
dos frutos, queimando os vinhos. Com a fermentação controlada pelo frio (o gelo), o
envasilhamento em cascos de carvalho novos e rigorosamente escolhidos, o vinho resultante era, pela primeira vez, um vinho frutado, limpo de cheiros, combinando equilibradamente os aromas de fruto e madeira nova. A madeira era carvalho português e o
vinho aí armazenado absorvia uma quantidade considerável de taninos; por isso o meu
pai insistia afincadamente que o vinho tinha de ter tempo para amadurecer na garrafa,
pelo menos 7 anos, para assim, quando chegasse ao consumidor, se apresentasse mais
macio, equilibrado, elegante e sofisticado. Assim a casa Ferreirinha explorou este filão,
até que, nos anos 80, quintas como o Infantado, do Cotto e da Pacheca começaram a
lançar no país quantidades pequenas de vinho do Douro engarrafado.
Eis o Douro que eu conheci enquanto criança e jovem, uma região isolada do resto
do país, encantadora por um lado, onde as casas em xisto mal se apercebiam de tal forma estavam integradas na paisagem, mas por outro, devido a esse isolamento, uma região totalmente estagnada, sem estradas minimamente viáveis, sem luz, sem instrução.
No final do séc. XIX, apenas alguns curiosos, como Cincinato da Costa, Visconde
de Vila Maior, Rebelo Valente, entre outros, tinham estudado cientificamente o Douro,
principalmente as suas duas primeiras sub-regiões (Baixo Corgo e Cima Corgo). Sobre o
Douro Superior, pouco se sabia. A seguir às duas guerras, estes estudos pararam e a vida
agrícola continuava, como se na Idade Média estivéssemos. O interior do país foi votado,
definitivamente, ao abandono.
A minha visão do Douro é, evidentemente, uma visão pessoal, que diz respeito ao mun-
RETORNO AO DOURO
ESTUDO DE CASTAS
do em que eu próprio vivi. Em primeiro lugar, tirando a época da vindima, tinha muito
pouca gente do sector com quem conversar sobre os problemas que se me apresentavam
na região, a não ser o meu tio José Rosas. Havia muito poucos jovens e, muito menos,
jovens formados em Enologia. Os acessos eram difíceis e as comunicações péssimas.
Pode-se dizer que, quando se ia para o Douro, ficava-se completamente isolado nas
quintas. Assim, do que eu posso melhor falar é exactamente do mundo das ditas quintas onde trabalhei e da minha própria experiência. A intensidade de trabalhos em que
estava envolvido e a variedade de pesquisas a que me tinha dedicado fizeram com que
me envolvesse nesse mundo mais restrito.
Quando em 1976 comecei a trabalhar na região, acabado de chegar da Universidade de
Bordéus onde a ciência da vitivinicultura estava já no patamar da era moderna, foi um panorama semi-medieval que encontrei. Aqui, em Portugal, não existia o curso de Enologia. Cada
107
vinha, vinho e vida
Finalmente, chegava a camioneta proveniente de Matosinhos, com toneladas de
gelo encomendado pelo meu pai que, desta forma, controlava as tumultuosas fermenta-
108
casa exportadora tinha o seu provador que apenas ia ao Douro para fazer o vinho durante a
época da vindima e, mal terminada esta, retornava ao Porto. A viticultura estava entregue aos
poucos Engenheiros Agrónomos e Regentes Agrícolas dos centros de Estudos Vitivinícolas
do Douro, que, na maior parte do tempo, tratavam dos problemas administrativos.
Havia porém os carolas que, com o pouco dinheiro que tinham, dedicavam-se de corpo e alma ao estudo da região, preocupando-se com a falta de conhecimento sobre porta-enxertos, castas, podas, maturações, etc. Dentre eles, há que destacar o Eng.º Gastão
Taborda, um homem de grande simplicidade, com uma dedicação e curiosidade, sobre
as vinhas, fora do vulgar. Quando cheguei, convidou-me para ver e analisar os trabalhos
que já tinha feito. Entrei numa cave e vi milhares de dados, gráficos, um verdadeiro tesouro. Sensibilizado com o meu espanto e admiração disse-me: “Eu consegui todos estes
dados, agora é preciso trabalhá-los! Quanto ao vinho, vocês é que sabem.” Pela mão de
outro explorador e estudioso destes assuntos, José Rosas, fui levado por várias vezes à
Quinta de St.ª Bárbara, pertença do Centro de Estudos Vitivinícolas do Douro (CEVD), onde
me inteiravam dos problemas que tinham para estudar as castas. Já havia noções sobre as
características de algumas castas, sendo a Touriga Nacional a que mais os entusiasmava.
No entanto, essa casta era praticamente inexistente devido à sua fraquíssima produtividade. No Bom Retiro foi plantado um talhão com Touriga Nacional, em 1977, que teve de
ser arrancada pois não produzia quase nada. Era uma casta completamente degenerada.
No estudo de castas, com o Eng.º Taborda colaboravam José Rosas, John Smith, António Serôdio, John Graham, Bruce Guimaraens entre outros, mas todos se queixavam
de que não existiam meios mais apurados e modernos para esse estudo. Os vinhos perdiam as suas definições varietais que eram encobertas por cheiros que não do vinho,
devido à falta de higiene e tecnologia. Era difícil fazer uma selecção. Os estudos sobre o
vinho e sobre a vinha nunca eram feitos em conjunto, nem pela mesma pessoa. Os Srs.
de Gaia é que sabiam se os vinhos eram bons ou não e as pessoas que trabalhavam na
vinha é que sabiam sobre ela. Estes dois mundos estavam de costas voltadas. Foi neste
ambiente de indefinição que José Rosas me incentivou para aprofundar o estudo das
castas e suas propriedades, pois o conhecimento adquirido estava perdido.
A maior parte das pessoas dessa geração não falava de castas, mas sim de vinhas.
Aquela vinha é boa, mas a outra ao lado é fraca. Na mesma vinha coexistia uma grande
variedade de castas, inclusive, tintas e brancas. Plantava-se um pouco com o que se tinha
à mão. A casta não tinha grande importância. Exemplo disso é a classificação de Moreira
da Fonseca, em que o valor varietal representa apenas 8% em 30% do total dos valores
qualitativos da vinha. Podia ser que alguém soubesse alguma coisa sobre o assunto, mas
o certo é que, no geral, não se dava valor à casta, achando-se, mesmo, que as vinhas deveriam ser plantadas como o eram tradicionalmente, ou seja, com as castas todas misturadas, desconhecendo-se o real potencial de cada uma. Já no séc. XVI, Rui Fernandes dizia:
plantam-se muitas castas para, se num ano não derem umas, darão as outras.
Ora, cuidar duma vinha anos seguidos e ter o azar de plantar más variedades, que
produziam vinhos medíocres, era um risco muito pesado.
Quanto ao porta-enxerto, o utilizado era o Rupestris du Lot (“Montícula”), desde a
resolução do problema da filoxera. A poda era a Guyot, simples ou dupla, estando as
vinhas, nesta altura, na sua maior parte, já aramadas.
vinha, vinho e vida
109
José António Ramos Pinto Rosas. Um
duriense responsável por grandes
mudanças no Douro
Arquivo pessoal JNA
O vinho vendia-se, mas grande parte a granel e a baixo preço. Funcionava o famoso
cartão de benefício que dava, e ainda dá, alguma segurança ao viticultor.
Entretanto, e no seguimento de cuidadosos estudos de cartas militares, em que nenhum detalhe era esquecido – curvas de nível, exposição e linhas de água –, em 1972,
numa caminhada pelos montes (não havia estradas), José Rosas deu de caras, finalmente, com a Quinta de St.ª Maria (hoje Ervamoira). Ficou de imediato apaixonado pelo local,
que tinha uma paisagem verdadeiramente bíblica e, devido ao seu pouco declive, tinha
as condições ideais para se poder mecanizar. Além disso, devido ao clima seco, as uvas
das vinhas a plantar seriam naturalmente sãs. Com o rio Côa ao lado, estavam assim
reunidas as condições para produzir com rentabilidade e qualidade. Estava diante da
quinta do futuro, diante da quinta dos seus sonhos. Pelo feitor da quinta, o Sr. José Sobral, conseguiu o contacto dos proprietários e, em 1974, em plena revolução dos cravos,
Ervamoira é adquirida pela Casa Ramos Pinto. Escolheu o Douro Superior exactamente
por ser uma região que não estava ainda “conspurcada”, como ele dizia, para iniciar uma
nova era para o Vinho do Douro. Quando lá me levou em 1976, fiquei deslumbrado, emocionado com o cenário que tinha perante os olhos: uma grande extensão de terra árida
110
com algum cereal plantado, que nos transportava a tempos míticos, fora deste mundo.
O silêncio era imenso, quase que podíamos ouvi-lo, e a paz era total.
Segundo ele, o que se estava a fazer no Douro não tinha sentido e, ainda para mais,
sendo uma pessoa que tinha conhecimento do que se fazia por esse mundo fora, José
Rosas, membro do O.I.V., Director da Associação das Empresas de Vinho do Porto e consultor do Instituto do Vinho do Porto, sabia muito bem o estado lastimoso em que a
região do Douro tinha caído.
Com conhecimento do que se fazia no Baixo e Cima Corgo, e sabendo que a pouca
evolução havida tinha parado no tempo, o que ele procurava era uma região virgem e ideal
para uma viticultura moderna, pensada, aproveitando o conhecimento varietal e científico. No início da década de 70, o Douro reduzia-se fundamentalmente ao chamado Douro
vinhateiro, também chamado de Alto Douro, e que compreendia as sub-regiões do Baixo
e Cima Corgo. No Douro Superior também havia vinha plantada, não nos esqueçamos das
Quintas da D. Antónia, mas não era generalizada como o é hoje em dia, talvez devido ao
difícil acesso: pelo rio, para lá do Cachão da Valeira, de trágica memória, não se navegava. A
amendoeira e a oliveira ocupavam a maior parte dos terrenos hoje dedicados à viticultura.
Devido às grandes dificuldades de comunicação com o resto da região, esta parte do Douro
estava mais ligada a Coimbra, e mesmo a Lisboa, do que ao Porto, e o facto é que ainda hoje
a cultura do Douro Superior nada tem a ver com a das outras duas sub-regiões.
Mas voltando à minha chegada à região, José Rosas, ao ver o meu espanto pelo
atraso quase medieval existente, comparado com o que tinha visto em França, lançou-me o isco. E agora, o que é que vamos plantar nesta nova quinta? Quais os portaenxertos, castas? Como se resolve o problema da mecanização? O trabalho era imenso
e ambicioso, mas extremamente cativante. Não hesitei, dizendo-lhe: “Mãos à obra,
vamos lá tentar resolver este imbróglio”.
Em Bordéus tinha tido a oportunidade de estagiar no Château de Saint Caprais, propriedade do professor Jean Ribereau Gayon, onde se faziam estudos de microvinificação
sobre vários assuntos para os famosos Tratados de Enologia. Os meus colegas, imagine-se, eram os meus professores Yves Glorie e Christian Séguin, entre outros. Era uma
oportunidade única trabalhar com estes homens que tinham um conhecimento que me
deixava aterrorizado. Incumbiram-me de fazer algumas análises e de ajudar na adega. Ao
fim da tarde, o Prof. Jean Ribéreau Gayon vinha buscar os resultados, que passava para
os seus famosos Tratados. Para mim, era como se Deus descesse à Terra, o que me fazia
passar toda a noite preocupado com a possibilidade de me ter enganado nalguma coisa.
Criei muita amizade com toda a gente, inclusive, com um assistente japonês que espiava
tudo, desde a corrente eléctrica à espessura do cimento, e fotografava todos os parafusos. Um dia, escondemos-lhe a máquina fotográfica e aí a coisa ficou séria. Por vezes, no
Outono, após um maravilhoso almoço num restaurante típico da campagne, partíamos
à procura de cogumelos, os cèpes, como se de caça tratasse. À noite, acompanhados do
vinho dos anos anteriores, constituíam um final de dia perfeito. Muito devido a esse estágio, senti-me com coragem de aceitar o desafio de Ervamoira proposto por José Rosas.
Desde 1967 que a Estação Vitivinícola tinha montado 4 campos de experimentação
de castas e porta-enxertos, de onde, como já referi, o Eng.º Taborda tirava milhares de
vinha, vinho e vida
111
Paulo Costa. Estagiário
nos estudos das castas
Arquivo pessoal JNA
dados que ficavam por trabalhar. Um desses campos ficava exactamente na Quinta do
Bom Retiro (os outros dois ficavam um no Pocinho e o outro no Baixo Corgo).
Em meados de Setembro, quando a vindima começou na Quinta do Bom Retiro, fiquei
excitadíssimo pois tinha chegado finalmente a altura de vinificar o famoso Vinho do Porto.
Estava eu em preparativos, quando José Rosas se voltou para mim e disse: “Ó rapaz, isto de
vinificação sabemos nós há muito tempo, o que tu vais fazer é ir para o campo procurar as
diferentes variedades e estudá-las”. Fiquei, como se pode imaginar, muito decepcionado e
algo zangado, também. Eu, que vinha de Bordéus, não podia ir fazer o vinho, tinha ir para
as vinhas durante meses, a fim de estudar as diferentes castas. Que chatice! E que calor!
E assim foi. Mas como ou por onde começar? Não tinha um laboratório, que era uma
coisa desconhecida no Douro. O que de mais parecido havia era uma espécie de cozinha antiga, na Casa do Douro. Tive então que puxar pela imaginação e, não me lembrando bem
onde estava, fui ao Pinhão para ver se encontrava alguns materiais para poder lançar mãos ao
trabalho. É evidente que não consegui arranjar absolutamente nada. Que grande parvo me
senti! Onde estava eu com a cabeça? A realidade, agora, era outra. O Pinhão era, nesta altura,
uma espécie de “pueblo” como a gente os conheceu nos filmes de cowboys, em que o centro
urbano era constituído por uma estrada ladeada por casas manhosas. Várias tascas e duas ou
112
Equipamento de microvinificação feito
no “faz-tudo” em Celorico de Basto
Arquivo pessoal JNA
três lojas onde se vendia de tudo. No meio, a estação de caminho de ferro – famosa devido
aos seus conhecidos azulejos –, os bombeiros e uma garagem cujo proprietário disputava
comigo os poucos charutos que chegavam no comboio, todas as 3.as feiras. Lá comprei umas
taças ou malgas e instalei-me na varanda do Bom Retiro com outros utensílios, como coadores tirados da cozinha, e várias folhas de papel almaço roubadas ao feitor da quinta. Percorri
as vinhas tentando decifrar as diferentes variedades de uva. Passei dias a descrever as diferentes características de cada uma, com a ajuda de alguns trabalhadores que me mostravam
as particularidades das folhas, dos cachos, do lenho, etc… Todo esse material levava-o para
a dita varanda e, com a ajuda do fabuloso tratado de viticultura do Prof. Branas, descrevia, o
melhor que podia e sabia, o que trazia do campo. Depois, espremia os cachos para as malgas
e tentava descrever a cor, intensidade, aroma, gosto, acidez e adstringência dos sumos extraídos. Assim passei os meses de Agosto, Setembro e Outubro, apenas com uma paragem para
ir à festa da Nossa Senhora dos Remédios, em Lamego, com os caseiros.
O meu tio José Rosas chegava, ao fim-de-semana, trazendo sempre consigo uma enorme juventude e entusiasmo que o levavam a passear pelas vinhas, de manhã até à noite,
esquecendo-se de que havia uma hora para almoçar, o que me punha tonto e com o estômago colado às costas. Ele conhecia as vinhas, pé por pé, e sofria com qualquer estrago
ou doença. Tinha uma enorme vontade de passar todo o seu conhecimento a quem pelo
assunto se interessasse. Era na verdade um homem do Douro.
O registo desse ano ficou-se pelas diferentes análises visuais dos cachos, folhas e
sarmentos, a aprendizagem dos diferentes tipos de sabores provenientes das diferentes
bendo do meu interesse por este estudo, o Eng.º Taborda aconselhou-me a estudar as 10
que achava serem as melhores. Eu dava, nessa altura, apoio técnico na Quinta de Murças
(em Covelinhas), e lá encontrei essas 10 castas que eram: Touriga Francesa (hoje designada por Touriga Franca), Touriga Nacional, Barroca, Malvasia Preta, Mourisco Tinto, Tinto
Cão, Tinta Amarela, Tinta Roriz, Tinta da Barca e Bastardo.
Resolvemos, então, instalar um campo experimental com essas variedades na quinta de Ervamoira. Tínhamos, assim, 4 campos experimentais para a nossa pesquisa mais
ou menos a 150m de altitude: um em Murças, dois no Bom Retiro com diferentes altitudes (de 300m) e um em Ervamoira.
Como pouco se sabia sobre o ciclo vegetativo – tínhamos apenas alguns dados tirados
de uns estudos feitos no final do séc. XIX e princípios do séc. XX –, resolvemos, em 1977, começar a estudar o desenvolvimento das videiras, ou seja, os seus diferentes estados fenológicos nos 4 diferentes campos: choro, rebentação, floração, fecundação, pintor e maturação.
Para ligar a vinha ao vinho, era então necessário fazer microvinificações, mas para isso tinha
de arranjar material para o efeito: cubas pequenas em inox, um mini esmagador, um frigorífico grande e várias pequenas peças de laboratório. Onde encontrar tudo isto? No Porto nada
consegui, e muito menos no Douro. Ouvi então falar dum Sr. “faz tudo” que praticava a sua
magia em Celorico de Basto. Esta pista foi-me fornecida pelo Eng.º Galhano, da Comissão de
Viticultura da Região dos Vinhos Verdes, que já há uns anos andava a estudar as castas com
uma tecnologia de microvinificação bastante avançada. Depois de uma viagem atribulada, lá
consegui encontrar-me com o tal Sr. “faz-tudo”. Em poucas palavras e com a ajuda de alguns
desenhos, expliquei-lhe o que pretendia, o que, para minha alegria, não representou grande
dificuldade para o homem. Assim, fez-me uma prensa, um mini-esmagador de rolos para
as uvas na vindima e uma pequena prensa hidráulica. Para o pré-refrigeramento das uvas,
adquiri um frigorífico industrial. Para as fermentações, foram feitas na Progresso umas 30
mini-cubas em inox que desenhei, onde fermentavam 35 kg de uvas esmagadas. Uma vez
fermentadas, eram desencubadas para garrafões de vidro com a capacidade de 10 litros cada.
Com enorme entusiasmo, o Sr. José Rosas desfez 3 ou 4 quartos num anexo da casa
principal e aí me instalei com todo o mini-material, em Setembro de 77.
Mas sozinho não podia fazer tudo. Dentro de uma selecção muito precária, escolhi
alguns trabalhadores mais novos, capazes de distinguir as diferentes castas, para semanalmente me ajudarem a colher 250 bagos das 10 diferentes castas (durante o período de
maturação) nos 4 campos experimentais.
Em 1978 dirigi-me ao Instituto Politécnico de Vila Real, IPVR (que ainda não tinha
descido ao Douro) para saber se haveria possibilidade de me arranjarem estagiários de
Engenharia Agrícola interessados em ajudar-me nas minhas pesquisas. Lá apareceu o
Eng.º Carlos Peixoto, amedrontado, que logo no 1.º dia se queria ir embora, não fosse eu
chegar quando já se preparava para partir de mala feita, pois achava que estava no fim do
mundo, completamente isolado de tudo e de todos. Começámos a conversar e o facto é
que foi ficando até hoje, sendo assim o 1.º aluno do IPVR a entrar na viticultura duriense.
Mais tarde, incluímos também na equipa outro enólogo de Vila Real, o Paulo Ruão.
Para a execução deste projecto, levantávamo-nos de madrugada e partíamos para Ervamoira na carrinha 4L ou na camioneta Nissan para apanhar 10 vezes 250 bagos.
113
vinha, vinho e vida
castas e o reconhecimento de que havia cerca de 80 castas de uvas tintas e brancas. Sa-
114
Começávamos a tarefa em Ervamoira, regressando então ao Bom Retiro para os espremer e fazer as análises segundo o esquema.
8 Anos De Estudo De 10 Variedades
Local
Castas
Ervamoira (Douro Superior)
Bom Retiro (Cima Corgo)
Murça (Cima Corgo)
Tinta Barca
Tinta Amarela
Tinta Barroca
Touriga Nacional
Touriga Francesa
Tinta Roriz
Tinto Cão
Malvasia Preta
Mourico Tinto
Bastardo
Desenvolvimento da vinha
— Nº de cachos por cepa
— Nº de olhos por cepa
deixados na poda
Choro - Rebentação - Floração - Alimpa - Pintor - Maturação - Queda da folha
Análise de 250 bagos durante o pintor
Peso - Ácido málico - Ácido tártarico - Acidez - pH - Polifenóis totais
A partir de 15 de Agosto análises semanais 250 bagos
— Mosto 250 bagos
Acidez Total
Peso / Bago
Vol. Líquido
Vol. Pelicular
Açúcar
pH
Ácido Málico
— Nas peliculas de 10 bagos
Potássio
Intensidade corante
Tonalidade
Polifenóis totais
Peso
Antocianas
Maturação
— Produção/videira
— Peso/cacho
— Produção/hectare
— Análise do mosto 250 bagos
— Análise das películas de 100 bagos
— Análise de 30 cangos
Dimensão
Peso
Polifenóis totais
Potássio
— Análise de 250 grainhas
Polifenóis totais
Potássio
Microvinificação
VINHO DO PORTO (35 Kgs)
MICROVINIFICAÇÃO
VINHO DO DOURO (35 Kgs)
No dia seguinte, era a vez de Murças e depois Bom Retiro, nos dois campos existentes. Foi um trabalho louco, durante anos, que começava às 6 da manhã e não tinha hora
para acabar, tal era o entusiasmo.
Entretanto, foi para Vila Real, como professor do Instituto Politécnico, um amigo meu
do Porto, o Nuno Magalhães que se dedicou à viticultura do Douro e nos veio visitar na nossa
mini-adega, achando o trabalho bastante interessante, o que nos motivou muito.
Como em Bordéus estudei e aprendi a fazer vinho de mesa, sugeri ao meu Tio fazer
2 tipos de microvinificação, uma para vinho do porto, outra para o de mesa. Concordou
comigo e assim se fez: 2 micros para o Vinho do Douro e 2 para Vinho do Porto.
Houve algumas reservas em relação ao nosso trabalho, mas o certo é que a curiosidade foi prevalecendo, o que levava vários interessados a visitar-nos para se inteirarem
do que andávamos a fazer.
ção anual do American Journal of Enology and Viticulture, que acabou por ser publicado
nessa revista. Assim tive a oportunidade de conhecer essa universidade que, no campo
da Enologia, estava a léguas de distância, para melhor, do conhecimento que nós, portugueses, tínhamos sobre o assunto. Foi-me proposto um mestrado que, com muita pena,
recusei, pois já tinha muito pouco tempo para as nossas pesquisas. Contudo, pude conhecer o Novo Mundo e compará-lo com o nosso, tentando aproveitar o melhor de cada
um. Uma das coisas que mais me fascinaram foi os computadores. Cá em Portugal, nessa
altura, os computadores eram umas máquinas enormes, muito complexas e com as quais
só os muito entendidos sabiam trabalhar, sobretudo no controle da contabilidade. Ali,
tinha à minha frente a primeira versão do Apple Macintosh. Em 5 minutos, fazia o cálculo
da significância dos meus resultados. Como tinha levado todos os meus dados, aquilo
era manteiga. Ao princípio, ainda um pouco desconfiado, fazia na máquina de calcular os
cálculos estatísticos, para confirmar os resultados que o computador me dava.
Classificação das castas
Castas tintas
Castas brancas
Muito Boas
Bastardo
Donzelinho tinto
Mourisco
Touriga Francesa
Tinta Roriz
Tinta Francisca
Tinto Cão
Touriga Nacional
Donzelinho branco
Esgana-Cão
Folgosão
Gouveio ou Verdelho
Malvasia Fina
Rabigato
Viosinho
Boas
Cornifesto
Malvasia Rei
Mourisco de Semente
Periquita
Rufete
Samarrinho
Sousão
Tinta Amarela
Tinta da Barca
Tinta Barroca
Tinta Carvalha
Touriga Brasileira
Arinto
Boal
Cercial
Códega
Malvasia Corada
Moscatel Galego
Regulares
Alverelhão
Avesso
Casculho
Castelã
Coucieira
Moreto
Tinta Bairrada
Tinto Martins
Branco sem Nome
Fernão Pires
Malvasia Parda
Pedernã
Praça
Touriga Branca
115
vinha, vinho e vida
Em 1980 fui convidado pelo Professor Roger Boulton, da Universidade de Davis, Califórnia, para apresentar o nosso trabalho sobre as castas “Port Wine Cultivars” na conven-
Entusiasmado com todos os resultados que já tínhamos, e preocupado com o atra-
116
so da região, José Rosas achou por bem que apresentássemos uma comunicação sobre
esse estudo no Instituto Politécnico de Vila Real, aquando do Simpósio de Vitivinicultura organizado em 1981. Nessa altura, já havia um aconselhamento das castas a plantar,
mas que devia ser actualizado, segundo o nosso parecer.
Na nossa comunicação, aconselhávamos então a plantação de 5 castas de uvas, tanto
para Vinho do Porto como para vinho de mesa, que eram: Touriga Nacional, Touriga Francesa (Touriga Franca), Tinto Cão, Tinta Roriz (Aragonez) e Tinta Barroca, explicando quais
as suas virtudes e defeitos; e, para o vinho branco, as castas Viozinho, Rabigato e Arinto.
CASTAS SELECCIONADAS
1976 – 1981 (média de 5 anos)
Touriga Nacional
Kg/pé
Grau Baumé
Nota de prova
0,8
13,3
17
Tinto Cão
1,6
12,8
13,5
Tinta Barroca
2,4
14
15,5
Tinta Roriz
2,3
13,2
14,5
Touriga Francesa
1,9
12
13
Aqui instalou-se uma polémica: tradição versus modernidade, ou seja plantar ao “calhas”, misturando tudo, ou adaptar-se às novas tecnologias.
Também nessa altura apresentámos os nossos estudos sobre os porta-enxertos,
referindo que, para nós, o utilizado tradicionalmente, o Rupestris du Lot, estava ultrapassado, parecendo-nos melhor e aconselhando o 196-17C e o R110, pois adaptavam-se
melhor aos solos pedregosos, ácidos, argilosos e com stress hídrico, pondo em segundo
plano o R99, o 1103P e o SO4 em voga nessa altura.
PORTA-ENXERTOS
Grau de Adaptação Decrescente
Baixo-Corgo
Cima-Corgo
Douro Superior
196-17
196-17
R-110
R-99
R-99
196-17
1103
1103
SO4
R-110
420-A
1103
140-RU
Rup. Lot
R-99
Rup. Lot
SO4
44-53
SO4
420-A
420-A
Rup. Lot
O nosso intuito era contribuir para o desenvolvimento da região. Tinham-se perdido
os conhecimentos da viticultura do passado. Quem quisesse aproveitar, que o fizesse.
Estas eram as castas que tínhamos estudado, frisando, no entanto, que seria importante e conveniente estudar outras, visto o potencial varietal ser tão rico e único.
Passados 3 anos, por grande mérito do Professor Valente de Oliveira, o Banco Mundial
resolveu financiar a plantação de 2.500 hectares de vinha no Douro, através do P. D. R. I. T.
M. (Plano de Desenvolvimento Regional Integrado de Trás os Montes) e, como não havia
outro estudo, foram as 5 castas seleccionadas por nós as escolhidas para se plantar.
Em 1982, quando enchemos 5 tonéis com as 5 castas escolhidas separadamente, o
Sr. José Rosas mandou comprar foguetes e, pelas 10 horas, lançou emocionado 5 petardos que ecoaram no vale do rio Torto, como que dizendo: aqui e agora virou-se uma página na história da Viticultura duriense e do vinho do Douro. Não demorou muito que nos
aparecessem vários caçadores furiosos, pois tínhamos, com o barulho, espantado a caça
que eles, desde a madrugada, tão penosamente tinham encurralado. Para os compensar,
demos-lhes a provar as ditas 5 variedades.
Com estas castas vinificadas separadamente, fizemos um blend para criar um vintage
que se pudesse beber enquanto novo, apreciando assim o volume de fruta, mas que, ao
mesmo tempo, envelhecesse bem.
Na opinião de alguns jornalistas influentes, os vintages tinham de ser, logo à nascença,
adstringentes, mesmo algo herbáceos, porque de outra maneira não poderiam envelhecer.
Só que, havendo a possibilidade de manusear as castas separadamente, é possível
tornar os vinhos mais macios na proporção desejada, extraindo os taninos mais estáveis
que se encontram nas películas, e não tanto aqueles que se encontram no engaço, muito
mais agressivos e adstringentes, mas menos estáveis.
O facto é que esse vintage de 82, passados 28 anos, ainda está cheio de cor e frutos
vermelhos, e está para durar.
Actualmente, os vintages têm mesmo de ser feitos assim, ou seja, com o objectivo de
se poderem beber relativamente novos, pois o comprador já não os guarda para vender
20 anos depois. Se lhe dissermos que tal vinho vai ser muito bom daí a 20 anos, ele logo
nos diz para, então, passarmos por lá nessa altura.
Foi nesta geração que se intensificou a ligação da vinha com o vinho.
Foi também nos finais dos anos 70, que começámos a plantar separadamente as
vinhas destinadas ao Vinho do Porto e as destinadas ao vinho do Douro. Escolheram-se
diferentes altitudes, exposições, sub-regiões, estudando em cada caso as especificidades de cada local, o solo e microclima onde melhor se adaptariam as diferentes castas
para esses dois tipos de vinho. É que, conforme o local de plantação e conforme a casta,
se podem obter vinhos mais ou menos maduros, mais ou menos aromáticos, encorpados, frutados, ácidos, adstringentes, etc.
Para além destes estudos, tentámos também fazer uma selecção massal, sendo esta
orientada pelo Prof. Antero Martins, do Instituto Superior de Agronomia, ISA, e o Prof. Nuno
Magalhães, que andavam a estudar como é que se deveria fazer a selecção clonal das castas
117
vinha, vinho e vida
Foi também apresentado um estudo de desenvolvimento da plantação de vinha ao
alto, para uma melhor mecanização e maior densidade de plantação.
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119
120
A vindima vista por Fernando
Nicolau de Almeida
Arquivo pessoal JNA
do Douro. Nós, a seu pedido, indicámos quais as castas com mais necessidade de serem sujeitas a uma selecção clonal, sendo a Touriga Nacional, sem dúvida, uma delas. Sabendo nós
do valor organoléptico dessa casta, plantámos algumas vinhas, mas os clones estavam tão
degenerados que a produção era ínfima e tivemos que arrancá-la mais tarde. Assim, desde
77, começámos a pintar com diferentes cores as videiras das 5 castas, em função da classificação. Foi um trabalho gigantesco que muito nos ajudou em futuras plantações. Entretanto,
o Professor Antero mudou de ideias em relação ao método de selecção, criando campos experimentais, com delineamento estatístico para poderem ser feitos cálculos fundamentais.
Em 1987, aquando da visita dos Masters of Wine ingleses ao Douro, a Associação de Exportadores de Vinho do Porto, AEVP, pediu-nos para apresentar uma síntese dos estudos
de castas, tendo escrito José Rosas como introdução: “Em 1967, quando o Centro Nacional de
Estudos Vitivinícolas nos pediu a nossa cooperação e participação no painel de provadores para classificar as diferentes castas do Douro, sentimos a urgente necessidade de efectuar um trabalho com o
objectivo de classificar as melhores castas utilizadas na região.
O programa efectuado pelo Centro Nacional de Estudos Vitivinícolas, CNEV, durou até 1973. Os
métodos de vinificação, nesta altura, ainda eram muito precários. Os novos métodos de vinificação
ainda não tinham aparecido, mas, mesmo assim, conseguiu-se seleccionar 10 castas dentre 19 classificadas oficialmente como “muito boas” e “boas”.
Página anterior Vinha ao alto.
Maior densidade de plantação
e maior grau de mecanização.
Quinta do Cidrô, São João da Pesqueira
Com a cooperação de João Nicolau de Almeida, que estudou na Universidade de Bordeaux, começámos em 1976 a realizar microvinificações de vinhos do Porto e de mesa, com uvas de cada uma das
10 castas, de vinhas com locais e exposições diferentes.
áreas de vinha em talhões monovarietais, como foi o caso da nossa Quinta da Ervamoira”.
Nos anos 70, durante a vindima, a adega da Quinta do Bom Retiro era controlada pelo capataz, o
A HORA DE DIONÍSIO.
VINDIMAS
Sr. Fernando Soares, que era, ao mesmo tempo, o responsável pela sala de provas em Vila Nova
de Gaia e quem controlava a aguardentação dos mostos e a fermentação. Todos os provadores
de Gaia traziam os seus assistentes da sala de provas, visto que no Douro não havia quem ousasse pronunciar-se sobre o Vinho do Porto. Isso era trabalho de Gaia. Os vinhos que não serviam para Vinho do Porto juntavam-se numa cuba e depois vendiam-se a granel para destilação.
Para trabalhar nas vindimas vinham dezenas de pessoas, as chamadas rogas, no
nosso caso, sobretudo da zona de Rezende, de onde era a cozinheira, a pessoa mais importante no esquema da quinta.
Os vindimadores ainda vinham descalços, calças pretas, camisa branca (mais cinzenta que branca), colete e chapéu. Vinham famílias inteiras, desde os avós aos netos,
como descreveu tão bem Miguel Torga no seu livro “A Vindima”.
As uvas eram transportadas, na maior parte dos casos, em cestos de vime que chegavam a pesar 80 quilos, e eram despejadas inteirinhas nos lagares. Pouco a pouco, foram introduzidos esmagadores de rolos accionados pela força humana. Na década de 70, as Casas
Exportadoras começaram a usar esmagadores centrífugos de ferro, accionados a energia
eléctrica, que existia apenas nos grandes centros de vinificação. Seguidamente, através de
bombas de pistões, esta pasta de uvas violentamente esmagada era conduzida para cubas
de cimento chamadas “autovinificadores”, um sistema de maceração accionado pela pressão de gás carbónico. Havia uma válvula que separava a cuba e um tanque por cima desta.
