SE REIS PODEM SER ERMITÕES, ENTÃO SOMOS TODOS TIOS
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SE REIS PODEM SER ERMITÕES, ENTÃO SOMOS TODOS TIOS
SE REIS PODEM SER ERMITÕES, ENTÃO SOMOS TODOS TIOS DE MACACOS Aprendemos com nossos erros, talvez ainda mais com nossos enganos mais vergonhosos. Começo, pois, com uma história às minhas próprias custas. Muitos anos atrás, uma de minhas alunas contou-me sobre o irmão de seu pai, um homem severamente retardado, de índole quase infantil. Quando ela o descreveu como “meu tio”, minha mente parou por um instante e me peguei pensando (sem nada dizer em voz alta, felizmente, de modo que a vergonha do erro permanecia interiorizada até agora): “Tios são pessoas sábias que oferecem conselhos gratuitos (nem sempre muito bons, reconheço) e nos levam a jogos de beisebol; como alguém com essas limitações pode ser um tio?”. Felizmente, dei então um beliscão (metafórico) em mim mesmo e o solilóquio prosseguiu por outras linhas: “Ele é irmão do pai dela; é, portanto, pura e simplesmente, seu tio; tio é um termo genealógico de parentesco, não um conceito funcional de ação; ele é tão tio quanto qualquer outro homem que já viveu”. As relações evolutivas também são primordialmente genealógicas, não funcionais. Todos sabemos que as baleias são mamíferos por causa de ancestrais comuns, não peixes pelo fato de nadarem no oceano. Em termos genealógicos, a proximidade é definida pela posição que se ocupa numa seqüência de ramificações - o que Darwin chama de “propinqüidade”, ou contigüidade relativa. Posso ser, na aparência e nas atitudes, mais parecido com meu primo Bob do que com meu irmão Bill, mas Bill continua sendo genealogicamente mais próximo de mim. Função e aparência não precisam ter uma correlação rigorosa com propinqüidade genealógica. [...] Os vertebrados terrestres ramificaram-se da linha dos primeiros peixes em algum ponto perto dos ancestrais dos peixes pulmonados modernos; as trutas evoluíram muito depois, de uma linhagem antiga remanescente de peixes. Portanto, se optarmos por classificar puramente por genealogia, os peixes pulmonados e as vacas têm que ser reunidos num grupo separado das trutas. Muitos hão de ficar contrariados com essa idéia, pois nossa classificação convencional mistura relações funcionais e relações estritamente genealógicas. Podemos dizer: “Um peixe pulmonado parece peixe, nada como peixe, age como peixe e (imagino, pois nunca tive o prazer) tem gosto de peixe. Portanto, é um peixe”. Talvez. Mas, por propinqüidade, os peixes pulmonados estão mais próximos das vacas. Não pretendo levar adiante essa questão teórica no presente ensaio - embora os aficionados hão de reparar que esse tema hoje permeia a ciência da sistemática no grande debate sobre “cladismo”. Os cladistas defendem uma classificação estritamente genealógica (por ordem de ramificação), sem nenhuma referência aos conceitos tradicionais de similaridade funcional ou papel biológico. Para este ensaio, basta lembrarmos que similaridade genealógica e similaridade funcional são dois conceitos diferentes, e que podemos nos enganar terrivelmente misturando os dois - ainda mais quando presumimos uma proximidade de ramificação (propinqüidade) a partir de indícios de aparência ou comportamento comum. (Desculpem-me, mas devo acrescentar um último parágrafo didático: se chamarmos uma baleia de peixe, estaremos cometendo o erro elementar de interpretar equivocadamente o fenômeno evolutivo da “convergência”. As características ictíicas das baleias evoluíram separada e independentemente a partir de uma linhagem derivada de vertebrados totalmente terrestres. Mas as semelhanças “peixescas” entre a truta e os peixes pulmonados são marcas evolutivas legítimas de uma ancestralidade comum. Essas similaridades não estabelecem um elo genealógico maior entre os pulmonados e as trutas do que entre os pulmonados e as vacas, porque