Leia na integra - Livros de Safra
Transcrição
Leia na integra - Livros de Safra
Microfone usado na primeira transmissão de rádio em Fortaleza, em 1931, na então recém-criada Ceará Rádio Clube Memória modulada HÁ 90 ANOS, um discurso do então presidente Epitácio Pessoa era transmitido para alguns aparelhos instalados no Rio e em São Paulo. Era o marco oficial do início da radiofonia no Brasil. Desde então, o rádio, que nasceu elitista, foi se transformando no mais popular veículo de comunicação do País. O Vida & Arte revisita essa história e discute as transformações na relação entre o rádio e seu público LEIA NAS PÁGINAS 3 A 7 DEIVYSON TEIXEIRA FORTALEZA - CE, FORTALEZA - CE, DOMINGO, 29 DE JULHO DE 2012 DOMINGO, 29 DE JULHO DE 2012 FORTALEZA - CE, DOMINGO - 29 DE JULHO DE 2012 O RÁDIO NO BRASIL: 90 ANOS 3 MILTON LEITE/AE Apostador ouve o jogo de estréia da Seleção Brasileira contra o México na Copa do Mundo de 62, no Jóquei de São Paulo: o rádio acompanhando mudanças de costumes F Intimidade à flor do dial Diante das mudanças de natureza tecnológica, o rádio, mais que os outros veículos, conseguiu manter uma relação de intimidade com seu ouvinte ao longo dos últimos 90 anos oram importados cerca de 80 receptores de rádio instalados em Niterói, Petrópolis e São Paulo -, especialmente para a ocasião. O transmissor foi instalado no alto do Corcovado pela companhia americana Westinghouse. Era 7 de setembro de 1922, quando o discurso do então presidente Epitácio Pessoa – feito durante a Exposição do Centenário da Independência, na Praia Vermelha, no Rio de Janeiro - marcou a primeira transmissão oficial de rádio no Brasil. Em 1919, um grupo de amadores já tinha conseguido realizar experiências por radiotelegrafia, mas o que entrou para a história foi o discurso oficial. Perto de completar 90 anos no Brasil, o rádio passou inúmeras mudanças, mas se mantém na linha de frente dos veículos de comunicação mais populares do País. Com um grande poder de mimetizar hábitos, tecnologias e costumes que vão mudando cada vez mais vertiginosamente, o rádio no Brasil se aproxima de seu centenário com fôlego de jovem e mil facetas. Continua sendo pano de fundo das rotinas domésticas no velho e bom aparelho de AM e FM: 87,9% das casas têm um rádio segundo a Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão (Abert). O aumento da frota de carros e o trânsito cada vez mais caótico das metrópoles também lhe fizeram bem. Ainda segundo a Abert, 80% da frota está equipada com um aparelho de rádio – enquanto nos últimos cinco anos, o conteúdo sobre trânsito cresceu 11% na AM e 19% na FM. Mas a revolução maior veio com o formato MP3. A portabilidade do rádio hoje não tem mais limites. Os celulares não são só receptores de rádios AM e FM - quase 40% dos aparelhos têm esse recurso -, também guardam os chamados podcasts, programas de rádio baixados por computador para se ouvir onde e quando convier. As infinitas possibilidades não se anulam, convivem. “Depois da febre de baixar música, as pessoas estão voltando para o rádio. No carro e no celular, elas querem se informar também, ouvir um comentário, ver as notícias do dia. Pulam de uma rádio para outra, botam uma música do MP3, voltam para a AM para ver uma notícia sobre o trânsito”, diz Magaly Prado, especialista em rádio e autora de História do rádio no Brasil. (Leia uma entrevista com a autora na página 4). O estudante de jornalismo Wanderley Neves, 22, sintetiza as mudanças desse início de século XXI. Cresceu com o radinho da faxineira sintonizado em programas populares, descobriu o pop rock nas FMs, foi para a internet atrás de mais músicas dos artistas de que gostava, passou a ouvir notícias pela AM depois de entrar na faculdade e hoje domina o universo infinito e super segmentado das webradios e podcasts. Pelo celular, com um fone de ouvido, anda a pé e de ônibus ouvindo música, noticiário e programas jornalísticos