Quando a pressão era muita no interior da cuba, a válvula abria e um barulho assustador
e típico fazia subir para o tanque de cima o mosto vermelho e intenso. Aqui, as uvas fermentavam, sendo depois feita a desencuba, altura em que se adicionava a aguardente a 77º
para parar a fermentação. A aguardente era monopólio do Estado, não havendo, portanto,
possibilidade de escolha; em geral, era de fraca qualidade. Em 1973 ela era de tal maneira
má, que acabou por se perceber que a sua origem não era vínica, mas sim sintética, o que
veio a causar uma série de problemas ao sector, que duraram vários anos a resolver. Só
em 1991 é que, por influência da CEE, a compra da aguardente foi liberalizada, sendo-nos
assim possível escolher a de melhor qualidade e melhor preço.
O vinho, já Porto, era então armazenado, na maioria dos casos, em cubas de betão
muito grandes que se encontravam no exterior. Devido à sua forma sensual, chamaram-lhes “Lollobrígidas”.
Mas antes do aparecimento dos esmagadores, como disse, as uvas iam para os lagares sem serem esmagadas nem desengaçadas, procedendo-se ao chamado “corte”. Essa
era uma operação bastante árdua, pois os pisadores, abraçados uns aos outros, tinham
que espremer as uvas com os pés, chegando a demorar 4 horas até conseguir tocar no
fundo do lagar. Formavam uma linha e pisavam as uvas movendo-se coordenados pela
Carregando 80 kgs de uvas, de pé descalço
Arquivo pessoal JNA
voz militar de um “marcador”, um... dois... um... dois... Era um som muito específico,
que deixou de se ouvir com a chegada das máquinas.
121
vinha, vinho e vida
Como resultado deste longo e profundo trabalho, seleccionámos 5 castas para os dois tipos de vinho.
Foi nesta base que a Empresa Ramos Pinto foi das primeiras a plantar de raiz, na região do Douro, extensas
122
As famosas cubas “Lollobrigidas”
Durante o dia, havia 2 ou 3 pessoas em cada lagar que não deixavam a manta ficar em
contacto com o ar durante muito tempo, imergindo-a. Por vezes, havia alguém suspeito
que pisava sempre no mesmo sítio. Era o homem de confiança que pisava o saco de baga
de sabugueiro escondido no fundo do lagar para dar mais cor ao vinho.
Se não houvesse pessoal para ir para o lagar, então deitava-se a manta abaixo, com a
ajuda de uns paus que tinham na ponta umas saliências em madeira e que se chamavam
“macacos”, por os homens andarem com eles para cima e para baixo, para mexer o vinho.
À noite, entravam nos lagares as famílias que estavam instaladas nos dormitórios
chamados “cardenhos”, para fazer “ a meia noite”. Nos lagares tinha de haver 2 pessoas
por pipa (750 kg). Durante 2 horas, fazia-se o corte de que já falei e, depois de duas horas, cantava-se a “cantiga da liberdade”. Começavam então as danças e os jogos, sempre acompanhados por um tocador, normalmente de acordeão, que tocava a música em
função daquilo que queria que se fizesse no mosto. E lá começavam os namoricos, mais
uma vez tão bem descritos por Torga.
Nos anos quentes, a acidez do mosto era normalmente corrigida com ácido tartárico (200 gr/pipa) antes deste começar a fermentar.
Nestes anos, os mostos, sem controlo de temperatura, pareciam vulcões activos e
todos diziam que o vinho ia ter “manite”, um ataque de bactérias aos ácidos tartárico e
málico e aos açúcares, embora ninguém soubesse o que isso era. Lembro-me quando em
Gaia se começou a falar na manite e que esta era causada por bactérias, “os bastonetes”,
só visíveis ao microscópio. Toda a gente brincava com isso, dizendo que o vinho tinha
bastonetes, elefantes e outros animais invisíveis. No meu laboratório de Gaia tinha um
os ditos bastonetes. É claro que me deu cabo da vista, ao cabo de alguns anos.
O facto é que os vinhos se estragavam com estas fermentações a temperaturas altíssimas, e lá iam milhões de litros para destilar.
Nessa altura, grande parte dos vinhos era feita nos lagares dos lavradores, aos quais
se compravam as uvas. Era, portanto, necessário visitá-los antes da vindima, para ver o
estado dos tonéis que iam receber o vinho da próxima novidade. Éramos recebidos pelos
proprietários com grande alegria e, fosse a que horas fosse, era posta uma mesa como se de
um casamento se tratasse. Era vinho, chouriços, pão, queijos, bolos, amêndoas, azeitonas,
que não se podia, de maneira nenhuma, recusar: «Ora então, Sr. Almeidinha, tem de provar
da nossa pinga». Descíamos à cave, e lá tirava da pipa o vinho tratado que já o seu avô fazia
e, segundo ele, não havia melhor nas redondezas. Copo puxa copo, conversa puxa conversa, e o dia tinha de acabar por ali, pois o álcool ingerido impedia a próxima visita. Nesta
visita davam-se os conselhos necessários para a limpeza dos tonéis e tratamento das uvas
da próxima vindima. Desde o mês de Março, altura em que o vinho começava a ir para
Gaia, que esses tonéis se encontravam fechados e bem vedados com massa consistente e
jornal. Durante este tempo, ficavam cheios com 20 litros de vinho e aguardente, para que
ficassem esterilizados. Para cheirar os tonéis, a técnica era dar duas boas pancadas na parte
superior da portinhola com uma maçaneta, tirando-a de seguida para fora. Vinha então o
“provador” que batia com a mão, com força, no tonel e metia a cabeça dentro para o poder
cheirar. Normalmente, o vinho e aguardente deixados não só conservam o estado físico do
tonel, como imprimem na madeira um aroma de limpeza cristalina. Uma vez, estando eu
com a cabeça dentro dum tonel para o cheirar, veio um cão que me mordeu a perna, o que
me fez dar com a cabeça na portinhola e, sem perceber muito bem o que se passava, fiquei
estatelado lá dentro. «Deixe lá, ó Sr. Almeidinha, o cão não faz mal!!!»
Se, por acaso, o tonel não cheirasse bem, teria de ser lavado e, se tal não resultasse
100%, teria de ser raspado e tratado com cal viva. Era também na altura destas visitas aos
lavradores que se decidia a data das vindimas.
Nas festas de Baco
Arquivo pessoal JNA
No final dos anos 70, os exportadores e alguns produtores começaram a ter os seus
próprios centros de vinificação. Progressivamente, os lavradores passaram a entregar-lhes
123
vinha, vinho e vida
microscópio lindíssimo que fui buscar ao museu e tinha apenas um óculo para observar
124
À esquerda Quando não se pisava,
emergia-se a manta com os “macacos”
as suas uvas, em vez de as vinificarem nos seus lagares. As uvas eram transportadas em
À direita No final a dança...
vavam entre 750 a 1.200 quilos de uvas. Quem as fabricava eram as empresas Hipólito e F. A.
Arquivo pessoal JNA
S. O inox não existia. Como o acesso a muitas vinhas não era possível aos camiões, as uvas
camiões carregados de dornas de ferro pintadas por dentro com tinta “antimosto” e que le-
eram colhidas e postas em sacos de serapilheira, primeiro, e depois de plástico, que os
burros e machos carregavam, encosta acima, até à estrada. Se a camioneta passasse nesse
dia para recolher as uvas, muito bem. Se não, elas ficavam ali, ao sol, a fermentar. Quando
chegavam as camionetas de recolha, enchiam-se então as dornas com as uvas que eram
pisadas por um “especialista”, para caberem mais. É preciso ver que elas eram pagas pelo
peso e também pelo grau, e não pela sua qualidade. Por isso, havia alguns que punham um
pouco de açúcar no fundo das dornas, para subir o grau. Era só um bocadinho!...
Quando chovia, todo este esquema se complicava, havendo sempre algum aflito que ficava
a meio da encosta e era preciso socorrer. Além disso, em alguns anos, com a chuva, o podre instalava-se. As uvas, tão cuidadas durante um ano, ficavam feitas em papa. Claro que não era sempre
assim, mas, quando tal acontecia, conseguia-se muitas vezes bons vinhos, o que demonstra a
qualidade daquelas uvas, sendo sempre os melhores aqueles que eram feitos em lagar.
Durante a vindima, apesar do enorme esforço e trabalho requeridos, a alegria e a
excitação eram imensas, pois estava-se a celebrar a recolha do trabalho árduo desenvolvido durante todo o ano.
No nosso caso, parte das uvas chegavam de Ervamoira em camiões enormes, carregados com oito dornas, atingindo a temperatura, dentro destas máquinas “pré-históricas”, facilmente os 40 graus. Eram necessárias inúmeras manobras complicadas para conseguirem
entrar em portões concebidos para carros de bois. As crianças esperavam-os, ansiosamente,
no estradão de acesso à Quinta, fazendo o percurso até à adega, radiantes, perigosamente
pendurados nos taipais das camionetas, por eles apelidadas de “dron drons”, devido ao barulho sincopado que faziam as velhas Bedfords.
vinha, vinho e vida
125
DRON... DRON... As famosas Bedford
Era o momento em que as gentes se reencontravam, transformando a labuta diária
numa festa “Baquiana”. Sempre vivi esta época festiva (desde pequeno) e, quando comecei
a trabalhar, continuei de bom grado a celebrá-la. Claro que, para os meus filhos e filhos dos
trabalhadores da quinta, a festa era ainda maior. Desciam e subiam as encostas dentro dos
grandes cestos de vime, transportados pelos vindimadores, ao som de um acordeão e de
algumas cantigas que provocavam as mulheres.
O último dia era o auge, e o pessoal de Gaia subia todo à Quinta para uma grande
almoçarada. À tarde, aconteciam os jogos olímpicos. Para além do lançamento do peso
e do jogo da malha, as corridas eram o mais importante e que mais concorrência tinha.
Havia a corrida para os pequenitos que, bem alinhados, ao ouvirem o tiro de partida,
assustados, partiam em todas as direcções menos a da meta.
Era complicado alinhá-los novamente.
Depois vinham os craques que disputavam seriamente um percurso de 5 kms.
Finalmente, os veteranos e veteranas que partiam a grande velocidade, desistindo
metade deles ao fim de 100 metros, sem fôlego, vermelhos e com o coração a mil.
À noite procedia-se à entrega de prémios e abria-se o grande baile com um conjunto
local que tocava as gostosas músicas populares.
Este ambiente da vindima, com o tempo, foi desaparecendo devido à substituição do
Homem pela máquina, devido aos custos de exploração e devido, sobretudo, à cada vez
maior exigência qualitativa do mercado. Actualmente, a vindima é um processo muito mais
stressante, mais competitivo, mas, ao mesmo tempo, muito mais profissional, com resultados também eles muito mais eficazes. O mundo mudou e o Douro não podia ficar para trás.
126
Lembro-me das minhas idas ao Douro nos anos 60, com o meu Pai, em que me ficou
A ENTRADA DO TRACTOR
gravado na memória o contínuo chiar das rodas dos carros de bois subindo e descendo aquelas montanhas, para o transporte de pipas e outras mercadorias. Era como se
aqueles montes chorassem, gritassem pelo esforço praticado por aquelas bandas. Nas
vinhas propriamente ditas, e até meados dos anos 70, era o esforço humano com a ajuda
do famoso macho, um cruzamento de cavalo com burro, que trabalhavam os talhões de
vinha suportados pelos muros de xisto.
Em 1974, o CEVD instalou nas Quintas do Bom Retiro e Roeda, ambas situadas no
Pinhão, e na Quinta de Vargelas, já mais a montante, um ensaio de plantação da vinha em
patamares estreitos com 2 ou mais bardos, para que o tractor “enjambeur” pudesse entrar
na vinha. Foi um desastre! O tractor entrou, mas para sair foi um problema, pois ficava
emaranhado nos arames. A seguir, experimentou-se a introdução do tractor vinhateiro
para trabalhar em patamares de dois bardos, mas mais largos. Também não satisfez totalmente, mas constituiu, no entanto, um grande avanço; era a 1.ª vez que um tractor vinhateiro entrava nas vinhas. No entanto, surgiram outros problemas na vinha em patamares,
como, por exemplo, a erosão e a invasão das infestantes nos taludes, a baixa densidade
de plantação (passou-se de 6.000 plantas por hectare, na vinha tradicional, para 3.000). Em
1976, tive a sorte de examinar todos estes problemas com José Rosas e o Professor Branas,
da Escola Superior de Agronomia de Montpellier, ESAM, em pessoa.
Em 1977, quando comecei a dar apoio técnico na Quinta de Murças, reparei, com
curiosidade, numa vinha já com muita idade, e plantada segundo o maior declive. O feitor da quinta, o minhoto Sr. José – pai do Eng.º Paulo Costa, a trabalhar actualmente na
ADVID, Associação para o Desenvolvimento da Vitivinicultura do Douro – disse-me que
achava este sistema bom, pois usando um cabrestante ligado à tomada de forças do tractor, como era feito para puxar, encosta acima, os pinheiros no Minho, podia igualmente
ser utilizado também naquelas vinhas, para puxar o arado.
O que se tinha passado era que essa tal vinha tinha sido plantada, nos anos 50, por
um amigo suíço do proprietário da quinta, Manoel Pinto de Azevedo, que tinha uma
Em cima Corridas nas festas da vindima
Arquivo pessoal JNA
fábrica de material para ser usado com o cabrestante, para trabalhos nas vinhas ao
alto, da Suíça e da Alemanha. Esta vinha foi seguida pelo Sr. José Costa.
nalmente, segundo as curvas de nível, tendo as duas a mesma densidade de plantação.
Os resultados das maturações da vinha plantada ao alto eram melhores do que os
da outra, o que me fez concluir que, pelo menos em relação à qualidade, ela não se alterava; antes podia, até, ser melhor nessa vinha.
Como o novo gerente, António Quintas, queria investir na quinta com novas plantações em patamares, tentei explicar-lhe as vantagens da vinha ao alto. Com a concordância deste, fui à Alemanha para estudar melhor estas transformações.
Havia também um ensaio feito, em finais da década de 60 e início de 70, pelos serviços oficiais na Quinta de St.ª Bárbara (CEVD). O problema é que o dito ensaio tinha sido
abandonado, pois, segundo afirmavam, as máquinas tinham avariado, ficando os dados
que já tinham conseguido por revelar.
Livro com indicações para
“plantação de vinha ao alto”
Arquivo pessoal JNA
Era, pois, imprescindível visitar as vinhas plantadas ao alto na Alemanha. Encontrei-me, na Universidade de Geisenheim, na região do Reno, com o professor Kieffer que
me apresentou o Sr. Bernard Breurer que estava a fazer uma vinha ao alto sendo por isso
o homem certo para me esclarecer muitos aspectos sobre esse modo de plantação. Ele há
muito tempo que plantava desta forma, passando-me a sua enorme experiência neste
tipo de plantação e sua mecanização.
Na posse de todos estes elementos, em 1978 sugeri ao meu Tio fazer no Bom Retiro
uma experiência de vinha ao alto, sugestão essa muito bem aceite por ele. A mão-deobra estava a desaparecer do Douro, devido à emigração para outros países e para os
centros urbanos. Os jovens já não queriam trabalhar na vinha. Por isso, era muito importante estudar uma forma de mecanizar os trabalhos nas vinhas.
Nesta experiência feita no Bom Retiro em 1978, numa vinha que tinha uma inclinação
de 40-50%, repetimos os espaçamentos e densidades que havia naquela outra vinha da antiga
quinta de Murças, mas cortámos a vinha, a cada 60 metros, com uma estrada inclinada para
dentro e longitudinalmente, evitando assim a erosão provocada pelas águas das chuvas.
A ansiedade era enorme. Acordava a meio da noite, aterrorizado com a possibilidade de a nova vinha estar toda no rio, devido ao mau escoamento das águas das chuvas.
Mas uma vez percebendo por onde a água escorria naturalmente, bastava ajudá-la,
conduzindo-a para os vales através de regos ou meias manilhas. Assim, o problema da
erosão reduziu-se significativamente, e prova disso é o facto de a vinha ainda se encontrar lá, com níveis de erosão mínimos, bem inferiores aos das vinhas em patamares.
Entretanto, comprámos o dito material da fábrica suíça (cabrestantes) e adaptámolo àquele solo difícil. Funcionava mas, para tal, era necessária uma organização humana
da vindima, de alto nível, que só os alemães ou os suíços tinham. O problema da mecanização não era de tão fácil resolução. Contudo, anos depois, outras experiências de vinha
ao alto foram implantadas na Quinta do Seixo e noutras.
Neste mesmo ano, estávamos a plantar em Ervamoira, tendo eu sugerido ao meu Tio
plantar ao alto, fazendo um espaçamento, entre os bardos, não de 1 metro, como tinha
sido feito até ali, mas de 2,10m, para o tractor de rasto poder passar. Visto que as inclinações não ultrapassavam os 45%, o resultado foi óptimo e a quinta foi toda plantada neste
novo sistema, sendo a densidade de plantação cerca de 4.500 plantas por hectare, contra
127
vinha, vinho e vida
Fiquei imediatamente interessado pelo assunto e comparei as maturações dessa
vinha com as de uma vinha idêntica, situada mesmo ao lado, mas plantada tradicio-
3.000 nos patamares do Bom Retiro. Com o sucesso obtido em 1978, outros viticultores
128
atentos à modernização começaram a plantar, espalhando-se este sistema de plantação
por toda a região, como o Eng.º Jorge Ferreira na Quinta do Seixo. Ao fim de 30 anos, os
problemas de erosão, tanto físicos como dos elementos nutritivos, são mínimos.
Surgiu então outro problema: os serviços administrativos eram contra este novo
tipo de plantação, eram contra a vinha ao alto, chegando ao ponto de não nos quererem
deixar plantar. Foi necessário pedir ajuda aos responsáveis da Comissão de Planeamento da Região Norte, para virem arbitrar toda esta questão.
Entretanto, em Vila Real, destacava-se um outro professor que também estava
interessado pelo Douro e pelo problema da mecanização das vinhas, tendo sido a sua
tese de doutoramento exactamente sobre esse assunto, Fernando Bianchi de Aguiar.
Perante as nossas explicações e provas no terreno (o tractor de lagartas subia e descia por entre os bardos pulverizando as vinhas com toda a facilidade) e apoiados pelo
Prof. Fernando Bianchi, tal intransigência por parte dos serviços acabou.
Tradições de longos anos não são fáceis de quebrar.
Assim, achamos que até 40-45% de inclinação máxima, para a subida do tractor de rasto,
a plantação ao alto é muito favorável, a todos os níveis: mecanização, erosão e qualidade.
Hoje em dia, já se encontraram novos sistemas implantados com máquinas sofisticadas, como, por exemplo, a plantação em patamares de um só bardo, diminuindo assim a altura do talude, permitindo uma densidade de plantação de 2.500 a 3.000 plantas
por hectare. Existem também os micropatamares para os socalcos pós-filoxéricos.
Na altura, tudo era feito a olho e com a ajuda, apenas, de um inclinómetro. Hoje
usam-se aparelhos com raios laser, para a execução dos patamares.
Devido ao sucesso da vinha ao alto, pedi aos professores Nuno Magalhães e Bianchi
de Aguiar que me ajudassem a escrever um pequeno manual sobre como plantar ao alto,
que pusemos à venda numa livraria na rua Ferreirinha.
Os custos de exploração deste novo sistema de plantação, na quinta de Ervamoira,
foram 1/3 daqueles que tínhamos no Bom Retiro, nas vinhas plantadas em patamares de 2
bardos e, por isso, toda a quinta de Ervamoira foi assim plantada, até hoje. Aumentou-se a
densidade de plantação produzindo, assim, menos por pé, mas mais por hectare, com um
nível de mecanização muito satisfatório. É evidente que, a partir de 45% de inclinação, tudo
se torna mais arriscado, quer de uma forma, quer de outra.
Hoje, estou plenamente convencido de que este sistema é o que resolve melhor os
problemas de erosão provocada pelas chuvas intensas.
Em Ervamoira (Douro Superior), deparámos com outro problema: uma fraca pluvio-
O STRESS HÍDRICO
sidade: cerca de 300-400 mm/ano. Em 1979 começámos, “secretamente”, a implantar a
rega por aspersão, que contribuiu para uma melhor qualidade das uvas, mas era muito
pouco rentável, por o processo da rega ser caro e pouco eficaz, já que uma grande parte
da água se perdia, devido à evapotranspiração. Fomos verificando, ao longo dos anos,
que na Quinta de Murças (Cima Corgo) os problemas originados pela seca também aí
existiam, embora com menor intensidade. Então, em 1983, instalou-se, numa parcela
da vinha, rega por aspersão.
da com 5 porta-enxertos diferentes: Rupestris du Lot R-99, 1103P, R110, 196-17. Os resultados
deste estudo foram bastante interessantes, fazendo, hoje em dia, parte do espólio da ADVID.
Mais tarde, em 1993, com a colaboração de Fernando Alves, Paulo Costa, Ana Rosas e Carlos Peixoto, fizemos um novo estudo de rega na Quinta de Ervamoira, cujos
resultados, mais uma vez, nos confirmaram a necessidade de compensar o stress hídrico
das vinhas por uma rega devidamente controlada, para obter uma maior qualidade. As
conclusões deste trabalho também se encontram na ADVID.
Esta instalação foi, mais tarde, em 1990, substituída pelo sistema de gota-a-gota.
Hoje, a quinta está toda com esse sistema, o que nos permite um controlo muito superior em termos de qualidade de maturação e, por conseguinte, das uvas.
A rega era muito criticada no Douro, pois achava-se que ela só servia para aumentar a
quantidade, não se pondo, sequer, em equação que ela poderia melhorar a qualidade. Depois de muitas discussões académicas sobre o assunto, em 1999, numa reunião da Comissão
Interprofissional da Região Delimitada do Douro, CIRDD, e com o entendimento do Dr. Vilhena, seu presidente, aprovou-se não se pôr de parte a rega, mas sim continuar com os estudos para melhorar a qualidade das uvas nos anos secos e nas regiões mais quentes e áridas.
Estava aberta a era moderna.
Pode-se dizer que a Quinta de Ervamoira foi uma das quintas pioneiras da era moderna no Douro, não só pela instalação da rega para controlo da maturação, mas também pela
opção total de plantação ao alto, com espaçamento suficiente para a passagem do tractor
vinhateiro de rastos, pela utilização do novo porta-enxertos 196-17 e outros, pela utilização
de plantas já enxertadas com apenas 5 castas tintas e 3 brancas, em separado, conduzidas em
poda de cordão, para produzir Vinho do Porto e Vinho Doc Douro.
Em meados dos anos 70, a seguir à vindima, os vinhos já eram transportados para Gaia em
E EM GAIA?
camiões com cisternas em inox (até 1964, o transporte era fluvial – barcos rabelos – e por
comboio). Aqui ficavam em balseiros que, segundo me diziam, eram feitos de menel (diziase que Menel era uma região da Polónia de onde vinha a madeira para fazer as pipas e balseiros, antes de aparecer o carvalho francês). Em Janeiro, era então chegado o momento de
fazer os ajustes de aguardente aos lotes de Vinho do Porto, e a escolha dos vinhos para esta
ou aquela categoria de Vinho do Porto. Tudo isto era controlado no coração da empresa,
“a sala de provas”, lugar onde o conhecimento e experiência “do blend” de gerações antigas
passavam para os mais novos e futuros provadores. O “blend” ou baliza, não se aprende
a fazer de um momento para o outro. Comparo-o com a música: cada nota corresponde
a um lote no armazém e o provador tem de trabalhá-lhos como se de teclas dum piano
se tratasse. É um trabalho que não tem fim, pois tenta-se sempre encontrar a perfeição,
o equilíbrio, a harmonia, tornar o vinho espirituoso. Cabe a cada provador impregnar a
sua personalidade, fazer a sua própria música. Verifiquei isto ao aperceber-me do carácter
do meu Pai nos vinhos que fazia. Eram, assim como ele, vinhos rigorosos, energéticos,
robustos e decididos, contrastando, por exemplo, com os vinhos do meu tio José Rosas,
que revelavam uma personalidade poética, discreta, vinhos mais redondos e elegantes.
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vinha, vinho e vida
Com a ajuda do Eng.º Nuno Cancella de Abreu (ADVID), decidimos proceder a um ensaio de rega num campo de estudo instalado nesta Quinta, com base na Tinta Roriz enxerta-
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Vintage envelhecendo
em garrafeira
José Rosas ensinou-me que o Vinho do Porto era o vinho mais humanizado que ele
conhecia. Eu também acho isso, por variadíssimas razões:
- pelo trabalho de partir a rocha xistosa, cerca de 1m a 1,5m de profundidade, para
assim obter terra que sirva de berço às novas videiras;
- pelo trabalho contínuo da construção de muros e outras formas difíceis e complexas, para encanteirar as vinhas;
- pelo custoso trabalho anual em terrenos extremamente inclinados, onde o clima
tem 9 meses de Inverno e 3 de inferno;
- pela cultura, única, de envelhecimento permanente dos vinhos em armazém;
- finalmente, pelas balizas que são um verdadeiro casamento entre o vinho e o homem.
Quando comecei a trabalhar, confuso com tantas categorias, perguntei ao meu Pai
como é que ele definia exactamente um vintage e um tawny, ao que me respondeu: “o Vintage é um vinho e o Tawny é um Vinho do Porto”. Realmente assim é, pois o Vintage é de uma
só colheita, representa o que a Natureza ofereceu ao Homem num determinado ano, e é
engarrafado ao fim de dois anos, tal como o vinho de consumo, o que lhe permite conservar
os frutos frescos e vermelhos das uvas. Com os Tawnies, a história é outra. É o homem que
os faz, que os cria, que os segue ao longo da sua vida como se de seus filhos se tratasse, pre-
Página anterior Garrafeira onde
envelhecem os Vintages em garrafa.
Casa Ramos Pinto, Vila Nova de Gaia
vendo se eles precisam de apanhar um pouco de ar ou não, se precisam de uma companhia
mais jovem adicionando alguns litros de vinho novo, ou se, pelo contrário, precisam de
uma companhia mais velha para lhes indicar o caminho. Por vezes, ficam doentes. Sofrem
vinha, vinho e vida
133
Armazém de envelhecimento
do Vinho do Porto “Tawny”
de claustrofobia em ambientes muito fechados, preferindo arejar em pipas que comunicam
com o ar, através dos poros da madeira.
Os vinhos mais novos casam-se sem dificuldade, podendo ter uma vida equilibrada e
harmoniosa. Os mais velhos são mais difíceis de casar. Precisam de mais tempo de vida em
conjunto, para finalmente darem o nó. Mas também há divórcios entre os vinhos. Vinhos
que viveram bem em conjunto, mas que não evoluíram em harmonia.
Os Tawnies são produtos vivos de quem temos de tomar conta, de educar para serem
bem formados, bem parecidos, gostosos e com carácter. Os franceses têm uma palavra
que traduz exactamente este processo, que é a “élevage” do vinho.
Com tipos tão diferentes dentro do Vinho do Porto, naturalmente, estes dão origem
a várias categorias: dentro da família dos rubies, temos os rubys, ruby reserva, LBV, vintage,
single quinta vintage. Dentro dos tawnies, encontramos o tawny, o tawny reserva, o 10 anos,
o 20 anos, o 30 anos, mais de 40, colheitas!!!
Coitado do consumidor! Para escolher um vinho na prateleira, vê-se aflito.
Durante cerca de dez anos, participei num grupo formado para diminuir as categorias de Vinho do Porto. No fim deste período, chegou-se à conclusão de que isso não
seria possível, pois a característica do Vinho do Porto é exactamente essa, a diversidade.
Hoje em dia, o número de categorias foi ainda aumentado com os rosés e outros.
Todas estas categorias correspondem à riqueza dos diferentes microclimas que a região
do Douro nos oferece. O “terroir” do Douro é a essência do Douro, a diversidade em equilíbrio.
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Não contentes, ainda fomos reinventar, na região, os vinhos secos, tal como se faziam no tempo em que deram nome e fama a este vinho. A verdade é que o vinho do
Douro, desde o tempo dos Romanos, é um vinho seco. Depois de fermentado, seguia
pelo rio nos famosos barcos rabelos, até ao Porto e, mais tarde, Gaia.
Aqui era trabalhado, loteado e, antes de se exportar para a Flandres, Rússia e depois
Inglaterra, eram-lhe adicionados um almude de aguardente vínica, para aguentar a viagem sem se alterar. Em 1820, devido às elevadas temperaturas que se fizeram sentir, as
uvas ficaram extremamente maduras, tal como recentemente, em 2003, tão carregadas
de açúcar, que, quando fermentaram, as leveduras, encarregues de transformar o açúcar
das uvas em álcool, asfixiaram-se com o próprio álcool por elas produzido, morrendo,
ficando o vinho com uma graduação já bastante alta (18 a 19 graus) e ainda com açúcar
natural por fermentar. Estava descoberto o Vinho do Porto, tal como ele é hoje! A Natureza tinha mostrado a possibilidade de fazer um vinho fortificado.
O sucesso em todos os mercados foi de tal ordem que, nos anos seguintes, instalou-se a
polémica se se devia fazer artificialmente o que a Natureza nos tinha desvendado, abafando a
fermentação do mosto com aguardente, ou se se devia continuar a fazer o que desde sempre
se fizera. Um dos grandes defensores desta última teoria foi o famoso Barão de Forrester.
Esta discussão durou até finais do séc. XIX, acabando por vencer a prática de abafar o mosto, a meio da fermentação. No fundo, foi o mesmo que aconteceu com outros
vinhos especiais, como o Champagne, o Xerês, etc., em que a Natureza nos mostrou
outra via de vinificação.
O Vinho do Porto a granel era, assim, exportado em oitavos (67 L), quartos (135 L),
meias (267 L), cartolas (500 L), pipas (550 L), cascos (+ de 550 L), e bombos (600 a 650 L).
Vendia-se fundamentalmente para Inglaterra e para o Brasil, nos finais do século.
Era quase todo para exportação, até aos tempos modernos em que, finalmente, descobrimos que ele se podia e devia, consumir na terra Pátria.
Talvez tenha sido um erro do sector nunca ter dado a conhecer convenientemente
este néctar aos Portugueses. Mesmo hoje em dia, existe uma cultura muito rudimentar
sobre o Vinho do Porto no nosso país.
A maioria do Vinho do Porto era então exportada a granel. Em 1975, passou a ser
obrigatório exportar o Vintage em garrafas e só no início dos anos 80. é que a casa Ferreira, seguida da Calem, passaram a exportar todo o seu vinho engarrafado. As outras casas
continuavam a exportar basicamente a granel, com algumas excepções. Em 1995, por um
despacho do IVP, a exportação a granel ficou suspensa, tornando obrigatória, durante
um determinado período, a venda do Vinho do Porto engarrafado. Com o passar do tempo, toda a exportação passou a optar pela venda em garrafas, por decisão geral do Sector.
Para promover o desenvolvimento dos mercados, depois do 25 de Abril de 1974 – visto
que, até aí, Salazar proibia qualquer tipo de associação –, foi fundada a Confraria do Vinho do
Porto, em 1982, por Fernando Nicolau de Almeida, Robin Reid, José Ramos Pinto Rosas, Michael Symington e Manuel Poças Pintão, tendo hoje, como chancelários, 34 Chefes de Estado.
Em 1990, foi fundada uma outra confraria, a do Vinho do Douro, Confraria dos Enófilos da Região Demarcada do Douro.
teriais, começaram a fazer-se, um pouco por todo o Douro, adegas mais modernas, de
acordo com os conhecimentos já obtidos.
Em 1986, a Ramos Pinto comprou a Quinta dos Bons Ares, em Sebadelhe (Douro
Superior), onde foi feito, de raiz, um dos primeiros centros de vinificação modernos no
Douro (1989), com uma estrutura em tijoleira lavável, para melhor poder controlar a higiene, e aí se instalaram as primeiras cubas em inox com controlo de temperatura integrado, e prensas horizontais de enchimento automático.
Em relação ao envelhecimento dos vinhos, começou-se a estudar os diferentes tipos
de madeira de carvalho que melhor se poderiam adaptar para tal.
Em 1991, criou-se um outro centro de vinificação na Quinta do Bom Retiro, tendo sido,
neste caso, o chão pintado com uma tinta dura epóxi que, para além de evidenciar qualquer
tipo de sujidade, era de fácil limpeza, apresentando um aspecto mais moderno.
Outra novidade foi a introdução, no “pipeline” condutor das massas vínicas para as
cubas de fermentação, de um sistema de refrigeração de choque, que baixa em 6 graus a temperatura das uvas que por ele passam. Na adega instalou-se um sistema de movimentação
do ar, para controlar o aquecimento e arrefecimento do ambiente, e para a expulsão de gases.
As cubas de cimento armado abertas existentes foram pintadas com tinta epóxi e nelas
se introduziram placas em inox condutoras de água, para aquecer ou refrigerar os mostos.
Montaram-se mais cubas em inox, desta vez de muito maior qualidade, sobretudo
nas soldaduras. Para além de todas estas modernizações, atendeu-se também à parte
estética interior, em vários pormenores, e à estética exterior, tentando não ferir a paisagem, coisa rara na região.
Havia uma ou outra adega que já tinha melhoramentos, como cubas ou aparelhos
mais modernos, mas sempre dentro de um contexto das velhas adegas. A pouco e pouco, as cubas de ferro e cimento, os autovinificadores, os desengaçadores-esmagadores
em ferro foram dando lugar ao inox.
Quanto às prensas, as mais conhecidas, as hidráulicas a que também se chamava
“titãs”, e prensas contínuas, foram substituídas pelas horizontais, de enchimento automático ou não, tipo Dienne, Bucher-Vaslin, etc…
Na minha juventude, ainda vi a funcionar algumas prensas medievais. Tinham um
grande tronco de madeira encaixado no fundo da parede de pedra do lagar, possuindo um
furo na outra extremidade onde rodava um sem-fim também ele de madeira, com uma
bola enorme de granito na ponta inferior. Essa bola ao ser levantada pelo movimento rotativo do sem-fim, fazia pressão em todo o corpo do tronco que atravessava o lagar pisando
uma série de tábuas que cobriam a manta. Assim começava a escorrer o mosto prensado.
Actualmente, voltou-se a considerar melhores as cubas em cimento, do que as de
inox, para o estágio dos vinhos, assim como já se chegou à conclusão de que as prensas
verticais, as “titãs”, são as melhores, havendo, hoje em dia, prensas com o mesmo princípio, mas com muito mais qualidade, mais eficazes e modernas.
Todos estes melhoramentos, em meados dos anos 80 e início de 90, tiveram, como
resultado, vinhos naturalmente diferentes. Os vinhos do Porto tornaram-se muito mais
frutados e elegantes, com muito menos cheiros estranhos ao próprio vinho.