tais características partilhadas são caracteres comuns de todos os primeiros vertebrados; a propinqüidade se distingue por caracteres partilhados de derivação posterior. Por exemplo, não usaria o caractere “cinco dedos” para unir seres humanos e cachorros ao mesmo tempo em que colocaria as focas num outro grupo, pois os cães e as focas estão genealogicamente próximos, como membros da ordem Carnivora. A posse de cinco dedos é um caractere partilhado por todos os mamíferos ancestrais: esses traços não nos ajudam a efetuar divisões na própria evolução posterior dos mamíferos.) Aos que acharam a lição acima enfadonha e abstrata demais, gostaria agora de recompensarlhes a paciência com uma deliciosa história, que se torna ainda melhor depois que a lição foi absorvida. Em termos funcionais, consideramos haver um máximo de disparidade entre um rei em seu castelo e um eremita em sua choupana. No entanto, como argumentei acima, não precisa haver uma forte correlação entre similaridades funcional e genealógica. Nossas lendas estão cheias de histórias de pobres que ficam ricos, de mendigos que se tornam reis, de sapos que viram príncipes. Nem toda a opulência do mundo impede que um primo do rei possa ser o mais miserável ermitão do reino. Comparemos agora os reis e eremitas do reino dos caranguejos. Dificilmente poderíamos encontrar duas criaturas à primeira vista tão diferentes nesse âmbito inegavelmenle limitado. O caranguejo-rei (Paralithodes camtschatica), o campeão de tamanho dessa fraternidade, vive nas águas temperadas do norte e do Ártico - do extremo superior da ilha de Vancouver, espalhando-se por todo o Alasca, chegando à Sibéria e descendo pela costa do Pacífico até o Japão. Tomando a mesma formulação que fiz para os peixes pulmonados, o caranguejorei parece um caranguejo, move-se feito caranguejo, age como caranguejo e certamente tem gosto de caranguejo [...]. Como contraste, considerem o humilde caranguejo-ermitão, ou bernardo-eremita - na realidade, um grande grupo de formas aparentadas, abrangendo cerca de oitocentas espécies em mais de oitenta gêneros. A maioria tem de 2,5 a cinco centímetros de comprimento e mora enrolada dentro de conchas vazias de caramujos (estas vão se tornando pequenas com o tempo e são então “trocadas” por modelos mais amplos). Por maiores que sejam as diferenças de tamanho e de hábitos, a disparidade de forma entre o caranguejo-rei e o bernardo-eremita típico é ainda mais pronunciada. Um caranguejo-rei parece um caranguejo comum: sua carapaça é achatada a alongada a possui um par de garras na frente e três pares de patas compridas e robustas atrás (a maioria dos caranguejos tem quatro patas atrás das garras). Em comparação, nem sei porque alguém um dia decidiu designar os bernardos-eremitas de caranguejos. Os caranguejos formam uma das três maiores divisões - as lagostas e os camarões constituem as outras duas - de um grande grupo de crustáceos marinhos chamado Decapoda. (Arthropoda, o maior de todos os filos, abrange três grandes grupos: Crustacea, Uniramia - incluindo insetos, miriápodes e centopéias - e Chelicerata, incluindo aranhas, escorpiões e xifosuros.) Os caranguejos propriamente ditos pertencem à ordem Brachyura, que significa “cauda curta”, cuja característica marcante é o abdome (extremidade posterior) curto e estreito, dobrado em torno da região posterior do corpo e pressionado firmemente contra a parte de baixo. A couraça larga e achatada do caranguejo corresponde apenas à parte dianteira do corpo de uma lagosta ou camarão. O abdome, a parte comestível, estendese para fora e para trás nas lagostas e camarões, mas desaparece de vista (dobrado sob o próprio corpo) nos caranguejos. Tome a parte dianteira de uma lagosta, achate-a, estique-a para os dois lados até que a carapaça se torne mais larga do que comprida, reduza o rabo e dobre-o debaixo do corpo - voilà, você terá um