Busca por Pandária - Blizzard Entertainment

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Busca por Pandária - Blizzard Entertainment
BLIZZARD ENTERTAINMENT
Busca por Pandária
Parte 3 de 4
Por Sarah Pine
Busca por Pandária – Parte 3 de 4
Busca por Pandária: Parte 3
O vapor da chaleira enchia o ar com cheiro de menta, lembrando Chon Po das vezes em que
Shen-zin Su nadava até latitudes mais altas e os dias ficavam mais curtos e frios. Para vencer as baixas
temperaturas, Xiu Li fervia a água do chá, e os dois pandarens aconchegavam as patas ao redor das
xícaras de cerâmica e trocavam histórias, cobrindo-se com mantos e o que fosse possível para se
manterem confortáveis. Naquele momento não era Xiu Li quem servia o chá, mas a mãe, Mei.
— Você tem estado tão cansado, Po — comentou ela.
Chon Po ergueu a xícara de chá, depois a pousou de novo. Mei se sentou à mesa no mesmo
lugar em que Li Li estava na noite em que ele perdeu a cabeça com a filha e Chen; na noite seguinte, Li Li
fugiu com a pérola, e desde então as únicas notícias que Po tinha eram cartas vagas. A saudade da filha
o corroía por dentro.
— Estou preocupado com Li Li — disse Mei. — E com Chen.
Mei bebericou o chá. O pelo acinzentado que emoldurava seu rosto combinava perfeitamente
com os cabelos grisalhos, penteados para trás e presos numa trança. Quando seus olhos se voltaram
para Chon Po, ele sentiu uma pontada no estômago. Ela tinha os olhos iguais aos de Xiu Li. Iguais aos de
Li Li.
— É natural que você esteja preocupado com sua família.
— O que fiz errado? — soltou abruptamente Chon Po. Mei ergueu as sobrancelhas e deu outro
gole no chá.
— Você vai ter que explicar isso melhor.
— Eu falhei. Minha família está despedaçada, e apenas meu filho permanece comigo. Minha
filha me odeia. — Sua voz revelava raiva e frustração. Mei meneou a cabeça negativamente.
— Li Li não odeia você, Po. Você não está fazendo a pergunta certa.
— Que pergunta eu deveria fazer, então?
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Busca por Pandária – Parte 3 de 4
— Você deveria estar se perguntando se crê que a morte do corpo é uma tragédia maior que a
morte do espírito.
Chon Po piscou, confuso.
Mei deitou a xícara na madeira da mesa e dobrou as patas.
— Quando Xiu Li morreu, você perdeu uma esposa. Eu, uma filha. Sei o que você teme, pois
também passei por isso. — O coração de Chon Po quase saltou pela boca. — Minha filha adorava os
barcos de pesca. Ela amava o mar, o modo como o trabalho se dividia entre momentos de lazer, atenção
e aventura. E sim, ela também adorava o risco.
Os olhos de Mei desviaram-se de Chon Po. Eles agora pareciam atravessá-lo, mirar alguma
memória perdida como se estivesse no horizonte.
— Eu me lembro do rosto dela se iluminando no caminho até o barco. Afastar-se da praia e
perder-se em mar aberto todos os dias fazia o coração dela cantar. — Os olhos de Mei recuperaram o
foco. — Você tiraria isso dela, se pudesse mantê-la por mais tempo?
Chon Po apenas encarou o pires e a xícara nas mãos e respondeu:
— Forte Bô foi atrás de Li Li no meu lugar e morreu por isso...
— A Li Li ou o Chen contaram o que Bô disse antes de morrer, Po?
Seus olhos ergueram-se para encarar Mei novamente. A pergunta inesperada o fez estremecer.
— Não.
— O último sentimento que Bô expressou foi de gratidão por ter acompanhado Li Li em suas
viagens. Ele se sentia iluminado, e disse que se tivesse que fazer tudo de novo, faria exatamente a
mesma coisa. Ele não se arrependia de nada.
Chon Po remoeu a ideia por um instante.
— Isso é verdade?
— Li Li e Chen me contaram. Não acredito que estivessem mentindo. Os corações de ambos
estavam despedaçados por causa de Bô. — Mei esticou o braço e pousou uma das patas enrugadas
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Busca por Pandária – Parte 3 de 4
sobre a pata de Chon Po. — Po, é impossível dobrar Li Li à sua vontade. Você sabe disso. Ela já o
desafiou duas vezes. Li Li é o que é, uma lutadora, tanto quanto você. A sede de conhecer o mundo é
parte de quem somos, e nosso lar em Shen-zin Su é prova disso. Mas ela nunca deixará de ser sua filha.
Mesmo que nunca volte, Li Li não está perdida.
— Só me preocupo com a segurança dela. — disse Chon Po, fechando os olhos.
— Ela saberá cuidar da própria segurança — respondeu Mei —, e da própria felicidade.
*
*
*
As dunas douradas passavam velozes sob seus pés, cada passo lançando-a metros adiante. O
poente brilhava à direita de Li Li, que percorria as montanhas irregulares na fronteira com Tanaris em
grande velocidade. A pandarena atravessou um pequeno oásis de cactos no sopé de uma encosta,
disparando por entre uma estreita passagem cortada entre as rochas de forma tão abrupta e precisa
que parecia ter sido entalhada por algum machado cósmico. Quatro estátuas, austeras e magníficas,
vigiavam a estrada. Uma tinha a aparência de uma mulher, as outras ostentavam intrincadas cabeças de
animais. Quando Li Li se aproximou, as estátuas esticaram as mãos, convidativas. Intrigada, a pandarena
caminhou lentamente em direção aos monólitos, mas o que ela viu foi uma mudança de atitude — com
um rosnado, os quatro exibiram garras tal qual foices e as apontaram ameaçadoramente para ela. A
boca da pandarena abriu-se e um grito irrompeu ao mesmo tempo em que as quatro estátuas fundiramse numa só e adquiriram outra forma: Chon Po, seu pai. A criatura continuava a avançar com as mesmas
intenções maléficas. Correr foi a primeira alternativa, mas as passadas ágeis que até há pouco lhe eram
tão fáceis falharam, atirando-a no chão. Li Li se viu avançando em câmera lenta, cada segundo levando
uma eternidade para passar. Quando a estrada ergueu-se para apoiar seus pés, a paisagem se liquefez,
transformando afloramentos rochosos cor de cobre num azul cor de safira. O mar remexido por uma
poderosa tempestade recebeu a pandarena, ondas do tamanho de Shen-zin Su fazendo com que ela
subisse e despencasse violentamente várias vezes. Suas patas batiam convulsivamente para mantê-la na
superfície, buscando o ar. Uma onda a carregou na crista, de onde foi possível ver de relance outra
pandarena que nadava na sua direção, perdida no mesmo oceano vil.
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Busca por Pandária – Parte 3 de 4
— Mama! — gritou Li Li.
Xiu Li chamou pela filha. Li Li esticou os dois braços em direção à mãe, esquecendo-se de nadar.
A onda que a fizera subir não seguiu em frente; em vez disso, quebrou sobre si mesma. Li Li inclinou o
corpo para frente, como a ponta de uma lança de água. As toneladas de água impulsionavam a
pandarena na direção da mãe em grande velocidade, num paredão de água tão eficaz quanto uma
tumba escavada por mãos mortais.
*
*
*
Algo molhado batendo contra a cabeça fez despertando Li Li lentamente. Quando tentou se
levantar, a pandarena perdeu o equilíbrio e caiu outra vez, derrubando caixas e esparramando os
equipamentos guardados.
— Li Li? — A voz preocupada de Chen a acalmou, sufocando o pânico que começava a se
instalar. — Você está bem?
Li Li se sentou lentamente, esfregando os olhos. Sua mente começava a separar a fantasia da
realidade. Ela estava numa carroça, atravessando Tanaris em uma caravana enânica que ia para Uldum.
— Sim — balbuciou ela, ainda um pouco zonza por causa do pesadelo. — Tive um sonho ruim.
— A imagem do rosto da mãe repleto de desespero invadiu seus pensamentos, forçando-a a se
encolher.
