Destinos Cruzados

Transcrição

Destinos Cruzados
Esta é uma obra de ficção.
As personagens e os seus nomes, bem como os nomes de lugares e os
acontecimentos nela relatados são produto da imaginação do autor ou são usados de
forma fictícia e não devem ser tomados pela realidade. Qualquer semelhança com
acontecimentos, locais, entidades, organizações ou pessoas, vivas ou mortas, é
inteira coincidência ou fruto da imaginação do leitor – pela qual o autor não é de
todo responsável.
Obras de Nuno Morais
Romances:
Tráfico Desumano:
Perdidos para Sempre
Destinos Cruzados
Novelas:
Wish You Were Here
Portais
Título:
Autor:
Destinos Cruzados
Tráfico Desumano 2
Nuno Morais
www.nunomorais.eu
correio(ao cuidado de)nunomorais.eu
1ª Edição PDF: Março 2009
ISBN: 978-989-95874-1-0
© 2009 Nuno Morais
Reservados todos os direitos.
© capa NM Design
Edição original de Nuno Morais, em PDF, para descarga gratuita a partir de:
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O romance constante do presente PDF, não pode ser alterado, adaptado ou utilizado
para qualquer outro fim que não seja a leitura privada do mesmo, sem uma
autorização prévia e por escrito do autor nesse sentido. Nuno Morais está registado
como autor de “Destinos Cruzados” e os Direitos de Autor que lhe cabem estão
devidamente protegidos.
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Nuno Morais
R. Filipe Folque, 10.G – Ap.1943
PT 1057-001 Lisboa
À Nhoca e à Budi
AGRADECIMENTOS
A todos os leitores de “Perdidos para Sempre”, especialmente àqueles que
utilizaram algum do seu precioso tempo (vós sabeis quem sois!) para me
enviarem comentários, críticas e sugestões; sem esse apoio, este segundo
volume de “Tráfico Desumano” talvez nunca tivesse passado de .doc
À Salomé Castro, por ter amavelmente revisto o manuscrito e o ter libertado
de erros e incorrecções. O que ainda resta, de uns e outras, é, obviamente, de
minha inteira responsabilidade.
Ao Nuno Moreira, pela capa.
Esta aventura foi escrita com total e completo
desprezo pelas regras do novo acordo ortográfico.
UM
Vou a passar a porta do escritório para ir almoçar quando sou chamado pela
recepcionista, que também faz vezes de telefonista:
“Dr. Saint-Hervé, é a sua ex-mulher. Digo-lhe que já saiu?”, pergunta com voz
falsamente solícita. Não gosto nada da gaja, e o sentimento parece ser mútuo,
mas como não fui eu quem a contratou, também não vou dar-me ao trabalho
de me chatear com ela.
“Não. Pode passar-me a chamada; eu atendo-a no meu gabinete.”
“Com certeza, senhor doutor”, diz, desiludida. Porque, na lógica retorcida
destas coisas, não vou ficar a dever-lhe o favor de ter contado, por mim, uma
peta à Mima, e porque eu não atendi a chamada ao pé dela, impedindo-a,
assim, de ficar a saber mais qualquer coisa sobre a minha, já bastante
devassada, vida privada.
Atravesso de novo o átrio, percorro o corredor até meio e entro na minha
sala. O telefone da mesa de reuniões já está a tocar, provavelmente por ela
ter achado que eu não quereria chegar à secretária. Reencaminho a chamada
para
o
outro
telefone,
sento-me
na
confortavelmente e levanto o auscultador.
“Bom dia, Mima. A que devo a honra?”
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minha
cadeira,
recosto-me
“Oh! Olá, Jakez, assustou-me. Não estava à espera que me atendesse assim tão
depressa. Não me apercebi sequer que lhe tinham passado a chamada. Como está?
Tem passado bem?”
Cheira-me a esturro. O tom é demasiado simpático, deve querer cravar-me
qualquer coisa. Mas, também, quando é que ela me telefona por outra razão?
“Olha, Mima, eu estava de saída para ir almoçar, por isso, se não te importas, vai
directa ao assunto, se fazes favor.” Talvez a frase me tenha saído ligeiramente
mais abrupta do que teria gostado, mesmo tendo em conta que se trata da
Mima, mas estou com fome e não tenho paciência alguma quando tenho
fome.
“Ai, menino, mas que modos. Quem o ouvisse até pensava que me queria mal”, diz,
com voz dengosa. Definitivamente, vem cravar-me, resta saber para quê.
Não digo nada e deixo-a continuar.
“Bom, já percebi que prefere não fazer conversa, pelo que não procuro saber mais de
si”, diz num arrufo, e prossegue: “Como deve ter conhecimento, o baile de
apresentação da Catarina vai realizar-se daqui a umas semanas, e nós, enfim, ela
gostaria muito de ser conduzida pelo pai, como aliás é de bom-tom nestas ocasiões.
Apesar de estarmos divorciados, também eu creio que o mais indicado é que ela seja
apresentada por si, em vez de o ser por outro membro da família.”
Não fazia a mínima ideia que a minha filha tinha inclinação para debutante,
mas também como poderia? Nenhum dos meus dois filhos me liga a ponta
de um corno. O que torna o presente telefonema ainda mais estranho.
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“Olha lá, Mima, e se a Catarina faz assim tanto gosto em ser acompanhada pelo pai,
não podia, ao menos, ser ela própria a telefonar-lhe?”
“Oh, Jakez, francamente! A pobre da rapariga tem imenso em que pensar. Não vai
levar-lhe a mal uma coisa tão insignificante. De qualquer forma, sou eu que tenho
tratado de tudo com ela, por isso é como se fosse a Catarina a telefonar”, termina,
com voz ainda mais doce.
Mas eu não cedo e digo-lhe que, se a minha filha quer que eu a acompanhe
ao baile, tem de ser ela a pedir-me. Para dizer a verdade, acalento esperanças
de que não o faça, pois a última coisa que me passaria pela cabeça seria
aturar uma chachada daquelas; mas não vou dizê-lo, apesar da fome ainda
consigo pensar o suficiente para ver que isso só levaria a uma discussão; o
que me faria perder mais tempo e me faria almoçar ainda mais tarde do que
já vou almoçar.
“Ai, Jakez, você hoje está mesmo aborrecido!”, exclama, deixando transparecer no
tom de voz algum do aborrecimento que me aponta. A Mima está habituada
a conseguir tudo o que quer sem ter de se esforçar para isso. Deixa pesar o
silêncio durante alguns momentos, para ver se eu mudo de ideias, mas
depois solta um suspiro de enfado e prossegue, mais prazenteira: “Bom, vou
dizer à Catarina que você exige que ela lhe telefone. Mas, oiça lá, ao menos aceita
acompanhá-la?”, pergunta, como quem não está muito interessada na
resposta.
“Isso só poderei afirmar depois de ter falado com a Catarina”, digo, meio divertido
com a pergunta, apesar da irritação crescente.
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“Mas que coisa, menino. Ela depois liga-lhe. Adeus, Jakez”, despede-se não muito
satisfeita.
“Hasta la vista, Mima”, digo eu, imitando um personagem de um velho filme
do Ahnuld.
Pouso o auscultador e fico a pensar alguns minutos acerca do que poderá
manter a minha filha tão ocupada que nem possa telefonar ao pai para o
cravar. Não é nada certamente. Deve ter achado que seria mais fácil pôr a
mãe a fazer de intermediária; se é que não foi mesmo ideia da Mima fazê-lo.
Enfim, se tudo correr como espero, as coisas não passam daqui. Como exigi
que fosse ela a telefonar-me, o cravanço passou subitamente a ter sabor de
obrigação e deixou assim de ter qualquer piada. Acho que vai acabar por
descobrir que pode perfeitamente dar o braço ao padrasto ou a qualquer um
dos irmãos da mãe.
Saio do gabinete, atravesso novamente o átrio sem que, desta vez, alguém
me chame, e saio para o patamar onde dou de caras com o Jorge Pizarro de
Almeida que vem a sair da cabine do elevador.
“Como está, Jakez? Bem, espero!”, pergunta, como sempre muito formal.
“Bem obrigado. E o Jorge? Já não o via há uns dias, tem estado fora?”
“Sim, fui a Madrid com um cliente por causa de, rhmm, uma herança”, afirma, com
uma pequena hesitação.
“Ah, espero que tudo se tenha resolvido a contento”, digo, sem prestar muita
atenção, mais interessado em ir almoçar do que em fazer conversa. “E agora,
se me dá licença, vou aproveitar o elevador para ver se vou almoçar.”
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“Aproveite, aproveite.” Abre-me a porta com uma expressão que parece de
alívio, um gesto que se diria um floreado de teatro, mas que é usual num
personagem conhecido pela sua exuberância e formalismo exagerado.
Agradeço-lhe, entro para o elevador e carrego no botão do rés-do-chão.
A cabine tresanda a Eternity. O Jorge hoje deve ter despejado um frasco
inteiro na água do banho. Aguento o melhor que posso o lento percurso de
cinco andares que me separa da entrada do prédio, abro a porta exterior num
repente e dou de caras com uma advogada que tem escritório por baixo de
nós. Murmuro um bom-dia apressado enquanto seguro na porta para ela
passar e ainda penso adverti-la do cheiro intoxicante que enche a cabine, mas
depois mudo de ideias. Pouco me importa que ela pense que sou eu que
tomo banho em Eternity; a tipa nem respondeu aos bons-dias que lhe dei e,
afinal de contas, até tem sorte, ele podia ter-se peidado.
Saio do prédio e viro à esquerda em direcção à praça de Londres, pensando
que deveria ir a caminho do ginásio para mais um treino, mas não. Em vez
disso, subo a Guerra Junqueiro até ao cimo, atravesso a rua e entro na
Mexicana, que nesta altura está a abarrotar de gente que faz o mesmo que eu
gostaria de já estar a fazer. Mas há uma pequena bicha à porta de passagem à
sala interior e parece não haver um lugar disponível. Disfarço o meu
aborrecimento o melhor que posso e preparo-me para fazer meia volta,
quando vejo que um dos empregados faz sinal na minha direcção,
apontando para uma mesa vazia meio escondida por uma coluna. Confirmo
que é para mim e dirijo-me para lá.
“Boa tarde, sôtor, tem aqui uma mesinha à sua espera. Como vi que tardava guardeilhe um lugar.”
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Vou para agradecer ao homem mas não consigo lembrar-me do nome dele.
Fico-me por um „muito-obrigado-senhor...‟ em tom decrescente até ao
inaudível e por um aceno de cabeça, e sento-me na cadeira que ele já afastou
da mesa. Para dizer a verdade, não percebo por que razão diz que me
guardou a mesa, não é que venha aqui todos os dias religiosamente. E hoje
até nem era suposto ter vindo de todo. O mais provável é que se tenha
enganado na pessoa, mas como já estou sentado, deixo-me estar.
“Ora então, o que vai ser hoje, sôtor? O prato do dia é espetada de lulas com
camarão, acompanhada de batatinha nova cozida, mas também temos tudo o resto
que vem na lista, se o sôtor quiser fazer o favor. Se me disser o que vai beber, eu vou
tratar disso enquanto o senhor se decide.”
Peço-lhe uma caneca, e fico a olhar para a lista de nomes de pratos. Mas nada
parece realmente atrair-me a atenção. Acho que tenho demasiada fome para
pensar direito, por isso decido-me pelas lulas – como é o prato do dia devem
trazer-mo mais rapidamente.
Entretanto, o empregado chega com a caneca e os costumeiros pratos com
petiscos, e hoje não resisto. Em poucos minutos, despacho o pão quase todo e
faço desaparecer metade dos patés. O tipo regressa com a espetada mesmo a
tempo de impedir que o último boião cumpra o fim que lhe parecia
destinado desde que assentou a base na minha mesa.
Mais sossegado, ataco a espetada com apetite em vez de apenas a engolir,
esfomeado como estava e dominado pela irritação, como as conversas com a
Mima acabam sempre por me deixar.
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Divorciados há quase seis anos e ela consegue, ainda, dar-me cabo dos
nervos! Aliás, creio mesmo que o efeito é pior agora do que antes. Talvez por
ela
estar
a
tornar-se
cada
vez
mais
“tia”
e,
por
isso,
ser-me
consideravelmente mais difícil perceber o que foi que tivemos em comum. E
isso irrita-me. Sempre foram onze anos, ou melhor, treze, se contar com os de
namoro durante a faculdade, e treze anos são muito tempo; demasiado
tempo, para um dia se acordar ao lado de uma pessoa que quase não se
conhece e que nos diz que precisa de espaço para si mesma.
Mas talvez não tenha sido assim tão repentino. Talvez os sinais lá estivessem
desde o início; estariam certamente, eu é que não fui capaz de os ver, de tão
assolapada que era a paixão. Mas no fim nada mais ficaram do que cinzas
frias e um sabor amargo na boca. E os dois miúdos, claro. Que, ainda por
cima, não me ligam mesmo a ponta de um corno.
Que merda! Mas por que raio atendi o telefonema? Às vezes parece que me
esqueço de pensar.
Para desanuviar, passo os olhos pela sala, cheia de comensais que se
abastecem antes da segunda metade do dia. Alguns creio que reconheço,
outros nem por isso. A cacofonia de uns e outros, porém, é muito uniforme.
Um burburinho contínuo e indistinto, que misturado com o tinir dos talheres
e com o estalejar dos pratos e dos copos, como que cria uma muralha de
ruído e me faz sentir que uma campânula se elevou à minha volta,
preservando estranhamente alguns metros cúbicos de silêncio.
É interessante observar assim as pessoas. Estudá-las enquanto conversam,
vendo mexer-lhes os lábios e alterar as expressões do rosto, sem, no entanto,
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ouvir o que dizem. Como um filme cuja parte sonora fosse apenas ruído de
fundo.
Ali está um parzinho que discute. Ela está com ar infeliz e ele com uma cara
sisuda. Mais adiante, dois tipos que estão certamente a falar de futebol; com
aquela energia toda não se discute nenhum outro assunto, nem sequer
política, hoje em dia. Para o lado da porta está uma mesa de raparigas que,
pelo ar conspiratório, gestos e risinhos comprometidos, devem estar a
discutir os atributos dos namorados umas das outras. Entretanto, vejo
levantar de rompante a metade feminina do par que primeiro me atraiu a
atenção. Parece não ir nada satisfeita. Ele faz um gesto tímido para a
alcançar, que quase imediatamente disfarça para um pentear de cabelos,
encolhe os ombros e sorri para consigo mesmo com ar satisfeito, ao mesmo
tempo que faz sinal ao empregado para lhe trazer mais uma bica.
Sigo a rapariga com os olhos enquanto ela se dirige para a saída e apercebome de alguém que acena, uma silhueta mais alta entre outras que esperam
lugar para almoçar, recortadas a negro na claridade que vem de fora. Não
registo imediatamente que os acenos são para mim, com a sala cheia, os
sinais podem facilmente ser para outra pessoa, mas quando oiço chamar o
meu nome, reconheço a voz e correspondo levantando a mão.
O Leonel vai passando com dificuldade de mesa a mesa; os espaços deixados
não foram pensados para alguém com quase dois metros de altura e
arcaboiço de culturista. Entre „com licenças‟ e „perdões‟ abre, lenta e
cuidadosamente, caminho na minha direcção; um tipo bem vestido e com ar
arrogante, que tem passado o tempo a tentar impressionar a sua
companheira de mesa, ainda pensa em reclamar contra quem, tão
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inoportunamente, lhe perturbou a refeição com a sua passagem, mas ao
voltar-se de rompante vê o tamanho da figura, engole em seco, e torna a
meter o nariz no prato, para divertimento da acompanhante.
O grupo de raparigas segue o Leonel com olhares mais do que interessados,
e ele, que nunca foi de se fazer negado, pisca-lhes o olho; o que
imediatamente faz com que elas se façam ofendidas e finjam não lhe ligar
nenhuma, continuando, porém, a observá-lo disfarçadamente enquanto se
dirige para mim.
Vem nitidamente satisfeito consigo mesmo, o sorriso de orelha a orelha a
contrastar com o tom sombrio do fato cinzento-escuro, que é o quase
uniforme dos empregados do BTP.
“Como me descobriste?” pergunto-lhe quando chega perto de mim.