caranguejo. (O parentesco entre os três principais grupos de decápodes torna-se mais claro à luz desse experimento mental.) Mas por que, então, chamamos os bernardos-eremitas, ou paguros, de caranguejos-ermitões? Genealogicamente, eles não são membros da ordem Brachyura: constituem um grupo à parte chamado Anomura, naquela Terra-do-Nunca entre os camarões convencionais e demais decápodes. Seus corpos são alongados, como os dos camarões. Têm apenas dois pares robustos de patas atrás do par frontal de garras (os dois pares extremamente reduzidos mais atrás servem para manter o animal dentro da sua concha emprestada). Mais importante, o seu abdome não é reduzido nem dobrado sob o corpo, mas recurvado e estendido, bastante alterado e bem adaptado para caber nas conchas de caramujos. O abdome dos caranguejosermitões é macio e descalcificado, para melhor se encaixar dentro da concha. Além do mais, o abdome fica enrolado de um dos lados, imitando a concha que lhe servirá de lar. [...]. Por que então dizemos que os caranguejos-ermitões são caranguejos? Dada a sua aparência, não deveríamos incluí-los entre os camarões? Por outro lado, os especialistas há muito desconfiam que os caranguejos-reis também não são verdadeiros braquiúros e que, na verdade, esses gigantes do Alasca (e outros membros da sua família, Lithodidae) são primos próximos dos caranguejos-ermitões. Mas como tamanha propinqüidade genealógica permitiria formas e funções tão díspares? E, dada essa disparidade, como alguém chegou a suspeitar de uma possível propinqüidade? Três argumentos foram apresentados e constituem uma tese bastante coerente, ainda que não totalmente convincente. 1. O abdome do caranguejo-rei adulto, embora de tamanho reduzido e dobrado debaixo do cefalotórax como nos caranguejos propriamente ditos, tem formato assimétrico, lembrando a extremidade posterior dos caranguejos-ermitões. Algumas outras características da anatomia adulta também sugerem uma afinidade com os caranguejos-ermitões. Por exemplo, o grupo crustáceo de caranguejos, lagostas e camarões chama-se Decapoda, que significa “com dez patas”. Nos caranguejos, um par frontal de pinças e quatro pares posteriores de patas constituem o complemento de dez. Nos caranguejos-ermitões, conforme dito acima, há apenas dois pares de patas robustas atrás das pinças, sendo os dois pares finais reduzidos a pequenas protuberâncias que seguram a concha emprestada. Nos caranguejos-reis, o primeiro par de patas reduzidas é secundariamente ampliado para formar um terceiro par de patas robustas atrás das pinças; mas o segundo par permanece pequeno e discretamente situado sob o cefalotórax. 2. Essas semelhanças esporádicas das formas adultas, em si, jamais contribuiriam para uma tese consistente. Mas a certeza de um estranho vínculo entre reis e ermitões firmou-se com a descoberta de uma profunda e abrangente similaridade nas formas larvais dos dois grupos. Os animais adultos geralmente são tão especializados e diferenciados que a maioria dos sinais de ancestralidade fica oculta ou é obliterada. Mas as larvas ou embriões costumam preservar o modo ancestral de desenvolvimento, em parte porque a complexa passagem de ovo para animal adulto deixa pouca margem para modificações substanciais, e em parte porque esses ambientes larvais quase sempre permanecem estáveis enquanto os habitats adultos mudam. [...] 