Carnaval o ano inteiro

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Carnaval o ano inteiro
Carnaval
o ano inteiro
É uma tendência japonesa com cada vez mais adeptos
em Portugal. No cosplay(costume play) há uma linguagem
própria, fatos feitos pelos participantes, convívio. Põem-se
máscaras por um dia. Tantas vezes por ano quantas se quiser
REPORTAGEM DE KATYA DELIMBEUF (TEXTO) E RUI DUARTE SILVA (FOTOGRAFIAS)
MÁSCARA
TENDÊNCIA
JOGO
DA ESQ. PARA A DIR.:
NYU (DANIELA PATA),
SQUALL LEONHART
(HUGO SANTOS), MAID
(ÂNGELA PATA) OU
ROXAS (FILIPE OLIVEIRA), PERSONAGENS DE
SÉRIES JAPONESAS QUE
UMA NOVA GERAÇÃO
ENCARNA PARA CONVIVER E SE DIVERTIR
ESTE ENCONTRO DE COSPLAY ACONTECEU NO PORTO, NA LOJA CENTRAL COMICS,
DEPOIS DO LANÇAMENTO DE UM LIVRO DE MANGA ESCRITO POR UMA PORTUGUESA.
O PONTO ALTO DO DIA FOI O CONCURSO, GANHO POR KRORY (NA PRIMEIRA FOTO)
uem ali passasse, naquele sábado frio de Inverno, não tinha como
não deter o olhar. A zona junto à porta da Central Comics, uma loja
de banda desenhada no
Porto, fervilhava com
dezenas de jovens fantasiados das mais diversas maneiras. Estava um dia gélido, mas isso
não impedira muitos destes miúdos de irem
trajados a rigor para um encontro de cosplay. Cos... quê? Cosplay, a tendência japonesa — abreviatura de costume play — que consiste em encarnar uma personagem das séries de anime (animação japonesa) ou manga. Os participantes vestem-se conforme a figura que querem assumir — e são milhares
as possibilidades —, com fatos feitos por si, e
participam em concursos.
Nestes convívios, os jovens partilham o
mesmo código. São rapazes e raparigas entre os 15 e os 30 anos, que cresceram com o
universo das séries japonesas na televisão e
que andaram a investigar mais na Internet.
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REVISTA ÚNICA · 13/02/2010
O cosplay chegou há uns anos a Portugal e
foi crescendo, devagarinho. Hoje, há eventos
em muitas cidades, incluindo um grande encontro anual em Lisboa, na altura do Carnaval. E tem uma legião crescente de adeptos.
Hugo Jesus, da Central Comics, garante que
serão seguramente uns 500 os jovens portugueses que praticam cosplay, a julgar pelos
fóruns e pelas pessoas que aparecem nos concursos. “E a tendência é para aumentar.”
Dentro da loja, mergulha-se num mundo
paralelo. Cruzamo-nos com Maids, Lolitas,
Misas, Nyus, Sijuro Hikos, Squall Leonharts
e Soras, personagens de manga e dos jogos
da PlayStation. Gente com cabelos compridos cor-de-rosa e orelhas de gato passa por
guerreiros de espada e criadas trajadas a preceito. É um universo cifrado, incompreensível para quem está de fora, com uma linguagem própria, de uma geração que saltita agora de contentamento diante de cromos autocolantes e de bonecos com os seus heróis alinhados nos escaparates. Se uns estão mascarados de criada ou de super-herói, outros
que parecem disfarçados estão vestidos deles
próprios — e outros que parecem vestidos de-
les próprios, de calças de ganga e t-shirt, estão fantasiados. Ângela Pata vem vestida de
Maid (Criada) — saia vermelha, avental, touca... Comprou o fato no eBay, onde “há muitos vendedores especializados em cosplay”,
mas outros dois costurou-os ela, como mandam as regras do jogo. Noutro concurso, fez
de Lolita, “uma manager de uma banda de
música de heavy metal, da série japonesa ‘Detroit Metal City’”. Esclarecidos?
“A minha mãe sabe e até gosta.” Esta lojista
de 26 anos iniciou-se no cosplay há dois, embora conheça o universo há mais tempo, da
televisão — o “Sailor Moon”, o “Dragonball”.
Descobriu estes eventos através da Internet,
e desde então conheceu muita gente. O que
Ângela acha mais interessante na “história
das máscaras” é “trazerem à tona aspectos
da personalidade que nem sempre estão à superfície”. Veio de Aveiro com a irmã mais
nova, que introduziu na ‘modalidade’.