“Fui ao teu escritório e a serigaita dos telefones disse-me que tinhas acabado de sair
para almoçar, e bom, aqui não há muito mais por onde escolher. Então, bem
disposto?”
“Não, para te dizer a verdade, nem por isso, pá. Quando já ia a sair telefonou a
Mima e eu fiz a asneira de atender.”
“E a conversa aborreceu-te?” Perante a minha anuência, ele continua. “O que
queria ela, desta vez?”
“Ela nada. Desta vez tratava-se de um cravanço por procuração. Vinha pedir-me que
acompanhasse a Catarina ao baile das debutantes. Aparentemente, é de bom-tom que
as meninas sejam levadas pelos pais, mesmo que já divorciados das mães e de todo
desligados do acontecimento.”
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“E tu aceitaste?”
“Ainda não. Disse-lhe que se a Catarina quer que eu a acompanhe ao baile, vai ter de
ser ela mesma a pedir-mo.” Ele concorda com um aceno de cabeça. “Tu
conheces-me, pá. Apesar das circunstâncias, haverá poucas coisas que eu não faça
pelos meus filhos – mesmo aturar um salão cheio de debutantes e dos respectivos
progenitores – mas acho que tenho direito a ser cravado com alguma gentileza, não te
parece?”
“Sem dúvida, sem dúvida. E o que achas, ela vai pedir-te ou não?”
“Nâ, agora deixou de ter piada. Vir falar comigo nestes termos, deixa de ser um
cravanço para passar a ser um pedido a sério, o que a colocaria numa posição de
dependência, por mais desinteresse que ela quisesse aparentar. Por mim, acho que vai
preferir ser acompanhada pelo lorpa do padrasto ou por um dos tios, a ter de falar
comigo. O que significa que, pelo menos não vou ter de aturar aquela estucha do
baile.”
“Mmm, acho que estás enganado. Quando é o baile?”
“Daqui a pouco mais de um mês. Porquê?”
“Só para saber. Com essa antecipação toda, ela não precisa de desencantar ninguém
às pressas para ter acompanhante. Eu acho que ainda te vai telefonar.”
“Nâ, não acredito”, digo eu, não querendo deixar passar a satisfação de me
sentir safo.
“Queres apostar?”
“É já. Quanto apostamos?”
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“Dez. E vai sacudindo as traças da casaca, porque vais precisar dela.”
“Hmpf! A ver vamos. Está apostado, que é para deixares de ser tanso! Mas,
mudemos de assunto, o que te traz por cá? Espero que não venhas à procura de
novidades, porque tirando estas, nada mais tenho.”
“Não estou assim tão desesperado que precise de vir ter contigo para saber novidades,
pá. Não, para o banco eu estou supostamente de visita a um cliente, mas apeteceu-me
mudar de ares e como sei que tu almoças por volta desta hora, resolvi dar um salto
até cá.”
“Tiveste sorte, realmente. Hoje atrasei-me um bocado por causa da Mima, senão já
me tinha despachado. Queres comer alguma coisa?”
“Não obrigado, eu estou entre refeições”, diz, com um enfático abanar de cabeça.
O Leonel segue normalmente uma daquelas dietas esquisitas e come a horas
mais esquisitas ainda, combinações de coisas que fariam desesperar qualquer
bom gourmet. “Mas, olha uma coisa, o que fazes sexta que vem?”
“Além de trabalhar, queres tu dizer?”
“Claro.”
“Não tenho nada programado, porquê?”
“É o teu aniversário, pá! Não sabes às quantas andas?”
“Sim, mas não estava a pensar fazer nada de especial. Mais um ano, menos um ano,
quem se importa? Eu sinto-me exactamente na mesma.”
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“‟Tá bem, ‟tá bem, a tua conversa já eu conheço, mas isso não quer dizer que acredite
no que tu dizes. Os aniversários foram feitos para serem comemorados, e este
garanto-te que o vamos comemorar condignamente. Afinal, não é todos os dias que se
fazem quarenta e cinco anos!”
“E o que queres fazer para celebrar? Mergulhar do tabuleiro da ponte, ou outra coisa
igualmente idiota?”
“Não, nada de tão trivial”, diz com uma expressão enigmática, que me faz
pensar que talvez seja mesmo boa ideia ficar em casa. “Vamos fazer uma
festarola que te vai deixar de pantanas, tu vais ver.” É disso mesmo que eu tenho
medo. Mas não lhe digo nada, limito-me a olhar para ele com ar infeliz.
“Não fiques assim, pá. Vais ver que gostas. Olha cá, há quanto tempo é que tu não
vais prós copos a sério? E não me refiro à garrafa de aguardente que bebemos em
minha casa no mês passado, porque essa foi a dividir por quatro.”
Penso por um bocado, mas não consigo recordar-me. Nunca fui de grandes
bebedeiras, porque acabo sempre por ficar enjoado muito antes de ficar
bêbado, e isso tira o gozo todo ao exercício.
“Vês, nem sequer te consegues lembrar. O que quer dizer que está na altura de
refrescares a memória. Ora bem, eu sei exactamente a melhor maneira de o
fazermos.”
E começa a explicar-me os planos para um jantar e noite de borga que tem
em vista para a celebração conjunta dos nossos aniversários, porque „sempre
são noventa anos, meu, e isso tem de ser devidamente celebrado...‟ Acho que
o que me assusta é a diferente valoração que damos à palavra „devidamente‟,
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porque no caso do Leonel essa valoração inclui, necessariamente, uma série
de excessos e, provavelmente, todos ao mesmo tempo.
“Vamos jantar a um novo restaurante que abriu na vinte e quatro de Julho! É o sítio
ideal para começarmos a noite. Ouvi dizer que os pratos são bons, as empregadas
melhores e, nota bem, andam quase despidas. Além de que, a música ambiente é tão
alta que vai parecer que estamos a jantar numa discoteca!”
“Iá, fixe, meu!”, digo eu, tentando imitar um adolescente num qualquer
anúncio de refrigerantes. “Mal posso esperar. E, diz-me, ó grande organizador, o
que sugeres que façamos a seguir?”
“A etapa seguinte é „A Gata Perfumada‟, o melhor clube de strip da penìnsula. Ali
mesmo na doca de Santos. Esquece tudo o que viste nos outros, neste é tudo melhor.
A decoração, as miúdas, tudo!”
“Ah, bom, se assim o dizes. Mas a mim falta-me ponto de comparação. Sabes, o strip
não me dá grande tusa, especialmente quando feito por desconhecidas que se estão
nitidamente a borrifar para mim, por isso, nunca achei que valesse a pena ir perder
tempo a um sítio desses... Enfim, se fazes muito empenho, não vou ser eu a estragar a
festa.”
“Quarenta e cinco anos e virgem. Hah! Elas vão adorar-te. Vais sair de lá
convertido, acredita em mim.”
Parece-me difícil, mas não quero deitar por terra as suas ilusões, por isso
ponho no rosto uma expressão que pretendo que signifique „quem sabe‟, mas
que, se calhar, significa outra coisa qualquer. O que quer que ele veja nela,
não parece afectá-lo.
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“Onde vamos passar o resto da noite vai depender da sorte que tenhamos nesta
segunda etapa. Mas nisso, meu caro, já é cada um por si...”
Pois sim. Supondo que eu estava de todo interessado, teria de estar
desesperado e sofrer de ilusões para pensar que poderia sacar uma striper.
Ora, eu não estou nem uma coisa nem outra, e tão pouco sofro de ilusões. O
Leonel também não, mas gosta de fazer estas fitas. Desde que o conheço, e já
lá vão uma data de anos, que é assim. Um gajo acaba por se habituar; ainda
que, às vezes, seja preciso fazer um esforço.
“Olha lá, pá, e quem mais é que estavas a pensar levar nessa pequena excursão?”
“Pouca gente. Estas coisas não têm tanta piada quando o grupo é de mais de dez. Da
minha parte, vou convidar apenas o pessoal do costume que, aliás, estás farto de
conhecer. E tu?”
Sinto-me apanhado de surpresa. Quem realmente é que eu poderia ou
gostaria de convidar para celebrar comigo o meu aniversário? Tirando o
Leonel, claro. Não me vem à mente ninguém. Conheço imensa gente, entre
colegas de profissão, ex-namoradas e relações que se deixaram ficar após o
divórcio. Mas, os primeiros é melhor nem considerar, já chega ter de os
aturar durante o dia; das segundas só poderia convidar uma (isto supondo
que o quisesse fazer e que alguma estaria interessada em vir), e as terceiras,
bom, considerando que são conhecimentos a meias com a Mima, talvez não
me interesse que ela saiba se, com quem e onde, eu celebro, ou não, o meu
aniversário. Por isso...
“Acho que não vou convidar ninguém. Junto-me apenas ao teu grupo. A Tuuva
também vai?”
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“Não, claro que não, homem!”, atira-me como se eu tivesse dito alguma
parvoíce. “‟Tá-se mesmo a ver que o grupo é só de gajos, pá. E, de qualquer maneira,
ela não está cá, vai na quarta para Helsínquia, tratar dumas coisas dos negócios
dela.”
Enquanto falamos eu vou comendo e bebendo a cerveja. O Leonel olha para
mim com ar enjoado.
“Não sei como é que tu consegues comer essas porcarias todos os dias ao almoço”,
acaba por dizer.
Eu olho para ele por baixo das sobrancelhas e encolho os ombros.
“E o nível de colesterol, também não te interessa?”
“Ó Leonel, por amor de Deus, não me venhas com essas merdas outra vez, pá. É
claro que me interessa, e faço o possível por o manter baixo, ou até por o diminuir,
mas só quando isso não interfere com uma boa refeição. Como é o caso neste preciso
momento!”
“Bom, depois não digas que não te avisei. Os anos também passam por nós, Jaka, ao
contrário do que gostaríamos de pensar, por isso temos de ser mais cautelosos.”
Passa a mão pelos cabelos fartos, enquanto deita mais um olhar descarado e
faz novo „sorriso pasta de dentes‟ para a mesa das admiradoras, que
continuam a fingir-se desinteressadas por entre risinhos comprometidos.
Nenhum de nós dois mudou muito de cara nos últimos vinte anos, é o que
ele quer dizer. As rugas são poucas e os cabelos brancos inexistentes – no
meu caso, porque no dele, mesmo que sejam muitos dificilmente serão
vistos; a juba loura que lhe chega ao colarinho da camisa encarrega-se de os
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tornar invisíveis. No entanto, é bem verdade que nenhum de nós está a ficar
mais novo. Se a imagem que vejo no espelho todas as manhãs me poderia
fazer duvidar do correr do tempo, a duração das minhas memórias enquanto
adulto não me deixaria acreditar em tal fantasia. Tem-se a certeza que se está
a envelhecer quando se olha para trás e se vê uma tapeçaria urdida de
recordações que se estende por mais de vinte cinco anos de idade adulta.
Porém, ao contrário do Leonel, que parece determinado em manter uma
aparência juvenil durante o maior número de anos possível, eu procuro
apenas cuidar da forma e viver uma vida saudável; desde que nenhuma das
duas me impeça de fazer ou de comer coisas de que gosto, sempre que me
apeteçam. Posso parecer hedonista, mas quero que se lixe, descobri à minha
custa que se eu não o for, ninguém vai sê-lo por mim.
O Leonel continua a tentar dar-me conselhos sobre nutrição, enquanto
escolhe posições que mostram às suas mais do que juvenis admiradoras o
melhor de si. Mas eu pouco lhe ligo, o discurso não é realmente para mim,
trata-se apenas de mais uma forma de autopromoção para ouvidos
femininos. Sempre o mesmo, este gajo!
É o único amigo que me resta dos tempos da escola. Ou talvez seja melhor
dizer, o único verdadeiro amigo que me resta, pois sei que posso contar com
ele para tudo em quaisquer circunstâncias.
Conhecemo-nos com catorze anos, quando fomos parar à mesma turma, e
começámos logo a dar-nos bem, naquela forma única de se darem bem que
podem ter os relacionamentos entre dois rapazes com interesses comuns.
Fizémos o resto dos anos da Secundária sempre na mesma turma e fomos os
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dois voluntários para o CIOE de Lamego logo que acabámos o décimosegundo; dois rapazolas de dezoito anos com pressa de pôr rapidamente a
tropa para trás das costas e vontade de o fazer com estilo. Passámos por
muitas coisas juntos, durante o tempo de serviço e depois de termos saído, e
isso foi cimentando a amizade que nos une há já mais de trinta anos, até hoje
poder dizer, com segurança, que posso contar com ele para tudo.
Mulherengo incorrigível, o Leonel nunca teve namorada fixa e sempre
mudou de umas para outras – mantendo, por vezes, várias ao mesmo tempo
– com a mesma facilidade com que eu mudo de roupa interior. Mas porque é
daqueles tipos que parece ter um charme irresistível, e sempre tratou bem as
namoradas, nunca nenhuma se chateou com ele e, ao que sei, mantém boas
relações com muitas delas.
Poder-se-ia pensar que o ter conhecido e casado com a Tuuva, aqui há perto
de sete anos, depois de um romance relâmpago que deixou todos os que o
conhecem de boca aberta, teria significado uma alteração radical de
comportamento, de D. Juan para marido fiel, mas não. Ela não se importa
nada com as escapadelas do marido e até parece ser a primeira a
desencaminhá-lo, o que faz com que ele a traga nas palminhas e tenha por
ela uma paixão avassaladora, que não parece estar em vias de diminuir. Ele
há mesmo gajos que nasceram com o cu virado para a lua, como se costuma
dizer.
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25
Saio do escritório pouco depois das oito, pego na BMW, insiro o leitor digital
no compartimento à esquerda das baterias superiores, transfiro o som para
os auscultadores do capacete e atravesso a cidade para chegar à A5, que a
esta hora já não tem quase ninguém. Entro na auto-estrada com os primeiros
acordes de Got Me Under Pressure, dos ZZ Top, levo a moto aos duzentos e
mantenho-a perto disso durante quase todo o trajecto, sem ver aparecer o
Porsche da GNR, o que me deixa na saída de Cascais em pouco mais de duas
canções. Comparativamente, o percurso até à estrada do Guincho, pelo meio
do trânsito da hora do jantar das ruas traseiras de Cascais, parece demorar
uma eternidade.
Deixo a moto a carregar na garagem e apanho o elevador até ao apartamento
que comprei em segunda mão quando a Mima e eu nos divorciámos; uma
casa que, por vezes, me parece enorme, com os seus três quartos de dormir e
correspondentes casas de banho, salão e terraço, cozinha e sala de jantar, e
mais uma divisão que antes era um escritório e agora está forrada a estantes
cheias de livros e banda-desenhada. Dispo o fato-macaco de riscas
fluorescentes que a lei me obriga a usar, descalço as botas no átrio de
entrada, e atiro tudo para dentro do armário espelhado, juntamente com o
capacete. Pego no controle remoto e ligo o leitor de bobines em que está
colocada uma de quatro horas de jazz calmo e música de filmes que
recuperei da minha velha colecção de 33 rpm. No quarto livro-me do casaco
e da gravata, descalço as meias e atiro-as para o cesto da roupa suja na casa
de banho, enquanto vou de caminho para a cozinha tratar do jantar.
Faço uma salada com rúcola, alface, cogumelos frescos, fatias de presunto e
lascas de parmesão, que tempero com sumo de limão e umas gotas de azeite.
Tiro do frigorífico um compal de tomate, que abro e despejo para um copo, e
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ponho tudo numa bandeja, juntamente com os talheres, guardanapo e duas
roscas de pão espanhol, que entretanto pus a descongelar no micro.
Vou para o terraço enquanto Sidney Bechet toca os primeiros acordes de
Summertime, sento-me à mesa de pinho tratado, de modo a ficar com o mar à
minha frente, e como a salada calmamente, enquanto o Sol desaparece sob a
linha de água do horizonte. O calor que ainda resta do dia vai-se dissipando
na brisa que chega do mar, o que faz com que a temperatura nesta altura de
décimo andar esteja bastante agradável.
O crepúsculo provoca em mim uma sensação estranha, que me faz sempre
pensar que dura muito mais tempo do que na realidade dura. A primeira vez
que me lembro de ter acontecido foi quando era muito miúdo; foi durante
uma viagem de carro com a minha mãe, de Coimbra a Salamanca, e de ter
apanhado o fim do dia algures antes da fronteira. Eu ia sentado no banco de
trás do Renault 4 verde-claro que durante muitos anos foi o carro da minha
mãe, perdido de sono, cheio de fome e farto de não chegar a lado nenhum.