135
vinha, vinho e vida
A partir de meados dos anos 80, com o aparecimento de novas tecnologias e novos ma-
NOVAS ADEGAS
E TECNOLOGIA
136
Os confrades “meteram uma cunha”
ao Bispo para que este interferisse
junto do Infante D. Henrique e
poderem usar o mesmo chapéu
Pintura de Fermando Nicolau de Almeida
Arquivo pessoal JNA
Casas exportadoras, como a Ferreirinha e Real Vinícola, e alguns produtores em menor escala, como a Quinta do Coto, Quinta da Pacheca e Quinta do Infantado e outros, produziam já os seus vinhos Douro, sendo o Barca Velha o grande vinho de destaque nessa
altura. Em 1990, a Ramos Pinto, baseando-se nos seus estudos e experiência desde 1976,
lançou-se numa estratégia de produção própria para vinhos de mesa Douro, dando assim
um forte impulso ao que hoje chamamos New Douro. Por norma, sempre se fez, na Ramos
Pinto e noutras casas exportadoras, algumas pipas de vinho de mesa para consumo próprio e mesmo para exportação a granel. Na nossa casa, ficaram famosos o Rebentão 64, o
Tinto Cão 81 e o Reserva Bom Retiro 85. e outros. Mas um verdadeiro início de produção,
com uma estratégia comercial, começa definitivamente em 1990. O primeiro vinho DOC
deste novo Douro a ser lançado no mercado nacional e de exportação foi o Duas Quintas
tinto 1990 (60000 garrafas), sendo de imediato um sucesso, fora e dentro do país.
Em 1992, lançámos o Duas Quintas branco, que é feito com as castas Viozinho, Rabigato e Arinto, escolhidas de um lote de 9 castas brancas plantadas em campos experimentais nas quintas de Ervamoira e Bons Ares.
Teve igualmente uma grande aceitação por parte do público. Era uma novidade,
pois até aí não havia na região, salvo raras excepções, vinhos brancos que nessa altura
se pudessem chamar de modernos, ou seja, limpos, aromáticos, frutados, não oxidados,
sem quilos de ácido tartárico a que já se estava habituado, etc…
Mas porquê um vinho feito com as uvas provenientes de duas quintas? Foi o exemplo
do meu pai e do seu vinho Barca Velha, que tanto sucesso fez e continua a fazer, e que era
feito com uvas da quinta do Meão (100 metros) e uvas de vinhas da região da Meda, a 600
metros de altitude, que nos inspiraram a fazer um vinho com uvas plantadas a baixa altitude
(Quinta de Ervamoira) e uvas de zonas com altitudes superiores (Quinta dos Bons Ares).
Apesar da polémica gerada quanto à possibilidade, ou não, de se poderem fazer, na
mesma região, Vinho do Porto e do Douro, a partir de 1995, 1997 e 2000, a grande maioria
nuiu, bem pelo contrário, aumentou a qualidade dos vinhos do Porto (veja-se a quantidade de vintages de grande qualidade, desde essa altura até agora), o que confirma a
possibilidade – e vantagem, até – de coabitação entre o Vinho do Porto e o vinho DOC do
Douro. O Vinho do Porto deverá ter, e terá sempre o seu lugar como um vinho excepcional. Um vinho carregado de fruto, único na sua capacidade de envelhecimento, estando
classificado entre os melhores do mundo tradicional, como o Bordéus e o Borgonha. Só
temos que aprender a vendê-lo melhor e sobretudo mudar as condições em que é feito
para que os jovens possam adquirí-lo sem recorrer a avultadas quantias. Sem jovens o
Porto morre. Há que levar isto muito a sério se queremos perpetuar este vinho.
O facto é que, a partir de meados dos anos 90, os vinhos DOC Douro começaram a
ganhar prémios internacionais, o que lhes deu um reconhecimento, a nível mundial,
que se mantém até hoje em dia.
Em 2001, resultado de um fantástico trabalho coordenado pelo Prof. Bianchi de Aguiar,
DOURO, PATRIMÓNIO
MUNDIAL
o Vale do Douro, desde a Régua até ao Pocinho, foi igualmente declarado património
mundial pela UNESCO, o que veio dificultar as investidas de gente que queria, à força,
estragar esta beleza natural, dádiva dos Deuses e do trabalho dos nossos antepassados,
que deve ser preservada e respeitada por todos nós. No entanto, já muito se estragou:
logo na entrada da região, deparamos com 3 pontes e uma barragem! Imagine-se que se
queria fazer uma via rápida ao longo de todo o rio Douro!! Agora está-se a rasgar todo o
Douro Superior com uma bela auto-estrada, em vez de se aproveitar uma estrada já existente, melhorando-a e alargando-a. Será que os nossos descendentes nos perdoarão?
No início da década de 90, começámos a ouvir rumores de que uma barragem poderia ser construída no rio Côa. Não queríamos acreditar: inundar 900 hectares de uma
das melhores áreas para produzir vinho no Douro! A região demarcada mais antiga do
mundo! Como era possível? Nem uma voz, ou um parecer do Ministério da Agricultura,
ou dos organismos locais. Apenas o I. V. P. e a A. E. V. P. fizeram uma declaração de que tal
construção constituiria um prejuízo nacional.
Vários engenheiros, inclusive do próprio Governo, nos confessaram que o projecto da
barragem não teria a rentabilidade suficiente para ser levado adiante. Seria, pois, mais um
elefante branco, mas agora na região demarcada mais antiga do mundo. Em Lisboa, como de
costume, num gabinete qualquer, olhou-se para o mapa de Portugal e decidiu-se que aquele
é que era o sítio ideal para construir a dita barragem. O Vinho do Porto, um dos produtos
mais emblemáticos do país e com grande peso na exportação geral, não interessava. Mas
porque é que ainda não sabemos dar valor ao que de melhor temos? Porque não valorizar
o interior? Isto era o que, na altura, o Sr. José Rosas e eu próprio pensávamos. Seria possível
acontecer uma coisa destas em Bordéus? Com certeza que não. Lá, sabem dar valor ao que
têm de bom, sabem valorizar e sobretudo rentabilizar o seu passado, a sua história. O Sr.
José Rosas, entrevistado na televisão, não aguentou a pressão, mostrando nas suas palavras
choradas o sofrimento e o desespero por ter de enfrentar os poderosos sem nada poder fazer.
Será que o Marquês de Pombal admitiria tal afronta? José Rosas, desiludido, afastou-se desta
tormenta, adoecendo de vergonha. Fiquei com esta batata quente na mão e lutava como
137
vinha, vinho e vida
das casas exportadoras e Quintas faz hoje os seus Douros e Portos, facto que não dimi-
138
Grupo de técnicos que deram
o aval para a declaração do Côa
como Património Mundial
Arquivo pessoal JNA
podia, tendo sido chamado, por várias vezes, à televisão para debater o assunto. Numa entrevista em que estavam os engenheiros do outro lado da mesa, esgrimindo argumentos pró
e contra a barragem, cheguei à conclusão – e disse-o ao vivo – de que só um milagre poderia
salvar aqueles 900 hectares na região demarcada mais antiga do mundo!
O facto é que, passados 15 dias, no ano de 1995, no telejornal da noite, a locutora
anunciou como 1.ª notícia: o milagre para o Côa aconteceu. Foram encontradas gravuras
paleolíticas numa larga extensão no Vale do Côa. Estalou de imediato uma grande discussão em torno deste tema, primeiro a nível nacional e, depois, a nível internacional.
Os engenheiros do betão, claro que afirmavam a falta de interesse das ditas gravuras,
questionando, inclusivé, a sua datação, contrastando com a opinião científica mundial
dos peritos sobre a matéria. Intelectuais portugueses das mais altas esferas demonstravam, perante o mundo, a sua ignorância. E não faltavam exemplos concretos que
pudessem servir-nos de exemplo para o caminho a tomar. Aqui bem perto, na região
da Dordogne, em França, o vinho e produtos locais convivem harmoniosamente com
gravuras do paleolítico. O turismo é enorme, de alto nível, e o factor económico funciona
em pleno. 17 Kms de gravuras, a céu aberto, que modificaram a concepção pré-histórica
da nossa vida humana. Como santos de casa não fazem milagres, foi o forte movimento
nacional e internacional que levou o nosso Governo a suspender a construção da barragem. O mundo da cultura e da vitivinicultura suspirou fundo. O Homem tinha vencido.
Em 1997, o Vale do Côa foi considerado património mundial pela UNESCO, para vergonha dos seus cépticos. O mundo da especialidade, pessoas da terra e de todo o país
levantaram-se, não deixando que a nossa ignorância prevalecesse. O património “natural bíblico”, segundo as palavras do director geral da UNESCO, foi salvo, assim como a
quinta-piloto do Douro moderno, a Quinta de Ervamoira. Infelizmente, José Rosas não
teve a alegria de assistir a este desfecho.
Passada toda esta polémica, várias empresas e viticultores apostaram no Douro
Superior, o que fez com que aparecessem vinhos diferentes daqueles que se fazem no
vinha, vinho e vida
139
Visita do Rei Juan Carlos de Espanha,
do Presidente da República Jorge
Sampaio e do Director Geral da UNESCO
Frederico Mayor às gravuras do Côa
Arquivo pessoal JNA
Baixo e Cima Corgo. Actualmente, as empresas mais significativas têm uma vinha nesta
região. Os vinhos que aí se fazem são vinhos modernos, com uma concentração forte
em frutos e taninos, vinhos macios com um final de boca muito saboroso e cheios de
frescura. Envelhecem bem e são ideais para fazer blends com os vinhos das outras subregiões, dando-lhes volume, corpo e estrutura, completando, assim, a paleta de cores,
sabores e aromas da Região Demarcada do Douro. São as 3 sub-regiões que constituem
um “terroir” único no mundo.
Estas duas classificações, dadas pela UNESCO, impediram, na realidade, o desmoronamento deste património cultural e vitivinícola, permitindo actualmente ao turismo
mundial interessar-se e apreciar a beleza, a história e o vinho da região demarcada mais
antiga do mundo.
É evidente que o progresso nos traz conforto, mas não pode ser a qualquer preço!
Um dos factores-base que, em conjunto com particulares e alguns organismos oficiais,
ADVID
contribuiu para o desenvolvimento do Douro foi, sem dúvida, a ADVID, uma associação
sem fins lucrativos, fundada em 1982, para o desenvolvimento da viticultura do Douro,
com o voluntariado de José Rosas, Jorge Ferreira, José Gaspar e António Filipe.
À falta de organismos oficiais capazes de dar continuidade e sistematizar todos os
estudos e experiências levadas a cabo por particulares, só uma associação com esta tipologia poderia dar seguimento a todo um movimento ávido de evolução e mudança.
As entidades que logo se aperceberam da importância desta iniciativa foram:
- A. A. Ferreira, S. A.
- Adriano Ramos Pinto Vinhos, S. A.
- Barros, Almeida & C.ª, Vinhos, S. A.
- Caves da Raposeira, L.da
- Cockburn Smithes & C.ª, L.da
140
- Gran Cruz Porto
- Quinta dos Murças, L.da
- Quinta do Noval, Vinhos, S. A.
- Sandeman & C.ª, S. A.
- Taylor, Fladgate & Yeatman, Vinhos, S. A.
- Poças Júnior
Infelizmente, nenhuma instituição do Douro se apercebeu, ou quis aperceber-se, da intenção altamente positiva e construtiva desta associação, para o desenvolvimento da região.
Assim, debaixo da batuta de José Rosas, os técnicos destas casas encontraram um
local próprio para discutir as suas ideias e experiências.
Estou certo de que os Engenheiros José Maria Soares Franco, Nuno Cancella de
Abreu, Miguel Côrte-Real, Paulo Carneiro, Carlos Peixoto, entre outros, se lembram bem
do entusiasmo que constituiu a nossa primeira exposição feita em conjunto, e dos estudos que fizemos, para que a região do Douro saísse do marasmo terceiro-mundista em
que se encontrava. Foi um período que, seguramente, nenhum de nós jamais poderá
esquecer, extremamente produtivo e enriquecedor. Em cinco anos, fez-se mais do que
nos 50 anos passados, e em 1986 foi publicado um resumo das actividades exercidas.
A ADVID passou a ser reconhecida, tanto local, como nacional e internacionalmente.
Centenas de trabalhos de qualidade já foram publicados e divulgados, de tal forma,
que hoje em dia, quando se pretende qualquer informação de fundo sobre a viticultura
do Douro, recorre-se naturalmente à ADVID.
O Douro ganhou prestígio com esta instituição. A UTAD, através, nomeadamente,
dos professores Bianchi de Aguiar, Nuno Magalhães e seus discípulos, desceu ao Douro pela mão da ADVID.
Tenho que referir os directores Nuno Cancella de Abreu, Fernando Bianchi e Fernando Alves, pela grande prestação dada a esta associação e pelo trabalho desenvolvido que
levou a uma diminuição de custos baseada num aumento de qualidade e mais-valias do
produto. Só através de uma imagem séria e de qualidade é que podemos permitir-nos
aumentar os nossos preços e rentabilizar as nossas empresas.
Devido às convulsões económicas dos anos 90/91, saíram da ADVID: Taylor, Fladgate & Yeatman, Vinhos, S. A., Gran Cruz Porto, Quinta de Murças, tendo aderido, nos anos
seguintes, a Forrester & C.ª S. A. e a Warre & C.ª, S. A. e, mais tarde, a Churchill, a Niepoort
e a Rozès. Até ao presente momento, a composição dos associados efectivos tem sofrido
ajustamentos resultantes da reorganização empresarial do sector.
Com o aparecimento, no Douro, de novas entidades produtor-engarrafador, as
Quintas, e a chegada de uma nova geração de enólogos vindos de diversas universidades, tornou-se imperativo que a ADVID criasse uma nova forma de receber e unir, em
volta do mesmo interesse científico, toda esta nova realidade.
Deste modo, em 1997, houve uma revisão dos estatutos, de modo a alargar o âmbito
da actuação a um número mais alargado de viticultores e outras entidades interessadas
pelo desenvolvimento da Região. A partir desta data, foi também a Associação reconhecida para a promoção de Protecção Integrada da Vinha e, posteriormente, em 2003, para
Produção Integrada. Alargou-se a forma de actuação, com a entrada de novos técnicos
para o quadro de colaboradores.
vinha, vinho e vida
141
Siza Vieira desenhando o Douro
Arquivo pessoal JNA
Em simultâneo, a actividade da ADVID que, no seu início, estava centrada nos aspectos mais relacionados com a instalação da vinha, nomeadamente estudando formas de
sistematização do terreno, mecanização, formas de condução, castas, porta-enxertos e
selecção clonal, passou a incluir no seu plano de actividades a protecção da vinha, a biodiversidade, as relações hídricas da videira e a zonagem, apenas para destacar alguns temas.
O alargamento da actividade exerceu-se, também, no domínio da formação técnica,
organização, redução de custos e práticas mais ecológicas.
Fernando Alves, como Director Executivo, continuou este trabalho estabelecendo
uma ponte entre a UTAD, Escola Superior de Biotecnologia, Universidade do Porto e outras instituições científicas e os viticultores.
Mais recentemente, em 2007, no seguimento da avaliação interna encetada, a Direcção iniciou um processo de reflexão com vista à reformulação da actividade da associação, das suas competências e da sua adaptabilidade aos desafios e necessidades
antecipados para o sector na década seguinte. Para o efeito, apresentou a ADVID uma
candidatura ao Ministério da Economia e Inovação, através do POFC (Programa Operacional Factores de Competitividade), para obter o reconhecimento do «cluster» como
Estratégia de Eficiência Colectiva, na tipologia «Outros clusters», obtendo o seu reconhecimento em 2009, como o “ Cluster” dos Vinhos do Douro.
O Cluster, promovido pela ADVID, tem como missão “dinamizar e consolidar o sector de
produção de vinho na Região do Douro, através de uma estratégia tecnológica sustentável aplicada
a todos os seus intervenientes”, cuja visão aponta para “um sector ambiental, económica e socialmente sustentável, animado por uma cultura de cooperação em rede para a diminuição de ameaças e
optimização de oportunidades”. A estratégia proposta está alavancada num conjunto de acções, com carácter mobilizador e potencialmente geradores de externalidades positivas
para os actores do cluster e da fileira vitivinícola em geral:
A ADVID tem como actuais associados efectivos: Adriano Ramos Pinto – Vinhos,
S.A. – C.ª Geral da Agricultura das Vinhas do Alto Douro – Churchill Graham, L.da – Niepoort (Vinhos), S.A. – Quinta do Noval – Vinhos, S.A. – Rozès, S. A. – Sogevinus Fine Wines,
S. A. – Sogrape Vinhos, S. A. – W. & J. Graham, C.ª – Quinta do Portal.
142
Museu do Douro — guardados
os segredos de uma história
de drama e alegria
Outro factor que fez despertar e desenvolver a região foi o facto de as Quintas, a partir
ABERTURA DA REGIÃO
de 1986, poderem engarrafar e exportar directamente do Douro para os diferentes mercados, fazendo com que os proprietários passassem a interessar-se mais pelo seu património, visitando-as frequentemente e criando condições para que os seus descendentes lá
pudessem trabalhar e viver. Os sucessos obtidos nos vinhos tintos e brancos DOC nos
anos 90, além de motivar quem lá trabalhava, permitiram que as quintas pudessem, rapidamente, rentabilizar melhor os seus investimentos.
Os acessos à região contribuíram, e muito, para o seu desenvolvimento e modernização. Em 1976, demorava-se cerca de 4 horas do Porto ao Pinhão, se tudo corresse bem, e mais
3 para chegar a Foz Côa. As estradas eram autênticas montanhas russas, devido às curvas e ao
piso (a estrada de Amarante para o Cavalinho era em terra batida). Hoje em dia, faz-se numa
hora e meia Porto-Pinhão e, com mais 1 hora, chegamos a Foz Côa. Pode-se ir do Porto ao
Douro e vir no mesmo dia, coisa impensável há 15 anos atrás. Também se está a ampliar a A4
com o troço Amarante-Bragança. Mais uma melhoria para o acesso ao Douro, sem o estragar.
Devido a estes novos acessos e à instalação de toda uma quantidade de infra-estruturas que até aí não existiam, como hotéis, turismos rurais, de habitação, etc., a região
agitou-se. Mário Ferreira introduziu o turismo fluvial no Douro, com grandes barcos-
gião. Artistas de renome mundial também começam a mostrar interesse por esta região.
Em 2008 criou-se o Museu do Douro, na Régua, e em 2010 inaugura-se o Museu de Foz Côa.
Restaurantes e bares abriram portas, onde os enólogos se encontram para discutir,
até ao infinito, o Vinho do Porto.
Também as novas adegas já são concebidas de forma a receber os turistas com salas
de recepção para provas, vendas, etc…
Todos estes melhoramentos permitiram que uma nova geração se instalasse no
Douro, a partir do final dos anos 90. No fundo, fez-se aquilo que, em Bordéus e noutras regiões vitícolas francesas, se fez a seguir à 2.ª Guerra Mundial. Os proprietários dos
châteaux, que viviam nas grandes cidades, deslocaram-se para o campo, tornando os seus
vinhos reconhecidos e famosos. No Douro, este movimento começou pelo Baixo Corgo,
passou ao Cima Corgo e, finalmente, chegou a Foz Côa.
Na época de 70-90, só havia meia dúzia de técnicos formados em Enologia (homens),
no Douro. Estes, ou eram licenciados em Agricultura Geral, tirando depois uma especialização em Enologia, em Bordéus, ou iam directamente para essa universidade. A escola
de Bordéus, iniciada por Pasteur com o estudo das fermentações, fazia parte do ensino
de Medicina. Nos anos 70, quando frequentei este Curso de Enologia, o 1.º ano era ainda
dado em conjunto com os alunos de Medicina.
No pós-guerra, foi a dupla Jean Riberau Gayon, grande cientista da universidade, e
Emile Peynaud, seu ajudante, também cientista, mas mais ligado à produção de vinho e
sobretudo ao desenvolvimento do estudo da degustação e vinificação modernas, que, em
conjunto, criaram a Catedral do ensino da feitura dos vinhos de “terroir”.
Foram eles que descobriram e resolveram os problemas de estabilização dos vinhos,
tanto nos tintos como nos brancos, através do estudo das fermentações malolácticas.
Mais tarde, nos anos 50 e 60, o Novo Mundo começou, também, a especializar-se nos
vinhos, criando cursos de Enologia na Austrália, nos Estados Unidos da América e na
África do Sul, países que rapidamente nos ultrapassaram em termos científicos.
Existe, porém, uma diferença significativa na forma de ensinar, entre as escolas europeias e as do Novo Mundo. As primeiras estão vocacionadas para os vinhos de “terroir”, ou seja, para o desenvolvimento de vinhos específicos que transmitam as especificidades do local em que são feitos, desde o solo ao clima, às vinhas, castas, à maneira
como se faz o vinho, tendo sempre em conta a tradição. A personalidade de quem faz o
vinho é tida muito em conta.
No caso das universidades do Novo Mundo, a ciência tem mais importância, devido
à pouca tradição na feitura de vinhos. Ambas as vertentes são importantes e o ideal será
ter sempre as duas em conta.
Em 1984, foi criado em Vila Real, na UTAD, o 1.º curso de Enologia (2 anos), tendo
sido transformado em licenciatura em 1989, o que veio aumentar significativamente o
número de jovens enólogos que contribuíram para a melhoria do Sector.
Com o novo “savoir-faire”, em 2000, inúmeros vinhos DOC começaram a aparecer, e
associações de produtores, como os Douro Boys ou os Lavradores da Feitoria, foram criadas, tendo como objectivo a divulgação e venda dos seus vinhos. As discussões entre os
143
vinha, vinho e vida
hotéis, permitindo, assim, a milhares de estrangeiros e portugueses apreciarem esta re-
144
Museu do Côa
jovens enólogos são acesas, quanto aos métodos a aplicar na feitura destes vinhos. Há os
mais tradicionais, que dão mais importância ao “terroir”, e os mais “mundo novo”, que
vinificam as castas em separado, exaltando as qualidades de cada uma, em rótulos com o
seu nome. Põe-se, de novo, em causa a mistura das castas no terreno. Será melhor, ou pior?
Mas, pergunto-me eu, porque não? Agora, que já sabemos o valor de cada uma, porque
não plantar modernamente vinhas com as castas conhecidas, evitando problemas antigos?
Penso que devemos respeitar o “terroir”, a tradição que temos, adaptando-os à nossa era
moderna. Os vinhos de apenas uma casta podem ser, sem dúvida alguma bons, mas a complexidade do blend, dada pelo homem e pelo “terroir”, enaltece e diferencia, ainda mais, esse
mesmo vinho, distinguindo-o de todos os outros vinhos que se fazem por esse mundo fora.
Como podemos nós competir com regiões, planas e mecanizadas, que não têm os problemas e as dificuldades que nós temos? Parece-me que a única maneira é valorizar o que
temos, os nossos microclimas, castas, a nossa cultura e tradição, fazendo vinhos que sejam
apreciados e considerados como únicos no mundo, criando um mercado de alta qualidade
que nos permita continuar a trabalhar nesta região, também ela única no mundo. Por isso,
as vinhas têm de ser todas de boa qualidade, para produzirem os dois tipos de vinho. De momento existe uma geração nova, na idade dos 30 anos que já apresenta novas ideias, em que
a terra e o “terroir” ganham cada vez mais força e o espírito Vigneron se acentua.
te a dita discussão: fazem-se vinhos de “terroir”, ou vinhos mais modernos, vinhos a pedido? Na minha opinião, só podemos fazer vinhos de “terroir”; mas, tendo em conta que
temos de os vender num mercado globalizado, eles têm de ser igualmente modernos
e cada vez melhores, procurando, ao mesmo tempo, mercados de qualidade, de nicho.
Os vinhos do Porto foram, durante séculos, muitíssimo bons, mas adaptados a outras
diferentes exigências. Permitiam-se alguns cheiros e gostos exteriores ao próprio vinho,
originados em fermentações secundárias e mal controladas: cheiros a madeira mal lavada,
por exemplo. Mas a qualidade do vinho sempre superou esta realidade. O IVP tinha a tarefa
de controlar estes defeitos, para garantir as exportações. Actualmente, visto a qualidade
ser obrigatória para a venda, a função do IVP é, mais, controlar as várias categorias de Vinho do Porto, sem descuidar, evidentemente, quaisquer defeitos que possam aparecer.
De há dez anos para cá, a pouco e pouco, as mulheres foram, igualmente, entrando
no mundo do vinho, o que tornou a vida dos jovens bem mais colorida.
Em 1998, o Restaurante «Wine Bar Divino» teve a ideia de promover jantares para
enólogos, a fim de que estes pudessem trocar ideias e mostrar os seus vinhos. Nos primeiros dois anos, apareciam apenas homens. Depois, começaram a aparecer uma ou outra enóloga. Agora, não sei se há tantos enólogos como enólogas.
Toda esta juventude deu vida ao Douro, pondo em prática ideias novas trazidas das
viagens e estágios feitos em adegas e países diferentes. Antes da década de noventa,
eram poucos os que tinham possibilidade de estudar no estrangeiro e viajar por esse
mundo fora. Hoje, felizmente, as viagens tornaram-se muito mais acessíveis e o contacto dos nossos enólogos com o que de melhor se faz em relação ao vinho tornou-se
normal, facto que compensa a lacuna em Enologia, a nível nacional.
A UTAD, situada num dos centros vitivinícolas nacionais mais importantes, com as
regiões de Vinho Verde, Douro, Dão e Bairrada à volta, apesar de ter dado um forte impulso à região com a formação de novos enólogos, não tem tido a capacidade de prestar um
serviço de vanguarda. Os estudos pioneiros e científicos são raros (exceptuando Nuno
Magalhães) e não satisfazem as necessidades e interesse dos enólogos, pois têm pouco
a ver com a realidade dos problemas do dia-a-dia. Quem se tem interessado bastante
pelo sector tem sido o ISA e a Escola Superior de Biotecnologia da Universidade Católica
(ESBUC), tendo, inclusive, criado um curso de grande qualidade de pós-graduação.
Outra novidade na região foi o aparecimento dos jornalistas de vinhos, que vêm de todo
o mundo e também de Portugal. Nos anos 90, as revistas nacionais começaram a escrever
artigos em que se classificavam os vinhos. O exemplo, entre outros, de José Salvador, Luís
Lopes e João Paulo Martins, da Revista dos Vinhos, a Revista dos Escanções, e outros, foram,
ao longo do tempo, contribuindo para o melhoramento dos vinhos em geral. Fizeram com
que os apreciadores, não do ramo, pudessem melhor usufruir este mundo do vinho com
mais conhecimento e proximidade, aumentando, assim, a competição no sector.
Mais tarde, apareceram a Blue Wine, Wine Passion, Néctar, a nível nacional, com jornalistas tais como Rui Falcão, Luis Antunes, Aníbal Coutinho, Maria João Almeida, João
145
vinha, vinho e vida
Até há bem pouco tempo, a produção é que ditava as leis de venda. Agora, a distribuição tornou-se indispensável, sem a qual não se poderá singrar. Aqui, entra novamen-
146
Afonso, etc. O que ajudou, também, a despertar o interesse dos jornalistas das revistas
internacionalmente reconhecidas, como o Wine Avocat, Wine Spectator, Decanter, Wine
Enthusiast, Wine & Spirits e muitas outras.
O Vinho do Porto, primeiro, e mais recentemente o DOC Douro entraram no número
dos vinhos reconhecidos internacionalmente. A exportação começa a dar os seus passos, a
nível do DOC Douro, e os enólogos são chamados a visitar estes mercados, para aí mostrarem os seus vinhos. Uma carga suplementar que o enólogo não adivinhava ser necessária.
Os compradores querem saber o que se passa, em directo, ou seja, da boca do enólogo.
As casas exportadoras têm mais facilidade em arranjar mercados, usando os canais
que já tinham para o Vinho do Porto. As quintas aproveitam estes caminhos e vão criando mercados de nicho. Os vinhos do Douro estão em ebulição, mas esta crise mundial
actual, desencadeada em 2009, veio marcar um pouco o passo.
Sem dúvida que os vinhos melhoraram, e muito, e cada vez há mais variedades.
Explora-se o “terroir”, a vinha, o local, para que o seu seja um vinho único.
Também a cultura biológica apareceu na região. Quer-se o sabor da terra, dos frutos
que ela dá, o sabor puro e natural, sem a intervenção dos clássicos químicos. Mais recentemente, a biodinâmica dá os seus passos. O que se pretende é harmonizar o espaço, o
solo e a cultura, de uma forma equilibrada.
Com o aquecimento global, o clima sofreu transformações. Nos últimos dez anos,
têm-se notado temperaturas, pluviosidades e secas mais radicais, transtornando, assim,
os ciclos vegetativos. Procuraram-se soluções para obviar o problema da seca e elevadas
temperaturas com a rega gota a gota, não só para dar água à planta, mas também para
que haja uma produção regular de folhagem para sombrear as uvas. Outras técnicas começam também a desenvolver-se e terão de ser estudadas mais a fundo pelas novas
gerações, como, por exemplo, a colocação de redes ao nível das uvas, nas vinhas viradas
a sul (as que mais horas de sol apanham); diferentes conduções das vinhas, de forma a
que as uvas tenham mais sombra; pulverizações com soluções de cactos e outras plantas
resistentes ao sol; regas controladas, de maneira a que a planta tenha a água estritamente necessária; trabalhos no solo, de maneira a melhor reter a água; escolha criteriosa das
uvas mais ou menos resistentes ao calor e à seca, consoante o local escolhido para a sua
plantação; blends das uvas dos baixos com as dos altos, exposições norte e exposições
sul, etc… Países europeus mais a norte, como a França, e também países do Novo Mundo
estão de olho nas várias castas portuguesas, principalmente na Touriga Nacional (vedeta
incontestável), para resolver e melhorar os seus próprios problemas climáticos.
Há um trabalho infindável, de pesquisa, a fazer. Há quem diga que todas estas
mudanças climáticas afectarão muito o Douro, mas eu penso que não, pelo menos nos
tempos mais próximos. Irá mudar, irá ficar diferente, com certeza; mas não estragará,
pelo contrário, cada vez mais irá melhorar a qualidade dos seus vinhos. E no clima não
mandamos. Contudo, temos uma vantagem em relação às regiões planas: a grande diversidade de microclimas originados pelas diferentes altitudes, exposições, sub-regiões
e castas permite-nos uma maior defesa, em função do ano. Nos anos muito quentes, as
uvas são melhores nos sítios mais altos, mais frescos; nos anos não tão quentes, serão
vinha, vinho e vida
147
Várias adegas modernas, integradas
na paisagem, estão a ser construídas
para melhoria dos vinhos, mas também
para receber o enoturismo. Quinta de
Nápoles (em cima), Quinta da Romaneira
(à esquerda) e Quinta do Vallado (à direita)
148
HCCP (Análise e controlo nos pontos
críticos de produção da vinha) visto
por Fernando Nicolau de Almeida
Arquivo pessoal JNA
as uvas dos locais mais baixos que estarão em vantagem. Além disso, pode-se também
jogar com as castas, as sub-regiões, a altura de colher as uvas, e ainda recorrer a vinificações sofisticadas em cubas de todas as formas e tamanhos. Constroem-se, hoje em dia,
adegas desenhadas por grandes arquitectos, que recebem um só enchimento de cubas
durante a vindima. São, na verdade, condições totalmente diferentes das que existiam
há uns 15 anos atrás, em que as uvas entravam para grandes cubas sem possibilidade de
escolha entre o trigo e o joio, e sem possibilidade de se fazerem fermentações rigorosas,
pois teriam de se desencubar à chegada de novo carregamento de uvas. Além disso, estas adegas são dirigidas por enólogos e enólogas ajudados por estagiários portugueses e
estrangeiros. Cada vez são mais os pedidos de estágio vindos do exterior, o que demonstra a crescente curiosidade que os nossos vinhos despertam lá fora.
A região inundou-se de laboratórios, públicos e privados, lojas de produtos enológicos com catálogos de leveduras e bactérias à disposição para qualquer eventualidade,
ajudando, assim, à regularização da feitoria do vinho.
Do meu tempo para cá, o número de moléculas detectadas no vinho foi crescendo. Hoje,
os enólogos profissionais devem saber distinguir defeitos olfactivos, como os fenóis volá-
sideradas um defeito. Acontece, também, com os clorofenóis, moléculas que dão ao vinho o
chamado gosto a rolha, que não vem só dela, mas também de contaminações de madeiras
tratadas à base de produtos clorados, como as paletes, etc.
Houve um grande avanço na descoberta de aromas “bons” e na forma como os enólogos
podem preservar ou realçar esses ditos aromas nos vinhos. Podemos distinguir aromas da
uva (norizoprenóides, pirazinas, mercaptopentanonas), aromas de fermentação produzidos
por leveduras seleccionadas utilizando várias técnicas de fermentação (esteres frutados) e
aromas de madeira (whisky-madeira, guaiacol-torrado), por nós seleccionada para se adequar
aos nossos vinhos. Antes da década de 90, não se descreviam os vinhos com o pormenor actual, em que se tenta decifrar os cheiros aromáticos e os cheiros dos defeitos nas vinificações.
Os enólogos têm à sua disposição uma variadíssima gama de novos produtos e de
novas técnicas para fazer o seu trabalho, não querendo, com isto, dizer que as técnicas
tradicionais não constituam uma boa opção. Entre os novos produtos, os mais utilizados,
são as leveduras seleccionadas, as bactérias lácticas, o gás carbónico e o azoto, as enzimas,
taninos, etc. As novas técnicas de análise são uma ferramenta quase indispensável.
O isolamento com que me deparei nos anos 70, felizmente, já não tem nada a ver
com a enorme possibilidade de contactos existente hoje em dia, também muito devido ao
desenvolvimento da Internet no país, o que trouxe uma interessante dinâmica à região. A
evolução das máquinas tem sido enorme, desde os materiais utilizados para não danificar nem contaminar o vinho, até ao seu desenho, para uma melhor performance. Entrámos
num mundo sofisticado, onde são utilizados lagares antigos com pisadores robôs. Desde
o tempo de Pasteur que a higiene é uma boa prática. Actualmente, é uma condição sine
qua non e existe um programa quase obrigatório chamado HCCP (Análise e controlo nos
pontos críticos de produção da vinha).
Também o transporte das uvas, das vinhas para as adegas, sofreu transformações.
Com esta nova geração, as uvas já têm o direito a ser bem tratadas. Os cestos utilizados,
hoje em dia, para levar as uvas, são de plástico, com capacidade de 30 a 50 kg, o que evita
serem pisadas durante a viagem, possibilitando, assim, o seu arejamento. Algum deste
transporte também já se faz em camionetas refrigeradas, permitindo uma paragem enzimática nas uvas, o que evita possíveis oxidações e o desenvolvimento de maus cheiros.
