cadernos do pensamento crítico iv

Transcrição

cadernos do pensamento crítico iv
Encarte Clacso
Cadernos da
América Latina IV
Os Cadernos de Pensamento Crítico Latino-americano constituem uma iniciativa do Conselho Latino-americano de Ciências Sociais (CLACSO). Destinados à divulgação de alguns dos principais autores do pensamento social crítico da América Latina e Caribe, os primeiros números incluíram textos de Ruy Mauro Marini (Brasil),
Agustín Cueva (Peru) e Álvaro García Linera (Bolívia). Proximamente se difundirão artigos de Pablo González Casanova (México), José Carlos Mariátegui (Peru),
Florestan Fernandes (Brasil), René Zavaleta Mercado (Bolívia), Rodolfo Stavenhagen (México), Milton Santos (Brasil), Silvio Frondizi (Argentina), Gerard PierreCharles (Haiti), Aníbal Quijano (Peru), Juan Carlos Portantiero (Argentina) e Edelberto Torres Rivas (Guatemala), entre outros. Os Cadernos de Pensamento Crítico
Latino-americano são publicados no jornal La Jornada do México e nos Le Monde Diplomatique da Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Colômbia, Peru e Uruguai.
CLACSO é uma rede de mais de 210 instituições que realizam atividades de pesquisa, docência e formação no campo das ciências sociais em 23 países: www.clacso.org
Coordenação editorial: Emir Sader
A construção de alternativas 1
Pablo González Casanova2
A
s crenças do pensamento conservador mais
culto em nenhum caso têm deixado de dia
logar e coexistir com as novas ciências. E
mais: nos projetos de justiça social que não
pretendem mudar, mas sim conservar o sistema capitalista, a união do pensamento neoconservador e das
novas ciências é indiscutível. Nas medidas de “justiça
social”, reconhece formas de adaptação do sistema e
de suas mediações. O importante é que dessa união
do pensamento conservador e das novas ciências se
destacam também experiências que são particularmente úteis na busca e construção de alternativas.
A construção de alternativas por objetivos não só
pressupõe compreender, incluir ou intuir os paradigmas das tecnociências e das novas ciências, mas
também considerar estas como parte da atual lógica do poder contra o qual se luta e no qual se luta. A
vinculação entre as tecnociências e a lógica do poder contém filões riquíssimos, sobretudo quando se
pensa que qualquer projeto alternativo tem como
prioridade um projeto de justiça social e que também o sistema dominante possui importantes experiências na construção de seus próprios projetos
de justiça social e na utilização dos projetos alternativos para políticas de “desestabilização” contra os
governos que os empregam.
As experiências dos projetos de justiça social delineiam algumas dificuldades que as forças alternativas confrontam quando procuram construir um
sistema em que as desigualdades sociais diminuam
ou se desvaneçam o máximo possível. As dificuldades aparecem na história das políticas trabalhistas
do Estado de bem-estar social ou socialdemocratas,
nas do socialismo de Estado ou comunistas e nas
populistas ou do nacionalismo revolucionário. Elas
se dão em formas que variam de um país para outro
e que são significativamente distintas nos países do
centro e da periferia do mundo, pois nesta suas características mais adversas tendem a se acentuar.
De qualquer forma, os projetos de “justiça social”
delineiam dois tipos de contradições que os modelos de desestabilização registram com as categorias
das novas ciências: um é a ameaça à acumulação de
excedente e à ordem estabelecida do poder, isto é, ao
“sistema”, que se deve adaptar ao contexto e se rees-
truturar, ou adaptar-se e reestruturar o contexto. Esse primeiro tipo de contradição (que na linguagem
sistêmica é considerado um “desequilíbrio”, ou “desajuste” ou “conflito) no pensamento crítico marxista redescobre-se hoje nos interesses comuns de classe que unem os empresários, os proprietários e suas
forças político-militares de apoio contra as forças e
políticas que ameaçam sua propriedade e seu poder,
que eles têm de mediatizar, cooptar, corromper, desarticular, debilitar ou destruir. Esse primeiro tipo
de contradição corresponde ao que no capitalismo
clássico se colocou como uma luta entre os trabalhadores e proprietários. Em épocas recentes derivou em uma luta complexa que articula e redefine o
conjunto do poder e da economia, da produção de
valor e da distribuição e transferência do excedente
nas empresas e nas regiões, entre os complexos, as
classes, os estratos, e estes com elementos “marginalizados” ou “excluídos”. De todo modo, os interesses de classe aparecem com clareza quando um movimento social ameaça a apropriação do excedente,
a acumulação da propriedade e o domínio de meios
de produção e insumo, de comercialização e especulação; ou o poder e seus beneficiários.
encarte CLACSO - Cadernos da América Latina III
O segundo tipo de contradições, de desajustes, desequilíbrios ou conflitos é o que se dá no interior das
forças alternativas e que os modelos de desestabilização utilizam de uma maneira muito mais sistemática e eficiente que o pensamento conservador tradicional e sua arte de empregar provocadores, ou de
dividir para vencer com uma notável variedade de
técnicas de manipulação e debilitação e destruição,
que aparecem nas doutrinas, nos guias e nas memórias dos políticos e dos militares conservadores, particularmente quando enfrentam rebeliões e insurgências; mas também quando desenvolvem
processos de expansão, conquista, anexação e integração3. O problema tem sido abordado ao longo do
pensamento revolucionário e sua expressão mais famosa, a das “contradições no seio do povo”. Aparece
também nas reflexões sobre a formação de frentes e
“blocos históricos” que unem forças para lutar e
construir um sistema alternativo ou uma política de
transição. Para o pensamento conservador e para o
alternativo, os modelos de “desestabilização” e
“guerra de baixa intensidade”, que provêm das novas
ciências, são fundamentais para o pensar-fazer dos
atores sociais. Estes podem se aproximar das novas
ciências por meio dos modelos de desestabilização e
de guerra, do conhecimento teórico e prático desses
modelos. Em um nível de compreensão mais concreto – ou abstrato –, necessitam conhecer o papel que
desempenha seu próprio comportamento nos computadores e as formas em que está prevista a redefinição de cada um dos atores nas telas. A possibilidade de novas criações históricas não previstas nos
modelos é parte fundamental da possibilidade teórico-prática da mudança histórica e da continuidade
da história. Mas essa “criação” de uma história nova
se faz com uma imaginação-ação que parte da história comum e das “narrativas” da imaginação-ação.
Em um livro notável, Marcur Olson, da Universidade de Harvard, registra as condições objetivas que
dificultam a imposição da racionalidade coletiva do
“interesse geral” e do “bem comum”. Em sua opinião, essas dificuldades convalidam “a opção racional” que leva os indivíduos ou grupos de indivíduos
a favorecer seus interesses particulares. O livro de
Olson inscreve-se na ideologia conservadora; mas
não é só ideologia. Considera também a racionalidade com que as forças dominantes asseguram e fortalecem seus domínios e interesses, e o domínio que
alcançam sobre as classes subalternas, sobre as nações, os Estados, as empresas, os mercados e os recursos naturais. O livro de Olson intitula-se A lógica
da ação coletiva: bens públicos e teoria dos grupos4.
Nele não aparece a lógica das ciências da complexidade, mas sim a lógica conservadora que as usa. O
sistema dominante – segundo Olson – distingue três
atores principais aos quais hierarquiza por sua
maior ou menor “inclusão” e classifica de: grupos
“privilegiados”, grupos “intermediários” e grupos
“latentes” ou marginalizados e excluídos. As teses
principais de Olson são duas: 1) qualquer “bem público” ou “interesse geral” requer uma tripla política
de “incentivos”, de “coerção” e de “repressão”; 2) devem-se criticar, por serem “idealistas”, os projetos
alternativos de caráter “pluralista” ou “anarquista”,
pois é impossível que os “grupos latentes” (ou as vítimas, os marginalizados e excluídos do sistema)
por si sós, ou associados aos “grupos intermediários” de “trabalhadores organizados manuais e intelectuais”, ou as “vanguardas” radicais, “organizemse para uma ação coordenada [...] tão-somente
porque têm uma razão para fazê-lo”.
A posição de Olson é conservadora; mas é exata na
expressão de seu “realismo”, do materialismo sem
alternativa próprio dos conservadores. Está equivocada – como os conservadores – ao pressupor que
não há alternativa; que outro mundo não é possível.