Porém, como não queria dar parte fraca, deixava-me estar calado e ia
apreciando a paisagem, que pouco a pouco se enchia de tons de cinzento –
com excepção do céu azul-bebé, pintalgado, aqui e ali, por farripas de
nuvens brancas, que nos tinha coberto durante todo o dia, mas que parecia,
agora, estar a evoluir para um tom azul mais escuro, igualmente uniforme
mas nem por isso mais interessante. Porém, nem todo o céu escurecia; a
estrada por que seguíamos e a velocidade a que íamos, pareciam fazer com
que a janela lateral traseira estivesse sempre em linha com o Sol que se
aproximava do horizonte e com a orgia de cores que se ia desenvolvendo à
sua volta. Durante o que me pareceu ser uma eternidade, vi o céu mancharse de rosa, laranja, vermelho, roxo e de rosa novamente, para depois repetir
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as manchas em tons cada vez mais escuros, até desaparecerem no manto
azul-cobalto, que acabou por se transformar em negro-azeviche, decorado
por um número sempre crescente de pontos brilhantes que a estrada mal
iluminada fazia resplandecer.
Tudo isto não durou mais do que dura qualquer outro pôr-do-sol, mas a
mim pareceu-me que nunca mais acabava. Acho mesmo que continuei a ver
o bailado de cores, muito depois de já ser noite cerrada e de já nenhum raio
de sol passar acima da curvatura da Terra. Esqueci-me que tinha fome,
esqueci-me que estava cansado, esqueci-me do sono que me provocava o
movimento do carro; naquele momento, para mim, nada mais existia além
daquele céu completamente novo que se me deparava à frente dos olhos.
Foi uma experiência fantástica, um momento mágico, que me deixou
apaixonado pelo crepúsculo. Desde essa altura, é o momento do dia em que
me sinto mais em paz comigo mesmo.
A Mima nunca o percebeu ou nunca o quis perceber. Talvez devesse ter visto
aí um sinal de que as coisas iam acabar mal, ou de que, pelo menos,
poderiam não correr tão bem quanto me parecia na altura, mas não estava
em condições de o fazer. Durante os anos que durou a nossa relação,
casamento incluído, mais nada via à frente do nariz. Agora pergunto-me
como o pude fazer, mas a verdade é que, durante todo esse tempo estive
cego e surdo para o que se passava à minha volta, convencido que o amor
que sentia era retribuído. Pensei sempre sinceramente ser amado por ela,
mas agora acho que talvez nunca o tenha sido realmente.
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A voz de Billie Holiday a cantar Blue Moon, entra-me, inesperadamente,
pelos ouvidos, ou talvez me chame apenas mais a atenção do que a canção
anterior.
Preparo lentamente um cachimbo com Rhon Saint-Malo e uma pedrinha
escura do libanês que um conhecido dos anos da faculdade me oferece de
vez em quando, em memória de outros tempos, e deixo que os vapores do
haxixe levem com eles a arrelia em que me deixou o telefonema da minha exmulher.
Como é que uma coisa que começou tão bem pode ter acabado tão
estupidamente? Já mo perguntei mais vezes do que seria honroso admitir,
mas sempre sem encontrar uma resposta.
Ou melhor, a resposta conheço-a bem, o que não quero é aceitar que possa
sê-lo.
Quando olho para trás, da objectividade que a separação e distância no
tempo me oferecem, consigo ver claramente quão enganado vivi todos
aqueles anos. É ao recordar as nossas conversas, as suas reacções e
comentários, e a distância que a partir de certa altura parecia ir pondo entre
nós que fico com a impressão de ter sido pouco mais do que um
instrumento, utilizado por ela para atingir fins muito seus, estabelecidos
desde muito cedo – ainda que de forma inconsciente, porque não a creio
cínica ao ponto de nunca ter sentido qualquer coisa por mim.
Inconscientemente, ou não, no fim nada mais fui do que um peão nas
guerras entre ela e a mãe; uma peça a ser usada e convenientemente
sacrificada quando deixou de ser útil.
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Para dizer a verdade, porém, o que mais me chateia, não é o ter sido usado, é
o facto de nunca ter percebido o que se estava a passar até ser demasiado
tarde. Enfim, mesmo que tivesse acordado mais cedo, de pouco teria servido;
a decisão de me deixar e as razões para o fazer foram dela e só dela, nada
que eu pudesse fazer a teria feito mudar de ideias.
Olhando para o nosso relacionamento de forma desapaixonada, que é
precisamente o que sempre me foi difícil, pareceria ser de concluir que a
Mima nada mais fez do que servir-se de mim enquanto lhe dei jeito. Depois,
pôs-me um par de patins e disse-me que precisava de espaço para si. Que
pouco tempo depois do divórcio tenha reconsiderado e oferecido esse
mesmo espaço ao lorpa que é agora marido dela, mais ainda levaria nessa
direcção; especialmente sabendo que ele, ao contrário de mim, nunca seria
rejeitado pela família e pelos amigos dela, o que convém a uma Mima cada
vez mais tia e interessada numa vida de jet-set para a qual eu sempre me
estive marimbando.
Quero com isto dizer que, afinal, a mulher por quem eu julguei ter estado
apaixonado durante tantos anos é capaz de não ter existido. Fui apenas uma
ocupação passageira da Mima real, que é a que hoje se dá a conhecer; servi
para marcar uma posição contra o que lhe era exigido pela família e
especialmente pela mãe, uma espécie de última birra antes de atingir
finalmente a idade da razão, se assim se quiser ver a coisa, e depois fui
descartado como uma qualquer embalagem vazia.
Que houvesse dois filhos dos anos que estivemos juntos, pouca ou nenhuma
importância parece ter tido para a decisão de se separar de mim. E pelo que
posso concluir dos comportamentos deles nos anos que entretanto se
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seguiram ao divórcio, tampouco parecem sentir a minha falta. As desculpas
para não quererem estar comigo foram-se sucedendo ao longo dos anos,
assim como foi crescendo a frieza de trato e o distanciamento nas poucas
vezes que ainda nos fomos vendo. Meros conhecidos somos hoje, gente que
se encontra para almoçar num qualquer restaurante, sempre a um dia de
semana, entre as aulas da manhã e a sessões de estudo da tarde do colégio
privado e chique de são-artolas-qualquer-coisa, para onde vão todos os
meses os dois mil e quinhentos euro da minha parte. Sítio onde eu nunca os
teria posto se alguém me tivesse perguntado alguma coisa. Mas ninguém
perguntou, e o tribunal encarregou-se de confirmar que ninguém tinha nada
que me perguntar.
E agora a mais nova parece querer iniciar alegremente a fase do tirocínio
para tia, “apresentando-se”, entre folhos e rendas, a uma sociedade que está
farta de saber quem ela é, de onde vem, e para onde vai, a julgar pelo
exemplo da mãe.
Enfim, e o que posso eu fazer contra isso? Nada, niente, rien de rien. Se é
mesmo isso que ela quer, que siga em frente. Se tiver coragem para mo pedir,
até lhe faço o favor de a acompanhar.
Por mais que possa pensar que gostaria de o fazer, a verdade é que não
consigo afastar-me deles. Que eles se queiram afastar de mim, é-me
indiferente. Não vou por isso deixar de tentar ser pai deles ou começar a
comprar-lhes o afecto com dinheiro ou presentes, e não vou deixar de estar
aqui quando ou se precisarem de mim – mesmo que seja para lhes dizer que
não ou para lhes fazer a vida ligeiramente mais difícil, como com esta
história do baile da Catarina.
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O haxixe começa a fazer efeito e estas questões parecem subitamente perder
toda a sua importância. Imagino a Mima daqui a vinte anos, com o seu cada
vez mais cerrado sotaque de senhora de bem, sempre de festa em festa com o
lorpa a reboque, ele ainda mais careca e com o crânio luzidio da brilhantina
que usa para puxar os cabelos para trás, pensando, certamente, que fica com
ar de matador, quando afinal só lhe aumenta o ar de parvo. Imagino-o ao
volante do Grand Cherokee verde-escuro em que costuma transportar-se,
sumido na profundidade do assento, quase apenas com a cabeça de fora mas
sem perder os ares importantes que sempre se dá e que lhe servem para
engatar gajas nos clubes e restaurantes de que é dono. E começo a rir. Rio-me
desalmadamente, como por vezes acontece quando fumo, passando
arbitrariamente de cena para cena como num filme desconexo, seguindo
uma qualquer sequência aleatória, para a qual só o meu inconsciente tem a
chave. E vou rindo sempre, uma gargalhada atrás da outra, até me doerem
os abdominais de tanta contracção e descontracção seguida.
A custo, consigo controlar-me – não sem antes ter tido uma recaída ou duas
que me forçaram a agarrar as costas da cadeira para não me rebolar no chão
– e levo a bandeja com os pratos para a cozinha.
Lavo a loiça ainda entre pequenos ataques de riso, mas quando vou para a
casa de banho já tenho as coisas sob controle. Sinto-me apenas
estranhamente liberto do estado de meia depressão em que o telefonema
desta manhã me tinha deixado. Rir é realmente um dos melhores
tratamentos que conheço para todos os tipos de neura.
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Os dois dias do fim-de-semana passam-se sem grandes novidades. No
sábado de manhã vou ao ginásio e faço uma aula de spin com uma tipa
muito acelerada que deve ter vindo directamente da discoteca para ali.
Cinquenta minutos de tspum-tspum-tspum-pum-pum-tspum-tspum-tspumpum-pum, com a bicicleta no máximo são mais do que suficientes e resolvo
não fazer a minha sessão de pesos e halteres. Arrasto-me até casa onde passo
o resto do dia no terraço a reler “Os Maias” à sombra do toldo ou a apanhar
sol com ele enrolado.
No domingo acordo com a ideia fixa de ir ao cinema, pego na moto e saio de
casa pouco antes das nove, vou ao super comprar um jornal para ver o que
está em exibição, meto-o na mala da moto sem o ler e depois sigo novamente
pela estrada do guincho em direcção a Sintra. Passo pelo Cabo da Roca, onde
já começam a chegar os tipos das Harleys, para a sua sessãozinha semanal de
vaidade comparada – francamente, não sei o que eles vêem nas motos; são
caras que se fartam, têm motor a gasolina, não andam depressa e nem sequer
são confortáveis. Além de que, cada bisarma daquelas deve pesar à volta dos
trezentos e muitos quilos. Não, não é coisa que me interesse.
Chego a Sintra antes das dez, altura em que poucos habitantes já saíram à
rua, e os autocarros de turistas ainda vêm a caminho, estaciono a moto no
largo e entro na igreja pequena onde há pouca gente, como é costume. Sentome num banco das traseiras, mergulhando assim na escuridão e no silêncio,
quebrado apenas pelo ocasional surto de tosse em surdina que, de quando
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em vez, sacode os presentes, e deixo-me envolver pela paz que parece
exsudar de todas as fendas nas paredes da casa multissecular.
Só reparo que a missa começou quando sinto aumentar ligeiramente o nível
do ruído; o padre que aqui vem opta sempre por não usar o microfone, como
que não querendo ele também perturbar demasiado o silêncio e a paz que
nos rodeia. Em pouco mais de vinte e cinco minutos estamos nas despedidas;
a missa a esta hora matinal de domingo ainda não é um acontecimento
social.
O padre passa, apressado como sempre, pelo banco onde eu ainda estou
sentado e cumprimentamo-nos com um aceno de cabeça. Terá talvez mais
uns dez anos do que eu e é um daqueles homens que fez muitas coisas antes
de finalmente decidir vestir a sotaina. Foi soldado primeiro e, diz-se à boca
pequena, mercenário depois; e quando já padre foi capelão em Lamego, onde
eu acabei por o conhecer, numa reunião da associação. Voltei a encontrá-lo
aqui, totalmente por acaso, depois de me separar da Mima, quando, por
acaso também, entrei na igreja à procura da calma que não sentia dentro de
mim, e desde então tenho passado a vir à missa aqui.
Deixo-me ficar durante algum tempo mais, até a igreja se esvaziar
completamente, mas saio antes de começarem a chegar as pessoas que vêm
para a missa do meio-dia, dita por um padre com um passado menos
esdrúxulo, a gente mais interessada em ver e ser vista do que em prestar
realmente atenção ao que é dito.
Atravesso o largo e sento-me na esplanada do café, peço um sumol de
ananás e passo finalmente os olhos pela página de cinema do jornal. Os
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multiplex e os filmes pipoca ocupam noventa e nove por cento da página;
doze a catorze salas por cinema, às vezes o mesmo filme em duas ou três,
sem que em nenhuma delas haja nada em que valha a pena gastar doze euro.
Estou quase a desistir e a pensar voltar para casa e para o Eça de Queiroz,
quando reparo no anúncio para um cinema que já julgava fechado e
transformado em banco ou templo evangélico. Integrado no ciclo grandes
bandas sonoras – ainda há quem faça disto fora da cinemateca? – com o
atractivo adicional de ver dois pelo preço de um, hoje a partir das três “The
Year of Living Dangerously” de Peter Weir, com música de Maurice Jarre, e
“Blade Runner – The Final Cut” de Ridley Scott, com música de Vangelis, leio
em letra miudinha no fundo da página. Assim sim, penso para comigo.
Reparo que a bilheteira abre à uma e, com receio que haja bicha para
comprar bilhete, pago o sumol, volto a pegar na moto e parto em direcção a
Lisboa pelo IC19.
Chego com bastante tempo de sobra e estaciono no Saldanha, para dar uma
vista de olhos pelos saldos de uma das discotecas na amálgama de centros
comerciais da praça, em que encontro, por vezes, coisas com interesse.
Saio meia hora mais tarde, após ter pago um preço mais do que módico por
um saco cheio com música dos Beatles, Kraftwerk, Bowie, Metallica, Eagles,
U2; colectâneas de New Wave e de Heavy Metal; uma colecção de música
francesa, do pós-guerra até ao fim dos anos setenta; e a banda sonora de
“Blade Runner”, como se ouve no filme, tocada por Vangelis. Tudo coisas que
tinha em lista à imenso tempo, que provavelmente nunca chegaria a
comprar, não fosse o acaso ter-me trazido hoje aqui, com tempo de sobra
antes da abertura da bilheteira.
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Era-me absolutamente necessário comprar isto tudo? Não. Mas quando o
preço é assim tão convidativo é-me difícil resistir. Vem-me à ideia uma
história do Tintim, em que este sai carregado com uma série de coisas inúteis
da loja do Oliveira da Figueira, distinto comerciante português nas Arábias,
só porque talvez um dia possa precisar delas; mas logo afasto a imagem por
me parecer que não se aplica a mim...
Compro o bilhete mal a menina abre o guichet e vou almoçar a um tailandês
na avenida de Berna, enquanto espero pelas três.
Os filmes são projectados sem interrupção, com um intervalo de meia hora
entre os dois. Não está quase ninguém na sala, à primeira vista a maior parte
dos presentes parece ter mais de trinta anos ou são mais velhos que eu, com
excepção de dois casais de miúdos que saem a meio do filme de Peter Weir,
duplamente aborrecidos por não haver pipocas e bebidas para comprar, e
talvez por não reconhecerem como cinema um filme não feito com a estética
e o ritmo de um teledisco.
No início do intervalo, quando descemos ao salão, cria-se algum embaraço,
fruto talvez de já nos termos desabituado de intervalos e de sermos apenas
um pequeno grupo de doze pessoas encostadas quase em molho ao balcão
do bar em frente à máquina do café, que nos vai mantendo abastecidos de
bicas, pingados e cariocas de limão. As prateleiras que emolduram um cartaz
advertindo que é proibido fumar nos termos de um decreto-lei qualquer, têm
apenas uma reduzida selecção de chocolates e guloseimas. Uma rapariga
pede lume ao casal simpático que está à minha direita, mas eles não têm e eu
por acaso até tenho um isqueiro no bolso do blusão, que não funciona, o que
dá azo a que a rapariga que está à minha esquerda com uma amiga vasculhe
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a carteira para ver se encontra um isqueiro, que não aparece, enquanto a
outra se ri e lhe diz qualquer coisa que não percebo. Até vir da outra ponta
do bar um senhor mais velho, cachimbo na boca e um Dupont de ouro na
mão, com ar de usado e de ter pelo menos mais vinte anos do que eu – o
Dupont, não o velhote – com que acende, finalmente, o cigarro da primeira
rapariga por entre vivas e gargalhadas, perante a completa indiferença do
empregado, suposto garante da proibição legal. Depois há mais gente que,
aproveitando o que parece ser o único isqueiro disponível, puxa dos cigarros
e dos charros, e eu acabo também por tirar o cachimbo do bolso e por o
encher com tabaco. Entretanto, a minha vizinha encontra finalmente o
isqueiro, o que dá origem a nova ronda de vivas e de exclamações.
