EDUCANDO MENINAS ATRAVÉS DO DESENHO

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EDUCANDO MENINAS ATRAVÉS DO DESENHO
1 EDUCANDO MENINAS ATRAVÉS DO DESENHO ANIMADO TRÊS ESPIÃS
DEMAIS
Aline Marielle Silva ∗
A sociedade contemporânea tem valorizado muito a questão estética. As mulheres
além de acumular várias funções, tais como esposa, mãe, profissional, ainda têm que manter
uma boa aparência, estando bonitas aos olhos dos outros e aptas para serem observadas. A
beleza tornou-se condição necessária ao sexo feminino, ou melhor, aspecto indispensável.
Porém, é importante ressaltarmos que tal beleza, tão almejada na atualidade, é determinada a
partir de estereótipos corporais considerados ideais e que estabelecem padrões estéticos de
valores historicamente determinados.
Ao observarmos os discursos acerca deste assunto na sociedade contemporânea,
percebemos que há uma estimulação através de vários veículos de comunicação sobre modos
de pensar, de agir, de se comportar, que objetivam constituir e educar os sujeitos através da
identificação destes com suas propostas, formulando, assim, suas identidades. Nesse sentido,
podemos inferir que a mídia tornou-se um dos meios mais importantes pelos quais são
difundidas ideias, padrões corporais, comportamentais, normas, além de regimes discursivos
de verdade na contemporaneidade, já que é um meio de comunicação de amplo alcance e de
grande popularidade.
As mulheres, por exemplo, e principalmente são bombardeadas com discursos que
estabelecem modelos idealizados, seja referente à aparência, ao comportamento, a
feminilidade, enfim, a tudo que as envolve e que devem ser seguidos, segundo os discursos,
para o seu enquadramento no meio social. Ensinam-nas a serem boas esposas, boas mães, a
estarem bonitas, a serem eficientes no trabalho, enfim, inúmeros conselhos e “receitas” que
incidem sobre a vida das mulheres prometendo-lhes sucesso e felicidade se houver, por parte
delas, um enquadramento ao que está sendo proposto. Os discursos propõem que as mulheres
devem seguir características que idealizam modelos e que reforçam e estabelecem
estereótipos corporais e comportamentais eleitos como ideais.
∗
Mestranda em História Social pela Universidade Estadual de Montes Claros. Bolsista Capes. E-mail:
[email protected]. 2 Os discursos destinados às mulheres/moças/meninas que pretendem constituir
uma imagem idealizada do feminino, educando-as no modo como devem ser e se comportar,
pode ser facilmente identificado nas produções infantojuvenis contemporâneas. Este tipo de
fonte tornou-se legítima para academia depois que estudiosos perceberam que é totalmente
possível compreender e identificar aspectos da sociedade que está sendo representada e da
sociedade a qual o produto foi produzido. Os desenhos animados, por exemplo, que eram
tidos apenas como fonte de entretenimento, passaram a ser objeto de estudo para historiadores
e outros especialistas, já que
O cinema, a televisão e os produtos por elas veiculados são tomados como
articuladores do real. Não são vistos como ‘meras’ fontes de lazer que levam as
massas de receptoras à alienação. Ao contrário, o lazer cotidiano, é compreendido,
tendo por base tanto Bronislaw Baczko quanto Castoriadis e Michel Maffesoli,
como importante articulador da existência do homem no mundo, pois é repleto de
sentidos sobre a relação que as sociedades estabelecem com o tempo histórico
(MACHADO, 2006. p 10).
Em vista disso, Marcos Napolitano aponta que as produções são “[...] sempre
representação, carregada não apenas das motivações ideológicas dos seus realizadores, mas
também de outras representações e imaginários que vão além das intenções de autoria,
traduzindo valores e problemas coetâneos à sua produção” (NAPOLITANO, 2007, p.65).
Diante da afirmativa podemos inferir que o desenho é sempre representação, não importa se é
ficção.