que seleciona previamente. “De uns anos pra cá comecei a ouvir mais música clássica e descobri muitas webradios bem específicas. Você pode ouvir só musica daquele tal período, de tal compositor, as mais famosas”, conta. Outro programa que acompanha é o Radio Lab, um podcast americano sobre ciência. “É muito bem produzido, você nem sente que é ciência. O poder da palavra falada, sem imagem, de te proporcionar uma experiência tão rica me deixa maravilhado”, diz com entusiasmo de fã. Depois da adolescência, a mesmice das FMs o afastou das rádios musicais. A única que ele ainda escuta é a Rádio Senado que “toca música brasileira boa”. A aposentada Norma Jucá, 66, reencontrou o hábito de ouvir rádio depois do casamento e quase sempre sintoniza em emissoras AM. Na caminhada do início da manhã, escuta um programa de notícias, engros- Fundação da Ceará Rádio Clube 1931 RADIOFONIA PIONEIRA No Ceará, o rádio chegou nove anos depois da primeira transmissão brasileira. No dia 28 de agosto de 1931, João Dummar fundou a Ceará Rádio Clube, semente da futura PRE-9. sando o percentual de moradores de Fortaleza que costumam ouvir noticiários pelo rádio 35%, de acordo com dados de uma pesquisa do Ibope divulgada em 2011. À tarde, no carro, dá preferência aos programas sobre futebol. Lá para meia noite, num horário de insônia, ouve um programa musical intercalado de comentários sobre política e assuntos que estiveram na pauta do dia. “Gosto de ouvir os comentaristas. Pela voz, já sei quem são”, conta. Apesar das inovações de ordem técnica, a intimidade entre ouvintes, locutores e comentaristas é algo que nunca mudou ao longo desses 90 anos de rádio no Brasil, comemorados no próximo dia 7 de setembro. No dial ou no player de MP3, o rádio faz companhia, tem aura de amigo antigo, reforçada pela oralidade. Não à toa, muito antes de a onda da interatividade passar a imperar nos veículos de comunicação, o rádio já mantinha, sem grande esforço, contato com seu público. Wanderley estagiou na Rádio O POVO/CBN (Am 1010) e lembra do retorno praticamente imediato dos ouvintes. “O programa estava no ar e o telefone tocava loucamente, cheio de gente querendo tirar dúvida, comentar, dar opinião. O rádio ainda é o mais rápido na hora de dar a notícia. Na internet, ainda tem o esforço de escrever. No rádio o repórter liga e fala. Rádio é apaixonante”. Quem ouve (e quem faz rádio) diz mesmo que vicia. Multimídia Na TV O POVO (UHF 48, NET 23, TV Show 11), o programa Grande Debate dessa segunda-feira vai tratar dos 90 anos do rádio no brasil. O programa vai ao ar às 19h.O programa é apresentado pelo jornalista Ruy Lima. FORTALEZA - CE, DOMINGO - 29 DE JULHO DE 2012 4 O RÁDIO NO BRASIL: 90 ANOS O conteúdo faz o veículo A jornalista Magaly Prado é uma apaixonada por rádio. Mais uma no exército de viciados, termo que ela mesma gosta de usar. “Comecei trabalhando no rádio, nos anos 80. Em 90, fui escrever sobre rádio na imprensa. Nos anos 2000, passei a dar aulas sobre rádio e a estudá-lo cientificamente”, explica. Foi a paixão que a motivou a empreender um trabalho hercúleo, o livro História do rádio no Brasil, lançado pela editora Livros de Safra em comemoração ao aniversário de 90 anos do mais íntimo, fiel e mutante veículo de comunicação. Por telefone, Magaly – que já trabalha no segundo volume do livro -, conversou com o Vida & Arte Cultura sobre a dinamização incrível permitida pelos audiocasts - nome que ela prefere usar no lugar de podcast – e sobre as novas configurações permitidas com o avanço tecnológico. Hoje, ela defende, rádio não tem a ver com o aparelho de transmissão e sim com forma e conteúdo. Magaly Prado, autora de História do rádio no Brasil , defende o poder de transformação do veículo, que deixou de ser um aparelho de transmissão para virar um tipo de conteúdo Saiba mais A nuvem: É o nome IANA SOARES Streaming: É um tipo de mídia que permite acessar um arquivo