Jürgen Habermas5 propõe, ao contrário, um caminho acertado, mas truncado, para lutar pela solução
dos problemas humanos: com a visão liberal e conservadora da democracia, sustenta a que chama democracia processual ou “democracia dos procedimentos”, mediante a qual os povos tomam e tornam
efetivas as decisões que superam o particularismo e
encontram os interesses que os unem em meio à diversidade. Mas, se Habermas tem razão ao privilegiar o diálogo e os procedimentos intercomunicativos para a tomada de decisões e ao enfrentar a lógica
dos procedimentos à razão instrumental, ou à “sobrecarga ética” das elites que representam o bem, ou
à sobrecarga estatista das posições liberais e suas
demandas de eficiência administrativa na solução
dos problemas sociais, e – poderíamos acrescentar
– às posições revolucionárias que pensam em termos de reforma ou de tomada do poder, ele, ao contrário continua atribuindo uma sobrecarga à política dialogal e ao “poder gerado pela comunicação”,
sem incluir os problemas evidentes da lógica da segurança das comunidades e dos povos em face da
“guerra interna” e “de baixa intensidade”, ou os problemas da luta pela moral pública e com ela em face
das “ações cívicas” ou “humanitárias” dos exércitos
e das oligarquias que cooptam e corrompem, e frente às políticas clientelistas dos líderes e grupos que
rompem a unidade de classes e de comunidades
com concessões especiais, paternalistas, humanitárias, também corruptoras. Em todo caso, o caminho
que propõe Habermas é explorado com as práticas
que resolvem a mais ampla problemática de resolver
os conflitos internos por meio do “orçamento participativo” brasileiro e dos municípios autônomos zapatistas. Mas Olson nos interessa porque descobre –
como conservador – as mesmas contradições
evidentes que os novos movimentos sociais descobrem a partir de sua libertação, a partir de sua autonomia, como rebeldes e insurgentes em busca de
uma alternativa democrática e social ou socialista.
Olson equivoca-se como bom conservador ao não
ver alternativa ao mundo em que vivemos; ao não
descobrir que outro mundo é possível. Mas ao
mesmo tempo assinala com “realismo” os problemas evidentes das contradições no seio dos povos, dos trabalhadores e dos cidadãos. Habermas,
os brasileiros e os zapatistas – entre outros – descobrem como resolver pacificamente a distribuição de recursos escassos pelas próprias comunidades, vilas ou bairros.
Olson reforça e comprova sua tese sobre a necessidade da violência em qualquer política redistributiva. Invoca a história do movimento operário, particularmente nos Estados Unidos. Poderia confirmá-la
também com a história da União Soviética e de sua
“sociedade informal”, como o fez Larissa Lomnitz6,
ou com a história dos regimes socialdemocratas, nacionalista-revolucionários, populistas e com a imensa maioria dos comunistas. E mais: a tese de Olson
se confirma ao vermos a forma como a tripla política
de “incentivos”, “coerção” e “repressão” é aproveitada pelas forças conservadoras para debilitar e destruir as forças democráticas, de libertação e socialistas. As forças conservadoras estudam as contradições
dos povos para manipulá-los. O clientelismo tende a
surgir em qualquer governo popular, democrático,
socialista que busque planejar e construir uma política eqüitativa em uma sociedade de recursos escassos. O radicalismo superior às forças de que se dispõe tende a surgir em qualquer movimento
contestatório ou insurgente.
O oportunismo e a negociação ou aliança com concessões de “princípio” e que debilitam as forças para
alcançar os objetivos a que se propõe um movimento democrático, libertador ou socialista causam estragos tão graves quanto a cooptação e a corrupção
de indivíduos e grupos do movimento. Ao impulso
que as forças conservadoras dão a esse fenômeno
acrescentam-se os que induzem os representantes e
governos a usar e abusar dos “incentivos econômicos” que Che critica e da “coerção” e “repressão” que
derivam em ditaduras “populistas” ou “proletárias”,
de novas oligarquias com seus chefes e burocracias.
Impedir essas contradições o máximo possível implica uma política de conjunto em que Cuba se destaca. A necessidade de estudar a experiência cubana
em matéria de contradições “internas” e “externas”,
de intraclasse ou de interclasse, vai muito além de
qualquer idealismo ou exercício retórico. A partir de
um delineamento teórico em que se reconheça que
todas as soluções são contraditórias e que todas as
contradições entram em processos de negociação, é
fundamental esclarecer como Cuba conseguiu, em
ambos os fenômenos, soluções e negociações que
mantêm e renovam a luta pela democracia, pela libertação e pelo socialismo.
Em qualquer movimento libertador, democrático e
socialista aparecem coincidências e rupturas dialéticas entre o pensamento mais ou menos radical dos
participantes. A solução para as lutas internas dá-se
em meio a conflitos e negociações, enfrentamentos
e acordos, agressões e diálogos.
As coincidências dialéticas ativam-se quando os
movimentos começam a construir um regime, uma
sociedade, uma cultura ou uma política alternativa,
democrática, redistributiva, descolonizadora. Nesse momento, os movimentos deparam-se com problemas parecidos com os que enfrentam os governos conservadores e liberais nas reformas sociais
que lhes impõem os trabalhistas, os socialdemocratas e que, na história chamada pós-colonial, lhes impuseram os governos nacionalistas, populistas, desenvolvimentistas. Sindicatos ou governos “reformistas” ou “revolucionários” descobrem “a necessidade implícita da coerção nas tentativas de prover
bens coletivos a grandes grupos”7.
A violência repressiva acompanha os movimentos
alternativos inclusive quando estes reconhecem direitos como o de associação e de greve. A lógica da
resistência e da sobrevivência leva-os a organizar-se
para enfrentar a violência externa e interna, contra o
povo e “dentro do povo”. Não vêem alternativa. O
problema complica-se em muitos Estados socialdemocratas ou populistas porque os sindicatos de trabalhadores são enfrentados por sindicatos pelegos
e, para manter a unidade sindical, os líderes e seus
grupos de apoio recorrem a coações como a “cláusula de exclusão”. Os grupos de apoio formam clientelas que gozam de benefícios especiais com préstimos e empregos. Os dissidentes são excluídos da
comunidade e do emprego.
Os problemas agravam-se quando a pobreza é maior
e a população de pobres é mais numerosa. Há menos para repartir e mais a quem repartir. Os sistemas de clientelas operam com grupos reduzidos encabeçados por seus respectivos líderes. Uns e outros
se vêem mais expostos à repressão ou à cooptação e
à corrupção compartilhada.
As bases do informal e do desigual ressurgem na
própria alternativa com racionalizações que dão
oportunidade à autodestruição dos movimentos
trabalhistas, libertários ou de luta por justiça dos
“países de acumulação” e dos “países periféricos”.
Todos os membros das organizações operárias,
camponesas ou populares convencem-se de que
não se obtêm concessões maiores ou salários mais
altos à base de pura persuasão moral ou jurídica. Os
pronunciamentos nesse sentido são abundantíssimos. Já em 1891, Henry George escreveu ao papa: “As
organizações operárias não podem fazer nada para
aumentar os salários senão pela força; necessitam
coagir ou ter o poder para coagir os empregadores;
necessitam coagir aqueles que entre seus membros
estejam dispostos a lutar; devem fazer todo o possível para ter em suas mãos todo o campo de trabalho
que querem ocupar e forçar outros trabalhadores
para que se juntem a eles ou morram de fome. Aqueles que falam em persuasões morais e nada mais a
um dos sindicatos empenhados em aumentar seus
salários se parecem com os que disseram que os tigres se alimentam de laranjas”8. O problema da disciplina interna e da aplicação de sanções adquire
características ainda mais sérias quando os movimentos sociais, políticos e revolucionários chegam
ao poder, tomam o poder ou constroem o poder e
confrontam as contradições dos direitos humanos
como justiça social, como democracia e como libertação de nações, povos e indivíduos. Nesse terreno,
as experiências de Cuba também são notáveis, e a
propaganda contra elas uma das maiores infâmias
de homens de boa-fé e má-fé9.
Os problemas da cooptação e da repressão, da corrupção e do autoritarismo, do ultra-esquerdismo e
do oportunismo requerem mais que a censura e o
castigo, esforços combinados de contenção e regulação que dependem da disciplina e da autodisciplina, do sentido da vida e dos valores e da pedagogia
desses valores e desse sentido, com um reforço sistemático da relação ou igualação das palavras com as
ações. Todos os movimentos e governos que lutam
pelos trabalhadores, por uma democracia universal,
pelo socialismo e pelo comunismo, pela libertação
das colônias formais e informais deparam-se com o
problema da formação de grupos de apoio que exigem concessões especiais e são suscetíveis de cooptações e corrupções. Essas polêmicas e experiências
se dão nas organizações dos trabalhadores, nas organizações dos povos e das nações, e nas organizações dos cidadãos. Os “cidadãos” inserem-se em sistemas de mediação e cooptação individual e de
clientelismo que operam nas eleições, nos partidos e
nos postos de representação popular, assim como
nos parlamentos ou nos governos locais, provinciais
e nacionais dirigidos por um ou mais de um partido.