Nesse mesmo sentido, o conceito de Representação Social utilizado por nós na
pesquisa pauta-se na concepção de Denise Jodelet, qual seja: “[...] uma forma de
conhecimento, socialmente elaborada e partilhada, com um objetivo prático, e que contribui
para a construção de uma realidade comum a um conjunto social” (JODELET, 2001, p. 22).
Outro conceito importante e utilizado por nós é o de Gênero. Partimos do pressuposto de que
o gênero é construído através de diferentes práticas discursivas, conforme sugere Teresa de
Lauretis, que vão interpelando os sujeitos com inúmeros modos de ser, de estar no mundo e
de se comportar. (LAURETIS, 1994). Através destes referenciais, os sujeitos vão construindo
para si identidades de gênero, as quais vão sendo formuladas e modificadas ao longo do
tempo. Assim, os veículos que (re)produzem para e nos sujeitos identidades de gêneros,
chamados pela teórica feminista de “tecnologias de gênero”, possuem grande relevância neste
3 estudo, já que nos ajudam a pensar e perceber as representações sobre o gênero presentes na
sociedade.
As representações sociais e as “tecnologias de gênero” se somam para ajudar-nos
a perceber como os desenhos animados educam o público telespectador, de modo a subjetivar
nos indivíduos aquilo que está sendo pregado. Com isso, este estudo buscou entender como as
representações femininas, construídas pelo desenho animado Três Espiãs Demais,
(re)produzem nas crianças imagens corporais e comportamentais personificadas e idealizadas
sobre as mulheres e como as educam no modo de ser e de se comportar, ou seja, ensinam
como ser “verdadeiramente mulher”. Além disso, objetivamos analisar as representações
acerca do corpo feminino e de gênero presentes no desenho como instrumento de educar as
meninas a seguir um ideal de feminilidade e de estética atrelado aos objetivos capitalistas.
O desenho animado Três Espiãs Demais foi produzido pelo estúdio francês
Marathon Production, no ano de 2001 e veiculado no Brasil a partir de 2002, em canais
fechados e abertos, sendo ainda hoje exibido na TV aberta, especificamente na Rede Globo
em programas como TV Globinho e TV Xuxa. É uma produção bastante popular e ainda hoje
se encontrar entre os preferidos do público infantil, principalmente o feminino, já que se
destina mais a este público, mesmo sem excluir o outro.
O desenho tem como protagonistas três jovens estudantes, que fazem o trabalho
de espiãs para uma agência secreta do governo, a WOOPH, paralelo aos afazeres normais
para sua idade. A trama se desenrola na rica cidade de Beverly Hills, onde as garotas residem,
tendo como cenários constantes o shopping da cidade e o colégio em que estudam. São típicas
patricinhas 1 que adoram fazer compras e que se importam muito com a aparência, ainda
fazem parte da classe média alta, levando em consideração a cidade em que residem, o
colégio em que estudam, a casa em que vivem e as práticas cotidianas referentes ao consumo.
A questão do consumo ganha bastante evidência nos episódios. Tendo em vista a
sociedade contemporânea ocidental a qual reina absoluto o sistema capitalista, temas como
vaidade, futilidade e consumo se somam em prol de um discurso que instiga as mulheres a
consumir cada vez mais bens industrializados. Vistas como público consumidor em potencial,
o público feminino tem sido bombardeado com discursos que incitam comportamentos e
modos de ser e que buscam convencê-las a se enquadrar ao modelo hegemônico de beleza e a
1
termo usado para definir garotas extremamente vaidosas, que andam sempre arrumadas e gostam de coisas
caras e de marca.
4 se render ao objetivo do sistema capitalista. Denise Sant’Anna, em estudo sobre Foucault,
aponta que com as novas configurações da dominação capitalista em relação ao corpo e à vida
pelo poder foi acelerada a partir da década de 1970 com “[...] o desenvolvimento da genética
‘casou-se’ com aquele da informática e com a massificação global do consumo de bens
industrializados” (SANT’ANNA, 2002, p. 99-100).
