Educação Indígena em Diálogo (formato , tamanho 5.599Kb)

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Educação Indígena em Diálogo (formato , tamanho 5.599Kb)
Coordenação editorial:
Juçara Benvenuti,
Mauro Augusto Burkert Del Pino,
Simone Valdete dos Santos,
Tania Beatriz Iwaszko Marques.
Supervisão editorial: UFPEL
Design editorial, capa e diagramação: Nativu Design
Revisão: Juçara Benvenuti
Obra publicada pela Universidade Federal de Pelotas Reitor: Prof. Dr. Antonio Cesar Gonçalves Borges
Vice-Reitor: Prof. Dr. Manoel Luiz Brenner de Moraes
Pró-Reitor de Extensão e Cultura: Prof. Dr. Luiz Ernani Gonçalves Ávila
Pró-Reitora de Graduação: Prof. Dra.Eliana Póvoas Brito
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Pró-Reitor de Planejamento e Desenvolvimento: Prof. Ms. Élio Paulo Zonta
Pró-Reitor de Recursos Humanos: Admin. Roberta Trierweiler
Pró-Reitor de Infra-Estrutura: Mario Renato Cardoso Amaral
Pró-Reitora de Assistência Estudantil: Assistente Social Carmen de Fátima de Mattos do Nascimento
CONSELHO EDITORIAL
Profa. Dra. Carla Rodrigues
Profa. Dra. Cristina Maria Rosa
Profa. Dra. Flavia Fontana Fernandes
Profa. Dra. Francisca Ferreira Michelon
Profa. Dra. Luciane Prado Kantorski
Profa. Dra. Vera Lucia Bobrowsky
Prof. Dr. Carlos Eduardo Wayne Nogueira
Prof. Dr. José Estevan Gaya
Prof. Dr. Luiz Alberto Brettas
Prof. Dr. Vitor Hugo Borba Manzke
Prof. Dr. Volmar Geraldo da Silva Nunes
Prof. Dr. William Silva Barros
EDITORA E GRÁFICA UNIVERSITÁRIA
R Lobo da Costa, 447 – Pelotas, RS – CEP 96010-150
Fone/fax: (53) 3227 8411
e-mail: [email protected]
Diretor da Editora e Gráfica Universitária: Carlos Gilberto Costa da Silva
Gerência Operacional:João Henrique Bordin
Impresso no Brasil
Edição: 2010
ISBN: 978-85-7192-750-6
Tiragem: 1000 exemplares
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação:
Bibliotecária Daiane Schramm – CRB-10/1881
C615e Claudino, Zaqueu Key
Educação Indígena em diálogo. / Zaqueu Key Claudino. – Pelotas: Editora
Universitária/UFPEL, 2010.
98p. ; 21 cm. (Cadernos Proeja II- Especialização-Rio Grande do Sul. Vol. II)
Organização Geral: Juçara Benvenuti, Tania Beatriz Iwaszko Marques, Simone
Valdete dos Santos, Mauro Augusto Burkert Del Pino.
ISBN 978-85-7192-750-6
1. Educação. 2. Memórias. 3. Formação. I. Título.
CDD540
APRESENTAÇ‹O
Simone Valdete dos Santos e Tania Beatriz Iwaszko Marques.......................7
APRESENTAÇ‹O - SETEC/MEC
Caetana Juracy Rezende Silva e Vânia do Carmo Nóbile Silva ...................15
EDUCAÇ‹O IND¸GENA EM DI˘LOGO NA UFRGS: UM SONHO
POSS¸VEL
Maria Aparecida Bergamaschi............................................................................19
EDUCAÇ‹O ESCOLAR IND¸GENA: UM SONHO POSS¸VEL?
Zaqueu Key Claudino .........................................................................................27
PENSANDO A EDUCAÇ‹O PROFISSIONAL E TECNOLŁGICA
INTEGRADA ¤ EDUCAÇ‹O ESCOLAR IND¸GENA
Caetana Juracy Rezende Silva.............................................................................85
APRESENTAÇ‹O
Simone Valdete dos Santos1
Tania Beatriz Iwaszko Marques2
A viagem não começa quando se percorrem distâncias,
mas quando se atravessam as nossas fronteiras interiores.
Mia Couto. O outro Pé da Sereia, p.65.
A Especialização PROEJA do Rio Grande do Sul de 2008 a 2010
percorreu distâncias geográficas de Porto Alegre a Bento Gonçalves, a Júlio
de Castilhos, a Alegrete; distâncias institucionais articulando a Universidade
Federal do Rio Grande do Sul aos Institutos Federais de Educação Profissional, Ciência e Tecnologia Rio Grande do Sul e Farroupilha (IFs Rio
Grande do Sul e Farroupilha) e foram atravessadas distâncias interiores ao
reunirmos, na gestão e execução das quatro turmas envolvidas, professores e
Doutora em Educação pela UFRGS. Coordenadora Geral da Especialização PROEJA/RS.
Professora da Faculdade de Educação da UFRGS. Professora e Orientadora do PROEJA. Email: [email protected]
1
Doutora em Educação pela UFRGS. Coordenadora Geral da Especialização PROEJA/RS.
Professora da Faculdade de Educação da UFRGS. E-mail: [email protected]
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VOLUME II | EDUCAÇ‹O IND¸GENA EM DI˘LOGO
técnicos administrativos da Faculdade de Educação da UFRGS, do campus
Bento Gonçalves do Instituto Rio Grande do Sul e dos campi Alegrete e
Júlio de Castilhos do Instituto Farroupilha.
Desse nosso encontro das fronteiras interiores, desde a primeira edição do curso em 2006, cerca de seiscentos especialistas em PROEJA foram
formados, nas treze turmas que certificamos, dos quais, hoje, vários estão
atuando como gestores, professores do curso e diretores de campus, como
docentes e como equipe administrativa junto às pró-reitorias dos campi
instituídos recentemente.
Ocupar esses espaços de gestão constitui um jeito de ser e de fazer a
Educação Profissional e a Educação de Jovens e Adultos do interior da
Universidade para o interior dos Institutos, em constante movimento que
reverbera para o já constituído grupo de pesquisa CAPES/PROEJA, para a
organização e execução do segundo seminário da especialização PROEJA
ocorrido em Bento Gonçalves dias 23 e 24 de abril de 2010, que a exemplo
do I Seminário em Santa Maria de 2009, também subsidiou os alunos e
alunas das turmas de Alegrete, Júlio de Castilhos, Bento Gonçalves e Porto
Alegre na elaboração dos trabalhos de conclusão de curso, visibilizados na
maioria dos artigos desta coleção.
Este conjunto de livros representa uma continuidade aos sete volumes decorrentes da segunda edição da especialização PROEJA, já lançados,
publicados pela Editora da Universidade Federal de Pelotas, realizados pela
coordenação da Especialização PROEJA Rio Grande do Sul edição 20072009, envolvendo a Universidade Federal do Rio Grande do Sul com duas
turmas em Porto Alegre, o campus São Vicente do Sul do Instituto Farroupilha com duas turmas, o campus Bento Gonçalves do Instituto Federal Rio
Grande do Sul com uma turma, o Colégio Técnico Industrial vinculado à
Universidade Federal de Santa Maria com duas turmas, todas elas tendo em
média 50 alunos-professores das redes pública municipal, estadual ou fede 8
CADERNOS DA ESPECIALIZAÇ‹O PROEJA II | RIO GRANDE DO SUL ral, nas áreas de Educação de Jovens e Adultos, Educação Profissional, dos
níveis Médio ou Fundamental.
Esta nova coleção, então nomeada: Cadernos PROEJA II Especialização Rio Grande do Sul, conta com nove volumes. Os primeiros volumes
estão diretamente vinculados aos trabalhos de conclusão de curso dos alunos
das quatro turmas da Especialização PROEJA, sendo realizada uma seleção
de artigos pelos organizadores de cada volume considerando a originalidade,
a relevância social e epistemológica presente em cada texto.
Destacamos o trabalho de orientação dos trabalhos de conclusão de
cursos já presente na primeira edição da especialização PROEJA, pois desde
aquela obra Reflexões sobre a Prática e a Teoria em PROEJA – Produções da
Especialização PROEJA RS, passando pelos sete cadernos já publicados da
segunda edição da Especialização, colocamos o orientador como segundo
autor do artigo, considerando seu trabalho de iniciação à pesquisa de muitos
professores especialistas, uma vez que em vários cursos de licenciatura pelos
quais nossos alunos – professores passaram não ocorreram momentos de
autoria. O trabalho de orientação tem reflexos diretos na prática docente,
sobretudo dos professores que atuam com Ensino Médio, nível de ensino
que passa por profunda crise no Brasil, denotando a fragilidade das pesquisas realizadas com o envolvimento dos jovens, cujas experiências possuem
valor inestimável para os processos de ensino e de aprendizagem.
Assim, a nova coletânea ora apresentada tem a seguinte estrutura: o
volume I inaugura uma reflexão sobre o PROEJA FIC – Educação Inicial e
Continuada, programa inédito para os campi, no convênio com prefeituras,
outras entidades de formação profissional que impõe novos arranjos para os
campi envolvidos, seja na formação de professores, seja na organização do
currículo, seja na perspectiva de atividades de extensão com estes trabalhadores pouco escolarizados, na possibilidade de frequência ao Ensino Médio
dentro dos IFs. Neste volume foram selecionados artigos das turmas de
Bento Gonçalves, Júlio de Castilhos e Alegrete, campi que estão realizando
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VOLUME II | EDUCAÇ‹O IND¸GENA EM DI˘LOGO
experiências de PROEJA FIC dentro da rede federal de Educação Profissional e Tecnológica, sendo organizadoras do volume as também executoras do
PROEJA FIC em suas instituições: Mariglei Severo Maraschin, Fernanda
Zorzi e Greice Gonçalves Girardi, contando com a participação das professoras Simone Valdete dos Santos e Juçara Benvenuti.
O volume II intitulado Educação Indígena em Diálogo apresenta o
Trabalho de Conclusão de Curso de um professor indígena kaingang3 da
turma de Porto Alegre, que concluiu a terceira edição da Especialização
PROEJA e atualmente é aluno em nível de Mestrado do Programa de PósGraduação em Educação da UFRGS, com bolsa da Fundação Ford e um
artigo de Caetana Juracy Rezende Silva coordenadora geral de Políticas de
Educação Profissional e Tecnológica na Secretaria de Educação Profissional
e Tecnológica – SETEC/MEC, a qual fala deste lugar importante da gestão
do PROEJA sobre educação escolar indígena.
O volume III, intitulado PROEJA Quilombola, organizado por Simone Valdete dos Santos e Paulo Sérgio da Silva, apresenta os Trabalhos de
Conclusão de Curso de três alunas da Especialização PROEJA, a partir de
pesquisas feitas nos quilombos de Limoeiro, Cambará e Casca, todos no Rio
Grande do Sul.
Nos quatro volumes sob o título Refletindo Sobre PROEJA constam
outros Trabalhos de Conclusão do Curso, das turmas 2008/2010. O volume
As produções dos quatro alunos professores Kaingang (Zaqueu Key Claudino, Andila
Nĩvygsãnh Inácio, Maria Inês de Freitas, Márcia Gojtẽn Nascimento) das duas turmas de
Especialização PROEJA, motivaram a Faculdade de Educação da UFRGS a propor para
SETEC uma turma específica de professores indígenas e gestores da Educação Indígena
para execução da Especialização PROEJA proposta diferenciada Indígena iniciando a turma
ao final de 2010 até primeiro semestre de 2012, no intuito de implementar o PROEJA Indígena no Rio Grande do Sul. Este curso está sendo protagonizado pela UFRGS, tendo outras
turmas de especialização com início em 2010: Santa Maria, executada pela Universidade
Federal de Santa Maria; Passo Fundo, executada pelo campus Passo Fundo do IF Sul- Riograndense; Alegrete, executada pelo campus Alegrete do IF Farroupilha; e Bento Gonçalves,
executada pelo campus Bento Gonçalves do IF Rio Grande do Sul.
3
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CADERNOS DA ESPECIALIZAÇ‹O PROEJA II | RIO GRANDE DO SUL IV foi organizado pelas professoras Fernanda Zorzi e Juraciara Paganello
Peixoto e é constituído pelas produções de Bento Gonçalves. No volume V,
os professores Juçara Benvenuti, Rafael Arenhaldt e Tania Beatriz Iwaszko
Marques reuniram os trabalhos de Porto Alegre. Já a turma de Júlio de
Castilhos foi organizada por Mariglei Severo Maraschin e Fábio Azambuja
no volume VI. E, a professora Greice Gonçalves Girardi fez a coletânea dos
artigos de Alegrete no volume VII. Encerrando os quatro volumes, apresentamos o texto Orientações no PROEJA de autoria da professora Tania Beatriz Iwaszko Marques.
O volume VIII, organizado por Fábio Azambuja Marçal, Mariglei
Severo Maraschin, Greice Gonçalves Girardi e Simone Valdete dos Santos
relata a organização e resultados do I Seminário dos Estudantes do Ensino
Médio do PROEJA em Santa Maria nos dias 22 e 23 de maio, que envolveu
a coordenação da Especialização PROEJA. Além disso, apresenta o material
didático Cartilha das Mulheres, que foi elaborado por professores e alunos
do PROEJA Ensino Médio Informática do campus Júlio de Castilhos. Além
disso, dá visibilidade ao trabalho desenvolvido em Bento Gonçalves e apresentado pela professora Fernanda Zorzi, com os alunos/professores da
Especialização PROEJA sobre o relato dos alunos do Curso Técnico em
Comércio, ambos como atores dessa política, abordando a estreita relação
entre a teoria e a prática, na luta por sonhos possíveis: a articulação da
Educação Profissional, Educação de Jovens e Adultos e Educação Básica.
Para finalizar, o volume apresenta uma carta dos estudantes e dos gestores
do PROEJA da rede federal de educação profissional, científica e tecnológica, reunidos em Santa Maria/RS em maio de 2010. O título desse volume é
Refletindo sobre PROEJA: Produções do PROEJA Médio.
O volume IX, intitulado Estudos sobre a Implantação do PROEJA,
organizado por Simone Valdete dos Santos, reúne duas pesquisas de mestrado e um artigo sobre os movimentos constituintes da Implantação do
PROEJA na rede federal de Educação Profissional e Tecnológica. As pesqui 11
VOLUME II | EDUCAÇ‹O IND¸GENA EM DI˘LOGO
sas que estão vinculadas aos programas de Pós-Graduação da Universidade
Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e da Universidade de Brasília
(UNB), analisam os processos de implantação do PROEJA na rede federal,
em cinco campi dos Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia,
quais sejam: Charqueadas no Rio Grande do Sul; Campos dos Goytacazes,
no Rio de Janeiro; Florianópolis, em Santa Catarina; Boa Vista, em Roraima; e Pelotas, no Rio Grande do Sul. O artigo da professora Jaqueline Moll
apresenta algumas reflexões sobre os desafios para a construção da Educação
Profissional e Tecnológica na EJA como política pública.
Por certo, as fronteiras interiores das Universidades, dos Institutos,
dos professores, dos alunos, dos gestores envolvidos com a Especialização
PROEJA, tanto no cuidado com sua execução, como na frequência às aulas,
ou na realização de seus seminários ultrapassou enormes distâncias. Ocorreu
também aproximação entre pesquisadores e estudos realizados no grupo
CAPES/PROEJA, na Especialização, em nível de Mestrado ou Doutorado,
nos cursos de PROEJA FIC, PROEJA Médio, nas propostas de Educação
Indígena diferenciada Guarani ou Kaingang e no PROEJA Quilombola.
Houve trocas de experiências nas funções de docência e gestão dos
Institutos e da Universidade, vinculadas à Educação Profissional, à Educação
de Jovens e Adultos e/ou ao PROEJA, bem como preocupação com a formação de professores inseridos nestas modalidades de Educação.
Além de tudo isso, todo o grupo, protagonista ou não, da Especialização PROEJA foi envolvido nas amizades, nos conflitos que tivemos ao
longo destes dois anos e na efetivação de mais esta coleção, que agiu sobre
nossos interiores e, sem dúvida alguma, nos fizeram pessoas melhores.
A parceria iniciada na coleção anterior com a editora da Universidade Federal de Pelotas, intermediada pelo professor Mauro Augusto Burkert
Del Pino, professor da Especialização PROEJA, integrante do grupo de
pesquisa CAPES/PROEJA se mantém na atual publicação, assim como a
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CADERNOS DA ESPECIALIZAÇ‹O PROEJA II | RIO GRANDE DO SUL revisão e a formatação, de cada volume, feita pela professora da Especialização PROEJA e orientadora de TCCs Juçara Benvenuti.
Encerramos com as belas palavras do professor Dr. Balduíno Andreolla, que foi nosso diretor da Faculdade de Educação da UFRGS, na apresentação do livro Formação de Educadores, lançado recentemente pela
editora da UNIJU¸: „Nunca apreciei muito as estrelas que brilham sozinhas
e distantes do firmamento. ¤ luz ofuscante e solitária das estrelas de primeira grandeza, preferi sempre a luz mansa e fraternal das constelações‰.
A coleção que aqui se apresenta é obra de constelações que brilharam para organizar a Especialização PROEJA e brilham continuamente para
o pleno êxito das turmas de PROEJA FIC e PROEJA Médio em suas instituições, acreditando no brilho maior que é ofertar Educação Profissional de
qualidade integrada à Educação Geral para jovens e adultos trabalhadores do
Brasil.
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APRESENTAÇ‹O - SETEC/MEC
Caetana Juracy Rezende Silva1
Vânia do Carmo Nóbile Silva2
Eu me declaro culpado de não ter
feito, com estas mãos que me deram,
uma vassoura.
Por que não fiz uma vassoura?
Por que me deram mãos?
Pablo Neruda
A questão da formação de profissionais – docentes, gestores, técnicos –
para a educação básica tem se colocado na pauta de grande parte das discussões sobre a qualidade e universalização deste nível educacional. Nas diversas
instituições, redes e sistemas de ensino, estes profissionais encontram dificul Mestre em Música. Técnica em Assuntos Educacionais do Ministério da Educação. Coordenadora-Geral de Políticas de Educação Profissional e Tecnológica SETEC/MEC. E-mail:
[email protected]
2 Mestre em Educação. Coordenadora Nacional do PROEJA – Diretoria de Políticas de Educação Profissional e Tecnológica da Secretaria de Educação Profissional e Tecnológica do
Ministério da Educação – DPEPT/SETEC/MEC. E-mail: [email protected].
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VOLUME II | EDUCAÇ‹O IND¸GENA EM DI˘LOGO
dades frente aos inúmeros desafios decorrentes de uma realidade complexa,
envolvendo grandes desigualdades sociais, aceleradas modificações científicotecnológicas, mudanças no campo produtivo e nas relações de trabalho, entre
outras.
Em 2006, a formulação de uma proposta geral para o desenvolvimento de cursos de pós-graduação lato sensu, visando à formação de especialistas
em educação profissional integrada com a educação de jovens e adultos –
circunscrita nas ações de estruturação do PROEJA – buscou responder parcialmente à demanda das redes de ensino frente aos desafios de proporcionar a
jovens e adultos escolarização e profissionalização alicerçadas na compreensão
do direito de todos à educação e na concepção de formação omnilateral, na
perspectiva do pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício
da cidadania e sua qualificação para o trabalho3. O financiamento dessa ação
foi pensado como forma de promover as condições necessárias para o desenvolvimento de outras propostas formativas e produção de conhecimentos
nesse campo educacional, passando a compor o quadro geral de iniciativas de
formação de profissionais para a educação básica.
A Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS, por intermédio de sua Faculdade de Educação, desde o primeiro convite, ainda em 2006,
tem coordenado o polo constituído juntamente com outras instituições federais desse estado. Tem promovido uma das melhores experiências de integração entre as ações de formação e de pesquisa (grupo em que participam também os Institutos Federais, a Universidade Federal de Pelotas e a UNISINOS)
com a oferta dos cursos PROEJA desenvolvidos nos Institutos Federais Farroupilha, Sul Rio-Grandense e do Rio Grande do Sul e nas escolas técnicas
vinculadas à Universidade Federal de Santa Maria, além de outras experiências
de EJA, o polo do Rio Grande do Sul é responsável pelo maior conjunto de
publicações sobre PROEJA em todo o país.
Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, Art. 205, sobre os objetivos da
educação.
3
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CADERNOS DA ESPECIALIZAÇ‹O PROEJA II | RIO GRANDE DO SUL A proposta de se oportunizar aos educadores e demais profissionais da
educação, inseridos ou que venham a se inserir no desenvolvimento dos
cursos PROEJA, uma formação continuada a partir da sua experiência docente tem mostrado a importância de que esta formação surja da identificação e
da reflexão sobre sua prática pedagógica, no sentido da formação pessoal e
profissional que o faz educador.
Assim, o currículo do curso de pós-graduação lato sensu do polo coordenado pela UFRGS, com seus projetos integradores e com a construção
dos memoriais formativos tem possibilitado a discussão de temáticas fundamentais para o fortalecimento do PROEJA como as concepções, financiamento, formação de professores, currículo, material didático, articulação entre as
esferas de governo, acesso e permanência, gestão e estrutura da escola para
implementação do PROEJA, bem como da reflexão sobre os educandos e suas
trajetórias escolares e profissionais.
As temáticas escolhidas para a reflexão proposta aos leitores nesta coletânea dos Cadernos PROEJA II – Especialização Rio Grande do Sul revelam
um olhar para a implantação e o desenvolvimento dos cursos PROEJA Técnico e de Formação Inicial e Continuada no contexto dos Institutos Federais,
mas também um olhar sensível para as temáticas específicas como a indígena
e a quilombola ao revelar as possibilidades da integração da educação profissional e educação básica para jovens e adultos a partir das particularidades
dessas comunidades.
O cuidado na escolha e organização dos artigos revela ainda a preocupação com a escuta e consideração do que têm a dizer àqueles que constituem o PROEJA, direta ou indiretamente, ao apropriarem-se de sua essência
para recriá-lo nos espaços escolares e na sociedade em geral.
Refletindo a partir das palavras do poeta Pablo Neruda sobre a produção do polo de Especialização PROEJA no Rio Grande do Sul, evidencia-se o
esforço de estudantes, pesquisadores e educadores em recolher o fio da vassou 17
VOLUME II | EDUCAÇ‹O IND¸GENA EM DI˘LOGO
ra verde ainda na terra, colocar para secar os talos ternos e unir num feixe
áureo, juntando um caniço de madeira à saia amarela até dar uma vassoura
aos caminhos.
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EDUCAÇ‹O IND¸GENA EM DI˘LOGO
NA UFRGS: UM SONHO POSS¸VEL
Maria Aparecida Bergamaschi1
Como orientadora de Zaqueu Key Claudino, estudante Kaingang que
muito honra e enriquece a universidade com sua presença, é uma alegria
apresentar o seu trabalho de conclusão de curso da Especialização em Educação Profissional Integrada à Educação Básica na modalidade de Educação de
Jovens e Adultos, neste volume, que é o número IX da coleção Cadernos da
Especialização PROEJA. O autor desta obra é professor na Escola Estadual
Indígena de Ensino Fundamental Fag Nhin, escola diferenciada e bilíngue,
situada na aldeia do mesmo nome, no município de Porto Alegre. Zaqueu
nasceu na Terra Indígena da Guarita - RS, com a qual mantém contanto
frequente, pois segundo ele, lá estão suas raízes, lá está sua família. Conheci
seu pai no dia em que veio visitar pela primeira vez a universidade, muito
orgulhoso por seu filho estudar na UFRGS, assim como seus netos Cleverson
e Gilmar, que estão cursando História e Ciências Sociais, respectivamente. O
pai de Zaqueu sabe que não precisa da universidade para formar uma pessoa
Doutora em Educação. Professora na Graduação e na Pós-Graduação da Faculdade de
Educação da UFRGS. Integrante da Comissão de Acesso e Permanência do Estudante
Indígena na Universidade e pesquisadora de questões relacionadas à Educação Indígena. Email: [email protected]
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VOLUME II | EDUCAÇ‹O IND¸GENA EM DI˘LOGO
kaingang, mas sabe também da importância estratégica de formar profissionais que possam assumir a condução do trabalho nas escolas, nos postos de
saúde, nas instituições que tratam das questões indígenas em geral, hoje ocupada majoritariamente pelos fog2.
Por que da alegria? A celebração de um momento importante, como a
conclusão da Especialização e a possibilidade de divulgar a produção de um
aluno por mim orientado no processo de elaboração do trabalho final são
suficientes para responder a pergunta. Mas, se somam a esse, outros motivos,
que considerados numa trajetória coletiva, percebo-os como bifurcações na
história da educação brasileira, na história da universidade, na história do
Brasil. Ilya Prigogine, destacado cientista russo, Nobel de Física em 1977, num
texto denominado Carta para as Futuras Gerações, publicado no Caderno
Mais do Jornal Folha de São Paulo em janeiro de 2000, disse que „bifurcações
são a um só tempo um sinal de instabilidade e um sinal de vitalidade em uma
dada sociedade. Elas expressam também o desejo por uma sociedade mais
justa‰ e anunciam um sentimento otimista em relação à história, em relação
ao próprio movimento da sociedade e as possibilidades que são colocadas
para quem acredita, como eu, que o futuro não está dado e que vale a pena
sonhá-lo.
E Prigogine, envolvido pelo sentimento de novo começo que perpassava o período de mudança de século e de milênio, visto que o artigo aqui
lembrado foi publicado em meio às celebrações do final século XX e limiar do
século XXI, perguntava: „Mas qual será o resultado dessa bifurcação? Em qual
de seus ramos nos encontraremos‰. Atualizando a reflexão ao reler o artigo no
momento que me vejo na situação de apresentar o livro escrito pelo estudante
indígena, situação que me desafia, mas acima de tudo mostra um dos resultados dessa bifurcação e revela uma presença desejada e festejada, já como fruto
de muitas semeaduras que encontrou pequenos espaços de solo fértil e propí 2
Denominação dada à pessoa não-indígena na língua kaingang.
20
CADERNOS DA ESPECIALIZAÇ‹O PROEJA II | RIO GRANDE DO SUL cio para a germinação no meio universitário. Há mais de dez anos Prigogine
alertava: „a preservação do pluralismo cultural e o respeito pelo outro exigirá
toda a atenção das gerações futuras‰. Faz bem pensar que sonhos sonhados
por gerações anteriores, como os do cientista aqui recordado, são parte de um
pequeno, mas importante movimento que altera a UFRGS na direção de sair
da monologia que predomina em sua configuração cultural, social, epistemológica e mostra os primeiros passos na direção do pluralismo cultural e o
respeito ao outro.
Diante dessa publicação, penso que a universidade pode se olhar com
mais orgulho, por ter em seu seio a presença de estudantes indígenas em
diversos cursos: na graduação, desde 2008, dez estudantes ingressam a cada
ano; no mestrado acadêmico, conta com um estudante na Pós-Graduação em
História, o autor desta obra na Pós-Graduação em Educação e já tem um
mestre formado; nas Especializações PROEJA, que lentamente abriram suas
portas, tem quatro especialistas e oferece, nesse ano, o primeiro curso diferenciado: „Especialização em Educação Profissional Integrada à Educação Básica
na Modalidade de Educação de Jovens e Adultos – Proposta diferenciada para
Indígenas‰. Vejo nessas ações da universidade um importante projeto de
futuro, que timidamente inicia o movimento para instituir, desde esse lado
não-indígena da sociedade brasileira, um diálogo intercultural com os povos
indígenas. Digo desde cá, pois os povos indígenas mostram concretamente sua
disposição para isso e segundo Canclini (2007) são os que apresentam hoje
um patrimônio mais palpável para a interculturalidade.
Entendo interculturalidade como um movimento concreto da sociedade que, como explica Canclini (idem, p. 17), remete „à confrontação e ao
entrelaçamento, àquilo que sucede quando os grupos entram em relações de
troca‰. O antropólogo mexicano evidencia que para existir a interculturalidade é necessária a vontade de re-conhecer e aceitar a heterogeneidade e, principalmente compreender e admitir que todos os grupos culturais se constituem
em relação. Essa relação implica „negociação, conflito e empréstimos recípro 21
VOLUME II | EDUCAÇ‹O IND¸GENA EM DI˘LOGO
cos‰ e requer a construção de um patrimônio para o diálogo intercultural. No
decorrer da história, num intenso processo de interação com as sociedades
nacionais, os povos indígenas construíram um patrimônio que lhes permite
hoje apontar os espaços políticos necessários para manter uma vida digna,
como o espaço da universidade, pela qual mostram grande interesse. É nesse
espaço que formarão especialistas para assumir postos-chave na produção e
condução de suas políticas. Mas, acima de tudo, mostram que estão dispostos
a compartilhar seus valores, apreender com as trocas, conquanto mantenham
espaços sociais diferenciados e inegociáveis. Observamos que suas sociedades
se transformam por meio da dinâmica cultural que as modificam, no entanto
continuam indígenas. E, nesse sentido, Canclini diz:
Não é pouca coisa este patrimônio de interculturalidade numa
época em que a expansão busca uniformizar o design de tantos
produtos e subordinar os diferentes padrões internacionais;
quando, por exemplo, a maioria dos estadunidenses não sente
necessidade de saber nada além do inglês, conhecer sua própria
história e só imaginar com seu cinema e sua televisão. Os povos indígenas têm a vantagem de conhecer pelo menos duas
línguas, articular recursos tradicionais e modernos, combinar o
trabalho pago com o comunitário, a reciprocidade com a concorrência mercantil (2007, p. 69).
Essas questões estão bem presentes no trabalho de Zaqueu Key Claudino, em cujas páginas oferece aos leitores o exercício constante de articular,
num trabalho acadêmico de conclusão de curso, a sabedoria de seu povo, os
preceitos da educação tradicional kaingang, sendo alguns trechos escritos no
seu idioma materno e os pressupostos da educação escolar indígena. Além de
apresentar essa escrita para sua comunidade e contribuir para a qualificação
dos professores indígenas que atuam nas escolas específicas e diferenciadas
situadas nas Terras Indígenas, também oferece essa sabedoria como referência
para pensar as práticas educacionais da sociedade moderna, tão carente de
reflexão em torno dos seus valores educacionais. O pensamento de Zaqueu vai
22
CADERNOS DA ESPECIALIZAÇ‹O PROEJA II | RIO GRANDE DO SUL se materializando nesse livro como um verdadeiro diálogo entre diferentes
cosmologias: uma que tem a escola em seu centro educacional e que a introduziu no seio das comunidades indígenas desde os tempos da colonização,
intensificando sua ação no período republicano da história nacional; e outra
que representa a cosmovisão kaingang e os modos próprios de educar.
Quando iniciou seu trabalho de conclusão de curso o estudante da
especialização, hoje cursando o mestrado, mostrava grande preocupação em
compreender e se apropriar da teoria educacional não-indígena, principalmente em adequar sua pesquisa aos moldes acadêmicos. Foi desafiado para deixar
fluir sua escrita e também pesquisar autores da sua tradição, autores que
constituem uma „biblioteca viva‰, pois são os detentores do saber numa
sociedade de cultura oral e, nesse sentido, Zaqueu percebeu um caminho
importante, de afirmar a cultura e os saberes kaingang. Os leitores dessa obra
poderão ver que as referências, que constam ao final do texto como toda boa
obra acadêmica, remetem a alguns saberes da tradição escrita acadêmica, mas
principalmente, a autores da tradição oral indígena. São os depoimentos de
pessoas mais velhas, como Felipe Rëtón da Silva e João Carlos Kanheró, ou
jovens pesquisadores kaingang, que hoje vivem de forma intensa a interculturalidade, como Danilo Braga, Selvino Kókaj Amaral, Amilton Mello e seu
filho, hoje estudante do curso de História na UFRGS, Cleverson Nïvénh-mág
Claudino.
Outra marca singular do texto de Zaqueu são as epígrafes, trechos escritos na língua kaingang e que abre cada seção. Por meio delas o autor se
dirige com exclusividade ao seu povo, aos professores bilíngues, aos estudantes
das escolas indígenas kaingang. Como uma saudação, antecipa por meio
dessas afirmações o que trata cada uma das seções, colocando em primeiro
lugar um idioma que já foi rechaçado pela sociedade nacional, considerado
feio. Contou que ainda hoje, ao conversar com seus parentes, há duas perguntas iniciais: a primeira para identificar a marca tribal proveniente da dualida 23
VOLUME II | EDUCAÇ‹O IND¸GENA EM DI˘LOGO
de cosmológica de seu povo e a segunda é para saber se o interlocutor é falante „da língua feia‰.
Por isso, ao apresentar seu trabalho de conclusão na sala 924, 9… andar
da Faculdade de Educação, diante de uma platéia respeitosa e ávida por conhecer os saberes que seriam apresentados, proferiu uma primeira fala em
Kaingang, sem dúvida dirigida a sua família e ao parente e colega de universidade aí presente, mas imagino que, sobretudo para afirmar um conhecimento
que até há pouco tempo foi negado pela academia e pela sociedade nacional.
E, em meio a uma fala emocionada, deixou escapar a frase: „e pensar que já
houve um tempo em que falar na língua kaingang era considerado feio!‰. A
maioria das pessoas presentes nesse ritual acadêmico não compreendeu a fala
proferida em kaingang, mas acompanhou com atenção e admiração e esperou
o momento em que o aluno fez a tradução e compartilhou os resultados de
sua pesquisa, fundamentada pela sabedoria de seu povo com quem teve a
oportunidade de apreender desde pequeno, como nos conta em seu texto.
A educação escolar indígena está sendo pensada por muitos intelectuais indígenas. Durante muitos anos não houve espaço institucionalizado para
que os próprios indígenas conduzissem suas escolas e ainda hoje isso não
ocorre de forma plena. Mas, o que presenciamos e acompanhamos é o trabalho intenso, como o registrado no texto de Zaqueu, em que uma postura
crítica diante das práticas escolares que não são organizadas para serem, de
verdade, específicas e diferenciadas fundamenta-se nos saberes tradicionais.
É a vontade de fazer da escola um espaço eminentemente indígena
que aciona a pergunta do título do livro: „Educação escolar indígena: um
sonho possível?‰ e é a decisão de que a condução da política de educação
escolar indígena precisa seguir outra direção que pauta a escrita de Zaqueu.
Como ele mesmo afirma na primeira página de seu trabalho:
24
CADERNOS DA ESPECIALIZAÇ‹O PROEJA II | RIO GRANDE DO SUL Exige-se que o processo educativo considere toda essa diversidade não apenas em nível declarativo, mas criando mecanismos que possam viabilizar um trabalho de revitalização cultural da etnia kaingang na prática, no estado do Rio Grande do
Sul.
Com a fluência marcada por um modo específico de narrar, como se
contasse uma história, Zaqueu, nas dez seções que compõem seu trabalho,
pensa nas questões importantes que envolvem a relação da sociedade não
indígena com as sociedades indígenas, questionando a generalização que a
escola reforça, ao não singularizar a história e a cultura de cada etnia, de cada
povo. Afirma que os povos indígenas têm um sistema de educação e que a
escola introduzida nas Terras Indígenas, em geral desconhece esses saberes
tradicionais.
Concordando com Zaqueu, junto as minhas palavras para chamar a
atenção dos leitores: é comum as escolas brasileiras se ensinar „usos e costumes‰ dos povos indígenas. Quando se fala em história e cultura dos povos
indígenas ouvem-se relatos como estes: „chamamos um grupo indígena para
apresentar suas danças‰. Sim, isso é importante, mas quero, junto com Zaqueu, dizer outra coisa: os povos indígenas têm saberes, tem conhecimentos,
tem História, tem um complexo sistema cultural e, compondo essa sociedade
há um sistema educacional tradicional. E é esse sistema que o autor descreve
nas páginas do Caderno da Especialização PROEJA, anunciando que aqui
estão as bases para fundamentar uma educação escolar diferenciada e quiçá
um PROEJA Kaingang.
Portanto, eu vejo que, a conclusão do curso de Especialização para
mais um estudante indígena, significa sim a formação de um quadro de especialistas que poderá assumir, em breve, a condução das políticas de educação
escolar indígena, poderá assumir a direção das escolas nas Terras Indígenas,
hoje dirigidas por professores não-índios. Mas tem outros significados ainda:
25
VOLUME II | EDUCAÇ‹O IND¸GENA EM DI˘LOGO
é a possibilidade da sistematização de conhecimentos que registrados em livro
podem constituir a base da organização das escolas indígenas. É a possibilidade de constituir um referencial bibliográfico que, além de outro conteúdo,
alia outra forma de escrever, enriquecendo a literatura educacional brasileira
que já vem bebendo nessa fonte, pois Zaqueu integra um grupo significativo
de indígenas escritores, que registra e divulga por meio da escrita o que os
intelectuais indígenas denominam de educação tradicional.
Dialogando com a Educação Indígena, segue a escrita de Zaqueu o
texto de Caetana Juracy Rezende Silva, coordenadora-geral de Políticas de
Educação Profissional e Tecnológica na Secretaria de Educação Profissional e
Tecnológica – SETEC/MEC, que tece considerações importantes para pensar a
Educação Escolar Indígena, principalmente Ensino Médio e Profissionalizante. Seu artigo anuncia um movimento de suma importância: a apropriação de
argumentos produzidos por intelectuais indígenas, argumentos estes que
podem sustentar políticas públicas mais próximas das aspirações dos povos
ameríndios. A consideração à produção intelectual indígena evidencia o respeito e o reconhecimento aos saberes desses povos, tratando com igualdade os
conhecimentos advindos de diferentes cosmologias e constitui uma amostra
do cuidado com o outro, da busca de complementaridade, de diálogo intercultural.
Almejando aprendizagens interculturais, a todos os leitores desejo
uma boa leitura!
Referências
CANCLINI, Nestor García. Diferentes, desiguais e desconectados: mapas da interculturalidade. 2. ed. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2007.
PROGOGINE, Ilya. Carta para as futuras gerações. Jornal Folha de São Paulo, Caderno "Mais!". São Paulo, 30 de jan de 2000.
26
EDUCAÇ‹O ESCOLAR IND¸GENA: UM
SONHO POSS¸VEL?
Zaqueu Key Claudino1
Resumo
O principal objetivo deste trabalho é fazer uma reflexão sobre as políticas educacionais integracionistas e sobre a política atual de educação escolar, que se fundamenta
no paradigma da interculturalidade, mas também na falta de respeito com a diferença da metodologia que os professores indígenas do sul do país usam e vem usando.
O indígena, vivendo em intenso contato com a sociedade não indígena que o cerca,
conserva uma espécie de lealdade à sua identidade cultural étnica. Portanto, para que
este trabalho ou sonho possa ser desenvolvido com dignidade é necessário que as
políticas criadas para a educação escolar indígena dêem condição apropriada para
que os professores e pesquisadores desta modalidade de ensino, a educação escolar
indígena, desenvolvam propostas pedagógicas diferenciadas e específicas, voltadas
especialmente para a modalidade do Ensino Fundamental, Ensino Médio e Educação
de Jovens e Adultos. Exige-se que o processo educativo considere toda essa diversidade não apenas em nível declarativo, mas criando mecanismos que possam viabilizar
um trabalho de revitalização cultural da etnia kaingang na prática, no estado do Rio
Grande do Sul. Por meio de políticas voltadas para a educação escolar indígena com
propostas pedagógicas diferenciadas em sala de aula, para que os indígenas que não
tiveram acesso à educação no tempo considerado normal tenham oportunidade de
Especialista em Educação Profissional Técnica de Nível Médio Integrada ao Ensino Médio na
Modalidade de Educação de Jovens e Adultos. Professor na Escola Estadual Indígena de
Ensino Fundamental Fag Nhin. E-mail: [email protected]
1
VOLUME II | EDUCAÇ‹O IND¸GENA EM DI˘LOGO
voltar a estudar nesta modalidade de ensino que é a EJA. Nesse trabalho apresento
como esses povos indígenas sofreram desde os tempos da colonização e vem sofrendo
ainda hoje, com ataques, perseguições e desvalorização da metodologia usada pelo
professor indígena, com falta de atendimento e entendimento do governo federal.