3. O ponto mais fascinante e geral talvez seja que a evolução convergente em formas de caranguejo é uma tendência que se repete freqüentemente entre os crustáceos decápodes. Não especularei aqui sobre as vantagens ou facilidades de tal transformação, mas apenas registrarei várias ocorrências dela. Achate a carapaça a estique-a para os lados; suprima o abdome e dobre-o sob o corpo - o resultado é uma criatura parecida com um caranguejo. Essa propensão é suficientemente comum para ter um nome especial, conferido em 1916 pelo célebre zoólogo inglês L. A. Borradaile: carcinização. (Vale lembrar que designamos como “carcinógeno” uma substância que provoca ou estimula a formação de tumores malignos, e que a própria palavra câncer significa caranguejo em latim - uma referência à massa central e às extensões que lembram pinças de muitos tumores.) Muitas linhas evolutivas de caranguejos-ermitões sofreram carcinização. Em algumas, o resultado é apenas parcial - mas realizações pela metade nos proporcionam valiosos insights do processo completo). Considerem a figura do Probeebei mirabilis, um caranguejo-ermitão parcialmente carcinizado [...]. O abdome ainda é assimétrico e retorcido para a direita, mas tornou-se secundariamente calcificado. Os dois pares de patas atrás das pinças estão agora bem desenvolvidos, para permitir que caminhe autonomamente, a encontram-se estendidos para os lados, e não protraídos para a frente (uma posição apropriada para sair das conchas de caramujos). Os motivos básicos de tal mudança são claros nesse caso. Probeebei vive em águas profundas ao largo do litoral da Costa Rica ([...] a profundidade de mais de 3 mil metros). Raramente existem conchas de caramujos (e outras casas potenciais) em tais profundidades, de modo que esse caranguejo retornou ao modo de vida autônomo de seus ancestrais. Dois outros casos têm um interesse especial para compreendermos a ocorrência freqüente da carcinização. Porcellanopagurus, [...], desenvolve um abdome mais curto e razoavelmente simétrico. Mas essa criatura usa uma concha de mexilhão, não de caramujo, como proteção - e não é preciso torcê-la para que caiba debaixo de uma couraça basicamente chata. Birgus latro, o famoso “caranguejo-ladrão” [robber crab] ou “caranguejo-coco” [coconut crab] das ilhas do Pacífico, apresenta basicamente o mesmo processo de crescimento. O adulto é totalmente terrestre e parece um caranguejo, mas os jovens ainda possuem abdomes retorcidos e habitam conchas de caramujos ao longo da costa. Podemos passar dessas linhas parcialmente carcinizadas de caranguejos-ermitões para quatro casos de carcinização quase completa em crustáceos decápodes em geral. Os mais bem-sucedidos são, é claro, os caranguejos propriamente ditos (braquiúros), abrangendo milhares de espécies e distribuídos por todo o mundo. Mas três outras linhas de crustáceos totalmente carcinizados surgiram dos ancestrais mais restritos dos caranguejos-ermitões dois grupos pouco conhecidos aos não-especialistas (as famílias Lomisidae e Porcellanidae, os chamados “caranguejos-porcelana”) e a família Lithodidae, que inclui o caranguejo-rei (e 52 outras espécies em dezesseis gêneros - em sua maior parte animais pequenos, naturais de águas frias). Se ainda restassem dúvidas sobre a íntima propinqüidade entre reis e ermitões, elas logo seriam dissipadas pelas novas e convincentes provas apresentadas num estudo esmerado de C. W. Cunningham, N. W. Blackstone e L. W. Buss, “Evolution of king crab from hermit crab ancestors” [Evolução de caranguejos-reis a partir de caranguejos-ermitões ancestrais], publicado em 1992. Esse estudo, realizado no laboratório do meu amigo e colega Leo Buss na Universidade de Yale, aproveita uma revolução que vem ocorrendo na taxonomia em decorrência dos últimos avanços tecnológicos que nos permitem seqüenciar o DNA de maneira rápida e barata [...]