De qualquer forma, indivíduos e grupos hegemônicos fixam as normas da seleção de representantes e
de concessionários privilegiados. A experiência torna-se mais dramática quanto maior for a proporção
de população não organizada e quanto maior for sua
pobreza, sua exclusão, sua marginalização, sua exploração e desapossamento.
O problema não se dá apenas com os “incentivos”,
mas também com a “coerção” e a “repressão”. Aos
“incentivos” legais, e que se dotam segundo regras
universais, acrescentam-se os incentivos clientelistas e populistas que se enquadram nas leis com aplicações a grupos privilegiados em função de parentescos, vizinhanças, grupos étnicos etc., ou que
ficam no campo do ilegal com companhias coletivas e individuais. Com a “coerção” e a “repressão”
ocorre algo semelhante: há uma que se dá com regras universais, e nesse caso sua legitimidade depende de que a imensa maioria da população as torne suas na legislação e na aplicação, e há formas de
“coerção” e “repressão” que nem por serem legais
perdem seu caráter autoritário e em que a “ilegalidade” acentua o problema de forma crítica. Em um e
outro caso, à legitimidade que dá a essas medidas o
apoio universal da comunidade em que se aplicam
acrescenta-se outro problema relacionado com a
pedagogia universal dos direitos humanos e suas
contradições na história do capitalismo, do colonialismo, do imperialismo e do socialismo de Estado.
Só se enfrenta a possibilidade de manipular esses
direitos como propaganda desqualificadora do inimigo com uma pedagogia que se comprometa com
esses direitos expressando seu valor e que lute por
exercê-los de forma concreta e em situações específicas, sabendo que a solução sempre será contraditória e que nela cada ator coletivo ou individual terá de
assumir uma posição responsável.
O problema pode derivar em processos contra-revolucionários, particularistas, nos quais o discurso
da ação coletiva e do interesse geral – democrático,
socialista, patriótico – se torne cada vez mais incoerente, acrescentando à violência lógica as contradições do formal e do informal, da ética solidária que
se apregoa e da que se pratica, paternalista ou populista; da representação social que atua e manda
sem obedecer aos representados nas ações de “concessão”, de coerção” e “repressão” que se exercem.
Nesses processos, povos e governos parecem regressar aos pontos de partida, só que lutando agora
contra seus exploradores e opressores tradicionais e
também contra os que se somaram a eles saídos das
próprias fileiras das “vítimas”, das organizações de
cidadãos pobres, de trabalhadores superexplorados
e excluídos, de “condenados da terra”, de movimentos de povos colonizados. Aos antigos opressores
somam-se os libertadores cooptados e corrompidos, que não tomam as decisões com consulta e
apoio das bases e resolvem as contradições internas
sem que as bases tornem suas as soluções, por mais
contraditórias que sejam. Os processos regressivos
levam à formação de grupos e líderes privilegiados
que se inserem nos setores médios e nas máfias, elites e oligarquias ampliadas. Em nosso tempo, esses
processos levam à recolonização transnacional e
globalizadora em que se combinam as dívidas adquiridas com o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional, com os golpes militares e de corpos de elite treinados nas escolas especiais da
guerra suja, ou com os políticos modernos das “universidades de excelência” que realizam a transição
para uma democracia das minorias, com a “liberdade de comércio” considerada essência da liberdade
humana, e com as corporações e complexos militar-industrial-financeiros reconhecidos como os
verdadeiros soberanos.
O problema adquire novas características para os
movimentos alternativos que se encontram em processo de formação desde fins do século XX e para os
que aplicam de forma crescente a “guerra de baixa
intensidade” e suas táticas de reestruturação do Estado global tanto na periferia quanto no centro do
mundo. As coincidências e diferenças entre o sistema dominante e o sistema alternativo delineiam-se
de maneira distinta com uma guerra que inclui a negociação e com um neoliberalismo que inclui a
guerra. O debate sobre as alternativas se vê obrigado
a superar as propostas maniqueístas como “reforma
ou revolução”, “luta pacífica ou luta violenta”, “participação no poder do Estado ou tomada do poder do
Estado”, “estatismo ou sociedade civil”. O projeto alternativo delineia a todo momento, de uma maneira
ainda incipiente, as simpatias e diferenças de “um
movimento feito de muitos movimentos”. As que parecem coincidências com o projeto democrático e
com o projeto reformista são diferenças com o novo
projeto de democracia. Nenhuma negociação deve
negociar os princípios. Nenhuma deve renunciar ou
subtrair força à autonomia das organizações e das
pessoas. O projeto busca construir espaços com reformas que aumentem a autonomia e satisfaçam as
demandas de grupos que não são particularistas
nem discriminatórios ou excludentes. Em face das
reformas e das revoluções – ou com elas –, postula a
construção de forças autônomas em todos os territórios e setores, nas organizações e nas redes, ao mesmo tempo que a luta contra o autoritarismo, contra a
repressão e contra a cooptação dos movimentos alternativos e de seus dirigentes delineia a organização desde a base de núcleos e redes, de povos, trabalhadores, cidadãos organizados que sejam capazes
de contribuir para a resistência e construção das al-
ternativas, com uma política-moral articulada aos
procedimentos para a tomada de decisões e para a
monitoração e auditoria pública das ações dos governos cidadãos. Essa organização redefine as relações dos dirigentes e seus grupos de apoio com base
no diálogo que encontra os pontos de consenso e de
interesse geral no debate regulado. A luta de classes
não aparece só como uma luta entre proprietários
dos meios de produção e trabalhadores, mas também na medida em que as demandas dos cidadãos,
dos povos e dos trabalhadores afetam os interesses
das classes e complexos dominantes.
As contradições necessárias em que incorrem os
movimentos são objeto de uma pedagogia-políticomoral que, no caso da América Latina, tem sua máxima expressão em Cuba, nos movimentos populares dos “Sem-Terra” e do Partido dos Trabalhadores
no Brasil, e na insurgência dos povos indígenas do
Equador e do México, país em que se destacam os
“zapatistas” como autores intelectuais e políticos da
nova organização social e moral e do sentido geral
de uma história que tem como projeto mínimo “não
morrer de joelhos” e como projeto máximo um que
una as lutas pela democracia, pela libertação e pelo
socialismo com as lutas por autonomia dos povos e
das pessoas, e todas com respeito a suas crenças,
culturas, religiões, gostos e a sua participação na redefinição dos direitos universais10.
Depois do “período especial”, da queda do bloco soviético, Cuba redefiniu o sentido de suas lutas e, de
última revolução do período anterior, passou a ser a
primeira do novo período: suas contribuições teórico-práticas ao triunfo do projeto democrático, libertador e socialista enriqueceram-se com a ênfase
crescente na democracia processual e participativa
e com o controle das novas contradições a que deu
lugar o impulso do turismo em uma ampla zona dolarizada que requer uma política muito difícil e original contra os perigos de restauração psicológica e
cultural consumista que essa zona representa.
O Brasil contribui para o processo com a redefinição
do Partido dos Trabalhadores, que não é apenas um
partido eleitoral e parte do sistema político do Estado, mas também um partido sociocultural, capaz de
organizar, a partir da base, novos governos coletivos
que tomem decisões na distribuição do excedente
orçamentário. As contradições desse partido, dos
governos que encabeça, e das soluções que encaminha são de interesse universal11.
Os zapatistas e os povos indígenas redelineiam a redefinição de mundo e da sociedade a partir de suas
comunidades, sua cultura e sua exclusão para construir alternativas que nem no curto nem no médio
prazo propõem a tomada do poder do Estado ou a
participação nos aparelhos governamentais, mas
sim os pressiona enquanto as comunidades e redes
de comunidades constroem suas autonomias, indígenas e não-indígenas, potencialmente nacionais,
regionais, globais, dispostas também a opor – com o
mundo – a resistência às novas empresas colonizadoras do imperialismo associado. A contribuição
dos zapatistas aos novos movimentos sociais tem
uma influência e um reconhecimento universais.
À radicalização e expansão dos novos movimentos
alternativos acrescentam-se reformulações cada vez
mais agressivas do neoliberalismo de guerra. A nova
guerra, decretada pelos Estados Unidos em setembro de 2001, envolve em escala mundial os modelos
da guerra de baixa intensidade. Os movimentos alternativos adquirem consciência crescente – e têm
cada vez mais informação oficial a esse respeito – e
um pensamento crítico que radicaliza suas propostas alternativas12. Sabem que a guerra de baixa intensidade não só inclui as ações militares, mas também
encarte CLACSO - Cadernos da América Latina III
as de diálogo e negociação; não só as de repressão,
mas também as de “ação cívica”; não só as de terrorismo estatal ou paraestatal, mas também as de cooptação, negociação e corrupção de líderes e grupos
de base; não só as de guerra com desalojamentos e
massacres coletivos, mas também as de guerra psicológica e viral, bioquímica e “humanitária”, que
acabe com a saúde, a consciência e a vontade de indivíduos e coletividades, com sua coerência e sua perseverança, e até com sua existência. O problema do
genocídio e do ecocídio se coloca com crescente gravidade no campo dos fatos e no campo do direito.