O Shopping Center, símbolo do consumo, é um cenário constante na trama e no
qual as garotas adoram estar, em vários episódios mostra-se o apreço das garotas pelas
compras. Liliane Machado aponta que a índole consumista das personagens destaca o papel
desempenhado pelas mulheres na sociedade contemporânea de defender e incentivar o
consumo. Foi adicionada ao perfil feminino tradicional a imagem de consumistas implacáveis,
o que
[...] vem sendo articulado há algum tempo por discursos diversos, como o
impetrado pela publicidade, cujos manuais de ensino alertam os criadores de
anúncios que as mulheres formam um grupo facilmente manipulável e
seduzível (MACHADO, 2006, p.215).
Tendo isto em vista, as características destacadas vaidade/futilidade/consumo
atuam em prol da idealização de um tipo de beleza. Além disso, as representações femininas
veiculadas nas produções estudadas, assim como outros midiáticos, tem o papel de ser “[...]
local de produção e interiorização de discursos e de identidades do feminino” (RIBEIRO,
2002, p.172).
O tipo de beleza que ganha destaca no desenho é baseado num estereótipo
contemporâneo que idealiza características como a magreza. Há uma uniformização das
imagens veiculadas sobre o ideal corpóreo, as quais predominam corpos longilíneos, peles
claras e sem imperfeições, cabelos lisos, corpos delineados. Todas as protagonistas do
desenho se enquadram neste perfil estético, pois correspondem ao ideal. Os corpos tem
praticamente a mesma estatura e os mesmos contornos, as mudanças ocorrem em relação ao
cabelo, cor de olhos, etc. Clover é loira, de olhos azuis, cabelos medianos e lisos. Sam é ruiva,
de cabelos longos, lisos e tem os olhos verdes. Alex tem a pele morena clara, olhos verdes e
cabelos lisos, pretos e curtos.
Quanto ao comportamento das garotas, apesar de se diferenciarem em alguns
aspectos têm em comum o gosto por compras, por garotos e por estar sempre bonita e na
5 moda. Clover é a garota mais deslumbrada com moda e beleza das três, é um tipo fútil e
fresca, mostrando-se uma consumista nata, é a que mais fala sobre garotos e que mais se
preocupa em encontrar um par perfeito para ela; Sam é uma espécie de líder do grupo e faz a
linha mais inteligente, esperta, séria, ajuizada e estudiosa; Alex é mais dispersa e um pouco
atrapalhada, é a personagem menos expressiva, nem tão focada como Sam e nem tão
consumista como Clover, gosta de praticar esportes e adora cultura oriental.
Sobre esta busca incessante pela beleza, as autoras Odinino, Rial e Girardello,
dizem que as indústrias de produtos foram ao encontro dos meios publicitários remetidos às
meninas, uma vez que a vaidade é considerada quase que obrigatória para o gênero. Ao
observarem os desenhos animados “para meninas”, as autoras perceberam que “[...] mesclamse, sob a denominação da menina, tanto aspectos ligados a meninice, tal qual a ingenuidade e
a graciosidade, quanto certas características femininas que também vigoram no mundo adulto,
como a valorização da boa forma, do corpo jovem, atraente e sedutor.” (ODININO; RIAL;
GIRARDELLO, 2010, p.146).
Percebemos deste modo que há a construção de um ideal feminino, no qual
características canonizadas como femininas se somam a características típicas de uma
sociedade capitalista contemporânea para sedimentarem no imaginário das crianças a imagem
da “verdadeira mulher”, idealizada e estereotipada. As espiãs com seus corpos perfeitos e com
comportamentos desejáveis pelo poder educam as crianças aos moldes contemporâneos do
sistema vigente, além de ir determinando papeis de gênero de acordo com o sexo.
Juliane Odinino, Carmen Rial e Gilka Girardello destacam o papel da mídia no
cotidiano das pessoas, já que “[...] um dos recursos retóricos de mídias, tais como a televisão e
o cinema, consiste em buscar meios discursivos que simplifiquem a imagem-mensagem,
tornando-a de fácil assimilação e conferindo-lhe, portanto, certa solidez, tal como a noção de
estereótipo” (ODININO; RIAL; GIRARDELLO, 2010, p.146). É o que ocorre com os
desenhos animados, eles têm a função de educar as crianças de modo mais sutil, fazendo com
que elas busquem o assujeitamento as normas apresentadas.