Algumas adegas já têm, nos seus centros de vinificação, salas de recepção das uvas
igualmente refrigeradas, e os enólogos, hoje, estão perfeitamente aptos e alertados para
detectar defeitos que antigamente passavam desapercebidos.
Na posse de centros de vinificação modernos que possibilitam um bom controlo
das fermentações alcoólica e maloláctica, os técnicos voltam-se agora para o processo
de envelhecimento.
O processo de envelhecimento dos vinhos evoluiu, igualmente. Conforme o tipo de vinho a fazer, pode escolher-se o tipo de vasilha a utilizar. Depois de um período áureo, o inox
para envelhecimento deixou de ser utilizado, dando lugar, novamente, às cubas de cimento
com controlo de temperatura, visto estas manterem as temperaturas do vinho mais estáveis,
e também às cubas de madeira com temperatura controlada.
149
vinha, vinho e vida
teis derivados de uma contaminação por leveduras brettanomyces, que antes não eram con-
150
Para os reservas, usam-se meias-pipas de carvalho. A utilização deste material gera,
igualmente, alguma discussão, pois, sendo o carvalho um produto natural, varia muito,
dando ao vinho sabores e aromas diferentes. Experimentaram-se, então, várias regiões de
proveniência dessa madeira: Allier, Limousin, Vosges, América, etc. Fala-se, agora, de outras
madeiras que podem ser igualmente boas para o envelhecimento do vinho, que não o carvalho. Em qualquer uma delas, é preciso definir o grão, a chauffe interior, o tamanho da vasilha,
o fornecedor, o tempo de estágio para poder ser utilizada, enfim, um sem número de parâmetros que estão a ser ajustados aos nossos vinhos. Longe vão os tempos em que só havia o
carvalho nacional, cujos taninos tinham o efeito de colar a língua ao céu-da-boca.
No caso das empresas que fazem Vinho do Porto e DOC Douro, o problema do envelhecimento ficou um pouco facilitado, pois usam, durante 6 anos, pipas novas para o DOC e,
depois deste período, em que já desapareceu a maior parte dos aromas e taninos da madeira,
estas servem para pôr o Vinho do Porto, uma vez que o pretendido, para este, é apenas uma
oxidação feita através dos poros da madeira, e não a extracção dos seus aromas e sabores.
Com a ajuda de madeiras de boa qualidade, perfeitamente limpas e com aromas
e sabores cristalinos, podemos começar a fazer vinhos que, depois de engarrafados,
possam envelhecer bem.
Até agora, existem ainda poucas marcas DOC Douro que tenham vinhos já com uma
certa idade, mas brevemente eles começarão a aparecer e, então, a imagem do vinho desta região aumentará ainda mais, passando para um nível superior, pois todas as regiões
consideradas top produzem vinhos com capacidade de envelhecimento. Na verdade, esta
é uma das características que distinguem a excelência de uma região vitícola.
O Vinho do Porto beneficiou, igualmente, com a chegada de todas estas novas tecnologias e da mão-de-obra especializada. Também aqui as experiências se multiplicam,
e o vinho DOC veio dar uma ajuda, um suporte, ao seu irmão mais velho, o Vinho do
Porto, que continua melhorando, estando esta nova geração com os olhos postos neste
tão nobre produto, mas o Vinho do Porto será sempre o rei do Douro.
E que dizer sobre a rolha, igualmente um produto natural que sempre se usou no vinho?
Devido ao adormecimento da indústria, a qualidade da rolha foi-se deteriorando, não acompanhando, assim, a evolução havida no vinho e as exigências do mercado. Os produtores,
conscientes do problema, reagiram virando-se, então, para outro tipo de material, o sintético. Isto foi uma vergonha para Portugal, o 1.º produtor de cortiça do mundo, mas felizmente
o sector está a reagir e os avanços têm sido significativos na qualidade das rolhas.
O engarrafamento também mudou. A partir de 2000, camiões especializados percorrem as quintas, para engarrafar ou tratar os respectivos vinhos. As novas máquinas
utilizadas nos processos de engarrafamento são muito mais habilitadas no enchimento
através do vácuo, no arrolhamento através de maxilas de pressão na rolha, na etiquetagem com papel autocolante em vez de cola, etc.
vinha, vinho e vida
151
Arquivo pessoal JNA
Foi extremamente gratificante assistir, e poder contribuir para a fantástica evolução que
À LAIA DE CONCLUSÃO
se deu no Douro nos últimos 30 anos, no início, lenta e difícil, mas que, a partir de determinada altura, arrancou definitivamente, não parando desde então. Evolução tanto
na vinha – com o estudo das castas, novas formas de plantação que permitiram alguma
mecanização, o estudo e subsequente utilização de novos porta-enxertos, a implantação
da rega para obviar o stress hídrico, etc. –, como na feitura do vinho, com toda uma nova
tecnologia que, finalmente, chegou ao Douro. A região encheu-se de enólogos/as cheios
de entusiasmo e ideias novas, de curiosos do vinho e de turistas, e todo este movimento
cria uma mudança nas mentalidades dos próprios Durienses, o que me parece ser extremamente benéfico para todos.
Mas não se pense que está tudo feito, pois, numa região com características tão diversas, muito há ainda para descobrir, estudar e experimentar. Por exemplo, o estudo
das muitas variedades de castas, que ainda não são minimamente conhecidas, tem de
ser feito, tendo aqui a Universidade um papel fundamental.
O Douro tem um riquíssimo património natural que ainda não foi descoberto, muito menos estudado.
Não podemos descansar sobre a evolução e progresso já obtidos. O mundo não pára
e nós temos de acompanhar essa evolução, utilizando e rentabilizando a enorme riqueza que a Natureza nos confiou.
É difícil, mesmo muito difícil, extrair um vinho destas rochas de xisto. Este trabalho
colossal, em que o Homem se empenha, só terá razão de ser se fizermos um verdadeiro
vinho de “terroir”, um vinho único, que justifique trabalhar numa região tão complicada
e controversa.
Foi isto que fizeram os nossos antepassados e penso que é aquilo que a geração actual
faz, com as devidas adaptações à época actual, e que as gerações vindouras certamente farão.
Fazer este vinho ou não, eis a questão!
152
153
a evolução
da organização
institucional
da região dos
vinhos verdes
Manuel Pinheiro
Manuel Pinheiro Natural do Porto, licenciou-se em Direito pela Universidade Católica
do Porto, com Pós-graduação pelo Collège d’Europe de Bruges. Toda a sua vida
profissional tem sido dedicada ao sector Vitivinícola e em particular à Região Demarcada
dos Vinhos Verdes. Iniciou a sua actividade na Associação Nacional das Denominações
de Origem Vitivinícolas (ANDOVI), a que se seguiu a Associação Nacional dos
Comerciantes Exportadores de Vinhos e Bebidas Espirituosas (ANCEVE) e depois a
Comissão de Viticultura da Região dos Vinhos Verdes, onde actualmente exerce o terceiro
mandato como Presidente da Comissão Executiva. Nessa qualidade tem desenvolvido
um importante papel na representação dos interesses da profissão envolvida na viticultura
e na enologia, na defesa do património da Denominação de Origem, no incremento das
exportações de Vinho Verde e na reconversão da vinha da Região.
154
Estação Vitivinícola Amândio
Galhano, Arcos de Valdevez
nheceria a região de há meio século.
Nos anos 50, 90.000 produtores faziam 180 milhões de litros de vinho nas províncias
do Minho e Douro Litoral. Destes, mais de 50% produziam menos de 2 pipas e só 43 produziam mais de 100 pipas. Era pois uma estrutura muito fragmentada em que pequenos
produtores faziam poucas quantidades, das quais, aliás, consumiam desde logo uma percentagem significativa. O “mercado” de vinho não tinha, pois, a expressão que lhe damos
hoje. O vinho desse tempo era, por definição geográfica, Vinho Verde, não existindo o processo de certificação de hoje. Pouquíssimos eram os “viticultores”, sendo que, na esmagadora maioria dos casos, a vinha era uma de várias produções complementares da casa
agrícola. Complementares no rendimento, assim como no terreno, onde a vinha de bordadura em sistemas de condução tradicionais partilhava o espaço com as restantes culturas.
Os documentos técnicos desta época dedicam muita atenção aos aspectos tecnológicos da vinificação. Os processos de vinificação não aproveitam todo o potencial da uva,
assim como uma quantidade significativa de vinho se degrada ainda na produção. Por ser
fruto de pequenas explorações familiares, a produção é feita com base em hábitos geracionais, em ambiente familiar, nas pipas e tonéis de sempre, com os métodos de sempre.
A situação de mercado era também pouco animadora. Menos de 10% dos vinhos eram
vendidos fora da região, alguns vendidos para o Sul do País, e muito poucos para a Europa
e para o Brasil, mercados que se perderam já antes da guerra e que, devido ao conflito,
praticamente se extinguiram. Mercado com algum significado, o grande Porto tinha um
sistema fiscal próprio referido como dos “quatro Concelhos” (Porto, Maia, Matosinhos e
Gondomar), curiosa reminiscência da demarcação do Douro e dos privilégios dados à Real
Companhia no acesso ao mercado do Porto, alegadamente prejudicial à venda de Vinhos
Verdes ainda nos anos 50. Curiosamente, porém, era a CVRVV (Comissão de Viticultura da
Região dos Vinhos Verdes) e não a Real Companhia de Vinhos do Alto Douro que nesta
data cobrava uma taxa aos vinhos entrados nos “quatro concelhos”.
O projecto de criação de uma rede de cooperativas que organize e valorize a produção
A rede de cooperativas
vem de longe. Em 30 de Setembro de 1892, um decreto determina, sem consequências
de vulto, que o Estado deverá apoiar a criação de “adegas sociais”. Nova legislação em 14
de Junho de 1901 sublinha a importância das adegas cooperativas (ainda designadas por
adegas sociais) na resolução das crises vitivinícolas. E chegaram, de direito, a ser criadas
algumas adegas que não passaram da fase documental. Novamente em 1914, a propósito
da renovação do sistema de crédito agrícola mútuo, o legislador alude às cooperativas.
Porém, só em 1935 apareceria, de direito e de facto, a primeira cooperativa, a de Muge, em
instalações cedidas pela Casa Cadaval, seguindo-se mais um interregno até 1942, data em
que se funda a adega cooperativa de Almeirim. Em 1951 estavam em funcionamento legal
17 adegas cooperativas (nem todas em laboração) e projectavam-se 124 para cobrir todo
o país vinícola. Registe-se aqui o importante impulso dado pelo Ministro da Economia,
Ulisses Cortez, através dos despachos de Abril de 1953 e Setembro de 1956, fomentando o
aparecimento de novas cooperativas para se completar a rede prevista.
155
a evolução da organização institucional da região dos vinhos verdes
Como tantas outras, a evolução da vinha é serena. Porém, o visitante de hoje não reco-
O Vinho Verde
no pós-guerra
156
Adega Cooperativa
de Ponte da Barca
1952 vê o lançamento, pela Junta Nacional do Vinho, de um documento base que visa
planear a rede nacional de adegas cooperativas. Cooperativismo e corporativismo são dois
conceitos bem distintos. É porém num discurso de Salazar sobre o corporativismo que a
Junta busca fundamento para a sua política: “a organização deveria não perder de vista as
realidades supra individuais e que, portanto, só é verdadeiramente útil se conseguir satisfazer os legítimos interesses privados e ao mesmo tempo promover o interesse colectivo”.
Em boa verdade, a imagem vitícola do país recomenda medidas. Em 1952, “90% dos
produtores do país colhem menos de 10 pipas (2.500 litros) e 80% não ultrapassa as 5
pipas.” As empresas são extremamente débeis, a tecnologia utilizada na vinificação é obsoleta, não valoriza capazmente as uvas e, mesmo quando o faz, a inexistência de redes
comerciais eficazes leva a que muito vinho se deteriore ali mesmo, na casa do produtor.
Nesta visão do sector, a criação de uma rede de cooperativas aparece como uma solução
prometedora, não só no agrupamento dos produtores, melhoria de vinificação e venda,
mas também num ponto à data essencial: o armazenamento.
Pouco comparável com a viticultura de hoje, nos anos 50 o produtor confronta-se
em cada ano com produções muitíssimo díspares e o mercado é levado entre anos de
abundância em que o vinho nada vale e anos de escassez, agravados ambos por uma
rede de estradas e comercial que não favorece o transporte entre regiões produtoras e
mercados. Entre 1937 e 1950, ano após ano, as variações de produção estão entre os 80
e os 150% da produção média! A armazenagem de vinhos em anos de abundância para
colocação no mercado nos anos de baixa produção é, à data, uma política essencial.
Faz-se então um interessante debate ideológico: deverá criar-se uma rede de adegas cooperativas, uma rede de adegas públicas, ou fomentar a incipiente rede de adegas
rede de adegas públicas exigiria um esforço financeiro e administrativo enorme e iria
contra a doutrina de não intervenção do Estado; e, curiosamente, que “seria de recear
que estas viessem a exercer imoderado domínio sobre os pequenos produtores de uvas;
socialmente teria mais probabilidades de ser um factor de degradação do que de elevação do nível de vida do agricultor”.
Porém, o cooperativismo não deixa de ser controlado pelo corporativismo e a JNV é
clara em afirmar que não prescinde da sua função de “orientar e coordenar” a política vitivinícola do país, certo aliás de que será a JNV a financiar as novas cooperativas através do
“Fundo Corporativo da Vitivinicultura Nacional” constituído em 1937.
Este movimento não é alheio à Região Demarcada dos Vinhos Verdes e, em 1956, a
CVRVV apresenta a componente regional do plano de propaganda e fomento para a criação da rede de cooperativas. Os trabalhos desenrolaram-se ao longo de dez anos, sendo
que em 1948 um grupo de técnicos se deslocou a Espanha visitando a Unión Cooperativa
del Campo com o objectivo de recolher conhecimento sobre a experiência cooperativa espanhola. Não restam documentos que nos permitam testemunhar, em primeira mão, o
que os relatórios da CVRVV focam apenas levemente: a intensa polémica que se gerou em
muitas reuniões sobre o modelo de gestão e financiamento e sobretudo a definição de
quantas cooperativas seriam criadas e onde estaria a respectiva sede. Os grémios da lavoura foram um elemento essencial neste debate.
Curiosamente, corria o argumento de que o estabelecimento de cooperativas era economicamente inviável em zonas de vinhos de qualidade, pelo que a CVRVV encarregou
um técnico, que se deslocava a Bordéus, de reunir com as cooperativas locais e esclarecer a
questão. Aparentemente regressou esclarecido e o projecto continuou.
O problema financeiro era um obstáculo de monta. Com um fundo social de exactamente “3.392.248$42” (aproximadamente 15.000 euros), a CVRVV não podia fazer face
a este investimento.
Quantas cooperativas deveriam ter a rede da região? Esta, e o conexo tema da respectiva localização, foram as questões mais polémicas. Se os primeiros textos mencionam a perspectiva de uma adega por sub-região, Alberto Meireles admite em 1962 a possibilidade de alargar a rede a 40 entidades. Porém, um relatório, infelizmente sem autor
identificado, editado em Março de 1956 pela CVRVV, apontava já 18 entidades, praticamente as que vieram a ser lançadas e nos locais exactos em que o foram, com Lousada e
Braga a abrir as suas portas respectivamente em 1955 e 1956.
Uma década depois, em 1964, é fundada uma associação de segundo nível, a Vercoope,
que procura valorizar os vinhos das adegas associadas junto do mercado nacional e externo, libertando assim as suas associadas para se concentrarem na produção.
Francisco Girão estava na região e vivia o Vinho Verde quando o movimento cooperativo dava os seus primeiros passos. Apresentavam-se, porém, duas realidades bem
distintas. Para o sector cooperativo, o foco de atenção são os produtores, a valorização
da sua produção perante o cliente. Para Francisco Girão, estava em causa fazer a excepção, produzir um vinho de qualidade, sem compromissos.
157
a evolução da organização institucional da região dos vinhos verdes
privadas? Os responsáveis políticos optam claramente pela primeira, arguindo que uma
Contrariamente à análise empírica, a exportação nunca foi um canal substancial de co-
158
A evolução
dos mercados
mercialização dos Vinhos Verdes. A exportação de Vinho Verde foi estudada em muito
detalhe por Américo Mendes e Hélder Marques nos anos 80. Desde a fundação da nacionalidade até ao século XVII, as exportações desenvolveram-se sobretudo para o Norte da
Europa e incluíam, sobretudo, os vinhos do Alto Minho. Nos séculos XVIII e XIX, vive-se
uma redução nas exportações, substituídas por vinhos do Douro. Sendo certo que há
um fundamento legal (os privilégios concedidos no âmbito da demarcação Duriense),
não é claro que não possam ter existido outros factores de ordem concorrencial e técnica. Porém, certo é que o reduzido volume de vinho exportado fez com que esta crise de
exportação não arrastasse a economia regional. Até à Primeira Guerra Mundial, as exportações voltam a aumentar, com relevo em dois mercados: o Brasil, agora aberto para um
mercado mais liberal da época, e a França, duramente atingida por um mal que a região
dos Vinhos Verdes ainda desconhecia, a filoxera. O período entre as guerras foi de redução na exportação, mantendo-se apenas o Brasil com algum significado, que manteria
até aos anos 50, notando-se a partir daí uma crescente exportação para as províncias ultramarinas, sobretudo a partir de meados da década de 60, quando alguns dos constrangimentos legais à importação por essas províncias foram levantados. Estes mercados
manteriam a sua importância até 1974.
Ao longo de todo este período, a região de produção foi claramente o maior mercado do Vinho Verde. Uma colectânea estatística realizada pela CVRVV em 1962 revela que,
desde 1940, 90% do vinho foi vendido e consumido dentro da região, sendo que só em
1961 o consumo extra-regional (país + exportação) ultrapassou os 13%. Havia, pois, uma
ténue mas gradual tendência de abertura.
Comparando o mercado de hoje com o de há um século, a evolução é clara em três
sectores: hoje produz-se e vende-se bastante mais branco do que tinto; em 1900 era o
oposto. Hoje vende-se no exterior cerca de 20% da produção, um valor bem superior ao
alguma vez verificado, com especial referência ao facto de os mercados lusófonos serem
minoritários no canal exportação. E, em terceiro lugar, hoje é praticamente todo o vinho
vendido em garrafa com marca própria.
Uma das alterações mais profundas foi o advento da “marca”. As primeiras marcas
aparecem timidamente no início dos século, mas verdadeiramente só ganham força nos
anos 50 e 60 quando a venda em garrafa ganha expressão (a CVRVV introduz o selo de
origem). Mesmo as cooperativas, concebidas inicialmente para vinificarem e venderem
sobretudo a granel, se lançam gradualmente no mercado dos engarrafados. Os apoios
comunitários recebidos a partir de meados de 80 do séc. XX encorajam a montagem de
linhas de engarrafamento e o aparecimento de pequenas casas de produtores-engarrafadores. Avança-se porém até ao extremo: no ano 2000 estão inscritas na CVRVV mais de
2.000 marcas de Vinho Verde.
a evolução da organização institucional da região dos vinhos verdes
159
Em capítulo próprio deste trabalho é feita uma detalhada referência à casa de Vilacetinho e
Os Vinhos
de Quinta
aos seus vinhos. Vale a pena percorrer um pouco da região e das suas quintas emblemáticas que, com Vilacetinho, levam ao mundo alguns dos melhores vinhos aqui produzidos.
Há pouco movimento nos Vinhos de Quinta antes dos anos 50, pois se é certo que as
casas agrícolas se encontravam em funcionamento há séculos, a apresentação dos seus
vinhos com marca própria, e não como produtos genéricos, é mais recente.
As exposições de Berlim 1888 e Paris 1889 receberam e premiaram pela primeira vez
os vinhos da Quinta da Aveleda. A quinta, da qual se encontram registos desde o século XVI, beneficiou de um grande impulso liderado por Manoel Pedro Guedes da Silva
Fonseca, presidente da Câmara e Deputado em 1850. Os anos que se seguiram até à sua
morte em 1898 foram de intenso investimento na ampliação da quinta, na plantação de
vinhas modernas de acordo com as melhores técnicas da época e na construção de uma
nova adega com capacidade para 300 pipas, à data, notável. A dificuldade de acesso ao
crédito resolveu-se com a hipoteca das terras próprias e a escassez de mão-de-obra com
a recepção de comunidades de trabalhadores galegos. No fim do século, a Quinta era já a
propriedade mais competitiva e organizada da região. O sucesso comercial seria porém
gradual, e só nos anos 50 do século XX o mercado se abriu com as vendas para todo o país
e as primeiras exportações com significado para o Brasil e a África. No final do século,
a marca mais conhecida da firma, o Casal Garcia (lançado em 1939), era o vinho branco
mais exportado de Portugal, presente em mais de 60 mercados, sendo porém acompa-
Vinha na Quinta da Aveleda, Penafiel
nhado por uma gama alargada aos vinhos de quinta, vinhos de casta e aguardentes.
160
161
António Lago Cerqueira, republicano Amarantino, é um importantíssimo impulsio-
162
nador da região, através das Caves da Calçada, nas primeiras décadas do séc. XX. Primeiro presidente republicano da Câmara de Amarante, foi deputado e Ministro do Trabalho
e dos Negócios Estrangeiros. Em 1929, exilado político em Paris, cursa viticultura e vinificação no Institut National Agronomique e publica a obra Les Vins du Portugal – Le vin
de Porto. Regressado em 1932, lidera a Casa da Calçada, onde impulsiona o plantio de
vinhas contínuas, ordenadas pelas castas da região, a partir das quais produz vinhos que
coloca no país e nos mercados do Brasil e África. Infelizmente, ao seu desaparecimento
correspondeu também o declínio da Casa, que só voltou a conhecer um impulso quando
nas mãos de António Manuel Mota.
A preocupação de apresentar um vinho de excelência motivou a família Costa Leme a lançar, em 1963, a primeira colheita da sua Quinta de S. Cláudio. Característica inovadora à época:
tratava-se de um vinho produzido com uvas seleccionadas da casta Loureiro produzidas na
quinta em Curvos, Esposende. Pioneiro no conceito de vinhos de quinta com marca própria,
aliado a elevada exigência de qualidade, o S. Cláudio foi muito bem recebido pelo mercado e
pelos especialistas, premiado nos concursos nacionais de vinhos engarrafados, desde as primeiras colheitas. Fiel a esta filosofia, a quinta permanece hoje na família, em plena produção.
Sem esquecer a Casa de Vilacetinho, cujos vinhos, engarrafados, surgem no mercado ainda na década de 50 (vinho seleccionado para servir no banquete da recepção no
Porto à Rainha Isabel II de Inglaterra, em 1957), não chegava a meia dúzia o número de
marcas de Vinho Verde que se apresentava como “de Quinta” nos anos 60. Daí até ao fim
do século, o número aumentaria para duas centenas, com especial relevo para os anos
80 e primeira metade dos anos 90. A partir dos anos 80, os pequenos produtores-engarrafadores representam mais de metade das empresas em operação na região, embora
detenham uma quota de mercado reduzida. Os Vinhos de Quinta inovaram. Inovaram
nas vinhas, com fortes investimentos adoptando castas e sistemas de condução modernos; inovaram na adega, fazendo uma revolução nas técnicas de produção dos vinhos
brancos; e na comercialização, lançando o conceito de “terroir”, bem como os primeiros
vinhos varietais. Em concursos de vinhos internacionais e no próprio concurso anual da
região, os vinhos de Quinta são sistematicamente premiados pela sua qualidade.
Porém, nos anos 90 e na primeira década de 2000, depararam-se com desafios novos.
O conceito de quinta é indissociável de uma quantidade limitada e por isso dependente
de uma elevada valorização decorrente da qualidade intrínseca e do valor da marca. Ora,
aquela valorização é difícil para um produtor de vinhos brancos e ainda mais para um produtor de vinhos verdes. Acresce que a distribuição de vinhos em Portugal é extremamente concentrada. No final do século, 75% dos vinhos vendidos em Portugal passam por uma
de seis cadeias de “distribuição moderna”, as quais têm um espaço de prateleira limitado,
pelo qual cobram a entrada. Não é fácil o caminho dos Vinhos de Quinta.
Novas marcas e novas quintas aparecem, seja explorando nichos, seja propondo novas soluções. Em Monção e Melgaço, e sobretudo neste, a valorização gerada pela castaPágina anterior Quinta de um produtor
engarrafador. Solar das Bouças, Amares
marca Alvarinho fomenta a reconversão dos vinhedos e o aparecimento de dezenas de
pequenos produtores-engarrafadores, sobretudo vocacionados para mercados de nicho,
ro” ou “Portal do Fidalgo”, apareçam premiadas e enólogos, como Anselmo Mendes, sejam
citados como os criadores dos melhores vinhos brancos de Portugal.
Em rumo diferente seguiram algumas Quintas que alargaram a sua actividade,
mantendo a marca de quinta produzida a partir das uvas próprias e adicionando outras
marcas elaboradas a partir de uvas ou vinhos adquiridos, cuja qualidade controlam, de
que é bom exemplo a Casa de Sezim, em Guimarães.
A integração na Comunidade Económica Europeia, em 1 de Janeiro de 1986, alterou pro-
Integração europeia
– a região dos anos 80
fundamente o país e, naturalmente, o negócio do Vinho Verde. Os primeiros trabalhos
de preparação da adesão datam de 80 e debruçaram-se sobre a escassa competitividade
da região no mercado europeu e sérios problemas técnicos ao nível da produção. A política agrícola é um elemento fundacional da CEE desde 1957 e é, por isso, uma das políticas com maior grau de integração. Ao aderir à CEE, Portugal teve de aplicar internamente
o quadro legal comunitário que tudo determina em detalhe, desde o título alcoométrico
dos vinhos até às informações que podem, ou não, constar dos rótulos. Uma das principais preocupações dos técnicos, à época, era precisamente o título alcoométrico mínimo, porquanto muitas das vinhas produziriam, com esforço, vinhos com pouco mais
de 7% de álcool por volume. Era necessário não só negociar duramente a adesão, mas
também reconverter o vinhedo.
Portugal tinha já uma longa experiência de colaboração internacional como membro fundador do Office International de la Vigne et du Vin, desde 1923. Esta organização
mundial, com sede em Paris, foi fundada na sequência da crise filoxérica que devastou
os vinhedos europeus, iniciando desde logo um profundo trabalho técnico de partilha
de conhecimentos e produção de normas técnicas que se mantêm nos nossos dias.
No início dos anos 80, a região produzia ainda muito vinho, 230 milhões de litros/
ano. Curiosamente, há 92.000 vinicultores registados, pelo que pouco mudou em 40 anos!
Três quartos da produção é vinho tinto. Desde a revolução de 1974, África deixou de ser
um mercado de relevo, mas as exportações, muito concentradas em França, Reino Unido
e Brasil, eram feitas com muito pouco valor acrescentado. Vinte anos após o 25 de Abril, a
região não encontrou um canal alternativo aos mercados da África colonial e depende ainda muito dos mercados europeus e americanos suportados em comunidades lusófonas.
Uma das dificuldades mais curiosas é a mudança de paradigma quanto ao conceito de
denominação de origem. Vinho Verde não será já o vinho produzido no Minho e no Douro
Litoral, mas aquele vinho que, sendo produzido nesta região com as castas e processos
tradicionais da região, venha a ser certificado como tal pela CVRVV. E os produtores têm
então três opções: produzir Vinho de Mesa, produzir Vinho Verde com categoria VQPRD, ou
produzir uma nova categoria intermédia, o “Vinho Regional Rios do Minho” lançada em
1993, mais tarde rebaptizada mais simplesmente como Vinho Regional Minho.
A adesão implica também a alteração da política nacional do vinho. A Junta Nacional do Vinho, órgão de política sectorial fundado no Estado Novo, é reorganizado sob
163
a evolução da organização institucional da região dos vinhos verdes
muito regionalizados. É natural que seja nesta região que algumas marcas, como “Soalhei-
a designação de Instituto da Vinha e do Vinho e abandona as políticas tradicionais de
164
compra de vinhos para redução de stocks. Com efeito, a política de intervenção no mercado para absorção de excedentes passa a estar directamente dependente de Bruxelas,
que prevê desde logo a abertura, ao longo do ano, de concursos para a compra de vinhos
destinados à destilação.
Finalmente, é na segunda metade dos anos 80 que os produtores portugueses – e,
naturalmente, os dos Vinhos Verdes – descobriram uma nova realidade: o acesso a generosos fundos comunitários de apoio ao investimento, fundos estes significativamente
alargados com o chamado “Pacote Delors II” em 1993. Muito embora se tenha feito uma
considerável reconversão da vinha, a área em que este investimento mostrou resultados
mais rápidos foi o da capacidade de vinificação e engarrafamento. Uma década após a
adesão, a região tinha já excelentes equipamentos de adega e embalamento, excedentários, aliás, face à capacidade de produção.
A organização regional que Francisco Girão encontra está já estabilizada e em velocidade
Processo de certificação
– Do corporativismo
dos anos 40 ao
interprofissional
do séc. XXI
de cruzeiro. A Demarcação da Região remonta a 1908, através da Carta de Lei que, além
da definição geográfica propriamente dita, inicia já alguma regulamentação que se virá a
complementar nas décadas seguintes. Em Dezembro de 1926 é publicado o regulamento
de produção e comércio dos Vinhos Verdes, que detalha os requisitos de produção e cria
a Comissão de Viticultura da Região dos Vinhos Verdes. Uma década depois, em 1935 e
1937, duas Portarias vêm detalhar melhor as características dos vinhos que, à data, eram
distintas conforme o seu fim fosse o consumo nacional ou a exportação.
O reconhecimento mundial da Denominação de Origem Vinho Verde pelo OIV tardou, porém, bastante mais. Solicitado em 1949, só viria a ser atribuído em 1973.
Criada nos primeiros anos do Estado Novo, a Comissão de Viticultura da Região
dos Vinhos Verdes, com sede no Porto, tinha um estatuto de associação pública, com
direcção nomeada pelo Estado, desempenhando funções de “coordenação económica”.
Beneficiou, curiosamente, de uma grande estabilidade institucional, incólume no 25 de
Abril e até 1987, ano em que foi privatizada.
A coordenação económica traduzia-se, nos anos 60 e 70, na realização de intervenções
no mercado, em articulação com a Junta Nacional do Vinho, bem como na criação de estruturas de armazenagem e destilação, para o que a CVRVV gradualmente se instalou na
Maia, nos Arcos de Valdevez, em Braga e em Amarante, dispondo assim de uma rede de
equipamentos e instalações. Em 1959 é estabelecido o selo de origem, na medida em que
os vinhos engarrafados começavam já a ter alguma expressão.
Um episódio curioso a reter nesta fase: Em 1959 a Federação dos Grémios da Lavoura de
Entre-Douro-e-Minho reclama a extinção da CVRVV, que deveria ser incorporada na referida
Federação. Seria, aliás, coerente com o modelo corporativo: cessar a intervenção do Estado
na direcção da CVRVV e entregar as funções à “corporação”. Não foi, porém, assim. A oposição da produção, com duríssimos argumentos, nomeadamente em defesa da existência de
um terceiro imparcial, inevitavelmente o Estado, levou a que se mantivesse a CVRVV como
entidade autónoma, certamente sem o peso institucional do Instituto do Vinho do Porto,
mas mesmo assim garantindo uma tutela objectiva e comercialmente desinteressada.
a evolução da organização institucional da região dos vinhos verdes
165
Comissão de Viticultura da Região
dos Vinhos Verdes, Porto
É justo reconhecer o importante papel que a CVRVV, em particular o seu corpo técnico, teve na revolução vitícola e vinícola dos anos 60 e 70. A elaboração de documentos,
a organização de acções de formação, e até o apoio financeiro atribuído a alguns investimentos tiveram um efeito notável na região. Por ocasião da entrada na CEE em meados
dos anos 80, esta equipa de técnicos preparou de forma competente o processo e as alterações legislativas necessárias. Seria sempre injusto listar extensivamente essa geração
de técnicos omitindo algum nome. Um, porém, se destaca: Amândio Galhano, muito
justamente considerado como um dos pais da região tal como a conhecemos hoje, e cujo
nome se prolonga hoje através da Estação Vitivinícola sita aos Arcos de Valdevez, que a
CVRVV lançou precisamente por ocasião da adesão à Comunidade Económica Europeia.
A nova lei-quadro das regiões demarcadas, publicada pelo Decreto-lei n.º 8/85 de 4 de
Junho, prepara o país vinícola para a adesão à CEE. As Comissões Vitivinícolas Regionais
são definidas como entidades associativas de direito privado, embora o legislador tivesse
mantido vários elementos de poder público. Assim, as CVR’s foram dotadas de uma Assembleia-Geral composta por representantes da produção e do comércio, em tudo idêntica
à de qualquer associação. Porém, o presidente da Comissão Executiva não era eleito por
166
esta, mas sim nomeado pelo Estado como representante deste. E a associação não estava
dotada de um Conselho Fiscal ou sequer obrigada a recorrer aos serviços de um Revisor
Oficial, devendo porém submeter as respectivas contas ao Ministro da Tutela. As CVR’s foram ainda dotadas de alargados poderes de fiscalização. No caso da CVRVV, estes incluíam
o poder de apreensão de vinhos, mesmo quando estes se encontravam armazenados ou
à venda em empresas não inscritas na Comissão. É certo, de qualquer modo, que até 1987
a CVRVV tinha alguma equivalência a um organismo de polícia económica especializada,
com vastos poderes e com a assustadora característica de os seus fiscais operarem com o
conforto da presença de armas de fogo fornecidas pela própria comissão.
Em 2004, uma nova lei-quadro das regiões demarcadas altera o paradigma da certificação de vinhos, aproximando-o dos conceitos de “qualidade”, tal como definido pelas
normas internacionais ISO. As Comissões Vitivinícolas Regionais deixam de ter o direito
“originário de certificar os vinhos”, passando a estar sujeitas, elas próprias, a um processo
de certificação do qual depende poderem actuar sobre os vinhos da sua região. A Certificação de cada CVR pela norma europeia 45011 é o requisito-base, que a CVRVV rapidamente
cumpre, sendo aliás a primeira entidade do país a fazê-lo. Do mesmo modo, é eliminada a
presença do Estado nos órgãos sociais da CVR.