Para que o assunto seja melhor entendido fez-se necessário uma descrição resumida
dos aspectos históricos, políticos, sociais e econômicos da referida sociedade. Os
aspectos tradicionais da dinâmica kaingang oferecem mais que um exemplo de
resistência de uma sociedade frente a um massacre programado que dura mais de
cinco séculos. São esses aspectos da cultura tradicional que constituem referênciaschave para a elaboração e implementação das estratégias kaingang com relação ao seu
convívio com os não indígenas, através da educação escolar indígena: um sonho
possível.
Movimento de resistência de professores bilíngues, contra os ataques sofridos pelos Kaingang,
Terra Indígena Guarita RS. Fotografia cedida pela professora bilíngue Marli Kej Claudino.
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CADERNOS DA ESPECIALIZAÇ‹O PROEJA II | RIO GRANDE DO SUL Apresentação
Pertenço à etnia Kaingang, faço parte da metade exogâmica Kamë „Rá
Téj‰, me chamo Zaqueu Key Claudino. Nasci na Terra Indígena Guarita,
noroeste do Estado do Rio Grande do Sul no município de Miraguaí. Desde
que nasci, ou seja, quando criança já participava dos cerimoniais que aconteciam na aldeia. Ao se aproximar os festejos, os rituais de transição para a vida
adulta, meus pais e meus padrinhos se preparavam para comemorar mais um
cerimonial que lhes concedia mais um adulto ao seu convívio social e fazer
parte das decisões que são tomadas na casa dos homens, „Kanhgág ag ˛n‰.
Então, a partir do costume, cresci aprendendo, isto é, fui me tornando adulto, bebendo o saber indígena da minha comunidade nos contatos
pessoais, sociais e diários. O aprendizado que recebi do meu povo, dos meus
familiares fez com que me tornasse um cidadão Kanhgág Pë, um sacerdote da
sociedade Kaingang. Este saber que absorvi me acompanha até os dias de hoje,
com ele aprendi os primeiros conhecimentos para me tornar homem e servir
de referência para os mais novos de minha etnia. Mais tarde ingressei também
nos saberes da escola, e este saber ocidental fez com que me preocupasse com
o meu povo. Foi com este intuito que, após terminar o antigo primeiro grau,
preocupado com minha formação, tornei-me professor bilíngue, com uma
especificidade voltada para o meu povo no curso VÄFY.
Mais tarde entrei na academia, formando-me em Pedagogia - Licenciatura e hoje sou um pesquisador da educação escolar indígena kaingang. Cursei
a Pós-Graduação lato-senso (PROEJA) e este trabalho foi um dos requisitos
para conclusão da Especialização PROEJA.
Esse trabalho pode constituir uma base para futuras pesquisas na área
de educação escolar indígena ou áreas voltadas para a história e a cultura
indígenas kaingang, pois nasce de uma releitura sobre o meu povo kaingang,
de estar vivendo o contemporâneo, a formação na cultura e como a escola em
si precisa trabalhar os conhecimentos ancestrais e a história indígena, trazendo este saber para a atualidade. Colocar a educação escolar indígena em pé de
29
VOLUME II | EDUCAÇ‹O IND¸GENA EM DI˘LOGO
igualdade com a educação escolar brasileira este é o meu desejo, seja no âmbito do Ensino Fundamental, Ensino Médio como também no PROEJA. A
partir deste olhar precisei fazer uma interlocução com bibliografias, consultando obras de pesquisadores que escreveram sobre o nosso povo; mas trabalhei, principalmente, com o saber tradicional dos velhos, do kujá, que é a
nossa biblioteca tradicional Kaingang.
Saudoso Kakrë Dinarte Bento.
Fotografia cedida por Claudir Trindade morador da Terra Indígena Kaingang Fág Nhin
– Lomba do Pinheiro, Porto Alegre/RS
30
CADERNOS DA ESPECIALIZAÇ‹O PROEJA II | RIO GRANDE DO SUL A sociedade Kaingang no mundo Contemporâneo
˙g ta uri fóg ag vï tavïn tu vënhkajränrän mü ën tu vënhrá vë
tag ti. Kar ëg tóg fóg ag rike nÈtï sór mü ën tu ke vê gé, hära
inh mré ëg tü tavïn tu väsän, ëg krë ag ta käjatun tü nïn jé.
A sociedade indígena Kaingang vem, em sua trajetória, modificandose ao longo dos tempos, hoje muito mais transformada, ou seja, com o modo
de vida diferenciado, influenciado pelo não indígena. Mesmo assim, conserva
uma espécie de lealdade a sua identidade étnica e cultural, o que não deixa de
ser um traço de sua dignidade pessoal.
Há muitos povos indígenas vivendo no Brasil, porém, são poucos os
que vivem exclusivamente de suas fontes tradicionais, como caça e pesca.
Outros já vivem da forma muito semelhante às sociedades envolventes, como,
por exemplo, no que diz respeito à sustentabilidade econômica. Atualmente
existem muitos indígenas que vivem em casas com energia elétrica, possuem
aparelhos de som, TV e computador. Estes têm outra forma de sustentação:
sabem usar um carro para se locomover, conservam seu idioma tradicional ao
lado de um português quase que perfeito e atuam no cenário político, frequentando também a rotina de universidades. Mesmo sabendo que são membros de uma sociedade tradicional que conhecem a rotina de várias fontes ou
saberes não indígenas, não são todos que participam destes eventos porque a
maioria destas pessoas já tem uma formação do conhecimento tradicional,
que são transmitidos através do conhecimento dos mais velhos, este é muito
mais considerada do que frequentar e receber conhecimento científico das
universidades.
Frente a várias transformações, o indígena traz em si heranças muito
antigas que afloram nos mais diversos momentos, que se legitimam durante
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VOLUME II | EDUCAÇ‹O IND¸GENA EM DI˘LOGO
os rituais, ainda praticados em suas aldeias. O indígena não vive mais somente da caça, da pesca e da coleta de frutas e legumes. A prioridade hoje é a terra,
pois com ela os indígenas podem manter o seu modo de vida, se adequando
às mudanças socioeconômicas, plantando e produzindo artesanato. Assim,
sustenta sua família e cria seus filhos como faziam seus antepassados, mesmo
morando em casa com energia elétrica, ouvindo rádio e vendo TV.
A partir disso não é possível generalizar o modo de vida dos povos
indígenas do país, pois cada etnia vive de acordo com a sua cultura. As sociedades mudam, e isso não seria diferente com os povos indígenas no sul do
país. Os meios de informação todo o tempo vem se modificando, a tecnologia
esta em todos os lugares e à disposição para que delas façam uso em suas
pesquisas. Mas nem sempre a informação é passada de modo correto. Como é
o caso da Educação Escolar Indígena, uma questão muito discutida em todas
as fases do ensino, seja ela Diferenciada, Específica ou do modo como cada
povo dela se apropria. Esta é uma questão que os pesquisadores elegem como
mistério, enquanto que para outros é desconhecida.
A realidade que o povo kaingang vive é que os diferencia da sociedade
envolvente, da forma de pensar, do ensinar e do aprender, mesmo sabendo
que estão em processo de formação de sua escrita e absorvendo técnicas ao
saber kaingang, preservam o valor que a oralidade confere a este povo e, é
ouvindo o KUJ˘ que eles crescem apreendendo com os membros mais velhos
da sua comunidade. De forma geral são eles, os „kujá‰, os que transmitem a
sabedoria e que fortalecem cada vez mais a cultura, seja em sala de aula ou
fora da escola, na mata ou em qualquer contato social. Eles representam à
força de vida e preparam os mais jovens para a continuação de sua etnia; por
serem considerados a biblioteca viva do seu povo, sabem de onde vieram,
onde estão e sabem para onde estão indo.
A realidade que a sociedade envolvente traduz, na contemporaneidade, para outros seguimentos de comunidade, o povo indígena interpreta de
vários ângulos. A sociedade kaingang dá mais importância aos princípios
32
CADERNOS DA ESPECIALIZAÇ‹O PROEJA II | RIO GRANDE DO SUL básicos de seus costumes, dos valores culturais que regem a vida social desta
etnia. Isso é resultado da vivência e da experiência dos velhos, que transmitem
o saber em harmonia com seu povo, pois sabem que a continuação dos saberes kaingang não depende somente aos lideres políticos „caciques‰, mas sim
dos velhos e do Kujá, que detém o saber tradicional kaingang. Olhando a
sociedade não indígena, na visão das sociedades tradicionais, compreendemos
que eles (os Fóg) são capazes, muitas vezes, de prejudicar os seus próprios
irmãos ou parentes para ter benefícios próprios. Não entendem que a coletividade é uma organização da mais alta qualidade para se ter uma sociedade
justa, onde todos possam participar e ter oportunidade de estar sendo beneficiados como indivíduos e também como seres humanos.
Para se ter uma idéia, havia educação, ou seja, o ensino transmitido
antes mesmo que houvesse escola entre os kaingang. O aprendizado se dava
em qualquer tipo de contato, pois era sempre possível aprender algo novo no
intercâmbio com os mais velhos. Esta concepção era visível porque um membro kaingang, mesmo sendo muito jovem, aprendia as mais variadas formas
de como deveriam absorver o aprendizado, desde o seu nascimento até a sua
formação inicial ao mundo do adulto. Cada indivíduo pertencente a uma
metade exogâmica Kamë ou Kajru tinha seu orientador ou o seu „Kajrän fä‰,
uma espécie de professor que lhe orientava até a vida inicial ao mundo dos
adultos. Percebe-se que na formação inicial o jovem indígena aprende primeiramente como lidar com a dor, a partir desta formação está aprendendo que a
existência do conhecimento mesmo sendo muito jovem/pequeno é de grande
valia, por que é neste momento de aprendizagem que a criança começa a
participar da vida cotidiana da sua comunidade.
Os paramentos que os kujá e os mais velhos da aldeia preparam para
uma iniciação dos jovens para a vida adulta, começam a partir da festa comemorada pelo kujá, quando é ordenada aos futuros guerreiros a responsabilidade pela busca dos materiais como, fogo, água, lenha e a trituração no
pilão, exceto as ervas medicinais, colhidas somente pelo kujá.
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VOLUME II | EDUCAÇ‹O IND¸GENA EM DI˘LOGO
Na cultura kaingang, a fala é mais importante que a escrita e por isso
que os Kujá treinam a memória dos jovens indígenas para poderem utilizá-la
para passar os conhecimentos ancestrais aos futuros descendentes de sua etnia. E
é ouvindo as histórias dos ancestrais que os jovens kaingang iniciam a vida de
um verdadeiro guerreiro ou tornam-se líderes políticos de seu povo. Desta forma
mostram às pessoas como é o dia-a-dia de um menino índio e o que ele faz para
aprender as coisas necessárias para sua vida. Apreendem que o conhecimento
ancestral é uma importante ferramenta para conservar o saber kaingang.
Os povos indígenas possuem espaços e tempos educativos próprios, dos quais participam a pessoa, a família, a comunidade,
sendo a educação assumida como responsabilidade coletiva. E
ela acontece em processo: ao longo de sua vida uma pessoa está
sempre aprendendo. Ela é viva e exemplar: aprende-se pela participação na vida, observando e agindo. (Bonin, 2008, p. 99).
Casal kaingang tecendo artesanato, conhecimento adquirido no contato com os velhos de sua
etnia.
34
CADERNOS DA ESPECIALIZAÇ‹O PROEJA II | RIO GRANDE DO SUL Formação na visão Kaingang
Vänhrá tag vÈ ëg si ag ta, ëg kajränrän ja tu ke nï, mÈr ün si,
gufä ag jykre hä vÈ ëg ta ag kajró vyn kÈ nÈtï ën ge nï, tag hä vÈ
há nÈ há më.
A alfabetização, que introduz a escrita para o povo indígena, não coincide com a sua forma de ser e estar. Esta sociedade interpreta que ler e escrever é
uma técnica, da mesma maneira que alguém pode aprender a dirigir um carro
ou a operar uma máquina. Então a pessoa opera essas coisas, mas não dá a elas a
exata dimensão de que têm ou do que quer com ela. Escrever e ler para o povo
kaingang não é uma virtude maior do que andar, pescar, nadar, subir em árvores, correr, caçar, confeccionar um artesanato, ou brincar com seu Jamré. Por
exemplo, na tradição oral, a fala de um velho sábio „Kujበtem mais valor do
que a escrita de um livro, porque este representa em sua fala a existência de um
povo que sobreviveu ao etnocídio ocidental. Acredito que quando a sociedade
indígena elege essas atividades como coisa que tem valor em si próprio, está
excluindo da sociedade à família, para as quais a atividade de escrever e ler não
têm nada a ver. Como elas não escrevem e não leem, também nunca serão partes
das pessoas que decidem ou que resolvem, mas sabem que o conhecimento
herdado de seus ancestrais, isso sim faz deles um povo que caminha em direção
ao mundo de seus ancestrais e sempre será aquele povo.
A formação kaingang é constituída com base em dois campos principais: o primeiro tem um suporte mais marcado nos valores, na identidade e
no próprio convívio com a natureza. No segundo campo, a formação ocorre
por meio de um ensino que requer uma mediação mais verbal, específico e
direcionado ao aprendiz, isto é, um desenvolvimento de habilidades que estão
ligados ao mundo dos ancestrais. E quando aceitam aprender, a ler e escrever
encaram a alfabetização como quem compra um peixe, um peixe que tem
espinha. Tiram as espinhas e escolhem o que há de melhor e aproveitam o
35
VOLUME II | EDUCAÇ‹O IND¸GENA EM DI˘LOGO
aprendizado para conhecer melhor as suas potencialidades e também conhecer
o outro. Aproveitam melhor o novo saber. Quando assumem o papel de leitor
e escritor encaram o nível de competição que está há séculos na frente de sua
sociedade, ao descobrir os protagonistas que foram no passado. Aí se vê a
necessidade de estar conectado com o mundo de outros saberes, para por em
pé de igualdade na escrita e na leitura o conhecimento indígena com a sociedade não indígena.
Acho que a maioria das crianças que vão hoje para a escola e que são
alfabetizadas é obrigada a engolir o peixe com espinha e tudo. A perspectiva
de muitos pais na atualidade é simplesmente saber que seus filhos estão lendo
e se apropriando do mundo letrado, sem considerar que a importância do
saber está diretamente ligada ao convívio de cada uma das crianças.
Muitos professores não indígenas, ao trabalharem hoje nas escolas da sociedade envolvente, estão deixando a desejar, pois lhes falta uma concepção mais
específica, direcionada para o mundo dos valores e voltada para a realidade das
crianças, que são os futuros protagonistas da sociedade onde a escola está inserida.
Quando se está distante de todas essas concepções, sabe-se que a sociedade que está
sendo formada não terá um mínimo de pensamento coletivo. Acredita-se que esta
é uma formação que não atende suas expectativas como seres humanos e que esta
modalidade ou prática pedagógica violenta sua memória.
Na tradição kaingang, os meninos bebem o conhecimento do seu povo
nas práticas de convivência, nos cantos, nas narrativas históricas e até mesmo na
confecção do artesanato. Os cantos narram à criação do mundo, sua fundação e
seus eventos e narram também as conquistas. Então, a criança está ali crescendo,
aprendendo e ouvindo as narrativas. Quando ela cresce um pouquinho mais,
quando já está aproximadamente com doze ou quinze anos, ela é separada para
um processo de formação especial. Aí será orientada por um líder, os velhos, os
caciques, vão iniciar essa criança na tradição cultural kaingang.
36
CADERNOS DA ESPECIALIZAÇ‹O PROEJA II | RIO GRANDE DO SUL A partir daí, acontecem as cerimônias que compõem essa formação e
os vários ritos, que incluem gestos e manifestações externas. Por exemplo,
você fura a orelha e quando tens nome de „Pëj‰ esse cuidado ainda se torna
mais rígido. Toma banho com remédio no segundo semestre de cada ano,
especificamente no dia do „KUJ¤‰, para proteção dos espíritos. Dependendo
de qual metade tribal a que pertence, Kamë ou kajru a pessoa ganha sua pintura corporal, seu paramento que vai identificar sua metade tribal, Rá Téj ou
Rá Ror, do seu clã e seu grupo de guerreiros. Esses são os sinais externos da
formação. Os sinais internos, os sinais subjetivos, são as essências do mundo
espiritual daquele coletivo. Então a pessoa passa a compartilhar o conhecimento, os compromissos e o sonho do seu povo de forma mais plena e cultural. E as relações sociais se constituem em instantes, e é de grande renovação
permanente e, o kaingang, ao aceitar o compromisso de andar junto, de celebrar a vida, e de conquistar suas aventuras, está se preparando para assumir o
papel de líder guerreiro. Então a cultura kaingang consiste, de maneira resumida, nesses eventos. Procurei destacar aqui os elementos que marcaram as
quebras de paradigmas, por coerências e incoerências e por meio das relações
estabelecidas com o mundo cultural e espiritual, que possibilitaram a construção de conhecimento através deste enfoque ao mundo tradicional kaingang. A
formação de um indígena para este povo é isso.
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VOLUME II | EDUCAÇ‹O IND¸GENA EM DI˘LOGO
Apresentação de dança do ritual de iniciação a vida adulta. Jovens kaingang da aldeia indígena Fág Nhin – Lomba do Pinheiro, e adolescentes da aldeia kaingang Tupë Pän – Morro do
Osso, todos do município de Porto Alegre/RS. Fotografia encontra – se no arquivo de fotos da
aldeia kaingang Fág Nhin, publicação autorizada pelo cacique kaingang Ari Kajër Ribeiro.
Dança do ritual de conquista, apresentado pelos jovens e adultos da aldeia indígena Kaingang
Fág Nhin, Lomba do Pinheiro POA, RS. Fotografia disponível no arquivo de fotos da aldeia
indígena Fág Nhin.
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CADERNOS DA ESPECIALIZAÇ‹O PROEJA II | RIO GRANDE DO SUL Educação indígena antes e fora da escola
Tag vÈ ëg si ag ta väsa ëg kajränrän fä tu ke nï, ëg gufä ag kajró
pë ki, fóg ag tÈ ëg kajränrän tü ke ver, iskóra vënhven tü ki.
Ainda que pertencendo a um grupo étnico, os kaingang fazem parte
da história e da cultura brasileira, pois já viviam aqui no momento da colonização européia. O processo de trabalho e produção organizado pelos colonizadores influenciou o modo de viver dos indígenas no território ocupado.
Porém, hoje achamos importante considerar o que alguns historiadores dizem
há muito tempo: os europeus muito aprenderam com os povos indígenas e,
em inúmeras situações assumiram como seus, os modos de vida dos povos
originários dessa terra. Embora o contato do povo kaingang com os colonizadores tenha sido mais tardio do que o ocorrido com outros povos indígenas,
na medida em que foram perdendo seus territórios tradicionais, foram aldeados em pequenas áreas tutelados pelo Estado, por meio do SPI - Serviço de
Proteção do ¸ndio e da FUNAI - Fundação Nacional do ¸ndio. Com essa
interferência, ao longo da história tiveram que ressignificar seus modos de
viver com os costumes ocidentais.
O povo indígena kaingang com sua tradição e suas atividades corporais ou rituais, com características lúdicas, por onde permeiam os mitos, os
valores culturais, congregam em si o mundo material e imaterial, de sua etnia.