— Imaginei. Você pulava enquanto dormia. Até acertou um dos odres. — Chen levantou a
pequena bolsa de couro e mostrou a parte molhada, um pouco mais escura. Li Li pressionou a testa com
a palma e tentou fazer uma piada, mas não conseguiu.
— Sobre o que você estava sonhando? Quer falar sobre isso?
— Começou como a visão que a pérola me revelou em Geringontzan. Eu viajava por Tanaris, e lá
estavam o oásis, a passagem com as estátuas. Aí… — Li Li se perdeu em pensamentos. Chen esperou
pacientemente. — Aí virou um pesadelo. Eu estava… presa. Numa tempestade em alto mar.
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Busca por Pandária – Parte 3 de 4
Chen não pediu mais detalhes:
— Tudo bem, Li Li — disse. Sua mera presença deixava Li Li mais segura do que ela admitiria.
Os dois passaram pelo tecido que cobria a frente da carroça e subiram até o banco de madeira
de onde a condutora, Felyae, uma anã de cabelo cor de carvão, guiava o veículo. As areias douradas de
Tanaris estendiam-se em todas as direções. A única pausa do absoluto tédio visual era a cordilheira a
sudoeste, que surgira no horizonte alguns dias atrás, enquanto o grupo se embrenhava entre as dunas.
Saber que a caravana se aproximava dos limites do deserto era um raio de luz jogado nos corações de
todos, motivando-os a prosseguir com ânimo.
— Como tu tá, guria? —perguntou Felyae suavemente. — O sono que tu tirou não foi muito
tranquilo.
— Ela teve um pesadelo — respondeu Chen, antes que Li Li pudesse dizer algo.
— Bah, o calor do deserto deixa mesmo qualquer um jururu — respondeu a anã, batendo as
rédeas do camelo contra a coxa para enfatizar o que queria dizer. — Dá pesadelo e alucinação em
qualquer um.
Li Li jamais havia pensado nas visões da pérola como alucinações, mas as experiências das
últimas semanas a convenciam a repensar isso. Ao chegar a Geringontzan, sua esperança era contratar
um navio usando os contatos de Fátia e seguir com Chen para o sul, em busca de Pandária. Mas mesmo
com o auxílio de uma renomada pirata, encontrar um capitão disposto tinha sido uma tarefa impossível.
Outra vez ela se voltou para a pérola em busca de conselhos, e obteve como resposta a visão da trilha
que cortava Tanaris e cruzava as montanhas até dar em Uldum. Ela e Chen caíram na estrada, juntandose a um grupo de anões da Liga dos Exploradores.
— Mais um ou dois dias e chegamos à fronteira — comentou Felyae, quebrando o silêncio. —
Qual é o plano de vocês em Uldum?
— Ir até a cidade — respondeu Chen.
— Ah, Ramkahen?
— Hum, sim. Ramkaaa… hen. — Li Li tropeçou na pronúncia. Até agora ela sequer sabia o nome
da cidade. — A que fica à beira do lado. É essa?
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— Na margem norte — confirmou Felyae. — Batizada com o nome do povo que vivia lá.
— Os tol'vir — completou Chen. Felyae concordou a cabeça, o que o motivou a fazer mais
perguntas. — Você sabe muito sobre eles? Eu não sei quase nada.
— Bueno — começou Felyae pensativamente —, os tol'vir são meio que nem centauros, mas
com ancas de gatos, em vez de cavalos.
Chen inclinou o corpo na direção dela, visivelmente fascinado:
— Que incrível!
— Ô! — exclamou a anã. — Já estive em Ramkahen um punhado de vezes, hasta encontrei uma
meia dúzia deles. Os tol'vir se dividem em tribos, batizadas com os nomes das cidades em que vivem. Os
Ramkahen vivem em Ramkahen. As outras duas tribos, os Neferset e os Orsis, já eram.
— O que aconteceu com elas? — perguntou Li Li.
Felyae meneou a cabeça com tristeza:
— Guerra. Guerra civil. Agora só restaram os Ramkahen.
— Isso é horrível — disse Chen em voz baixa.
— Ô! —concordou Felyae. — Desde o fim da guerra não fui mais à cidade, então não posso dizer
o que vocês devem esperar, mas era um lugar judiado. Muito bonito, mas cheio de tristeza, de laço a
laço.
Os três permaneceram em silêncio, sacudindo ao sabor do vagão, vendo o camelo subir o aclive
da milésima duna. No topo, foi possível ouvir a voz de Dalgin, o líder da caravana:
— Já dá para ver o Vale Moitagulhas no rumo do sopé! Estamos muito perto de Uldum!"
A excitação de Dalgin era contagiante, e Li Li, Chen e Felyae sorriram, apesar da conversa
sombria que travavam antes. Li Li sentiu um estremecimento descer pela espinha, nervosa. Nenhuma
das cartas de Chen descrevia Uldum.
*
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Quando chegaram ao vale, o ânimo de todos melhorou. A areia deu lugar a um solo mais firme,
e a caravana acelerou. As montanhas hirtas se postavam logo à frente deles, revelando por uma estreita
fenda a passagem por onde a estrada se estendia.
Dalgin sempre indicava o que estava acontecendo:
— Estamos nos aprochegando da passagem! — gritou. — De noite chegamos no acampamento!
A caravana avançava resoluta na direção das muralhas, adentrando as sombras sem hesitação.
Adiante, as estátuas guardiãs flanqueavam os viajantes, ainda maiores que na visão de Li Li. Ao se
lembrar do sonho, a pandarena se encolheu, mas os monólitos permaneciam imóveis, imponentes, mas
inofensivos.
Os cascos dos camelos estalavam contra o pavimento de pedra, ecoando como sinos distantes.
Li Li virava a cabeça em todas as direções, desejando conhecer o povo que criara este lugar, ouvir suas
histórias, saber mais sobre sua arte. Chen surgiu em seu campo de visão portando a mesma expressão
de curiosidade e fascínio. Será que Liu Lang também tinha se sentido assim? Esse era o sentimento que
havia feito com que ele e os seguidores se dedicassem a uma vida de exploração? O coração da
pandarena se encheu de pesar quando veio o primeiro pensamento sobre o próprio pai. Ele não fazia
ideia do que estava perdendo.
A luz cobriu outra vez a caravana assim que a estreita passagem terminou. A estrada seguia para
oeste, na direção de uma imensa ruína. À frente, uma tumba era protegida por uma estátua meio
humana, meio felina, dotada de asas e segurando uma enorme espada. Li Li estava tão ocupada
encarando a criatura de pedra que mal percebeu quando a caravana parou repentinamente. Foi a voz de
Dalgin que a tirou do transe:
— Pelas barbas de Brann, o que significa isso? Por que você está apontando essas coisas pra
gente?
Li Li, Chen e Felyae olharam-se, desconfiados. Instintivamente, Li Li esticou o braço para pegar o
cajado na parte coberta da carroça, mas Chen a impediu e, com a outra pata, apontou paras as ruínas.
Os olhos dela acompanharam o movimento.
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Busca por Pandária – Parte 3 de 4
Várias criaturas se moviam em direção à caravana, seres de cor dourada-escura ou negros como
ônix, com torsos humanos, mas cabeças e pernas felinas. Li Li prendeu a respiração — tol'vir! —, mas a
excitação durou pouco. Justo os primeiros tol'vir que viam não tinham cara de muitos amigos e estavam
armados.
— Mas bah! —gritou Dalgin, caminhando na direção dos tol'vir. — Não fizemos nada!
O líder dos tol'vir, facilmente reconhecível pelas vestes e ornamentos sobre o peito e as costas,
deu um passo à frente. Numa das mãos, uma imensa lança sustentada sem esforço algum. Dalgin tinha a
metade da altura da criatura, talvez menos, o que aumentou a admiração que Li Li sentia por ele.
Principalmente pela coragem, ou talvez inconsequência.
— Vocês precisam nos acompanhar até a cidade de Ramkahen — disse o líder das criaturas —
para se explicar ao Rei Phaoris.