. A taxonomia convencional debate-se com um número menor de traços morfológicos, fisiológicos e comportamentais que muitas vezes são sobremaneira sujeitos à convergência. O seqüenciamento do DNA e do RNA oferece centenas ou milhares de novos caracteres (a ordenação das cadeias de nucleotídeos, geralmente muito bem conservadas ao longo da evolução). Evidentemente, essas informações moleculares também estão sujeitas à convergência e outras formas de confabulação - mas que tesouro de comprovações inéditas! Buss e colegas seqüenciaram parte de um gene importante que especifica o código do RNA ribossômico e encontraram 108 posições “filogeneticamente informativas” - um tremendo aumento no número de caracteres úteis para classificação. Eles estabeleceram uma matriz de similaridades entre todos os pares de comparações para doze espécies de caranguejosermitões e caranguejos-reis, e também para um décimo terceiro parente mais distante, escolhido como esteio da árvore (eles usaram o camarão de água salgada Artemia salina). Em seguida, aplicaram várias técnicas de formação de árvores genealógicas a essa matriz de semelhanças relativas, obtendo o mesmo resultado básico com os dois métodos mais comuns: a análise, que só funciona com graus preestabelecidos de semelhança geral; e a parcimônia, que permite montar árvores com um número mínimo de etapas evolutivas. O fato de haverem obtido resultados idênticos a partir de procedimentos diferentes confirma de maneira enfática as suas descobertas. Diagrama das relações genealógicas entre caranguejos-ermitões e caranguejos-reis, de um artigo de Cunningham, Blackstone e Buss. Nature, vol. 355, 1992, p.540 Paralithodes Pagurus Paralithodes Esse resultado notável e altamente satisfatório está resumido no diagrama acima, reproduzido do artigo. O camarão Artemia, conforme esperado, separou-se das doze outras espécies na divisão mais antiga. A dicotomia seguinte (A no diagrama) segue a classificação tradicional separando os caranguejos-ermitões com abdomes retorcidos para a esquerda (as duas espécies de baixo) de seus primos com abdomes para a direita. O grande ramo superior de dez espécies representa os tradicionais caranguejos-ermitões da família Paguridae. A divisão seguinte (B no diagrama) estabelece uma separação fundamentalmente geográfica entre os pagurídeos. Chegamos agora ao mais notável. Reparem as duas espécies inferiores do ramo superior o caranguejo-rei (Paralithodes camtschatica) e seu parente próximo, Lithodes aequispina. Observem em seguida as espécies dos dois principais subramos desse grupo maior (formado na separação das linhas de abdomes para a direita e para a esquerda na divisão A). O subramo superior representa espécies do gênero Pagurus, os caranguejos-ermitões de qualquer livro didático ou praia litorânea. Mas reparem agora no subramo inferior - e observem que inclui duas outras espécies do gênero Pagurus além de duas espécies da linha do caranguejo-rei. Em outras palavras, os caranguejos-reis estão tão próximos dos caranguejosermitões segundo o critério de propinqüidade que eles na realidade se ramificam a partir de um grupo genealógico restrito tão convencional quanto à forma e ao comportamento que todas as espécies foram incluídas no gênero canônico Pagurus! [...] Um último ponto tangencial antes de abandonarmos esse elegante estudo. Os críticos criacionistas costumam dizer que a evolução não pode ser testada e, portanto, não pode ser vista como um objeto científico legítimo [...]. Tal afirmação é uma bobagem retórica. Que melhor teste poderia haver do que esse - baseado, ainda por cima, numa previsão de alto risco? O vínculo totalmente não intuitivo entre caranguejos-ermitões e caranguejos-reis foi postulado com base em evidências morfológicas clássicas (os argumentos apresentados em detalhes neste ensaio como tópicos 1 a 3). Essa previsão foi então testada usando-se dados totalmente independentes obtidos por comparações de seqüências de DNA - e totalmente confirmada, evidenciando-se uma propinqüidade ainda mais próxima do que se suspeitava entre as linhas de reis e ermitões. Diagrama por Mark Abraham Considero essa história de caranguejos-reis e caranguejos-ermitões uma das mais elegantes da biologia evolucionista de que tenho notícia. É uma combinação perfeita, contendo uma narrativa fascinante e antiintuitiva; uma abundância de dados de apoio multifacetados, rigorosos e inteiramente convincentes; e uma lição de