A questão estética e corporal tem sido uma das prerrogativas mais trabalhadas na
atualidade. Os autores Veloso, Rouchou e Oliveira afirmam que o corpo é muito assediado
pela mídia, sendo “glamourizado, usado, mitificado, massacrado, manipulado, banalizado,
estetizado e programado”. (VELOSO; ROUCHOU; OLIVEIRA, 2009, p.17)
6 A autora Cláudia J. Maia revela que este investimento político e social sobre os
corpos femininos no Brasil ficou mais evidente a partir do início do século XX quando as
elites brasileiras procuraram, através de diversas práticas discursivas, expandir modelos
idealizados de corpo, de família e de mulher burguesa a todas as camadas sociais, como
estratégia central para disseminar o controle e a disciplina na vida cotidiana (MAIA, 2009,
p.21). O mesmo ocorre na contemporaneidade, uma vez que os discursos midiáticos, como
nosso objeto de estudo, atuam na perspectiva de controlar e disciplinar a vida das pessoas,
especialmente as mulheres, através de uma busca incessante pela beleza.
O superinvestimento no corpo atualmente tem como razão, apontada por Ivana
Bentes, “a produtividade dos corpos enquanto discursos simbólicos e mercadorias, os corpos
como laboratórios do capitalismo publicitário”. (BENTES, 2009, p.197)
Estudos como dos autores Juliane P. Q. Odinino, Carmen S. Rial e Gilka
Girardello no texto “Meninas super-poder-rosas”: Imagens de uma cultura midiática
feminina e infantil, pensam nesta produção de discursos que vendem verdades e na “[...]forma
como as figuras femininas têm sido, ao longo do desenvolvimento das mídias, retratadas e
inseridas em meio as narrativas[...]”. As autoras ainda destacam a influência da TV aberta
sobre as crianças, que compõem uma cultura midiática infantil, com destaque às narrativas de
desenho animado (ODININO; RIAL; GIRARDELLO, 2010, p.145).
Para estas autoras, no período posterior a 1970 há uma complexificação das
imagens veiculas na televisão, tendo em vista o papel que esta adquire na\s sociedades de todo
o mundo. Assim,
De olho no aumento da lucratividade nesses anos, o universo da propaganda começa
a investir pesado no aprimoramento de tendências afirmativas em setores
anteriormente invisibilizados no meio social, motivada pela conquista de novos
nichos de mercado. [...] tal fenômeno constituiu-se como um dos fatores de maior
relevância para a redefinição das imagens femininas, masculinas, infantis e jovens –
além de outras variáveis identitárias, como de etnia, de gênero, e de classe
(ODININO; RIAL; GIRARDELLO, 2010, p.145).
Ao pensarmos nas redefinições de imagens femininas, percebemos que nos
desenhos animados também ocorrem estas mudanças. A autora Liliane Maria Macedo
Machado em sua tese E a mídia criou a mulher: como a TV e o cinema constroem o sistema
de sexo-gênero, fala sobre a “relevância das mídias no processo de subjetivação dos
indivíduos”. A autora aponta ainda a importância de estudar as novas representações
7 femininas na mídia, que rompem com papéis tradicionais destinados as mulheres, como ter
protagonistas nas tramas, bem como as formas como a mídia aborda tudo relacionado as
mulheres, o corpo, o comportamento, os gostos, as habilidades (ou a falta delas), enfim, as
características que vão constituindo os gêneros. (MACHADO, 2006, p.39)
Nas Três Espiãs Demais são temas recorrentes nos episódios, a preocupação com
a aparência, a paquera, a espionagem e o consumismo compulsivo. Estes aparecem ao mesmo
tempo no mesmo episódio, já que o desenho se desenrola nos espaços considerados normais
da vida de uma adolescente, como a escola, a casa e o shopping, e nos espaços da
espionagem, que é a sede da agência secreta que prestam serviços e as várias partes do mundo
que vão para cumprir as missões.