Importa aqui fazer uma breve referência à evolução do conceito de Denominação
de Origem. Hoje, o lançamento de uma nova denominação faz-se em reconhecimento
da especificidade e qualidade de um produto e tem por objectivo valorizá-lo no mercado
junto do cliente. Não era assim em 1908. Um dos principais impulsos para a demarcação
vinha da necessidade de proteger a região da “importação” de vinhos de outras proveniências, o que se fazia sobretudo por via fiscal. Eram, pois, cobradas taxas dentro do país
aos vinhos que circulavam de região em região, algumas das quais se prolongaram até
ao terceiro quartel do século XX.
O Vinho Verde, o tal vinho “único no mundo”, dobra o século numa fase de profunda mu-
No horizonte
do séc. XXI
– desafios
dança. Os primeiros anos são particularmente difíceis, com produções excessivas que fazem
baixar muito o preço da uva e criam um stock excedentário. Em 2003, a região tem em stock
vinho para três anos. O sector cooperativo é particularmente atingido pela falta de capacidade de colocação deste vinho no mercado. Os pagamentos à produção atrasam-se e há um
significativo abandono da vinha. A Comunidade Europeia intervém através da organização
de uma operação designada por “destilação de crise”, que absorve 17 milhões de litros.
De algum modo, esta intensa crise encerra em si precisamente os meios para a sua
cura. A baixa de preços ajuda ao relançamento comercial, e o Vinho Verde ganha mercado
consistentemente. Durante a primeira década do século, os vinhos da região ganham
quota de mercado em Portugal, ano após ano, chegando a 2010 representando uma em
cada cinco garrafas de vinho consumidas no país. Também a exportação cresce. Não se
trata já dos canais tradicionais, a África lusófona, a emigração e o Brasil, mas os competitivos mercados mundiais: os E. U. A., Canadá, os Países Nórdicos. No fim da década, em
2009, exportam-se 30 milhões de euros de Vinho Verde representando cerca de 20% do
negócio, o valor mais alto da história da região.
gas em valores justos e em prazos curtos. Nem sempre o são. Ligado a este, a reforma do
sector cooperativo. Meio século após a sua fundação, as cooperativas precisam de passar
a uma nova fase. De profissionalismo na gestão, de estabilidade nas Direcções, de maior
exigência na qualidade e de maior músculo financeiro.
A segunda década do século traz novidades. O mercado europeu é mais desregulamentado e o comércio internacional é mais aberto. Os estudos de mercado revelam que
o consumidor mundial pouco conhece dos vinhos portugueses e, desse pouco, a “marca”
Vinho Verde é uma das poucas referências que tem. O Vinho Verde apresenta-se no mercado mundial com uma boa relação qualidade-preço e num segmento próprio, porventura
só partilhado com o Pinot Grigio, de vinhos jovens e leves.
É pois uma região com esperança e energia que defronta o novo século. E exactamente com os mesmos princípios que Francisco Girão adoptou em Vilacetinho: a produção com qualidade sem compromissos, a apresentação exemplar e a conquista dos
mercados através de uma actividade comercial persistente e profissional.
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do Vinho Verde na Zona vitícola B da CEE (1984).
Porto: CVRVV.
167
a evolução da organização institucional da região dos vinhos verdes
Há porém desafios a vencer. Em primeiro lugar, a revolução vitícola. É fundamental
que a produção agrícola seja rentável para que haja investimento. As uvas devem ser pa-
168
169
A evolução
da organização
institucional
da Região do Douro
Jorge Dias
Jorge Dias Nasceu em S. Marta de Penaguião, uma das freguesias mais antigas e
representativas da Região Demarcada do Douro. No Douro é produtor, e para o Douro
tem vindo a dar toda a sua vida profissional, cujos frutos se têm concretizado segundo
importantes contributos para a organização e fomento do sector vitivinícola da Região.
Licenciado em Engenharia Agrícola pela Universidade de Trás-os-Montes e Alto
Douro, onde chegou a ser Assistente de Viticultura, prosseguiu a sua carreira em outras
instituições ligadas ao sector vitivinícola, das quais se destacam o Instituto dos Vinhos do
Douro e Porto, onde chegou à Vice-presidência, a Spidouro e a Secretaria de Estado do
Desenvolvimento Rural, no XV Governo Constitucional, onde foi Chefe de Gabinete do
respectivo Secretário de Estado. É actualmente Director Geral e Gerente Administrador
das empresas Gran Cruz Porto e da Companhia União dos Vinhos do Porto e Madeira.
170
Delimitação actual da Região Demarcada
do Douro, e a do Alto Douro Vinhateiro
— Património Mundial (linha amarela)
entre lavradores e comerciantes, que nasce o vinho do Porto, um dos grandes vinhos da História.
António Barreto – Douro. Lisboa, 1993
Este capítulo trata o período recente da Região Demarcada do Douro, sendo, portanto,
introdução
em boa parte das situações, uma história vivida ou mesmo protagonizada pelo autor,
pelo que é, naturalmente, permeável à opinião pessoal. Salvo citações ou relatos de terceiros, tal opinião só a mim me compromete.
A sua organização segue uma ordem relativamente cronológica dos acontecimentos, remetendo para notas de rodapé conceitos mais técnicos ou aspectos que ajudem à compreensão do texto. Pontualmente, apresentam-se pequenos capítulos sobre assuntos específicos,
independentemente do seu enquadramento temporal, reportando-se para caixas de texto a
opinião do autor sobre alguns assuntos ou factos específicos, ou ainda citações extensas.
Quando iniciei a escrita deste texto acerca da Região Demarcada do Douro, o primeiro
pensamento que me ocorreu foi escolher uma frase simbólica de um dos muitos autores
literários que viveram e compreenderam o Douro nas suas diversas vertentes, fossem elas
paisagísticas, humanas, técnicas ou históricas. Nomes como Miguel Torga, João de Araújo Correia, Camilo Castelo Branco, Manuel Mendes, Pina de Morais, Alves Redol ou, mais
recentemente, Camilo de Araújo Correia, Gaspar Martins Pereira, António Barreto, entre
outros, oferecem-nos trechos de uma fantástica clarividência na compreensão deste complexo que é o Douro, narrativas épicas e trágicas, odisseia de um povo que tem raízes na
terra e vinho nas veias, que vive em função e ao ritmo das estações, limitado pelo rio ou
pelas montanhas e alheio do mundo que o rodeia. Acabei por citar António Barreto numa
magnífica síntese de encontros que construíram este vinho universal.
Mas esta história é também de muitos desencontros. É uma história de domínios.
Da inclemência dos elementos naturais, das videiras, das pragas e doenças. Mas é igualmente uma história de domínio dos homens pelos homens. De heróis e de vilões. De
visionários e de outros que não conseguiam ver para além do seu próprio umbigo. Por
isso talvez seja estranho, ou talvez não, que três ditadores da nossa história – Pombal,
João Franco e Salazar – sejam ainda hoje recordados com saudade no Douro, uma região
com profundos contrastes e contradições.
A abordagem sobre a estrutura institucional da Região Demarcada do Douro, mesmo que num período recente de cerca de 40 anos, revela a complexidade das interacções
entre as dimensões económica, política, social e técnica, ao longo dos seus dois séculos
e meio, sobre a demarcação fundadora de Pombal.
Segundo Jacquinet (2005), todo o sector produtivo se insere num contexto composto
por diversos campos de acção: a técnica de produção, o comércio, a regulação e o sistema
das relações sociais e económicas que, resumidamente, se pode chamar uma estrutura
institucional, a qual se articula à volta de um conjunto de instituições. Por sua vez, uma
instituição é um conjunto estruturado de normas, ou seja, um conjunto de regras e hábitos que apresentam um certo grau de permanência no tempo.
171
a evolução da organização institucional da região do douro
É do encontro entre produtores e consumidores, entre Portugueses e Ingleses, entre Durienses e o Estado,
172
173
Não se poderia definir melhor a situação institucional em que se encontrava o Douro no
174
o domínio do estado:
de joão franco
à revolução de 1974
início dos anos 70 do século XX, que resultava de um contínuo processo construtivo de
intervenção do Estado na regulação do sector, iniciada na ditadura de João Franco, em
1907/08, que delimita a região e regulamenta o comércio do Vinho do Porto1. Em 1918 e
1921, a delimitação é reajustada por freguesias e propriedades isoladas2. Em 1926/27, é
criado o entreposto único e exclusivo de Vila Nova de Gaia, entendido como uma extensão da região de produção, dentro do qual, e só nele, têm de se localizar os armazéns das
empresas que se dedicavam ao comércio de Vinho do Porto. Actualizações a este regime
foram introduzidas em 1959 e em 2009.
Luiz Pinto Guedes de Paiva, em 1944, escreveu na edição comemorativa da inauguração da Casa do Douro: “No ano de 1932 entendeu o Governo, com o fim de proteger os
interesses da vinicultura duriense – e «correspondendo aos desejos manifestados em várias reuniões e representações» – decretar a respectiva sindicalização obrigatória. Foram,
então, criados nas freguesias da Região Demarcada, Sindicatos Vinícolas, que se agrupavam em Uniões Concelhias; por sua vez, o conjunto das Uniões Concelhias constituía a
Federação Sindical dos Viticultores da Região do Douro (Casa do Douro) ”. Assim se iniciava o período da organização corporativa na Região Demarcada do Douro. Competia-lhe,
então, o escoamento dos Vinhos de Pasto, financiamento dos Vinhos Generosos, fixação
e garantia de preços mínimos compensadores, regularização da produção do Vinho Generoso, defesa e segurança do lavrador perante o comércio e assistência económica e social
aos trabalhadores rurais. Entretanto, com a publicação do Estatuto do Trabalho Nacional,
em que foram definidos os princípios fundamentais da organização corporativa, teve de
operar-se a adaptação da Casa do Douro aos novos princípios então estabelecidos, transformando-se em Federação dos Grémios de Vinicultores, tomando forma definitiva em
1940. Importa destacar o papel desempenhado por Carlos Guedes de Amorim, viticultor
de Favaios, na fundação da Casa do Douro, tendo sido agraciado, no final dos anos 90,
com o prémio de viticultor europeu do ano, pelo CERVIM, que distingue uma personalidade que tenha dedicado a sua vida à viticultura de montanha ou de encosta.
Em 1933 é criado o Grémio dos Exportadores de Vinho do Porto, que representava e
tutelava todas as entidades que exerciam o comércio de exportação de Vinho do Porto, competindo-lhe, nomeadamente, a inscrição de todos os comerciantes exportadores de Vinho
do Porto e a fixação eventual de um preço mínimo de exportação. Não podia ser exportador
de Vinho do Porto quem não estivesse inscrito no Grémio e satisfizesse as condições mínimas impostas pela lei, nomeadamente, “manter uma existência permanente não inferior a
150.000 litros de Vinho do Porto, em armazéns privativos, instalados dentro da zona abrangida pelo Entreposto de Gaia, sendo a respectiva capacidade de exportação conferida pelo
coeficiente resultante da relação entre o quantitativo de vinho beneficiado na vindima e a
exportação do ano imediatamente anterior, em função do stock a 30 de Junho de cada ano3.
Nesse mesmo ano, é criado o Instituto do Vinho do Porto (IVP), como um organis-
Página anterior Vitral da Casa do
Douro de autoria de Lino António
(1927) numa magnífica representação
dos papéis da produção, comércio
e estado na regulação do sector
mo de coordenação económica, com funções oficiais, competindo-lhe, nomeadamente,
coordenar a acção dos organismos corporativos da produção e comércio de Vinho do
Porto, tendo em vista os seus objectivos e os fins superiores da organização corporativa
expressos no Estatuto do Trabalho Nacional.
a evolução da organização institucional da região do douro
175
Controlo da qualidade dos vinhos
exportados no entreposto único
e exclusivo de Vila Nova de Gaia,
início do Séc. XX
Fotografia de Álvaro Cardoso de Azevedo
(Casa Alvão). Colecção do Instituto dos
Vinhos do Douro e do Porto, IP
Resumidamente, o Instituto do Vinho do Porto foi criado com o objectivo de orientar, coordenar e disciplinar a cultura e o comércio interno do Vinho do Porto, a sua propaganda e o combate às fraudes e falsificações nos mercados externos. Ou seja, fiscalizar
a qualidade do produto, garantir a sua origem, impor a disciplina, arbitrar as relações
entre produção e comércio, e fomentar a expansão do Vinho do Porto. Entretanto, o Instituto viria a ser reorganizado em 1936.
Dos anos 30 aos anos 70, foram publicados diversos diplomas legais relativos à garan-
Instituto do vinho
do porto
tia da origem e da qualidade dos vinhos, nomeadamente, à organização do Cadastro4
(1934), à reserva para exportação das barras do Douro e de Leixões no intuito de facilitar a fiscalização e garantir a origem (1934), à consagração da prova organoléptica como
elemento de classificação do produto, efectuada por uma Câmara de Provadores oficiais do Instituto do Vinho do Porto (1934), o início da regulamentação da distribuição
do benefício (1935), à quantidade que cada comerciante de Vinho do Porto podia exportar, vender ou ceder em cada ano civil (1936) – disposição que viria a ser modificada
em 1966 – ao regulamento relativo ao emprego obrigatório de Selos de Garantia para
vinhos do Porto engarrafados e aos “dizeres” da rotulagem em função da qualidade do
produto (1941), bem como uma série de disposições relativas ao condicionamento do
plantio da vinha (1934, 36, 51, 53 e 65).
Esta política de regulação da oferta do Vinho Generoso, nomeadamente, sobre a fixação e a distribuição do benefício, a garantia de preços mínimos à produção e o escoa-
176
Bento Amaral na sala
de provas do Instituto dos
Vinhos do Douro e Porto
mento dos mostos não beneficiados, mostra o pragmatismo que reinou na construção
do corporativismo português. Orlando Simões (2006) refere que a maioria destas estruturas viria a demonstrar uma notável longevidade, resistindo, com outras roupagens, à
extinção do seu suporte ideológico em 1974.
A par da construção deste vasto edifício regulador, em 1949 são aprovadas as Bases de Fomento da Constituição das Adegas Cooperativas e, posteriormente, em 1955,
a Casa do Douro elaborou o Plano das Adegas Cooperativas para a região, que previa a
constituição de 30 unidades em 19 concelhos da Região Demarcada do Douro. Com este
projecto, procurava-se associar todos os pequenos viticultores com menos de 10 pipas
de produção anual, visando diminuir os custos de vinificação, assegurar a qualidade de
fabrico, resolver os problemas de armazenagem e venda, realizar o aproveitamento dos
subprodutos do vinho e pôr à disposição dos vinicultores facilidades de aquisição dos
meios requeridos para o exercício da actividade. A União das Adegas Cooperativas da
Região Demarcada do Douro foi criada em 1965.
Para além do Vinho do Porto, o sector vitivinícola português da época pode resumirse à frase “Beber vinho é dar pão a um milhão de portugueses”, o que indicia uma época
pouco estimulante para o sector, que se focalizava em vinhos a granel, indiferenciados,
difíceis de beber, destinados ao mercado interno e às ex-colónias.
a evolução da organização institucional da região do douro
177
Instituto dos Vinhos
do Douro e Porto, Porto
Em 1955, através do Decreto-Lei n.º 40.278, de 12 de Agosto, foram definidos alguns
princípios acerca da produção e comercialização dos Vinhos do Douro, deixando para
regulamentação complementar, que nunca viria a ser publicada, importantes questões
a considerar, pelo que não chegou a ter a esperada aplicação prática. Os vinhos do Douro
só viriam a ser objecto de regulação em 1982.
No final dos anos 60, início de 70, as estruturas agrárias eram arcaicas, o atraso tecnológico
evidente e o envelhecimento populacional, resultante do êxodo rural, preocupante.
Para termos uma ideia de como era o Portugal vinícola de então, quase só era conhecido pelo Vinho do Porto e pelo Mateus Rosé, sendo os restantes vinhos de pasto,
verdes e maduros, tintos e brancos, vendidos a granel, sem que daí resultasse quaisquer
mais-valias para os seus produtores.
Era uma viticultura em degeneração, que durante décadas deu prioridade à quantidade em detrimento da qualidade. A garantia de escoamento, com preço mínimo fixado,
associado no Douro ao “rendimento mínimo garantido” (benefício), conduziu à demissão
das obrigações dos viticultores. A remuneração da produção, com base no produto dos
quilos de uvas pelo seu álcool provável, prosseguida pelas adegas cooperativas, mas também praticada nos grandes centros de vinificação das empresas, foi um plano inclinado
para a ruína das adegas cooperativas, que se vinha adivinhando desde o início dos anos 80.
A revolução de Abril de 1974 pôs fim ao regime que suportava a organização corporativa
178
o Douro em
“fermentação” nos
tempos do processo
revolucionário
em curso (prec)
do sector vitivinícola, mas o mesmo não se passou relativamente aos pilares fundamentais da organização – o Instituto do Vinho do Porto e a Casa do Douro – e, muito menos,
relativamente ao edifício legislativo regulatório do sector.
Foram, contudo, tempos conturbados os anos que se seguiram à revolução. Conceição
Martins, em “Memória do Vinho do Porto”, faz um pormenorizado relato desse período.
Ainda em 1974, os dirigentes da Casa do Douro foram saneados, os Grémios da Lavoura extintos e integrados no Instituto do Vinho do Porto, o mesmo sucedendo ao Grémio dos Exportadores de Vinho do Porto que, no entanto, rapidamente se adaptou ao
novo regime com a tomada de posse da comissão instaladora da Associação dos Exportadores do Vinho do Porto, tendo sido, ainda, nomeada a comissão liquidatária da Casa
do Douro. Os partidos políticos entram em cena e o Partido Socialista publica um Plano
de Reestruturação da Região do Douro.
No início de 1975, é formalmente constituída a Associação dos Exportadores do Vinho do Porto. Entretanto, o Governo nomeia uma Comissão de Gestão para a Casa do
Douro, presidida por um elemento do Movimento das Forças Armadas, que nunca viria,
todavia, a tomar posse, fruto da violenta oposição dos viticultores que, segundo relatos
presenciais, quase atiravam o indigitado elemento do Movimento das Forças Armadas
da varanda da Casa do Douro. Na sequência destes acontecimentos, os viticultores, reunidos em plenário, elegem uma nova Comissão de Gestão, posteriormente homologada pelo Governo. No final do ano, extinguiu-a e nomeou uma Comissão Instaladora, na
medida em que a maioria dos viticultores entendia que a Casa do Douro deveria voltar
ao figurino anterior à organização corporativa. Esta Comissão Instaladora deveria preparar as eleições para os corpos sociais. O Partido Popular Democrático publica a proposta
de reestruturação da economia vitivinícola da região do Douro. Entretanto, havia sido
criada pelo Governo uma Comissão de Reorganização do Sector dos Vinhos do Porto e
Douro, tendo-lhe sido incumbido encontrar soluções, propor medidas e definir linhas
de acção para a reestruturação e a reforma global dos sectores da produção e do comércio dos vinhos do Porto e Douro. A Companhia Geral de Agricultura das Vinhas do Alto
Douro, a Real Vinícola do Norte de Portugal e a Sociedade de Vinhos Borges & Irmão são
intervencionadas pelo Governo.
Em 1976, os Grémios da Lavoura passam para o património da Casa do Douro. O Instituto do Vinho do Porto fica com o monopólio de aquisição e distribuição de aguardente
destinada à beneficiação do Mosto Generoso na Região Demarcada do Douro, e à correcção
dos vinhos no Entreposto de Gaia. É constituída a Associação dos Agricultores da Régua e o
Sindicato dos Trabalhadores Agrícolas do Distrito de Vila Real.
Em Julho de 1976, pela mão do então Secretário de Estado do Comércio Externo,
António Barreto, o Governo promulga os Princípios Orientadores para a Reorganização
da Região do Douro, que previam que a Casa do Douro passasse a funcionar, transitoriamente, como associação de viticultores, mantendo as antigas funções e podendo
Manifesto do Movimento dos
Lavradores da Federação dos
Vinicultores da Região do Douro
Arquivo pessoal JD
exercer outras “próprias da associação livre que no futuro será”. O Instituto do Vinho do
Porto passaria a Instituto dos Vinhos do Porto e do Douro, sendo criado um Conselho
Consultivo onde tinham lugar todas as entidades intervenientes na fileira, naquilo que
a evolução da organização institucional da região do douro
179
Casa do Douro, Régua
seria um esboço do interprofissionalismo, modelo de autorregulação amplamente utilizado em outras regiões vitivinícolas europeias.
Em 1978, é criado o Entreposto da Régua, nos armazéns da Casa do Douro (que nunca
viria a ser implementado), e a Quinta do Infantado inicia a sua actividade como produtorengarrafador, o primeiro, embora só o pudesse fazer no Mercado Nacional.
Em Junho de 1978, a Comissão de Planeamento da Região Norte, sob a coordenação de Luís
tentativas de
reedificação do
edifício institucional
da rdd e a verdadeira
revolução no douro
Valente de Oliveira, então Encarregado da Gestão daquela Comissão, publica um exaustivo
trabalho de análise e reflexão sobre a questão organizacional e institucional do Douro, denominado “Contributo para uma proposta de organização do sector vitivinícola da Região
Demarcada do Douro”, onde já era defendido o modelo de regulação interprofissional, não
só para o vinho do Porto, mas também para os restantes vinhos da região, formulando, inclusivamente, a proposta de criação do Instituto dos Vinhos do Porto e do Douro.
Entretanto, os salários subiram vertiginosamente, o que fez alertar as consciências para a debilidade da viticultura duriense, que dificilmente conseguia repercutir no
mercado os elevadíssimos custos de produção. Este facto, associado ao êxodo rural que
se vinha assistindo desde a década de sessenta, abriram caminho ao aprofundamento
do estudo de novas formas de sistematização do terreno com vista à mecanização da
cultura prosseguida na Estação Vitivinícola do Douro5. Esta, sob a orientação de Gastão
180
Taborda, rasgou novos horizontes para a moderna viticultura duriense, a que se seguiram os trabalhos de Nuno Magalhães, Fernando Bianchi de Aguiar ou Pina de Carvalho,
então jovens docentes do Instituto Politécnico de Vila Real (IPVR) até 1979, e Instituto
Universitário de Trás-os-Montes e Alto Douro (IUTAD) a partir desse ano, em estreita colaboração também com jovens agrónomos e enólogos que haviam chegado ao sector do
Vinho do Porto nos finais da década de 70, dos quais destaco José Maria Soares Franco e
João Nicolau de Almeida, sem esquecer José António Rosas, verdadeira fonte inspiradora para todos os que tiveram o privilégio de com ele colaborar.
Simultaneamente, toma-se consciência de um certo abastardamento da qualidade potencial dos mostos generosos, fruto da beneficiação de mostos da classe de mais baixa qualidade (embora apenas pela terceira vez as parcelas classificadas na letra F tivessem benefício)
e pela consequente necessidade de se utilizar uma maior percentagem de aguardente.
Em 1981, Moreira da Fonseca, Amândio Galhano, Serpa Pimentel e José António Rosas publicam “O Vinho do Porto, Notas sobre a sua História, Produção e Tecnologia”, fazendo notar que “se for lembrado que a produção regional pode descer a menos de 3.000
litros de vinho por hectare e que a cultura é extraordinariamente onerosa, conclui-se que
o êxito das explorações exige uma valorização dos produtos a preços necessariamente
elevados. (…) De tudo o que foi referido, pode afirmar-se, com inteiro fundamento, que
a defesa da origem, da qualidade e da economia do Vinho do Porto só se alcança através
de uma disciplina que, necessariamente, terá de se adaptar às conjunturas e variar em
função do modo de ser das épocas”. Sete anos depois da revolução, os autores concluem
que “depois de 1974, a organização corporativa foi desmantelada para ser substituída por
uma nova estrutura que está em estudo, para ser criada e implementada”… Ou seja, no
plano da regulação, pouco ou nada tinha mudado desde a sua construção corporativa.
Foi, na verdade, na viragem dos anos 70 para os 80 que se iniciou a verdadeira revolução no Douro. Não a social, porque essa já tinha sido efectuada e tinha encontrado terreno
fácil de lavrar, dadas as condições sócio-económicas das populações rurais assalariadas do
Douro. Embora com um assinalável desfasamento temporal, encontramos em “Sangue Plebeu”, de Pina de Morais, relatos impressionantes sobre a miséria a que estavam votados os
trabalhadores rurais do Douro. Mas isso já estava, em parte, resolvido com a escassez de
mão-de-obra que se vinha registando desde os finais da década de sessenta. O que importava, agora, era a revolução das condições técnicas de produção e de comercialização.
Numa estreita cooperação entre o tecido empresarial e a Universidade (então IPVR),
no início dos anos 80 organizam-se, em Vila Real, as Jornadas VINORDE e uma mostra de
vinhos em que estiveram presentes diversos especialistas franceses, que viriam a abrir
caminho à criação da Associação para o Desenvolvimento da Viticultura Duriense (ADVID), em 1982, que se afirmou e se continua a afirmar como uma entidade de referência,
a nível nacional, no campo da experimentação vitivinícola e do apoio aos produtores, a
diversos níveis, sempre em estreita ligação à UTAD, não fosse todo o seu corpo técnico
formado nesta escola. E, logo em 1982, Nicolau de Almeida, Bianchi de Aguiar e Nuno
Magalhães publicam, com a ADVID, o livro “Mecanização das vinhas de encosta; contribuição para o estudo da vinha ao alto”.
a evolução da organização institucional da região do douro
181
Interior da Casa do Douro, Régua
Rasgam-se, então, novos horizontes na viticultura, com o início da plantação das
Quintas do Athaíde, da Leda e de Ervamoira, todas no Douro Superior, à semelhança do
que já havia feito, cerca de um século antes, em 1883, D. Antónia Adelaide Ferreira, ao
plantar a Quinta do Vale do Meão, na qual, passados mais de 50 anos, Fernando Nicolau
de Almeida viria a produzir o ícone dos vinhos portugueses, o Barca Velha, cujo legado é hoje respeitado e prosseguido pelos seus descendentesPlantaram-se talhões monovarietais, seleccionaram-se e avaliou-se o valor cultural e enológico das castas, a sua
interacção com porta-enxertos, ensaiaram-se novas formas de armação do terreno de
encosta, abrindo-se caminho, qual heresia na época, para as vinhas plantadas segundo a
linha de maior declive, as vinhas ao alto. Transformou-se, sobretudo, a forma de encarar
a viticultura no Douro. Estudaram-se as condições de produção, aprendeu-se lá fora em
missões de estudo, cá dentro com especialistas que nos visitaram. Aprendeu-se com os
erros. Mas evolui-se e abriu-se a porta para uma moderna viticultura.
Determinante, neste processo, foi o Projecto de Desenvolvimento Rural Integrado de
Trás-os-Montes, financiado pelo Banco Mundial e iniciado em 1982, cuja iniciativa se deve
a Luís Valente de Oliveira6, que visava aumentar, na região do Douro, a produção de vinhos
de qualidade e diminuir as necessidades de mão-de-obra e os custos de produção da cultu-
ra, através da sua mecanização. Foi, assim, possível instalar 2.500 hectares de novos vinhe-
182
dos, aproveitando áreas de reconhecida aptidão para produzir vinhos de alta qualidade,
nomeadamente nos “mortórios”7 e outras encostas, bem como em alguns terrenos planos
ou pouco inclinados do Douro Superior. A autorização de plantações a efectuar ao abrigo
do Projecto recaiu em terrenos cujas vinhas a implantar fossem susceptíveis das classificações A ou B e, eventualmente, C. Permitiu, ainda, reconverter cerca de 1.000 hectares
de vinhedos existentes, principalmente os que garantissem uma produção de qualidade,
associada a uma viticultura mecanizada e economicamente bem dimensionada.
Nesse mesmo ano, é publicada a Portaria n.º 1080/82, de 17 de Novembro, que reconheceu e regulamentou a chamada «denominação vinícola de origem Douro», cuja tutela foi atribuída ao Instituto do Vinho do Porto, em conjugação com os serviços agrícolas
regionais e em ligação com a Casa do Douro. Na prática, viria a ser a Casa do Douro a gerir
esta denominação de origem.
Um mês mais tarde, em 28 de Dezembro, o Governo publica o Decreto-Lei n.º 486/82
para tentar clarificar a situação jurídica da Casa do Douro, extinguindo a Federação dos
Vinicultores da Região do Douro (Casa do Douro) e criando a Casa do Douro, mantendose, assim, a sua designação tradicional, preconizando que o seu estatuto deveria ser
objecto de nova revisão quando se procedesse à reformulação orgânica e funcional do
Instituto do Vinho do Porto.
Em 1984, a Comissão de Coordenação da Região Norte publica o relatório Douro
Region Development Study, da autoria da Rofe, Kenard & Lapworth e Coopers & Lybrand
Associates, que sugere e apresenta dados relevantes para diversas iniciativas e investimentos empresariais com boas perspectivas de viabilidade, possíveis de concretizar
no Douro. Identifica projectos, na região do Douro, com potencialidades de mobilizar
os recursos locais e acelerar o desenvolvimento, através da criação de novos empregos.
Este relatório viria a ser republicado 10 anos mais tarde, na medida em que os gestores
do programa PRODOURO (1994-2000) consideraram que ainda tinha muita actualidade
e interesse para o desenvolvimento do Douro, uma vez que, no sector dos vinhos, os
principais actores da região (instituições e adegas cooperativas) ainda não tinham concretizado nenhumas das iniciativas então preconizadas.
Seria apenas com a integração europeia que se operaram as grandes transformações do
a adesão à cee
sector, quer em termos da sua organização, quer em termos de desenvolvimento, passando a ser regido por uma Organização Comum do Mercado, nos termos do disposto
no Tratado de Roma. Em 1985, Portugal assina o tratado de adesão à Comunidade Económica Europeia e inicia-se uma segunda vaga de desenvolvimento regional. Inicia-se o
processo de reestruturação das vinhas, modernizam-se as adegas, começa a haver mais
preocupações ao nível do marketing e da apresentação dos produtos, tudo isto acompanhado pela chegada, ao mercado de trabalho, de jovens técnicos, uma boa parte formada
na Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro, nos cursos de Engenharia Agrícola e de
Enologia (criado em 1984), que contribuíram para a grande “revolução” do sector.
A Junta Nacional do Vinho transformou-se no Instituto da Vinha e do Vinho, foram definidos os conteúdos que os Estatutos de cada Região Demarcada deveriam apresentar, a cons-
da Lei-quadro das Regiões Demarcadas Vitivinícolas – Lei n.º 8/85, da Assembleia da República.
Note-se que, na época, os produtores e Adegas Cooperativas do Douro apenas podiam vender Vinho do Porto no mercado nacional, estando-lhes vedada a exportação,
que apenas se podia fazer a partir do entreposto “único e exclusivo” de Vila Nova de Gaia,
situação que viria a ser corrigida através da publicação do Decreto-Lei n.º 86/86, em resposta à manifestação de vontade da viticultura duriense “da necessidade de introdução
de alterações no circuito comercial, de modo a torná-lo mais consentâneo com as realidades actuais, mormente as decorrentes da integração de Portugal na Comunidade Económica Europeia, cujas regras consagram a liberdade de comércio”, conforme se pode ler
no preâmbulo daquele decreto-lei. Continua, referindo que “dentro do espírito de uma
verdadeira liberdade de comércio não deverá ser restringida ao produtor a possibilidade
de exportação, embora no caso concreto do vinho do Porto se deva salientar que esta
possibilidade, de forma alguma, poderá vir a restringir o regime de defesa da qualidade
que tem vindo a ser aplicado eficientemente pelo Instituto do Vinho do Porto”. Para a
publicação deste Decreto-lei, muito contribuiu a perseverança de Luís Roseira.
Também em 1986, a Casa do Douro é de novo extinta, através do Decreto-lei n.º 316/86,
de 24 de Setembro, o qual só produziria efeitos após a criação de uma nova associação, de índole privatística, ou seja, pondo termo ao seu estatuto de pessoa colectiva de direito público.
Nesse mesmo ano, através do Decreto-lei n.º 166/86, de 26 de Junho, é aprovado o Regulamento da Denominação de Origem Vinho do Porto, que viria a prevalecer até 2009.
Em 1988, através do Decreto-Lei n.º 192/88, de 30 de Maio de 1988, é finalmente revista a lei
orgânica do IVP, que datava de 22 de Agosto de 1936, contando, por isso, com mais de 50 anos.
No respectivo preâmbulo, justifica-se esta alteração orgânica pela sua natural desactualização pelo decurso do tempo, invocando, contudo, outras razões que aconselhavam a sua reformulação, no sentido de repor “em vigor a autonomia administrativa e financeira com que o organismo foi originalmente concebido e criado, e que é instrumento indispensável ao
exercício capaz das suas competências e eficaz prossecução das suas atribuições e que se entende, por
isso, necessário restaurar. O carácter altamente especializado do organismo, o seu reduzido quadro de
pessoal, a multiplicidade de funções que é chamado a desempenhar, quer no aspecto técnico, quer no
marketing, a par com a urgência da sua modernização, aconselham uma alteração substancial do seu
estatuto, aproximando-o do das empresas públicas, quer em matéria de gestão e de pessoal, quer no
regime das suas relações contratuais e com terceiros, que ficam sujeitos às normas do direito privado,
a fim de lhe conferir uma operacionalidade acrescida”8.
Por outro lado, a então recém-publicada Lei n.º 8/85, que consagrou uma co-responsabilização das profissões na gestão das denominações de origem, contribuiu, mesmo
que timidamente, para a estrutura adoptada, na qual os vários parceiros económicos
intervenientes no processo produtivo foram chamados a colaborar, através de formas
orgânicas inseridas no próprio Instituto – o Conselho Geral – , embora aqui fosse considerado um factor positivo, sobretudo na “procura de uma resultante das linhas de força
emergentes dos interesses por vezes aparentemente antagónicos”, sob a tutela do Estado, que deveria procurar harmonizar, a bem do interesse comum.
Em 1989, o jornal Notícias do Douro organiza as I Jornadas da Vinha e do Vinho, que
contaram com 30 oradores e cerca de 500 participantes.
183
a evolução da organização institucional da região do douro
tituição das Comissões Vitivinícolas Regionais e os respectivos órgãos, através da publicação
184
No ano seguinte, em 1989, é publicado finalmente o Estatuto da Casa do Douro,
esquecendo por completo o que havia previsto no Decreto-Lei de 1986, mantendo um
estatuto de pessoa colectiva de direito público, com uma formulação, no mínimo algo
bizarra, “inovadora” nas palavras do legislador, “de contemplar a orgânica da Casa do
Douro com o Conselho Vitivinícola Interprofissional9 (CVI), órgão representativo, em
plena paridade, da lavoura e do comércio e cujas competências, no âmbito dos vinhos
de qualidade regionais, com excepção do vinho generoso do Porto, são as definidas na
Lei nº 8/85, de 4 de Junho”, prevendo, ainda, que a actividade da Casa do Douro fosse
acompanhada por um Auditor, nomeado pelos Ministros das Finanças e da Agricultura.