Pouco depois, já toda a gente fala com toda a gente, apreciadores de cinema
que todos somos, os mais de nós vindos ao chamariz de um pequeno
anúncio no canto inferior esquerdo de uma página de jornal.
O tom geral de conversa é de surpresa pelo ciclo, que se iniciou sexta à noite
com “2001 – A Space Odissey” e “A Clockwork Orange”, e que vai durar até ao
fim da semana. Só o casal de velhotes do isqueiro tinha tido conhecimento
antecipado do mesmo e sabiam ontem à noite o que iam fazer hoje à tarde.
As raparigas à minha esquerda parecem ser estrangeiras, a julgar pelo
sotaque, e vão dizendo ao casal com quem conversam que acham muito
louvável que ainda haja quem faça este tipo de ciclos, repondo nos écrans
dos cinemas clássicos que aí merecem ser vistos. São as duas bastante
bonitas. Uma é ruiva, quase tão alta como eu, com cabelos compridos e lisos
que lhe chegam a meio das costas, e parece ser a que fala português com
mais desembaraço; a outra, a do isqueiro, é bastante mais baixa, terá um
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metro e sessenta e cinco talvez, cabelos escorridos castanhos com tons de
folhas de outono, num corte arredondado que lhe chega abaixo das orelhas,
deixando-lhe a nu o pescoço longo e esguio. Têm aspecto de serem
estudantes universitárias, ou coisa desse género.
O casal simpático à minha direita é do Porto e deviam já estar de caminho de
regresso, mas receberam o jornal com o pequeno-almoço no hotel em que
ficaram, e decidiram adiar a partida por umas horas. São pouco mais novos
que eu, e conheceram-se na estreia de “Blade Runner”.
No fim da sessão, quando saímos, há um momento de indecisão em que
ninguém parece querer ir-se embora mas não sabe o que dizer. Depois,
porém, o encanto desfaz-se e começa a debandada, ao som de despedidas
apressadas e frases de circunstãncia.
Uma vez sozinho, decido ir jantar a um sítio qualquer só para não regressar
já a casa, mas passo duas horas muito agradáveis num pequeno restaurante
brasileiro quase às moscas, numa das transversais da cinco de Outubro.
Faço o caminho de volta em velocidade moderada, embalado pelo ficheiro de
Vangelis que comprei hoje e que, entretanto, passei para o leitor. A Los
Angeles de 2019 tal como Ridley Scott a viu, acompanha-me ao longo de
uma A5 enevoada e com pouco trânsito, submersa na luz difusa das
lâmpadas amarelas cheias com um gás qualquer, que dão um ar irreal ao
trajecto.
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Estou no meu gabinete, com os auscultadores do leitor em cima das orelhas,
um disco do Stan Getz a servir-me de ruído de fundo, enquanto revejo notas
para um julgamento que deve começar hoje à tarde – supondo que toda a
gente aparece e que sua excelência, o meritíssimo, não decide adiar por uma
qualquer razão transcendente, como é infelizmente costume nestas coisas –
quando a Mónica, que é a secretária que tenho a meias com a Vera Perdigão,
bate à porta e, acto contínuo, abre-a ligeiramente, para depois meter a cabeça
pela fresta.
“Dr. Jakez, a sua filha está ao telefone”. Trabalha comigo há mais de dez anos,
sempre lhe pedi que me tratasse pelo nome, mas não há maneira. Diz que, a
princípio não lhe parecia bem, e que agora já não consegue vocalizar o meu
nome sem antes lhe pôr o título, como se eu na verdade me chamasse
qualquer coisa como, dôtorjáquess, que é como me soa a mim o que ela diz.
Pergunto-me porque é que veio bater-me à porta, mas depois reparo que
tenho o auscultador do telefone fora do descanso. Agradeço-lhe e digo-lhe
para me passar a chamada enquanto coloco o telefone em ordem. Ponho o
Stan Getz em pausa, passo os auscultadores para o pescoço e fico à espera
que o telefone toque, o que tarda menos que nada.
“Olá, Catarina. Estás boa?”
“Olá, pai. Sim, e tu?”
“Bem, obrigado”, digo eu, e ela nada mais, expectante ou porque não sabe
mesmo o que dizer a seguir.
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“Bom”, a pergunta, como vai a escola, vem-me aos lábios, mas tenho
subitamente receio que ela pense que estou querer saber demais e digo
apenas: “Então, o que te traz por cá?”, num tom que espero seja agradável e
descontraído.
“É que a mãe disse-me que querias falar comigo...” diz a voz meio sumida do
outro lado da linha.
Típico da Mima, agora sou eu que quero falar com ela!
“Não, filha, não é bem assim. A mãe telefonou-me aqui há uns dias, para me pedir se
eu te acompanhava a um baile, e eu disse-lhe que achava que devias ser tu a
perguntar-me. Só isso. Talvez seja bota-de-elástico, mas acho que não se deve pedir a
alguém para dançar por procuração”, digo, tentando ser engraçado, mas creio
que ela já nem me ouve.
“Ohhh, é sempre a mesma coisa! Mas porque é que ela foi falar contigo?! Eu nem sei
bem se quero ir à porcaria do baile! Ou melhor, acho que quero, mas sei lá!...” diz,
em crescendo de irritação, o maior número de palavras umas a seguir às
outras que lhe ouvi nos últimos meses. Depois cala-se e, passados alguns
segundos, ouço-a fungar.
“Catarina? O que tens?”
“... Nada, não é nada. É a minha alergia, está muito pó aqui”, diz, com voz de
quem não acredita muito que seja verdade.
Deixo passar sem lhe dizer nada. “Olha, mas voltando ao baile. Se decidires que
queres mesmo ir, e precisares de acompanhante, e quiseres que esse seja eu, eu posso
ir contigo. Mas, diz-me cá, porquê eu, porque não o marido da tua mãe ou um dos
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irmãos dela? Afinal, é com eles que tu vives e com os teus tios que tu convives mais,
não é?”
“Não! Tu é que és o meu pai, não ele!!” diz novamente irritada.
Eu nesta altura já não percebo nada. Esta reaproximação emotiva ao estatuto
de pai não meramente biológico não estava prevista. Porém, como não quero
que se irrite comigo também, sugiro:
“Ouve, filha, e se a gente se encontrasse para falar sobre isso tudo, o que te parece?
Só tu e eu, num sítio qualquer, para falarmos de vestidos e de outros acessórios para
bailes, o que achas?”
Nova fungadela e depois um “Está bem”, que parece vir do fundo de um
poço.
“Pode ser hoje à tarde?”, continua. “Depois das quatro?”
“Ahh, hoje...” penso nas expressões insultadas que o meu colega da
contraparte e o meritíssimo devem ostentar quando eu não aparecer à sessão,
e digo-lhe logo que sim. Vai ser preciso arranjar uma justificação qualquer,
mas que se foda. O desgraçado que eu defendo tem mais do que a razão toda
nesta história de loucos, e se não fosse a intransigência parva do senhorio há
muito que tudo poderia estar resolvido. Vai fazer-lhes bem terem de esperar
até ser marcada nova data. A minha filha é mais importante.
Depois de acertamos detalhes acerca do sítio, desligo. Vou pegar no telefone
para avisar o Miguel Cardoso, o cliente, que não posso estar presente ao
julgamento, na certeza de que ele não se vai importar nada, quando aquele
besoura baixinho.
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É a Mónica.
“Dôtorjáquess, é o Dr. Filipe Menezes.”
Filipe Menezes? Falai no diabo... Mau. O que este quer?
“Está bem, Mónica. Passe então a chamada, se faz favor.” Que chatice, logo havia
este gajo de me ligar precisamente agora.
“Saint-Hervé”, digo, ao sentir a linha aberta.
Pequeno silêncio consternado.
“Saint-Hervé, bom dia. Fala Filipe de Menezes. Passou bem, colega?”
Mmm, aqui há gato. Este importa-se tanto que eu tenha passado bem como
com o lixo que a empregada lhe deita fora todas as noites. E tão pouco é seu
costume perguntá-lo por delicadeza. O Dr. Filipe de Menezes, como ele gosta
de frisar, tem os olhos demasiado enfiados no umbigo para querer saber seja
de quem for além de si próprio.
“Bem obrigado, e você?”, respondo no mesmo tom distante. E logo a seguir:
“Mas diga-me, o que o posso fazer por si?” É sempre melhor ser quem faz as
perguntas do que aquele que tem de dar as respostas.
Ele não estava à espera. Mas, sacana experiente que é, não se vai abaixo.
“Bom, sabe, o caso que ambos temos entre mãos é bastante complicado.”
Complicado? Não tem nada de complicado. Se não fosse a casmurrice do teu
cliente e a tua vontade de lhe sacares tudo quanto possas, isto nem sequer ia
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a tribunal! Mas nada digo. Acho que estou a ver a direcção em que ele quer
levar a coisa e até nem me calha nada mal.
Como eu continuo calado, ele prossegue.
“Como dizia, creio que a natureza do caso, mais do que justifica que se tente
novamente um acordo entre as partes, evitando assim a morosidade de um
julgamento que se adivinha longo, não lhe parece, colega?”
Muito gosta este da palavra “colega”. Tenho vontade de lhe dizer o que se
diz na tropa, mas deixo passar. Em vez disso avanço com:
“Repare, da nossa parte sempre houve abertura para o diálogo e um eventual acordo
nunca foi realmente posto de parte, isto supondo, obviamente, que o seu cliente deseja
pôr fim às exigências descabidas que tem feito. É isso que está a sugerir? Houve
realmente uma mudança de atitude por parte do seu cliente?”
“Não, de forma alguma. O meu cliente está seguro da justeza do seu pedido e eu
concordo com ele. Não quis foi deixar de vir falar consigo mais uma vez, antes do
julgamento, para ver se, eventualmente, poderíamos chegar a um acordo. Veja que, a
posição do seu cliente, enquanto arrendatário, encontra-se bastante fragilizada de
acordo com a nova lei e vai ser-lhe muito difícil...”
E blah, blah, blah, por aí adiante. Deixo de o ouvir; este gajo é parvo, ou
então pior, tenta fazer de mim parvo. Desde quando é que o que está em
discussão tem alguma coisa a ver com a lei nova, a enésima de alteração ao
regime de arrendamento urbano nos últimos seis anos? O homem anda
nitidamente à pesca. Ligo o altifalante do telefone e deixo-o falar enquanto
vou organizando a agenda para os próximos dias.
43
“...além de que, a posição da doutrina e dos tribunais vai no sentido do nosso pedido.
Sendo assim, o veredicto será sempre mais gravoso para o seu cliente do que a
aceitação pura e simples do que lhe é exigido. Por uma questão de boa vontade,
estamos pois dispostos a requerer em conjunto consigo um adiamento do julgamento,
para que possam reconsiderar a vossa posição.”
Ora cá está ao que ele veio. Boa vontade, o tanas! Este tipo não
compreenderia o significado da palavra nem que o mesmo lhe fosse tatuado
no cérebro em tinta indelével. Sou capaz de apostar que ele não preparou o
julgamento e, por isso, quer que sejamos os dois a pedir o adiamento, para
poder parecer que quem pede sou eu.. Aliás, vou apostar mesmo. Assim
como assim, nada perco.
“Olhe, Dr. Menezes, agradeço-lhe a sua gentil oferta, mas não a vamos aceitar. Não
havendo alteração da vossa posição, o meu cliente está decidido a levar o caso até ao
fim através dos tribunais. Um adiamento nesta altura parece-me, sinceramente,
desnecessário.”
“...Bem, poois. Lamento que decida assim. Não quer consultar ao menos o seu
cliente?”, tenta ainda mais uma vez.
“Não. Creio conhecê-lo o suficiente para saber qual seria a sua resposta.”
“Enfim, a responsabilidade é realmente sua...” Faz uma pausa para ver se pega,
mas eu limito-me a ficar calado, forçando-o a dizer e a fazer o que de todo
não quer. “No entanto, tendo os melhores interesses do seu cliente em atenção, e
para que se possa dizer que do nosso lado tudo foi feito para o caso ser resolvido com
justiça, nós vamos, por nossa parte, requerer ao tribunal um adiamento da data de
julgamento, e depois voltaremos a falar sobre o assunto.”
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“Nesse caso, nada mais me resta do que agradecer-lhe novamente a gentileza. Fique
certo que transmitirei ao meu cliente o vosso gesto. Bom dia, Dr. Menezes.”
Desligo o telefone e rio-me que nem um perdido. Eu a pensar que ia ter de
faltar e afinal... palavra de honra, gostava de ver a cara dele agora! Ou
melhor ainda, gostava de a ver quando tiver de explicar ao embirrento do
cliente, a quem está certamente a sacar rios de massa, que o julgamento não
vai ter lugar hoje porque ele, Filipe de Menezes, não fez os trabalhos de casa
e nem se lembra o suficiente do caso para lá ir dizer duas larachas.
Risco o evento da agenda, tomo mentalmente nota de esperar pela marcação
da próxima data e depois ponho-o para trás das costas; não sem antes pensar
se devo ou não aparecer no tribunal. Decido-me pela negativa, tenho a
certeza que o Filipinho não volta atrás com a ideia do adiamento. Assim
ainda pode salvar face, culpa uma desgraçada de uma secretária que apagou
os documentos do computador ou um tarata de um estagiário que levou o
dossier para férias; mas se lá fosse e fizesse figura de urso não poderia culpar
mais ninguém a não ser ele próprio.
===================¤==================
Depois de matraquear a porta com as unhas, a Mónica abre-a ligeiramente e
diz:
“Chegou o senhor que tem marcado para agora.”
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Olho para ela por um momento sem perceber, depois pesco a agenda do
meio da confusão de papéis que esta manhã é o tampo da secretária e reparo
que tenho efectivamente uma marcação. Escrito com a letra redonda da
Mónica, está o nome de um tal Paulo Cunha, seguido de um parêntesis
envolvendo as palavras „multa de trânsito‟.
“Ó diacho; não me tinha apercebido desta marcação. Mas, quem é este senhor? Eu
conheço-o?”, pergunto, sabendo antecipadamente a resposta.
“Não, creio que não, dôtorjácquess. Mas pensei que estivesse a par. Quem fez a
marcação foi o Dr. Leonel, que me disse que depois falava consigo acerca do assunto.
Espero não ter feito mal?”
“Não. Claro que não, Mónica.” Sossego-a, pensando ser típico do Leonel,
marcar-me clientes sem me dizer nada. “Bom, vejamos, então, de que precisa o
homem. Faça o favor de lhe pedir para entrar.”
A figura que me entra pela porta é baixa, um tipo talvez com um metro e
setenta, com ar juvenil, de bigode e cabelos compridos atados num rabo de
cavalo. Traz a roupa descontraída de um estudante ou de quem parece não
estar em dia de trabalho.
Depois das apresentações, confirma que foi o Leonel que lhe falou em mim e
que se encarregou de marcar hora, porque ele queria reclamar de uma multa
que lhe tinham passado injustamente.
Fala-me de acontecimentos que se passaram perto de um ano e meio antes, e
de uma multa injustamente passada, por alegado uso do móvel durante a
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condução, por um polícia que não estaria, alegadamente também, no seu
estado mais sóbrio.
Diz que reclamou da multa logo a seguir e que, por nunca ter recebido
qualquer resposta, pensou que lhe tivesse sido dada razão. Por isso, ficou
extremamente surpreendido quando recebeu anteontem, uma notificação
para pagamento que, não só confirmava a multa, como a aumentava, apenas
por ter reclamado, dizendo que se consideravam provados os factos
descritos pelo agente de autoridade.