de áudio na nuvem. Teoria da cauda longa: A maior mudança provocada pela internet foi a hiper segmentação da audiência. Com tanta gente produzindo conteúdo, a especificidade dos blogs, sites e audiocasts distribuiu a audiência. Não há mais concentração de público. O desenho de uma cauda longa, sem picos, representa esse novo perfil. (Mariana Toniatti) O POVO - Por que o rádio é tão querido pelos brasileiros? Magaly Prado - Você liga o rádio e ele fica ali, fazendo companhia. Muitos comunicadores aproveitam esse mote para ter uma fala que é próxima a uma conversa. Mesmo nas rádios jornalísticas, cada vez mais vemos esse tom. Entre uma informação e outra, tem opinião. Faz parte do jogo do rádio se envolver com o que se está dizendo. Não foi sempre assim. Principalmente no jornalismo, a tendência era que o comunicador fosse meio sem personalidade, mas aos poucos a linguagem foi mudando para aproveitar essa sensação de companhia que o rádio proporciona. OP – O rádio sempre foi mais interativo? Magaly – É da natureza dele. O jornal (impresso) tem um espaço de cartas do leitor. No rádio, o ouvinte entra ao vivo por telefone em vários horários. Hoje, todos os veículos têm a chance de abrir para interação por e-mail, aí o rádio avançou junto. Várias emissoras têm chats abertos, o ouvinte discute, não só sugere ou reclama, mas é co-produtor. OP – No Brasil, o rádio começa elitista. Poucas pessoas tinham o equipamento e era preciso pagar para ouvir a programação. A virada vem com a permissão de publicidade? Que programação tornou o rádio tão popular a partir dos anos 40, 50? Magaly - O fato de a publicidade ter entrado nos anos 30 aumentou a possibilidade das emissoras terem mais ouvintes. Abriu o rádio para todo mundo, não precisava mais ser pago. Saiu da esfera da sociedade, das rádios-clubes. Com a publicidade, ele vira um veículo gratuito, mas não bastaria se não houvesse uma programação interessante. A ficção, que existia apenas nos livros, ganha força no rádio, isso num período em que não existia televisão. Nasce a rádionovela. Quem não lia porque era analfabeto, não tinha tempo, ficava o dia inteiro na roça, começa a acompanhar as histórias ouvindo. OP – E a música? Nessa época, a relação da indústria fonográfica com a rádio era muito próxima, não? Magaly –A música entra muito que se dá ao sistema de armazenamento online de arquivos feito a partir de servidores compartilhados por meio da internet. O serviço permite que o usuário acesse dados de qualquer lugar do mundo, a qualquer hora, sem precisar instalar um programa nem ocupar espaço no seu computador baixando aquele arquivo. Estúdios da rádio O POVO/CBN: interatividade e informalidade como características do veículo FLAVIO PAES/DIVULGAÇÃO que você acrescente novas músicas e o programa embaralhe a ordem delas, não tem nenhuma novidade. É mais interessante quando você está dentro de uma rede social, tem a audição coletiva, vê o que os amigos ouviram, comenta. PRINCIPALMENTE NO JORNALISMO, A LINGUAGEM FOI MUDANDO PARA APROVEITAR ESSA SENSAÇÃO DE COMPANHIA QUE O RÁDIO PROPORCIONA forte também com os programas de auditório em paralelo à rádio-dramaturgia. A música era divulgada nas rádios, os cantores tinham necessidade de ter acesso para serem ouvidos. O rádio começa musical, mas era uma coisa de elite: óperas, música clássica. Aos poucos a música popular foi entrando, foram entrando cantores célebres, e a música passou a ocupar um espaço grande na programação. Ficou assim até hoje. Mas a ligação entre as gravadoras e as rádios teve o auge quando surgiu a FM, mais pra frente, nos anos 70. Ganhou força porque teve uma melhora na qualidade técnica do som, porque já tinha uma indústria fonográfica consolidada e não existiam outros meios de divulgação de artistas. O rádio alavanca a indústria da música e se alimenta dela. OP – Em 90 anos, o rádio mudou muito. Teve a morte anunciada com a vinda da