— Oigalê! Tu só pode estar brincando. A gente estava só dando uma olhada! — questionou
Dalgin. — Documentando umas coisas, fazendo anotações…
— Vocês serão escoltados até a cidade — repetiu o tol'vir, impassível. Dalgin balbuciou algo na
língua dos anões, enquanto Li Li, imaginando o que ele falara, divertia-se em silêncio. A caravana
avançou sob a escolta dos austeros tol'vir, que guiavam o grupo em silêncio na direção de Ramkahen.
*
*
*
O grupo entrou na cidade por um grande rio que cruzava um oásis. Li Li estava extasiada com o
lugar, imaginando a diversidade de vida que se nutria do mesmo rio em lugares totalmente diferentes
daquele. Palmeiras e samambaias com folhas enormes amontoavam-se na areia, projetando sombras
que serviam de abrigo para várias criaturas: sapos, rãs, lagartos e pássaros de pernas compridas. Era
incrível que um pequeno pedacinho de paraíso como aquele sobrevivesse em meio ao deserto
escaldante.
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As árvores ralearam subitamente. Quatro pilares de pedra erguiam-se da terra, e depois deles,
duas grandes estátuas com cabeça de águia guardavam a entrada da cidade. Ao sul, a superfície do Lago
Vir'naal brilhava como um campo de diamantes sob o sol inclemente.
Enfim, Ramkahen. Os tol'vir os conduziram para dentro da cidade, ordenando que as carroças
ficassem do lado de fora dos portões. Li Li tomou o cajado cautelosamente nas mãos enquanto
caminhava ao lado do maior dos homens-gato, mas nenhuma das criaturas prestou atenção.
Ramkahen certamente seria fascinante para os pandarens, se as circunstâncias fossem
diferentes. Mas, naquela situação, Li Li não conseguia notar a beleza do pavimento das ruas, ou como
eram bem acabados os toldos coloridos que ornavam todas as portas; nem ela nem Chen se sentiam
tranquilos o suficiente para extrair o melhor do lugar.
Enquanto o grupo avançava, uma movimentação anormal ficou evidente. Um grupo de tol'vir
estava reunido em círculo no centro da cidade, urrando e gritando nervosamente. Guardas
permaneciam em alerta em volta da enorme praça, observando a turba, esperando qualquer indício de
comportamento potencialmente perigoso.
— O que está havendo? — Chen perguntou em voz alta.
Uma enorme construção se avultava ao norte da praça, exibindo uma escadaria larga que levava
a um terraço elevado. Cinco tol'vir agrilhoados postavam-se nos degraus, escoltados por outros três;
uma das escoltas tinha o rosto completamente coberto, portando uma máscara magnífica. À distância,
Li Li teve dúvidas, mas a pele dos prisioneiros parecia de alguma maneira diferente da pele dos outros.
Ela apertou os olhos, tentando ver melhor.
Um dos tol'vir que escoltavam os prisioneiros pediu silêncio à multidão.
— O Rei Phaoris dirige-se a vocês! Calem-se e ouçam!
A multidão aquietou-se. O tol'vir mascarado — o Rei Phaoris — falou, mas não se dirigia ao povo
reunido, e sim aos prisioneiros. Sua voz potente ecoava nos quatro cantos da praça.
— Vocês, os últimos Neferset, são acusados de conluio com o dragão Asa da Morte; acusados de
aceitar sua oferta de reverter a maldição da carne em troca de lealdade a ele e seu aliado, o lorde
elemental do ar Al'Akir; acusados de usar o poder fornecido por eles para atacar o próprio povo…
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— Tio Chen, o que é maldição da carne? — sussurrou Li Li.
— Não sei — respondeu ele, também mantendo a voz muito baixa.
— Ela só afeta criações dos titãs — respondeu Felyae em voz baixa, de pé ao lado deles. Os dois
pandarens piscaram, surpresos. — Os titãs fizeram a maioria das criaturas deles com pedra, e algumas
outras usando outros meios mecânicos, para que cumprissem as tarefas sem que se deteriorassem ou
enfraquecessem. Mas umas outras criaturas com baita poder mágico e baita maldade, cheias de
querelas com os titãs, sabotou as criações transformando os corpos delas em carne, feito as outras
criaturas de Azeroth.
— Como você sabe de tudo isso? — Li Li falava bem baixinho, e Felyae meio sorriu, meio
contorceu o rosto.
— Porque ela atinge os anões. Já fomos criaturas de pedra, criadas pelos próprios titãs.
Estava estampado no rosto de Felyae que ela não sabia exatamente como se sentia sobre ser
feita de carne. Li Li se manteve em silêncio, pensando sobre a Cervafest que conheceu no tempo em que
passou em Altaforja, e achou que a festa certamente não seria tão alegre e animada se os anões ainda
mantivessem sua estrutura rochosa. A pandarena não conseguiu evitar uma pontinha de satisfação ao
saber que os anões eram criaturas de carne e osso, como ela própria.
— Então os tol'vir devem ter sido criados pelos titãs — comentou Chen. Felyae concordou.
Do topo das escadas, o Rei Phaoris encerrava seu discurso. Li Li tinha perdido a segunda metade
inteira.
—… o Alto Conselho discutirá a questão até o fim do dia de hoje e pelo dia de amanhã. No dia
seguinte, seus destinos serão decididos. Se algum de vocês tem mais algo a dizer, a hora é agora!
— Matem os prisioneiros! — Um gritou emergiu da multidão.
— Façam os traidores sofrer! — gritou outra voz.
— As deliberações terão início agora — dirigiu-se o Rei Phaoris à turba enraivecida. — Qualquer
cidadão que deseje expressar seus argumentos quanto à situação, deve falar diretamente ao conselho.
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Busca por Pandária – Parte 3 de 4
Os prisioneiros Neferset foram levados por um grupo de soldados ao som de gritos e vaias da
turba. O Rei Phaoris e seus companheiros entraram no magnífico prédio e desapareceram. A multidão
começou a se dispersar lentamente, e ainda era possível ouvir murmúrios raivosos em determinados
pontos. Os tol'vir que acompanhavam Li Li, Chen e os anões, os fizeram andar até a escadaria, para
dentro do enclave do rei.
*
*
*
O grupo foi levado até o Rei Phaoris, que os observou por longos minutos antes de falar.
— Meus guardas os trouxeram a mim por alguma razão — observou friamente. — O que fazem
aqui?
Dalgin deu um passo adiante:
— Nós somos arqueólogos — respondeu, estufando ligeiramente o peito cheio de orgulho. —
Da Liga dos Exploradores de Altaforja. Estamos aqui para aprender o que der das ruínas ancestrais de
Uldum.
Li Li podia jurar que viu Phaoris olhar de lado, impaciente, mas com a máscara era impossível ter
certeza. O suspiro, contudo, ela ouviu.
— Uma expedição de gnomos andou revirando as ruínas do sul, e todos os membros
enlouqueceram — anunciou o rei com a voz transbordando irritação. — É verdade que estrangeiros
como vocês forneceram um auxílio inestimável durante a guerra recente, mas lembre-se de que são
convidados em nossas terras. Algumas coisas estão melhores enterradas. Permaneçam na cidade, por
ora, mas não ponham nossa hospitalidade à prova. Podem ir.
Os anões saíram em fila, resmungando. Li Li ouviu expressões como "obstrução ao
academicismo" e "queimar pólvora em chimango" e precisou conter o riso. Chen vinha logo atrás,
percorrendo a sala toda com os olhos, extasiado com a arquitetura e a decoração do lugar. Diminuindo
o passo para caminhar com o tio, a pandarena sorriu.
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Busca por Pandária – Parte 3 de 4
Vendo que ficavam para trás, os dois pandarens correram para alcançar os anões, que já
procuravam pela taverna ou equivalente de Ramkahen mais próxima. No instante em que passava pela
ombreira da porta, Chen foi atropelado por um tol'vir que corria para dentro do prédio.
— Rei Phaoris! — o tol'vir berrava. — Preciso falar com Vossa Majestade e o Alto Conselho.
O Rei bufou escancaradamente:
— Já ouvimos o que você tem a dizer, Menrim.