Diz que não compreende como podem considerar-se provados os factos,
quando só lá estavam eles os dois e os factos descritos na sua carta de
reclamação, os reais e verdadeiros segundo afirma, embora confirmassem
que tinha efectivamente um telefone na mão, para o colocar no suporte
enquanto parado num semáforo, não correspondiam em nada ao „uso do
telemóvel durante a condução‟.
E gostava de saber o que pode fazer, porque quer levar o caso até às últimas
consequências!
Eu observo-o durante alguns momentos, tentando perceber quem tenho à
minha frente. Pela cara dir-se-ia um tipo perfeitamente normal e não tenho
quaisquer dúvidas que esteja a dizer a verdade, no entanto, a história que me
conta é de uma ingenuidade e de uma inocência a toda a prova. Começo por
lhe pedir que me confirme se ia mais alguém com ele no carro, ao que ele me
responde que não, que ia sozinho. Depois de dar ao assunto mais alguns
microssegundos de consideração, digo-lhe que o melhor que tem a fazer é
pagar a multa, com aumento ou sem ele.
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Antes que ele comece a protestar, faço-lhe sinal com a mão de que ainda não
acabei, e explico-lhe o resto. Que a lei diz que o auto faz prova e que é
considerado título executivo, sem que sejam abertas quaisquer excepções
para os agentes autuantes que eventualmente tenham matado a sede com
outros líquidos que não água, antes de representarem a autoridade
instituída. Que, de acordo com a lei, a palavra escrita de um agente
uniformizado, ainda que alegadamente bêbado que nem um cacho, vale
sempre mais do que a de um ordinário cidadão, que tenha a infeliz sorte de
não trazer consigo uma celebridade ou um quintal de testemunhas dispostas
a aguentar a estucha de um julgamento, quiçá alguns anos mais tarde. E que,
mesmo nesse caso, in dubio pro lege.
Que, por isso, sabendo que ele estava sozinho na altura em que foi autuado,
o meu conselho é de que pague a multa sem mais demora, porque, no fim,
será isso que lhe ficará mais em conta. Por mais enxovalhado e roubado que
se possa sentir agora, isso não se pode sequer comparar àquilo que sentiria
quando perdesse a acção em tribunal, porque a perderia, e tivesse de pagar a
multa, as custas e os meus honorários.
Ele ainda tenta protestar, mas eu digo-lhe que não há realmente nada a fazer.
Que se sinta à vontade para ir consultar outro advogado, se quiser, mas que
tenho a certeza de que a resposta será a mesma – a menos que o outro
advogado seja um tipo que goste de brincar com o dinheiro ou com as
expectativas dos outros.
Ele ouve-me com o olhar no chão, sem dizer uma palavra, depois levanta os
olhos para mim, ainda aborrecido, mas, sentindo-se derrotado, acena
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finalmente que sim, o queixo quase se lhe colando ao peito com o peso da
frustração.
“Sim, eu sei que tem razão. Acho que até já o sabia mesmo antes de vir falar
consigo”, diz, cabisbaixo. “Mas o ver-me assim vítima daquilo que me pareceu ser
um claro abuso de autoridade, fez-me querer que fosse feita justiça, e pensei que, se
fosse a tribunal o conseguiria. Mas, afinal, parece que não... O seu conselho é então
no sentido de pagar a multa?”
“É. Lamento, mas creio que, no fim, será a solução menos cara e menos desgastante
para si.”
O homem acena repetida e lentamente, como que convencendo-se a si
próprio do inevitável, os lábios crispados demonstrando que o faz contra
vontade. Depois, pergunta-me quanto me deve e eu digo-lhe que não é nada
– quem, em consciência, poderia cobrar fosse o que fosse por dar a um
cliente o conselho de nada fazer. Ele agradece, apertamos as mãos e sai porta
fora, ainda envolto nos seus pensamentos.
Depois de ele sair, dou por mim a pensar numa coisa que um dos
professores disse numa aula plenária de um dos primeiros anos da
faculdade: “Recorrer aos tribunais para que seja feita justiça é um erro. Os
tribunais não fazem justiça, aplicam a lei. Que dessa aplicação resulte justiça feita, é
uma mera eventualidade.”
Pois.
Às vezes não é fácil.
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Acabei de entrar no átrio do escritório, com a mochila do ginásio ao ombro e
um saco de papel com o almoço na mão, quando a Mónica vem ter comigo.
“Dôtorjáquess, ainda bem que passou por aqui antes de ir para o tribunal , pois teria
lá ido escusadamente.”
“Sim?” Faço-me despercebido. “Porquê?”
“O julgamento foi adiado. A minha amiga da secretaria telefonou a avisar”, diz e
logo acrescenta em confidência: “Parece que desapareceram documentos
importantes do escritório do Dr. Filipe.”
Ah, então desapareceram documentos. Quem terá sido designado culpado?
É tão previsível o Filipinho.
“Mas que pena. Bom, bom, nesse caso, nada mais nos resta do que esperar por nova
marcação. Ponha isso na agenda, se faz favor, Mónica.”
“Certamente, Dôtorjáquess.”
Vou para o meu gabinete, pouso a mochila num canto e sento-me à mesa de
reuniões, a ler um artigo sobre direitos, liberdades e garantias à luz de mais
uma lei sobre actividades terroristas que veio numa revista, enquanto como
o almoço que comprei na tasca de comida a peso que fica no fundo da
avenida.
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Terminei a salada e vou a meio da segunda sanduíche de frango com piripiri,
e acabo de lhe dar uma grande dentada, quando ouço o besouro do telefone.
É a linha directa, mas não conheço o número que aparece no visor.
“Saint-Hervé”, atendo, quando consigo engolir o que tinha na boca.
“Boach tardes, gostaria de falare com o Dr. Jáquess Santherve”, diz uma voz
fortemente nasalada, que deve ser de alguém que tem problemas auditivos
sérios. Pois, se acabei de lhe dizer o meu nome.
“É o próprio. Quem fala?”
“Olhe, aqui é da exquadra de Cashcais. Era pra lhe dizere q‟o senhore tem aqui várias
centenas de euro em multas por excesso de velocidade pra pagare. Quer vir cá ou
prefere que mandemos isto pra tribunale?”
“Multas? Mas, de quando?” Estou realmente admirado. Nunca fui apanhado
em excesso de velocidade.
“De quando? Ora dexe cá vere; a última é de sexta, mas também há umas de sábado e
outras de domingo.”
Sexta ainda vá, mas sábado e domingo? Tenho quase a certeza que não
passei do limite de velocidade no fim-de-semana.
“Tem a certeza, senhor agente? Não estará a falar com a pessoa errada?”
“Absoluta. Aqui a gente nunca she engana. As nossas novas câmaras e radares são
infalíveis. Quer que lhe diga a cor do fato macaco que levava vestido?”
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Começo por ficar preocupado, mas depois acabo por me sentir é bronco.
Como é que os chuis haviam de conhecer o meu número directo, que até
nem está em meu nome, e desde quando é que eles ligam a perguntar se
alguém quer ir pagar multas à esquadra? Depois caio em mim...
“Leonel! Grande sacana. Pára com estas merdas, pá!”
Ele ainda tenta disfarçar, mas já se está a rir desalmadamente e não consegue
continuar. Há mais de vinte anos que este cabrão me prega destas, e eu caio
sempre. É verdade que ele tem um jeitasso para fazer vozes que nada têm a
ver com a dele, mas, às vezes, pergunto-me se eu não serei um tudo-nada
despistado demais.
“Atão, ó patego, caíste, hem?”
Eu não lhe respondo, em vez disso mudo de assunto, enquanto vou
acabando a sanduíche de frango.
“Olha, sabes que filme fui ver ontem?”
“Não, mas conhecendo-te como conheço, deve ter sido pornográfico.”
“Não, nem nada que se pareça. Pornográficos só vejo com recomendação tua, como
sabes. Mas já percebi que não chegas lá, o que também não é de estranhar. Não
sabendo ler, ser-te-ia difícil perceber o conceito de um jornal, e por isso é natural que
não tenhas visto o anúncio.”
“Anúncio de quê? De alguma festa para maricas vestidos de couro, não?”
“Não, pá. Para uma sessão dupla com o blade runner, final cut, e o ano de todos os
perigos. Cópias novas, não digitais.”
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“Epá! Também podias ter dito.”
“Olha, para dizer a verdade, nem me lembrei. Mas também não teria servido de nada,
pois ao fim-de-semana ninguém te descola da Tuuva.”
“É, pois, desculpas sabes tu inventar muito bem. Grande amigo me saíste! Deixa
estar que mas hás-de pagar.” Acto contínuo, muda de conversa. “Mas sabes, além
de o fazer para te chatear, telefonava-te também por uma outra razão. Outro dia,
quando aí fui à tua procura, falei com a Mónica e marquei-te um cliente para hoje.
Era suposto ter-te dito, mas esqueci-me. Só te queria avisar que o tipo deve estar a
aparecer por aí, se é que não apareceu já.”
“Realmente já apareceu. Mas eu não pude fazer nada por ele.”
“É, pois. Eu já calculava que não fosse possível conseguir o que ele queria. Aliás, foi
isso mesmo que lhe disse. Mas estava de tal forma aborrecido que pensei ser melhor
falar contigo.” Faz uma pequena pausa e depois: “Ouve cá, não te esqueceste de
sexta, pois não?”
“Sexta?... Ah sim, não claro que não me tinha esquecido.” Minto.
“Sabes, lembrei-me que podias ficar em nossa casa. Assim não precisas de te
preocupar com o que beberes, ou de ter de sair mais cedo com a desculpa que ainda
tens de fazer o caminho até Cascais.”
“Obrigado, pá.”
“Além de que, se sacares uma gaja, sempre é mais perto...” Riso alarve.
“É, pois, „tá-se mesmo a ver, que me vou sequer dar ao trabalho.”
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“A sério, pá. A Tuuva e eu começamos a ficar preocupados contigo. Tens de ver se
arranjas uma namorada... A menos que, ouve lá, não deste em paneleiro, pois não?”
“Ainda não, mas se algum dia der, tu vais ser o primeiro a saber. Quanto a arranjar
uma namorada, não está nos meus planos para os tempos mais próximos. Já tive que
cheguem, obrigado.”
“Mas não pode ser, homem. Há quanto tempo é que vives sozinho? Já passaram não
sei quantos anos”, diz genuinamente preocupado, e depois acrescenta em tom
jocoso: “Olha que essa merda pode mesmo levar à cegueira, „tás a ouvir?”
“Leonel, não te preocupes. E diz à Tuuva para não se preocupar também. Eu estou
bem assim.”
“Bem, tu é que sabes. Olha, voltando a sexta; eu vou aí buscar-te por volta das sete e
meia e vamos para o restaurante. Por isso, podias passar em nossa casa de manhã e
deixar logo lá a moto.”
“Boa ideia. Ouve, mas afinal quem é que vai?”
“Ópá, já te disse, porra. O pessoal do costume, e mais uns gajos que se penduraram à
última da hora... Sim, o que é?”, esta última já não é comigo. Ouço a voz calma
do Leonel a responder a uma outra bastante exaltada. “Jak, espera aí, meu. É só
um segundo.” Ouço-o falar de forma ininteligível durante alguns minutos, o
outro quase aos gritos. Depois um bater de porta e o Leonel volta à linha.
“Desculpa, mas tenho aqui um cabrão de um chefe novo que pensa que é dono disto e
que nós somos todos escravos dele. Como se eu não tivesse mais nada que fazer, agora
ainda tenho de aturar birras de meninos de cueiros. Olha, mas eu tenho de ir, de
qualquer modo. Ficamos combinados para sexta, então?”
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“Sim, sim, tudo combinado. Vou já tomar nota, para não me esquecer.”
“Ok. Olha, e vê lá se amandas uma queca; se não ainda te esqueces como é ou essa
merda ainda te cai por falta de uso .”
“Irra, pá. „Tá bem, pronto, não batas mais no ceguinho.”
“Então, adeus, ó tosco.”
“Até depois, amélia.”
As conversas telefónicas entre nós são sempre do mesmo género, por mais
sério que seja o assunto. Passamos metade do tempo a insultar-nos
mutuamente, como se fossemos dois adolescentes de quinze anos, usando
praticamente o mesmo vocabulário que usávamos nessa idade. Quem nos
ouvisse, talvez achasse estranho estar perante um mestre em Filosofia e um
não tão eminente causídico do foro de Lisboa. Mas isso pouco me importa, o
dia em que eu começar a preocupar-me com aquilo que os outros pensam de
mim, é o dia em que devo fazer as malas e ir-me embora daqui.
Volto a pegar no artigo que estava a ler e, como é meu costume, vou
marcando a lápis os pontos que me interessam, anotando nos artigos da lei
as páginas da revista que poderão ter interesse para leitura posterior. Não é
uma área de que me ocupe, mas nos tempos que correm mais vale estar
preparado para todas as eventualidades.
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Chego ao jardim da praça de Londres um pouco antes da hora marcada e
sento-me nas costas de um dos bancos a roer um pêssego que trouxe comigo,
enquanto vou lendo o último número da Bodoï que chegou hoje por correio.
Um tipo de fato e gravata a ler uma revista de banda-desenhada enquanto
rói um pêssego deve dar uma imagem algo subversiva, pois vieram controlar
a minha identificação duas vezes. Entre um controle e o outro e a leitura da
revista, perco, um bocado, a noção do tempo e surpreendo-me quando oiço
uma voz que me diz muito perto do ouvido:
“Ainda continuas a ler essas coisas?”
Levanto os olhos da revista e o que vejo surpreende-me. A minha filha
mudou muito desde a última vez que a vi. Cresceu imenso durante estes
meses (terão sido anos?) e a pessoa que tenho à minha frente parece ter
pouco a ver com a menina que eu me lembrava de conhecer.
Parece uma senhorinha, e está cada vez mais igual à minha mãe quando era
nova. O mesmo tom de cabelo acobreado e quase a mesma expressão nos
olhos verde-escuro. Traz vestida uma camisola larga de malha de algodão
azul-turquesa, de meia-manga também larga e decote em V, e uma saia
cinzenta pelo joelho que deve ser do uniforme do colégio; os pés enfiados
nas curtas meias cinzento-claro regulamentares, e calçados os sapatos pretos
de fivela da praxe. Nos braços cruzados, tem um molho de livros e um saco
de plástico transparente que tem dentro um tecido branco dobrado.
Levanto-me ainda um pouco surpreendido, e ela dá-me um beijo de fugida
no rosto, o que me surpreende ainda mais. Costumava ter de o pedir.
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“Olá, Catarina. Que bonita que estás!”
Ela cora até à raiz dos cabelos, o que faz com que as sardas que tem no nariz
e na face sobressaiam ainda mais. Ri-se.
“Obrigada, pai.” E logo se cala, como se não soubesse mais o que dizer.
“Então, onde vamos?”, digo eu, para encurtar o embaraço. “Queres ir ali?”, e
aponto para uma tasca de hambúrgueres com um palhaço de plástico à
porta, o sorriso de orelha a orelha parecendo convidar-nos a entrar.
“Não, ali não. Eu já não como aquelas porcarias.”
“Ah, bom. Não sabia.”
Olho para o boneco, como que para lhe pedir desculpa da falta de etiqueta
da minha filha, mas a expressão que lhe entrevejo nos olhos pintados faz-me
pensar que talvez seja boa ideia ir a outro sítio. Vêm-me à mente, imagens de
Chucky, o boneco diabólico, só que maior e muito mais perigoso.
“Então, onde?”, digo, pensando ser melhor deixá-la escolher.
“Eu não tenho fome. E tu?”
“Não, nem por isso. Acabei de comer um pêssego. Mas gostava de beber qualquer
coisa.”
“Eu também, mas isso podemos comprar ali no quiosque. E depois sentamo-nos num
dos bancos do lado de lá da praça, está bem?”
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Digo-lhe que sim. Vamos ao quiosque, onde compro uma água e um sumol
de ananás, e atravessamos para o lado da igreja, onde nos sentamos no banco
menos vandalizado, por detrás do parque de estacionamento.
Ela bebe alguns goles de sumol com o olhar perdido algures nas árvores da
praça. Eu deixo-a em paz e bebo a minha água. Não quero afugentá-la com
perguntas.
De súbito começa a falar, ainda sem ser capaz de olhar para mim.
“Pai, eu queria pedir-te desculpa, pelas vezes em que talvez não me tenha portado
muito bem contigo.”
