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Guavira 7 “QUANDO AS LEMBRANÇAS VÊM...” – CATÁSTROFE E MEMÓRIAS AUTOBIOGRÁFICAS Rosani Ketzer Umbach (UFSM) RESUMO: Partindo de estudos elaborados por Walter Benjamin sobre o conceito de história, este artigo tece refelexões acerca da obra autobiográfica de Saul Friedländer, Wenn die Erinnerung kommt (Quando as lembranças vêm), publicada originalmente em 1978. Filho de judeus mortos em um campo de concentração nazista, o autor sobreviveu à catástrofe em um internato católico francês e tornou-se historiador. Suas memórias autobiográficas pretendem ser um legado para a posteridade, para que gerações futuras conheçam seu passado. PALAVRAS-CHAVE: Memórias autobiográficas – Testemunho – História ZUSAMMENFASSUNG:Ausgehend von Walter Benjamins Studien zur Konzeption von Geschichte befasst sich dieser Artikel mit dem autobiografischen Werk Saul Friedländers, Wenn die Erinnerung kommt, ursprünglich 1978 in Paris veröffentlicht. Als Sohn jüdischer Eltern, die in einem Konzentrationslager ermordet wurden, überlebte der Autor die Katastrophe in einem katholischen Internat in Frankreich und wurde später Historiker. Seine autobiografischen Memoiren verstehen sich als Vermächtnis für die Nachwelt, damit zukünftige Generationen ihre eigene Geschichte kennen lernen. SCHLÜSSELWÖRTER: Autobiografische Memoiren – Zeugnis – Geschichte Um quadro de Paul Klee de 1920 intitulado Angelus Novus, reproduzido abaixo, constitui uma referência para Walter Benjamin tecer reflexões sobre o conceito de história em seu conhecido texto de 1940. Nele, o quadro de Klee é descrito da seguinte forma: Paul Klee: Angelus Novus, 1920 - Museu Israel, Jerusalém Representa um anjo que parece querer afastar-se de algo que ele encara fixamente. Seus olhos estão escancarados, sua boca dilatada, suas asas abertas. O anjo da história deve ter esse aspecto. Seu rosto está dirigido para o passado. Onde nós vemos uma cadeia de acontecimentos, ele vê uma catástrofe única, que acumula incansavelmente ruína sobre ruína e as dispersa a nossos pés. Ele gostaria de deter-se para acordar os mortos e juntar os 7|Página Guavira 7 fragmentos. Mas uma tempestade sopra do paraíso e prende-se em suas asas com tanta força que ele não pode mais fechá-las. Essa tempestade o impele irresistivelmente para o futuro, ao qual ele vira as costas, enquanto o amontoado de ruínas cresce até o céu. Essa tempestade é o que chamamos de progresso. (Benjamin, 1994, p. 226) Percebe-se nesse trecho que Benjamin associa a imagem do anjo de Klee com a perplexidade que a história suscita. O passado é visto como “uma catástrofe única”, da qual emergem “os mortos”, “os fragmentos”; a história se constitui, assim, em um “amontoado de ruínas”. Está claro que essa visão benjaminiana da história corresponde àquela dos oprimidos, com os quais o materialista histórico teria empatia, não à dos dominadores, que receberiam a empatia do investigador historicista: “Todos os que até hoje venceram participam do cortejo triunfal, em que os dominadores de hoje espezinham os corpos dos que estão prostrados no chão. Os despojos são carregados no cortejo, como de praxe.” (Id., p. 225) Sendo um crítico contumaz da cultura dos vencedores, Benjamin equipara esses “despojos” aos “bens culturais”, sobre cuja origem o materialista histórico não poderia refletir sem horror, e conclui: “Nunca houve um monumento da cultura que não fosse também um monumento da barbárie.” (Id., ibid.) Conseqüentemente o processo de transmissão da cultura também não seria isento de barbárie, o que leva o materialista histórico a contemplá-lo com distanciamento. E, ao invés de participar da transmissão da cultura dos vencedores, assume como sua tarefa a de “escovar a história a contrapelo” (Id., ibid.). Essa tarefa de “escovar a história a contrapelo” consiste, pois, de acordo com o texto de Benjamin, em não perder de vista a perspectiva daqueles que sofreram e ficaram “prostrados no chão”, em resgatar a visão dos perdedores. Escrito no início da II Guerra e paradoxalmente cada vez mais atual, o ensaio apresenta a história como trauma1, como uma sucessão de catástrofes que produz sempre mais vítimas. Uma das maiores catástrofes do século XX certamente foi a perseguição e o assassinato de milhões de judeus durante o domínio do nazismo na Europa. Diante das arbitrariedades dos oficiais nazistas e das deportações de famílias inteiras para os campos de concentração, muitos judeus procuraram exilar-se, emigrando para outros países na tentativa de sobreviver. Existem numerosos relatos sobre os acontecimentos traumáticos enfrentados por essas famílias, muitas delas completamente destruídas, outras com sobreviventes, como no caso do historiador Saul Friedländer, o qual escreveu um livro de memórias com o título Wenn die Erinnerung kommt, que poderia ser traduzido por “Quando as lembranças vêm”. 