— Por favor, por favor — repetia Menrim —, ouça o que tenho a dizer. Os prisioneiros Neferset
merecem misericórdia…
— Eu já sabia que você diria isso — desdenhou um dos membros do conselho. O Rei Phaoris
ergueu a mão, ordenando silêncio.
— Menrim, eu sei que você se preocupa com os destinos que daremos a eles. O Alto Conselho
garantirá que a justiça seja feita, da maneira como for.
— Eles iniciaram uma guerra e foram derrotados. Já não é o bastante? Temos que responder
sangue com sangue?
Outro tol'vir balbuciou no fundo da sala algo que soou como um contundente "Sim."
Li Li e Chen correram para fora da construção, esgueirando-se enquanto as atenções de todos
estavam voltadas para Menrim. Enquanto hesitavam na praça, sem saber para onde ir, Menrim saiu pelo
topo das escadas arrastando as patas cor de areia. O abatimento transparecia em tudo nele, tocando o
coração de Chen. Num impulso, o pandaren decidiu falar com o tol'vir solitário:
— Ouvi por acaso o que você disse ao rei. Você tem muita coragem. Não é fácil advogar
misericórdia aos que lhe fizeram mal.
As palavras do estranho surpreenderam Menrim. Seus olhos miraram os dois pandarens,
obviamente longe de casa. Sua boca continuava sem dizer nada, mas ao menos os olhos já não pareciam
assombrados.
— Meu nome é Chen Malte do Trovão. Minha sobrinha Li Li e eu somos novos aqui. Gostaríamos
de lhe desejar força para vencer esse período conturbado.
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Busca por Pandária – Parte 3 de 4
— Meu nome é Menrim. Obrigado pelas palavras. — O homem-gato parou por um instante. —
Seria um prazer receber você e sua sobrinha para o jantar, se aceitarem.
— Seria uma honra, Menrim — disse Chen.
*
*
*
Menrim vivia numa casinha modesta, de frente para o Lago Vir'naal. Como o ocaso já assomava
no céu, as luzes acesas na cidade que ficava do outro lado da água refletiam na superfície do lago.
— Que cidade é aquela? —perguntou Li Li, indicando as luzes alaranjadas e vermelhas da janela
da cozinha, onde ajudava o tol'vir a lavar a louça após a refeição.
— Mar'at. Era vizinha de Orsis, quando Orsis ainda existia.
— Orsis foi destruída na guerra?
Menrim primeiro respondeu à pergunta de Li Li meneando a cabeça, e só depois acrescentou:
— Sim. Al'Akir mandou seus exércitos enterrarem-na com uma tempestade de areia. Orsis e
Neferset eram lugares realmente lindos, especialmente Neferset.
— Você já esteve lá?
— Eu nasci lá. —respondeu o homem-gato com um suspiro.
— Ah. — exclamou Li Li, esfregando a toalha no prato nervosamente. — Você é Ramkahen?
— Agora sou — respondeu Menrim depois de alguns instantes. — Mas já pertenci à tribo
Neferset.
— Ah. — exclamou de novo Li Li, se concentrando no trabalho.
— Eu... — começou Menrim primeiro com uma fagulha de orgulho desafiador manifestada na
voz, mas depois fechando a expressão. — Isso não parece incomodar você.
Li Li piscou:
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Busca por Pandária – Parte 3 de 4
— E deveria?
Menrim a encarou por um segundo, enquanto refletia:
— Acho que você não consideraria acharia minha herança necessariamente estranha.
— Menrim, eu não sei nada sobre seu povo. Houve uma guerra civil, e ouvi que os Neferset se
aliaram ao Asa da Morte. — O tol'vir estremeceu ao som do antigo Aspecto Dragônico. Li Li prosseguiu.
— Mas você não se parece nada com um aliado do Asa da Morte. Falta principalmente morte em você.
Menrim deu o mais discreto dos sorrisos como reposta às palavras de Li Li.
— E asas — observou ele. Li Li revirou os olhos, divertindo-se com a piada. Menrim respirou
fundo.
— Nesse caso, há uma história que quero contar a você e ao seu tio.
— Nós amamos histórias — disse Li Li. O tol'vir sorriu.
— Talvez não essa — respondeu ele.
*
*
*
Chen e Li Li estavam sentados com as pernas cruzadas no chão da sala da pequena casa. De
frente para eles, com as pernas dobradas abaixo do corpo, Menrim começou a falar:
— A cidade de Neferset fica ao sul daqui. É... Bem, era magnífica, muito maior que Ramkahen.
Foi lá que nasci, e também meu irmão, Bathet.
“Todos os tol'vir conhecem muito bem nossa história. Sabemos que somos construtos dos titãs,
com a tarefa de proteger Uldum e seus segredos. Dito isso, também somos um povo, não autômatos. Os
titãs nos deram originalmente corpos de pedra para sermos guardiões melhores.
“Quando a maldição da carne se abateu sobre os tol'vir, amaldiçoamos os novos corpos, frágeis
e fracos, mas não havia nada que pudéssemos fazer para revertê-la. A única solução era aceitar e
continuar com a vida. Mas muitos nunca pararam de lamentar a perda.
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Busca por Pandária – Parte 3 de 4
“Como vocês sabem, o grande dragão Asa da Morte recentemente retornou ao mundo, aliandose a Al'Akir, o senhor dos elementais do ar, e aos Deuses Antigos, a fonte da maldição.”
— Aliado aos Deuses Antigos? — repetiu Chen, em voz baixa. — Não acredito...
— Acredite — retrucou Menrim. — Quando o Asa da Morte veio, ofereceu uma barganha aos
tol'vir: uma aliança com ele em troca dos corpos de pedra novamente. A maldição seria revertida.
Li Li e Chen menearam a cabeça, concordando.
— Meus irmãos Neferset, liderados pelo Faraó das Trevas Tekahn, aceitaram. Eu, contudo, tinha
outros planos. —Menrim fez uma pausa para se recompor. — Eu bem que tentei convencer os outros
Neferset de que não era uma boa ideia. Sim, nós recuperaríamos nossos corpos de pedra, mas teríamos
uma dívida eterna com Al'Akir e o Asa da Morte. Meu povo era arrogante, e acreditava que poderíamos
subjugá-los e obter novamente nossa independência quando recuperássemos nossa velha rigidez.
Menos e menos Neferset compartilhavam da minha hesitação. Nem mesmo Bathet concordou comigo.
Eu implorei para que ele reconsiderasse, mas ele não deu ouvidos e se tornou um dos maiores
defensores da troca entre toda da tribo. Num determinado momento, minha segurança ficou em perigo.
Fugi para Ramkahen e jurei lealdade ao Rei Phaoris. Quando o restante dos Neferset se tornou
abertamente hostil, fiz o que pude para ajudar a derrotá-los.
— E seu irmão? —perguntou Chen, suavemente. — O que aconteceu com ele?
Menrim não respondeu imediatamente. Seu rosto parecia cansado, iluminado pela luz
alaranjada das lâmpadas a óleo.
— Ainda está vivo. — respondeu Menrim com a voz trêmula. — Ele é um dos prisioneiros dos
Ramkahen. Os que aguardam a decisão do Alto Conselho sobre seus destinos.
*
*
*
Chen não conseguiu pregar os olhos naquela noite, rolando acordado de um lado para o outro,
encarando o teto da sala da casa de Menrim. O ronco suave de Li Li era um indício de que ela dormia,
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Busca por Pandária – Parte 3 de 4
mas ele sabia que o sono da sobrinha era muito leve. Ela rolou e se revirou por uma hora inteira antes
de sucumbir ao cansaço.
O pandaren, contudo, não conseguia descansar. Era perfeitamente compreensível que Menrim
ousasse se opor aos outros tol'vir e advogar a favor da misericórdia aos prisioneiros de guerra Neferset.
Bastava imaginar como ele se sentiria se Chon Po estivesse à beira da execução, ainda que por crimes
como os de Bathet, para saber que também faria tudo o que pudesse para salvar a vida do irmão.