TV e, mais recentemente, uma revolução provocada pelo MP3. Que mudanças de linguagem e posicionamento essas viradas provocaram? Magaly - Tudo muda. Quan- Magaly: estudo sobre a permanente recriação do rádio do começa a televisão, o rádio perde força à noite, mas de dia continua e reforça seu caráter de utilidade pública e os noticiários. Nos anos 80, com a qualidade do som das FMs, a música volta a ganhar muita força, mas nos anos 90 parte do público começa a entrar na internet para procurar músicas, ouvir as webradios. Com o tempo, não é mais preciso estar na internet, basta ter um player, não precisa estar numa determinada página, nem no computador. Basta um iphone, um celular. Aí, nesse bolo, tem vários formatos de rádio, desde o rádio que é no dial e tem uma página para ser ouvida na internet até a página que tem um botão para ouvir ao vivo algum conteúdo como complemento. OP –E tudo isso pode ser entendido como rádio? Magaly – Tem aqueles programas que são rádios entre aspas. Você monta sua rádio e deixa o site rastrear sua máquina. Seleciona dez músicas e no dia seguinte tem recomendações de músicas feitas a partir dessas dez. É uma tentativa de chegar próximo do rádio com esse elemento surpresa, mas por mais OP -E o podcast também é uma forma de fazer rádio? Magaly - Paralelo ao crescimento das rádios na internet, surgiu, em 2004, o podcast. É um programa que pode ser de duas horas ou dois minutos. Prefiro chamar de audiocast, não precisa estar atrelado a uma marca. Pod não tem a ver com ipod, mas muita gente acaba relacionando os nomes. Então, o audiocast é um programa de qualquer tamanho que você “pendura” na rede, pode baixar ou pode ouvir em streaming. É um programa à disposição para ser ouvido quantas vezes você quiser em qualquer lugar. OP – É uma revolução? Magaly -É e não é. Qualquer um pode fazer uma rádio. Monto um site, tenho uma coleção fonográfica, um assunto que domino, posso ter um chat aberto, posso até receber doações por aquele programa. No Brasil, não tem uma cultura forte de doações, mas no resto do mundo o audiocast trabalha direto assim. Falo sobre surf, toco surf music e tenho aquele micropúblico que gosta – a famosa cauda longa - e me dá cinco dólares por mês para ter acesso ao conteúdo. Os audiocasts podem servir para agregar conteúdo, podem estar num portal de noticias, num site sobre qualquer assunto, como um conteúdo extra para ser ouvido. É fácil, qualquer um pode fazer. A logística é muito menor que com um vídeo. Se levar por esse lado é revolucionário sim, é democrático. Posso fazer um audiocast punk, falar de hacker ativismo, é a hiper segmentação. OP –Nesse contexto, qual o futuro do rádio? Como ele vai chegar ao centenário? Magaly –Até por conta do trânsito, ele vem ganhando audiência nas cidades grandes. Outra coisa é que o celular está no bolso de todo mundo. Antes estava todo mundo com um fone no metrô e no ônibus, ouvindo músicas que baixou. O pessoal continua com fones, baixando música, mas estão ouvindo também uma rádio de notícias. Como tem várias, a concorrência é grande, o conteúdo tem que ficar melhor. O rádio não está parado. Agora, falar do futuro é muito difícil. Não sei se o Brasil vai adotar o padrão digital, está demorando demais. O rádio no Brasil está o tempo todo se recriando, mas vai ter sim o que comemorar no centenário. . Rádio digital: Desde 2007, se discute a implantação da rádio com sinal digital no Brasil, um dos poucos países que mantêm a transmissão analógica. As principais vantagens do rádio digital estão na melhoria da qualidade do som – a rádio AM passa a ter qualidade de FM e a rádio FM qualidade de CD -, e o incremento da transmissão, que pode contar, por exemplo, com letreiros digitais com informações adicionais como notícias e previsão do tempo. História do rádio no Brasil, de Magaly Prado. Editora Livros de Safra/selo Da Boa Prosa, 477 páginas. Preço sugerido: R$ 75