A partir da observação dos temas recorrentes nos episódios é possível
percebermos as rupturas e as permanências no que refere-se as mulheres e ao comportamento
feminino. A preocupação com a aparência e o consumismo, com o intuito final de conquistar
garotos, corroboram com discursos anteriores que querem sujeitar as mulheres a uma figura
masculina, de modo a depender dele, discurso característico de uma sociedade patriarcal e
machista. Por outro lado, a espionagem presente no objeto estudado, nos revela uma mulher
independente e ativa, que rompe com destinos historicamente determinados pra elas por esta
mesma sociedade baseado no sistema sexo/gênero.
Ao pensarmos nas características físicas das protagonistas do desenho, notamos
que o culto ao corpo na sociedade atual está presente até mesmo nas animações infantis. Isso
faz com que as crianças cresçam e se formem idealizando o corpo eleito pelos discursos
midiáticos como ideal.
Georges Duby nos aponta que as ideologias “aparecem como sistemas completos
e naturalmente globalizantes, pretendendo oferecer da sociedade, de seu passado, de seu
presente, de seu futuro, uma representação de conjunto integrada à totalidade de uma visão de
mundo” (DUBY, 1995, p.132). Percebemos esse caráter globalizante no desenho, uma vez
que fornecem aos telespectadores uma visão global/geral do que é ser bonita e estar na moda,
consolidando este padrão normativo. Além disso, apesar do desenho ser uma produção
francesa, sua temática cabe muito bem ao Brasil uma vez que o imaginário sobre o corpo
bonito feminino está formulando de maneira global, enquadrado neste padrão magro de
beleza.
8 No período em que era exibido no Brasil (2007-2010), o desenho era
diário,veiculado na TV aberta e cada dia tinha um novo enredo. Os episódios tem um locutor
em off, que vai narrando os acontecimentos, locais e horários onde se encontram as meninas,
já que no desenho as espiãs viajam por todo o mundo para desvendarem os mistérios que
envolvem as missões. Estas são dadas as meninas pelo seu chefe Jerry, que a cada missão lhes
fornece acessórios para ajudá-las a combater o crime.
Os apetrechos fornecidos são objetos típicos do uso feminino, como batons,
cintos, brincos, bolsas, pó-compacto, secadores, etc., mas que contem dispositivos
camuflados, que as auxiliam a resolver os crimes. Com a escolha de acessórios do uso
feminino, as armas utilizadas ganham disfarce perfeito, já que os itens descritos são
característicos das mulheres vaidosas e preocupadas com a aparência, como as espiãs e como
aquelas preocupadas com a beleza. A utilização destes objetos nos sugere que mesmo nos
momentos de ação e de trabalho as mulheres não devem descuidar da aparência, estando
sempre atentas em estarem bonitas e atraentes. Isto nos faz inferir que as representações
enquadram as espiãs no ideal de feminilidade a atuam de maneira a interiorizar nas meninas
um modelo idealizado, o qual elas devem buscar atingir ou ao menos se aprximar.
A partir dos objetos típicos do vestuário e do uso feminino presentes nas
animações infantis, Odinino, Rial e Girardello aponta um discurso com a tendência à
adultização da menina, que a enxerga esse público com um potencial consumidor. Ao lado da
imagem da menininha indefesa e maternal,
[...] há um movimento de adultização das meninas, através da agregação de
determinados referenciais do consumo adulto feminino. Entre eles
encontramos elementos como maquiagens, salto alto e minissaias, isto é,
símbolos que historicamente têm não apenas marcada, mas também exaltada
a estética feminina adulta pela via do elemento da sedução (ODININO; RIAL;
GIRARDELLO, 2010, p.147).
Contudo, podemos perceber as várias faces femininas representadas no desenho,
como a mulher dinâmica e ativa que trabalha, mas que ao mesmo tempo está sempre atenta a
sua aparência física e que compra para ficar na moda e bonita e que a ajuda a conquistar
garotos. Constatamos as rupturas e as permanências referentes as mulheres, já que temos
mulheres independentes e ativas, mas em contrapartida assujeitadas as normas e padrões
estabelecidos pela sociedade.