Em meio a um quadro mundial de intimidação e
terror, em que as forças dominantes se negam a perguntar-se sobre a verdadeira forma de acabar com o
terrorismo, que não é outra senão a mudança política negociada do capitalismo para o socialismo democrático que respeita a soberania e a autonomia de
todos os povos e pessoas, as tecnociências da propaganda e da guerra psicológica anunciam um Império do Terror no mundo, encabeçado pelo complexo
militar-empresarial dos Estados Unidos. Invocam
Deus de forma ameaçadora e apresentam-se como
representantes do Bem contra o Mal, apoiados nos
mais avançados aparatos de guerra. Esquecem tudo o que as novas ciências têm de positivo e criador
e se fiam numa retórica falsamente newtoniana de
que o livre mercado é uma lei natural da economia,
e o “Deus” que eles invocam a base de uma nova
guerra de conquista patológica que “pode acabar
com a humanidade sem acabar com eles” (!). Seu
comportamento é idêntico ao de todos os impérios
decadentes que estão a ponto de morrer. O que os
diferencia é o perigo óbvio de que eles mesmos desapareçam destruídos pelas armas que construíram para destruir os demais13.
As forças alternativas buscam redefinir a inteligência humana como uma inteligência capaz de superar a inteligência artificial e a irracional. Ao fazê-lo,
por onde quer que incursionem encontram a democracia, o socialismo e a libertação como o único caminho para dar um sentido realmente humanista às
novas ciências e às tecnociências. A solução vai além
do ideológico e das posições particulares. Corresponde a uma posição em que o humanismo só se po-
de realizar como democracia, como libertação e como socialismo. Nessa composição ou complexo, a
autopoiesis ou criação de novas relações sociais tem
um atrativo geral: uma democracia organizada em
que a moral pública triunfe diante de todas as tentativas de intimidação, corrupção e cooptação do neoliberalismo e da “ação cívica” que manipula a
“guerra de baixa intensidade” como nova tirania,
como novo imperialismo e como um novo capitalismo autodestrutivo.
A criação das relações sociais de uma democracia
organizada, com o poder dos povos para decidir em
matéria de políticas econômicas, modos de dominação e apropriação, modelos de solução de conflitos e
alcance de consensos, novos modelos de produção e
consumo, é um problema complexo de redefinição
das relações de dominação e acumulação. Exige a
organização do poder e os procedimentos intercomunicativos para a tomada de decisões pelos povos,
pelos trabalhadores, pelos cidadãos em uma economia que elimine a obtenção e maximização de lucros para o investimento e o gasto. Exige respeito às
autonomias do pensar, do crer e do fazer dentro do
respeito geral que na prática define e redefine os interesses universais. Nessa prática, o conhecimento
das novas ciências e das tecnociências, o das grandes lutas pela libertação dos povos, dos trabalhadores e dos indivíduos, e o da narrativa e do diálogo de
cada povo, trabalhador e pessoa, podem assentar as
bases de uma meta principal: negociar com o capitalismo para que ele se desestruture sem destruir a
humanidade, sabendo que sua única alternativa a
essa proposta é que o capitalismo se destrua destruindo a humanidade.
A vitória dos seres humanos é possível assim como lutar por ela com toda a herança do pensamento crítico
e do pensamento tecnocientífico, sabendo que não
haverá soluções sem contradições, nem contradições
sem negociações, nem lutas que defrontem a democracia, a libertação e o socialismo em vez de combinálas e articulá-las com as prioridades, ênfases e adaptações que os tempos e as forças exijam. Uns darão mais
importância a um objetivo, outros a outro, mas todos
em uniões crescentes, e não necessariamente lineares, de cidadãos, trabalhadores e povos.
1 Pablo González Casanova nasceu em Toluca, México (1922).
Doutor pela Universidade de Paris com estudos de especialização
em sociologia. Diretor do Centro de Investigações Interdisciplinares em Humanidades (UNAM). Foi reitor da UNAM e presidente
em dois períodos da Associação Latino-americana de Sociologia
(ALAS). Conjugou sua carreira acadêmica com um ativo compromisso político junto aos movimentos sociais e outros setores da
esquerda latino-americana. Autor, entre outras obras, Sociologia
da exploração (1969); Imperialismo e liberação na América Latina
(1978); A democracia no México (1984); em coautoria com Marcos Roitman, As Democracias na América Latina. Atualidade e
perspectivas (1995).
2 Trecho do livro As novas ciências e as humanidades: da academia
à política, sua última obra (São Paulo: Boitempo Editorial, 2006.
Traduzido por Mouzar Benedito).
3 Harry Howe Ramson, “Covert intervention”, em Peter J. Schraeder (Ed.), Intervention into the 1990s, cit., p. 113-29; Peter J.
Schraeder, “Paramilitary intervention”, em Intervention into the
1990s, cit., p. 131-51.
4 Ibidem, p. 65.
5 Jürgen Habermas, “Three normative models of democracy: liberal,
republican, procedural”, em R. Kearney e M. Dooley (Eds.), Questioning ethics: debates in contemporary philosophy (Londres,
Routledge, 1998, p. 135-44).
6 Larissa Adler Lomnitz, “Informal exchange networks in formal systems: a theoretical mode”, American Anthropologist, v. 90, n. 1,
1988, p. 42-55, e Redes sociales, cultura y poder: ensayos de
antropología latinoamericana (México, Miguel Angel Porrúa-Flacso, 1994), p. 135-66.
7 Ibidem, p. 71.
8 Henry George, The condition of labor: an open letter to Pope Leo
XIII (Nova York, United States Book Co., 1981), p. 86, cit. por Mancur Olson, The logic of collective action, cit., p. 71.
9 Richard Falk, Human rights horizons: the pursuit of justice in a
globalizing world (Nova York, Routledge, 2000); Fidel Castro, “Intervención en la sesión plenaria de la 105ª Conferencia de la Unión
Interparlamentaria Mundial”, Havana, 5 abr. 2001.
10 Atilio Boron, “La selva y la polis: reflexiones en torno a la teoría
política del zapatismo”, Observatorio Social de América Latina, n.
4, jun. 2001; Pablo González Casanova, “Causas de la rebelión en
Chiapas”, Política y Sociedad, Madri, n. 17, set.-dez. 1994, p. 8394; idem, “Los zapatistas del siglo XXI”, Observatorio Social de
América Latina, n. 4, jun. 2001, p. 1 e 13; idem, na internet, ALAI,
<http://alainet.org>, 9 de abril de 2001; idem, no Observatorio
Social de América Latina, jun. 2001; Yvon Le Bot, Subcomandante Marcos: el sueño zapatista (Barcelona, Plaza y Janés, 1997);
Luis Hernández Navarro, Los comunicados de Marcos, detrás de
nosotros estamos ustedes (México, Plaza y Janés, 2000); Neil
Harvey, La rebelión de Chiapas: la lucha por la tierra y la democracia (México, Era, 2000); Maya Lorena Pérez Ruiz e Marcelo Quezada, EZLN: la utopía armada: una visión plural del movimiento
zapatista (La Paz, Plural Editores, 1998); Maya Lorena Pérez Ruiz,
“¡Todos somos zapatistas! Alianzas y rupturas entre el EZLN y las
organizaciones indígenas”, tese de doutorado, México, UAM-Iztapalapa, 2000; Subcomandante Marcos, Desde las montañas del
sureste mexicano: cuentos, leyendas y otras postdatas del Sup
Marcos (México, Plaza y Janés, 1999).
11 Ubiratan de Sousa, “Le budget participatif: l’expérience du Rio
Grande do Sul”, Alternatives Sud, v. VIII, n. 2, 2001; Boaventura de
Sousa Santos, “Orçamento participativo em Porto Alegre: para
uma democracia redistributiva”, em idem (Org.), Democratizar a
democracia, cit., p. 455-559.