Os amplos poderes atribuídos à Casa do Douro e à sua direcção, bem como os atrasos na nomeação do Auditor e posteriores conflitos relativos às suas condições de exercício de funções, viriam a ditar o futuro da instituição duriense.
Com efeito, diversas alterações ao Método de Pontuação Moreira da Fonseca, efectuadas sem qualquer discussão ou vigilância, provocaram um enorme alargamento da área
apta à produção de Vinho do Porto, para zonas menos qualitativas, na medida em que foram
despenalizados uma série de factores considerados negativos, como, por exemplo, a altitude, tendo sido igualmente “abolido” o factor produtividade, entre outros, enquanto factor
de ponderação qualitativa, porquanto passou a ser atribuída a mesma pontuação a todas
as parcelas da região. Estas alterações provocaram que muitas das parcelas classificadas na
Letra “F” fossem reclassificadas para a “E” e promovidas novas parcelas que, anteriormente,
nunca tinham tido benefício à letra “F”, as quais, a partir de 1990, passaram a ter benefício todos os anos, provocando, deste modo, novo abaixamento da qualidade do Vinho do Porto10.
A par destes factos, de 1986 a 1991, a Casa do Douro distribuiu, acima do benefício
fixado pelo Instituto do Vinho do Porto no Comunicado de Vindima, mais 52.000 pipas
de mosto generoso. Este facto, associado a fixações de benefício irrealistas, por parte do
Instituto do Vinho do Porto, com a conivência do Governo, conduziria ao aparecimento
de enormes excedentes na produção que, em 1991, ultrapassaram as 150.000 pipas de
Vinho Generoso, mais do que a comercialização desse ano. Ou seja, a região tinha uma
colheita a mais do que as suas necessidades.
Em consequência, entre 1989 e 1990, a Casa do Douro efectuou o escoamento11 de
cerca de 53.000 pipas com o consequente endividamento, mas já não o conseguiu fazer em relação aos excedentes da campanha de 1991. Esta situação só viria a resolver-se
com a assinatura do célebre protocolo de 15 de Março de 1992, entre a produção e o comércio, sob a supervisão do Instituto do Vinho do Porto, já na presidência de Fernando
Bianchi de Aguiar, através do qual os comerciantes de Vinho do Porto, associados da
AEVP, aceitaram adquirir os excedentes de 1991, com o deferimento da capacidade de
venda correspondente a metade dessas compras para o ano seguinte, em contrapartida
do condicionamento ou colocação gradual, no mercado, dos excedentes das campanhas
de 1989 e 1990, em posse da Casa do Douro. A concretização daquele protocolo, para além
de retirar os excedentes em posse da produção e colocar gradualmente os pertencentes
à Casa do Douro, determinou ainda a repercussão gradual destas medidas na fixação das
autorizações de produção para os anos seguintes (85.000 pipas em 1992 e 90.000 em 1993),
diluindo, dessa forma, os impactos negativos que teria, na produção, o seu reflexo em
apenas uma vindima. Para a completa resolução do problema, em muito contribuiu a
década, atingindo o seu expoente máximo em 2000.
Pelo meio da crise, a Direcção da Casa do Douro, com muita polémica, consegue aprovar, no seu Conselho Regional de Vitivinicultores, a aquisição de 40% do capital social da
Real Companhia Velha, pela quantia de 9,6 milhões de contos (48 milhões de euros).
Em 1992, a situação era tão tensa que, em Julho, só a intervenção de um enorme aparato policial impediu a invasão da Casa do Douro por centenas de viticultores, pertencentes à recém-criada União de Viticultores do Douro12, que queriam destituir a Direcção
da Casa do Douro pela força.
Em 1991, a Casa do Douro foi incapaz de escoar os excedentes dos produtores e das adegas cooperativas (para os quais ela própria havia contribuído), fruto de uma situação financeira caótica em que tinha caído. Foi então que os viticultores perceberam a gravidade da situação e começaram a questionar os casos de atribuição fraudulenta de benefício, bem como a
obscuridade do próprio negócio da compra da participação da Real Companhia Velha13.
Este ruinoso negócio, associado ao escoamento de 1989 e 90, haveriam de ditar o
declínio da organização da lavoura duriense e o envolvimento financeiro do Estado
naquela organização.
De facto, entre 1992 e 1994, o Estado concedeu sucessivos avais à Casa do Douro, no valor
de mais de 16 milhões de contos (80 milhões de euros), tendo ainda contraído outros empréstimos sem aval do Estado, no valor de mais de 3 milhões de contos (15 milhões de euros), totalizando a dívida cerca de 20 milhões de contos (100 milhões de euros), que viria a ser renegociada entre 1996 e 1997, no âmbito de um Protocolo assinado entre a Casa do Douro e o Estado.
Tornou-se, assim, evidente que, entre desvarios da Direcção da Casa do Douro e omissões do Estado, o modelo de governação do sector, criado no final dos anos 80, nomeadamente o Conselho Geral do Instituto do Vinho do Porto, em 1988, e o Conselho Vitivinícola
Interprofissional da Casa do Douro, em 1989, embora tivessem começado por contribuir para
o desanuviamento das relações entre produção e comércio, não responderam, de forma eficaz, às necessidades do sector. Tais factos reforçaram a necessidade de se proceder a uma
profunda alteração institucional, assente na consciência de que apenas a concertação interprofissional poderia facilitar a autorregulação da fileira vitivinícola e a harmonização dos interesses em jogo, através da co-responsabilização nos destinos que a ambos dizem respeito.
Em termos do tecido produtivo, esta crise propiciou o aparecimento de um conjunto de
a modernização
empresarial
e institucional
produtores-engarrafadores de vinho do Douro, que começaram a perceber a debilidade da economia duriense exclusivamente assente na produção de vinho Generoso, não
criando quaisquer mais-valias com as restantes uvas não beneficiadas. Enquanto, até
aí, apenas preponderavam nomes como a Quinta do Infantado (no Vinho do Porto), a
Quinta da Pacheca e a Quinta do Cotto, esta crise fez emergir um importante movimento
em torno dos vinhos do Douro que os catapultou para um patamar de notoriedade nunca antes imaginado. É justo destacar nomes como Manuel Pinto Hespanhol, Domingos
Alves de Sousa, a Quinta de Seara d’Ordens, a Quinta do Crasto, ou Calheiros Cruz, como
os grandes impulsionadores destes vinhos, aos quais rapidamente se juntaram muitos
outros produtores de dimensão muito variável, mas também a generalidade das tradi-
185
a evolução da organização institucional da região do douro
feliz coincidência do aumento da comercialização de Vinho do Porto durante o resto da
186
187
cionais empresas de Vinho do Porto, criando valor no que, até aí, era considerado quase
188
como um subproduto do Vinho do Porto.
Em 1993, ao fim de 60 anos de existência, o Instituto do Vinho do Porto instala uma delegação na região do Douro, como forma de realizar, de maneira mais expedita, as suas atribuições estatutárias (lembremo-nos que, desde 1986, os produtores-engarrafadores e as adegas
cooperativas podiam exportar directamente do Douro) e criar um canal de diálogo in loco com
a lavoura, de modo a melhor conhecer a realidade regional.
Na cerimónia inaugural, o Ministro da Agricultura anunciou que o Governo estava
a preparar um projecto de alteração da Lei orgânica do Instituto do Vinho do Porto, visando a sua evolução para um organismo interprofissional, sem prescindir, contudo, do
papel do Estado no controlo da qualidade e estabilidade do processo decisório, reconhecendo que a reforma institucional de 1988 e 1989 motivou conflitos, provocou desestabilização e prejuízo para o sector.
Em Janeiro de 1994, sem qualquer aviso prévio, o Governo envia o projecto de Decreto-Lei do Instituto do Vinho do Porto e um projecto de Autorização legislativa para
alteração dos Estatutos da Casa do Douro, para apreciação das organizações do comércio
e da produção, no qual se previa a assumpção, por aquele organismo, das funções públicas da Casa do Douro, dotando-o, contudo, de um Conselho Interprofissional, onde
tivessem representação, em paridade, produção e comércio. Se bem que a proposta técnica de gestão da denominação de origem Vinho do Porto estivesse, em nosso entender,
correcta e correspondesse às necessidades do sector, o projecto de Decreto-Lei continha
incoerências jurídicas e lacunas, na medida em que retirava instrumentos de controlo e
competências administrativas à Casa do Douro, em favor do Conselho Interprofissional
do Instituto do Vinho do Porto, remetendo-a para um estatuto de pessoa colectiva de
direito privado, de natureza associativa e, simultaneamente, cometia-lhe a disciplina e o
controlo da produção e comercialização, a certificação e a promoção de todos os outros
vinhos produzidos na Região Demarcada do Douro. Não ponderava, igualmente, qualquer solução para os cerca de 350 funcionários públicos da instituição.
Esta proposta provocou um coro de protestos na região, tendo sido rejeitada por
unanimidade pelo Conselho Regional de Vitivinicultores da Casa do Douro, em Fevereiro, apelidando-a de ‘concentracionista’ e ‘estatizante’, tendo mesmo publicado um
opúsculo denominado “Em defesa da terra do Vinho do Porto”, no qual os Editores tecem considerações sobre o “afrontamento à região”14.
Perante esta onda de protestos, o Governo recua e aceita retirar as questões que eventualmente pudessem ‘melindrar’ a Casa do Douro, avançando para uma solução de instalar
a sede do novo “interprofissional” na região, solução que viria a revelar-se surpreendentemente consensual entre produção e comércio, tendo a produção conseguido negociar a manutenção do seu figurino de ‘associação pública’ e manter a gestão das restantes denominações de origem da região, por um período previsivelmente não superior a 5 anos.
Em Novembro desse mesmo ano, face à pequena adesão dos viticultores aos programas de reestruturação das vinhas ao abrigo dos programas comunitários, Jorge Dias
Quinta da Vacaria, a montante
da foz do Rio Corgo
apresenta ao Conselho Regional de Vitivinicultores uma proposta de criação de mecanismos administrativos que visava a atenuação dos encargos financeiros para os viticulto-
na qual se preconizava, entre outras, a possibilidade dos viticultores reestruturarem até
40% da área total da sua exploração, sem perda de benefício, sendo a produção assegurada pelos restantes 60% da área em cultura.
Algumas destas medidas, fundamentais para a necessária reestruturação das vinhas,
só viriam a ser aprovadas em 1998, através da publicação do Decreto-Lei n.º 254/98, já da iniciativa da Comissão Interprofissional da Região Demarcada do Douro, e outras por deliberação do Conselho Interprofissional do Instituto dos Vinhos do Douro e do Porto, em 2005.
Em 1995, é finalmente concretizada a tão esperada reforma institucional, através da
A afirmação da autorregulação
na gestão das denominações
de origem da RDD
publicação dos Decretos-Lei n.º 74, 75 e 76/95, todos de 19 de Abril, que publicavam, respectivamente, a Lei Orgânica da Comissão Interprofissional da Região Demarcada do Douro
(CIRDD), os Estatutos da Casa do Douro e a Lei Orgânica do Instituto do Vinho do Porto.
Assim, pelo Decreto-Lei n.º 74/95, a Comissão Interprofissional da Região Demarcada do Douro assumia competências anteriormente atribuídas à Casa do Douro e ao Instituto do Vinho do Porto, passando a ser o organismo nuclear do edifício institucional da
Denominação de Origem Porto e, após um período transitório, das restantes Denominações de Origem Controlada da Região.
Em 19 de Maio do mesmo ano, foi nomeada a Comissão Instaladora da Comissão Interprofissional da Região Demarcada do Douro, presidida por Daniel Bastos, com a missão de diligenciar, junto das duas profissões, a eleição dos respectivos representantes no
Conselho Geral, dotar a Comissão Interprofissional da Região Demarcada do Douro das
instalações e equipamentos mínimos necessários ao seu funcionamento, bem como
proceder à contratação do pessoal indispensável ao início da sua actividade.
Nesse mesmo ano, por iniciativa do Instituto do Vinho do Porto, produz-se uma das
mais importantes reformas do Sector do Vinho do Porto, com a publicação do DecretoLei n.º 264-A/95, e da Portaria n.º 1247-A/95, através da qual, a partir de 1 de Julho de 1996,
ficaria “suspensa a expedição de Vinho do Porto a granel para o exterior da Região Demarcada do Douro e do Entreposto de Gaia, só sendo permitida a expedição desse produto quando previamente engarrafado no interior daquelas zonas geográficas”.
Tratou-se de uma medida de grande significado económico para a denominação de
origem Porto, que ainda hoje constitui um marco na generalidade dos países vitícolas
europeus, mas contou com forte oposição dos países não produtores, cujos grandes distribuidores efectuavam grandes mais-valias ao fazerem o engarrafamento no destino,
como era o caso da Bélgica e da Holanda.
Nos países tradicionalmente importadores de Vinho do Porto a granel, este foi, em
geral, mais ou menos rapidamente substituído (mais na Holanda, menos na França e
na Bélgica) pelo Vinho do Porto engarrafado na origem, mas sob marca propriedade do
importador (BOBs - Buyers’ Own Brands).
Após a conclusão dos trabalhos que definiram o Modelo de Funcionamento para a Comissão Interprofissional da Região Demarcada do Douro15, e de difíceis negociações relativamente às suas condições de arranque, a Comissão Instaladora celebrou um acordo com
a Direcção da Casa do Douro, no sentido desta ceder instalações à primeira, no qual foram
189
a evolução da organização institucional da região do douro
res que quisessem reestruturar as suas vinhas, num espírito de solidariedade regional,
190
igualmente vertidos os pressupostos e as condições de utilização, pela Comissão Interprofissional da Região Demarcada do Douro, do Cadastro da Casa do Douro, instrumento fundamental da prossecução das atribuições que lhe haviam sido conferidas na sua Lei Orgânica.
Se bem que, a esta distância, nos possa parecer que a Comissão Interprofissional da Região Demarcada do Douro contratualizou com a Casa do Douro um dos processos mais críticos para a realização das suas competências – o cadastro –, o certo é que, no curto prazo, não
se prefiguravam alternativas a esse procedimento16 e, reconheça-se, constituiu o primeiro
passo efectivo de tentativa de convergência, entre as duas profissões, de uma vontade de
cooperação interprofissional no sentido da construção desta nova organização.
Foi neste cenário que a Comissão Instaladora da Comissão Interprofissional da Região
Demarcada do Douro deu por concluídos os seus trabalhos, abrindo caminho à constituição
do Conselho Geral da Comissão Interprofissional da Região Demarcada do Douro e à nomeação, em Outubro de 1996, de Maria Laudomira de Jesus como representante do Estado.
Nesse mesmo mês, foi constituída e reuniu pela primeira vez a Secção Especializada da DO
“Porto” do Conselho Geral da Comissão Interprofissional da Região Demarcada do Douro.
Dando um sinal claro da vontade do Governo em afirmar o sistema auto-regulador interprofissional para as duas denominações de origem da Região Demarcada do Douro, e
em reforçar a posição da Comissão Interprofissional da Região Demarcada do Douro como
organismo nuclear do edifício institucional da Região, embora o CVI não tenha sido imediatamente integrado na sua estrutura orgânica como Secção Especializada dos outros VQPRD
do seu Conselho Geral, deixou de constar dos órgãos da Casa do Douro, mantendo-se todavia naquela instituição com as regras originariamente definidas nos Estatutos da Casa do
Douro, de 1988, mas somente a título transitório, como consta do Decreto-Lei n.º 74/95 e do
preâmbulo do diploma que aprova os Estatutos da Casa do Douro, o Decreto-Lei n.º 76/95.
Tratou-se de uma solução transitória, associada à manutenção da Casa do Douro
na prossecução da disciplina, controlo e fiscalização da produção, elaboração e comercialização dos vinhos de qualidade com direito a denominação de origem da Região
Demarcada do Douro, que não “Porto”, por um período previsivelmente não superior a
cinco anos. A partir desta altura, o CVI passou a ter representações da Produção e do Comércio, de acordo com os Estatutos da Comissão Interprofissional da Região Demarcada
do Douro para a Secção Especializada para os outros VQPRD, introduzindo, assim, mais
justiça na representação das duas profissões, que passaram a ter seis elementos cada,
cabendo a sua presidência a um representante nomeado pelo Estado que, simultaneamente, seria assumida por Laudomira de Jesus.
Estavam, pois, reunidas as condições para se iniciar um novo período na vida do
Conselho Vitivinícola Interprofissional da Casa do Douro.
Cerca de 7 meses mais tarde, em 7 de Maio de 1997, a Comissão Interprofissional da
Região Demarcada do Douro abre ao público, com condições para efectuar o controlo e
fiscalização da movimentação de vinhos generosos e de aguardentes vínicas na Região
Demarcada do Douro, atribuições e correspondentes taxas antes cometidas à Casa do
Douro e ao Instituto do Vinho do Porto.
Várias reuniões do Conselho Geral e ainda outras, entre representantes da Produção, do Comércio e do Governo, levaram ao estabelecimento dos compromissos inter-
das competências da Comissão Interprofissional da Região Demarcada do Douro, os
quais foram posteriormente formalizados num protocolo assinado entre as duas instituições, em 1 de Julho. Esse protocolo, cuja vigência terminava em 31 de Dezembro de
1999, visou os aspectos relativos a Instalações, Cadastro, Registo de Vitivinicultores,
Declarações de Colheita e Produção, Declarações de Existência, Fiscalização, Laboratório e Taxas, o qual só foi, aliás, possível após assinatura do protocolo de viabilização
económica e financeira da Casa do Douro, pelo qual o Estado avalizou, em first demand,
empréstimos à Casa do Douro no valor de 17 milhões de contos (85 milhões de euros)
e esta se comprometeu a cooperar na implementação do novo quadro institucional.
No decurso deste processo, Mesquita Montes, o histórico presidente da Casa do
Douro, seria forçado a resignar à respectiva direcção, sendo substituído pelo, então, Presidente do Conselho Regional de Vitivinicultores, Manuel António dos Santos, que se
mantém no cargo até à actualidade.
Estava, pois, a Comissão Interprofissional da Região Demarcada do Douro em
condições de estruturar e consolidar os seus serviços, bem como prosseguir no aprofundamento das atribuições e competências que lhe estavam legalmente estatuídas. A
primeira das quais, carregada de simbolismo, seria o comunicado da vindima de 1997,
pela primeira vez elaborado pelas duas profissões da Região Demarcada do Douro, sem
a intervenção do Estado, como até aí vinha sendo feito pelo Instituto do Vinho do Porto.
Aproveitando as virtualidades da cooperação inter-institucional ensaiada na fase do
seu arranque, a Comissão Interprofissional da Região Demarcada do Douro lançou o processo de elaboração de um projecto de Estatuto da Região Demarcada do Douro, preparada por
um Grupo Técnico Inter-Institucional, o qual viria a ser publicado em anexo ao Decreto-Lei
n.º 254/98, de 11 de Agosto, cuja grande inovação seria a possibilidade dos viticultores poderem reestruturar até 40% da área das suas explorações sem perda de benefício, conforme havia sido proposto, 4 anos antes, ao Conselho Regional de Vitivinicultores da Casa do Douro.
Em 1997, Armando Pimentel é nomeado Presidente do Instituto do Vinho do Porto.
Ainda no decorrer de 1998, a Comissão Interprofissional da Região Demarcada do
Douro, após aprovação pelo seu Conselho Geral, patrocinou um Grupo de Trabalho que
coligiu elementos existentes na Casa do Douro17 e preparou uma proposta de Portaria do
Método de Classificação das Parcelas com Vinha, para a produção de vinho susceptível
de atribuição da DO Porto, o que nunca tinha acontecido desde a elaboração deste Método, em 1947, pelo Eng. Moreira da Fonseca.
Apesar dos esforços e resultados positivos no reforço do interprofissionalismo e da
assumpção tácita do papel nuclear que a Comissão Interprofissional da Região Demarcada
do Douro podia desempenhar na mobilização e concertação de vontades entre as diversas
profissões, continuava a sentir-se algumas resistências à aceitação da Comissão Interprofissional da Região Demarcada do Douro como o organismo central da organização institucional do sector, especialmente decorrentes da complexidade e de algumas ineficiências
do novo quadro institucional da Região Demarcada do Douro, que urgia resolver.
Para além disso, a execução, pela Casa do Douro, do protocolo assinado em Julho com
a Comissão Interprofissional da Região Demarcada do Douro revelou deficiências e inefici-
191
a evolução da organização institucional da região do douro
profissionais, possíveis na época, sobre a participação da Casa do Douro na execução
192
ências, cujos efeitos negativos, necessariamente, recaíram sobre a própria Comissão Interprofissional da Região Demarcada do Douro, uma vez que a incompleta implementação do
quadro institucional, por força dos protocolos estabelecidos com a Casa do Douro no período transitório então em vigor, fez com que os viticultores sofressem acréscimos de custos,
sem que fossem muito visíveis as suas contrapartidas, na medida em que não recebiam da
Comissão Interprofissional da Região Demarcada do Douro uma directa prestação de serviços, assumindo, no entanto, esta o ónus de ser a titular das competências e, como tal, das
taxas cobradas. Um outro aspecto sentido era a existência de demasiadas instituições com
funções reguladoras sobre o sector vitivinícola da Região Demarcada do Douro, com zonas
de sobreposição ou de indefinição de competências que importava minimizar18.
Igualmente negativos, para o sector vitivinícola da Região Demarcada do Douro,
eram os vazios de intervenção interprofissional, nomeadamente os que resultavam da
atribuição, à Casa do Douro, durante o período transitório, da disciplina, controlo e fiscalização da DO Douro. Esta situação foi factor da desarticulação institucional e funcional
entre as Denominações de Origem Porto e Douro e, como tal, da dificuldade da definição
de uma política integrada para o Sector, compatibilizadora dos interesses das duas DO,
que introduzisse coerência na regulamentação e fomentasse estratégias conjuntas.
O final do período transitório durante o qual a Casa do Douro deveria prosseguir a
atribuição de disciplinar, controlar e fiscalizar a produção, elaboração e comercialização
dos restantes vinhos de qualidade com direito a denominação de origem produzidos na
Região Demarcada do Douro, bem como proceder à respectiva promoção e defesa, coincide, grosso modo, com o final do primeiro mandato dos membros do Conselho Geral e da
Comissão Executiva da Comissão Interprofissional da Região Demarcada do Douro, bem
como com o fim da vigência dos protocolos assinados entre a Comissão Interprofissional
da Região Demarcada do Douro e a Casa do Douro. Tais factos viriam a condicionar fortemente a evolução da interprofissão no Douro.
Após uma primeira abordagem sobre a progressiva implementação da Comissão
Interprofissional da Região Demarcada do Douro, estabeleceu-se um consenso positivo
relativamente a esta matéria, ressalvando contudo a Produção que todo este processo
deveria ser conduzido de forma a que a sobrevivência da Casa do Douro não fosse inviabilizada, solução que deveria ser encontrada através da encomenda de estudo exaustivo a
entidade independente, aceite explicitamente por todas as partes integrantes da Comissão Interprofissional da Região Demarcada do Douro, que, tomando como referência o
enquadramento legal existente, apresentasse as diversas hipóteses de aprofundamento
da Comissão Interprofissional da Região Demarcada do Douro e previsse, para cada uma
delas, todas as suas implicações e custos. Porém, tal estudo nunca viria a realizar-se.
Em 1999, Jorge Monteiro é nomeado Presidente do Instituto do Vinho do Porto, cargo que viria a ocupar até 2004, sendo então reconduzido no cargo, como Presidente do
recém-formado Instituto dos Vinhos do Douro e do Porto.
Em 2000, não dispondo de respostas claras por parte do Governo, Laudomira de
Jesus demite-se de Presidente da Comissão Interprofissional da Região Demarcada do
Douro, cargo que viria a ser ocupado por Coelho Pires.
Este, por sua vez, só viria a presidir aos destinos da Comissão Interprofissional da Região
Demarcada do Douro durante um ano, tendo pedido a demissão em Abril de 2001, no meio
a evolução da organização institucional da região do douro
193
Accionistas e produtores
da Lavradores de Feitoria,
Fevereiro de 2006
Arquivo pessoal JD
de conflitos com a Direcção da Casa do Douro e em ruptura com as orientações do Governo.
No tecido empresarial, em 2000 é formalizada a constituição da Lavradores de Feitoria,
uma espécie de agrupamento de produtores, com o estatuto de Sociedade Anónima.
Mas o ano de 2000 ficaria definitivamente marcado pela entrega, em Paris, no dia 30
o reconhecimento
mundial do valor
excepcional e universal
do douro
de Junho de 2000, da candidatura do Alto Douro Vinhateiro a Património Mundial da
UNESCO, pelas mãos de Fernando Bianchi de Aguiar, coordenador da equipa multidisciplinar formada paro o efeito.
A iniciativa da candidatura deveu-se à Fundação Rei Afonso Henriques (FRAH), entidade que promoveu e financiou os estudos conducentes à elaboração de todo o processo, então presidida por Miguel Cadilhe, tendo o dossier de candidatura sido igualmente patrocinado pela Fundação Rei Afonso Henriques (FRAH), já sob a presidência de Luís Braga da Cruz.
A decisão final do Comité do Património Mundial teve lugar em Helsínquia (Finlândia), no dia 14 de Dezembro de 2001, que inscreveu o Alto Douro Vinhateiro como
paisagem cultural evolutiva viva.
Tendo por base os instrumentos de planeamento existentes e o quadro legal do sector vitivinícola que determinaram a “construção” da paisagem até aos nossos dias, era
necessário saber aperfeiçoar esta “gestão tradicional”, criando um processo mais activo
de intervenção, orientado agora, de forma expressa, para a protecção e valorização da paisagem cultural evolutiva viva.
Assim, optou-se pela elaboração de um único e integrador instrumento de desenvolvimento territorial, de ordenamento do território e de gestão da paisagem, consubstanciado
num Plano Intermunicipal de Ordenamento do Território (PIOT), cujas orientações deveriam
ser transpostas para os Planos Directores Municipais (PDM) dos 13 municípios envolvidos.
194
Quinta de Ventozelo,
São João da Pesqueira
195
Este Plano Intermunicipal de Ordenamento do Território do Alto Douro Vinhatei-
196
ro (PIOT-ADV) viria a ser aprovado pelo Governo, através da Resolução do Conselho de
Ministros n.º 150/2003, de 22 de Setembro, sendo o primeiro plano intermunicipal de ordenamento do território a ser aprovado no país. O PIOT-ADV consistia num instrumento de gestão da “paisagem cultural evolutiva e viva”, de articulação das estratégias e de
coordenação das iniciativas intermunicipais, em termos de valorização do património
natural e cultural, e de enquadramento dos processos de revisão dos planos directores
municipais dos municípios abrangidos, então em curso.
No domínio das estruturas organizativas de apoio à gestão e salvaguarda da paisagem, previa-se a criação de duas estruturas; o Gabinete Técnico Intermunicipal do Alto
Douro Vinhateiro (GTI), como corpo de apoio técnico à gestão da paisagem, e que, no local, actuaria na dependência funcional das Câmaras Municipais do ADV; e uma Associação
Promotora do Alto Douro Vinhateiro, como plataforma de relacionamento público‑privado e geradora de dinâmicas activas de intervenção, agregando todas as entidades interessadas e envolvidas na preservação, salvaguarda, valorização e promoção da paisagem.
Relativamente ao GTI, nunca este Gabinete se afirmou verdadeiramente como líder do
processo de salvaguarda da paisagem, nem sequer utilizou todos os fundos postos à disposição pelo Governo, tendo sido extinto por iniciativa das Autarquias que integravam o ADV.
Relativamente à Associação Promotora do ADV, ela nasce da iniciativa de Miguel Cadilhe, com a designação de Liga dos Amigos do Alto Douro Vinhateiro Património Mundial.
Desde a sua constituição, conseguiu, de facto, agregar as entidades públicas e privadas
proprietárias dos bens, mas não conseguiu, ainda, afirmar-se como um parceiro activo e
gerador de dinâmicas dessa mesma salvaguarda, cuja responsabilidade poderá não lhe ser
assacada, mas sim aos interlocutores (ou à sua ausência) responsáveis pela preservação,
salvaguarda, valorização e promoção da paisagem.
Em Abril de 2001, Luciano Vilhena Pereira é nomeado Presidente da Comissão Interpro-
a confirmação do
interprofissionalismo
na gestão das
denominações
de origem da rdd
fissional da Região Demarcada do Douro e, em Agosto desse mesmo ano, o Ministro da
Agricultura nomeia Vilhena Pereira para levar a cabo as diligências que repute necessárias para a reforma ou ajustamento institucional da Região Demarcada do Douro, na
medida em que a experiência veio demonstrar que haveria que proceder à sua revisão
mediante alguns ajustamentos àquele modelo, de forma a conferir-lhe maior flexibilidade e liberdade de funcionamento, para uma resposta mais eficaz à conciliação dos
interesses da produção e do comércio, cuja convergência é cada vez mais desejável, em
prol da defesa da qualidade do vinho produzido na mais antiga região demarcada.
Uma vez que já tinha terminado o período transitório durante o qual a Casa do Douro
poderia prosseguir as suas atribuições de gestão das outras DO da região, e não se vislumbrando uma saída negocial para o impasse, em Novembro de 2001, a Comissão Interprofissional da Região Demarcada do Douro decide criar a Secção Especializada para os restantes
VQPRD da região, tendo a Casa do Douro interposto um recurso contencioso relativamente àquela decisão, pedindo ao Tribunal a respectiva anulação, tendo sido negado provimento pelo Tribunal Administrativo do Círculo do Porto, em Março de 2003.
mento institucional e à porta de uma grave crise económica, decorrente de um continuado decréscimo de comercialização de vinho do Porto e de fixações de benefício nos anos
de 1999 a 2001 pouco adequadas à realidade do mercado, com o consequente avolumar
de excedentes que, só naqueles anos, chegaram a ultrapassar as 80.000 pipas. À excepção
da crise do início dos anos 90, nunca a diferença entre a comercialização e a capacidade
de venda atribuída aos comerciantes de Vinho do Porto foi tão grande, prejudicando naturalmente as condições negociais da produção.
Simultaneamente, a Casa do Douro encontrava-se numa situação crítica, com graves
dificuldades financeiras que conduziram ao incumprimento significativo do serviço da dívida avalizada pelo Estado em 1997, a par de uma delicada situação de salários em atraso,
por incapacidade de gerar as receitas necessárias ao seu funcionamento.
Cinco anos passados sobre o saneamento financeiro da Casa do Douro e o início de
actividade da Comissão Interprofissional da Região Demarcada do Douro, verificava-se
que não se resolveu a situação económica e financeira da Casa do Douro, nem se estabilizou o modelo, bem como as relações institucionais entre as diversas profissões do
sector vitivinícola da Região Demarcada do Douro, marcadas por uma permanente e profunda conflitualidade entre as partes, o que em nada favoreceu a criação de condições
para um desenvolvimento sustentado da região.
Seria novamente Luís Roseira, então Presidente da AVEPOD, (Associação de Viticultores
Engarrafadores Produtores de Vinho do Porto do Douro), a desempenhar um papel fundamental, tendo habilmente facilitado o início do diálogo entre as profissões.
De facto, se por um lado sempre a Casa do Douro manteve reservas na construção deste edifício institucional, uma vez que lhe retirou atribuições e competências na gestão dos
vinhos generosos, bem como parte das respectivas receitas, por outro lado, o protocolo
assinado com o Estado não conseguiu produzir os efeitos desejados, mantendo-se a Casa
do Douro numa situação económica e financeira extremamente delicada.
Uma vez que, já em 2000, se havia iniciado um movimento tendente a reduzir o número de instituições com intervenção no sector, e estando em curso um processo negocial
nesse sentido entre a Produção e o Comércio, o XV Governo Constitucional, quando iniciou
funções, acolheu na Lei do Orçamento Rectificativo para 2002 a fusão entre a Comissão Interprofissional da Região Demarcada do Douro e o Instituto do Vinho do Porto, por todos
reclamada, tendo o Secretário de Estado do Desenvolvimento Rural afirmado publicamente
que acolheria uma posição conjunta da Casa do Douro e AEVP.
Todavia, até Agosto de 2002, a Casa do Douro apenas tinha exposto ao Governo a situação
financeira em que se encontrava, mas não propondo qualquer solução para o efeito.
Em Julho de 2002, a AEVP remete ao Governo o seu projecto de alteração institucional e, logo após, a Casa do Douro reabre as negociações com a AEVP, remetendo ao
Governo as suas posições quanto ao projecto da AEVP, que se resumiam a 3 questões;
aquisição de vinhos, livre associação e cadastro.
Relativamente à aquisição de vinhos, a Casa do Douro não dispensava manter e continuar a constituir um stock histórico, mesmo que simbólico, deixando de adquirir vinhos
197
a evolução da organização institucional da região do douro
Em Abril de 2002, Fernando Bianchi de Aguiar é nomeado Secretário de Estado do
Desenvolvimento Rural, com a região do Douro mergulhada numa crise de relaciona-
198
logo que pagas as suas dívidas à banca, querendo, todavia, chamar a si a capacidade de
armazenar, em termos a definir com cada um dos interessados, os vinhos não negociados
até 15 de Janeiro de cada ano (fim da base V do Comunicado de Vindima).
Quanto ao livre associativismo, a Casa do Douro aceitava o princípio, após um período de 15 anos e desde que as novas associações representassem pelo menos 15% dos
viticultores durienses, dispondo-se ainda a negociar com a AEVP a participação de produtores seus associados em órgãos da Casa do Douro.
No que respeita ao cadastro, tratando-se de um bem patrimonial da Casa do Douro,
esta instituição considerava que a solução mais apropriada seria o pagamento, à Casa do
Douro pela actualização e cedência dos dados necessários ao cumprimento, pelo Instituto
do Vinho do Porto, de todas as suas competências, aceitando que o cadastro e os seus serviços pudessem ser auditados pelo Instituto do Vinho do Porto.