Quanto mais Chen pensava, mais seu estômago se revirava, pondo-se na pele de Menrim, sabendo que
poderia ser a única esperança entre o irmão e a morte. Na calada da noite, Chen se levantou e foi até a
cozinha para se sentar à mesa, sentindo-se ao mesmo tempo desesperadamente inquieto e
extremamente cansado.
— Também não consegue dormir? — A voz do tol'vir assustou Chen, arrancando-o de seus
pensamentos. Os ouvidos do pandaren não captaram nenhum passo na sala, fazendo-o pensar sobre o
quão maravilhoso era Menrim, apesar do tamanho, ser capaz de se mover tão silenciosamente quando
um gato doméstico.
— Peço perdão pelo desconforto do chão — disse Menrim, ao que Chen respondeu sacudindo a
cabeça com firmeza.
— Já dormi em lugares muito piores, acredite em mim. Estou acordado porque não consigo
parar de pensar sobre o que você contou depois do jantar.
O tol'vir suspirou:
— Eu também. Todos aqui conhecem minha história. Alguns já foram solidários, outrora, mas a
guerra endurece até o mais compassivo dos corações.
— Também tenho um irmão, o pai de Li Li. Nunca fomos grandes amigos, mas não consigo
sequer imaginar como seria terminar em lados diferentes de uma guerra.
O olhar de Menrim se perdeu ao longe.
— Argumentei longamente com o Alto Conselho. Nem todos estão dispostos à misericórdia
apenas pela misericórdia, mas alguns estão dispostos a considerá-la se os prisioneiros de declararem
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Busca por Pandária – Parte 3 de 4
arrependidos. Já tentei convencer Bathet, mas ele diz que não sente nenhum remorso. — A voz do
tol'vir falhou, e ele baixou a grande cabeça felina até o peito, baixando as orelhas.
— Minha família é tudo o que me importa. Sempre tentei ser um exemplo, por ser mais velho
que Bathet. Queria mostrar como viver uma boa vida, mas também não queria ficar em seu caminho.
Tentava não dizer a ele o que fazer, mas sempre falava honestamente quando ele me procurava.
Quando ele se tornou um defensor tão ávido da oferta do Asa da Morte... Passei muito tempo me
perguntando onde foi que eu errei.
— As escolhas dele não são responsabilidade sua — disse Chen. — Você só pode viver sua
própria vida, e ser fiel a si mesmo. Foi o que Bathet provavelmente fez, por mais estranho que pareça.
Talvez ele realmente achasse que estava fazendo a coisa certa.
— Talvez — respondeu Menrim, sem encarar Chen. — Acho que vou voltar para a cama. Boa
noite.
— Boa noite — respondeu Chen. Ele sabia que suas palavras não tinham oferecido nenhum
conforto. Sentindo-se inadequado, jurou fazer o que pudesse, tudo o que pudesse, para ajudar Menrim
e o irmão.
*
*
*
Na manhã seguinte, antes de Li Li acordar, Chen saiu para descobrir onde os Neferset presos
estavam sendo mantidos. Os tol'vir mostraram uma tendência de hostilizá-lo sempre que tocava no
assunto, mas eventualmente uma orquisa apontou para o portão leste, por onde ele e Li Li chegaram no
dia anterior. A rampa que se entranhava na terra, que nenhum dos dois soube o que era, dava para a
entrada de uma prisão. Chen agradeceu e seguiu seu caminho.
Dois chacais sentados sobre enormes pilares guardavam o topo da rampa. Chen se deteve e os
observou, esperando conseguir influenciar positivamente a situação, mas, ao mesmo tempo, se
perguntando que diferença uma única pessoa pode realmente fazer. Bem, ele já tinha visto indivíduos
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Busca por Pandária – Parte 3 de 4
realizarem grandes feitos, isso era inegável. Respirando fundo, Chen desceu pela trilha. No fundo, um
guarda Ramkahen bloqueou a entrada:
— O que quer aqui? — exigiu saber, brandindo um pique com, pelo menos, a altura do próprio
Chen.
— Bem... Eu queria falar com os prisioneiros Neferset — declarou Chen.
— Para quê? — pressionou o guarda.
— Aprendizado. Quero saber o que os fez fazer o que fizeram.
O guarda inclinou o corpo na direção do pandaren, examinando-o dos pés à cabeça.
— Você tem uma aparência muito esquisita — salientou. — E obviamente não tem nada a ver
com um tol'vir. Se quiser falar com os prisioneiros, terá que deixar todos os seus pertences comigo. Lá
dentro outro guarda ficará de olho em você.
Chen assentiu, deixando cair o cajado e a mochila.
— Obrigado — respondeu o pandaren, empurrando a porta.
A estrutura subterrânea obviamente não tinha sido pensada como uma prisão, mas convertida
às pressas para servir a esse propósito. Como o tol'vir avisara na entrada, outro guarda postava-se
próximo aos prisioneiros, observando-os atentamente.
Os Neferset estavam acorrentados às paredes de pedra, em jaulas instáveis que obviamente
haviam sido construídas de forma improvisada. Chen se perguntou qual era o real objetivo do Alto
Conselho ao manter estes tol'vir presos por tanto tempo.
— Qual de vocês é Bathet? — perguntou o pandaren.
— Aquele. — Foi o guarda Ramkahen quem respondeu, apontando para uma jaula encostada na
parede da direita. Chen fez um gesto de agradecimento e se aproximou do irmão de Menrim.
Agora que os olhos já estavam acostumados à escuridão dos subterrâneos, Chen observou
longamente Bathet e os outros prisioneiros. Pareciam mais golens do que seres vivos.
— Então, você é Bathet? — começou Chen.
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Busca por Pandária – Parte 3 de 4
— Não interessa — rosnou de volta o Neferset. Seus olhos eram exatamente o oposto dos de
Menrim: ferais, frios, furiosos.
— Responda — vociferou o guarda, acertando as barras da jaula com o pique. O tinido de metal
contra metal ecoou longamente pelo grande salão subterrâneo.
Bathet olhou com desdém e não respondeu. Dentro da jaula, andava de um lado para o outro,
exibindo os dentes para Chen de quando em quando. O guarda acertou as barras outra vez com a arma.
— Estou aqui em nome do seu irmão, Menrim — afirmou Chen.
Bathet piscou, depois gargalhou desrespeitosamente na cara de Chen.
— Bem, isso explica por que você perderia tempo conosco, os perdedores, nesse buraco!
Imagino que Menrim tenha implorado para você vir aqui me trazer um pouco de juízo.
— Na verdade ele nem faz ideia de que estou aqui — respondeu o pandaren. Bathet gargalhou
de novo.
— Melhor ainda! Ele tocou tanto seu coração que você veio fazer o trabalho sujo no lugar dele!
Magnífico!
Chen inclinou um pouco a cabeça e encarou Bathet. Ele sabia que continuar contraargumentando só resultaria em mais escárnio, por isso parou para refletir sobre a melhor maneira de
fazer com que o Neferset conversasse com ele.
— Esse é realmente um lugar bem sujo para se trabalhar — observou Chen, olhando em volta.
— Suponho que nenhum de vocês tome banho há algum tempo, mas ser um pedregulho deve ter
algumas vantagens.
O guarda Ramkahen primeiro pareceu ofendido, mas mesmo assim riu em silêncio. Bathet
parecia surpreso e Chen começou a esfregar o pelo preto e branco das costas com uma escova
imaginária. Depois cruzou os braços e fez a expressão mais canalha que conseguiu para o tol'vir.
Funcionou.
— Sim, continue achando que vocês, criaturas de carne, são mesmo superiores. Na verdade,
diga isso ao meu irmão também. E quando disser, dê uma boa e longa olhada para a cara moralista e
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Busca por Pandária – Parte 3 de 4
chorosa de sofredor dele, e note como seus olhos estarão marejados quando ele suspirar “Ah, Bathet,
estou tão desapontado com você”. Nessa hora, deixe que ele saiba que é um... — O tol'vir começou a
destilar uma torrente de epítetos que Chen jurou em silêncio jamais repetir. O guarda também se
surpreendeu. — É isso o que acho dele e do maldito complexo de superioridade que faz com que ele
ache mesmo que vai salvar a todos.