1 Cf. Seligmann-Silva (2000): “A história como trauma”; Ginzburg (2000): “Autoritarismo e literatura: a história como trauma”. 8|Página Guavira 7 Transmitir uma experiência de vida, sem dúvida traumática, e afirmar uma existência: esses possivelmente são os motivos que levaram Friedländer a publicar suas memórias em 1978. Nascido em 1932 em Praga como filho de judeus de língua alemã, o autor relata como a família fugiu da cidade depois da ocupação nazista e foi para a França. Quando também aí a vida dos judeus ficou ameaçada, o menino foi levado a um internato católico sob o nome de Paul-Henri Ferland, o que lhe garantiu a sobrevivência. Seus pais, porém, não tiveram a mesma sorte. Ao tentarem fugir para a Suíça, foram presos pela polícia do país e entregues aos alemães, os quais os deportaram para a Alemanha em 1942 e os assassinaram no campo de extermínio de Auschwitz. O trauma de um menino de dez anos de idade, separado dos pais que não voltará mais a ver, certamente marcou a vida de Friedländer. Mas não é para superar os eventos traumáticos de seu passado que o historiador escreve primordialmente. O que rege a sua escrita é muito mais o sentimento de perda das lembranças e a tentativa de garantir às gerações futuras os poucos vestígios que ainda restam: Quando as pessoas nos deixam uma após a outra, sua imagem se fixa espontaneamente em nós e continua vivendo nas lembranças daqueles que restam, nas lembranças e conversas cotidianas, nos álbuns de fotografia que a gente tira de vez em quando da estante, mostra e esclarece às crianças, as quais nada conheceram daquela época. De tempos em tempos se enfeita um túmulo e aí, sobre a pedra, estão gravados os nomes, símbolos fundamentais através dos quais as ligações são mantidas, gerações são substituídas pelas próximas e permanecem ligadas entre si. Para mim, porém, ocorreu uma ruptura brusca que não se deixa encaixar no cotidiano. Com quais palavras, afinal, se poderia dizer essas coisas em uma conversação amigável e banal? Existem cartas, bem como duas ou três fotografias amareladas. Logo esses últimos vestígios nada mais significarão para os outros. Portanto eu preciso escrever isso. Escrever significa copiar os contornos do passado com linhas que são menos passageiras do que todo o restante, escrever significa fixar a existência de uma pessoa, significa poder contar sobre uma criança que viu um mundo desaparecer e um outro surgir. (Friedländer, 1998, p. 141)2 O trecho acima evidencia que é o dever da memória que impulsiona a escrita autobiográfica de Friedländer. Ante a ameaça do esquecimento, só lhe resta escrever para tentar “fixar a existência de uma pessoa”. Rememorar o passado, tentar relatar sua experiência torna-se um imperativo, já que os últimos vestígios que ainda restam estão perdendo seu significado para as gerações posteriores. Em seu ensaio intitulado “Memórias e testemunhos: a Shoah e o dever da memória”, Lyslei Nascimento segue essa linha de raciocínio ao salientar: “A ameaça do esquecimento surge, sobretudo, se se fizer da memória um peso morto, uma visita melancólica e ritualizada a um 2 Tradução minha a partir da edição citada. As demais citações deste livro também são de minha responsabilidade. 