Face às posições manifestadas pelas partes, o Governo patrocinou uma reunião entre os Presidentes da Casa do Douro e da AEVP, na qual foi consensualizado o modelo
institucional a adoptar e a utilização do cadastro da Casa do Douro, ficando em aberto as
questões relativas à aquisição de vinhos da Casa do Douro, por parte dos comerciantes,
como forma de resolver os seus problemas financeiros, bem como o período transitório
para o livre associativismo. A grande divergência centrava-se na possibilidade da Casa
do Douro poder adquirir vinhos na vindima para continuar a lotar os seus vinhos velhos,
designadamente os que não fossem vendidos ao comércio, facto que a AEVP considera
profundamente perturbador das condições negociais da vindima, ao que acrescenta já
existir um mecanismo regulador da oferta e da procura, através da fixação anual do benefício. Para a AEVP, o comércio só se poderia envolver numa operação de saneamento
financeiro da Casa do Douro pela compra dos seus vinhos, se a Casa do Douro deixasse,
efectivamente, de adquirir vinhos na vindima ou após o fim da base V.
Também nas reuniões de análise do anteprojecto da nova lei orgânica do Instituto do
Vinho do Porto, promovidas no âmbito de um Grupo de Trabalho Inter-institucional coordenado pelo Presidente do IVDP, o Presidente da Casa do Douro não demonstrou qualquer
atitude cooperante na construção do novo modelo institucional.
Neste cenário de recuos e indefinições, por parte da Casa do Douro, no âmbito da reforma institucional do Douro e face à anunciada execução, pela banca, da garantia dada
como penhor (vinhos), o Governo, para evitar a execução e as graves consequências para
o rendimento dos agricultores nos anos seguintes e para o normal funcionamento do
mercado que a entrada desses vinhos nesse mesmo mercado poderia provocar, bem como
criar condições de estabilidade daquele organismo, enquanto interlocutor da produção na
construção e funcionamento da nova organização interprofissional que estava a ser desenvolvida, e depois de avaliar cuidadosamente a situação e ponderar todas as implicações,
enviou à Casa do Douro as seguintes propostas que, depois de aprovadas na generalidade
pelo Conselho Regional de Viticultores, por unanimidade e aclamação, foram vertidas na
Resolução do Conselho de Ministros n.º 148/2002, de 30 de Dezembro19:
Pretendeu o Governo, com esta proposta, fazer avançar a reforma institucional do
Douro e resolver definitivamente os problemas financeiros que afligiam a Casa do Douro e a haviam desviado da sua verdadeira missão de defesa dos interesses dos vitivinicultores durienses nos órgãos próprios para o efeito.
ponderadas e acolhidas as próximas pretensões da Casa do Douro.
Pretendia o Presidente da Casa do Douro fazer arrastar a situação, de forma a criar
espaço de manobra que lhe permitisse rebater a bondade da proposta do Governo, vitimizando-se e vitimizando o Douro e a Casa do Douro.
Na verdade, a dívida total da Casa do Douro, na época, já ascendia a cerca de 125
milhões de euros.
Acontece que o aval do Estado ao empréstimo da CGD à Casa do Douro, em caso de incumprimento por esta última, garantia a totalidade daquele contrato – prestações vencidas e
vincendas até 2017 – num total de mais de 30 milhões de contos (150 milhões de euros), uma
vez que, em qualquer dos casos, o vinho só podia ser gradualmente colocado no mercado,
ao longo de 15 anos.
O detalhe da proposta do Governo previa, ainda, que o Tesouro fosse vendendo o
vinho dado em penhor, como dação em pagamento da resolução da totalidade do contrato – capital e juros. E também que, do vinho dado como penhor, a Casa do Douro pudesse retirar 5% para constituir a sua reserva histórica, atribuindo-lhe, 5 % do produto de
cada venda de vinho anual (625 mil euros), de modo a permitir que se pudesse adaptar,
gradualmente, à nova realidade e não provocar problemas sociais na região (88 funcionários públicos e cerca de 100 funcionários com CIT).
Entretanto, o Governo, através do Decreto-Lei nº 110/2003, de 4 de Junho, estende a figura dos certificados de existência de vinho do Porto, que constituíam um importante instrumento de recurso ao crédito pela sólida garantia real que representavam, aos agentes económicos da Região Demarcada do Douro, uma vez que, até aí, apenas estavam reservados ao
sector do comércio e para os vinhos armazenados no Entreposto de Vila Nova de Gaia.
Em 2002, perante a crescente comercialização de vinhos licorosos sem direito a denominação de origem ou indicação geográfica, por parte de alguns agentes económicos
da Região Demarcada do Douro menos escrupulosos que, assim, tentaram a suspensão
da expedição de Vinho do Porto a granel, o Governo, no sentido de prevenir o risco de
fraudes e a desvalorização da imagem de prestígio de que gozam o “Vinho do Porto” e
o vlqprd “Douro” (“Moscatel do Douro”), bem como combater os riscos de utilização
de uvas e mostos provenientes do exterior da Região Demarcada do Douro, que seria
estimulada caso fosse admitida a elaboração, no interior da região, de outros licorosos
além daqueles vlqprd, proibiu, através do Decreto-Lei n.º 191/2002, de 13 de Setembro, a
elaboração, no interior da Região Demarcada do Douro, de vinhos licorosos, com excepção dos vlqprd “Porto” e “Douro”.
Em Junho de 2003, estando concluídos os projectos de diplomas que concretizam
a alteração institucional – Lei Orgânica do Instituto dos Vinhos do Douro e Porto e os
Estatutos da Casa do Douro –, importava então operacionalizar o saneamento financeiro
da Casa do Douro, de forma a criar condições para o regresso da estabilidade, num novo
quadro de relacionamento interprofissional que se pretendia mais eficaz e mais adaptado às novas regras do mercado e aos desafios que se colocavam à Região Demarcada
do Douro, tendo sido, assim, assinado um protocolo entre o Estado, a Casa do Douro e a
Associação de Empresas de Vinho do Porto, através do qual o Estado se comprometia a
199
a evolução da organização institucional da região do douro
Em resposta a esta proposta, o Presidente da Casa do Douro referiu insistentemente
que não poderia assinar nenhum acordo com o Governo, se não fossem devidamente
200
permitir a renegociação dos empréstimos da Casa do Douro, então em dívida, ao sindicato bancário liderado pela Caixa Geral de Depósitos e a outros bancos, que contemplasse,
nomeadamente, a redefinição da imputação do produto da venda dos vinhos objecto
de penhor mercantil, tendo em vista a execução do presente protocolo. Paralelamente,
a Associação de Empresas de Vinho do Porto comprometia-se a promover a aquisição,
pelas empresas suas associadas, até 37.000 pipas de vinho, susceptíveis de obter a denominação de origem Porto, propriedade da Casa do Douro, desde que a qualidade organoléptica e físico-química desses vinhos fosse verificada pelo Instituto do Vinho do Porto e
fosse criada uma comissão independente para a determinação dos preços de referência.
Ficou ainda acordado que, até 31 de Outubro de 2003, seria assinado entre o Estado,
a Casa do Douro e a Associação de Empresas de Vinho do Porto um protocolo de execução que quantificasse os montantes e critérios de fixação dos preços dos vinhos a vender
em cada ano, bem como as demais condições necessárias àquela operação, documento
que a Casa do Douro se recusaria a assinar.
Em 28 de Junho, é assinado no Peso da Régua o protocolo relativo às condições de
gestão e utilização do cadastro da Casa do Douro, tendo sido anunciada, igualmente
uma série de medidas de apoio à lavoura e à Casa do Douro.
Foram, entretanto, enviados para agendamento em Conselho de Ministros os projectos de Lei Orgânica do Instituto dos Vinhos do Douro e Porto e da Lei de Autorização
Legislativa e Estatutos da Casa do Douro, que redefiniam as suas funções, os quais previam uma significativa simplificação do modelo de gestão do sector, concentrando a
supervisão da viticultura duriense num único organismo, mediante fusão da Comissão
Interprofissional da Região Demarcada do Douro com o Instituto do Vinho do Porto, e
redefinindo as funções da Casa do Douro.
O Instituto dos Vinhos do Douro e do Porto passaria a revestir a natureza de organização interprofissional, cuja ligação à região era aprofundada pelo reforço dos meios aí
sediados, bem como pela instalação da sua direcção na região, que já desde 1995 possuía
a sua sede no Peso da Régua. Continuava, apenas, a pertencer ao Estado a competência
relativa à certificação dos vinhos da Região Demarcada do Douro e à disciplina do sector,
quer na função fiscalizadora, quer na vertente da aplicação do regime das infracções,
cometendo-se às profissões a totalidade das responsabilidades em matéria de gestão e
coordenação da vitivinicultura duriense. A coordenação do sector seria, portanto, assumida pelo Conselho Interprofissional do IVDP, a quem cumpriria exercer a generalidade
das competências deste organismo, no que respeitava à regulamentação das actividades da produção e comércio de todos os vinhos da região, incluindo a fixação anual de
ajustamentos ao rendimento máximo por hectare e da quantidade de vinho do Porto a
beneficiar. A composição deste Conselho asseguraria a representação, necessariamente
paritária, da produção e do comércio, através da consagração de critérios que garantissem uma ajustada e directa representatividade dos seus membros, relativamente aos
vários interesses de cada um daqueles sectores.
Em Novembro de 2003, são publicados os Decretos-Lei n.º 277/2003 e n.º 278/2003, ambos de 26 de Novembro, que aprovaram, respectivamente, os Estatutos da Casa do Douro e
respectivo regulamento eleitoral, e a orgânica do Instituto dos Vinhos do Douro e do Porto.
Em 8 de Julho de 2004, são nomeados os Vice-presidentes do Conselho Interprofissional do Instituto dos Vinhos do Douro e do Porto, George Thomas David Sandeman,
pelo comércio, e António Luís da Costa Januário, pela produção.
Nesse mesmo ano, decorridos 18 anos sobre o estabelecimento da auto-regulação interprofissional do sector vitivinícola em Portugal, estabelecida pela Lei n.º 8/85, efectuouse uma profunda reforma do sector, quer na sua vertente institucional e orgânica, quer
no plano regulamentar, à luz da Organização Comum do Mercado (OCM) publicada pelo
Regulamento (CE) n.º 1493/99, através da publicação do Decreto-Lei n.º 212/2004, que actualizou e disciplinou o reconhecimento e a protecção das denominações de origem (DO)
e indicações geográficas (IG) utilizadas nos produtos do sector vitivinícola, bem como o
seu controlo e certificação, definindo-se, também, o regime aplicável às respectivas entidades certificadoras, bem como o Decreto-Lei n.º 213/2004, que estabeleceu o regime das
infracções relativas ao incumprimento da disciplina legal aplicável à vinha, à produção, ao
comércio, à transformação e ao trânsito dos vinhos e dos outros produtos vitivinícolas.
Com estes dois diplomas completou-se, já no início do novo milénio, a maior reforma
do Sector Vitivinícola Nacional e da Região Demarcada do Douro, desde o início do corporativismo, no início dos anos 30 do século XX. A propósito, Vital Moreira escreveria, no Diário
Económico de 14-10-2004, que “a nova reforma legislativa, embora inovadora em muitos aspectos, não põe porém em causa esses traços essenciais da regulação vitivinícola entre nós”.
Sobre este período mais recente da nossa História, há-de chegar o momento em
que, após a decantação produzida pelo tempo, tudo fique mais claro. Porque, contrariamente ao vinho, o Douro, esse, está sempre em fermentação.
201
a evolução da organização institucional da região do douro
Em 2 de Fevereiro de 2004, Jorge Monteiro é reconduzido na presidência do Instituto dos
Vinhos do Douro e do Porto, cargo que manteria até Setembro de 2008, quando renunciou.
202
1 Na verdade, a intervenção do Estado
já se havia iniciado no século XVIII, com a
criação da Companhia Geral da Agricultura
das Vinhas do Alto Douro, através de Alvará
régio de 10 de Setembro de 1756.
A instituição desta companhia monopolista,
semelhante a outras instituídas pela política
mercantilista de Pombal, surge na sequência
de uma crise económica e com o objectivo
de engrandecer o renome dos vinhos de
qualidade provenientes do Douro. Pretendia-se
proteger um domínio estratégico da economia
portuguesa, através de uma Companhia que
foi um instrumento para o Estado controlar
uma região e o sector económico do vinho do
Porto, assente em medidas intervencionistas
e numa vasta disciplina legislativa e de
engrandecimento do poder real.
2 É, aliás, a delimitação que vigora
actualmente, recuperada no Decreto-Lei
n.º 254/98 e, mais recentemente, no
Decreto-Lei n.º 173 /2009, de 3 de Agosto.
3 Esta disposição sofreu sucessivas evoluções,
desde então até à actualidade, sendo
comummente conhecida como a lei do terço.
Trata-se de uma disposição de solidariedade
do comércio para com a produção, que obriga
aquele a possuir stocks correspondentes a, pelo
menos, três vezes a comercialização em cada ano.
4 Levantamento das características
edafoclimáticas e culturais de todas as parcelas
com vinha na RDD, iniciado em 1937, que
permitiria a Moreira da Fonseca, em 1947,
estabelecer um método de classificação das
parcelas, através da atribuição de pontos
qualitativos a cada um dos parâmetros
caracterizadores destas. Curiosamente, o Método
de Pontuação de Moreira da Fonseca nunca viria a
ser publicado por iniciativa da Casa do Douro em
diploma legal, podendo, por isso, ser considerado
um regulamento privativo. Esta situação só viria
a ser regularizada em 2001, por iniciativa da
Comissão Interprofissional da Região Demarcada
do Douro, com a publicação da Portaria n.º
413/2001, que publicou o Regulamento da
classificação das parcelas com cultura de vinha
para a produção de vinho susceptível de obtenção
da denominação de origem Porto.
5 Em 1979 transformou-se no Centro
de Estudos Vitivinícolas.
6 Veja-se, a propósito, o relatório de
preparação da primeira fase do PRITM,
elaborado pelos técnicos da FAO / BM,
publicado pela CCRN em Outubro de 1980.
13 Este negócio foi ainda um grave factor de
instabilidade das relações entre a produção e o
comércio, vindo a ser inclusivamente impugnado
pelo comércio e pelo próprio Governo.
7 Áreas anteriormente plantadas com vinha,
sistematizadas em terraços estreitos sustidos
por muros baixos de contornos irregulares,
abandonadas após a crise filoxérica que
destruiu a totalidade da viticultura duriense.
14 O suporte jurídico a esta contestação foi dado
por Vital Moreira que, na época, estava a preparar
a sua tese de doutoramento sobre esta matéria.
8 Curiosa e estranhamente, ou talvez não,
a actual Lei Orgânica do IVDP, publicada pelo
Decreto-Lei n.º 47/2007, de 27 de Fevereiro,
foi no sentido precisamente contrário.
9 A constituição de um Conselho Vitivinícola
Interprofissional dentro da Estrutura Orgânica
da Casa do Douro foi a solução encontrada para
dar corpo aos princípios do interprofissionalismo
instituído pela Lei n.º 8/85, que criou as
Comissões Vitivinícolas Regionais. Enquanto
no IVP a solução encontrada foi dotá-lo de um
Conselho geral apenas com funções consultivas,
o CVI da CD tinha poderes deliberativos sobre
a DOC Douro, embora não tivesse poderes
executivos, os quais estavam cometidos à
própria CD. O mínimo que se poderá dizer desta
solução é que foi algo bizarra, na medida em
que o Estado dotou um organismo profissional
de um órgão interprofissional, presidido pelo
Estado, com poderes deliberativos sobre aquele
organismo profissional. Talvez por isso nunca
tenha criado grande interesse na região e,
desde a sua criação, em 1989, tenha sempre
estado envolto em polémicas e nunca tenha
praticamente funcionado e, muito menos,
produzido os efeitos esperados.
10 Até 1980, as parcelas classificadas na letra “F”
apenas tiveram benefício em 1973, 1977 e 1980.
11 Não faz muito sentido falar em escoamento
no Vinho do Porto, uma vez que o quantitativo
a beneficiar em cada ano é decidido, ano a ano,
em função da necessidade da reposição das
vendas do ano anterior, com base no total anual
móvel de comercialização a 30 de Junho, tendo
em conta as perspectivas de comercialização
futuras e os stocks existentes no comércio
e na produção.
12 Associação criada em 18 de Março
de 1992.
15 Este trabalho foi efectuado pela Andersen
Consulting, com o apoio do IVP.
16 Embora, na época, o IVV estivesse
a produzir o Ficheiro Vitivinícola, tendo,
inclusivamente, adquirido grande parte dos
dados descritivos das parcelas à Casa Douro,
o seu Presidente, Mesquita Montes, nunca
consentiu que, desde o início da construção
deste Ficheiro, houvesse uma integração da
informação necessária à Casa do Douro para
gerir as denominações de origem da região
e ao IVV para prosseguir as suas competências
relativas ao plantio da vinha. Tornou-se célebre
o slogan de Mesquita Montes, “Cadastro
é Cadastro, Ficheiro é Ficheiro”.
17 Muitos destes elementos encontravamse escritos pelo punho do próprio Moreira da
Fonseca, e de Abel Almeida que havia sido
Director dos Serviços Técnicos da Casa do Douro.
18 A sobreposição de competências é sentida
directamente pelos operadores económicos do
sector vitivinícola da RDD, os quais são sujeitos
a controlos por parte da CIRDD, da CD e do IVP,
aos quais se juntam o IVV e a Direcção Geral de
Alfândegas (DGA).
19 Esta Resolução foi objecto de um parecer
do Prof. Vital Moreira, datado de 3 de Janeiro de
2003, secundado pelos pareceres dos Professores
Marcelo Rebelo de Sousa e José Carlos Vieira
de Andrade. Todavia, estes pareceres versam,
fundamentalmente, sobre a natureza jurídica de
uma resolução do Conselho de Ministros. Em
tudo o mais, os pareceres em causa, em especial
o do Prof. Vital Moreira, limitam-se a proferir
opiniões pessoais sobre a Casa do Douro. Mas,
sublinhe-se, na data em que os pareceres foram
emitidos ainda não existia qualquer anteprojecto
de diploma de estatutos para a Casa do Douro.
Na verdade, no início de 2003, a Comissão de
Acompanhamento – criada ao abrigo da citada
Resolução – ainda estava em plena fase de
trabalhos preparatórios.
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a evolução da organização institucional da região do douro
203
204
205
selecção das castas
de videira
Uma história com raízes
nas Regiões do Douro
e dos Vinhos Verdes
Antero Martins
Antero Martins Natural de Vouzela, distrito de Viseu capital da Região Demarcada
do Dão. Engenheiro Agrónomo pelo Instituto Superior de Agronomia da Universidade
Técnica de Lisboa, doutorou-se em Melhoramento de Plantas pela mesma Universidade,
onde é Professor Catedrático. A sua carreira de docente- investigador incidiu muito
em particular sobre a videira e seu melhoramento, através da selecção clonal de castas
portuguesas. Durante mais de 30 anos desenvolveu novas metodologias de selecção
assentes em conceitos de genética quantitativa, cuja aplicação prática é inovatória a
nível mundial. Na qualidade de coordenador de um vasto grupo de técnicos de várias
Instituições públicas e privadas constituiu uma Rede Nacional para a selecção da Videira,
a qual veio a dar recentemente origem a uma Associação para a Selecção e Preservação
de Recursos Genéticos da Videira, que inclui Organismos do Estado e algumas das mais
importantes empresas vitivinícolas privadas do País.
206
Produção de enxertos-prontos em
vaso na Estação Vitivinicola Amândio
Galhano, Arcos de Valdevez
cimento da selecção das castas em Portugal não foi um processo evolutivo feito de sucessivos pequenos passos de pessoas e instituições que integram o sector vitivinícola
e passando por uma lenta maturação ao longo de muitos anos. De certo modo, à escala
histórica, foi mais um nascimento “abrupto”, resultante da conjugação de algumas circunstâncias independentes favoráveis e até de alguns acasos.
Porém, esse processo histórico invulgar teve as suas raízes próprias e veio a originar
um padrão de desenvolvimento com grande potencial, já concretizado em substanciais
resultados obtidos e em grandes perspectivas para o futuro imediato. Por isso, justificase um olhar sobre a curta história da selecção e da análise genética das castas e uma perspectiva sobre os importantes desenvolvimentos que o futuro próximo trará, alicerçados
nos ingredientes dessa história.
Ao olhar para o futuro, encontrar-nos-emos com a Associação Portuguesa para a
Diversidade da Videira, que herda aquela história e que irá dar-lhe continuidade e aprofundá-la, realizando de maneira inovadora a conservação e valorização de toda a diversidade das videiras autóctones.
A selecção tem as suas raízes mais recuadas nas regiões do Douro e do Vinho Verde, nas quais tem sido um importante factor de progresso das respectivas viticulturas
no último quartel de século XX. Nessa medida, revela um acentuado paralelismo com o
percurso e a acção de um homem – Francisco Girão – que também muito contribuiu para
o cruzamento das histórias e para o progresso de ambas essas regiões. Recorde-se o seu
contributo para a inovação na viticultura, quando, nos anos 50 e 60, na sua Quinta de
Vilacetinho, iniciou a plantação de vinhas extremes, num contexto ainda dominado pelas tradicionais vinhas de bordadura, adoptou novas formas de condução, nessa altura
ainda numa fase experimental incipiente, e procedeu à enxertia de castas recomendadas
pelos Serviços Oficiais e pela Comissão de Viticultura (CVRVV). Foi, pois, dos primeiros
a aderir à filosofia e à prática da valorização das castas regionais e até um precursor da
própria selecção, na medida em que impulsionou a utilização de materiais com identificação varietal que antecederam trabalhos mais aprofundados de selecção clonal e policlonal, que neste texto iremos abordar e desenvolver. Essas circunstâncias justificam
que este olhar sobre a história e o futuro da selecção e da valorização das castas surja
nesta obra de homenagem à pessoa e à acção de Francisco Girão.
A selecção das castas de videira tem sido realizada de forma empírica pelos viticultores
ANTECEDENTES
desde tempos imemoriais, porém, enquanto tecnologia de base científica, é de aplicação
relativamente recente.
A realização da selecção genética só se justifica relativamente a castas com variabilidade genética intravarietal, isto é, castas autóctones antigas, que só existem em países
da Europa e da Eurásia. De entre estes, a Alemanha foi pioneira, pois aí já se realizava a
selecção clonal pelo fim do século XIX. Na França começaram a surgir trabalhos do mesmo tipo na década de 40 do século XX (Alsácia), os quais tiveram depois grande desenvol-
207
selecção das castas de videira
Ao contrário do que habitualmente acontece com outras tecnologias agrícolas, o nas-
INTRODUÇÃO
208
vimento a partir dos anos 60, em resultado da criação de uma entidade coordenadora e
executora à escala do país inteiro (então designada Association Nationale Technique pour
L’Amélioration de la Viticulture – ANTAV). Em 1968 foi publicada a 1.ª directiva comunitária (CEE, 1968) sobre a certificação dos materiais de propagação, com reflexos directos na
promoção e na orientação metodológica da selecção no espaço comunitário e europeu.
Portugal não acompanhou estes primeiros desenvolvimentos da selecção, porém, algumas influências externas nesta área começaram a fazer-se sentir no país pelo fim da década de
70, com a aproximação da adesão à CEE. Também internamente começaram a surgir, por essa
altura, circunstâncias e reflexões favoráveis ao início de trabalhos de selecção das castas.
O Instituto Superior de Agronomia (ISA) tinha então uma já longa história de envolvimento em trabalhos de melhoramento da videira por via sexual, principalmente na criação
de variedades híbridas (vinifera x vinifera) resistentes ao míldio, por parte do Prof. Miguel
Pereira Coutinho, desde 1942 (Coutinho, 1950). Estes trabalhos foram aprofundados e diversificados, já com a minha participação, na direcção da resistência ao oídio, a partir de
1971 e durante os anos subsequentes (Martins, 1984). Porém, já desde 1976 nos defrontávamos com a reflexão de que, se a criação de variabilidade nova (variedades resistentes) era
um objectivo importante de médio e longo prazos – mas exigindo tempo, estruturas e financiamentos de vulto –, o objectivo de explorar a variabilidade intravarietal das próprias
castas, já criada pela Natureza ao longo de milénios, seria um objectivo mais exequível na
prática e de maior prioridade.
Nestas reflexões foram então envolvidas várias personalidades com notoriedade no
sector vitivinícola nacional, nomeadamente, os Eng.os Amândio Galhano e Artur Pinho,
da Região dos Vinhos Verdes; Gastão Taborda, da Região do Douro; Alberto Vilhena, do
Dão; Raul dos Santos; Manuel Raposo Palma e outros.
Os pensamentos dos Eng.os Amândio Galhano e Artur Pinho, favoráveis à selecção imediata das castas autóctones do País, foram particularmente determinantes, pela
autoridade que lhes advinha de o primeiro ter sido o principal artífice dos modernos
vinhos verdes brancos, ancorados nas castas autóctones da região, e de o segundo estar
ligado ao trabalho pioneiro de selecção massal das mesmas castas, a partir do fim dos
anos 50. Igualmente é de salientar o de Gastão Taborda, profundo conhecedor e estudioso das vinhas durienses, que muito contribuiu para a definição de prioridades de selecção das mais importantes castas regionais.
Em resultado destas reflexões alargadas, foi decidido pelo ISA (Departamento de
Botânica) assegurar a transferência das mais modernas técnicas de selecção a partir de
França, através de um estágio de 2,5 meses em diversos organismos de investigação daquele país (Station de Recherches Viticoles et Oenologiques de Colmar, Station de Recherches de Viticulture de Bordeaux, École Nationale Supérieure Agronomique de Montpellier, Assotiation Nationale Technique pour L’Amélioration de la Viticulture, Le Grau
du Roi/Montpellier, e outros), o qual veio a concretizar-se no Outono de 1977.
O tempo seguinte foi de preparação do arranque dos primeiros trabalhos de campo
no país, que exigiu opções quanto às primeiras castas regionais a seleccionar e quanto a
pessoas e instituições colaborantes.
grave processo de regressão da sua cultura, decorrente de um muito reduzido potencial
de rendimento (em muitos casos, da ordem de poucas centenas de gramas por planta).
Para essa notoriedade contribuía também a própria história recente da viticultura duriense, dantes largamente baseada na Touriga Nacional, a associação da casta à imagem
de um vinho mundialmente conhecido e apreciado (Porto) e ainda o destaque que lhe
era conferido pelo inovador sistema de atribuição do “benefício” do Vinho do Porto, de
Moreira da Fonseca (Fonseca, 1951). Isto é, a opção pela Touriga foi ditada pela necessidade pragmática e especial urgência da respectiva selecção (para aumentar o potencial
de rendimento e torná-la de novo cultivável), bem como por determinantes históricas
associadas ao passado recente da viticultura e dos vinhos do Douro e do Dão.
O início da selecção tinha que passar pela constituição de uma equipa de gente com
saberes e sensibilidades apropriadas e com facilidade de adaptação e disponibilidade
para enfrentar os riscos de uma actividade inteiramente nova no país. Aí, os acasos da
proximidade do Nuno Magalhães (do então Instituto Politécnico de Vila Real, IPVR), do
Luís Carneiro (ex-Estação Vitivinícola Nacional) e de mim próprio (Instituto Superior de
Agronomia), como estudantes contemporâneos do ISA, e a transição então recente do
Nuno Magalhães, da antiga Estação Agrária do Porto, onde tinha trabalhado com Artur
Pinho na selecção varietal de castas dos Vinhos Verdes, para o então IPVR, ajudaram
muito, e foi assim que este grupo pôde dar início aos primeiros trabalhos de selecção da
Touriga Nacional no Douro, em 1978.
Como curiosidade histórica, pode registar-se que a primeira prospecção de campo
aconteceu numa vinha a poucos quilómetros a Norte da Régua (vinha 01), Casa do Gigante, do Sr. António Alves, na qual foi marcada a primeira planta mãe, T0101, também já anteriormente referenciada pelo classificador da Casa do Douro, Sr. António Canário, e usada para enxertia, por parte de alguns viticultores, com o nome de “Touriga do Canário”.
Em simultâneo com o planeamento deste trabalho, outro da mesma índole começou a ser preparado no Alentejo, que veio a ter início em 1979, juntamente com outros
nas regiões do Vinho Verde, Dão e Ribatejo/Oeste.
Esta expansão rápida foi então muito facilitada pela percepção, por parte da generalidade das pessoas, da ideia da utilidade e da necessidade da selecção e também pela
circunstância casual de, ao tempo, existir uma substancial força de trabalho técnico na
generalidade dos organismos agrícolas regionais.
Uma história curiosa bem elucidativa da receptividade então observada, de Norte a
Sul do país, para o envolvimento na selecção, aconteceu na Federação dos Vinicultores
do Dão (FVD), frente ao Eng. Augusto Ferreira de Almeida que, depois de lhe pedirmos o
favor da colaboração da FVD na selecção, respondeu que não iriam fazer-nos esse favor,
mas aceitavam reconhecidamente o nosso favor de os ajudarmos a fazer o que de há
muito já deveria ter sido feito na região!
Foi esse espírito, então generalizado no país, que permitiu a constituição rápida de
uma rede informal de colaborações (geralmente conhecida por Rede Nacional de Selec-
209
selecção das castas de videira
Relativamente a castas, a Touriga Nacional era, já então, um caso de grande notoriedade, quer pela sua reconhecida qualidade, tanto no Douro como no Dão, quer pelo
210
Equipa de técnicos nos trabalhos
de selecção clonal: Encontro
dos 20 anos na Quinta de Ataíde
Arquivo pessoal AM
ção da Videira, RNSV), cobrindo todas as regiões vitivinícolas, constituída por Universidades, Laboratórios do Estado, Direcções Regionais de Agricultura, Empresas Vitivinícolas e Associações de Viticultores.
Para o sucesso da RNSV e para o crescimento invulgarmente rápido do trabalho,
de Norte a Sul do País, muito contribuiu também a competência e o excepcional empenhamento das largas dezenas de pessoas integrantes da mesma. Competência e empenhamento traduzidos em muitos anos de duro trabalho de campo (não raramente com
temperaturas acima dos 40º, ou abaixo de zero), sem excluir frequentes fins-de-semana
e colaborações de filhos, cônjuges, outros familiares e amigos!
Mas os efeitos positivos da criação da RNSV não se limitaram à selecção. Se até aí os
grupos regionais estavam isolados e se desconheciam mutuamente, passaram depois a
comunicar regularmente (principalmente através das “Reuniões de Selecção”, habitualmente semestrais), o que teve reflexos importantes na construção de colaborações diversificadas noutras áreas da viticultura. Isso foi particularmente notório relativamente
à ampelografia, área então insuficientemente desenvolvida, mas essencial para a realização criteriosa da selecção. Ora, a RNSV foi também um instrumento essencial para a realização dos primeiros projectos de ampelografia financiados pelos fundos de pré-adesão
à CEE, fortemente dinamizados pelo Eng. João Carlos de Castro Reis (Instituto de Gestão
e Estruturação Fundiária – IGEF), que proporcionaram enormes ganhos de conhecimento sobre o rico parque de castas autóctones portuguesas.
ziu à adopção, nos primeiros anos, da metodologia de selecção francesa, também seguida noutros vários países europeus sob diversas variantes. Em traços gerais, trata-se de
uma metodologia composta por 4 fases: 1.ª fase de selecção fenotípica individual nas
vinhas; 2.ª fase de selecção sanitária (diagnóstico de vírus); 3.ª fase de estudo prévio de
clones em colecção de campo; 4.ª fase de estudo da adaptação regional dos clones através de ensaios multirregionais.
A aplicação desta metodologia significou, ao princípio, a marcação de algumas
dezenas de vinhas de determinada casta (21 no caso da Touriga, no Douro), seguida da
marcação de dezenas de plantas em cada vinha, depois observadas e sujeitas a notações
quantitativas de características culturais e sanitárias, ao longo de 3-4 anos.
A prática concreta da metodologia no contexto português cedo começou a suscitarnos algumas interrogações, principalmente as resultantes da grande heterogeneidade
ambiental vigente nas vinhas antigas, que muito dificultava a percepção do valor genético comparado das plantas observadas.
Bem elucidativo desta situação de heterogeneidade extrema era o caso de vinhas no
Douro dispostas em parcelas a cotas e com exposições muito diferentes, com videiras
enxertadas em distintos porta-enxertos, umas com mais de 100 anos e outras recémplantadas ou reenxertadas, etc… Estas interrogações foram recorrentemente submetidas a Mr. Jean Balthazard e ao Prof. D. Boubals (autoridades em matéria de selecção e
orientadores de estágios que tínhamos realizado em França), incluindo no decurso de
visitas de aconselhamento que nos fizeram em 1979 e anos seguintes, mas sem que tenhamos obtido respostas concludentes.
Assim, começou a ganhar corpo a ideia de que melhor seria encurtar a fase clássica
da selecção individual nas vinhas (com poupança de tempo e dinheiro) e antecipar a fase
da colecção experimental de clones, na qual se poderia controlar os desvios ambientais
e avaliar mais objectivamente os valores genotípicos dos clones.
A oportunidade de plantar a 1.ª colecção de clones da casta Castelão surgiu em 1981,
facultada pelo viticultor Eng. António Clímaco na sua propriedade de Pernes/Santarém
e, logo em 1982, a de plantar a 1.ª colecção de Touriga em Assares/Vale da Vilariça, da
empresa Cockburn & Smith.
A plantação destas colecções teve repercussões profundas no desenvolvimento
subsequente da selecção: por um lado, representou o primeiro envolvimento directo de
empresários privados na experimentação de campo, solução que veio depois a repetir-se
para numerosas outras castas e sem a qual essa experimentação (se realizada em propriedades do Estado) teria sido praticamente impossível; por outro lado, a antecipação
dessas plantações em relação à cronologia da metodologia clássica representou já o início de uma inflexão, no sentido da valorização da experimentação de clones em detrimento da selecção individual fenotípica nas vinhas.
Pode dizer-se que foram estas 2 inovações, que começaram a despontar no início dos
anos 80, que estiveram na base do grosso das realizações da selecção até aos dias de hoje.
211
selecção das castas de videira
Como já anteriormente referido, a inexistência de tradições de selecção no País condu-
OS PRIMEIROS PASSOS:
TEMPO DE ADAPTAÇÃO
DA METODOLOGIA
CLÁSSICA FRANCESA.
Os primeiros dados de rendimento da população de clones de Castelão começaram a
212
A INFLEXÃO
METODOLÓGICA DE 1984:
ADVENTO DA GENÉTICA
QUANTITATIVA E DA
COMPUTAÇÃO
surgir em 1982, tendo sido desde logo submetidos a análises de genética quantitativa,
para estimativa da heritabilidade em sentido lato1 e do ganho genético2.
A introdução de bases da genética quantitativa veio mudar tudo em matéria de metodologia de selecção e da respectiva eficácia, por isso, esse processo merece uma rápida explicação.