9 Deste modo, percebemos como os desenhos são veículos que disseminam ideias e
padrões, especialmente aqueles ligados ao físico, elegendo como modelo um corpo jovem e
bonito, como nos fala Nízia Vilhaça que diz que “a sociedade de produção segue-se a do
consumo, na qual a percepção do corpo é denominada pela existência de uma vasta gama de
imagens que propõem padrões de representação corporal” (VILHAÇA, 2009, p.20).
Concordando com esta ideia, a autora Denise Sant’Anna ao tratar de uma nova
ordem proposta por Foucault e Deleuze, aponta que:
[...] aprofunda-se uma tendência existente na ordem político-jurídica que é a de
transformar todas as partes do corpo em imagens de marca e num marketing
privilegiado do eu. Por conseguinte, o desejo de investir nas imagens corporais
torna-se proporcional à vontade de criar para si um corpo inteiramente pronto para
ser filmado, fotografado, em suma, visto e admirado. Como Deleuze já havia escrito,
o marketing é o instrumento de controle social da época atual (SANT’ANNA, 2002,
p.106).
A autora Cláudia J. Maia nos fala, segundo a perspectiva de Foucault, que o
sujeito se transforma, sendo constituído diariamente, deste modo,
O sujeito não é um dado universal, aglutinador, imóvel, a-histórico, coerente, mas
que possui identidades múltiplas, que se transformam, não são fixas ou permanentes
e, por isso, são construídas e estão sempre se constituindo, num jogo de forças que
envolvem a sua produção. (MAIA, 2011, p.37)
Desta maneira, o desenho participa destas construções da subjetividade e das
identidades dos sujeitos históricos, na sociedade atual, já que através dele é possível haver
uma identificação com as representações acerca do corpo, passando a construir e constituir o
gênero e valores, não antes determinados.
Constatamos que a sociedade muda e se transforma de tempos em tempos e junto
com elas os valores, os símbolos, os padrões, as representações do feminino e tudo que
constituiu sua imagem. Os estudos caminham juntos com estas mudanças, tornando-se
necessário questioná-las e problematizá-las em seus respectivos tempos históricos, uma vez
que os sujeitos se adaptam as transformações, passando a agregar e a descartar princípios
sociais na nova sociedade que vai se moldando, tendo em vista, também, que os sujeitos são
complexos e dinâmicos, sendo até contraditórios e que está o tempo todo se transformando.
10 Percebemos que a relação entre História, Educação e mídia, mais especificamente
o desenho animado, abre espaço para novas abordagens científicas acerca da sociedade
contemporânea, tornando possível percebermos novos mecanismos de ensino, que auxiliam os
indivíduos nas formulações de identidades de gênero. O desenho animado além de nos
envolver num mundo de fantasia, com suas características cômicas e intrigantes, despertando
sentidos e sentimentos, também torna-se lugar de práticas de ensino, que de modo sutil atua
educando crianças nos modos de se comportar e de ser. Esta forma de ensino um tanto
inusitada e diferente da tradicional formula e traduz para as crianças, talvez melhor que certos
instrumentos pedagógicos tradicionais, valores, símbolos, aspectos sociais e culturais, normas,
enfim, aspectos cotidianos que precisam saber lidar.
A partir dos discursos presentes no desenho animado podemos inferir que a
imagem da “verdadeira mulher” vai sendo construída baseada em aspectos contemporâneos.
Assim, além de características historicamente sedimentadas como femininas, outras como
vaidade, consumo e futilidade se somam a elas para constituírem um ideal feminino e de
feminilidade. As representações do corpo e de gênero contidas na produção vão constituindo e
construindo determinações referentes aos mesmos e estabelecendo modelos a seguir, ou seja,
educam as crianças a seguir aquilo que está sendo proposto e que atua em prol de um sistema
econômico vigente.
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