Por esta então não estava mesmo nada à espera. Fico sem palavras, quando
seria tão fácil dizer uma qualquer baboseira. Mas, talvez por isso mesmo, seja
melhor nada dizer.
“Quando penso nas últimas vezes que nos vimos – nas poucas vezes que nos vimos
quero dizer, apesar de tu teres sempre continuado a insistir para nos veres, a mim e
ao Martim – e na maneira como tenho falado contigo durante todos estes anos, sintome muito envergonhada.”
Olha para mim pela primeira vez, e vejo que tem os olhos molhados. Eu
sorrio para ela, mas continuo calado, não querendo cortar-lhe o fio à
conversa. Faço-lhe uma festa ao de leve no cabelo e na face, que ela encosta à
minha mão, antes de se voltar para a frente e continuar.
“Acho que nunca percebi realmente o quanto tu és importante para mim, o quanto eu
precisava, preciso, realmente de ti, nem sequer depois de tu e a mãe se terem
separado. Estive sempre demasiado ocupada comigo mesma, com as coisas que tinha
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à minha volta e com as outras que queria ter. Sempre rodeada de gente que parece
viver para gastar dinheiro e para mostrar o que tem; cheios da sua própria
importância e desprezando todos os demais; sem querer realmente conhecer nada do
que os rodeia, a não ser que daí resulte um ganho pecuniário... Agora parece-me tudo
tão fútil. Sabes, foi como se, depois de um daqueles sonhos estúpidos em que nada
parece fazer sentido, tivesse acordado para uma manhã clara e límpida e sentisse um
peso enorme levantar-se de cima de mim. Percebes o que eu quero dizer?”
Digo-lhe que sim com a cabeça, e ela encosta-se ao banco de madeira, os
livros e o saco de plástico no colo e as mãos cruzadas sobre eles. Reparo que
deixou de roer as unhas, e vê-se que gosta de o ter feito, pois que as tem
arranjadas.
“Mas, apesar de agora ver as coisas com outros olhos e de me sentir muito mais
ligeira, ou talvez até por causa disso, não me sentiria bem comigo mesma se não te
pedisse desculpa por todas as vezes que te tratei mal. Achas que consegues perdoarme?”
Sorrio-lhe.
“Não há realmente nada a perdoar, filha. Eu nunca me senti assim tão mal tratado,
senão ter-te-ia dito. Esquecido, é um termo melhor, como se tu e o teu irmão não
quisessem saber de mim. Mas vejo agora que, pelo menos no que te diz respeito,
estava muito enganado, por isso não tenho nada que perdoar e tu não tens de ser
perdoada. Foi apenas um mal-entendido”, digo, esquecendo tudo acerca de não
me ligarem a ponta de um corno ao mesmo tempo que pergunto a mim
mesmo como pude pensar tal coisa.
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“Ainda bem que achas isso”, diz ela, suspirando e aninhando-se contra o meu
ombro. “Sabes, já queria ter vindo falar contigo há algum tempo, mas não sabia bem
o que havia de dizer-te e tinha medo que não me perdoasses. Por isso, de certa
maneira, foi bom que a mãe se tivesse vindo meter onde não é chamada.”
Eu rio-me e dou-lhe um beijo no alto da cabeça, enquanto lhe passo o braço
por cima dos ombros.
“Catarina, filha, não digas isso da tua mãe. Se ela veio falar comigo foi porque achou
que era para teu bem. Ou tu não queres que eu te acompanhe a esse tal baile?”
“Não. Quero dizer, sim, claro que quero. Se for ao baile, vou acompanhada pelo meu
pai e não por outra pessoa qualquer. Mas eu ainda não sei se quero ir...”
“Mmm, então conta-me lá o que se passa.”
“É assim. O baile está a ser planeado há já algum tempo – a mãe está na comissão
organizadora, com a tia Francisca e a tia Cina – mas eu só soube durante o Verão...
ou talvez tenha sabido antes, mas não prestei atenção, tinha outras coisas em que
pensar... De qualquer maneira, em fins de Julho ou até Agosto, já não me lembro, a
mãe diz-me a data do baile, e que eu tenho de começar a praticar valsa com o tio
Gonçalo que vai ser o meu acompanhante. Mas eu não estava nada interessada e
digo-lhe que não, que o meu pai ainda está vivo e que, se for ao baile, vou
acompanhada por ele, não pelo marido da minha mãe. Ela ainda tentou convencer-me
a mudar de ideias, mas eu não quis. Algum tempo depois, propôs que fosse o tio
Salvador a acompanhar-me, mas eu continuei a dizer-lhe que não e nunca mais veio
falar comigo. Pensei que tinha desistido completamente da ideia, até falar contigo
hoje de manhã. E pronto, foi isto que aconteceu.”
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Que a Mima faça parte da comissão organizadora não é nada que me
surpreenda, é mesmo o tipo de coisa que tem tudo a ver com ela. Já me
surpreende, porém, que me tenha contado a história toda ao contrário.
Afinal, é a minha filha que me quer como acompanhante, e ela que gostaria
que a Catarina fosse com o padrasto ou com um dos tios. Não me sabia tão
indesejável. Mas, nesse caso, porque é que me telefonou? A ida da Catarina
ao baile deve ser um ponto de honra para ela, mesmo que isso signifique que
seja o “anarquista” do pai a acompanhá-la.
“Ouve cá, filha, tu queres mesmo ir a este baile?”
“Não sei, pai. Acho que sim, um baile é um baile, mesmo que este me pareça mais um
circo.” Ri-se. “E depois, há colegas de escola de quem eu gosto que também vão, por
isso, sim, acho que gostaria de ir.”
“E tens a certeza que não é melhor ires com o Gonçalo ou com o tio Salvador. Afinal,
apesar de eu ser teu pai, é com eles que vives, não é? Eu não te quero forçar a nada, e
fico muito contente por quereres que seja o teu acompanhante, mas não te parece que
faz mais sentido ires com um deles?”
“Não, não faz!”, diz ela, pondo-se direita no banco. “Desculpa, não queria gritar.
Mas eu não quero ir com nenhum deles. Não gosto do marido da mãe e o tio Salvador
é gordo que se farta; se me pisa fico sem pés.”
Rio-me.
“Está bem, pronto. Eu acompanho-te ao baile. Só queria ter a certeza que era isso
mesmo que querias. E, ouve cá, tu não gostas do Gonçalo, porquê?”
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“Não sei. Não tenho razão de queixa, ele nunca me fez mal, antes pelo contrário, mas
acho-o esquisito, não sei. Não gosto, e pronto. E, francamente, não percebo porque é
que a mãe se separou de ti, para se casar com ele. Tu és muito mais alto e bonito.”
É a minha vez de corar, o que disfarço com uma gargalhada forçada. Ela ri-se
também.
De repente olha para o relógio.
“Bolas... oh, desculpa, não queria dizer; mas estou atrasada. Tenho de voltar para o
colégio para não perder a camioneta para casa. A mãe não sabe que vim falar contigo.
Vou ter de apanhar um táxi.”
“A que horas é a tua camioneta?”
“É às cinco e meia. Porquê?”
Olho para as horas e penso que não há maneira de um táxi conseguir chegar
daqui ao Lumiar em tempo.
“Vem comigo. Eu levo-te de moto, é mais rápido.”
“A sério? Nunca andei de moto.”
“Pois, e talvez seja melhor veres bem com quem andas, no futuro”, digo,
subitamente preocupado. “Anda, vamos despachar-nos.”
Atravessamos a praça e descemos a Guerra Junqueiro até ao sítio onde
estacionei a moto. Tiro o meu capacete da mala traseira e o capacete
sobresselente de uma das malas laterais. Dou-lhe o meu integral para as
mãos, mas ela olha para baixo e diz:
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“Preciso de uma casa de banho. Eu já volto.”
E desaparece dentro da pastelaria em frente.
Reaparece, cinco minutos depois, quando eu estou a acabar de vestir o
macacão, com uma camisa branca vestida e uma gravata cinzenta agarrada
ao colarinho por uma mola, os cabelos atados num rabo de cavalo com um
laçarote também cinzento. A camisola azul-turquesa ocupa, agora, o lugar da
camisa no saco de plástico transparente.
“Não nos deixam entrar no colégio sem uniforme. E eu tenho de entrar para apanhar
a camioneta”, diz, com um encolher de ombros.
Sorrio e abano a cabeça. Mas não há qualquer comentário que mereça ser
feito; é demasiado absurdo.
“Anda, sobe para aqui...” digo, estendendo-lhe o colete fluorescente que a lei
exige. “Espera aí, agora reparo, tu estás de saia comprida, como é que vamos fazer
isto...” Mas ela ri-se e afasta os joelhos. Aquilo que eu julgava uma saia
simples, são, na verdade, calções de perna larga, tapados por uma espécie de
avental que lhes esconde o feitio.
“Gostas? Fui eu quem desenhou. Enfim, não é original, mas dá muito jeito. Posso
correr e não me sinto tão noninhas.”
“Engenhoso, sem dúvida. Anda, põe lá o capacete, senão nem de moto chegamos a
tempo.”
A Catarina sobe para o banco traseiro. Digo-lhe para se agarrar bem a mim, o
que ela faz com tanta força que quase sinto faltar-me a respiração.
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“Catarina, filha, preciso de poder respirar para guiar a moto. Não me apertes com
tanta força. Descontrai-te. Vais ver que é giro.”
Sinto-a acenar com a cabeça, o capacete dela bate no meu duas vezes.
“Ora, aqui vamos nós.”
Desço o resto da Guerra Junqueiro até à Alameda, passo ao lado do técnico
pela António José de Almeida e atravesso a avenida da República para a
Miguel Bombarda. Subo para a Duque d‟Ávila, viro na António Augusto de
Aguiar em direcção à praça de Espanha, que atravesso, e subo a avenida dos
Combatentes até à Católica. Viro à esquerda em frente à bomba e depois logo
à direita e novamente à esquerda, para ir dar ao eixo norte-sul. Saio para
Telheiras, viro à esquerda nos semáforos, contorno o Carrefour e percorro a
azinhaga até à estrada do Paço do Lumiar. A partir daí é a Catarina quem me
dá indicações.
Chegamos ainda com dez minutos de avanço sobre a hora de partida da
camioneta e paramos numa rua estreita, ao lado do muro que circunda o
colégio, em frente a uma porta verde de metal.
“Andas sempre assim tão depressa, pai?”, pergunta-me quando os lábios lhe
deixam de tremer.
“Não, não”, minto, tentando parecer convincente. “Mas desta vez era preciso,
para que não perdesses a camioneta. Eu até nem gosto nada de andar depressa.”
Ela não parece muito convencida, mas não me pergunta mais nada.
“A camioneta é sempre a esta hora?”
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“Mm, sim, mais ou menos, porquê?”
“É que não me parece muito eficiente, deixar-vos assim, quase duas horas livres, à
espera de transporte para casa.”
Ela cora visivelmente.
“Pois, é que, sabes... eu faltei a uma aula para ir ter contigo.”
“Oh, Catarina! Podíamos ter combinado outra hora. Não era preciso teres faltado.”
“Outra hora teria sido difícil sem a mãe saber, e depois, eu até nem gosto da aula.”
“Sim, talvez, mas isso não é razão. Que disciplina é?”
“Educação moral e religiosa. É uma seca de aula; hora e meia, duas vezes por semana
e, ainda por cima, separam-nos dos rapa... quer dizer, dos meninos. Não há quem
aguente. Mas é preciso ir, porque as faltas contam para chumbar o ano... Ah, mas
não te preocupes, não é coisa que costume fazer.”
“Olha, retiro o que disse. Sabes, a essa podes faltar as vezes que quiseres. Desde que
não chumbes, é claro. E das vezes que tiveres de lá estar, procura fazer outra coisa. Lê
um livro, faz bonecos, estuda até, é capaz de ser mais proveitoso.”
A Catarina olha para mim com os olhos muito abertos, como se eu me
estivesse a transformar numa coisa esquisita à frente dela. Depois ri-se, deitame os braços ao pescoço e abraça-me.
“Obrigada, pai. Foi muito bom falar contigo. Posso telefonar-te mais vezes?”
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“Claro que podes, filha. A qualquer hora do dia ou da noite. Eu estou sempre
disponível para vocês”, digo, rindo também, enquanto escrevo o meu número
directo e o do telemóvel numa folha de um bloco e lha dou. “Olha lá, e o teu
irmão; há alguma hipótese de o ver?”
Ela muda de expressão imediatamente.
“Acho que não, pai. Mal nos falamos. Ele anda sempre com os amigos dele, ou com o
Gonçalo, e como entrou para Economia em Coimbra deve até ir morar para lá.”
Encolho os ombros. Agora que voltei a conhecer a Catarina, teria sido bom
reencontrar também o meu filho. Mas talvez isso fosse sorte a mais.
“Deixa lá. Olha, se falares com ele, e vier a talho de foice, diz-lhe que eu gostava de o
ver. E agora, vai-te embora antes que percas a camioneta.”
Ela diz que sim com o queixo, dá-me mais um abraço e corre para o portão
verde, que se abre mal ela chega. Uma velhota de bata cinzenta está do outro
lado, ela agradece-lhe e passa-lhe qualquer coisa para a mão; dinheiro,
provavelmente. Volta-se para me dizer adeus mais uma vez, e depois
desaparece por detrás da parede do muro.
===================¤==================
Volto para o escritório para arrumar a secretária e terminar um fax com
informações sobre o regime do IVA, que me pediu um advogado do
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Quebeque. Mas acabo, também, por telefonar à minha mãe para lhe dar as
boas novas acerca da Catarina.
Como esperava, fica contente. Especialmente quando lhe digo que a neta está
muito parecida com ela. Falamos durante alguns minutos, mas depois dizme que tem de desligar porque ela e o marido vão à Bastille ver a Carmen.
Paris parece ser a cidade ideal para ela. Desde que lá vivem – e já lá vão dez
anos – que não fazem outra coisa nos tempos livres que não seja ir à ópera,
visitar museus, ir ao teatro, etc., etc., etc.. Como agora já nenhum dos dois
trabalha, passam a vida naquilo.
A última vez que os fui visitar foi este ano em Janeiro Fiquei num hotel em
Saint-Germain, mesmo ao pé do apartamento, e passei lá uma semana.
Tentei adaptar-me ao esquema de vida deles para não lhes causar transtorno,
mas ao fim de cinco dias estava de rastos. Aqueles dois não param um
segundo, a não ser quando dormem, e mesmo aí devem, certamente, ir a
qualquer lado em sonhos.
Enfim, é bom saber que a minha mãe encontrou, finalmente, alguém que a
entende e com quem se dá bem.
===================¤==================
Chego a casa por volta das dez e, pela primeira vez em quatro dias, ligo a
televisão. As notícias estão precisamente a começar em quase todos os canais
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– encaixadas no seu novo nicho entre as duas horas nobres das telenovelas e
o início dos programas nocturnos – e aproveito para ver o que de importante
se passa no Mundo, ou, pelo menos, aquilo que de novo se passa que parece
importante às redacções dos jornais televisivos, o que não corresponde,
necessariamente, à mesma coisa.
Uma morena de cabelos compridos faz de pivot no primeiro canal que me
aparece; lê o teleponto exibindo o ar sério número dois, o das notícias graves
não catastróficas.