— Com certeza — mentiu Chen.
— Menrim está só gastando saliva — continuou Bathet. — Mesmo que o conselho consinta com
seus apelos lamurientos por clemência, eu preferiria morrer aqui com minha verdadeira família do que
perder um segundo que fosse na presença dele.
Depois disso, Bathet virou-se para a parede, dando as costas a Chen. O pandaren não insistiu.
Seu trabalho ali estava terminado.
— Vou embora — disse ao guarda, que assentiu com um meneio da cabeça.
A luz do sol era atordoante, e Chen teve que piscar várias vezes até os olhos se acostumarem
novamente ao ar livre. Um guarda fechou a porta do calabouço logo às suas costas, enquanto outro o
observava com curiosidade.
— Espero que tenha aprendido o que queria — comentou o guarda a meia distância. — Mas
duvido que você tire qualquer tipo de esclarecimento dos prisioneiros. Eles são todos fanáticos.
Chen remoía a conversa na prisão enquanto coletava os pertences que deixara na porta. Ao
mesmo tempo em que "fanático" parecia um qualificador razoável para Bathet, ele sequer mencionara o
dragão Asa da Morte, riquezas ou qualquer tipo de poder. Tudo o que viu foi um irmão que odiava
profundamente o outro.
— Aprendi o suficiente — disse o pandaren, virando-se para subir a rampa perdido em
pensamentos.
*
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Busca por Pandária – Parte 3 de 4
— Olha só! Veja quem resolveu sair de fininho! — apontou Li Li. Ela esperava o tio do lado de
fora da casa de Menrim, sentada à sombra de uma palmeira. A jovem tinha passado a manhã inteira
estudando um dos mapas que trazia com ela, marcando os lugares onde haviam estado e acrescentando
os pontos que faltavam, como Uldum inteira. — Que horas você saiu da cama? Estamos de férias,
esqueceu?
Chen bem que tentou responder às piadas da sobrinha sorrindo, mas não tinha forças. Li Li
imediatamente sentiu a melancolia que o abatia:
“O que aconteceu?”
— Fui visitar o irmão de Menrim na prisão.
— Imagino que tenha sido uma ótima escolha para começar o dia.
Chen virou-se para o outro lado do Lago Vir'naal, sem saber o que dizer. Sua mente só pensava
na tristeza de Menrim e no ódio de Bathet.
— Tio Chen? — Li Li pousou uma das patas sobre o pulso dele. — O que você foi fazer na prisão?
— Seus olhos brilhavam, cheios da mais autêntica preocupação. Chen a abraçou com força.
— Não tenho certeza — confessou Chen, soltando Li Li. — Acho que queria ver o que levaria
alguém a tomar a decisão que Bathet tomou. Bathet odeia o irmão. Quando mencionei o nome de
Menrim, ele... Bem, ele não ficou nada feliz. —O rechonchudo pandaren se apoiou no tronco da
palmeira. — Não sei o que fazer. Bathet chamou os outros prisioneiros Neferset de "verdadeira" família,
querendo distância de Menrim, e eu não sei o porquê. Na noite passada, Menrim só falava no quanto se
importa com o irmão.
Li Li franziu a testa em silêncio e comentou:
— Como Bathet pode odiá-lo tanto? O que poderia ter acontecido entre os dois?
— Ele foi embora — sugeriu Li Li bem baixinho.
— Claro que sim — retrucou Chen. — Ele não queria trabalhar para o Asa da Morte.
— Não, antes disso. — Li Li olhou para os lados e continuou. — Enquanto você estava fora, eu
conversei com Menrim. Ele é mais velho do que Bathet, e saiu de casa há muito tempo para trabalhar
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Busca por Pandária – Parte 3 de 4
com os sacerdotes, para ajudar na manutenção dos dispositivos titânicos. Como passou todo esse
tempo longe, ele mal conhece Bathet.
Chen mirava a sobrinha interrogando:
— E daí?
— Daí que isso é ressentimento, eu acho. —murmurou Li Li. — O irmão preso se sentiu
abandonado e jogado de um lado para o outro. Ele na verdade não dava a mínima para o Asa da Morte.
Era tudo questão de se sentir acolhido.
— Como você pode saber o que se passa na cabeça do Bathet? —questionou Chen, cruzando os
braços.
Li Li agarrou tufos de cabelos e os puxou, para exprimir sua frustração. Chen nunca tinha visto a
sobrinha agir daquele jeito. Ela parecia lutar consigo mesma.
— Eu sei por que foi o que Bô me disse uma vez. Sobre você.
— O quê?
Li Li ficou cabisbaixa, mas não parou de falar:
— Quando Papa mandou o Bô atrás de mim. Ele me disse... — Li Li fazia rodeios, sem confrontar
os olhos do tio.
— O que ele disse? — perguntou Chen, o coração pesando em seu peito.
— Que você se importava mais com sua cerveja e suas aventuras do que com a gente.
— Isso não é verdade! —protestou Chen.
— Eu sei que não! — gritou Li Li. — Eu lia suas cartas todos os dias, Tio Chen! Mas foi como o Bô
se sentiu. Por muito tempo. Ele ficou com muita raiva de você.
Chen curvou a cabeça. A discussão com Chon Po uma noite antes de Li Li pegar a pérola inundou
sua mente, cristalina como água. Ele podia ver a dor nos olhos de Po, ouvir a fúria e a angústia em sua
voz.
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Busca por Pandária – Parte 3 de 4
— Eu me lembro das palavras de Bô na praia, as últimas que me dirigiu. Na hora eu não
compreendi, tudo aconteceu muito rápido. — O pandaren esfregou as patas no rosto, sentindo-se
subitamente exausto. — Como foi que não vi? Chon Po se sentia do mesmo jeito. Ainda se sente.
Li Li não disse nada. Acima dos dois as folhas da palmeira farfalhavam ao sabor da brisa cálida.
— Acho que sei o que preciso fazer — declarou Chen.
*
*
*
Chen desenvolveu a mania irracional de oferecer chá o tempo inteiro por força do hábito, mas
dessa vez estava de pé imóvel, inquieto, sem saber onde enfiar as patas. Cruzou os braços, depois os
deixou pendurados ao lado do corpo, e finalmente se ajeitou entrelaçando os dedos atrás do corpo.
Menrim encarava a dupla de pandarens na sala, os olhos castanhos suaves e intrigados.
— Fiz uma visita ao seu irmão essa manhã — anunciou Chen. — Fui conversar com ele.
Menrim se virou e caminhou pela sala, abanando a cauda inquietamente. Sem se desvirar,
perguntou:
— O que ele disse?
— Ele está furioso.
— Eu sei. — O homem-gato sacudiu a cabeça positivamente.
Chen respirou fundo e pensou com seus botões se o que estava para sugerir tinha alguma
chance de dar certo.
— Você deveria se desculpar com ele.
Menrim girou agilmente no mesmo lugar:
— Eu deveria me desculpar? Foi ele quem se uniu ao Asa da Morte!
— Sim, mas ele acredita que você nunca lhe deu qualquer importância.
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Busca por Pandária – Parte 3 de 4
— Como ele pode pensar isso? É...
— Menrim — interrompeu Chen num tom que até seus próprios ouvidos consideraram
excessivo —, você pode pensar depois sobre certo e errado. Se quiser que ele demonstre qualquer
remorso pelas ações que cometeu e receba indulgência, tenho certeza de que você precisa se desculpar.
— Como você sabe disso? —questionou Menrim.
— Já abandonei pessoas, nesta vida. Pessoas que amo, inclusive um irmão. — Lembranças de
Chon Po e Bô Forte espocaram em sua mente. — E... Isso trouxe consequências.
Menrim rodeava pela sala de novo, perdido em pensamentos. Desta vez parou de andar e
encarou os dois pandarens:
— Tudo bem. Vou tentar. Vou pedir desculpas a Bathet. — O tol'vir fez uma careta, obviamente
não morrendo de amores pela ideia.
Chen assentiu, tentando elevar os ânimos:
— Acho que fará toda a diferença.
Menrim apenas saiu da sala, em silêncio.