12 Giovanni Arrighi, Terence K. Hopkins e Immanuel Wallerstein, Antisystemic movements (Londres, Verso, 1989).
13 Rémy Herrera et al., L’empire en guerre: le monde après le 11 Septembre, cit.
Manifesto liminar da reforma
universitária
A juventude argentina de Córdoba aos homens livres da América do Sul1
H
omens de uma república livre, acabamos de
romper o último grilhão que em pleno sécu
lo XX nos atava à antiga dominação monár
quica e monástica. Resolvemos chamar a
todas as coisas pelo nome que têm. Córdoba se redime. Desde hoje contamos para o país uma vergonha
a menos e uma liberdade a mais. As dores que nos
restam são as liberdades que nos faltam. Acreditamos não equivocar-nos, as ressonâncias do coração
nos advertem: estamos pisando em uma revolução,
estamos vivendo uma hora americana.
A rebeldia explode agora em Córdoba e é violenta,
porque aqui os tiranos se haviam tornado soberbos
e porque era necessário apagar para sempre a recordação dos contra-revolucionários de Maio. As universidades foram até aqui o refúgio secular dos medíocres, a renda dos ignorantes, a hospitalidade
segura dos inválidos e – o que é pior ainda – o lugar
em que todas as formas de tiranizar e de insensibilizar encontraram a cátedra que as ditasse. As universidades chegaram a ser assim o reflexo fiel destas sociedades decadentes que se empenham em oferecer
o triste espetáculo de uma imobilidade senil. É por
isso que a Ciência, frente a estas casas mudas e fechadas, passa silenciosa ou entra mutilada e grotesca ao serviço burocrático. Quando em um arroubo
fugaz abre suas portas aos altos espíritos é para em
seguida arrepender-se e tornar impossível a vida no
seu recinto. É por isso que, dentro desse tipo de regime, as forças naturais levar a medriocrizar o ensino
e a ampliação vital dos organismos universitários
não é fruto de desenvolvimento orgânico, mas o
alento à periodicidade revolucionária.
Nosso regime universitário – mesmo o mais recente
– é anacrônico. Está fundado em uma espécie de direito divino: o direito divino do professorado universitário. Nele nasce e morre. Mantém um distanciamento olímpico. A Federação Universitária de
Córdoba se levanta para lutar contra esse regime e
entende que nisso joga sua vida. Reivindica um governo estritamente democrático e reitera que o demos universitário, a soberania, o direito a eleger seu
próprio governo radica principalmente nos estudantes. O conceito real de Autoridade que corresponde e acompanha a um diretor ou a um professor
em uma casa de estudantes universitários, não pode
se apoiar somente na força de disciplinas estranhas
à própria substância dos estudos. A autoridade em
uma casa de estudantes, não é exercida mandando,
mas sugerindo e amando: Ensinando. Se não existe
uma vinculação espiritual entre quem ensina e
quem aprende, todo ensino se torna hostil e, portanto, infecundo. Toda a educação é uma longa obra de
amor aos que aprendem. Fundar a garantia de uma
paz fecunda no artigo autoritário que define um regulamento ou um estatuto é, em todos os casos, amparar um regime de quartel, mas não um trabalho
de Ciência. Manter a atual relação de governantes a
governados é agitar o fermento de futuros transtornos. As almas dos jovens devem ser movidas por forças espirituais. Os desgastados mecanismos de autoridade que emanam da força não são compatíveis
com o que reivindica o sentimento e o conceito moderno das universidades. O ruído do látego só pode
legitimar o silêncio dos inconscientes ou dos covardes. A simples atitude silenciosa, que cabe em um
instituto de Ciência é a de quem escuta uma verdade
ou a de quem pensa para criá-la ou comprová-la.
Por isso queremos arrancar pela raiz da organização
universitária o arcaico e bárbaro conceito de Autoridade que nestas Casas é um baluarte de absurda tirania e só serve para proteger criminalmente a falsadignidade e a falsa-competência.
Agora advertimos que a recente reforma, sinceramente liberal, realizada na Universidade de
Córdoba por Dr. José Nicolás Matienzo, só confirma que o mal era mais aflitivo do que nós imaginávamos e que os antigos privilégios dissimulavam um estado de avançada decomposição. A
reforma Matienzo não inaugurou uma democracia universitária; consolidou o predomínio de
uma casta de professores. Os interesses criados
em torno dos medíocres encontrou nela um
inesperado apoio. Somos acusados de insurretos
em nome de uma ordem que não discutimos,
mas que nada tem a ver conosco. Se as coisas são
assim, em nome da ordem querem seguir nos enganando e embrutecendo, proclamamos bem alto o direito sagrado à insurreição. Então a única
porta que nos resta aberta para a esperança é o
destino heróico da juventude. O sacrifício é nosso melhor estímulo; a redenção espiritual das juventudes americanas nossa única recompensa,
pois sabemos que nossas verdades são – dolorosas – de todo o continente. Que em nosso país
uma lei – se diz –, a de Avellaneda, se opõe as
nossas vontades. Então vamos reformar a lei,
que nossa saúde moral o está exigindo.
A juventude vive sempre no espírito do heroísmo. É
desinteressada, é pura; Não teve tempo ainda de se
contaminar. Não se equivoca nunca na escolha de
seus próprios Mestres. Diante dos jovens não se
consegue mérito bajulando ou comprando. É preciso deixar que eles mesmos escolham seus Mestres e diretores, seguros de que o acerto haverá de
coroar suas determinações. Daqui para frente só
poderão ser Mestres na futura república universitária os verdadeiros construtores de alma, os criadores de verdade, de beleza e do bem.
A juventude universitária de Córdoba acredita que
chegou a hora de colocar este grave problema à
consideração do país e de seus homens representativos. Os acontecimentos sucedidos recentemente na Universidade de Córdoba, por ocasião da
eleição para Reitor, esclarecem singularmente
nossa razão de agrupar muito logo sob sua bandeira a todos os homens livres do continente. Referiremos os acontecimentos para que se veja a vergonha nos jogou no rosto a covardia e a perfídia dos
reacionários. Os atos de violência, dos quais nos
responsabilizamos integralmente, se cumpriam
como no exercício de simples idéias. Contornamos
o que representa um levantamento anacrônico e o
fizemos para poder levantar pelo menos o coração
sobre essas ruínas. Aqueles representam também
a medida de nossa indignação na presença da miséria moral, da simulação e do engano maroto que
pretendia infiltrar-se com as aparências da legalidade. O sentido moral estava obscurecido nas classes dirigentes por um farisaísmo tradicional e por
uma pavorosa indigência de ideais.
O espetáculo que oferecia a Assembléia Universitária
era repugnante. Grupos amorais desejosos de conquistar a boa vontade do futuro reitor exploravam os
contornos na primeira votação, para inclinar-se logo
ao bando que parecia assegurar o triunfo, sem recordar a adesão publicamente empenhada no compromisso de honra contraído pelos interesses da Universidade. Outros – a maioria – em nome do sentimento
religioso e sob a jurisdição da Companhia de Jesus,
exortavam à traição e ao pronunciamento subalterno. (Curiosa religião que ensina a menosprezar a
honra e a deprimir a personalidade! Religião para
vencidos ou para escravos!) Tinha se conseguido
uma reforma liberal mediante o sacrifício heróico de
uma juventude. Acreditava-se ter conquistado uma
garantia e da garantia se apoderavam os únicos inimigos da reforma. Na sombra dos jesuítas haviam
preparado o triunfo de uma profunda imoralidade.
Consentir com isso teria significado outra traição. À
burla respondemos com a revolução. A maioria expressava a soma da repressão, da ignorância e do vício. Então demos a única lição que cabia e espantamos para sempre a ameaça do domínio clerical.
A sanção moral é nossa. O direito também. Eles puderam obter a sanção jurídica, apoiar-se na lei. Nós
não lhes permitimos. Antes que iniqüidade fosse
um ato jurídico, irrevogável e completo, nos apoderamos do Salão do Conselho e expulsamos a canalha, que somente se amedrontou nesse momento,
dos claustros. Para saber que é certo, basta saber que
em seguida, em sessão na própria Sala de Conferências da Federação Universitária e de ter assinado mil
estudantes na própria mesa do reitor, a declaração
de greve indefinida.
De fato, os estatutos reformados dispõem que a eleição de reitor terminará em uma única sessão, proclamando-se o resultado, depois da leitura de cada
uma das cédulas e aprovação da respectiva ata. Afirmamos sem temor de ser retificados, que as cédulas
não foram lidas, que a ata não foi aprovada, que o
reitor não foi proclamado e que, portanto, para a lei,
não existe ainda reitor desta universidade.