“...manifestações que degeneraram em violentos recontros com a polícia, dos quais
resultaram vários mortos e largas dezenas de feridos, entre os quais mulheres e
crianças, quase todos entre os manifestantes. O objectivo das manifestações, segundo
os organizadores, era um protesto pacífico em frente a um templo da Igreja da
Verdade Eterna, que se situa numa das mais famosas e centrais artérias moscovitas,
em que também está situado o Kremlin. Um porta-voz da polícia, pelo contrário,
refere que os manifestantes estavam armados e tinham em vista o derrube do
governo. A Igreja da Verdade Eterna foi notícia há cerca de cinco anos, quando foram
feitas alegações, até hoje não provadas, do seu envolvimento no comércio ilegal de
órgãos humanos. O presidente da câmara de Moscovo deu, há poucas horas, uma
conferência de imprensa em que criticou os organizado...” zap! para um tipo de
fato escuro e gravata, com ar menos grave, um número cinco talvez,
sobreposto a um mosaico de fotografias de estádios de futebol. “...do recémcriado corpo especial de inspectores do Ministério das Finanças que intervieram,
juntamente com a polícia, neste raid simultâneo às instalações dos clubes de futebol
que tinham sido mencionados pelo ministro Castro de Almeida na sua conferência de
imprensa de minutos antes. Foram apreendidos computadores, livros de
contabilidade, documentos bancários de diverso tipo, nomeadamente extractos e
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cautelas de investimentos a prazo, e vários contratos de fidúcia com sociedades das
Ilhas Virgens Britânicas. Recordamos que a dívida dos clubes ao fisco e à segurança
social, não tem parado de crescer durante os últimos anos, nomeadamente, desde a
realização do europeu, sendo, porém, verdade que continuam a ser contratados
jogadores por largas dezenas de milhões de euro – o uruguaio Pirriquez, comprado
pelo clube d...” Isto não me interessa de todo, zap! para um outro tipo de fato
mais claro, gravata cor de salmão e um sorriso tão artificial como o cabelo
que tem na cabeça. “...festa que foi organizada pelo marquês de Sá da Bandeira, por
ocasião do nascimento do seu primeiro neto, tendo estado presente a fina flor do jetset euro...” zap! “...os protestos que começaram no dia 2 de Setembro, o dia do
trabalho ou labor day, e que têm alastrado a grande parte das cidades americanas. O
governo federal voltou a declarar a lei marcial nas cidades em que os protestos foram
mais violentos e a guarda nacional foi chamada a intervir em apoio dos corpos de
polícia local e estadual. Recorda-se que entre as reivindicações dos manifestantes está
o estabelecimento de um seguro de desemprego nacional e a reabertura dos serviços
de segurança social, que foram fechados pela presente administração com a
justificação de que teriam deixado de ser necessários. Segundo estatísticas oficiais,
fortemente contestadas pelas organizações que apoiam a presente vaga de protestos, à
data da abolição governamental, noventa e nove por cento dos americanos
empregados contribuíam apenas para sistemas de pensões, seguros de desemprego e
segurança social privados...” zap! “...palacete numa propriedade fechada nos
arredores de Bruxelas onde eram mantidas sob vigilância armada e forçadas a
prostituir-se. Nos ficheiros de clientes apreendidos pela polícia foram encontrados os
nomes de diversos membros do parlamento europeu, entre eles os dos Eurodeputados
portugueses Bernardo Correia de Miranda e José Ferreira. Questionados pelo nosso
jornal, os deputados declinaram fazer comentários. Passando agora ao desporto. O
avançado Pirriquez contrata...” zap! “...John Bettencourt, presidente do movimento
para a independência dos Açores, referiu hoje, numa entrevista ao New York Post,
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que o programa do movimento não se limitava à independência per se do arquipélago
e que, uma vez conseguida esta, estava nas suas intenções prosseguir e incentivar
uma política de aproximação aos Estados Unidos da América, país com o qual,
afirma, os açorianos sentem uma enorme afinidade. De Lisboa vieram já algumas
reacções a esta polémica entrevista, ainda que, até agora, nenhum dos partidos
regionais tenha emitido qualquer comentário.” zap! “...encheu-se de sangue, quando
um grupo de manifestantes saltou para a arena, numa tentativa de impedir a lide que
terminaria com a morte do touro e foram atacados, quer pelo animal, quer pelo
toureiro. Da confrontação, que depois alastrou a outros membros do público,
resultaram dois mortos, em virtude de cornadas, e vários feridos graves. As imagens
que vamos ver, de um vídeo amador que obtivemos em exclusivo, podem ser
consideradas chocantes e não...” zap! já dei a volta “...do corpo especial de
inspectores do ministério das finan...” zap! “...Ferreira e Bernardo Correia de
Miranda. A polícia prossegue as investigações, tendo as mulheres ali encontradas
sido colocadas numa instalação de segurança, à espera de serem deportadas para os
respectivos países. Até agora as únicas detenções foram as da responsável pelas
marcações e dos três guardas e que se encontravam no palacete na altura da
intervenção da...” zap! “...festa foi muito concorrida, tendo estado presentes todas as
participantes na oitava edição de Harém, usando biquínis e tangas criadas por Ana
Falconn...” zap! O que é este canal? A TVColunáveis? “...esemprego que ronda
os sete por cento da população activa, de acordo com números oficiais – amplamente
contestados, nomeadamente em relação aos critérios utilizados para definir emprego.
Recorde-se ainda que, de acordo com as últimas estatísticas da ONU, a percentagem
da população considerada pobre subiu para quarenta e cinco por cento, dos quais,
vinte e dois por cento se encontram abaixo do nível mínimo de subsistência. Estes
números assustadores, não parecem, de todo, vir reflectidos no orçamento e contas
divulgadas e no estado aparente da balança comercial do país que...” zap! “...olónia,
afirmaram hoje em comunicado de imprensa, distribuído em Bruxelas, que as
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promessas que lhes tinham sido feitas não estavam a ser cumpridas, pelo que estavam
a considerar, seriamente, abandonar a União Europeia, uma organização que
classificaram como retrógrada, e fundar uma organização de comércio livre que se
reja por princípios mais adequados à actual situação de globalização das economias,
ou, inclusivamente, solicitar a sua adesão à Zona Intercomercial do Mundo Livre, ex
Zona de Comércio Livre das Américas que, recorde-se, se alargou o ano passado à
Turquia” zap! “...panha contra o bom nome de uma organização que tanto tem feito
pelos mais desfavorecidos, com a sua missão de apoio à família e ao desenvolvimento
da criança. Ninguém faz mais pelos pobres do que a Igreja da Verdade Eter...” zap!
“...irriquez, que terá custado...” zap! “...solicitando de imediato a sua adesão à Zona
Intercomercial do Mundo Livre uma vez plebiscitada a independência...” zap!
“...vestidos de noite muito audazes e sedu...” zap! “...igreja instalou-se em Portugal
há perto de oito anos, tendo sido grande impulsionador dessa instalação o então
muito conhecido advogado Pedro Inácio Gomez, desaparecido no Brasil há cerca de
cinco anos, alegadamente vítima de um acidente durante uma missão humanitária
organizada precisamente pela Igreja da Verdade Eterna. Segundo os seus
responsáveis, a actividade da igreja no nosso país tem-se caracterizado, acima de
tudo, por um trabalho de recenseamento das necessidades reais das camadas mais
desfavorecidas e negligenciadas da população, intervindo, pontualmente, onde e
quando necessário; mas também por campanhas de aliciação de novos membros, que
estejam dispostos a contribuir com tempo e fundos para o trabalho caritativo que a
igreja se propõe levar a cabo. A notícia hoje retomada, em consequência dos eventos
de Moscovo, de que a Igreja da Verdade Eterna estaria ou teria estado envolvida no
comércio ilegal de órgãos humanos, faz parte, segundo a administração da mesma e
passo a citar, „de uma campanha contra o bom nome de uma organização que tanto
tem feito pelos mais desfavorecidos, com a sua missão de apoio à família e ao
desenvolvimento da criança. Ninguém faz mais pelos pobres do que a Igreja da
Verdade Eterna‟; palavras do presidente do conselho de administração da dita
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instituição, Dr. Seabra Vilela, ouvido hoje por tel..” Olha quem ele é! O honrado
Comendador. Se ele faz parte da administração, então deve ser mesmo tudo
verdade..., pois. Mas por hoje já vi que chegue. Desligo a televisão e ligo o
leitor de bobines; a voz de Ella Fitzgerald, interrompida a meia frase quando
me fui embora esta manhã, sai das quatro colunas e enche todos os cantos da
sala, In a mellow tone.
Vou para a cozinha preparar qualquer coisa, nem sei bem o quê, que possa
comer a esta hora da noite e só me ocorre sopa que, por acaso, até tenho no
congelador, quando toca o telefone. Atendo na cozinha, sem olhar para o
visor.
“Saint-Hervé.”
“Olá, Jak, sou eu.”
“Eu, quem?”, pergunto, sabendo muito bem de quem se trata.
“O Leonel, pá.”
“O Leonel? Qual, o que é políchia em Cashcais?”
“É, goza, goza, vais ver que da próxima ainda é pior.”
“Então, a que devo a honra de te ouvir duas vezes no mesmo dia?”
“Uma curiosidade que, com a entrada intempestiva daquele caramelo no meu
cubículo, me esqueci de te contar. Sabes quem é que apareceu hoje na agência?”
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“Mmm, não sei” Este gajo tem cada uma; como é que eu vou saber quem é
que pode ter ido hoje ao Banco Transnacional Privado? “O D. Sebastião,
talvez?”
“Não, pá. Esse foi lá a semana passada, queria transferir uns fundos que tinha em
Ceuta. Mais sugestões?”
“Sei lá, pá!”
“Foi o teu pai.”
Esta apanhou-me de surpresa. O meu pai... Tirando o Leonel, toda a gente
pensa que o meu pai morreu, mesmo a Mima, e eu faço o possível por não
pensar nele. E hoje... A vida tem realmente coincidências estranhas.
“Ah, sim, e o que lá foi fazer o velho cabrão? Cujo nome, aliás, acabei de ouvir citar
na televisão. Olha, rimei.”
“Pois, tu és um verdadeiro poeta. Foi abrir uma conta, claro! E quem lha abriu fui
eu. Logo que percebi quem ele era, achei melhor ficar com tudo na mão, não fosses tu
querer ordenar uma transferenciazinha ilícita para uma ou várias instituições
beneméritas, em nome do teu preclaro progenitor.”
“Obrigado, obrigado. Vou considerar seriamente a tua oferta. E depois, é claro que
estás a contar que eu te defenda à borla, não?”
“Bom, sim. Afinal, é para isso que servem os amigos.”
“Mas conta lá mais acerca de sua excelência, o comendador David Wentworth de
Seabra Vilela. Estava mal de saúde, espero?”
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“Não, nem por isso. Até achei que estava bastante bem, considerando a idade. O gajo
tem mais uns quinze ou dezasseis anos do que a tua mãe, não é? O que lhe dá uns
bons oitenta e pouco. Para essa idade, não me pareceu nada mal. Antes pelo
contrário, se o visse na rua dar-lhe-ia nas calmas trinta anos a menos.”
“É pena. E além de abrir uma conta – com uma pipa de massa, suponho? – que mais
fez, o senhor comendador?”
“Nada mais. Apareceu lá com um tipo que devia ser guarda-costas e que passou o
tempo todo a olhar para mim com ar de mau – fiquei cheio de medo, como deves
calcular. Trazia consigo duas malas cheias de notas de quinhentos e pediu para abrir
uma conta à ordem, em nome de uma sociedade estrangeira. Trazia os documentos
todos. A conta foi aberta, e ele foi-se embora. Só isso.”
“Pensei que vocês não abrissem contas a pessoas que vos aparecessem com malas de
notas.”
“Sim, é verdade. Não abrimos.”
“Então?”
“Ah, pois. É que, todas as regras têm excepções. E para o comendador Seabra Vilela é
sempre possível abrir excepções.”
“Estou a ver.” Quanto mais as coisas mudam, mais elas ficam na mesma,
penso para comigo. “E, ouve cá, para além do aspecto físico, o que achaste dele?”
“Exactamente o tipo de filhodeputa que seria capaz de fazer o que ele vos fez. Uns
olhinhos pequeninos, de um azul muito escuro, quase preto, eram o que saltava mais
à vista. A expressão do rosto era dura. Vê-se que o tipo está habituado a conseguir o
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que quer, quando quer. Embora, ao contrário de muitos que por lá aparecem
iguaizinhos a ele, não tenha sido grosseiro. Mas, de resto era apenas um tipo bem
vestido, com bom aspecto; se o visse na rua não lhe prestaria duas vezes atenção.”
Tento imaginar o homem que o Leonel me acaba de descrever, com base na
única fotografia que a minha mãe tinha dele quando eu era pequeno, mas
não consigo. Mesmo essa fotografia, que depois amarrotei e mais tarde colei
no centro do alvo de dardos que tinha pendurado na porta do quarto, é uma
recordação muito sumida no fundo da minha memória. Para mim, o homem
há muito que deixou de ter qualquer importância – apesar de ser ainda capaz
de lhe desejar uma maleita ou outra, de preferência daquelas que causam
muitas dores, cheiram mal, têm mau aspecto e duram muito tempo.
“Olha, sabes o que te digo; que lhe faça bom proveito, a conta. Esse tipo é lixo e eu
não quero ter absolutamente nada a ver com ele. Ouvir falar dele duas vezes no
mesmo dia chega para me deixar saturado durante os próximos anos!”
“Então, e não queres que transfira o dinheiro para qualquer lado?”
“Nâ, pra já não. Deixa-o ficar lá a acumular juros e daqui a algum tempo voltamos a
pensar nisso.”
“Ok, tu é que sabes”, diz, num tom de voz que poderia levar a pensar que
estava a falar a sério.
Despedimo-nos por entre os insultos do costume e eu volto a dar atenção à
minha sopa de agriões que, por esta altura, já está quase descongelada.
Despejo o conteúdo meio liquefeito para uma malga e enfio-a no micro a 800
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watts durante um minuto e meio. Enquanto espero, tiro duas tostas de um
pacote e barro-as com tartex.
Como na cozinha, encostado ao balcão.
Na sala, Louis Armstrong diz-me que, apesar de tudo, it‟s a wonderful world.
76
DOIS
“Dôtorjáquess, está aqui um senhor que quer falar consigo. Posso mandá-lo
entrar?”, diz a Mónica, metendo o nariz na porta.
Eu interrompo o fax que estava a escrever ao som de Oxygene de Jean-Michel
Jarre.
“Eu não tenho ninguém marcado para agora. Quem é?”
“É o Dr. Gonçalo Vilarinho de Castro.”
O Gonçalo? Aqui? Não deve vir por bem, com certeza. Desligo o leitor
digital.
“Mande-o lá entrar, Mónica.”
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Ela abre a porta e o Gonçalo entra imediatamente, como se estivesse colado a
ela. Precede-o um bafo de Giorgio of Beverly Hills, que me inunda o gabinete
como um desodorizante barato. Este é dos que toma banho em perfume e,
pelo cheiro, também deve fazer várias visitas ao frasco durante o dia.
A Mónica fecha a porta, a abanar a mão em frente ao nariz, e eu fico frente à
personagem. Tudo neste tipo me desagrada: o aspecto, os modos afectados, a
forma de vestir cara e sem gosto – deve comprar as roupas pelas etiquetas
que trazem – e, claro, o facto de estar casado com a minha ex-mulher, ainda
que isso seja apenas mais um pormenor.
Hoje deve trazer por inteiro a indumentária que viu em algum manequim do
Rosa & Teixeira. Blazer azul-escuro com botões dourados, gravados com o
emblema de um clube de golfe a que não pertence. Camisa azul às riscas
brancas, botões de punho de nó em seda vermelha, uma gravata em tom
azul-escuro, e um lenço de fundo amarelo e desenhos a azul enfiado no bolso
do blazer. Calças cinzentas claras e sapatos de pala com berloque, pretos. O
cabelo ralo escovado para trás e seguro com brilhantina, como seria de
esperar, com os caracóis ensebados a fazerem-lhe festas no colarinho da
camisa.
Depois de um “Boa-tarde” muito enfadado, senta-se numa das cadeiras da
mesa redonda, sem fazer qualquer movimento para me cumprimentar, e
puxa de um dos bolsos uma charuteira de couro, debruada a prata. Abre-a,
tira de lá um meio corona, Davidoff pela cinta, que acende com um
Montblanc.
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Encosto-me ao tampo da secretária para melhor apreciar a figura, encho o
cachimbo com Rhon Saint-Malo e acendo-o com um fósforo, da caixa que
tenho no pote dos lápis. Durante o tempo que demoro a encher e a acender o
cachimbo, o Gonçalo permanece calado e fuma lentamente o charuto.
“Viva, Gonçalo. Então, a que devo a honra?”, pergunto, quando acho que o
cachimbo está a puxar bem.
Ele dá mais uma passa no charuto. O fumo e o bronzeado conseguido entre a
Praia das Maçãs e Vila Lara, dão-lhe um ar de D. Juan rasca de uma qualquer
república das bananas. Cruza as pernas antes de me responder.
“A única razão porque resolvi vir falar consigo, em vez de tomar já outras medidas,
foi por consideração para com a Margarida.”
Leva novamente o charuto aos lábios. Eu não lhe dou sequer sinal de o estar
a ouvir, até porque demoro um momento a recordar-me que a Margarida é a
Mima. Não faço a mínima ideia acerca do que ele está a falar, mas só pode
ser alguma asneirada.