Eles requerem um aprendizado específico de habilidades tradicionais estratégicas e geralmente, acontecem em cerimônias de rituais, para agradar a um ser
sobrenatural e ou para obter fertilidade, chuva, alimentos, saúde, condicionamento físico e sucesso nas suas conquistas. Entre muitos saberes importantes
conhecem a anatomia das abelhas com detalhes parecidos com a da ciência
ocidental, selecionam os animais a serem caçados, plantam árvores na tentativa de harmonizar caça e seu habitat natural. As cerimônias de rituais visam,
também, a preparação do jovem para a vida adulta, a socialização, a cooperação e ou a formação de guerreiros. Os rituais ocorrem em períodos e locais
39
VOLUME II | EDUCAÇ‹O IND¸GENA EM DI˘LOGO
determinados pelo kujá e as regras de participação são dinamicamente estabelecidas. Não há limite de idade para os participantes, não existem necessariamente escolhidos e nem requer preparação, exceto prestígio; a participação em
si está carregada de significados e promove experiências que são incorporadas
pelo grupo e pelo indivíduo.
Os velhos, no âmbito da educação formal Kaingang, são os „Kujá‰,
considerados mestres transmissores dos conhecimentos e da sabedoria Kaingang mediante o uso da tradição oral, permitindo às vezes parte do registro
dos conhecimentos pelos professores bilíngües, sua aplicação no ensinoaprendizagem dos mais jovens e crianças, mesmo que dentro da escola indígena fica sempre um pouco restrito, pois acreditam que estas informações podem ser adquiridas ou serem apropriadas indevidamente pelos não indígenas.
Os Kaingang mais velhos salientam que não puderam aprender a língua
portuguesa sob as duas formas oral e escrita, pelas dificuldades de permanência e de acessibilidade ao ambiente escolar, e que, em decorrência disso sofreram preconceitos e discriminação. No entanto, mesmo que a sociedade envolvente tenha esse olhar pejorativo sobre eles, mesmo assim sabem que o conhecimento adquirido de seus ancestrais é que lhes dá mais sentido de vida, como
transmitem para seus descendentes.
A chegada dos portugueses ao litoral brasileiro ocorreu no século XVI
e a partir daí a educação indígena, tal como vinha sendo desenvolvida no
habitat dos povos indígenas estava com seus dias contados. O processo de
aprendizagem praticada pelas diferentes etnias até então, foi desqualificada
pelo colonizador, que ignoraria então as concepções pedagógicas desse povo,
não admitindo sequer a possibilidade de os indígenas terem sido capazes de
construir, ao longo da história de sua existência um método, um discurso
sobre suas próprias práticas educativas.
Cada povo indígena tem seu próprio sistema de educação,
fundamentado em três aspectos principais que conformam
uma unidade: a economia da reciprocidade; a casa, o pátio,
40
CADERNOS DA ESPECIALIZAÇ‹O PROEJA II | RIO GRANDE DO SUL como um espaço educativo doméstico da família e da rede de
parentesco; a espiritualidade, como concentração simbólica de
todo sistema (Bergamaschi, 2008, p.10).
A sociedade kaingang, povo que manteve seus próprios conhecimentos ao longo dos anos: a aprendizagem, a metodologia como ensinam seus
filhos, a forma como absorvem este saber ainda os acompanha, conhecimento
este que carregam desde a sua origem, sabe que tomar banho com ervas e
confeccionar artesanato faz deste povo os protagonistas de sua cultura e de
sua existência.
Nesta sociedade, que não tinha escola, que não tinha situação social
exclusivamente pedagógica aos olhos do colonizador, a transmissão de saberes
era feita no intercâmbio cotidiano, através de contatos pessoais e comunitários. A aprendizagem se dava em todo o momento e em qualquer lugar, seja
na mata, nos rios e até mesmo na casa dos „PäÊi‰. O lugar, a terra, sempre foi
e é o lugar de existência, de absorver o saber tradicional. É ao redor do fogo
que os jovens bebem os conhecimentos transmitidos pelos seus avôs. Quando
este saber é transmitidos aos jovens, eles deitam ao redor do fogo, respeitando
assim a origem de seu povo, pois escutar um mito ou uma história nesta
disposição, dá mais sentido e legitimidade a quem está narrando este saber.
Estar em contato com a terra é como um recém nascido ficar no aconchego
do corpo de sua mãe; é estar ligado com sua mãe terra; é estar verdadeiramente conectado com a memória ancestral de seu povo. „Sa ä mÈ ó tój‰, lugar da
aprendizagem é onde o indivíduo está ligado ao cosmos.
Na divisão do trabalho, da caça, da pesca e o mais importante na iniciação de um jovem kaingang, dependendo da marca exogâmica a que pertence, Kamë ou Kajru, é separado, para o seu „kakrë‰ passar os conhecimentos,
os desafios que irá enfrentar para tornar-se um adulto forte e guerreiro. Na
época da colheita e da coleta não havia um especialista, mas era sempre possível aprender algo em qualquer tipo de contato social. Isto fazia de um indígena kujá, ou da pessoa mais velha da comunidade o agente da educação social,
41
VOLUME II | EDUCAÇ‹O IND¸GENA EM DI˘LOGO
mantendo vivo o princípio de que são eles os detentores de todos os saberes
kaingang. Embora um homem maduro possa aprender algo novo até envelhecer, cada agente social é potencialmente capaz de tornar-se preceptor dos mais
jovens ou dos menos experientes, como „um mestre da vida‰, a quem deveria
ensinar a viver em determinadas circunstâncias. Na verdade, para alcançar
esses resultados era necessário observar tais acontecimentos e absorver através
do contato, quando os velhos kujá, sábios da aldeia entram em transe e falam
com o mundo espiritual através de seus Jagrä. Este é momento em que aparecerem invisíveis na natureza o saber, o conhecimento, a forma como aprendem e ensinam seus descendentes.
Quais eram esses processos próprios de aprendizagem, que apareciam
invisíveis aos olhos do colonizador? A resposta sobre essa pergunta pode ser
dada consultando dois tipos de fontes: a tradição oral, cuja transmissão faz
parte da cultura, do costume que sobreviveu ao etnocídio ocidental; e os
relatos escritos por missionários e funcionários, que ao longo da história do
Brasil, contaram de maneira diferente e pejorativa que eles testemunharam os
primeiros contatos e, depois de observarem como os índios educavam seus
filhos, registraram, aqui e ali, o que viram. No entanto, obras publicadas por
antropólogos, historiadores não expressam as verdadeiras metodologias que
este povo tem, nem os exemplos pedagógicos usados para transmitir o conhecimento milenar.
Um jovem kaingang, quando escolhido ao ritual de preparação para a
iniciação da vida adulta, passa por diversas cerimônias de provações
„vënhkygtäg‰, quando o kujá faz a iniciação de cura para o jovem, intensificando o cultivo do saber tradicional e mantendo vivo o conhecimento. Lavar
ou fazer cura através das ervas medicinais, transmitindo como suportar a dor
da perda de um parente próximo e como comportar-se ao adentrar na mata
para empregar a caçada com arco e flecha. A manifestação de cura vai desde o
nascimento até a iniciação a vida adulta, chegando ao seu casamento. O
casamento é considerado uma virtude maior da tradição kaingang, pois os
42
CADERNOS DA ESPECIALIZAÇ‹O PROEJA II | RIO GRANDE DO SUL „Kakrë‰ comunicam aos seus „Jamré‰ e sabem que as suas filhas darão continuidade da descendência da outra metade e essas cerimônias são incentivadas
em diversas situações, nas festas comemorativas, nas caçadas coletivas, etc. O
Kujá lava seus filhos com ervas medicinais em períodos e locais determinados,
pensando nas futuras festas matrimoniais que irão acontecer logo após os
kakrës terem realizados as atividades coletivas.
Todos os anos os membros da aldeia são banhados com ervas e recebem uma orientação para enfrentar o mundo que é permeado por armadilhas
e até mesmo o universo do não indígena. Na vida indígena há diversos obstáculos a serem enfrentados e ultrapassados, e que podem ser prejudiciais aos
indivíduos que receberam a cura através das ervas, tais como: comer algo não
permitido, banhar-se depois dos pássaros, comerem a primeira caça abatida
pelo jovem, a não ser aquela indicada pelos mais velhos. Quando desobedecem a esses preceitos, estão cometendo os pecados alimentares „kovänh ag‰.
Esse consumo de elemento ou substância da natureza não permitida pelos
mais velhos ou pelo kujá pode ser perigoso, pois os indígenas, ao cometerem
esta atitude, não respeitando o ritual de cura, estarão cometendo o „kovänh‰.
Assim, podem envelhecer precocemente, os filhos podem nascer com problemas físicos ou neurológicos, além disso, a desobediência poderá afetar o
próprio consumidor e com certeza ele se tornará inútil aos afazeres do dia-adia da vida indígena kaingang na aldeia. O jovem e mulher indígena, quando
recebem esses conhecimentos sabem que estão ligados permanentemente à
cultura de seus ancestrais. Nisto se dá o mero sentido da vida para esta sociedade, pois acreditam que adsorvendo todos os saberes tradicionais de seu
povo darão sentido de vida a eles para que possam continuar sendo eles mesmos: povos de tradição oral, com conhecimentos próprios, em busca de seus
sonhos e novos horizontes.
Nos dias atuais, essa proposta do povo kaingang, em busca de continuar sendo eles mesmos é vista com simpatia, e parece ser universalmente
aceita por todas as correntes de pensamento das demais etnias indígenas.
43
VOLUME II | EDUCAÇ‹O IND¸GENA EM DI˘LOGO
Acreditam que estão ali, ocultados no saber tradicional o seu poder maior, o
conhecimento através da oralidade, a forma como ensinam seus descendentes,
a pedagogia ancestral e sua tradição considerada seu maior paramento de
aprendizagem. Estes sim acreditam serem uma das metodologias ou ferramentas que usam para revitalização cultural e a transmissão de saberes para seus
descendentes.
Podemos observar que a sociedade kaingang valoriza os aspectos interiores e exteriores, por que sabem que é através destes instrumentos que se
reafirmam sociedade de tradição oral, não concordando com a ideologia da
pedagogia ocidental que, para a sua satisfação pessoal o homem não indígena,
é capaz de prejudicar os próprios irmãos ou a si mesmo. A sociedade kaingang sabe que esta ideologia obstrui o processo de aprendizagem nos moldes
da cultura kaingang. Sabe que a cultura é definida como uma construção
histórica, seja como concepção, seja como dimensão do processo social. Ela
não é algo natural, não decorre de características inseparáveis do mundo do
povo kaingang. Ao contrário, a cultura é um produto coletivo da vida indígena, enraizado nas condições materiais e sociais de existência desta sociedade,
condições contraditórias marcadas pela desigualdade e opressão e pela luta
por sua existência e superação no mundo de muitas desigualdades.
Os não indígenas consideram que o sistema educacional desta sociedade era ineficaz, ao não encontrarem vestígios do mundo letrado na forma
que o agente de tradução de conhecimento tradicional transmitia aos seus
aprendizes. Ao não avistar essas práticas ou metodologias que poderiam estar
praticando no dia-a-dia com a sua sociedade e a forma como era usada nas
instituições para as sociedades indígenas, concluíram que tais sociedades eram
então carentes de práticas educativas, portanto, também carentes de concepção
pedagógica que as norteassem, legando esse preconceito etnocêntrico à sociedade ocidental, que o internalizou até os dias atuais. Para eles, não se tratava
da posição de dois sistemas educacionais diferentes, mas sim um choque
cultural do sistema que achavam universal, obviamente deles e, de outro, a
44
CADERNOS DA ESPECIALIZAÇ‹O PROEJA II | RIO GRANDE DO SUL ausência de sistemas nas sociedades indígenas. Assim, a inexistência da escola,
da sala de aula, do professor, do currículo escolar restrito, de horários, de uma
disciplina rígida, de punições e de castigo corretivo, permitiu-lhes concluir
que os indígenas não tinham educação e precisavam ser civilizados de acordo
com o modelo europeu na modalidade de educação escolarizada.
É importante destacar e afirmar que o conhecimento tradicional, para
melhor entender a sociedade kaingang, o dualismo simbólico que norteia as
práticas sociais desse grupo, está presente a partir do entendimento com o
irmão sol e a irmã lua. Tanto a sociedade kaingang como a natureza aparece
dividida de forma simbólica entre as metades Kamë e Kajru. De acordo com a
origem do povo Kaingang a mitologia nos mostra que os irmãos Kamë e
Kajru são heróis que surgiram da terra no início dos tempos e que deram
origem ao povo Kaingang atual. O dualismo Kamë e Kajru proporciona uma
maneira de classificação abrangente, na qual os seres da natureza, incluindo os
seres humanos, possuem valores associados às metades exogâmicas, como:
forte ou fraco, alto ou baixo, valente ou medroso. Também nos dá a entender
que o sol saiu primeiro da terra, depois saiu à lua com os seus descendentes
kajru, isto a partir dos valores que os kujá transmitem aos seus filhos nas
práticas do ritual, do banho com as ervas medicinais até o dia de acontecer os
„Vënhsánsán vënhkagta ta‰. O importante é os participantes do ritual respeitarem os pecados alimentares „kovänh ag‰ e ao seguir estes ensinamentos
estarão livres de qualquer contaminação, seja ela espiritual ou carnal.
Sabe-se que desde a origem do povo Kaingang existiu sempre o dualismo, mas essa prática do ritual do „vënhkygpe vënhkagta ta‰, é que lhe
confere um sentido de vida maior que sua existência, pois os „vënhkygtäg há
han‰ são importantes para um guerreiro que foi iniciado nos moldes da
cultura tradicional Kaingang: não há doença nem mal nenhum que o possa
contaminar, porque ao passar por este ritual os jovens devem respeitar todas
as doutrinas, ou seja, as regras que os Kujá passam para os participantes. Se
assim o fizerem, estarão livres de qualquer feitiçaria, não sendo fraco a qual 45
VOLUME II | EDUCAÇ‹O IND¸GENA EM DI˘LOGO
quer mal que possa tentar afetá-lo. São estes os ensinamentos que os kujá
Kaingang transmitem para os mais novos de sua etnia quando estes participam das práticas de ritual de iniciação.
O relato de um velho Kaingang, Felipe da Silva dá testemunho desse
aprendizado, dessas experiências:
Quando fui primeira vez para o mato caçar com os meus parentes, o meu kakrë que é meu sogro ele me lavou com remédios do mato, ele curou também minhas flechas e o meu arco,
lá mato quando vi um pássaro que tem o nome de KóÊy, fiz a
minha primeira empregada de caça e ao acertar aquele bicho.
Meu jamré que tava comigo logo cortou uma das patinhas e o
bico do KóÊy e logo começo a passar em minhas mãos e no
meu Kanë, e disse agora pode caçar de novo você vai ser um
grande caçador, feito isso o meu kakrë que já tava com a caça
dele voltamos pra casa. Chegando em casa entreguei aquele
KóÊy para minha véia que é a minha mãe, então ela que tava
perto do fogo logo fez Mräj kure, kÈ fi ta ge ti ha, sa ä krën ge
vÈ inh kósin, ä ta päg há jän jé, mräj mï tïn ge fi tatï jäsï änta,
kÈ fi ta inh krï ki ta mrän ge ti gé jäsï ën ta, inh kónëg kä inh
nÈ fi ta inh kygtäg ka nï. Inh no fër ta fi ta isÈ mrän ge tï
hamä, uri pi ën ge ti ha, hära ëg ta vesór kÈ ta han há ti ver,
kijën sa äjag mÈ han mü.
Os kaingang, nas suas resoluções, fazem absolutamente quase tudo coletivamente. Nas caçadas, nas pescarias pedem ajuda aos seus jamrés. Na
elaboração do artesanato trabalham em família, fazem em mutirão/puxirão,
convidando parentes de seu grupo familiar ou por afinidade. Nas reuniões
dos homens as mulheres geralmente quase não têm opinião ou voz, mas
conversam, trocam informações e conhecimentos o tempo todo, para que os
homens não tomem decisões precipitadas. Na busca da sustentabilidade,
como na pescaria, fazem a colheita do cipó coletivamente, porém são os
46
CADERNOS DA ESPECIALIZAÇ‹O PROEJA II | RIO GRANDE DO SUL homens os protagonistas da coleta dos cipós na mata. A trituração2 faz parte
do trabalho masculino. Já, os Päri são confeccionados com ajuda de suas
mulheres, porque acreditam que as taquaras, seres vegetais, fazem parte das
marcas exogamicas e elas têm „tän‰ e por causa disso tem que ser retidas suas
fibras com a ajuda das mulheres. Se isso não for feito com ajuda das pessoas
do sexo feminino os filhos dessas duas marcas exogâmicas correm perigo. Por
que o tän da taquara junto com o da água poderá ceifar a vida dos menores
que ainda não passaram pelo banho de cura „vënhkygtäg‰. Sabem que todos
os seres vivos, sejam vegetais, animais ou minerais têm vida e devem prestar
rituais a eles antes de serem tocados ou falar com os espíritos deles e por ser a
lua e o sol que dá o sentido da vida a todos os seres da natureza os mesmos
são perigosos e devem mesmo respeitar a lei da natureza.
Por saber que são as crianças e as mulheres que realizam a prática da
coleta dos peixes após a noite de batidas de cipós na água, sabem que é preciso ter esse respeito com a natureza. Estes saberes tradicionais que conhecem
estão ligados com o cosmos e, por isso, observam a lua, a época em que pode
ser realizada a busca por subsistência. Mesmo sabendo que é um ato de sustentabilidade, usam a prática e sua tecnologia com cuidado para não ferir a
natureza e ter bons resultados e presteza em suas empreitadas. O entendimento destas práticas materiais e simbólicas pela sociedade Kaingang está na
compreensão dos aspectos da natureza, que lhe confere um sentido de vida
mais digna quando é feito de forma pensada e sustentável.
Florestan Fernandes (1989) e Bartolomeu Melià (1979) afirmam
que os povos indígenas possuem espaços e tempos educativos
próprios, dos quais participam a pessoa, a família, a comunidade,
sendo a educação assumida como responsabilidade coletiva. E ela
acontece em processos: ao longo de sua vida uma pessoa está
Trituração consiste em bater o cipó nas pedras para que ele se desmanche e exale a substância na água.
2
47
VOLUME II | EDUCAÇ‹O IND¸GENA EM DI˘LOGO
sempre aprendendo. Ela é viva e exemplar: aprende-se pela participação na vida, observando e agindo. (Bonin, 2008, p. 98-99).
O sistema social kaingang é baseado na descendência patrilinear: os filhos do pai Kamë serão kamë e os filhos de pai Kajru serão Kajru. Este saber
que os indígenas carregam consigo vem de berço, pois ao nascer o filho de um
indígena kamë, primeiramente passa pelo ritual de batismo. Esta cerimônia é
sempre presidida pelo kujá oposto de sua marca, seria então seu Kakrë. O
ritual do kajru também é exercido pelo seu jamré, por serem de marcas exogâmicas opostas, como a natureza os define. Este é que dará mais sentido e
culturalmente é assim que se traduz o conhecimento tradicional kaingang. O
jovem indígena, após ter passado no ritual de iniciação da vida adulta está
pronto para casar-se, e participar da vida do dia-a-dia dos homens adultos da
aldeia e, desta forma, aprenderá como ajudar nas decisões dos destinos de sua
comunidade. A sua residência, após casar-se será, a casa do sogro, sendo que a
ele se subordina. A unidade doméstica é formada pelo pai, esposa, filhos
solteiros, filhas casadas, filhas solteiras e genros. Aprenderá como compartilhar todos os alimentos e as decisões do sogro para as quatro estações do ano
e, saberá como seu Jamré e seu Jóg-o aconselharam quando decidiu casar-se
com a filha do seu Kakrë.
48
CADERNOS DA ESPECIALIZAÇ‹O PROEJA II | RIO GRANDE DO SUL Conhecimento kaingang „pëj‰
Ün si ag kajró vÈ ëg jykre känÈ ver, hä kÈ ëg vÈ ver ëg tü pë
han mü nï, ëg gufÈ ag ta ëg jóg ag kajrän já tug nïn ke vë.