As características quantitativas são aquelas que, numa população geneticamente
heterogénea, assumem muito numerosos valores distintos distribuídos ao longo de
uma gama contínua, entre o valor mínimo e o valor máximo, com maior frequência dos
valores intermédios (distribuição normal, em oposição à distribuição discreta típica das
características qualitativas).
Além da circunstância de serem muito próximos, os valores genéticos dessas características são, em geral, fortemente modificados por desvios ambientais aleatórios
(mais do que no caso das qualitativas), do que resultam trocas entre as ordenações dos
clones pelo critério fenotípico (dos valores observados) e pelo critério genético (da transmissibilidade à descendência). Nestas condições, a selecção torna-se relativamente errónea porque elege sempre plantas com valores observados superiores, mas que podem
ser geneticamente inferiores, e descarta plantas com valores observados inferiores, mas
que podem ser geneticamente superiores.
Rendimento (kg/planta)
CLONE
Rendimentos planta-a-planta de clones
de Castelão na população de Pernes/1984.
Em cada linha, rendimentos de 14
plantas do mesmo clone, de igual valor
genético mas com valores observados
claramente diferentes, devido a muito
elevados desvios ambientais
1
2
3
4
5
6
7
8
9
10
11
12
13
14
0113
2,26
3,67
0,21
1,3
1,56
2,16
2,12
1,86
2,22
1,41
1,04
1,39
0
2,95
0132
2,5
0,6
0,25
2,64
0,85
2,34
0,93
1,6
3,05
0
1,39
5,87
2,74
2,25
0139
3,68
2,46
2,59
2,86
2,92
1,5
1,21
1,12
0
1,5
3,21
2,68
1,65
2,09
0203
1,25
1,62
2,05
2,36
2,1
2,99
1,09
3,49
3,61
3,78
2,38
2,95
2,71
2,09
0215
1,75
1,35
2,45
2,65
1,9
1,18
0,15
1,03
0,83
1,23
1,17
1
0,23
0,37
0216
2,45
4,59
3,29
1,8
1,8
2,25
1,99
2,66
2,9
0,79
1,04
1,75
3,08
1,69
0315
1,64
3,16
4,82
2,9
1,71
2,07
3,33
2,05
1,54
1,58
1,79
0,35
1,95
1,49
0318
1,12
1,07
1,24
0,9
2,35
0,83
1,38
0,64
0,14
1,35
0,56
0
0,36
0319
1,02
2,58
1,68
1,95
1,35
2,57
1,47
0,27
0,95
0,65
0,28
0,74
0,88
0,8
0431
0,65
1,8
1,5
2
2,35
0,7
0,25
0,46
0,71
0,74
1,77
1,52
1,27
0,64
0432
2,91
3,24
3,44
2,25
1,95
2,03
2,62
2,18
2,95
2,34
2,69
1,79
3,25
0436
0,76
0
2,24
1,7
2,83
2,24
0,47
0,34
0,56
2,47
0,41
0,85
1,82
0622
0,65
1,2
1,04
1,95
2,36
2,34
1,2
1,68
0,88
1,84
0,96
0,45
3,47
2,83
0627
2,35
0,52
1,69
5,04
5,37
2,1
4,45
4,8
1,98
2,11
0,84
0,26
0,65
1,98
0815
5,5
2,7
5,54
2,67
4,42
3,81
1,14
0,88
0,97
0,51
0,8
0,37
0,9
0819
3,3
3,23
2,24
2,62
2,24
1,86
1,44
1,06
0,85
0,85
1,34
1,18
1,89
1,39
selecção das castas de videira
213
População experimental
de clones de Touriga Nacional.
Quinta da Lêda, Almendra
Isto constitui uma perturbação muito penalizadora para a selecção, pois praticamente todas as características da videira (e dos seres vivos) são características quantitativas,
das quais só se podem conhecer os valores observados, distintos dos que devem presidir
à selecção. Esta não é, contudo, uma circunstância fatal para a selecção, pois a teoria da
genética quantitativa fornece-nos instrumentos de análise poderosos para a contornar.
Ora, um acaso feliz do processo histórico da selecção em Portugal foi o facto de a coordenação metodológica do trabalho ter estado, desde o início, principalmente a cargo de
gente oriunda da área da genética e do melhoramento de plantas, em princípio, mais bem
preparada para a aplicação desses métodos de genética quantitativa e ainda livre de influências limitadoras dos processos de selecção empíricos do passado.
Foi assim que o surgimento dos primeiros dados de rendimento planta-a-planta
da população de Castelão/Pernes, em 1984, reveladores de muito elevada variação ambiental ao nível da planta isolada e da ineficácia da selecção individual fenotípica (ver
quadro), nem por isso nos confundiu excessivamente; pelo contrário, veio confirmar o
já previsto pela teoria. De facto, o que esses números significam é que diferentes plantas
com o mesmo valor genotípico (as plantas de um clone, numa linha) podem mostrar
muito diferentes valores fenotípicos, ou seja, nenhum desses valores individuais traduz
o verdadeiro valor genotípico procurado. Ora, se isto acontece num ensaio de campo, por
214
215
216
Campo de comparação clonal
da casta Viosinho. UTAD, Vila Real
maioria de razões acontecerá com as plantas cultivadas nas vinhas normais, aquelas que
até aí eram alvo da 1.ª fase da selecção fenotípica individual clássica.
A consequência lógica e necessária destas observações (também suportadas por outras
análises matemáticas mais objectivas) foi o abandono da metodologia clássica de selecção
iniciada em 1978. Isto não foi uma fatalidade, mas antes uma oportunidade para introduzir
a metodologia certa de selecção, que recorre aos instrumentos da genética quantitativa para
seleccionar as características quantitativas (por oposição à metodologia clássica, que pretende seleccionar as características quantitativas com os métodos próprios das qualitativas).
Na prática, esta inflexão significou a eliminação da clássica fase inicial de selecção
fenotípica individual nas vinhas, substituindo-a por uma simples amostragem de genótipos nessas mesmas vinhas (1.ª fase), para serem imediatamente plantados numa
grande população experimental de clones (2.ª fase).
As consequências destas mudanças foram imensas, tanto em poupança de meios como
na aceleração do processo de selecção. Mas, principalmente, a introdução duma verdadeira
amostragem da variabilidade intravarietal abriu possibilidades inteiramente novas:
– de se alcançarem maiores ganhos de selecção de características culturais e qualitativas
(porque se dispõe de mais variabilidade, para ser analisada com melhores métodos);
– de se poder generalizar a toda a casta o conhecimento obtido na população (porque ela
Página anterior Campos de comparação
clonal de Aragonez, Tinto Cão, Moscatel
de Bago miúdo. Quinta do Seixo, Tabuaço
é uma amostra representativa da própria casta);
– de se poder simultaneamente guardar a variabilidade para o futuro (porque ela está
contida na população experimental).
sua aplicação prática a plantas de propagação vegetativa era então ainda escassa.
De entre esses desafios, podemos destacar a definição do que é uma amostra representativa da variabilidade da casta, como organizar os genótipos na população (delineamento
experimental), que percentagem de genótipos superiores seleccionar, e tantos outros.
Mas, também para enfrentar estes desafios, outro acaso da história veio em nosso auxílio: o despertar da era dos computadores pessoais e dos computadores departamentais da
Universidade, pelos anos 1980-85.
Foi com estes computadores que pudemos começar a “plantar no gabinete” populações virtuais dos mais diversos tipos (Martins, 1990), a avaliar os resultados por elas
proporcionados, para depois avançarmos com outra segurança para a plantação de eficientes populações reais no campo.
Os históricos computadores Sinclair ZX80 e Spectrum (pessoais) e o VAX/VMS (departamental), bem como a linguagem VMS/Basic foram actores desta revolução, trabalhando
frequentemente em processamento contínuo, ao longo de dias e de fins-de-semana inteiros, na construção de ensaios virtuais e na respectiva análise de dados.
O surgimento da capacidade de computação, nesta fase, foi de tal maneira crucial
que, sem ele, simplesmente não teria havido selecção e análise genética das castas, tal
como a fazemos hoje!
Como consequência de todos estes desenvolvimentos, a 2.ª metade da década de 80
foi particularmente fértil no lançamento da selecção das mais importantes castas autóctones. Em 1989 já existiam no país 33 populações de 28 castas, com um total aproximado
de 6.000 clones. Por meados da década de 90, estas populações autorizavam já selecções
com elevados ganhos e proporcionavam conhecimentos inteiramente novos altamente
relevantes sobre as castas portuguesas.
Ainda que, ao tempo do início da selecção, o objectivo do trabalho se limitasse à obten-
PRINCIPAIS RESULTADOS
E SUA REPERCUSSÃO
NO PROGRESSO
DA VITIVINICULTURA
ção de materiais de propagação de valor genético superior (sobretudo quanto a rendimento), as potencialidades dos métodos desenvolvidos vieram a autorizar a realização
de diversos outros relevantes objectivos. Objectivos, nuns casos, já realizados; noutros
casos, ainda alvo de trabalho experimental em curso.
A metodologia portuguesa, tal como foi atrás apresentada, permite a obtenção de 2
Selecção massal genotípica
e selecção clonal
tipos de materiais seleccionados: um primeiro material de selecção massal genotípica
seleccionado na grande população experimental de clones e, depois, materiais clonais
seleccionados em pequenos ensaios multirregionais.
Materiais do 1.º tipo de 53 castas foram já obtidos, proporcionando ganhos de rendimento altamente relevantes, como exemplificado no Quadro 2.
217
selecção das castas de videira
Porém, esta mudança não deixou de pôr também alguns desafios novos porque, se a
teoria da genética quantitativa estava então já bem sedimentada, a bibliografia relativa à
218
Ganhos genéticos de rendimento previstos,
resultantes da selecção massal genotípica
de 38 variedades portuguesas:
Casta
Ganhos genéticos
previstos
Casta
Ganhos genéticos
previstos
Alfrocheiro
16,7%
Loureiro
38,7%
Alvarelhão
12,7%
Malvasia Fina
32,2%
Alvarinho
21,5%
Moscatel Graúdo
17,3%
Antão Vaz
31,9%
Moscatel Galego
32,1%
Aragonez
20,3%
Negra Mole
46,0%
Arinto
15,6%
Rabigato
30,3%
Avesso
9,4%
Rabo de Ovelha
25,0%
Azal Branco
20,2%
Rufete
42,1%
Baga
17,6%
Tinta Barroca
11,6%
Bical
19,3%
Tinta Francisca
31,9%
Ratinho
14,0%
Tinta Miúda
30,9%
Borraçal
16,9%
Tinto Cão
11,6%
Camarate
17,6%
Touriga Franca
1,6%
Castelão
14,0%
Touriga Nacional
34,4%
Síria
29,0%
Trajadura
43,1%
Sercial
91,4%
Trincadeira
13,8%
Fernão Pires
17,6%
Vinhão
17,8%
Jaen
5,9%
Viosinho
30,9%
Jampal
26,7%
Vital
33,7%
Depois de multiplicados em cerca de 500 ha de vinhas privadas através de todo o terrirório, esses materiais têm sido distribuídos directamente aos viticultores e aos viveiristas, para
assegurar a plantação da maioria das actuais vinhas modernas em todo o país.
Entrando em linha de conta só com os ganhos de rendimento proporcionados por
esses materiais (ver quadro) e com as quantidades de garfos distribuídos de há 20 anos
para cá, é fácil estimar que os resultados da selecção, à escala macroeconómica, são já
superiores a 20 milhões de euros/ano. Mas, para além dos ganhos directos de rendimento, outros resultados indirectos têm sido obtidos. Um bom exemplo é o caso da Touriga
Nacional, cujo ganho de rendimento conseguido tem não só um elevado valor económico directo, mas, sobretudo, o interesse de ter tornado possível a cultura de uma das
mais nobres castas do país e actualmente já de renome internacional, num momento
(meados da década de 80) em que ela corria o risco de se extinguir, devido ao seu insuficiente potencial de rendimento.
Além dos referidos materiais policlonais, foram já igualmente obtidos 150 clones
de 24 castas, uns já homologados e em curso de multiplicação e distribuição, outros
prontos para serem submetidos a homologação.
de clones contribui para o agravamento da erosão genética das castas e expõe os viticultores a oscilações imprevisíveis de comportamento (interacção genótipo × ambiente). Em
consequência destas circunstâncias, a nossa estratégia actual relativa aos clones passa
pela selecção de um mínimo de 7 por casta (para dar azo a que os viticultores cultivem
sempre misturas de clones) e pelo rigoroso estudo da sensibilidade à interacção de cada
clone, para viabilizar a selecção dos menos sensíveis.
A razão de ser última da selecção decorre da existência de variabilidade genética dentro
Quantificação da variabilidade
genética intravarietal
da casta, criada naturalmente ao longo de séculos e milénios de multiplicação vegetativa. Isto é, a variabilidade genética intravarietal é a “matéria prima” da selecção, pelo que
esta só poderá ser feita com sucesso se existir um conhecimento prévio robusto da sua
amplitude e da sua distribuição geográfica.
Por outro lado, é geralmente reconhecido que vivemos num tempo de intensa erosão
genética da variabilidade das castas, o que exige acções poderosas de conservação, mas
que só podem ser racionalmente conduzidas se soubermos quanta variabilidade existe
para conservar, onde existe e como prospectá-la e conservá-la.
Seria então inteiramente lógico que estes temas tivessem já sido objectivamente
abordados pelos seleccionadores no passado, mas tal não tem acontecido. Foi assim
que os métodos de análise de genética quantitativa que introduzimos a partir de 1984
para efeito de selecção vieram a preencher essa lacuna, facultando-nos um conhecimento objectivo novo da variabilidade intravarietal e conferindo maior eficácia a todos os
trabalhos dirigidos à sua utilização: selecção, conservação, “datação” das castas e outros.
Na base destas possibilidades está o facto de a grande população experimental de
clones (2.ª fase da selecção) ser uma amostra representativa da casta e das suas diversas
partes cultivadas em diferentes regiões. Por isso, todas as conclusões extraídas da população são generalizáveis à casta inteira, ou às suas diversas regiões de cultura. A ajuda da
genética quantitativa vem a seguir, ao permitir reduzir a variação ambiental vigente na
população e, depois, separar a parte da variação ambiental remanescente da própria variação genética. Finalmente, a genética quantitativa e a estatística facultam-nos quantificadores sintéticos da variabilidade genética (de uma ou outra característica da videira),
como a heritabilidade em sentido lato e o coeficiente de variação genotípico3, que nos
permitem comparar as castas e as diferentes regiões de uma mesma casta (Martins, 2007;
Martins et al., 2006; Martins et al. 2009).
Como ilustração do potencial destas análises inovadoras, apresentam-se no quadro
seguinte os coeficientes de variação genotípico do rendimento de 5 castas e de algumas das
suas populações regionais, seguidos de algumas interpretações por eles autorizadas.
219
selecção das castas de videira
Porém, a opção incontida pela selecção de clones, embora largamente dominante na
generalidade dos países vitícolas, não é para nós igualmente pacífica. Com efeito, a cultura
220
Casta
Região de cultura
CVG (%) rendimento
Touriga Franca
Douro
13,8
Arinto
V. Verdes
21,6
Lafões
20,4
Bairrada
30,4
Oeste
32,9
Douro
13,3
Alentejo
11,1
Valdepeñas
22,3
Rioja
13,4
Bairrada
11,1
Dão
28,2
Algarve
38,9
Aragonez
Touriga Nacional. Um excelente exemplo
de variabilidade genética, o que permitiu
seleccionar os clones mais produtivos.
Clone seleccionado (em cima)
e clone rejeitado (página seguinte)
Baga
Negra Mole
selecção das castas de videira
221
Touriga Franca. Apresenta um dos CVG mais baixos de entre mais de 60 castas analisadas, tinha até há pouco uma área de distribuição confinada ao Douro e mostra claras
semelhanças ampelográficas com a Touriga Nacional. Todos esses indicadores sugeriam
que poderia ter tido origem recente no Douro, provavelmente por cruzamento natural
entre a Touriga e outra casta regional, hipótese que é actualmente também suportada
por resultados da análise de microssatélites.
Arinto. É uma casta cultivada através de todo o país, apresentando um nível de variabilidade intravarietal relativamente elevado, o que aponta para uma idade evolutiva
também dilatada. Comparando as 4 subpopulações de cultura (Quadro 3), parece provável que a casta se tenha estabelecido primeiro no Oeste/Bucelas, viajando depois para a
Bairrada e, mais tarde, para as regiões dos Vinhos Verdes e de Lafões. O facto de a casta
ser frequentemente designada por Arinto de Bucelas sugere também que no passado ela
terá sido cultivada predominantemente naquela região, isto é, os sinais históricos e as
leituras decorrentes da análise da variabilidade, neste caso, reforçam-se mutuamente.
Aragonez. De entre as 4 regiões analisadas, verifica-se que Valdepeñas é a que contém claramente mais variabilidade, o que suporta a hipótese de a casta ser originária daquela região.
Neste caso, tal hipótese contraria o pensamento corrente de que a origem seria a Rioja.
Baga. Este caso é surpreendente, face ao conhecimento popular muito difundido sobre
222
a muito provável origem da casta na Bairrada e posterior migração para o Dão. Os valores do CVG não suportam esta hipótese, apontando antes para o seu estabelecimento
recuado no Dão e mais recente na Bairrada. É certo que a elevada expansão da casta no
Dão nos 3 primeiros quartéis do século XX e a sua expansão mais contida na Bairrada,
no mesmo período, poderão explicar, em parte, aquela discrepância, mas não ao ponto
de se poder considerar o Dão como uma região importadora da Baga a partir da Bairrada.
Pelo contrário, a casta sempre terá sido cultivada no Dão, tendo tido um surto de expansão muito forte em tempo recente, mas a partir da material local.
Negra Mole. A sua variabilidade intravarietal é das mais elevadas até aqui encontradas.
A casta é quase exclusiva do Algarve, pelo que deverá ter sido ali cultivada desde um
passado muito distante, ou com uma muito grande intensidade. Uma e outra dessas
hipóteses não encaixam bem com a proibição do vinho no período de ocupação árabe,
que supostamente deveria ter causado uma forte regressão da casta, pelo que esta contradição poderá ser o ponto de partida para outros tipos de investigação histórica.
Poderá pôr-se agora a questão de saber qual a utilidade deste conhecimento para
o progresso da vitivinicultura. Na medida em que a variabilidade genética intravarietal
é a matéria prima da selecção, e vistos mais atrás os resultados que esta proporciona,
tornar-se-á óbvio o interesse da quantificação da variabilidade e do esclarecimento da
sua distribuição pelas diversas regiões de cultura da casta. Com efeito, é esse conhecimento que permitirá a correcta planificação da selecção, a decisão certa sobre as regiões
onde procurar a variabilidade e a antecipação dos resultados passíveis de ser obtidos.
O interesse da “datação” das castas baseada na variabilidade é de outra ordem, situa-se mais no campo da envolvente cultural do vinho. Mas o vinho é um produto cujo
valor decorre, em grande medida, dessa vertente cultural (história, conhecimento, tradições, civilização), pelo que o conhecimento da história das castas não deixará de concorrer acentuadamente para a formação desse valor.
A erosão genética das plantas cultivaFdas (e silvestres) é um fenómeno estreitamente asso-
Conservação
da variabilidade
ciado ao progresso tecnológico na generalidade das sociedades mais desenvolvidas.
Relativamente à videira em Portugal, foi notória a drástica aceleração da erosão genética das castas a partir de meados dos anos 80 do século passado, em consequência
de um grande aumento do ritmo de reestruturação e arranque de vinha e do início da
distribuição de materiais de enxertia seleccionados, entre outros factores.
Mas também a este problema pôde ser dada uma resposta, ainda que parcial, com
base nos métodos introduzidos para efeito da selecção. De facto, desde que a selecção
começa com uma amostragem da variabilidade, para ser imediatamente plantada numa
grande população experimental, terminado o período de colheita de dados essa população pode ser mantida como reserva de variabilidade.
Isso é o que tem vindo a ser feito desde há cerca de 25 anos, existindo actualmente,
de Norte a Sul do País, 80 populações de mais de 60 castas com um total aproximado de
15.000 clones conservados.
riais, mas antes colecções vivas passíveis de utilizações diversas: selecções na direcção
de características inovadoras, prospecções de variabilidade complementares para melhor representatividade estatística, etc…
Como se poderá depreender de tudo quanto se diz mais atrás, em matéria de selecção e
NOVOS APROFUNDAMENTOS
METODOLÓGICOS, NOVA
PRIORIDADE À CONSERVAÇÃO
E AVALIAÇÃO DA
VARIABILIDADE GENÉTICA
análise genética (quantitativa) das castas, Portugal diferencia-se claramente de outros
importantes países vitivinícolas no respeitante ao seguinte:
- dispõe de um parque de castas autóctones muito numeroso em termos absolutos
(≈250, número da mesma ordem dos de Espanha, França e Itália) e mais importante, ainda, em termos de densidade;
- construiu, a partir de meados dos anos 80, metodologias baseadas na genética
quantitativa, capazes de reconhecer a elevada variabilidade intravarietal dessas castas e
de a explorar com uma eficiência sem igual, à escala do mundo vitivinícola;
- encontra-se desde há 25 anos sob enorme pressão de erosão genética; contudo,
ainda não completamente consumada, mantendo-se as hipóteses de se poder encontrar
amostras representativas da variabilidade da maioria das castas.
Na viragem do século, tinha-se já consciência da vantagem conferida por essas diferenças, isto é, pela existência, no País, de uma riqueza biológica ímpar de castas autóctones e de diversidade intravarietal e, simultaneamente, da presença do fenómeno
novo da erosão genética que ameaçava destruir em poucos anos a variabilidade criada e
mantida naturalmente ao longo de milénios.
A percepção desta realidade foi muito facilitada pelos resultados da selecção (sobretudo os relativos à quantificação da variabilidade intravarietal) e pelas perspectivas sobre
a variabilidade autorizadas pela genética quantitativa, a partir de 1984.
Mas esses resultados e a perspectiva da genética quantitativa permitiram-nos compreender também que uma abordagem até então enriquecedora, direccionada principalmente para a selecção, tenderia para o esgotamento se não fosse ajustada às novas
realidades de um mundo em rápida mudança.
Isto é, a selecção vinha proporcionando resultados altamente relevantes com base
na elevada variabilidade disponível nas vinhas de produção antigas e nos métodos robustos para a sua exploração, mas isso deixaria de acontecer quando a variabilidade se
reduzisse (devido a erosão genética) e os métodos se revelassem insuficientes para a detectar, quando em níveis mais moderados e em condições experimentais mais difíceis.
E não era só a selecção que assim sairia prejudicada, mas também o cumprimento
do desígnio nacional de preservar, utilizar e entregar aos vindouros importantes recursos genéticos herdados de um passado de milénios de evolução.
Em consequência destas reflexões, surgiram, pelo fim do século passado, relevantes inflexões estratégicas e metodológicas, principalmente nas seguintes direcções:
– reforço da prioridade à prospecção, conservação e avaliação da variabilidade intravarietal das castas em grandes populações experimentais de clones;
223
selecção das castas de videira
Em quase todos os casos, esses materiais biológicos estão já valorizados pelo conhecimento relativo à variabilidade, não sendo simples “depósitos” estáticos de mate-
224
– aprofundamento dos métodos genéticos e estatísticos para controlo da variação ambiental
em ensaios de muito grande dimensão e para mais rigorosa avaliação da variabilidade em
condições limite (de baixa variabilidade e de elevado efectivo da população de conservação);
– desenvolvimento de novas metodologias para melhor compreensão da interacção
genótipo × ambiente dos clones seleccionados, com vista à minimização dos riscos da
cultura monoclonal, cada vez mais dominante no mundo de hoje.
A concretização da primeira atitude consistiu na manutenção das grandes populações experimentais de clones (1.ª fase da selecção), inicialmente destinadas à selecção, para além do termo do respectivo trabalho experimental, para funcionarem a partir
daí como reservas de variabilidade. Gradualmente, essas populações passaram a conter
efectivos mais dilatados de clones (dentro ou nas bordaduras dos ensaios), outras vezes
novas populações foram plantadas para complementar os efectivos de outras mais antigas (exemplos típicos são os casos do Castelão, Arinto e Alvarinho, com efectivos totais
conservados que chegam a ultrapassar 500 clones).
Esta tendência de crescimento do efectivo das populações de conservação, bem como
a necessidade de cada vez mais ter que se trabalhar com castas de menor expansão e mais
homogéneas, exigiram o recurso a conhecimento mais avançado nas áreas do delineamento experimental e de análise de dados; depois, à criação de conhecimento novo nessas áreas
adaptado a plantas arbustivas de propagação vegetativa, como a videira. Isso foi conseguido por formação adequada de vários elementos da RNSV, com destaque para a formação
avançada (ao nível de doutoramento) em estatística aplicada e modelos mistos para análise
de dados de ensaios de muito grande dimensão (Gonçalves et al., 2007; Martins, 2008).
A interacção genótipo × ambiente refere-se à instabilidade de comportamento de
um genótipo isolado (clone), quando se muda de um para outro ambiente (lugar, ano).
A gravidade do fenómeno é tal que a cultura de um clone se torna absolutamente contraindicada enquanto o seu padrão de interacção não for conhecido, e geralmente não o é,
devido à fragilidade das metodologias de análise disponíveis. A nossa estratégia consiste em suprir esta lacuna de conhecimento (através de novos métodos baseados nos
modelos mistos) e tornar a cultura de clones isenta dos riscos actuais.
Em síntese, o que durante anos foi um trabalho principalmente focado no objectivo
pragmático da selecção, suportado por métodos de genética quantitativa clássicos, passou a ser gradualmente orientado para um objectivo mais teórico situado a montante,
isto é, a conservação e avaliação da variabilidade intravarietal, através dos métodos estatísticos e genéticos mais poderosos.
Como consequência desta evolução, chegou-se à actualidade com a variabilidade de
mais de 60 castas conservada (mais de 15.000 clones guardados) e avaliada, globalmente
e por distintas regiões de cultura de cada casta.
É este material biológico e o conhecimento a ele referente (representado por dezenas de milhares de ficheiros de dados e processos de análise) que permitem hoje fazer a
selecção com uma eficácia redobrada na direcção de diversas características culturais e
enológicas, esclarecer a origem e o processo de expansão geográfica das castas e planear
e executar a conservação dos recursos genéticos para o futuro.
individual e nas relações entre pessoas. Este sistema leve e flexível explicará certamente
a grande motivação de tantos colaboradores de diversas instituições, o desenvolvimento rápido e a eficácia do trabalho durante os primeiros 20 anos. Porém, as profundas
mudanças de contexto observadas neste curto período trouxeram novas exigências, às
quais o modelo inicial já dificilmente poderia responder.
A exigência maior e mais premente decorria da urgência de travar a erosão genética
do numeroso parque de castas autóctones de 2.ª linha, através de prospecções intensas
da variabilidade em todo o território, seguida da respectiva conservação e avaliação num
pólo experimental dedicado. Ora, isso só seria possível com meios financeiros mais estáveis e com uma nova organização de gestão científica e administrativa.
Depois de profundas reflexões e de um processo de maturação que se prolongou
ao longo de quase uma década, essa organização foi constituída em Setembro de 2009
– Associação Portuguesa para a Diversidade da Videira, PORVID – com 13 entidades fundadoras, essencialmente de 3 classes: as produtoras de conhecimento (Instituto Superior de Agronomia, Instituto Nacional dos Recursos Biológicos, Universidade de Trás-osMontes e Alto Douro), as empresas da vinha e do vinho e suas organizações (Instituto
do Vinho do Douro e Porto, Associação para o Desenvolvimento da Viticultura Duriense,
Associação dos Viticultores do Concelho de Palmela, Associação Técnica dos Viticultores
do Alentejo, Sogrape Vinhos SA, Real Companhia Velha, José Maria da Fonseca Vinhos
SA, Symington Vinhos) e outras entidades interessadas no desenvolvimento de regiões
vitivinícolas (Câmara Municipal de Palmela, Direcção Regional do Desenvolvimento
Agrário dos Açores).
A PORVID está vocacionada para ser, doravante, a charneira de todas as acções de valorização da diversidade das videiras autóctones, com recurso aos seus meios próprios e
a dois outros instrumentos exteriores essenciais para o efeito: projectos de investigação
aplicada para a prospecção da variabilidade de todas as videiras autóctones em todo o
território, e um Pólo Experimental de Conservação para a guarda, avaliação e utilização
dessa variabilidade. Esse pólo existe formalmente desde 9 de Julho de 2009, por cedência, por parte do Ministério da Agricultura, do Desenvolvimento Rural e das Pescas, de
parte de uma herdade do Estado (Herdade de Pegões, Marateca/Palmela).
Em síntese, tendo-se partido duma situação de quase vazio em 1978 (em conhecimento sobre as castas e em história de selecção), chegámos a 2010 com a consciência da
existência, no País, de uma enorme riqueza em diversidade da espécie Vitis vinifera, com o
conhecimento fundamental para a conservar e valorizar e com uma organização públicoprivada mobilizadora de todos os meios necessários para esse efeito.
Chegados a este ponto, será oportuno um rápido relance sobre desenvolvimentos e
resultados que a situação actual autorizará num futuro de curto/médio prazo.
A diversidade das videiras autóctones encontra-se predominantemente em 3 comparti-
Uma visão para o sector
da diversidade das videiras
autóctones portuguesas
mentos: intervarietal, intravarietal e silvestre.
O compartimento intravarietal (variabilidade dentro de cada casta) é a sede da diversidade útil para efeito da selecção, aquele em relação ao qual se construiu em Por-
225
selecção das castas de videira
Durante décadas, o trabalho de selecção das castas assentou principalmente na iniciativa
A NOVA ORGANIZAÇÃO
PARA A VALORIZAÇÃO
GLOBAL DA DIVERSIDADE
DAS VIDEIRAS AUTÓCTONES
E UMA VISÃO DO FUTURO
226
227
tugal conhecimento novo e diferenciador nos últimos 30 anos e o que se encontra ac-
228
tualmente sujeito à mais intensa pressão de erosão genética. Por razões históricas, de
utilidade prática e de urgência, esse é o compartimento que constitui o principal alvo
da actividade da PORVID, no imediato. Essa actividade compreenderá a prospecção de
amostras de clones representativas da variabilidade intravarietal de cada uma das castas
autóctones (50 a 500 clones por casta), seguida da respectiva conservação por 2 processos redundantes: em vasos, sobre substrato inerte e fertirrigação, e por cultura normal
no campo (método que dará azo a avaliações culturais e enológicas, à quantificação da
variabilidade e à selecção). No total, prevê-se a conservação de 50.000 clones, cobrindo
uma área da ordem de 70 ha.
O compartimento intervarietal, constituído pelas próprias castas (ou pelas diferenças entre elas), é aquele que, para muitos, surge mais imediatamente associado à ideia
de diversidade. Também este compartimento é particularmente rico em Portugal (onde
existem cerca de 250 castas autóctones, isto é, muito mais castas por km2 de território do
que noutros grandes países vitícolas). Com base em indicadores experimentais recentes,
é provável que, no decurso de prospecções generalizadas, a realizar no País no imediato,
se venham a descobrir várias dezenas de outras variedades até agora não objectivamente
reconhecidas, o que colocará o País numa posição ainda mais destacada, face a outras
referências. Todas essas variedades serão submetidas a estudo comparativo básico, em 2
ou mais ambientes, de modo que possam posicionar-se gradualmente como alternativas
para a produção de vinhos diferentes e mais competitivos.
O compartimento silvestre, em geral menos conhecido pelo cidadão comum, é
constituído pelas videiras “bravas”, ancestrais das actuais castas cultivadas. Esquecidas
até ao fim do século passado, começaram então a suscitar atenção crescente, do que
resultou já a identificação de largas dezenas de núcleos no País, principalmente nas bacias do Sado, Guadiana e Odelouca (Martins, 2009, 2009b). Com base nos indicadores disponíveis, há a expectativa de que numerosos núcleos virão a ser detectados em tempo
próximo, podendo Portugal (junto com a Espanha) vir a surgir como Centro de Origem
(centro de diversidade) da videira, o que redundará em relevantes ganhos de imagem do
vinho português.
De resto, todos os resultados práticos e todo o conhecimento adquirido relativamente a cada um dos 3 compartimentos despertarão interacções mútuas positivas e darão origem a ganhos de imagem para a vitivinicultura portuguesa, os quais, em última
análise, acrescentarão valor ao vinho.
Por quanto se disse ao longo destas linhas se vê como uma acção pragmática de
selecção das castas, lançada num tempo de relativo atraso da vitivinicultura portuguePágina anterior Instalação de uma
nova vinha com material clonal.
Estação Vitivinícola Amândio
Galhano, Arcos de Valdevez
sa, se transformou num relevante factor de transformação da mesma (juntamente com
outros), podendo vir a guindá-la a uma posição de vanguarda na área dos recursos genéticos e ambientais, selecção e história natural da videira.
229
1 Quociente da variância genotípica
pela variância fenotípica total de uma
característica numa população.
2 Diferença entre a média dos genótipos
seleccionados e a de todos os genótipos
duma população (diferencial de selecção),
multiplicada pela heritabilidade.
3 Desvio padrão genotípico,
dividido pela média.
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Issue, 485-489.
230
231
Fotografia Carlos Megre
João Paulo Sotto Mayor
ou a imagem que o conserva
Nasceu na Sé – Porto, e disso faz a sua gala curricular.
Nortenho de profissão, Capricórnio de nascimento e Terra como característica dominante,
só se sente à vontade com o chão por baixo dos pés e o céu por cima de si.
Começou a fotografar aos doze anos, e ainda não acabou.
Tarimbou fotografia na extinta Associação Fotográfica do Porto, de cujas paredes extraiu
o sumo da imagem e da composição, que depois foi bebendo pelo resto da sua vida.
Assumiu a sua profissão em 71, montando um laboratório-atelier de imagem
industrial e também pessoal.
Tendo exposto pela primeira vez em 72, foi a partir de 74 que mais se sujeitou à crítica e à
apreciação, com um grande numero de exposições, principalmente no Porto, por escolha.
Fundou o Grupo IF em 76, com o qual realizou trabalhos temáticos – parte deles
defendendo a sua cidade e algumas ideias.
Publicou alguns livros, ilustrou outros, deixou a sua assinatura por livrarias e pela
lembrança de quem anda atento às coisas da imagem, onde nunca passou despercebido.
Seria fastidioso enumerar os locais e acontecimentos que o foram mostrando, e que
pouco dizem dum autor, excepto aos desprevenidos.
Aos outros (os mais atentos) basta que o vão acompanhando.

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