intrigante generalidade (a diferença entre a propinqüidade genealógica e qualquer significado funcional de similaridade - e a importância suprema da propinqüidade). Mas será que os leitores partilharão essa opinião? Posso até ouvir as objeções. “Sim, sim, entendi a sua história - só que os caranguejos não me comovem muito. Eles não cruzam a minha vida com muita freqüência. Por que deveria me importar?” Permitam-me então tentar anular essa reticência dando outro exemplo do mesmo fenômeno evolutivo - mas um exemplo ao qual ninguém poderá ficar indiferente. O diagrama genealógico acima resume a nossa surpreendente história de caranguejos. Os caranguejos-reis se ramificaram da linha dos caranguejos-ermitões ainda no âmbito do gênero Pagurus, o mais comum e mais convencional de todos os caranguejos-ermitões. Quem haveria de pensar que tal diferenciação pudesse ser atingida num âmbito genealógico tão restrito? Quem teria imaginado que reis e ermitões pudessem ser tão próximos segundo o mais importante de todos os critérios evolutivos, a propinqüidade, ou distância genealógica? Reproduzo agora exatamente o mesmo diagrama. Não modifiquei em nada a posição e a ordem dos ramos. Mas substituí os nomes originais por outros, pois desejo retratar agora o que sabemos sobre a propinqüidade dos chamados “primaras superiores”. A história genealógica dos seres humanos e de nossos parentes primatas mais próximos corresponde exatamente à história de propinqüidade entre caranguejos-reis e caranguejos-ermitões! Diagrama por Mark Abraham Darwin supôs corretamente - e os cientistas têm tido poucas dúvidas desde então - que os chimpanzés e os gorilas são nossos parentes mais próximos. Mas Darwin e praticamente todo o mundo até recentemente supuseram que os chimpanzés e gorilas formavam o par genealógico mais próximo das três espécies - nada mais razoável, afinal, dada a evidente semelhança entre os dois macacos e a nossa própria individualidade exaltada. (Mas lembremse de que não há correspondência necessária entre similaridade funcional e genealógica!) Embora as evidências ainda sejam imperfeitas, e a questão toda ainda precise ser submetida a um amplo debate, a maioria das informações mais recentes sugere que estávamos enganados: os chimpanzés e os seres humanos formam o par genealógico mais próximo e os gorilas teriam se ramificado um pouco antes. Os chimpanzés e os gorilas são, por convenção, classificados na família Pongidae, enquanto os humanos são incluídos numa família separada, Hominidae. Mas se meu diagrama estiver correto, então os seres humanos surgiram no próprio âmbito da família Pongidae e, portanto, não podem constituir uma família à parte - ou estaremos cometendo o absurdo genealógico de unir duas formas mais distantes (chimpanzés e gorilas) na mesma família enquanto excluímos uma terceira criatura (os humanos), mais aparentada com uma dessas duas espécies unidas. Certamente não posso afirmar que tenho maior grau de parentesco com meu tio do que com meu irmão, mas é exatamente isso que dizemos quando argumentamos que os chimpanzés estão mais próximos dos gorilas do que dos humanos - veja o terceiro diagrama de topologia idêntica. Os caranguejos-ermitões e os caranguejos-reis contam exatamente a mesma história. Nossos instintos nos dizem que esses dois grupos deveriam ser classificados separadamente, em virtude das profundas diferenças de forma e função entre um e outro. Mas os caranguejosrei surgiram no próprio domínio genealógico dos caranguejos-ermitões - surgiram, na realidade, no próprio âmbito restrito do gênero canônico Pagurus! Como, então, podemos colocar os caranguejos-reis num grupo evolutivo e os caranguejos-ermitões em outro? Do mesmo modo, como podemos continuar mantendo os seres humanos em glorioso isolamento, ao mesmo tempo em que juntamos chimpanzés e gorilas na família Pongidae? Diagrama por Mark Abraham É perfeitamente