9|Página Guavira 7 museu onde se guardam os restos de uma cultura ou de um tempo desaparecido” (2007, p. 95). A narrativa baseada na experiência própria constitui, então, uma tentativa de reavivar os eventos passados, dinamizando o processo de memória. A narrativa testemunhal de Friedländer se propõe, então, a resgatar o significado das “duas ou três fotografias amareladas” e das poucas cartas que restam, a fim de que não se tornem peças esquecidas de um museu. Superar de alguma forma o que denomina “ruptura brusca” – o rompimento que ocorreu em sua vida pelo assassinato de seus pais na infância –, escrever sobre essa experiência e deixá-la gravada para a posteridade, para as crianças que “nada conheceram daquela época” significa, para o autor, estabelecer um elo de ligação entre o passado e o futuro. Talvez apenas o fato de sua biografia ser factível de comprovação torna as memórias de Friedländer afirmações verdadeiras, já que, do ponto de vista da teoria da narrativa, a verdade apresentada por um narrador não corresponde necessariamente ao real.3 Mesmo sendo memória e verdade apenas uma construção sob esse aspecto, aqui se está diante de um testemunho, diante de lembranças individuais que se encontram inseridas num contexto maior relacionado com a identidade coletiva de um povo e com a história. E, ao contrário desta, que informa sobre acontecimentos, suas causas e conseqüências, as lembranças trazem uma perspectiva pessoal, familiar; e, no caso de Friedländer, trazem também a experiência do sofrimento. Tem-se aqui, portanto, uma narrativa de cunho testemunhal, um tipo de escrita que, diferentemente da narrativa ficcional, deve ser aceita “com seu sentido profundamente aporético de exemplaridade possível e impossível, de singularidade que nega o universal da linguagem” (Seligmann-Silva, 2006, p. 33). O paradoxo, que é inerente ao testemunho, de ter de narrar o inenarrável – valendo-se de uma língua que funciona a partir de universais e apaga o singular4 – representa um desafio para quem escreve sob essas circunstâncias. Escrever sobre a experiência do sofrimento vivenciado numa infância distante e saber que é impossível expressar tudo em palavras – essa situação paradoxal vem à tona na segunda parte do livro de Friedländer: Quando folheio nestas páginas, às vezes me sinto profundamente desanimado. Nunca conseguirei expressar o que na verdade gostaria de dizer; eu sei que estas linhas estão muito distantes de minhas lembranças, e estas por sua vez são apenas fragmentos isolados da vida 3 No semanário alemão Die Zeit, o crítico literário Hubert Winkels afirma que a memória “é nada menos que um ato óbvio de reconstrução espontânea ou apoiada em documentos”, sendo que “a rememoração é um processo multiplamente dirigido por normas, interesses e preconceitos no qual o simples Who’s who, aliás exatamente isso, é questionável”. A afirmação do crítico não se refere à obra autobiográfica de Friedländer e sim ao romance do escritor austríaco Norbert Gstrein, Die englischen Jahre, de 1999, no qual o autor simula uma autobiografia, evidenciando o princípio da ilusão. Disponível em: http://images.zeit.de/text/1999/42/199942.l-gstrein_.xml Acesso em 21 mar. 2008. 4 Cf. Seligmann-Silva, 2006, p. 211. 10 | P á g i n a Guavira 7 de meus pais, apenas partes daquilo que foi o seu mundo, foi a minha infância. Eu admito que hoje estes pensamentos me oprimem mais do que nunca. Devo continuar escrevendo? (Friedländer, 1998, p. 140) O trecho citado revela o ceticismo do narrador em relação à escrita como meio de transmitir uma experiência real. Afora a distância temporal que separa o que foi vivenciado na infância de sua rememoração posterior como adulto, transparece aqui a insuficiência da linguagem para expressar as experiências, a interioridade de uma pessoa e, a partir daí, também a sua visão do mundo. Além do problema da linguagem, outro aspecto que dificulta a escrita é mencionado pelo narrador na primeira parte do livro: “Há lembranças que não se consegue compartilhar com ninguém, tão grande é a diferença entre aquilo que elas significam para nós mesmos e aquilo que outros poderiam ver nelas.” (Friedländer, 1998, p. 90) Trata-se aqui dos momentos de tensão em que o menino, após ter fugido do internato, lança pedidos desesperados aos pais para não retornar à instituição, ao mesmo tempo em que os adultos lhe fazem promessas de que a separação será breve. Alia-se a isso, ainda, uma dificuldade na escrita apontada pelo narrador na terceira parte do livro: o fato de ele não se ver tanto como vítima e sim muito mais como observador. “Eu tinha vivido à margem da catástrofe; uma distância talvez insuperável me separa daqueles que foram diretamente arrastados pela correnteza dos acontecimentos” (Friedländer, 1998, p. 161). Ter sido poupado da catástrofe que arrastou seus pais e ser obrigado a viver entre vários “mundos” tão diferentes – o internato católico, a família de seu tutor, o