A sociedade kaingang com o seu conhecimento tradicional transmitia e
ainda transmite o seu saber através da oralidade, confeccionavam e confeccionam objetos utilizando o saber ancestral. Isto podia e pode ser visto quando
trabalham com as matérias-primas retiradas da natureza, sustentavelmente. Vale
lembrar que o indígena respeita muito o meio ambiente, retirando dele somente
o necessário para a sua sobrevivência. Da madeira, constroem arcos, flechas,
cestaria e colares, até mesmo suas habitações são feitas com matérias primas
naturais. E o mais importante é saber que nos objetos, nos adornos e nas suas
indumentárias, estão sempre expressos suas marcas exogâmicas os clãs (Kamë e
Kajru). Toda a arte indígena tem um fundo especial. A cerâmica também era
muito utilizada para fazer potes, panelas, utensílios domésticos e urnas funerárias, porque esta sociedade possui uma relação baseada nas regras sociais, políticas e religiosas próprias. O contato com a terra ou com o barro é permitido
somente para os „Pëj‰ entre esta etnia, pois eles são considerados uma espécie de
sacerdotes, ajudante do Kujá. Eles, os kujá, é que tem o poder de lidar com os
„Nén Korég‰ cerimônias de enterro, confecção de objetos com argila, cura de
viúvas (os), só eles é que detêm o conhecimento e o poder de acesso às coisas
que podem fazer mal ao espírito do indígena, pois já estão curados para tal fim.
Este saber ancestral está ligado com o cosmos e não é para qualquer indivíduo
indígena adquirir ou ser „Pëj‰. Para ser um „Pëj‰, a pessoa precisa passar por
uma experiência psicológica e transformadora nos rituais de passagem, que a
leve inteiramente para dentro de si: o inconsciente inteiro se abre e o „Pëj‰
mergulha nele. Esta é uma das sabedorias dos ancestrais, que é preservada através
da oralidade e do agir do indivíduo que foi escolhido pelo kujá, nas cerimônias
de cura e de iniciação. Os jovens indígenas, quando trocam de nome nos rituais
49
VOLUME II | EDUCAÇ‹O IND¸GENA EM DI˘LOGO
de passagem para a vida adulta, recebem o nome que o Kujá escolhe como o
mais adequado para esta responsabilidade e o delega, conforme a função que irá
desempenhar em prol de sua comunidade. Nos dias atuais esta função parece
estar ocultada nas comunidades kaingang aqui no sul, mas na festa do kujá ou
nos atos fúnebres que acontecem nas aldeias kaingang, este saber é sempre
visível, mesmo que os mais novos não percebam o que está acontecendo, mas
vêem o que os mais velhos quando falam,‰Inh kósin inh rä nïnhïg, sa ä mÈ ëg
tü pë ven jé, sa ä kanhrän jé‰. Esta é a que ele quer mostrar para os mais novos,
nos atos fúnebres também sempre é manifestado, Jamré ä jamrén vyn ra, kor ä
kanhkä ag mré ti fan müjëg, ti tÈ ëg tugvänh sor mÈn ser, kor ti vyn, münÈ ti ta
nünme ra jatugmÈ tïg jé, tá ta ti krän käjatun mü, kaféj tánh ta ti ta mrän ké, ti
ta gïr ki ävänh tüg jé. (João Carlos Kanheró). Este saber, mesmo parecendo
ocultado, ainda é visto em terras kaingang onde tem Kujá. Este conhecimento
ancestral ainda é preservado através da oralidade dos mais velhos na sociedade
kaingang.
50
CADERNOS DA ESPECIALIZAÇ‹O PROEJA II | RIO GRANDE DO SUL Líder espiritual, Vicente Fokáe Kujá Kaingang na Terra indígena Xapecó, no ritual do Kiki koj
(Ritual dos mortos).
Disponível em http://img.socioambiental.org/v/publico/kaingang/kaingang_15.jpg.html
51
VOLUME II | EDUCAÇ‹O IND¸GENA EM DI˘LOGO
A organização social Kaingang
Vënhrá tag vÈ, ëg päÊi ag tÈ ün si kar gufä ag mré ëg juvän fä tu
väme nï, uri ta ver ke tï ham, än mï kanhgág ag gan mï, ëg tü
si tó ag ta tï ver ke ge hamë, ëg päÊi ag.
Entre os kaingang não há classes sociais como na sociedade do não indígena. Na sociedade indígena todos têm o mesmo direito e recebem o mesmo
tratamento, seja pelos mais velhos ou pelos mais novos, também pelo seu jamré
ou këgke. O cuidado com seus velhos e crianças é que prevalece mais. Com os
velhos da aldeia a liderança política têm mais cuidado, por que são eles os
transmissores do conhecimento tradicional, as crianças são respeitadas como
adultas e amadas como crianças, sabem que são elas as responsáveis pela continuação de sua etnia e não podem ser castigadas ou maltratadas, pois acreditam
que são elas as que voltaram do „Nünme‰. Quando um adulto conversa com
uma criança kaingang tem o dever de se abaixar na altura dos olhos, por que o
falar de cima para baixo não é do costume kaingang. Então, para dialogar com
„Gïr‰ precisam respeitar: como podem conversar de cima para baixo? Esse
cuidado é necessário, porque pode ali estar um ancestral seu, com um século de
vida. Então, esta é uma forma da organização kaingang, em respeito com a sua
memória: quando um adulto conversa com uma criança kaingang, em respeito
a seu ancestral, agacha-se para conversar olhando sempre olho no olho, ou seja,
olhando sempre nos olhos do „Gïr‰. Deve ajoelhar-se na frente da criança para
dialogar, atitude que vai ao encontro dos ensinamentos de Paulo Freire, quando
fala das relações simétricas entre quem ensina e quem aprende, quem profere as
palavras e quem as escuta.
Se na verdade, o sonho que nos anima é democrático e solidário, não é falando aos outros, de cima para baixo, sobretudo,
como se fôssemos os portadores da verdade a ser transmitida
52
CADERNOS DA ESPECIALIZAÇ‹O PROEJA II | RIO GRANDE DO SUL aos demais, que aprendemos a escutar, mas é escutando que aprendemos a falar com eles. (Freire, 1998, p.)
A terra, por exemplo, pertence a todos e quando um indígena caça,
(faz compras) costuma dividir com seus vizinhos mais próximos o que mostra a prevalência do costume coletivo. Como não tem onde caçar, devido ao
desmatamento ocidental, caça-se nos mercados próximos de suas aldeias. Isso,
„caçar no mercado‰, significa que hoje os kaingang devem trabalhar em
empregos variados para garantir essas compras, ou seja, sua sustentabilidade,
ou então trabalham em grupos familiares com seus artesanatos para garantir
o sustento de suas famílias e seus parentes mais próximos.
O trabalho na aldeia também é realizado no coletivo, porém possui
uma divisão por sexo e idade. Como em algumas aldeias não se faz agricultura,
trabalham em grupo familiar ou por afinidade a confecção dos artesanatos.
Apenas os instrumentos de trabalho com artesanato são de propriedade individual. Muitos dos objetos de uso diário ficam espalhados no pátio e quando
alguém precisa é só pegar. A noção de propriedade da sociedade indígena é
dada a partir da comunidade e o que realmente tem valor são os velhos, a
família, a terra e a palavra. As mulheres são as responsáveis pela comida, pelas
crianças, pela colheita e plantio. Já os homens kaingang ficam encarregados do
trabalho mais pesado: caça, pesca derrubada de taquaras e busca do cipó para o
artesanato. A confecção geralmente é feito pelas mulheres, as fibras que são
retiradas das taquaras os homens também fazem este trabalho e a comercialização faz parte do trabalho masculino por que através da venda o kaingang está
representando a caçada. A caça antigamente era buscada nas matas, hoje este
exercício geralmente é feito nos grandes centros das cidades, onde é mais apropriado para a comercialização do artesanato kaingang.
53
VOLUME II | EDUCAÇ‹O IND¸GENA EM DI˘LOGO
Mulher Kaingang Rute da Rosa, esposa do autor, comercializando artesanato indígena no
brique da Redenção, Porto Alegre/RS. Fotografia feita pelo autor 2007.
Membros da comunidade kaingang da aldeia indígena Fág Nhin (Lomba do Pinheiro – POA),
comercializando artesanato na semana dos povos indígena na câmara municipal de vereadores em Porto Alegre. Imagem disponível em http://bancodeimagens.procempa.com.br
54
CADERNOS DA ESPECIALIZAÇ‹O PROEJA II | RIO GRANDE DO SUL Educação indígena e a nova história
˙g kajrón pi fóg ag mÈ há nÈ. Ag mÈ ag tün hä vÈ há nÈ, vënh
mÈ. Ag pi ëg si ag tÈ ëg kajrän fä ën tu jykrén há han mü, kar
ëg vënhkajrän fä ag pi fóg ag tÈ tugnÈm há han müra ag tün ki
hä han mu gé, fóg ag jykren ki. Hära pi ën känÈ, ëg tün hä ki
ëg ta väsänsän ge nÈtï, mÈr ëg ta ge tün kÈ, ü nÈ ëg jag fy han
mü? KÈ tu väsän, gïr ve kÈ, ke tu mÈr ëg si ag jykre ta tüg mü .
A educação escolar indígena sempre foi observada a partir de uma
concepção externa, por meio de dados sem caráter científico, colocando os
professores indígenas no tempo e no espaço, definindo-a como uma educação
que não atende as concepções pedagógicas como era previsto nas diretrizes da
educação brasileira, não respeitando o discurso tradicional dos docentes sobre
suas próprias metodologias, que recebem de seus ancestrais: sua continuidade
no presente é desacreditada. Mas, quando o docente indígena traz a voz das
origens, qual será o tratamento que pode apresentar, sendo ele mesmo alguém
que viveu no próprio convívio tanto a educação tradicional quanto a educação escolarizada? A intenção do professor bilíngüe na atualidade é poder
proporcionar um olhar interno, mesclando o saber tradicional e seu olhar
holístico sobre a educação escolar indígena e os diversos olhares que a sociedade acadêmica tem em relação à educação indígena.
A educação, a escola pensada pelos professores kaingang se caracteriza
pelos processos tradicionais de aprendizagem e aquisição dos saberes peculiares, mostrando este conhecimento que se dá através da transmissão oral, no
dia-a-dia nas suas comunidades e nos rituais, nos mitos contados pelos mais
velhos e pelo Kujá. A escola frente a estas ênfases tem realizado um trabalho
permanente de divulgação da arte e da cultura indígena kaingang, contribuindo para dar visibilidade, mas, ao mesmo tempo, preservando a tradição e a
diversidade do saber tradicional. Assim a escola indígena é classificada pelos
seus docentes como veículo de afirmação, mas ao mesmo tempo restrito a
55
VOLUME II | EDUCAÇ‹O IND¸GENA EM DI˘LOGO
outros olhares. Assim, a idéia é preservar o conhecimento e a história original
de seu povo.
O interesse cada vez maior pela educação indígena vem ao encontro
de uma nova realidade experimentada pelos professores kaingang, pois são
eles os protagonistas pela formalização mais adequada aos moldes de sua
etnia. Realidade que é conseqüência da crescente mobilização desses docentes
e suas lideranças, desde os anos 70. Depois do reconhecimento constitucional
como cidadãos plenos, estão em busca de uma escolarização específica, diferenciada e de qualidade para seu povo, buscando colocar na prática a atribuição feita pelo Ministério da Educação no ano de 1991, através da Portaria
Interministerial MJ/MEC N°559.
A portaria Interministerial 559/91, estabelece que a educação
escolar indígena deixa de ter caráter integracionista, conforme
previa o Estatuto do ¸ndio/Lei 6001/73, e passa a ser regida pelo reconhecimento da multiplicidade cultural e lingüística dos
povos indígenas e pelo direito a eles assegurado de viver de acordo com suas culturas e tradições. (Bonin, 2008, p. 100).
Esta medida legal abriu espaço para o desenvolvimento, pela primeira
vez no Brasil, de uma política educacional voltada para a diversidade étnica e
cultural dos povos indígenas. Afinal, desde a colonização, a educação indígena
sempre foi de domínio exclusivo de missões religiosas, respectivamente por
funcionários do SPI e da FUNAI. Este sistema educacional agora está ao
alcance das sociedades indígenas e é preciso sonhar para que ela possa atender
aos anseios da sociedade indígena.
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CADERNOS DA ESPECIALIZAÇ‹O PROEJA II | RIO GRANDE DO SUL DUALISMO KAINGANG
Grupo de dança da aldeia indígena kaingang Fág Nhin, apresentam a dança do dualismo
kaingang na Câmara Municipal de Vereadores de Porto Alegre, em homenagem a conquista
de habitações para sua comunidade. Fotografia encontra-se no arquivo de fotos da aldeia
kaingang Fág Nhin.
O primeiro passo para o reconhecimento e valorização da escola indígena específica, diferenciada e de qualidade é o que as organizações indígenas
buscam, qual seja, a realização das leis na sua prática e o reconhecimento da
cultura dos povos indígenas no Brasil, já referendado pela Constituição Federal, em 1988. O texto assegura o direito das comunidades indígenas de utilizar
suas línguas maternas no ensino escolar, bem como desenvolver processos
próprios de ensino e aprendizagem, condizentes com seus costumes. Em 1996,
foi a vez da Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB), estabelecer (Artigo
78) que a educação deve, em primeiro lugar, proporcionar às sociedades indígenas e suas comunidades a recuperação das memórias históricas; reafirmação
de suas identidades étnicas e valorização de suas línguas e ciências; além disso
garantir para os povos indígenas e suas comunidades, o acesso às informações,
conhecimentos técnicos e científicos da sociedade nacional e demais sociedades indígenas e não indígenas. Em 1999, o Conselho Nacional de Educação
57
VOLUME II | EDUCAÇ‹O IND¸GENA EM DI˘LOGO
fixou as Diretrizes Nacionais para escolas indígenas. Contudo, apesar das
decisões oficiais, podemos dizer que pouco foi feito no tocante à educação. A
formação para o trabalho é a parcela que está no topo e o direito indígena
previsto na legislação ainda parece estar longe de acontecer. São as sociedades
indígenas que sofrem com o peso da exclusão e a memória histórica é a que
mais padece do esquecimento da prática da lei.
Descendetes dos Kamë - Rá téj
Descendentes dos Kajru – Rá Ror
Encontro dos Kujá na aldeia Indígena Kaingang Morro do Osso, os kujá vão na frente. Imagens
cedidas pelo cientista social Luis Fernando Caldas Fagundes e autorizando a sua publicação
pelo cacique da comunidade kaingang do Morro do Osso, Porto Alegre,RS. Valdomiro
Vergueira.
58
CADERNOS DA ESPECIALIZAÇ‹O PROEJA II | RIO GRANDE DO SUL A educação indígena na atualidade
Uri vënhkajränrän fä ag, väsa ke ën han sór nï, mÈr fóg ag ta
ëg tüg kren ka nÈtï ham, fóg ag ta vënhkajränrän mü ën
kinhräg sór ja ëg ta mÈ ha ke gé, ëg ta kar ëg krë ag mÈ ven jé,
kÈ ëg krë ag vÈ kinhra nÈtïj mü gé, kÈ ag vÈ fóg ag kajró ën ge
nÈtïj mü gé, ka fóg ag pi ser ëg kajró tag tu vïj mü, ëg ta ëg
iskóra mï ëg si ag ta ëg kajrän ja ën ven kÈ.
Falar sobre a educação indígena nos dias atuais requer uma breve
análise histórica deste povo. É preciso reconhecer que nesses 510 anos, os
povos indígenas têm sito destruídos, mortos, perseguidos e marginalizados
pelos ditos civilizados. Mesmo com toda uma política de proteção e leis
preocupadas com a qualidade de vida da sociedade indígena, se vê que ainda
está longe de ter um tratamento digno e justo para aqueles que foram os
primeiros habitantes da terra brasileira, portanto os donos originais da
mesma. Este é um povo que vem perdendo sua identidade, sua cultura e
costumes, sua história e a própria vida, pois várias foram as etnias dizimadas
por doenças levadas para as terras indígenas pelo não indígena. Também a
educação teve seu processo e seus propósitos alterados e ajustados às
necessidades de cada etnia. O povo kaingang tem, ao longo da história do Rio
Grande do Sul, experimentado uma política de estratégia para garantir sua
história, seus costumes, suas tradições, suas maneiras próprias de
aprendizagem, sua cosmovisão e para assegurar que estas diferenças sejam
respeitadas lutam pela proposta da educação escolar específica, diferenciada e
de qualidade.
Mesmo com tantos desafios, os povos indígenas assumem a escola como instituição importante e necessária, mas justificam a
sua existência no anseio de que ela possa contribuir com suas
lutas mais amplas e, que mostram o entendimento de que esta
59
VOLUME II | EDUCAÇ‹O IND¸GENA EM DI˘LOGO
instituição só tem sentido se estiver subordinada às lutas políticas pela garantia plena de seus direitos. (Bonin, 2008, p. 97).
Hoje a escola indígena, na maior parte dos povos indígenas, mantém
contato com a dita civilização. Mesmo estando muito perto da sociedade não
indígena, o objetivo é manter os costumes dos povos tradicionais, e ensinar a
sua língua, sua cultura, seus costumes, junto com outras matérias ou
disciplinas, portanto o ensino deve ser interdisciplinar. O currículo
diferenciado não é só o ensino da língua materna, mas um currículo que
atenda além das questões de cada povo e comunidade a forma como os velhos
ensinam seus filhos. A diversidade linguística está diretamente ligada à
questão da educação tradicional kaingang, pois o idioma indígena é falado no
contexto diário das aldeias, e o anseio do professor bilíngue hoje é ver a
língua indígena no processo educacional atual visando manter um equilíbrio,
para que a língua oficial do país não seja imposta, mas também haja espaço
para o ensino da língua tradicional, de modo que esta não se perca. Daí a
importância do professor bilíngue mesclar os dois conhecientos: o ocidental
científico e o tradicional kaingang.
60
CADERNOS DA ESPECIALIZAÇ‹O PROEJA II | RIO GRANDE DO SUL Autor da obra (à direita) com seu colega de mestrado Danilo Braga. É através do
conhecimento ancestral que buscam o saber coletivo de sua etnia, pôr em prática este saber é
o sonho desta nova geração de pesquisadores Kaingang.
É preciso que o professor indígena interaja com a sociedade acadêmica, e que tenha acesso ao manancial de conhecimentos disponíveis aos professores não indígenas, que estes saberes ou esses instrumentos que busca conhecer possam lhe permitir melhorar a qualidade do ensino em língua portuguesa
e com isso compor os dois conhecimentos, o saber tradicional kaingang e a
dita sabedoria ocidental „conhecimento científico‰. É preciso disponibilizar
para o professor bilíngue esse conhecimento, que é essencial para sua qualificação. E, sobretudo, dar-lhe a chance de qualificação profissional e enriquecimento intelectual, para que ele próprio, junto com seu povo, encontre a saída
de suas dificuldades para o mundo escolarizado.
61
VOLUME II | EDUCAÇ‹O IND¸GENA EM DI˘LOGO
Dentro deste processo, a educação escolar é vital, já que o entendimento e anseio da sociedade indígena que a educação escolarizada atenda e
contempla o Ensino Básico e muito modestamente, fixando o conhecimento
tradicional nas suas três modalidades: oral, escrita e literária. Este propósito
do educador bilíngüe e a sua sociedade não querem universalizar seu conhecimento, mas sim a oferta deste saber até a chegada do aluno ao mundo
acadêmico. Assim, o aluno indígena estará formado do portão para fora e do
portão para dentro. Alfabetizar é pouco, para o professor indígena, mas este
ator quer fazer o melhor, por que o essencial é não deixar seu idioma sua
identidade cultural que é falado em sua comunidade se perderem no tempo e
no espaço. Isso é ótimo, mas pouco, já que as escolas indígenas estão caminhando a um novo horizonte, ela deve mesmo ser transformada, rapidamente,
em alavancas que impulsionem o desenvolvimento de suas comunidades,
através de suas especificidades: diferenciada, específica e de qualidade. Porque
é isto que a sociedade kaingang almeja, uma educação escolarizada, para que
possa formar seus próprios profissionais, seja na área da saúde, educação ou
agricultura, dentro de suas próprias tecnologias. Este é um sonho e é um
sonho possível.