legítimo perguntar como tamanha diferença aparente poderia ter surgido num âmbito genealógico tão restrito. Mas as aparências enganam e a disparidade subjacente talvez não seja tão grande (ou talvez as diferenças sejam realmente profundas e a taxa de evolução acelerou-se tremendamente no caso dos caranguejos-reis e dos seres humanos). Pequenas mudanças subjacentes podem provocar grandes efeitos cumulativos, se ocorrerem no início do crescimento, pois as conseqüências vêm em cascata dali para a frente. Talvez a carcinização não seja uma mudança tão grande afinal - achatar e alargar a carapaça, reduzir e dobrar o abdome. Talvez todas essas mudanças possam ocorrer como conseqüências de uma única transformação coordenada do crescimento. Afinal, Birgus latro, como vimos acima, sofre justamente tal transformação durante seu crescimento - vivendo com um abdome retorcido numa pequena concha de caramujo durante a juventude, mas carcinizando-se depois até se transformar num adulto autônomo. Além disso, o tamanho agigantado dos caranguejos-reis, por mais impressionante que seja, não precisa necessariamente representar uma grande mudança evolutiva. Abandone-se a necessidade de encontrar uma concha para morar e os limites ao tamanho serão ab-rogados. Qualquer caranguejo-ermitão autônomo carcinizado pode possuir a capacidade de aumentar tremendamente de tamanho. O mesmo se dá com os seres humanos: será que somos realmente tão diferentes dos chimpanzés como pleiteamos com tanta confiança e arrogância? Quanto à aparência, não resta dúvida de que somos diferentes (menos pêlo e postura ereta têm um forte impacto visual). Quanto à capacidade cerebral, evidentemente (os chimpanzés são bastante espertos, mas jamais chegarão a se preocupar com a posição genealógica dos caranguejos-reis). Mas as diferenças biológicas subjacentes não precisam necessariamente ser tão grandes. Fortaleçam-se e endireitem-se as pernas, aumente-se o cérebro. As conseqüências foram enormes e sem precedentes em toda a história da vida. Mas não estou tão certo de que as transformações topológicas e genéticas tenham sido tão profundas assim. Conseqüências são efeitos, e efeitos não são a mesma coisa que forças generativas e resultados morfológicos. Pequenas mudanças podem ter efeitos cataclísmicos. Pessoas de boa vontade e inteligência logo admitem nosso parentesco com os macacos. Estamos cientes dessa afinidade, e podemos repetir todas as máximas apropriadas. Mas nunca chegamos a incorporar visceralmente esse conhecimento vital – em grande parte porque temos equivocadamente suposto que deve haver uma forte correlação entre distância funcional e distância genealógica. Se a aparência dos seres humanos é tão distinta da dos chimpanzés, então devemos realmente ser muito diferentes, não importa qual seja o nosso grau de parentesco. Mas se conseguirmos compreender a primazia da distância genealógica enquanto medida evolutiva, e compreender também a natureza potencialmente ilusória da aparência externa enquanto indicadora de diferenças fundamentais, talvez sejamos capazes de reavaliar a nossa tremenda (ainda que humildificante) vantagem. Reis podem ser ermitões, e os seres humanos podem ser os irmãos mais próximos dos chimpanzés. O lema da postura funcional é: Der Mann ist was er isst (Somos o que comemos). Mas um evolucionista deve acrescentar a voz decisiva da história: Somos o que fomos e o que partilhamos com o nosso nexo genealógico mais próximo. Ou seja, parentesco. Seremos um pouco mais livres, um pouco mais esclarecidos, um pouco mais dispostos a trabalhar para a preservação do planeta com o resto de nossos parentes quando soubermos por que somos todos tios de macacos. Trechos extraídos do livro Dinossauro no Palheiro - Reflexões sobre História Natural, de Stephen Jay Gould, tradução de Carlos Afonso Malferrari, pp. 465-481. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.