grupo sionista – origina nele a sensação de não se identificar com nenhum desses “mundos” nos quais viveu até então, dificultando a escrita do livro. Esse campo de tensão provocado pela destruição da identidade está presente também em outros livros memorialísticos relacionados à perseguição nazista, os quais trazem marcas dos horrores que se sucederam na Europa de 1933 a 1945, época caracterizada pela ditadura de Hitler na Alemanha. Como várias obras testemunhais de sobreviventes do terror evidenciam, o sentimento de identidade das pessoas que viveram o trauma da perseguição e da catástrofe ficou profundamente abalado. Publicada originalmente em 1978 em Paris pelas Editions de Seuil sob o título Quand vient le souvenir ..., a obra divide-se em três partes, que por sua vez encontram-se seccionadas em capítulos e datas, mas estas últimas não são contínuas, diferindo, portanto, da forma do diário. Correspondendo ao processo de escritura das memórias, as inserções de datas iniciam em 5 de junho de 1977 e terminam em 27 de dezembro do mesmo ano. Intercalados entre as memórias, 11 | P á g i n a Guavira 7 apresentam-se comentários sobre acontecimentos atuais em Israel, onde o narrador está vivendo, além de digressões relacionadas a conversas e situações que ele vivenciou em anos mais recentes. A primeira parte, subdividida em quatro capítulos e com datamentos entre 5 de junho e 2 de agosto, abrange os acontecimentos da infância do narrador, quando seus pais ainda viviam, e encerra quando estes são presos na fronteira com a Suíça e deportados ao campo de concentração. Um pouco antes do final dessa parte, o autor descreve a imagem que ficou em sua memória do último encontro que teve com seus pais, que o haviam deixado em um internato católico: Meus pais haviam me colocado em segurança, porém eu fugi, eu corri até eles, pois não aguentei a separação. Era possível arrancar-me deles uma segunda vez? Agarrei-me aos bastões da grade da cama. Como meus pais conseguiram soltar minhas mãos sem que lhes brotassem lágrimas na minha frente? A catástrofe e o tempo lavaram tudo. O que meu pai e minha mãe sentiram naquele momento, desapareceu com eles; o que eu senti, caiu no esquecimento, e dessa dor monstruosa ficou apenas uma imagem na minha lembrança: na luz suave do outono, entre duas freiras vestidas de preto, uma criança desce a Rue de la Garde, a qual ela percorria apressadamente em direção contrária um pouco antes. (Friedländer, 1998, p. 92) Devido à dor imensa, a imagem se cristalizou na memória. Ao rememorá-la, o narrador se dá conta de que ela ficou desprovida dos sentimentos da infância, os quais foram levados pelo esquecimento. Na lembrança, ficou apenas uma imagem fixa, estabilizada como símbolo. É justamente a estabilização da memória o foco de estudos de Aleida Assmann. Em seu ensaio intitulado “Stabilisatoren der Erinnerung – Affekt, Symbol, Trauma” (Estabilizadores da memória – paixão, símbolo, trauma), Assmann mostra como esses “estabilizadores” psíquicos internos funcionam, salientando que a lembrança adquire a força de um símbolo ao ser inserida em um trabalho retrospectivo de interpretação da própria biografia e no contexto de uma determinada configuração de sentido.5 É nesse processo de rememoração retrospectiva que Friedländer está envolvido. E, sendo uma forma de narração, o símbolo dá suporte ao trabalho de apresentação de eventos passados, cronologicamente distanciados. A segunda parte da narrativa memorialística de Friedländer – com três capítulos e datamentos a partir de 11 de setembro até 4 de outubro de 1977 – inicia quando ele completa dez anos de idade e engloba seus anos de infância e pré-adolescência no internato católico, onde fica à espera de alguma notícia dos pais durante três anos, sem saber que eles já estão mortos. A distribuição semanal das cartas no internato, durante a qual ele nunca era contemplado, permaneceu como uma lembrança simbólica para o narrador: 5 Cf. Assmann, 1998, p. 146. 