— Acho que deu certo — observou Chen, com esperança de estar certo.
Li Li olhou para as próprias patas.
— Com certeza, Tio Chen.
*
*
*
Menrim só voltou muitas horas depois que o sol se pôs. Chen e Li Li se sentiram desconfortáveis
em ficar sozinhos na casa dele, e então ajeitaram as mochilas e cajados perto do poço e se sentaram,
esperando perto da água.
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Busca por Pandária – Parte 3 de 4
Quando o tol'vir chegou, caminhando lentamente pela rua, Li Li dormia apoiada no ombro do
tio. Chen acenou para chamar a atenção dele, mas Menrim não respondeu à saudação; apenas se virou,
olhou no fundo dos olhos do pandaren, e entrou.
Chen abaixou a mão.
— Era o que eu temia — disse, e despertou Li Li suavemente.
— O que foi, tio? — A jovem pandarena esfregava os olhos.
— Parece que não somos mais bem-vindos na casa de Menrim — disse com pesar. — Vamos
encontrar uma estalagem.
— Pelo menos existe a possibilidade de passar a noite numa cama, em vez de no chão —
balbuciou Li Li, pegando suas coisas do chão.
— Isso sim é ver pelo lado positivo, hein? — Chen desejou por um instante que ele e Li Li
tivessem feito como os anões e evitado ao máximo o confronto com o Rei Phaoris, e que nunca tivesse
visto Menrim. O pandaren estaria com a caravana, onde quer que ela estivesse, rindo e se divertindo.
Quando finalmente encontraram abrigo, os dois estavam tão exaustos que dormiram até a
manhã seguinte, até que uma balbúrdia de centenas de vozes os arrancou da cama. Vestindo-se
rapidamente, a dupla correu para ver o que estava acontecendo.
Habitantes de Ramkahen atulhavam todas as ruas que davam para a praça central, de onde
todos olhavam para o prédio que abrigava o Rei e o Alto Conselho.
— O que está havendo? — Chen queria saber. Li Li já sabia:
— Acabou o tempo — disse em voz baixa. — O Alto Conselho vai anunciar a decisão. — O
coração de Chen martelou no peito. Li Li via a angústia do tio. — Precisamos de uma vista melhor.
Chen concordou.
A dupla abriu caminho à força até o imenso relógio solar que ficava na ponta sudoeste da praça.
Uma pilha de caixas se acumulava, muito pequena para os tol'vir, mas grande o suficiente para dois
pandarens se sentarem confortavelmente. Chen e Li Li subiram até o topo, de onde era possível ver o
grande salão facilmente.
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Busca por Pandária – Parte 3 de 4
Depois de alguns instantes, um grupo de guardas Ramkahen surgiu com os cinco prisioneiros
Neferset presos pelo pescoço por uma corrente de elos tão grandes que o tilintar era audível mesmo em
meio aos gritos da turba. Chen reconheceu Bathet, e engoliu em seco.
O Rei Phaoris rodeou os tol'vir enfileirados, parou à frente do grupo e ergueu o braço. A
multidão se calou.
— Cidadãos de Ramkahen! — A voz do rei ribombou. — O Alto Conselho chegou a uma decisão.
Antes de anunciá-la, contudo, decidimos permitir que cada prisioneiro fale ao público, para que vocês
compreendam por que tomamos a decisão que logo conhecerão. Ergam-se em solidariedade a nós que,
após longa deliberação, realizamos o árduo trabalho de aplicar a justiça.
A multidão gritou em resposta, mas Chen sentia raiva no ar, e nem todos pareceram contentes
com as palavras do rei. Phaoris deu um passo para o lado, e um guarda empurrou o primeiro dos
prisioneiros, que olhou primeiro para um lado, depois para o outro, observando a turba que o encarava
fixamente.
Enfim, o tol'vir cativo disse:
— Meu nome é Nanteret, e digo que meu povo fez a aliança que deveria ser feita!
A resposta da multidão foi um estouro ensurdecedor, uma onda sonora carregada de ódio. A
garganta de Chen ficou seca.
“Meu único arrependimento — prosseguiu Nanteret, aos gritos — é não ter matado mais de
vocês Ramkahen imundos!” — O tol'vir cuspiu na escada, enfatizando as próprias palavras. Um guarda
rapidamente o empurrou de volta para o lugar. O Rei Phaoris pediu outra vez o silêncio da multidão, que
obedeceu, aguardando os discursos restantes.
Um a um, os prisioneiros falaram. Os dois seguintes repetiram as palavras de Nanteret quase à
risca. Quando chegou a vez de Bathet, o quarto na fila, o coração de Chen afundou, ainda que restasse
uma fagulha de esperança:
— Sinto orgulho das escolhas que fiz — gritou o tol'vir com toda a força dos pulmões. — Não me
arrependo de nada! Estou com meus irmãos! — Chen estremeceu com a ênfase que Bathet deu à última
palavra. Li Li pousou a pata sobre a do tio. A multidão urrava, e uma torrente de objetos começou a voar
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Busca por Pandária – Parte 3 de 4
na direção de Bathet; uma romã meio comida estourou no seu rosto, o suco vermelho escorrendo e
sujando-lhe o pescoço e o peito.
O último Neferset falou. Chen mal o ouviu. O que quer que o prisioneiro tenha dito foi tão
impenitente quanto os outros.
O Rei Phaoris foi novamente à frente e ergueu um braço.
— Que seja do conhecimento de todos que aos Neferset foi dada a oportunidade de dizer o que
traziam em seus corações e mentes, mas eles não demonstraram qualquer remorso pela aliança
blasfema que cunharam com Asa da Morte e Al'Akir; sequer esboçaram arrependimento pelos milhares
que assassinaram em nome da própria ganância por poder! São traidores de tudo em que os tol'vir
sempre acreditaram! A decisão do Alto Conselho é unânime. Os prisioneiros serão executados.
A multidão urrou vivas.
Li Li arquejou cobrindo a boca. Chen a agarrou pelo braço:
— Temos que encontrar Menrim — disse com urgência.
Ela assentiu:
— Vamos!
*
*
*
Chen percebeu que provavelmente seria inútil tentar encontrar alguém em meio à massa que
enxameava as ruas de Ramkahen. Ele e Li Li persistiram, encontrando uns poucos que afirmaram ter
visto Menrim, até que finalmente o encontraram sentado à beira de uma fonte na parte norte da
cidade, meio escondido. Se viu a dupla de pandarens se aproximar, o tol'vir não reagiu.
Chen se sentou ao lado dele e disse:
— Sinto muito, Menrim.
A expressão de Menrim endureceu, e o tol’vir virou o rosto:
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Busca por Pandária – Parte 3 de 4
— Não havia nenhum remorso na voz dele. Foi ele quem selou o próprio destino.
A indiferença das palavras de Menrim surpreendeu os dois pandarens, mas Chen a atribuiu ao
choque com o veredicto do Alto Conselho.
— Eu sei o quanto você se importa com seu irmão. Não consigo nem imaginar o quanto deve ser
difícil para você.
Os três permaneceram sentados, calados, ao som da água que corria na fonte.
— Como foi que ele reagiu à sua visita ontem, se me permite a pergunta? — A voz de Chen era
suave, baixa.
— Como era de se esperar Como o traidor nojento e egoísta que é.
— O que ele disse — insistiu Chen — quando você se desculpou?
Subitamente Menrim se levantou para partir, mas, depois de alguns passos, se deteve e disse a
Chen:
— Quem você pensa que é?! — O tol'vir berrava. — Invadir a minha vida para me dizer o que
tenho que fazer? Me desculpar com Bathet? Eu não precisava fazer nada disso! Ele é o criminoso
blasfemo, e eu tenho lutado o tempo inteiro para salvar a vida dele! Ele deveria implorar pelo meu
perdão, isso sim, agradecer do fundo do coração rochoso e ingrato, se é que ainda tem um! Comparado
a ele, eu sou um santo. Não tenho nenhum arrependimento, e foi isso que eu disse a Bathet. Como ele
ousa tentar me culpar? Deixem-me em paz — rosnou Menrim, e deu as costas aos pandarens,
caminhando em direção à cidade.