Este sonho é desafiante, mas é possível. Sua articulação e revitalização,
na prática, não deve visar unicamente à reafirmação da identidade étnica de
seu povo, como diz a lei. Ela é necessária para que possam reescrever o Brasil.
Assim como o europeu tornou obrigatória a língua portuguesa, sua tecnologia
e conhecimento nas escolas, o governo deve igualmente tornar obrigatório o
ensino da história e da cultura dos povos indígenas, que aqui apareceram há
mais de 12 mil anos, cujos valores e símbolos, conhecimentos indígenas se
impregnaram na cultura ocidental de maneira decisiva. Alguns conhecimentos
tradicionais foram apropriados indevidamente pelo colonizador, ficando
patenteados em poder dos grandes laboratórios farmacêuticos e de médicoscientistas, não mais à disposição das sociedades tradicionais. O saber, que
ainda é praticado pelo kujá e os mais velhos da aldeia, está sendo colocado na
escrita kaingang pelos professores bilíngües para que seja transmitido ao
62
CADERNOS DA ESPECIALIZAÇ‹O PROEJA II | RIO GRANDE DO SUL aluno indígena, afirmando que sua história e conhecimento estão vivos e
intactos.
A educação indígena engloba processos do ensinar e do aprender. É
um fenômeno observado nestas sociedades e nos grupos que constituíram ou
compuseram estes saberes e a nova forma de ensinar seu povo, porque são os
responsáveis pela sua manutenção e perpetuação do modo cultural de ser,
estar e agir a partir da transposição para as gerações futuras. É necessário a
convivência e o julgamento de um membro no seu grupo ou sociedade. Enquanto processo de socialização, a educação é exercida nos diversos espaços de
convívio social, seja para a adequação do indivíduo para a sociedade ou do
indivíduo ao grupo, ou dos grupos a conhecer melhor a sociedade não indígena. Nesse sentido, a educação tradicional coincide com os conceitos de
socialização e transformação, mas não se resume a eles. A prática educativa
formal que ocorre nos espaços escolarizados, sejam da educação do ensino
fundamental até a graduação, se dá de forma intencional e com objetivos
determinados, como no caso da escola e da sociedade indígena. O importante
é saber que o indígena após essa formação tem a obrigação de voltar as suas
origens. No caso específico da educação formal exercida na escola, pode ser
definida como educação escolarizada. Outro caso específico da educação
exercida para a utilização dos recursos do saber tradicional, passa a ser considerado conhecimento tecnológico do povo kaingang, porque os instrumentos
e ferramentas desta comunidade são determinados como educação tecnológica, transmitida através da oralidade. Por que usam símbolos, tempo, espaço,
cosmologia e sua memória para alfabetizar seu povo e transmitir o conhecimento ancestral.
63
VOLUME II | EDUCAÇ‹O IND¸GENA EM DI˘LOGO
Idosa Kaingang transmitindo saberes tradicionais, uso e manejo de plantas medicinais da
cultura tradicional kaingang. Disponível em http://www.comi.org.br
64
CADERNOS DA ESPECIALIZAÇ‹O PROEJA II | RIO GRANDE DO SUL Educação indígena depois da escrita
˙g ta vënhrá ven kar, ëg vÈ ëg iskóran mï vënhkajrän mü gé.
˙g vÈ fóg ag vïn ki kajrän mü gé, ag vïn ki vënhrán kinhräg ke
ge ham, ag ta han fä ën han sór ëg tï gé hamë, ëg krë ag vÈ ëg
rike nÈtïj sór tï gé, hära pi ën kä nÈ. ˙g si ag vÈ tüg rä nï ha, kÈ
münÈ jag nämré ëg tü si ën tu jykrén há han jé, ëg krë ag ve kÈ,
ka inh mré tu väsän.
Os significados que são atribuídos às crianças indígenas, objetos e fatos, as palavras, as atitudes e os desejos e tudo que as cerca são criados nas
relações sociais, alterando-se no tempo e no espaço, sendo, portanto, transitórios, mutáveis e arbitrários. Vejamos, por exemplo, a questão da escrita, enquanto símbolo arbitrário representando a fala e o pensamento com diversos
sinais. Isso faz lembrar do saber kaingang através dos sinais que representa o
lugar, de onde veio e está, é trazer para o presente para melhor pensar o futuro. O povo indígena kaingang construiu ao longo da história diversas formas
de representações que sofreram modificações desde os traços feitos nos artesanatos até a escrita no papel e no computador que conhecemos hoje. Para este
povo a principal forma de comunicação e transmissão de conhecimento é
através da oralidade e dos sinais do tempo, interpretado pelo kujá, por que
este saber é que lhes dá um sentido de vida mais marcante do que a escrita em
Português.
É interessante observar o papel da escrita, que aparece não como um
elemento de novas conquistas, mas como a responsável pela legitimação de
seduzir o indígena para o mundo capitalista. Existem aspectos da cultura e da
mitologia kaingang que podem ser explorados na discussão sobre a representação indígena da escola, mas para isso se faz necessário explicitar as categorias lógicas próprias da cultura kaingang, as categorias mentais com as quais o
Kaingang pensou e ainda pensa o tempo, o espaço e suas relações sociais, sem
que a narrativa possa parecer caótica e desordenada ou parecer algo exótico,
65
VOLUME II | EDUCAÇ‹O IND¸GENA EM DI˘LOGO
desarticulado de seu contexto. Cabe destacar aqui que o discurso mitológico
abrangeu o essencial, coincidindo em grande parte com a realidade de cada
comunidade kaingang e com os estudos feitos por especialistas ou doutores na
área de educação sobre o povo indígena kaingang. Por meio do mito, fica
claro que os indígenas sabem por que a escola foi colocada dentro das comunidades kaingang aqui no sul do país, para que serve e como foi encapsulada
em sua representação do mundo Kaingang.
Esse discurso formulado pelo povo indígena através da mitologia ou
não, representa a escola como devoradora da identidade étnica e desintegradora dessa identidade própria, uma vez que contribui para ocultar as matrizes
formadoras desta última geração e ao mesmo tempo falsifica sua procedência.
No caso da mitologia kaingang, que lhes conta a verdade sobre seus pais e
sobre suas origens, a escola atrai as crianças para o mundo escolarizado da
escrita. Os pais que estão em busca dessa informação sem saber o que estão
preparando na realidade, devem conhecer primeiro, na verdade, o que a educação escolarizada quer fazer com sua comunidade, para não construir futuramente uma armadilha para apagar a memória e organizar o esquecimento
coletivo. Por isso, este povo pensa com cuidado a escola para sua sociedade. A
escrita faz com que os indígenas se apropriem dela sem entender que ela é
perigosa, porque pode transformar o indivíduo e fazer com que ele mesmo
possa usar isso contra sua própria sociedade, pois dependendo do modo
como escreve pode ser perigoso para esta sociedade. Dessa maneira, a escola
exercerá um controle quase que absoluto sobre a memória deste povo, utilizando-se da escrita como instrumento para legitimar os enganos sobre o
passado, a genealogia, os ancestrais, as raízes culturais, enfim, a própria identidade da sociedade kaingang.
A sociedade indígena que vive no território atualmente ocupado pelo
povo kaingang aqui no sul do Brasil, desconhecia a instituição escola e principalmente a escrita, antes da chegada do europeu. No entanto, havia desenvolvido formas próprias de reproduzir saberes, por meio da tradição oral,
66
CADERNOS DA ESPECIALIZAÇ‹O PROEJA II | RIO GRANDE DO SUL transmitida em seu idioma tradicional e sem a escrita alfabética. As informações sobre o processo educativo para a maioria desse povo são escassas e
fragmentadas, mas, em relação à educação escolarizada da sociedade envolvente existem observações feitas por indígenas que absorveram seu aspecto lúdico
e suas formas de socialização que não atende a expectativa do povo kaingang.
Conforme o relato de um historiador kaingang, Danilo Braga (2010):
A questão é que a educação escolar não indígena não respeita o
tempo de aprender do kaingang, o ensino feito pelo kujá que
domina todos os saberes tradicionais de nossa sociedade e orientado pelo saber guiado que é saber tradicional buscado na
floresta através do jagrä, este sim que dá condição de ser socializado conforme os costumes do povo kaingang. Por que o kujá é a principal pessoa que domina todos os saberes ancestrais.
A escola não indígena não está preparada para atender ou receber o indígena que vem de uma sociedade tradicional e que
também esta instituição não tem livros nem profissionais para
trabalhar com esse sujeito da diferente sociedade, porque se nós
indígenas queremos buscar mais conhecimentos devemos pesquisar além daquilo que foi transmitido na universidade, num
esforço individual com os velhos kaingang na aldeia.
Por que a academia não me deu o conhecimento direcionado
para as questões indígenas, somente me preparou para atuar
como professor de não indígenas, o que eu trouxe para a comunidade foi a minha boa vontade de trabalhar e buscar através da pesquisa com os velhos a história da ancestralidade para
depois associar com o conhecimento científico e por em prática toda essa minha bagagem como educador formado por uma
universidade.
A escrita para a sociedade envolvente só reafirma o desejo de quem está no poder, só serve para denegrir a imagem do outro, ainda mais se for
acadêmico formado por esta área da escrita, conquanto o ideal fosse adequar à
escrita a reafirmação dos conhecimentos ancestrais desta etnia, colocando-a
em pé de igualdade com o conhecimento científico. Enquanto o professor
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VOLUME II | EDUCAÇ‹O IND¸GENA EM DI˘LOGO
indígena pensa mostrar como seria importante colocar a escrita kaingang na
convivência com sua comunidade, a escrita ocidental está tomando conta de
tudo, substituindo no dia-a-dia da sociedade kaingang a língua indígena,
definindo assim que a sociedade kaingang entende que a escola só chegou
para desarticular a vida e os costumes de sua etnia. O professor bilíngüe, que é
conhecedor da escrita ocidental, deve ao mesmo tempo dominá-la para colocar em prática a experiência de vida convivida com sua comunidade, pois os
desafios de entender como é a potencialidade da escrita em Português é algo
que preocupa muito os professores kaingang nas aldeias. Por não entender o
papel da gramática no ensino em língua portuguesa e os fonemas do neologismo Português não está sendo fácil para estes entenderem, na sua prática, a
escrita.
A escola é uma instituição relativamente recente na história desse povo, mesmo que ela seja tão antiga parece novidade para esta população. Apesar
das oscilações e da diversidade do grau de tolerância ocorrido ao longo da
história, as decisões da política educacional apontaram para uma tendência
generalizada, desconhecendo a cultura e os saberes indígenas e, com isso,
aniquilando-as. Dessa forma, nas últimas cinco décadas, a escola implantada
pelo não indígena contribuiu para o enfraquecimento e extinção de parte dos
saberes tradicionais kaingang. Com isso, os saberes veiculados por ela, num
processo de aportuguesamento imposto primeiramente pelo Estado, teriam a
atribuição de, primeiro afirmar a escrita portuguesa, pois para o educador não
indígena o importante é primeiro introduzir a escrita e ao mesmo tempo
alfabetizar a criança. A escola monolíngue e monocultural, aliada ao sistema
do trabalho da competitividade capitalista, extremamente predatório, foi
responsável pelo extermínio de muitos falantes da língua kaingang. Hoje, no
Rio Grande do Sul, 60% da população fala o idioma kaingang. Parte dessa
sociedade é predominantemente bilíngüe, porém uma relativa minoria é
competente também em português, apresentando uma diversidade de situações de bilingüismo. Nesse caso, o português circula nas comunidades como
língua dos assuntos oficiais e simboliza a sociedade nacional. Goza de alto
68
CADERNOS DA ESPECIALIZAÇ‹O PROEJA II | RIO GRANDE DO SUL prestígio como língua escrita e de ampla difusão e utilidade, enquanto a
língua indígena é em maior ou menor grau de prestígio para a sociedade
envolvente. Mesmo assim a sociedade kaingang luta para que seja interpretada
de forma mais coerente e busca conhecer melhor a escrita para junto de outros povos fazer valer a sua opinião referente à escrita em Português.
Escola Estadual Indígena de Ensino Fundamental FÁG NHIN, uma das instituições indígenas
que serve de ponto de referência para alunos indígenas kaingang, que aqui conhecem outras
culturas e até mesmo sua língua escrita. Aldeia kaingang Fág Nhin-Lomba do Pinheiro – Porto
Alegre/RS.
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VOLUME II | EDUCAÇ‹O IND¸GENA EM DI˘LOGO
A educação escolar indígena hoje
˙g vënhkajränrän fä ti uri, ëg mÈ ki hä han mü hën, uri ëg ta
fóg ag tü ëg ge han sór mu, ëg mÈ ün si ag jykre tu vënhrán sór
ti hën? ˙g krë ag mré? KÈ inh mré tu jykrén há han, ëg ta kar
tägki hä, ëg si ag tÈ ëg kajrän já ën vem jé, mÈr ham? Kïjën ëg
ta kägter mü, hära ëg ta! Tu jykrén ja ën ta känÈj mü, kar ëg
vënhrán já ën ti ke ge, hamä.
Enquanto algumas pesquisas discutem a imagem do indígena construída pela educação escolar, neste trabalho, pretendo inverter os termos da
questão, preocupando-me com a imagem da escola construída pelos indígenas.
O discurso indígena se construiu pela experiência direta com a sala de aula,
dentro das aldeias, e também pelo que acontece lá fora, nas escolas das cidades
perto das aldeias e nas grandes capitais do país. Nesse sentido, a sociedade
kaingang avalia a escola trazida pelo não indígena, observando o indivíduo
formado por ela, mediante seu relacionamento com a alteridade e a diferença.
O exemplo mais acabado deste tipo de discurso é o da mitologia kaingang, que elabora explicações sobre a origem da escola, o medo que ela
provoca nas crianças e os altos índices de evasão. Os pais sem saber o que
querem que os filhos cursem, estão quase que desolados, pois não estão entendendo quais são os objetivos da escola para este povo: será que é para o
mundo da competição ao trabalho? Ela é para afirmação da identidade da
nossa sociedade? O que esperam da escola hoje? Ela não pode sozinha manter
viva a identidade cultural do povo kaingang, que é a língua indígena, pois até
hoje somente destruiu parte dela.
Este trabalho transcreve uma das versões do mito, que representa a escola como devoradora de identidades, numa perspectiva que talvez possa
contribuir para repensar algumas práticas ainda hoje difundidas nas salas de
aula nas aldeias indígenas kaingang. Mesmo sabendo que a educação escolari 70
CADERNOS DA ESPECIALIZAÇ‹O PROEJA II | RIO GRANDE DO SUL zada está há séculos na frente da representação de sinais indígena, este povo
luta para que seja modestamente entendido, dentro do espaço educacional do
mundo letrado, pois esta representação através de sinais - a escrita ocidental só trouxe frustrações para a sociedade kaingang, como vimos nas páginas
anteriores. Quando alguém compra um peixe atira as espinhas fora e aproveita só o que há de melhor, mesmo assim este povo acredita que há ainda uma
esperança, pois sabem que ali ainda podem encontrar um filezinho do peixe
para manter seu conhecimento tradicional vivo, para transmitir para seus
descendentes.
Professor Zaqueu Kaingang dando aula sobre história e cultura indígena na formação de
professores não indígenas na Universidade de Educação Superior de Teologia de São
Leopoldo, RS.
71
VOLUME II | EDUCAÇ‹O IND¸GENA EM DI˘LOGO
Cacique kaingang Ari Kajër Ribeiro, fala da importância de preservar a cultura indígena junto
de sua comunidade na Aldeia Indígena Fág Nhin, em reunião no lançamento da cartilha que
prevê a implementação da lei 11.645/08, na educação escolar no mundo do não indígena, na
semana dos povos indígenas em 19/04/2010.
72
CADERNOS DA ESPECIALIZAÇ‹O PROEJA II | RIO GRANDE DO SUL Educação Escolar Indígena Para Jovens e Adultos
(PROEJA Indígena)
Sa kyrü kar ün tytëg fag tu jykrén kÈ vënhrán ja vä,
mÈr kyrü kar ün tytëg fag vÈ, jag në ta prüg-prüg
kar fag vÈ, fag iskóra tugvänh tï, hä kÈ sa tag
tugnïn tu vënhrán já nï, kyrü ti prü ra, kar ün tytëg
fi mén ra, fag tÈ jagnämré vënhkajränrän jé gé. Fag
tÈ kajró nÈtïn jé, kyrü kar ün tytëg fag.
A filosofia deste seguimento da escola deve oportunizar para esta modalidade técnicas de alfabetização direcionada para realidade dos alunos,
abordando e mostrando caminhos para melhor condição de adaptar o jovem
e o adulto indígena ao ensino escolarizado de forma mais prática e didática.
Isto aponta para um trabalho árduo a ser elaborado e explorado, de uma
política de ensino que vise tornar mais justa a educação formal para os povos
indígenas nesta modalidade, uma vez que o ensino em sua língua materna
lhes é garantido por lei e evita a exclusão desses povos, que ao longo da história da educação brasileira, foram excluídos e marginalizados.
A insistência do ensino em língua portuguesa nas escolas indígenas,
muitas vezes tem negligenciado o fato de que as crianças kaingang têm o
conhecimento mais voltado a sua cultura, ao mesmo tempo falando a língua
materna e isto influencia no aprendizado que é direcionado para esta faixa
etária de ensino, nos moldes da educação vinda pelo não indígena. Agora,
com essa expectativa de criação desta modalidade da EJA para as sociedades
indígenas, deve-se ter cuidado de onde começar e pensar que especificidade
adequar, para que não se repitam os mesmos erros do passado.
73
VOLUME II | EDUCAÇ‹O IND¸GENA EM DI˘LOGO
O relato do professor bilíngüe da etnia kaingang, Selvino Kókáj Amaral, dá testemunho sobre a experiência vivida pelos velhos kaingang e como
gostaria que a educação escolar indígena fosse.
Cada comunidade kaingang tem sua própria história, sua realidade.
Para assegurar que estas diferenças sejam respeitadas também na escola, deve-se
ter o cuidado com as especificidades indígenas. Basta lembrarmos que nos
séculos passados época de expansões territoriais européias, o processo de
colonização foi uma violência contra o nosso povo, nas terras do chamado
Novo Mundo. Que não só nos exploraram, como tentaram nos adaptar aos
moldes da educação escolar que eles nos impuseram, mas eu sempre falei que
nossos velhos foram fortes e guerreiros, não deixaram a sua cultura de lado
em prol da cúpula ocidental. Hoje devemos ter esse cuidado, ao implantar tais
modalidades ao nosso povo, se não fosse nossos heróis kaingang, os velhos, o
kujá, nós não existia mais, apenas seríamos lembrados como uma lenda.
Então a tarefa de formular um currículo que contemple toda a nossa própria
gama de conhecimentos e conhecimento relevante a outras culturas, compete
não somente a nós professores indígenas e nossas comunidades, então a secretaria de educação responsável por tal atribuição devem nos dar toda a autonomia de nós construirmos as nossas próprias práticas pedagógicas, não
queremos coisas prontas vinda do não indígena, lá de fora. Como é que um
Governo que não atende direito as suas escolas vão querer dar isso formalizado pra gente? Se eles não conseguem resolver nem os problemas da sociedade
deles! Como é que querem dar isso pronto pra gente? Eles devem nos dar a
total liberdade para formular os currículos para as escolas indígenas, isso nós
soubemos fazer e é mais que um dever nosso, em realizar esse sonho, tudo a
partir de nossas experiências em nossas comunidades, com os velhos, com os
pais dos alunos, com as crianças, com os jovens e os adultos de nossa aldeia,
este é o meu sonho em quanto professor bilíngüe pensando na educação
escolar indígena kaingang.