12 | P á g i n a Guavira 7 Eu esperava, de uma semana para a outra, ao longo de três anos. E, estranhamente, enquanto a imagem de meus pais aos poucos se esvaía cada vez mais, sua carta, aquela carta que nunca chegava, tornava-se sempre mais importante, cresciam as saudades e a esperança vã que a ela estavam associadas.” (Friedländer, 1998, p. 125) A impressão do narrador é a de que a carta havia se transformado em uma necessidade mais imediata para o menino do que a volta de seus pais, pois se tornara um símbolo de acolhida e amor que, à medida que o tempo passava, tomava o lugar da própria pessoa, cuja ausência dolorosa era assim compensada de alguma maneira. Outra forma de compensação do menino era o catolicismo, ao qual passou a se dedicar com toda sua alma no internato.6 Revendo o passado, o narrador está ciente de que se tornara um renegado em relação ao judaísmo, pois sabia de sua procedência. Ao mesmo tempo justifica sua atitude daquela época, já que “essa fé absoluta que nos injetavam era exatamente o que eu precisava” (Friedländer, 1998, p. 127). Sentindo-se abandonado e só no mundo, era natural, na visão do narrador, que esse cristianismo ao pé da letra o entusiasmasse no período da infância. Uma conversa esclarecedora com um de seus professores, um padre jesuíta, que lhe conta sobre Auschwitz e o assassinato de milhões de judeus nas câmaras de gás, o transforma interiormente, de forma que o menino consegue reestabelecer a ligação com seu passado7, preferindo, a partir daí, adotar de novo seu nome de nascimento. A terceira e última parte do livro abarca as memórias de Friedländer referentes à sua trajetória após deixar o internato e passar a residir com a família de seu tutor, um pequeno comerciante judeu. Iniciando na data de 24 de outubro de 1977 e encerrando com a datação de 27 de dezembro do mesmo ano, essa parte também contém três capítulos. O primeiro inicia com questões que Friedländer, agora professor de história numa universidade israelense, formula para si mesmo e seus alunos: “Qual é o significado que os mitos têm na nossa sociedade?”, “Quais valores são transmitidos aqui?”, “E quais valores eu posso transmitir?” (Friedländer, 1998, p. 149). Após narrar o encontro que teve com o comandante nazista Dönitz em 1962, o qual lhe assegura que nada sabia sobre o extermínio de judeus, o narrador comenta a impressão que lhe causou o filme de Joachim Fest intitulado “Hitler, eine Karriere”, que vira alguns meses antes: “Ascenção rápida como um raio, força titânica, queda luciférica: está tudo lá. Sobre o extermínio de judeus, apenas algumas palavras à margem. Uma sombra desimportante sobre esse quadro 6 7 Cf. Friedländer, 1998, p. 126. Cf. Friedländer, 1998, p. 145. 13 | P á g i n a Guavira 7 grandioso.” (Friedländer, 1998, p. 152) O narrador chega à conclusão de que é dessa maneira que, com o passar dos anos, os testemunhos são deformados e as lembranças se desintegram.8 Reflexões nessa direção também são empreendidas por Jaime Ginzburg em seu ensaio intitulado “Literatura e direitos humanos: notas sobre um campo de debates”, no qual o autor elabora uma articulação entre escolhas discursivas e ética. Para o ensaísta, “o problema das relações entre literatura e direitos humanos tem ligação com omissões, lacunas e silenciamentos em discursos institucionais, jurídicos e científicos”. Ainda segundo Ginzburg: “Segmentos sociais excluídos por forças repressoras, muitas vezes, tiveram suas vivências relatadas por discursos oficiais de modos distorcidos, restritivos ou manipulados.” (2008, p. 200) Isso é evidenciado nas memórias de Friedländer, quando este se refere ao filme de Joachim Fest. Como historiador que se debruçou sobre os anos do nazismo9, Friedländer está ciente das formas de silenciamento e de apagamento da memória que atuam na sociedade. Uma delas é a tentativa dos perpetradores nazistas de reprimir o passado, de não reconhecer a catástrofe que impuseram ao povo judeu. Na década de 1970, psicanalistas como Alexander e Margarete Mitscherlich tentaram analisar os “fundamentos do comportamento coletivo” da nação alemã que permitiram a “barbárie interhumana” (1973, p. 124), ou seja, a destruição em massa dos judeus. A tese defendida pelos autores é a de que se deve buscar a verdade acerca do passado, o que representaria o primeiro passo para abandonar a compulsão da repetição, ou seja, enquanto se reprimir a memória e o conhecimento a respeito do passado, há condições para a volta da barbárie. Entre as memórias de Friedländer na terceira parte do livro estão os seus anos de ginásio em Paris e sua lenta identificação com os temas judaicos. Seu tutor é a primeira pessoa a lhe falar sobre a terra de Israel, uma reivindicação urgente