Daniela, estudante do 8º ano, está a fazer
cosplay de Nyu ou Lucy, “uma personagem
de um anime que mata muita gente e depois
se esquece” (!). Ela gosta particularmente do
OS FÃS VIBRAM COM OS COSPLAYERS, QUE FOTOGRAFAM E INCENTIVAM.
NO FIM DO DESFILE, TIRAM FOTOGRAFIAS AO LADO DOS SEUS HERÓIS DA BD,
QUE POSAM COM O V DE VITÓRIA, MUITO USADO PELA JUVENTUDE JAPONESA
facto de esta personagem — cabelo rosa comprido, orelhas de gato, brilhantezinho azul
num dente — “ser boa e má”. Noutro cosplay,
vestiu-se de Misa Misa (da série “Deathnote”), “uma modelo gótica que se apaixona
por um rapaz, Kira, que tem um livro, e quando ele lá escreve o nome de alguém, passados 40 segundos, essa pessoa morre”. Daniela gosta de conviver com esta gente, “pessoas
animadas, muito fixes”. “A minha mãe sabe
o que isto é e até gosta. Alguns amigos já
viram animes comigo, mas ainda têm vergonha de se vestirem assim e virem para aqui.”
Anda uma outra Misa por ali. É Luísa Castro, de 16 anos, que faz o seu primeiro cosplay. “Conheço isto desde pequenina. mas só
desde os 14 me interesso mais”, explica. “Porque é que venho de Misa? Porque me identifico um bocadinho com ela. Acho-a muito bonita, gosto do que ela faz na história. E ela é
muito apaixonada pelo namorado”, suspira.
Hugo Santos, estudante universitário de
informática, é repetente. De ‘ferida’ vermelha a meio da testa, encarna Squall Leonhart
(da série “Final Fantasy”, um jogo da PlayStation), “um solitário que vive num orfanato e
tem dificuldade em ligar-se às pessoas”. Na
mão, traz uma gunblade (espada) com mais
de um metro de comprimento. “Foi feita
mais pelo meu pai do que por mim. Pegámos
numa placa de madeira, recortámo-la, pintámo-la de prateado. Outro bocado da arma foi
feito pela minha ex-namorada, que também
conheci no cosplay. O namoro durou um ano
e meio. Ela fazia de Rinoa, a namorada do
Squall no ‘Final Fantasy’...”
O desfile das estrelas. Mas nem só de sub-20
vive o cosplay. Bruno Nunes é o “filho mais
velho”. Aos 29 anos, continua a achar graça a
um universo totalmente incompreensível para os seus amigos. Hoje, encarna a personagem de Seijuro Hiko, mestre espadachim que
ensina a Kenshin o estilo hiten mitsurigi
(uma forma de esgrima). “Há anime para
crianças, para adolescentes (Shonnen), masculino, feminino (Shoujo)... E há manga para
crescidos (Seinen). Aumenta o grau de violência, de coerência, o conteúdo sexual”, explica.
“No cosplay vejo diversão, conheço pessoas
com os mesmos interesses. E, por um dia,
saio completamente da minha realidade.”
Ao fim da tarde, o concurso está prestes a
começar. Dez cosplayers preparam-se para
desfilar. Cá em baixo, dezenas de espectadores e fãs incentivam-nos. Ouvem-se gritos de
impaciência. Os fotógrafos disparam os flashes. Dá ares de desfile a sério... Krory — Ricardo Dias, 20 anos — foi um dos últimos a
chegar, mas é veterano. Este é o seu quarto
concurso. Há dois anos que faz cosplay. “Como adoro teatro, gosto muito da ideia de encarnar personagens. Esta — Krory, do ‘D.
Grey Man’ — é bastante emotiva e complicada. Gosta de uma mulher que é um demónio
e não sabe se a há-de matar ou não... Identifico-me bastante, a nível emocional”, confessa.
Começa o desfile. Uns descem as escadas
com ares de manequim bamboleante, rodando capas, sacando espadas, parando em frente às objectivas. Outros, mais insípidos — as
tais personagens vestidas de calça de ganga e
t-shirt branca —, arrebatam a plateia como
se fossem pop stars... Muitos posam com o V
de vitória. O vencedor será anunciado no dia
seguinte — é Krory, o amante de teatro. O
‘teatro’ desta geração não tem tábuas nem
palco. Mas é saudável e criativo. n
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