74
CADERNOS DA ESPECIALIZAÇ‹O PROEJA II | RIO GRANDE DO SUL Caso os protagonistas ou responsáveis por tal implantação não considerem o conhecimento dos velhos e a experiência dos professores indígenas,
isto invalidará todo e qualquer outro esforço feito pelos educadores indígenas
no sentido de melhorar e aprimorar a aprendizagem dos jovens e adultos
indígenas no sistema da educação escolarizada. O que se evidencia é que, se
esta modalidade, ou seja, os protagonistas responsáveis pela implantação da
EJA, desprezarem o sistema de referência cognitivo adquirido pelo jovem e
adulto indígena nos rituais de cerimônias que acontecem em suas comunidades e antecedem a escola, isto é, aqueles que já possuem o saber originário de
sua cultura, que são transmitidos através da oralidade tradicional de seu povo,
não estarão exercendo a sua cidadania. O aprendizado transmitido pelos
velhos em sua comunidade é que os tornam cidadãos plenos de sua cultura e
como será o saber transmitido pelo educador de EJA, caso essas especificidades não fizerem parte de um currículo para esta modalidade?
Sabemos que a sociedade, ou seja, os membros das comunidades indígenas aqui no Sul não estudam para buscar o mundo da competitividade não
se preparam para o mercado de trabalho, mas sim, para aprimorar o saber que
eles têm, ao mesmo tempo se apropriar do conhecimento ocidental para
futuramente defender seu povo em todas as esferas e no âmbito da sociedade
nacional, seja no cenário político, na saúde, na agricultura, na divulgação de
cultura e na formulação de política educacional, trazendo para a realidade das
comunidades indígenas, compondo saberes tradicionais para a ideologia da
formação almejada através da escola que desejam ou como querem que a
escola seja.
Contrariamente o que se espera da escola para jovens e adultos indígenas se ela for formulada pelo não indígena, vinda do governo? Se ela não
for pensada pelo próprio indígena a sociedade kaingang deve ficar atenta. Por
que ela tem um papel duplamente excludente: distancia o indígena do seu
mundo e o introduz na sociedade não indígena indefeso e inseguro para lidar
com outros conceitos que não os seus, em um meio diferente daquele em que
75
VOLUME II | EDUCAÇ‹O IND¸GENA EM DI˘LOGO
foi criado. Enquanto sujeito, coletivamente de tradição oral, o adulto e o
jovem indígena nunca conseguirão assumir o individualismo, mesmo estando
em meio ao mundo escolarizado. Uma medida que visa reverter esse quadro é
garantir a esses Jovens e Adultos indígenas o direito a sua forma de pensar e
agir, é fazer com que o indígena elabore a educação, o ensino da EJA diferenciada e voltada para seus costumes e cultura. Assim, ela será uma escola de
índio para índio, que leva em consideração o conhecimento que adquiriram
durante sua experiência e convívio de sua comunidade.
Como a Educação de Jovens e Adultos não tem e nunca teve experiência desta modalidade nas comunidades kaingang, este sistema deve ao mesmo tempo de sua implantação se referenciar no conhecimento adquirido pelo
jovem e o adulto em seu contexto social e cultural. Este cognitivo é a base de
formação que ele carrega desde os tempos imemoriais, de seus avôs, dos velhos
e do kujá durante as cerimônias de rituais que antecedem a vinda destes para
o mundo escolarizado. Com todo esse aparato vão continuar sendo indígenas
do portão para fora e do portão para dentro.
Na atualidade existem muitos jovens e adultos indígenas analfabetos
no Estado brasileiro, estrangeiros ao sistema educacional, excluídos dos saberes acadêmicos e escolares da sociedade ocidental. Porém, ao mesmo tempo,
com um conhecimento de participação política sobre sua ciência, técnica e
cosmologia ancestral e este é um aspecto a ser considerado, de uma alfabetização baseada no sistema educacional e na tradição do povo kaingang.
No entanto, este sistema tem atraído muitos pesquisadores que polemizaram e tentaram transformar a metodologia e a didática desta sociedade
para o sistema da sociedade nacional, não entendendo que o povo indígena
tem suas próprias formas de ensinar e aprender. Este é um saber que adquiriram desde a sua origem, agora diferenciados e transformados, buscam direcioná-los ao novo horizonte em busca de sua liberdade intelectual no cenário
da educação escolarizada.
76
CADERNOS DA ESPECIALIZAÇ‹O PROEJA II | RIO GRANDE DO SUL O protagonista deste trabalho, referente à modalidade educacional
que expõe, também na área do PROEJA, quer ao mesmo tempo dialogar com
a educação desenvolvida pelos velhos e também pelos kujás, que é oferecida
aos jovens nos rituais de iniciação à vida adulta. Este conhecimento que
perpassou séculos, agora pode ter mais visibilidade e poderá ser utilizado no
currículo da instituição escolar indígena com mais freqüência e assiduidade:
para determinar o tempo certo da alfabetização das crianças indígenas; como
forma de preservar este saber e ao mesmo tempo revitalizar todos os saberes
tradicionais; no Ensino Fundamental, no Ensino Médio, na Educação de
Jovens e Adultos (EJA), no Ensino Profissionalizante e no
PROEJA/IND¸GENA, ao mesmo tempo preparar o indígena para o mundo
acadêmico fora da aldeia.
O relato de um indígena kaingang, Cleverson Nïvénh-mág Claudino,
estudante Universitário, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul –
cursando graduação em História.
Planejar uma educação escolar indígena ao qual o povo
kaingang almeja é aquela que contemple a pedagogia da
oralidade, o curriculo formulado com a adequação desta
sociedade para a modalidade da educação de jovens e adultos
deve ter como referência a interculturalidade, as experiências
subjetivas e comunitárias dos velhos, e também do kujá, são
metodologias que vão nortear a proposta política pedagógica
referenciadas a identidade étnica cultural da sociedade
kaingang, no contexto escolar. Garantindo a visibilidade
sociocultural como ponto de partida para o processo de ensino
aprendizagem, priorizando abordagens multiculturais e
interdisciplinares, que articulem os conhecimentos e práticas
tradicionais com as ciências e tecnologias não indígenas que
possam contribuir para os projetos curriculares das escolas
indígenas kaingang, para a desconstrução do etnocentrismo,
são estas particularidades que o (PROEJA) deve ter em seu
curriculo.
77
VOLUME II | EDUCAÇ‹O IND¸GENA EM DI˘LOGO
A oferta desta modalidade de ensino – PROEJA/IND¸GENA, que está
em processo de diálogo para construção e formalização, deverá conter, em sua
proposta pedagógica, a participação dos jovens, dos adultos, dos velhos, das
lideranças políticas (cacique), dos professores e da comunidade indígena de
cada aldeia considerando todo o saber tradicional da sociedade kaingang.
Onde estiver prevista a sua implantação para as comunidades indígenas nos
territórios indígenas kaingang haverá uma reflexão envolvendo a comunidade.
Alguns dos saberes tradicionais do conhecimento kaingang deverão ser proporcionalmente inseridos no contexto escolar, porque se for assim, de acordo
com a perspectiva de cada comunidade, este aspecto do cognitivo kaingang
será de muita valia para o sucesso da Educação de Jovens e Adultos integrada
ao ensino profissionalizante (PROEJA) nas comunidades indígenas do RS.
Formular um currículo voltado para as peculiaridades da cultura indígena kaingang, que tem esta diversidade de conhecimentos, requer práticas e
saberes dos velhos, que são considerados a biblioteca viva deste povo. Agora
em pleno século XXI este saber tem por objetivo e finalidade ser implantado
no seguimento da EJA, com possibilidades e alternativa do desenvolvimento
dos jovens e adultos indígenas ao mundo científico e escolar, com eficácia as
tecnologias voltadas para a formação do sujeito indígena, também nos termos
do seguimento do ensino profissionalizante. E este deve, proporcionalmente,
considerar as perspectivas do desenvolvimento sustentável e de proteção dos
territórios indígenas, possibilitando a inserção dos jovens e adultos indígenas
na execução de projetos de acordo com as necessidades e interesse de cada
comunidade indígena kaingang.
A associação que defendo entre a educação de jovens e adultos e a
sustentabilidade nos territórios indígenas é a falta de oferta de formação
técnica e tecnológica que forneça subsídios para apoiar os projetos de
autossustentação baseado na interculturalidade, ou seja, na ciência do povo
indígena kaingang e em conhecimentos científicos e tecnológicos dos povos
não indígenas. Para tanto é necessário implantar programas de formação
78
CADERNOS DA ESPECIALIZAÇ‹O PROEJA II | RIO GRANDE DO SUL profissional adequados às necessidades socioambientais e as especificidades
deste povo nas escolas localizadas em terras indígenas kaingang. Este é o
sonho do pesquisador referente a esta modalidade.
A proposta pedagógica a ser composta parte do princípio de que a
construção de uma educação escolar indígena específica e diferenciada para
jovens e adultos indígenas deverá ter em sua formulação o ensino básico de
qualidade voltada para a sociedade kaingang, baseando-se na cultura enfocada
na interdisciplinaridade de acordo com a realidade de cada comunidade
kaingang. Pois só com a oferta desta modalidade não se garante a perfeição do
desenvolvimento deste seguimento de educação, ela deve estar proporcionada
ao ensino dos velhos com a busca da qualidade, da diversidade e do
conhecimento ancestral. A educação de Jovens e Adultos e o ensino
profissionalizante precisa impreterivelmente ser ministrado por professores
indígenas, capazes de incorporar em suas práticas escolares os avanços nas
diferentes áreas do conhecimento e estar atentos às dinâmicas sociais e suas
implicações no âmbito do mundo escolar.
Atualmente, a busca para terminar com a simples transferência de
processos e procedimentos educativos empregados a sociedade indígena,
depois de cinco séculos vem sendo debatida pelo pesquisador junto às comunidades indígenas, com anseio de construir com os professores, lideranças,
com os velhos, com a comunidade, com os jovens e adultos indígenas a busca
de uma abordagem a partir do saber tradicional que absorveram nos rituais de
cerimônia que aconteceram e ainda acontecem nas aldeias.
Este conhecimento, ao dar ênfase ao mundo científico, trará mais respeito e coerência que é o que os povos indígenas desejam na atualidade. Esta é
a ideologia, ou seja, esta é a educação escolar indígena diferenciada que o
protagonista deste trabalho quer para a sua descendência. Desta maneira,
pretende possibilitar aos jovens indígenas se sentirem e se conhecerem nas
suas relações sociais, sentindo-se parte integrante da construção da história da
educação de jovens e adultos direcionada para o seu povo kaingang aqui no
79
VOLUME II | EDUCAÇ‹O IND¸GENA EM DI˘LOGO
RS. Além disso, possibilitar o acesso à construção de conhecimentos e mediar
para que esses conhecimentos construídos sejam significativos para suas vidas.
Vejamos o relato e a afirmação do professor kaingang Amilton Mello,
estudante de educação física da UFRGS.
Felizmente, o conceito vem mudando e, entre os grandes desafios dessa modalidade de ensino, agora pretende incluir também na escola indígena,
com intenção de preparar os alunos indígenas para o mundo contemporâneo
por fim a busca da releitura ao conhecimento dos velhos kaingang. Hoje
sabemos do valor da aprendizagem contínua, em todas as fases da vida, e não
somente durante a infância e juventude. Os professores indígenas ao longo de
sua caminhada vêm lutando para mudar essas abordagens nas escolas.
Estamos felizes por que a nossa diversidade é rica e a gente que conhece a
diversidade do saber do nosso povo é uma riqueza e tanto, não um entulho
como os brancos sempre falaram de nós. O conhecimento do saber dos velhos
através da natureza é que nos faz refletir. Além disso, queremos valorizar essa
riqueza de outras maneiras e não apenas dando destaque para a dimensão do
sofrimento e violência que nós sofremos. A EJA, com a formulação que você
„pesquisador‰ está fazendo, vai dar este enfoque para o nosso povo e
posteriormente a liberdade de buscar novos conhecimentos lá no mundo
tecnológico, científico dos brancos, assim nós vamos ser invencíveis por que
conhecemos os dois lados da moeda.
Esta proposta curricular para Educação de Jovens e Adultos, que está
sendo debatida com possibilidade de ser construída com a colaboração desta
pesquisa, está sendo referenciada no campo do Estudo da Cultura e visa
atender uma parcela da população indígena, que um dia já foi excluída socialmente, sendo obrigada a sair da escola regular após seu casamento. Esta
Proposta Pedagógica e Curricular está intitulada como „A Constituição Histórica do Sujeito Indígena‰ e compreende que os jovens e adultos indígenas,
devem ser lapidados construindo-se em suas tramas históricas, nas suas rela 80
CADERNOS DA ESPECIALIZAÇ‹O PROEJA II | RIO GRANDE DO SUL ções sociais e culturais, os lugares que ocupam e o tempo em que vivem por
serem indivíduos sabedores de sua história.
Uma escola indígena com uma proposta curricular enfocada no saber
coletivo direcionado à EJA servirá de base para vários segmentos institucionais, tornando-se, assim, uma referência estadual e nacional para a educação
de jovens e adultos, por apresentar características específicas, diferentes de
outras propostas ou correntes de pensamentos. Diante disso, pretende-se fazer
um estudo criterioso e minucioso, respeitando todas as especificidades da
cultura, dos costumes da tradição kaingang, buscando e analisando como as
referências e forma de implementação irão viabilizar seus objetivos. Além
disso, o estudo deve buscar evidências para avaliar a relação entre a teoria
científica e o conhecimento empírico. Ao mesmo tempo, buscar através da
teoria formalizada, a construção da proposta para a prática interdisciplinar,
responsável pela produção do currículo, por meio da percepção dos alunos,
das alunas, dos velhos e da comunidade para este seguimento, onde a escola
esta inserida.
Várias tentativas de implantação de programas e cursos para a sociedade kaingang, realizadas por instituições universitárias, não tem tido efeito.
Essas tentativas, seguidas de fracassos, vieram confirmar que os processos de
construção de conhecimento e de aprendizagem direcionadas aos povos indígenas não tem nada a ver com os conhecimentos tradicionais transmitidos
pelos velhos e pelo kujá.
Trabalhos voluntários e outras abordagens têm demonstrado a vontade de se trabalhar com a sociedade kaingang. Algumas tentativas têm dado
certo, surtido efeito, mas muitos professores desta área, „os não indígenas‰,
com experiência da EJA, até mesmo professores universitários tentaram buscar
uma aproximação e acabaram se frustrando, não conseguindo manter os
alunos indígenas na escola. Em relação às especificidades dos jovens e adultos,
não era a perspectiva que queriam para obter um bom relacionamento e
sucesso nesta área. É preciso, sobretudo, abordar todos os saberes tradicionais
81
VOLUME II | EDUCAÇ‹O IND¸GENA EM DI˘LOGO
que os mesmos têm, para junto deles construir uma base teórica voltada para
a sua sociedade.
Nesse sentido, faltou experiência e uma pesquisa direcionada para esta
modalidade de ensino, também por existir carência de material didático, a
especificidade da EJA acabaram sem sucesso. Para garantir o sucesso, o
planejamento e a gestão da educação intercultural indígena, de acordo com o
direito dos povos indígenas, é necessário que a educação direcionada para esta
modaliade construa um programa de formação permanente de gestores e
técnicos sobre pluralidade cultural nas políticas públicas de educação, diria
eu, com toda a audácia do sucesso desta modalidade de educação escolarizada
para o povo indígena kaingang.
Quero registrar também, que a riqueza deste estudo, foi o caminho
percorrido até aqui e não o que nesse momento posso chamar de „final‰. Este
certamente não foi um fim, mas uma etapa alcançada. As considerações aqui
descritas, não são definitivas. São considerações que sofreram influências do
momento em que o estudo foi realizado. Essas conclusões estão sujeitas a
outras mudanças, pois outros pesquisadores que passarem por esse percurso
da EJA terão outras bagagens e consequentemente outras percepções, podendo
vislumbrar novas perspectivas e com isso abrir outros caminhos e outras
possibilidades. Com esse estudo espero poder contribuir na produção teórica
específica para educação de jovens e adultos indígenas kaingang e estimular a
construção de propostas alternativas para o PROEJA/IND¸GENA.
Considerações Finais
Todo o assunto que aqui foi exposto, relacionado à educação escolar
indígena, serve para entender a importância do respeito e valorização da
identidade étnica cultural do povo indígena kaingang. O extermínio de grande parte da cultura desta sociedade é observado neste trabalho, o mesmo serve
82
CADERNOS DA ESPECIALIZAÇ‹O PROEJA II | RIO GRANDE DO SUL de exemplo para que outras culturas não sejam mais sufocadas ou vistas como
inferiores ou de menor importância e prestígio.
A cultura indígena kaingang serve como um manual de sobrevivência.
Então, o respeito a essa diversidade deve ser algo indispensável, pois, com a
educação escolarizada, podemos transformar o nosso país em algo melhor. Os
preconceitos identificados através da discriminação e das individualidades são
pertinentes ao mundo desconhecido, porque ninguém respeita aquilo que não
conhece. Então esta é, e foi uma oportunidade de se conhecer um pouco mais
sobre esta sociedade, que ao longo de sua existência foi sufocada, marginalizada. É necessário conhecer a cultura e com isso receber o respeito pleno, porque esta não é e nunca foi uma das personagens do folclore gaúcho e muito
menos brasileiro. As sociedades indígenas buscam permanentemente afirmação e reconhecimento de sua forma de ser e da vida anterior ao mundo capitalista.
Este é um trabalho de incentivo ao conhecimento educacional do povo indígena kaingang que aqui vive e foram na história do Rio Grande do
Sul, junto de outros povos, os donos desta terra. E, o mais importante, de
onde estiver lendo este trabalho, em pé ou sentado, este lugar já nos pertenceu
e por ganância dos grandes latifundiários, parte deste território nos foi tirado.
Mesmo assim lutamos para sermos vistos, porque nossas raízes encontram-se
desde a nossa origem, antes da invasão de nossos territórios, até finalmente ser
colonizado. Esta guerra perdura há aproximadamente cinco séculos. Buscamos através da educação escolar indígena um mundo melhor, sem exclusão e
preconceito para as futuras gerações do povo indígena kaingang, por que não
conseguiram nos exterminar nos séculos XVI, XVII, XVIII, XIX e XX eu acredito vamos vencer esta luta e vamos seguir adiante.
83
VOLUME II | EDUCAÇ‹O IND¸GENA EM DI˘LOGO
Referências
a) Da tradição oral indígena
Felipe Rëtón da Silva. Terra Indígena Kaingang Fag Nhin – Lomba do Pinheiro,
Porto Alegre, RS. Depoimento gravado em abril de 2010.
João Carlos Kanheró. Terra Indígena Rio da Várzea – Liberato Salzano, Rodeio
Bonito, RS. Depoimento registrado no CD ˙MÄ M˘G - Aldeia Grande, 2008.
Danilo Braga. Terra Indígena Ligeiro – Charrua, RS. Depoimento concedido ao
autor do texto em maio de 2010.
Selvino Kókaj Amaral. Terra Indígena Guarita – Redentora, RS. Depoimento concedido ao autor do texto em maio de 2010.
Cleverson Nïvénh-mág Claudino. Terra Indígena Kaingang Fág Nhin – Lomba do
Pinheiro, Porto Alegre, RS. Depoimento concedido ao autor do texto em abril de
2010.
Amilton Mello. Terra Indígena Guarita – Redentora, RS. Depoimento concedido ao
autor do texto em maio de 2010.
b) Da tradição escrita acadêmica
BERGAMASCHI, Maria Aparecida (org.) Povos indígenas & Educação. Porto Alegre:
Mediação, 2008.
BONIN, Iara. Educação escolar indígena e docência: princípios e normas na legislação em vigor. In: BERGAMASCHI, Maria Aparecida (org.) Povos indígenas & Educação. Porto Alegre: Mediação, 2008, p. 95-107.