dos judeus exilados, depois da II Guerra. Aos 15 anos de idade, no outono de 1947, o narrador decide participar da luta pela criação do estado de Israel, baseando-se no argumento apresentado por Sigi, um dos líderes do grupo sionista francês do qual participava: o da passividade das vítimas, que deveria ser superada para que nunca mais os judeus fossem levados como ovelhas ao matadouro. E para isso precisavam de um estado, no qual poderiam ser donos de seu próprio destino.10 No final de novembro de 1947, com a decisão do Conselho Geral das Nações Unidas de dividir a Palestina em um estado judeu e um estado árabe e com as lutas que se seguiram à fundação do estado de Israel, ocorrida em 14 de maio de 1948, o narrador decide embarcar no 8 Cf. Friedländer, 1998, p. 153. Sobre esse tema, Friedländer publicou vários livros, entre os quais O Terceiro Reich e os Judeus. Os anos da perseguição 19331939 e Os anos do extermínio. O Terceiro Reich e os Judeus 1939-1945. 10 Cf. Friedländer, 1998, p. 167. 9 14 | P á g i n a Guavira 7 navio Altalena em direção ao país. Tratava-se de um transporte de reforços para a guerra entre árabes e israelenses.11 Assim, o último capítulo do livro é dedicado às memórias sobre a viagem do Altalena a Israel, que levava 940 passageiros a bordo, dos quais Friedländer era o mais novo12, encerrando com a chegada do navio. Antes, porém, são narrados os episódios em torno do ataque ao Altalena, quando este seguia em direção a Tel Aviv. Um canhão incendiou o navio, destruindo-o, e mesmo quando os passageiros saltaram ao mar e nadaram para a praia, não houve cessar-fogo, resultando na morte de vinte pessoas.13 Pouco antes do final do livro, o narrador expressa mais uma vez suas dúvidas em relação à escrita, porém, citando as palavras de Gustav Meyrink, constata que, quando as lembranças vêm, também vem o conhecimento: Será que consegui dizer pelo menos uma pequena parte daquilo que eu realmente queria expressar? Na verdade essa busca, essa confrontação constante com o passado ao longo dos meses, se tornou, ela mesma, um motivo suficiente e uma tarefa necessária. E as palavras de Gustav Meyrink surgem novamente: “Aos poucos, quando o conhecimento vem, vêm as lembranças...” Porém, agora em seqüência invertida: “Aos poucos, quando as lembranças vêm, também vem o conhecimento... Conhecimento e lembranças são a mesma coisa...” (Friedländer, 1998, p. 187-188). Deriva daí o dever de memória, de relatar o que se testemunhou, contribuindo, dessa forma, para a busca da verdade e do conhecimento. Reavivar a própria memória significa, para o narrador, cumprir uma tarefa necessária para que as gerações futuras tenham o conhecimento a respeito de seu próprio passado, que, no caso dos judeus, foi de perseguição, extermínio e dor. A transmissão de experiências de autoritarismo e repressão através de memórias autobiográficas realiza-se num campo de tensão entre lembranças individuais, identidade coletiva e história. Isso fica evidente também na obra memorialística de Friedländer, que, ao literalizar sua realidade, sua experiência nos diferentes “mundos” pelos quais passou, deixa um legado de conhecimentos para as pessoas que vieram depois dessa “catástrofe histórica”.14 11 Cf. Friedländer, 1998, p. 178 e 181. Cf. Friedländer, 1998, p. 186. 13 Cf. Friedländer, 1998, p. 187. 14 Termo empregado por Márcio Seligmann-Silva (2008, p. 75) para referir-se a situações “como nos genocídios ou nas perseguições violentas em massa de determinadas parcelas da população”, situações nas quais “a memória do trauma é sempre uma busca de compromisso entre o trabalho de memória individual e outro construído pela sociedade”. 12 15 | P á g i n a Guavira 7 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ASSMANN, Aleida. “Stabilisatoren der Erinnerung – Affekt, Symbol, Trauma”. In: Rüsen, Jörn e Straub, Jürgen (Orgs.). Die dunkle Spur der Vergangenheit: psychoanalytische Zugänge zum Geschichtsbewußtsein. Frankfurt a. M.: Suhrkamp, 1998. p. 131-152. (Erinnerung, Geschichte, Identität; 2). BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1994. FRIEDLÄNDER, Saul. Wenn die Erinnerung kommt. München: C. H. Beck, 1998. FRIEDLÄNDER, Saul. Das Dritte Reich und die Juden. Die Jahre der Verfolgung 1933-1939. München: C. H. Beck, 1998. FRIEDLÄNDER, Saul. 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