A juventude universitária de Córdoba afirma que
nunca fez questão de nomes, nem de empregos. Levantou-se contra um regime administrativo, contra
um método docente, contra um conceito de autoridade. As funções públicas se exerciam em benefício
de determinadas camarilhas. Não se reformavam
nem planos, nem regulamentos por temor de que alguém nas mudanças pudesse perder seu emprego. O
lema “hoje para você, amanha para mim”, corria de
boca em boca e assumia o papel de estatuto universitário. Os métodos docentes estavam viciados por
um estreito dogmatismo, contribuindo para manter
a Universidade distanciada da Ciência e das disciplinas modernas. As aulas, encerrados na repetição interminável de velhos textos, amparavam o espírito
de rotina e de submissão. Os corpos universitários,
cuidadosos guardiões dos dogmas, tratavam de
manter enclausurada a juventude, acreditando que
a conspiração do silêncio pode ser exercida contra a
Ciência. Foi então que a obscura Universidade fechou suas portas a Ferri, a Ferrero, a Palacios e a outros, diante do tremer de que fosse perturbada sua
plácida ignorância. Fizemos então uma santa revolução e o regime caiu diante dos nossos golpes.
Acreditamos, honradamente, que nosso esforço havia criado algo novo, que pelo menos a elevação de
nossos ideais merecia algum respeito. Assombrados, contemplamos então como se coligavam para
arrebatar nossa conquista os mais descarnados
reacionários.
Não podemos deixar entregue nossa sorte nas mãos
da tirania de uma seita religiosa, nem o jogo de interesses egoístas. Querem que sejamos sacrificados
em função deles. Aquele que se intitula reitor da
Universidade de São Carlos disse sua primeira palavra: “prefiro antes que renunciar, que fique coberta
de cadáveres dos estudantes”. Palavras cheias de
piedade e de amor, de reverencial respeito à disciplina; palavras dignas do chefe de uma casa de altos
estudos. Não invoca ideais, nem propósitos de ação
cultural. Sente-se custodiado pela força e se levanta
soberbo e ameaçador. Harmoniosa lição que acaba
de dar à juventude do primeiro cidadão de uma democracia universitária! Acolhamos a lição, companheiro de toda a América; talvez tenha o sentido de
um presságio glorioso, a virtude de uma convocação
à luta suprema pela liberdade; ela nos mostra o verdadeiro caráter da autoridade universitária, tirânica
e obsessiva, que vê em cada petição uma ofensa e em
cada pensamento uma semente de rebelião.
A juventude já não pede. Exige que seja reconhecido
seu direito a exteriorizar esse pensamento próprio
dos corpos universitários por meio de seus representantes. Está cansada de suportar aos tiranos. Se
foi capaz de realizar uma revolução nas consciências, não pode ser desconhecida sua capacidade de
intervir no governo de sua própria casa.
A juventude universitária de Córdoba, por intermédio de sua Federação, saúda aos companheiros de
toda a América e os convida a colaborar na construção da liberdade que se inicia.
21 de junho de 1918.
Enrique F. Barros, Horacio Valdés, Ismael C. Bordabehere, presidente. Gurmensindo Sayago, Alfredo
Castellanos, Luis M. Méndez, Jorge L. Bazante, Ceferino Garzón Maceda, Julio Molina, Carlos Suárez
Pinto, Emilio R. Biagosch, Angel J. Nigro, Natalio J.
Saibene, Antonio Medina Allende, Ernesto Garzón.
1
Manifesto da Federação Universitária de Córdoba – 1918.
encarte CLACSO - Cadernos da América Latina III
A reforma universitária
tas e agentes mais entusiasmados da unidade política da América Latina são, em grande medida, os
antigos líderes da reforma universitária que conservam dessa maneira sua vinculação continental, outro dos sinais da realidade da “nova geração”.
1
Por José Carlos Mariátegui2
Ideologia e reivindicações
O
movimento estudantil, que se iniciou com
a luta dos estudantes de Córdoba pela re
forma da universidade, assinala o nasci
mento da nova geração latino-americana.
A inteligente compilação de documentos da reforma universitária na América Latina feita por Gabriel
del Mazo, obedecendo a uma encomenda da Federación Universitaria de Buenos Aires, oferece uma
série de testemunhos genuínos da unidade espiritual desse movimento.3 O processo de agitação universitária na Argentina, Uruguai, Chile, Peru etc.
remete-se à mesma origem e ao mesmo impulso. A
faísca da agitação é quase sempre um incidente secundário; mas a força com que o propaga e dirige
vem desse estado de ânimo, dessa corrente de idéias
que se designa – não sem risco de equívocos – com o
nome de “novo espírito”. Por isso, a ânsia da reforma
apresenta-se, com características idênticas, em todas as universidades latino-americanas. Os estudantes de toda a América Latina, ainda que levados
à luta por protestos peculiares de sua própria vida,
parecem falar a mesma linguagem.
Da mesma maneira, esse movimento apresenta-se
intimamente conectado com a vigorosa agitação do
pós-guerra.4 As esperanças messiânicas, os sentimentos revolucionários, as paixões místicas próprias do pós-guerra, repercutiam particularmente
na juventude universitária da América Latina. O
conceito difuso e urgente de que o mundo entrava
em um novo ciclo despertava nos jovens a ambição
de cumprir uma função heróica e realizar uma obra
histórica. E, como é natural, na constatação de todos os vícios e falhas do regime econômico social
vigente, a vontade e o desejo de renovação encontravam estímulos poderosos. A crise mundial convidava os povos latino-americanos, com uma urgência insólita, a revisar e resolver seus problemas
de organização e crescimento. Logicamente, a nova
geração sentia esses problemas com uma intensidade e uma paixão que as gerações anteriores não tinham conhecido. E enquanto a atitude das gerações
passadas, como correspondia ao ritmo de sua época, tinha sido evolucionista – às vezes um evolucionismo completamente passivo – a atitude da nova
geração era espontaneamente revolucionária.
A ideologia do movimento estudantil careceu, no
começo, de homogeneidade e autonomia. Refletia
em demasia a influência da corrente wilsoniana.5
As ilusões democrático-liberais e pacifistas que a
prédica de Wilson pôs em moda em 1918-1919 circulavam entre a juventude latino-americana como se fosse uma boa moeda revolucionária. Esse
fenômeno se explica perfeitamente. Também na
Europa, não apenas as esquerdas burguesas como
também os velhos partidos socialistas reformistas
aceitaram como novas as idéias democrático-liberais eloqüente e apostolicamente remoçadas pelo
presidente estadunidense.
Apenas com a colaboração cada dia mais estreita
com os sindicatos operários, com a experiência de
combate contra as forças conservadoras e a crítica
concreta dos interesses e princípios em que se
apóia a ordem estabelecida, é que as vanguardas
universitárias podiam alcançar uma orientação
ideológica definida.
Essa é a opinião dos mais autorizados porta-vozes
da nova geração estudantil, a julgar pelas origens e
as conseqüências da luta pela reforma. Todos concordam que esse movimento, que mal acaba de for-
mular seus programas, ainda estava muito longe de
se propor objetivos exclusivamente universitários e
que, por sua relação estreita e crescente com o avanço das classes trabalhadoras e a diminuição dos velhos privilégios econômicos, não pode ser entendido se não como um dos aspectos de uma profunda
renovação latino-americana. Dessa maneira, Palcos, aceitando integralmente as conseqüências últimas da luta travada, sustenta que, enquanto o atual sistema social subsistir, a reforma não poderá
tocar nas raízes recônditas do problema educacional. Terá alcançado seu objetivo – agrega – se depura as universidades dos maus professores, que usam
seu posto como um emprego burocrático; se permitir – como acontece em outros países – que tenham
acesso ao professorado todos aqueles que sejam capazes de sê-lo, sem excluí-los por suas convicções
sociais, políticas ou filosóficas; se neutralizar em
parte, no mínimo, o chauvinismo e fomentar nos
educandos o hábito das pesquisas e o sentimento
da própria responsabilidade. No melhor dos casos,
a reforma realmente entendida e aplicada pode
contribuir para evitar que a universidade seja, como é fato, em todos os países, como o foi na própria
Rússia – país onde havia, entretanto, como em nenhuma outra parte, uma intelectualidade avançada
que na hora da ação sabotou escandalosamente a
revolução – uma Bastilha da reação, esforçando-se
para ganhar as alturas do século.6
Não são rigorosamente coincidentes – e isso é lógico
– as diferentes interpretações do significado do movimento. Mas, com exceção das provenientes do setor reacionário, interessado em limitar o alcance da
reforma, circunscrevendo-a à universidade e ao ensino, todas as que se inspiram sinceramente em seus
verdadeiros ideais a definem como afirmação do “espírito novo”, entendido como espírito revolucionário. Desde seus pontos de vista filosóficos, Ripa Alberdi se inclinava a considerar essa afirmação como
uma vitória do idealismo novecentista sobre o positivismo do século 19. “O renascimento do espírito argentino – dizia – foi feito por virtude das gerações
mais jovens, que ao cruzar pelos campos da filosofia
contemporânea sentiram diante de si o esvoaçar das
asas da liberdade”. Mas o próprio Ripa Alberdi percebia que o objeto da reforma era capacitar a universidade para o cumprimento “dessa função social que é
a própria razão de sua existência”.7
Júlio V. Gonzáles, que reuniu em dois volumes seus
escritos da campanha universitária, chega a conclusões mais precisas: “A reforma universitária – escreve – registra o aparecimento de uma nova geração que chega desvinculada da anterior, que traz
sensibilidades diferentes e ideais próprios e uma diferente missão a cumprir. Não é aquela um fato simples ou isolado, se tal fora; está vinculada na razão
de causa e efeito com os últimos acontecimentos do
qual nosso país foi o teatro, como conseqüência dos
produzidos no mundo. Significaria incorrer em
uma apreciação errônea até o absurdo considerar a
reforma universitária como um problema das salas
de aula e, ainda assim, radicar toda sua importância
nos efeitos que pudesse ter exclusivamente nos círculos de cultura. Erro semelhante levaria, sem remédio, a uma solução do problema que não corresponderia à realidade do que está colocado. Digamos
então claramente: a reforma universitária é parte
de uma questão que o desenvolvimento material e
moral de nossa sociedade impôs à raiz da crise produzida pela guerra”.8 Gonzáles assinala em seguida
a guerra européia, a revolução russa e a chegada ao
poder do radicalismo como os fatores decisivos da
reforma na Argentina.