84
PENSANDO A EDUCAÇ‹O PROFISSIONAL
E TECNOLŁGICA INTEGRADA ¤ EDUCAÇ‹O ESCOLAR IND¸GENA
Caetana Juracy Rezende Silva1
Para os governantes que são
responsáveis de executar esta política e precisam
entender que com isto estamos querendo
viver com respeito e dignidade nas nossas comunidades e fora dela quando sairmos.
E esta parte é o que o Brasil precisa aprender a
fazer e respeitar: Viver intercultural.
André Baniwa
Pensar a integração da educação profissional e tecnológica com a
educação escolar indígena em âmbito nacional exige que o pensamento seja
sempre formulado no plural. Não existe modelo único de educação escolar
indígena, nem uma única fórmula para a gestão do conhecimento pelos povos
Mestre em Música. Técnica em Assuntos Educacionais do Ministério da Educação. Coordenadora-Geral de Políticas de Educação Profissional e Tecnológica na Secretaria de Educação
Profissional e Tecnológica – SETEC/MEC. E-mail: [email protected]
1
VOLUME II | EDUCAÇ‹O IND¸GENA EM DI˘LOGO
indígenas. A concepção de educação profissional vinculada à idéia de emprego, de meio de subsistência pela venda da força de trabalho, não é somente
estranha aos universos indígenas tradicionais como estapafúrdia ao se considerar os modos de vida e produção das várias etnias, seus projetos para o
atendimento das suas necessidades dentro das terras indígenas, suas concepções de trabalho. A aproximação só se torna possível a partir da concepção de
educação profissional e tecnológica em um projeto de formação humana
integral, emancipatória, capaz de respeitar as culturas e os modos de vida em
suas especificidades.
Se as questões educacionais sempre estiveram presentes entre os povos indígenas, pensar a aprendizagem escolar ainda é um grande desafio.
Conforme André Baniwa, da Federação das Organizações Indígenas do Rio
Negro – FOIRN, os povos indígenas foram educados para a sociedade envolvente e deseducados de suas culturas. Para entender a proposta da educação
escolar indígena, se faz necessário inverter essa lógica: Nos deseducar primeiro
novamente, para podermos mergulhar profundamente na nossa história e
recuperar parte dela, porque muitos já se perderam (FOIRN, 2006). Em artigo
publicado na primeira edição dos Cadernos PROEJA, Andila Nĩvygsãnh,
Professora kaingang Especialista em PROEJA, destaca: se eles quiserem ser
bons professores kaingang, eles terão que ouvir os nossos „velhos‰! Pois é
neles que está a essência da escola diferenciada. São, pois, a base para um
Projeto Político-Pedagógico (Inácio, 2010). Ressalta ainda, que o avivamento e
valorização das formas tradicionais de aprendizagem possibilitam a utilização
de metodologias aperfeiçoadas ao longo de séculos nas trajetórias socioculturais desses povos.
Em sociedades em que a base da produção e das decisões sociais é
organizada no e para o coletivo, todos se ocupam com o ensinar. Percebe-se
neste ato a unidade entre as várias dimensões da vida. Trata-se de uma formação integral por excelência. A preocupação com a formação se dá em todos os
sentidos, inclusive no afetivo. A concepção fundamental é a de que a criança
86
CADERNOS DA ESPECIALIZAÇ‹O PROEJA II | RIO GRANDE DO SUL deve ser auxiliada e incentivada, considerando seus níveis de amadurecimento
físico e emocional, dominando gradativa e naturalmente as técnicas, os conhecimentos aprendendo o útil e necessário a sua comunidade.
Enquanto seres histórico-sociais, homens e mulheres indígenas produzem conhecimentos através do trabalho de apropriação dos potenciais da
natureza para satisfação de suas necessidades subjetivas e sociais, do grupo
familiar, do coletivo, da cultura. Como mediação ontológica na produção do
conhecimento, o trabalho é, sobretudo, a base dos processos educacionais
indígenas. O trabalho deve servir à vida coletiva com o objetivo de produzir
o suficiente para que se viva bem, sem a preocupação com o acúmulo de
riquezas, portanto, sem a necessidade de sobrecarga sobre os indivíduos. É
meio de vida, sabedoria, garantia de inserção no espaço sociocultural, reconhecimento do pertencimento individual ao coletivo (Freitas, 2010).
A compreensão da realidade como uma totalidade surge como uma
das características das pedagogias indígenas. Os Tuyuka, da região do Alto Rio
Tiquié, na fronteira do Brasil com a Colômbia, ao discorrerem sobre a origem
e transformação de seu povo explicam
A estrutura da Casa Ritual e de Moradia representam os ossos
que sustentam o corpo da pessoa (...)
Também as cerimônias de dança e entonações lembram da terra de transformação e origem através da maloca. Por isso essa
Casa Ritual e de Moradia é muito importante, reflete a ligação
entre o contexto cultural e cerimonial de um povo. Atualmente, quando as pessoas adoecem, para benzê-las são lembradas
todas as partes da maloca, associadas a seu próprio corpo.
São vários os tipos de caibros usados na construção desta Casa
Ritual ou maloca (...). Os caibros de Envira são vulneráveis às
brocas que destroem a madeira, não servem. Somente caibros
compridos são usados na construção da Casa Ritual e de Moradia.
87
VOLUME II | EDUCAÇ‹O IND¸GENA EM DI˘LOGO
Terminando de construir a estrutura da Casa, ela é coberta de
caraná, ubim, ubim de espinho, palha branca (...). A cobertura
de palha da casa representa as plumas da arara das quais se
confecciona adornos cerimoniais como as faixas de plumas,
mapoari. Quando bem colocada, numa cobertura bem densa
pode durar até oito anos (AEITU, 2005).
Narrativas de outros povos indígenas demonstram igualmente um
tratamento integrado de várias dimensões da vida em uma proposta educacional estruturada na compreensão relacional das partes em um todo. As
ações de pensar, agir, planejar e executar se encontram unificadas, derivado de
suas visões de mundo, em que a mística, a produção da existência, a constituição da vida são inseparáveis nos processos de apreender o mundo.
Pensar integração entre a educação profissional e a educação escolar
indígena exige fundamentalmente superar a visão evolucionista, reconhecendo
a sabedoria milenar acumulada por esses povos. A apreensão e representação
das relações que estruturam a realidade produzem-se, nas diferentes culturas
indígenas, através de métodos próprios. Partindo do empírico, à luz de suas
culturas, desenvolvem análises e elaboram sínteses para a representação do
concreto.
A questão da integração entre a educação profissional e a educação
escolar indígena deve ser colocada a partir da compreensão das dimensões do
trabalho, da cultura, da tecnologia e do conhecimento indígenas, exigindo
profundo conhecimento sobre essas sociedades. Por esta razão, a proposição
de projetos de educação profissional e tecnológica necessita da participação
dos povos indígenas em todas as suas dimensões, nas decisões políticas, na
gestão pedagógica, administrativa e financeira. Pela garantia da participação
viabiliza-se a construção de alternativas diferenciadas.
O acesso aos conhecimentos tecnológicos da sociedade nacional não
pode significar a transição de um modo de produção coletivo e cooperado
(tido ainda por muitos como rudimentar) para um capitalista. Tal visão
88
CADERNOS DA ESPECIALIZAÇ‹O PROEJA II | RIO GRANDE DO SUL apenas contribuiria para a destruição das culturas indígenas, reproduzindo o
ideário de assimilação, oficialmente assumido durante oito décadas de políticas de proteção ao índio (1910-1980) e, infelizmente, ainda presente na sociedade brasileira.
Uma educação profissional indígena alcança significado quando
responde a questões cruciais para a sobrevivência desses povos e fortalecimento de suas comunidades, construindo alternativas viáveis para o gerenciamento autônomo de seus territórios, possibilitando sua sustentação econômica,
segurança alimentar, saúde e atendimento às necessidades cotidianas. O pequeno artigo Educação Escolar e a Gestão do Território de André Baniwa
ajuda a ilustrar esta questão:
O que tem a ver a Educação escolar com Gestão Territorial?
Estamos falando do assunto que não é bem comum na tradição dos povos indígenas. Isto porque a educação nossa nunca
foi escolar (dentro de casa). Mas a gestão de terra, cada povo
entendia e vivia muito bem antes da colonização. (...) A gestão
destas terras significa cuidar dela, dos seus recursos naturais,
manejá-los tendo cuidado para não acabar com recursos que
utilizamos no dia-a-dia nas nossas comunidades. (...)
Para fazer uma boa gestão precisamos também saber o que temos de recursos nas nossas terras antes mesmo de trabalhá-los
no sentido econômico. Mas porque isso é importante Trabalhar? Porque há mais de 300 anos formos contaminados com o
capitalismo, aprendendo e gostando de consumir mercadorias
de fora. Os críticos podem dizer, mas não é verdade, isso não é
ruim. O fato é que não conseguimos mais deixar de comer
quinhapira sem sal, andar de koeyo e outras formas. Como
não temos meios apropriados de conseguir renda começamos
por influência querer explorar nossos recursos de qualquer
maneira. Aqui está o perigo de faltar como já está acontecendo
em alguns lugares ficando escasso de peixe e outros recursos
também como madeira.
89
VOLUME II | EDUCAÇ‹O IND¸GENA EM DI˘LOGO
A importância da gestão está aqui. Planejar o uso destes recursos naturais. Mas como fazer isso? Como fortalecer essa prática? É nesta área de como fazer é que as escolas devem entrar
para ajudar esse desenvolvimento sustentável. Isto porque o desenvolvimento sustentável que tanto falamos só vai acontecer
na prática quando isso partir de nós mesmos. O desenvolvimento só cresce quando acontece de dentro para fora. A planta
é assim, o homem e toda a reprodução e crescimento de qualquer ser vivente é assim. (FOIRN, 2006).
Diferentes caminhos vêm sendo analisados no campo da formulação de políticas de educação profissional e tecnológica para os povos indígenas. Cada um apresenta diferentes desafios e possibilidades.
Uma das vertentes diz respeito à oferta de cursos diferenciados por
instituições de ensino não indígenas como é o caso de escolas federais de
educação profissional e tecnológicas localizadas próximas a territórios indígenas. As dificuldades encontradas vão desde a mudança de mentalidade, de
concepção e de comportamentos e práticas enraizadas nos gestores, professores e demais servidores da instituição, passando pela constituição de condições
administrativas, políticas, pedagógicas e estruturais para o desenvolvimento de
propostas mais específicas, ao fato de que algumas destas unidades de ensino
precisam atender várias etnias2.
A oferta realizada em ou por instituição escolar não indígena, mesmo quando elaborada com a participação das comunidades indígenas, esbarra
em dificuldades como as relatadas por Maria Inês Freitas:
Dois exemplos são o campus do Instituto Federal do Amazonas em São Gabriel da Cachoeira e o campus do Instituto Federal de Roraima em Amajari. Cerca de 90% da população do
município de São Gabriel é composta por indígenas de 23 etnias. As atividades de ensino no
campus de Amajari tiveram início em 2010 com o curso Técnico em Agricultura. Durante os
anos de 2008 e 2009 foram realizadas audiências públicas para a escolha de seus cursos, das
quais participaram diversas comunidades indígenas. A população do município tem uma
representação de 58% de indígenas de diferentes etnias.
2
90
CADERNOS DA ESPECIALIZAÇ‹O PROEJA II | RIO GRANDE DO SUL Os jovens indígenas, para cursar o Ensino Médio, precisam se
deslocar para escolas situadas na sede de municípios mais próximo das aldeias, onde há oferta dessa modalidade de ensino.
Desse modo encontram muitas dificuldades para realizarem
seus estudos. As principais dificuldades que enfrentam são: aquisição de material didático, transporte, discriminação racial
entre colegas e, às vezes, com professores e aproveitamento insatisfatório. Esse conjunto de situações desfavoráveis causa,
frequentemente, o abandono dos estudos (Freitas, 2010).
A autora relata ainda as dificuldades provenientes dos conteúdos serem trabalhados apenas em português e o fato dos currículos e calendários
serem estabelecidos pelo sistema de educação a que está vinculado, dificultando ou mesmo inviabilizando a aproximação com as realidades dos povos
indígenas.
Algumas experiências, no entanto, têm mostrado possibilidades de
se construir projetos interculturais viáveis com base no diálogo. A escola
federal de São Gabriel da Cachoeira/AM, atualmente campus do Instituto
Federal do Amazonas, foi instituída em 1993 com cursos voltados para a
criação de animais de grande porte e agricultura com foco na industrialização.
Somente a partir de 2005, após o I Seminário Interinstitucional Construindo
Educação Escolar Indígena na região do Rio Negro, promovido pela FOIRN,
que o diálogo intercultural e a parceria entre o campus e o movimento indígena organizado, a instituição passou a priorizar o reconhecimento das potencialidades locais para a criação de alternativas sustentáveis que viabilizassem ações para a valorização do patrimônio cultural e ambiental da região.
Em 2007, foi implantado o curso Técnico em Etnodesenvolvimento, desenvolvido junto a Escola Kariamã, distrito de Assunção do Içana, situado no
baixo rio Içana, habitado por índios da etnia Baniwa e Kuripaco e, em seguida, o curso Técnico em Desenvolvimento Sustentável Indígena, em conjunto
com a Escola Indígena Tukano YeÊpa Mahsã, na região do médio rio Waupés.
Atualmente o campus desenvolve, além dos cursos técnicos diferenciados,
pesquisas nas comunidades indígenas, cedendo sua estrutura física e de pesso 91
VOLUME II | EDUCAÇ‹O IND¸GENA EM DI˘LOGO
al para o desenvolvimento interinstitucional de cursos de formação de professores indígenas.
Outra vertente, que não exclui necessariamente a primeira, diz respeito à construção das condições necessárias para que as comunidades indígenas
desenvolvam autonomamente suas propostas educacionais. Entre os desafios
encontra-se a formação de professores diferenciada conforme a etnia, em número suficiente para o atendimento de suas demandas por escolarização, de forma
a se alcançar uma educação bilíngue, específica, diferenciada e de qualidade,
alicerçada na forma tradicional de ensinar de cada povo indígena.
Em geral, percebe-se que os projetos desenvolvidos nas comunidades
indígenas, com a participação direta de professores indígenas e no diálogo
contínuo com as comunidades, mesmo com falta de infraestrutura adequada,
alcançam resultados muito mais significativos do que a integração de estudantes indígenas em cursos técnicos desenvolvidos nas unidades de ensino dos
brancos. Mas as demandas dos povos indígenas passam por inúmeras formações técnicas como Enfermagem, Eletrônica, Mecânica, Informática, Comunicações entre outras. A formulação de projetos e a constituição das condições
concretas de oferta de cursos específicos, com proposta pedagógica e estrutura
curricular diferenciada, intercultural e bilíngue nas diversas formações de
nível médio/técnico demanda um grande trabalho de pesquisa e diálogo. É
imprescindível a análise e reflexão sobre os modos de produção e as realidades
indígenas em geral para a construção de propostas alternativas.
Uma das alternativas possíveis encontra-se delineada no Decreto
6.861, de 27 de maio de 2009, em que se estabelece que a educação escolar
indígena seja organizada e gerida observada a territorialidade dos povos indígenas, constituindo territórios etnoeducacionais, que independem da divisão
político-administrativa do país. Sua implantação é pautada pelas demandas
dos povos indígenas traduzidas em um plano de ação. Este plano deve ser
elaborado, acompanhado e periodicamente revisto por uma comissão formada
com representantes dos povos indígenas, entidades indígenas e indigenistas,
92
CADERNOS DA ESPECIALIZAÇ‹O PROEJA II | RIO GRANDE DO SUL órgãos governamentais vinculados à temática, gestores de educação estaduais e
municipais, instituições de educação superior e de educação profissional e
tecnológica, entre outros. Embora o texto deste documento legal proponha
um forte esforço de mobilização e participação plural na definição dos planos
de ação, sua promulgação antes do resultado de consultas e discussões com
todos os povos indígenas e sem uma clara vinculação com o debate sobre um
sistema próprio para a educação escolar indígena, provocou forte reação, em
especial, dos povos da região Nordeste. Esse episódio ilustra os descompassos
nos tempos necessários ao diálogo e as tensões existentes decorrentes das
próprias diferenças culturais. Porém, na Nota de posicionamento dos Territórios Etnoeducacionais do Amazonas e do Mato Grosso do Sul evidencia-se a
disposição dos povos indígenas desses estados ao diálogo e à superação dos
obstáculos encontrados, recolocando o debate na perspectiva da plena participação das comunidades. As etnias que subscrevem a nota afirmam:
Temos o entendimento de que todas as questões relacionadas
aos territórios etnoeducacionais devem continuar sendo postas
em discussão, de acordo com as necessidades dos povos indígenas envolvidos, com a plena participação de suas bases comunitárias
(...)
Defendemos que cada povo indígena tenha a liberdade de decidirem sobre a aceitação ou não da implantação do programa
dos territórios etnoeducacionais, de acordo com suas necessidades e projetos societários, devendo o MEC respeitar essa decisão, dada a necessidade de maior esclarecimento e tomada de
consciência sobre os resultados desta proposta de territorialização etnoeducacional para os povos envolvidos, tendo-se em
conta sua viabilidade e os marcos legais pertinentes em vigor e
os que, eventualmente, entrarem em vigência no futuro...
(2010).
93
VOLUME II | EDUCAÇ‹O IND¸GENA EM DI˘LOGO
A integração da educação profissional e tecnológica com a educação
escolar indígena deve ser pensada essencialmente como uma chance para a
constituição da autonomia dos povos indígenas, não se tratando apenas de
acesso à profissionalização. O que exige dos gestores e demais profissionais da
educação a capacidade de ver o mundo com outros olhos, a compreensão e
valorização de outras estruturas sociais, a releitura e a desconstrução das
concepções tradicionalmente aceitas para a formação profissional. Exige a
revisão de métodos e princípios e franca disposição para a construção dialógica interessada no outro.
Referências
AEITU Associação Escola Indígena Utapinopona Tuyuka. Wiseri Makañe
Niromakañe. Casa de transformação: Origem da vida ritual Utapinopona Tuyuka.
São Gabriel da Cachoeira, AM: Associação Escola Indígena Utapinopona Tuyuka
AEITU; São Paulo, SP: Instituto Socioambiental, 2005.
BRASIL. Ministério da Educação. Documento Base do Programa Nacional de Integração da Educação Profissional com a Educação Básica na Modalidade de Educação
de Jovens e Adultos – PROEJA: Educação profissional e tecnológica integrada à
educação escolar indígena. Brasília: SETEC/MEC, set. 2007a.
______. Ministério da Educação. Documento Base da Educação Profissional
Técnica de Nível Médio Integrada ao Ensino Médio. Brasília: MEC/SETEC, nov.
2007b.
FREITAS, M. I. Educação de Jovens e Adultos: Subsídios para a construção de curso
de técnicas agrícolas kaingang. In: BERGAMASCHI e VENZON(org.). Pensando a
Educação Kaingang. Série Cadernos PROEJA-Especialização-Rio Grande do Sul. Vol.
VII. Pelotas: Editora Universitária/UFPEL, 2010.
FOIRN. Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro. Boletim FOIRN.
Wayuri: Vozes do Rio Negro. Especial Educação. Ano 11. jan-mai 2006.
94
CADERNOS DA ESPECIALIZAÇ‹O PROEJA II | RIO GRANDE DO SUL IN˘CIO. A. N. Vēnh Kanhrãn. In: BERGAMASCHI e VENZON (org.). Pensando a
Educação Kaingang. Série Cadernos PROEJA-Especialização Rio Grande do Sul. Vol.
VII. Pelotas: Editora Universitária/UFPEL, 2010.
GOI˘S. Nota de posicionamento dos Territórios Etnoeducacionais do Amazonas e
do Mato Grosso do Sul. Luziânia/GO, 18 de novembro de 2009. Disponível em
http://www.cimi.org.br/?system=news&action=read&id=4290&eid=257. Acesso em 07
de nov. de 2010.
95
Esta obra foi composta nas fontes
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e impressa em papel polen bold 90 grs [miolo]
e Triplex 250 grs [capa] pela
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