Chen fechou os olhos e apoiou a cabeça nas patas. Li Li o abraçou com força.
— Você fez tudo que pôde, Tio Chen. Não dá para consertar tudo.
Chen Malte do Trovão jamais conseguiria articular os sentimentos de responsabilidade, dever,
falha e culpa que se digladiavam em seu coração; ele nem se lembrava da última vez que tinha se
sentido tão infeliz.
*
*
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Busca por Pandária – Parte 3 de 4
Matar um Neferset, uma criação titânica com pele de pedra, não era uma tarefa fácil, por isso o
Alto Conselho optou por executar os prisioneiros por esmagamento. Uma complexa máquina, que mais
parecia um emaranhado de cordas, polias e contrapesos, havia sido criada exclusivamente para esse
fim. Vários guardas acionariam as alavancas, erguendo os imensos pilões de rocha que, com o
acionamento, cairiam e pulverizariam tudo à sua sombra. A brutalidade do método chocou Li Li.
O povo de Ramkahen lotou o espaço antes ocupado apenas pela fonte. A dupla de pandarens se
posicionou em cima de um toldo e esperou o espetáculo começar, em silêncio. Nenhum dos queria de
fato assistir à execução, mas Chen achava que devia, e Li Li jamais o abandonaria.
Com o sol já baixo, os guardas Ramkahen conduziram os prisioneiros pelas ruas. A multidão
berrava, incontrolável, dirigindo insultos aos Neferset condenados. Li Li achou que fosse vomitar.
Não havia muito decoro na execução: um dos guardas soltaria um dos Neferset, o levaria para o
ponto designado e o prenderia lá, para que outro guarda ativasse a máquina e a questão se resolvesse
sozinha. Muito simples. Li Li bem que tentou assistir à cena, num gesto de respeito, mas fechou os olhos
e preferiu saber o que acontecia apenas pelos sons: o guinchado das cordas, o silvo do deslocamento
veloz de uma grande massa de ar, a batida seca do prisioneiro esmagado até a morte e o cascalho sendo
varrido para o lado, abrindo espaço para o próximo na fila.
Chen segurou a sobrinha pelos ombros com firmeza, tentando não tremer. Enquanto
acompanhava as execuções, invejava Li Li por manter os olhos fechados; os seus se negavam a isso,
como se uma força oculta os mantivesse abertos e o forçasse a olhar. Como durante os discursos, Bathet
foi o quarto, e foi executado de forma tão indiferente quanto os outros. Tudo acabou muito rápido, e
ainda assim parecia ter levado mil anos. Chen sabia que este dia o atormentaria para sempre.
O pandaren apercebeu-se de que os pulmões ainda respiravam, o coração ainda batia, mas
todos os sons e sensações estavam a quilômetros, e ele mesmo mal sabia se estava realmente lá. O chão
poderia ter sumido sob seus pés sem que ele sequer notasse. Quando os pensamentos começaram a
divagar, o cervejeiro se sentou quase em transe, os olhos fixos do outro lado do lago por um longo
tempo.
— Tio Chen — chamou Li Li, baixinho.
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Busca por Pandária – Parte 3 de 4
— Diga, Li Li —respondeu o pandaren, notando que ela não parecia bem.
— Eu... Eu queria ir embora o quanto antes. Não sei por que a pérola nos trouxe aqui. Este lugar
está cheio de dor.
— Ah! — Com as palavras de Li Li, Chen também sentiu uma necessidade urgente de sair de
Ramkahen.
— Não sei aonde iremos agora — observou a jovem pandarena —, mas nem me importa, desde
que a gente saia daqui.
— Concordo. Vamos descansar esta noite. Partimos pela manhã.
Os dois pandarens desceram do toldo e voltaram à estalagem. Quando chegaram à porta, uma
figura saiu das sombras em direção a eles. Era Menrim.
— O que você quer? — Chen foi curto e grosso.
O tol'vir hesitou e disse:
— Me desculpar.
Chen e Li Li cruzaram os braços e o observaram, calados.
“Você tinha razão — continuou Menrim. — Eu deveria ter ouvido. Eu deveria ter feito o que
você disse. Eu deveria...”
— Um pouco tarde, não acha? — Chen o interrompeu. — O que você está tentando fazer?
— Eu... Eu tentei. Tentei dizer a Bathet que sentia muito, mas... ele só me culpava, e eu fiquei
furioso... eu não posso ser culpado por tudo.
— Ah, corta essa — interrompeu Li Li, desta vez.
— Eu queria salvá-lo! Queria salvar todos eles! — berrava Menrim. — Supliquei por clemência
várias vezes e...
— Claro que você queria salvá-lo — respondeu Chen secamente —, desde que isso não
comprometesse seu próprio orgulho, ou o que quer que seja.
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Busca por Pandária – Parte 3 de 4
Menrim encarava os pandarens com os olhos apertados:
— Eu sei que falhei. Eu sei... sei que no momento em que vi as pedras caírem, e meu irmão...
meu único irmão... — Sua voz hesitou, e o tol'vir chorou. — Minha tribo... meu povo... meu irmão...
Como isso aconteceu?
Chen estava devastado pelo cansaço. Era verdade que Menrim e todos os tol'vir tinham sofrido
terrivelmente. Também era verdade que Bathet e os outros Neferset tinham feito coisas terríveis, e que
Bathet se ressentia do irmão, provavelmente com razão. Mas também era verdade que nada do que
nenhum dos dois pudesse ter dito mudaria o destino de Bathet naquela tarde.
Chen mal conhecia os irmãos, e ainda assim...
— O que você quer ouvir de nós? — Chen atirava as palavras contra Menrim. — Eu e minha
sobrinha não podemos absolver você, e nem Bathet. Não podemos mudar nada, para ninguém. O que
está feito, está feito.
Menrim enxugou os olhos com as costas do braço, e parecia recomposto: — Eu sei — sussurrou.
— Eu sei. Mas... obrigado por tentar.
— Li Li — falou o tol'vir —, conversamos sobre suas viagens ontem, quando seu tio estava fora.
Imagino que você não queira mais ficar em Ramkahen depois de tudo isso.
— Pode ter certeza. — respondeu Li Li.
— Se seguirem pelo sul, à margem do Rio Vir'naal, vocês chegarão à Cidade Perdida. Em outros
tempos ela servia de fortaleza para os Neferset, mas foram todos expulsos durante a guerra. Minha
família tinha um pequeno barco. Pelo que sei, ainda está lá. —Menrim segurava uma grande chave. —
Solte as correntes do barco com isso. Tome. Você poderá sair de Uldum muito mais facilmente assim. As
correntes do sul são generosas, e os ventos devem estar mais calmos, agora que Al'Akir se foi. Por favor,
levem.
Li Li deu um passo e pegou a chave.
— Obrigada — agradeceu em voz baixa.
Lágrimas rolaram pelo rosto de Menrim.
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Busca por Pandária – Parte 3 de 4
— Não sei se é possível restaurar tudo o que meu povo perdeu. Talvez a era dos tol'vir esteja
mesmo terminada. O que me resta é tentar ser melhor do que eu era, e desejar sorte a vocês, e que
bons ventos os guiem em suas viagens. Espero que encontrem o que procuram.
— Fique em paz, Menrim — disse Chen suavemente.
Menrim se virou e rumou para casa, sozinho.
Li Li e Chen voltaram à estalagem em silêncio. O clima estava tão pesado quanto suas pernas
cansadas. Enquanto verificava as mochilas para ter certeza de que tudo estava pronto para partirem o
mais cedo possível, Chen viu Li Li havia estendido uma folha de papel no chão.
— O que você está fazendo? — perguntou Chen.
— Escrevendo pra casa. Achei que seria uma boa. Já faz tempo. — A jovem olhou para cima,
procurando o rosto do tio, que teve uma ideia.
— Também vou escrever uma. — Li Li puxou mais folhas e outra pena do fundo da mochila. O
pandaren também se sentou no chão, do outro lado do quarto, e abriu a folha branca à frente de si.
Querido Chon Po, começou Chen.
Devo desculpas a você.
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