José Luis Lanuza indica outro fator: a evolução da
classe média. A maioria dos estudantes pertence a
todas as graduações dessa classe. Muito bem. Uma
das conseqüências sociais e econômicas da guerra
é a proletarização da classe média. Lanuza defende
a seguinte tese: Um movimento estudantil coletivo
de projeções sociais tão vastas como a reforma universitária não poderia ter irrompido antes da guerra européia. A necessidade de renovar os métodos
de estudo era sentida, e ficava claro o atraso da universidade diante das correntes contemporâneas do
pensamento universal desde a época de Alberdi, na
qual começa a se desenvolver nossa embrionária
indústria. Mas então a classe média universitária
mantinha-se tranqüila com seus títulos de privilégio. Infelizmente para ela, essa folga diminui na
medida em que cresce a grande indústria, se acelera a diferenciação das classes e acontece a proletarização dos intelectuais. Os professores, os jornalistas e empregados do comércio se organizam
sindicalmente. Os estudantes não podiam escapar
desse movimento geral.9
Mariano Hurtado de Mendoza concorda substancialmente com as observações de Lanuza. A reforma universitária – escreve – é antes de mais nada e,
sobretudo um fenômeno social que é o resultado de
outro mais geral e extenso, produzido como conseqüência do grau de desenvolvimento econômico da
nossa sociedade. Seria então um erro estudá-la unicamente por sua cara universitária, como problema de renovação da direção da universidade, ou
por sua cara pedagógica, como ensaio de aplicação
de novos métodos de pesquisa para aquisição da
cultura. Também incorreríamos em erro se a considerássemos como o resultado exclusivo de uma
corrente de idéias novas provocadas pela grande
guerra e pela Revolução Russa, ou como a obra da
nova geração que ‘chega desvinculada da anterior,
que traz sensibilidade nova e ideais próprios e uma
diferente missão a cumprir’.
E, precisando seu conceito, agrega mais adiante: A
reforma universitária não é mais que uma conseqüência do fenômeno geral de proletarização da
classe média que obrigatoriamente acontece quando uma sociedade capitalista chega a determinadas condições de seu desenvolvimento econômico.
Isto significa que se produz na nossa sociedade o
fenômeno da proletarização da classe média e que
a universidade, quase totalmente povoada por esta,
foi a primeira a sofrer seus efeitos, porque era o tipo
ideal de instituição capitalista.10
Um fato uniformemente observado no calor da reforma foi o da formação de núcleos de estudantes
que, em estreita solidariedade com o proletariado, se
entregaram à difusão de idéias sociais avançadas e
ao estudo das teorias marxistas. O surgimento das
universidades populares, concebidas com um conceito muito diferente do que inspirava em outras
épocas as tímidas tentativas de extensão universitária, aconteceu em toda a América Latina numa coincidência visível com o movimento estudantil. Saíram da universidade, em todos os países
latino-americanos, grupos de estudiosos de economia e sociologia que colocaram seus conhecimentos
a serviço do proletariado, dotando este, em alguns
países, de uma direção intelectual da qual geralmente careciam antes. Finalmente, os propagandis-
Quando se confronta esse fenômeno com o das
universidades da China e do Japão, comprova-se
sua rigorosa justificação histórica. No Japão, a universidade foi a primeira cátedra do socialismo. Na
China, por razões óbvias, teve uma função ainda
mais ativa na formação de uma nova consciência
nacional. Os estudantes chineses compõem a vanguarda do movimento nacionalista revolucionário
que, dando nova alma e nova organização à imensa
nação asiática, lhe assegura uma influência considerável nos destinos do mundo.
Sobre esse ponto concordam os observadores ocidentais com autoridade intelectual mais reconhecida.
Mas não proponho, aqui, estudar todas as conseqüências e relações da reforma universitária com os
grandes problemas da evolução política da América
Latina. Constatada a solidariedade do movimento
estudantil com o movimento histórico geral desses
povos, tratemos de examinar e definir seus traços
próprios e específicos.
Quais são as propostas ou postulados
fundamentais da reforma?
O Congresso Internacional de Estudantes do México, de 1921, propugnou: 1º a participação dos estudantes no governo das universidades; 2º a implantação da docência livre e assistência livre. Os estudantes
do Chile declararam sua adesão aos seguintes princípios: 1º autonomia da universidade, entendida como instituição dos alunos, professores e diplomados; 2º reforma do sistema docente, mediante o
estabelecimento da docência livre e, como conseqüência, livre assistência dos alunos às cátedras, de
maneira que, no caso de dois professores ensinarem
a mesma matéria, a preferência do alunado consagre
o melhor; 3º revisão dos métodos e do conteúdo dos
estudos; e 4º extensão universitária, vista como meio
de vinculação efetiva da universidade com a vida social. Os estudantes de Cuba formularam, em 1923,
da seguinte forma suas reivindicações: a) uma verdadeira democracia universitária; b) uma verdadeira renovação pedagógica e científica; c) uma verdadeira popularização do ensino. Os estudantes da
Colômbia exigiram, em seu programa de 1924, a organização da universidade sobre bases de independência, de participação dos estudantes em seu governo e de novos métodos de trabalho. “Que ao lado
da cátedra – diz esse programa – funcione o seminário, sejam abertos cursos especiais e se criem revistas. Que ao lado do professor titular existam professores agregados e que a carreira do magistério exista
sobre bases que assegurem seu futuro e dêem acesso
a quantos sejam capazes de ter uma cadeira na universidade”. Os estudantes de vanguarda da universidade de Lima, leais aos princípios proclamados em
1919 e 1923, sustentaram em 1926 as seguintes plataformas: defesa da autonomia das universidades;
participação dos estudantes na direção e orientação
de suas respectivas universidades ou escolas especiais; direito de voto dos estudantes na eleição dos
reitores das universidades; voto de honra dos estudantes no provisionamento das cátedras; incorporação à universidade dos valores extra-universitários;
socialização da cultura: universidades populares etc.
Os princípios sustentados pelos estudantes argentinos são, provavelmente, mais conhecidos, por sua extensa influência no movimento estudantil da América desde seu primeiro enunciado na Universidade de
Córdoba. Praticamente, além disso, são, em grandes
traços, os mesmos que proclamam os estudantes das
demais universidades latino-americanas.
O resultado dessa rápida revisão é que devem ser
colocados como postulados cardeais da reforma
universitária: 1º a intervenção dos alunos no gover-
no das universidades e 2º o funcionamento de cátedras livres, ao lado das oficiais, com direitos idênticos, ocupadas por professores de capacidade
reconhecida na matéria. O sentido e a origem dessas duas reivindicações nos ajudam a esclarecer o
significado da reforma.
Política e
ensino universitário
na América Latina
O regime econômico e político determinado pelo
predomínio das aristocracias coloniais – que ainda
subsiste em alguns países hispano-americanos,
ainda que em dissolução progressiva e irreparável –
colocou por muito tempo as universidades da América Latina sob a tutela dessas oligarquias e de sua
clientela. Convertido o ensino universitário em um
privilégio do dinheiro, se não da casta, ou pelo menos de uma categoria social absolutamente ligada
aos interesses de uma ou outra, as universidades tiveram inevitavelmente uma tendência para a burocratização acadêmica. Esse era um destino do qual
não podiam escapar nem mesmo sob a influência
episódica de alguma personalidade de exceção.
O objetivo das universidades parecia ser, principalmente, o de prover doutores e rábulas para a classe
dominante. O desenvolvimento incipiente e o mísero alcance da educação pública fechavam os graus
superiores do ensino para as classes pobres (O próprio ensino elementar não chegava – como ainda
não chega agora – se não a uma parte do povo.) As
universidades, açambarcadas intelectual e materialmente por uma casta geralmente desprovida do
impulso criador, não podiam nem mesmo aspirar a
uma função mais alta de formação e seleção de capacidades. Sua burocratização as conduzia, de modo fatal, ao empobrecimento espiritual e científico.
Esse não era um fenômeno exclusivo nem peculiar
do Peru. Entre nós prolongou-se mais pela sobrevivência obstinada de uma estrutura econômica semifeudal. Mas, mesmo nos países que se industrializaram e democratizaram mais rapidamente,
como a república Argentina, foi na universidade
onde chegou mais tarde essa corrente de progresso
e transformação. O Dr. Florentino V. Sanguinetti
assim resumiu a história da Universidade de Buenos Aires antes da reforma: “Durante a primeira
parte da vida argentina, moveu modestas iniciativas de cultura e formou núcleos urbanos que proporcionou à sua elite o pensamento da unidade política e da ordem institucional. Sua provisão
científica era muito escassa, mas bastava para as
necessidades do meio e para impor as conquistas
lentas e surdas do gênio civil. Afirmada mais tarde
nossa organização nacional, a universidade aristocrática e conservadora criou um novo tipo social: o
doutor. Os doutores constituíram o patriciado da
segunda república, substituindo pouco a pouco as
dragonas e os caciques rurais no manejo dos negócios, mas saíam das classes sem a hierarquia intelectual necessária para agir de modo orgânico no
ensino ou para dirigir o improvisado despertar das
riquezas proporcionadas pelos pampas e pelo trópico. No decorrer dos últimos cinqüenta anos, nossa nobreza agropecuária foi deslocada, primeiro,
do campo econômico pela concorrência progressista do imigrante, tecnicamente mais capaz; e, depois, do campo político pelo surgimento dos partidos de classe média. Necessitando então de um
cenário para manter sua influência, apoderou-se
da universidade que logo virou um órgão de casta,
cujos diretores vitalícios se revezavam nos cargos
de maior destaque e cujos docentes, escolhidos por
recrutamento hereditário, impuseram uma verdadeira servidão educacional de marca estreita e sem
infiltrações renovadoras”.11
O movimento da reforma tinha logicamente que
atacar, antes de mais nada, essa estratificação conservadora das universidades. O preenchimento arbitrário das cátedras, a manutenção de professores
ineptos, da exclusão do ensino dos intelectuais independentes e renovadores, apresentavam-se claramente como simples conseqüências da docência
oligárquica. Esses vícios não podiam ser combatidos a não ser por meio da intervenção dos estudantes no governo das universidades e pelo estabelecimento da cátedra e da assistência livres, destinadas
a assegurar a eliminação dos maus professores
através de uma concorrência leal com os homens
mais aptos para exercer seu magistério.
Toda a história da reforma invariavelmente registra
estas duas reações das oligarquias conservadoras:
1º sua solidariedade recalcitrante para com os professores incompetentes, rejeitados pelos alunos,
quando havia um interesse familiar oligárquico; e
2º sua resistência, não menos tenaz, à incorporação
à docência de valores não universitários ou simplesmente independentes. As duas reivindicações
substantivas da reforma resultaram assim inconfundivelmente dialéticas, pois não partem de concepções doutrinárias puras, mas simplesmente das
lições reais e concretas da ação estudantil.
A maioria dos docentes adotou uma atitude de intransigência rígida e impermeável contra os grandes
princípios da reforma universitária, o primeiro dos
quais tinha sido proclamado teoricamente desde o
Congresso Estudantil de Montevidéu e, tanto na Argentina quanto no Peru, conseguiram o reconhecimento oficial devido a circunstâncias políticas favoráveis, que, quando se modificaram, levaram ao
início, por parte dos elementos conservadores da docência, de um movimento de reação, que, no Peru, já
anulou praticamente todos os triunfos da reforma,
enquanto na Argentina encontra a oposição vigilante do alunado, como se demonstra com as agitações
recentes contra as tentativas reacionárias.
Mas a realização dos ideais da reforma não é possível sem a total e leal aceitação dos dois princípios
aqui esclarecidos. O voto dos alunos – ainda que
não esteja destinado senão a servir de contraponto
moral da política dos professores – é o único impulso de vida, o elemento de progresso isolado da universidade, sem o qual, por outro lado, prevaleceriam sem remédio as forças da estagnação e da
regressão. Sem essa premissa, o segundo postulado
da reforma – as cátedras livres – não pode absolutamente ser alcançado. Mais ainda, o “recrutamento
hereditário”, de que nos fala com exatidão tão evidente o Dr. Sanguinetti, volta a ser o sistema de recrutamento dos novos catedráticos. E o próprio
progresso científico perde seu estímulo principal,
já que nada empobrece tanto o nível de ensino e da
ciência do que a burocratização oligárquica.
1
Trecho do livro Sete ensaios de interpretação da realidade peruana, traduzido por Felipe José Lindoso, a ser lançado brevemente
por CLACSO e Expressão Popular.
2
José Carlos Mariátegui (1894 - 1930) Jornalista, escritor indigenista e marxista peruano. Impulsionou a fundação da Confederação Geral de Trabalhadores do Peru e fundou o Partido Comunista Peruano. Editor de várias revistas operárias e da revista
Amauta.
3
Publicações do Círculo Médico Argentino e Centro de Estudiantes de Medicina. La reforma universitaria, 6 tomos, 1926-1927.
4 I Guerra Mundial. (N.T.)
5 Refere-se ao presidente Wilson, dos EUA, que lançou a idéia da
Liga das Nações como meio de resolver conflitos e promover a paz
e a “felicidade dos povos”. (N.T.)
6 La reforma universitaria, tomo I, p. 55.
7 Idem, p. 44.
8 Idem, pp. 38 e 86.
9 Idem, p. 125.
10 Idem, p. 130.
11 Idem, pp. 140-141.
encarte CLACSO - Cadernos da América Latina III
Novidades Editoriais Clacso
América Latina:
cidade, campo e
turismo.
A Pobreza do
Estado
O novo desafio
imperial
Reconsiderando o papel
do Estado na luta contra a
pobreza global
Amália Lemos,
Alberto Cimadamore,
Mônica Arroyo e
Hartley Dean e
Leo Panitch e
Maria Silveira
Jorge Siqueira
Colin Leys
Num período no qual uma profusão de
A pobreza tem estado presente em toda
Inovadores ensaios acerca do caráter singular
metáforas sobre a realidade pretende
a história da humanidade.
do novo império estadunidense e acerca da
substituir os conceitos centrais da
Porém, na atualidade existem os recursos
nova economia do imperialismo desenvolvem
Geografia, um enfoque substantivo
para erradicar a pobreza extrema
e desafiam teorias marxistas. Dentre muitos
faz-se, mais que nunca, necessário para
em um lapso razoável. Os discursos
temas, estes ensaios exploram a invasão do
repensar nossas teorias e formulas novas
predominantes nas organizações
Iraque, a moralidade do assim chamado
interpretações. A pobreza e a injustiça não
internacionais, os governos e os povos
humanismo militar por trás dela, os fatos
param de crescer na América Latina.
expressam a necessidade e a vontade que
relativos ao poder militar e planejamento
Reverter essa situação pede nosso
aparentemente existe para erradicar a
estratégico estadunidense, a dependência dos
compromisso com a análise da história
pobreza. Quais são os fatores que estão
EUA do petróleo importado, o imperialismo
passada e presente e com a imaginação
impedindo o sucesso de uma meta tão
ambiental, e as contradições entre globalização
de caminhos para o futuro.
amplamente aceita?
e desenvolvimento na nova ordem imperial.
www.expressaopopular.com.br
Biblioteca Virtual Clacso
Com o objetivo de promover e facilitar o acesso aos resultados das pesquisas dos Centros Membros via Internet, o CLACSO oferece
livre acesso à sua Biblioteca Virtual de Ciências Sociais, que recebe por mês mais de 300.000 consultas de textos.
Os serviços incluem acesso à Sala de Leitura com 9.000 textos completos de livros, artigos, palestras e documentos de trabalhos publicados pela rede CLACSO e outras instituições; bases de dados sobre a produção acadêmica dos Centros Membros e registros bibliográficos de suas publicações e pesquisas e também de seus pesquisadores, com e-mail disponível para contato; e links que dão acesso
a outras bibliotecas virtuais com mais de 100.000 textos completos de Ciências Sociais.
www.biblioteca.clacso.edu.ar