“Você ontem esteve com a Catarina sem que a mãe soubesse do encontro, o que,
obviamente, a deixou perplexa. A grande latitude que lhe foi deixada com respeito aos
encontros com a Catarina e com o Martim, pressupõe sempre uma comunicação
prévia à Margarida.” Nova baforada de fumo na minha direcção. Então a
visita é por causa do meu encontro com a Catarina... Como é que eles terão
sabido? Não me pareceu que a Catarina tivesse grande vontade de lhes dizer
fosse o que fosse.
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Porém, o que me deixa perplexo, é que este badameco pense que tem o
direito de vir falar comigo, e neste tom ainda por cima, acerca de assuntos
que nada têm a ver com ele.
É preciso ter muita lata, realmente!
Mas, ao mesmo tempo diverte-me. Ele está mesmo convencido que está a
puxar-me as orelhas. Pobre imbecil; tão cheio da imagem que faz de si
próprio, que nem sequer vê a que lhe aparece no espelho.
E ele continua.
“O pior, porém, é que você não se ficou pelo encontro. O qual, só por si, é de uma
grande falta de respeito.” O charuto, entre o indicador e o médio da mão
direita, aponta para mim uma rodela vermelha incandescente, quando ele o
leva mais uma vez aos lábios finos. “Você teve ainda o desplante de pôr a
Catarina em perigo desnecessariamente, ao levá-la de moto ao colégio, para conseguir
que ela apanhasse a camioneta, evitando assim ter de dar conhecimento à Margarida
que tinha estado com ela.” Uma pausa estudada, para dar efeito. “Mas, além
disso, como se já não bastasse, a velocidade a que a transportou foi absolutamente
inaceitável!”
Eu continuo a fumar calmamente o meu cachimbo. Quem olhasse para mim,
não diria de todo a vontade que tenho de lhe partir as ventas. Mas acho
melhor esperar. Ele ainda não parece ter acabado, e assim a surpresa será
maior. Interiormente, maldigo a minha mania de guiar depressa. Não devia
ter seguido à velocidade que segui, nisso ele tem razão.
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Mas, como é que raio descobriram? Agora tenho a certeza que não foi a
Catarina, ela nunca lhes diria que o pai a levou ao colégio a cento e vinte
pelas ruas de Lisboa. Terá sido a velhota do portão? Nâ, ela não poderia
saber a velocidade a que eu guiei. Quem então e, mais do que isso, porquê?
O meu aspirante a verdugo parece pronto para desferir a estocada final. O
melhor será prestar-lhe atenção, senão ainda se amofina, coitado.
“Quero que perceba que este tipo de comportamentos não podem ser aceites. A
Catarina ainda é menor e encontra-se à guarda da mãe, e de mim acessoriamente,
pelo que, todo e qualquer encontro deve ser-nos comunicado previamente, conforme
estabelecido. Mas, acima de tudo, ficam expressamente proibidos quaisquer passeios
de moto, sejam a que velocidade forem. Entendido?”, diz isto com um ar muito
sério, as mãos sobrepostas em cima do tampo da mesa. O charuto fumegante
ainda na mão direita, enquanto que com o indicador e polegar da esquerda
faz rodar um anel de brasão que tem posto no mindinho daquela, um
cachucho enorme, de um amarelo resplandecente, que dir-se-ia tirado de um
dos dedos de um qualquer patrício romano dos últimos dias do reinado de
Calígula. O rosto continua fixo numa expressão séria, enquanto mantém fitos
em mim, sob sobrancelhas carregadas, os seus olhos quase negros.
Ora aqui está tudo ao que veio. Cabe-me agora dizer duas larachas.
Mantenho, também, o olhar fixo nele, sem deixar transparecer qualquer
emoção. Dar-lhe a conhecer que está mais perto de ser corrido a pontapés do
que se calhar pensa, se é que o pensa de todo, já é dar-lhe mais importância
do que merece.
Largo ainda duas baforadas antes de começar a falar.
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“Ouça...” Faço uma pausa, como se não me lembrasse do nome dele.
“...Gonçalo; você é formado em Economia, não é? Isso talvez explique a sua
incapacidade em perceber um simples texto legal, como o é uma sentença de tribunal.
Mas não pode servir de desculpa para que você parta do princípio que percebeu –
afinal, que diacho, já não é nenhuma criança – e se ponha a fazer interpretações que
não fazem o mínimo sentido.” Paro para dar novamente atenção ao cachimbo.
Reparo que o Gonçalo parece deitar fumo, e não é devido ao charuto.
“O que a sentença do tribunal diz, é que a Mima, e só a Mima, é a titular do poder
paternal e a responsável pela guarda dos nossos filhos. Você não é mencionado em
lado nenhum, nem sequer acessoriamente. Por isso, creio que em caso algum lhe seja
devida qualquer comunicação da minha parte. Eu, quando muito, tenho de dizer à
Mima, o que penso fazer com os meus filhos – e, não esqueçamos isso, eles são filhos
meus e da Mima, não seus – mas, dizia, não estou de alguma forma obrigado a fazêlo. O que o texto da sentença diz é que eu posso ver os meus filhos sempre que quiser,
desde que de tal facto dê conhecimento à mãe. Mas não diz que tenho de dar
conhecimento prévio, e que o vê-los ou não depende de autorização da Mima.”
Digo isto com um sorriso e uma expressão prazenteira, mas se os olhos dele
fossem canhões laser, eu já nada mais seria do que uma pilha de cinzas aos
pés da secretária.
“E depois, meu caro Gonçalo, vejamos as coisas em perspectiva. Isto era o que a
sentença dizia há seis anos, quando eles tinham onze e nove anos. Hoje estamos a
falar de um rapaz que atinge a maioridade dentro de poucos meses, e de uma rapariga
que também para lá caminha daqui a pouco mais de dois anos. Creio que é preciso
dar-se uma certa elasticidade à letra do texto, não lhe parece? Até por uma questão de
respeito, para com os dois quase adultos envolvidos, mm? Quanto a tomar medidas,
pois, não vejo bem que medidas possam ser essas... Até por causa da idade dos
82
menores envolvidos, seria muito difícil, senão impossível, impedi-los de me verem, se
eles realmente o quisessem. Isto supondo, claro, que eu nada teria a dizer se tal coisa
absurda fosse sequer tentada. Portanto, deixemo-nos de fantasias.”
Ele está lívido e estático, o meio corona apaga-se-lhe lentamente entre os
dedos. Todo o ódio que neste momento deve sentir por mim, juntamente
com a frustração de não ser capaz de me dar uma resposta, consomem-no
por dentro e impedem-lhe os movimentos.
“Para terminar, deixe-me dizer-lhe que, em termos de perplexidade, ninguém está
mais perplexo do que eu. Francamente, não percebo porque é que a Mima, se está
assim tão aborrecida, não me telefonou. Não era preciso recorrer aos seus bons ofícios,
mm?”
Ele recupera subitamente o uso dos membros, esborracha violentamente o
que resta do charuto no cinzeiro de cristal e levanta-se da cadeira com
brusquidão, empurrando-a contra a parede.
“Eu vim aqui com a melhor das intenções, não foi para ser insultado. O aviso que lhe
dei fica dado. Você pode fazer as interpretações que quiser do texto da sentença, mas
isso não altera o que lá está escrito...”
“Ouça, eu tenho sido extremamente paciente durante esta nossa conversa”,
interrompo-o com um gesto. “Mas confesso que estou a ter sérias dificuldades em
continuar a sê-lo. Convença-se de uma coisa, Gonçalo, você não tem nada a ver com
este assunto. E agora dê corda aos sapatos e ponha-se a andar, antes que eu o faça por
si.”
Ele dá a volta à mesa; os punhos cerrados, as pupilas qual duas esferas de
ébano, fixas em mim.
83
Eu penso que o tipo é mesmo chanfrado, e desencosto-me da secretária,
ficando assim pelo menos uma cabeça mais alto do que ele.
Ou por isso, ou por outra razão qualquer, ele decide que o lado de cá da
mesa era o sítio onde queria chegar. Aponta-me um dedo acusador, sem,
todavia, tentar aproximar-se mais de mim.
“Você vai ter notícias minhas. E então vai ver como elas lhe mordem. Passe bem.”
E, dito isto, sai porta fora, batendo com ela.
Abano a cabeça e dou a volta à secretária para me sentar. Pouso o cachimbo
na base, pensando quão enganado estive durante estes anos, ao chamar lorpa
ao Gonçalo.
Ele é um verme.
===================¤==================
Saio da piscina depois de ter feito uma hora de bruços e mariposa, para tirar
os nós das costas após uma tarde de seca sentado em frente ao computador,
a preparar uma minuta de contrato para uma joint-venture que um cliente
quer propor a uma empresa canadiana, para venda no mercado americano.
Se bem que estes contratos obedeçam a modelos que estão mais do que
estabelecidos, é sempre necessário verificar as cláusulas uma por uma, retirar
as que não interessam ao caso concreto e acrescentar ou modificar outras
84
quantas. Considerando o tipo de linguagem em que estes acordos são
normalmente escritos, não é de estranhar que consiga facilmente pensar em
coisas mais interessantes para fazer.
Estou a enfiar o saco de lona onde tenho os calções de banho, a toalha e o
resto da tralha que costumo levar para a piscina, na mala da moto, quando
sinto vibrar o telemóvel. Enfio o auricular na orelha e atendo a chamada.
“Olá, Catarina.” Digo, quando a vejo aparecer no visor minúsculo.
“Olá, pai. Estás bom?” Parece muito satisfeita.
“Sim, e tu?”
“Eu também. Sabes, agora que falei contigo sinto-me muito melhor do que antes.”
“Ainda bem. Fico contente por saber que gostaste da nossa conversa. Eu gostei muito
de te voltar a ver, e espero que possamos em breve ver-nos outra vez.”
“Oh, sim! Podíamos ir jantar os dois um dia...?”
“Certamente, filha. Quando quiseres. Mas combina sempre tudo com a tua mãe, para
ela saber onde estás.”
“Claro. Olha, sabes, disse-lhes hoje ao jantar que tinha falado contigo e que ias ser tu
a acompanhar-me ao baile.” Só hoje? Mas, então como é que o outro...
“Ah sim; e então, a tua mãe disse alguma coisa acerca disso?”, pergunto,
ligeiramente intrigado com o que acabo de me dar conta.
85
“Não, nada. Fez uma cara esquisita e depois disse, „se é isso que a menina quer‟ e
pronto. O Gonçalo é que parece que ficou furibundo. Olhou para mim com ar de
zangado e depois levantou-se da mesa. Às vezes não o percebo. Normalmente, até
tenta ser simpático comigo.”
“Há pessoas que são assim, estranhas”, digo, pensando mais uma vez na visita
de ontem. O tipo é mesmo um verme. Como não pôde levar a dele avante
comigo, vinga-se tratando mal a Catarina. Num repente, pergunto-lhe: “Ouve
cá, Catarina, quando lhes disseste que eu vou contigo ao baile, falaste-lhes no nosso
encontro de segunda?”
“Não, achei melhor não dizer nada. Como faltei à aula e tudo. Não te importas, pois
não? Disse só à mãe que te tinha telefonado e combinado tudo por telefone”, diz ela;
o embaraço patente na voz e no rosto.
“Não, claro que não me importo. Era só para saber, caso a tua mãe me perguntasse
qualquer coisa”, respondo meio distraído, ainda intrigado com o facto de o
Gonçalo já saber ontem que nos tínhamos visto na segunda, quando ela só
hoje é que lhes contou que tinha falado comigo, sem lhes dizer que nos
tínhamos encontrado.
Interrompo o meu raciocínio para dar atenção a mais uma pergunta da
Catarina.
“Ouve, pai; acerca do jantar... Pode ser na sexta?”
“Sexta, pode cl... não, espera, na sexta já tenho um outro jantar combinado.”
“Oh, que pena! Eu queria tanto jantar contigo nos teus anos. Não posso ir
também?”
86
Saber que ela se lembra ainda, ou que se deu ao trabalho de se lembrar, da
data do meu aniversário, que nenhum deles voltou a recordar depois da
separação, faz-me sentir bem.
Estou quase a dizer-lhe que venha, mas depressa caio em mim.
“Ahhh, acho melhor não. Sabes, é um jantar a meias com um amigo, o Leonel,
lembras-te, e vão uma série de pessoas que não conheço...”
Tento imaginar a minha filha no meio da companhia que o Leonel deve ter
arranjado para sexta, e nos sítios por onde vamos andar, e não me parece
muito boa ideia. “Mas podemos combinar para sábado.”
“Sábado, está bem p‟ra mim. Onde nos encontramos?”
“Não sei, diz-me tu o que fazes no sábado.”
“De tarde vou ter com as minhas amigas Mituxa e Filipa ao Colombo. Vamos ao
cinema.”
“Então fica combinado. Eu vou lá ter contigo. Quando souberes a que horas acaba a
sessão, telefonas-me para aqui.”
Despedimo-nos, com ela ainda muito satisfeita na sua reencontrada posição
de filha que descobriu que afinal tem um pai, e que até pode falar com ele.
Esta nova Catarina é de trato muito mais agradável do que a anterior, que só
me respondia por monossílabos e que, quando a tinha comigo, estava
sempre a perguntar-me se já eram horas de a virem buscar. Até ter deixado
de querer vir e passarmos a ver-nos apenas de fugida.
87
Houve alturas em que me perguntei se estaria a fazer alguma coisa mal;
outras em que pus a hipótese de a Mima, ou o Gonçalo, lhes estarem dizer
cobras e lagartos acerca de mim – coisa que, se tivesse visto o que vi ontem,
não me teria surpreendido nada.
Mas nunca consegui obter qualquer informação; quer a Catarina, quer o
Martim, fechavam-se sempre em copas e não respondiam a quaisquer
perguntas; nunca queriam falar da mãe, ou do que quer que fosse acerca da
vida deles na Lapa. Como se quisessem, a todo o custo, que eu não fizesse
parte dela – o que, depois do divórcio, não poderia, obviamente, ter sido de
outra forma.
Nunca nenhum me apareceu maltratado, nunca nenhum se queixou, e
estavam sempre desejosos de voltar para casa. A única coisa que pareciam
não querer era estar comigo. Como isso já vinha de antes da separação,
acabei por achar que tinham saído à mãe.
Mantivemo-nos em contacto apenas por teimosia minha, creio eu.
Mas, enfim, agora as coisas parecem ter mudado. Vamos a ver se esta nova
Catarina está para ficar, ou se é apenas uma interrupção temporária da
anterior. É que, essa, não me apetece nada ter de volta.
Só o tempo o poderá dizer.
Subo para a moto, ponho-a a trabalhar e saio do parque da piscina do
Primeiro de Maio em direcção à avenida do Brasil e à segunda circular, para
ir apanhar a A5.
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===================¤==================
A Mima telefona-me estou eu a almoçar sentado à secretária.
“A Catarina disse-me ontem que tinha falado consigo e que se tinham posto de
acordo quanto a ser o acompanhante dela no baile de apresentação. Fico satisfeita que
ela seja acompanhada pelo pai, porque assim é que deve ser.”
Eu não lhe digo o que penso, que me parece estranho que esteja satisfeita,
quando a história que a Catarina me contou é completamente diferente.
Falar-lhe nisso não me traria benefício algum, e poderia talvez causar
problemas à miúda.
“Como foi ela a pedir-me, tenho o maior gosto em a acompanhar”, atiro à sorte, mas
ela ou não percebe ou faz ouvidos de mercador.
“Mas, sabe, Jakez, trata-se de uma ocasião muito especial. Eu sei que você sabe
dançar, mas talvez fosse melhor tirar umas lições de reciclagem em danças de salão,
não lhe parece?”
Francamente! Considerando que fui eu quem a ensinou a dançar o tango
como ele deve ser dançado, e que, se não fosse eu, ela ainda contava os
passos na valsa.
“Ouve, Mima, eu vou acompanhar a Catarina. Já sei onde é, a data, e qual a farpela
que tenho de levar. Hei-de combinar com ela, para nos encontrarmos uma vez ou
duas, para acertarmos o passo. Mas isso é tudo. Não está nos meus planos tirar aulas
seja do que for. Está bem?”
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Suspiro resignado do outro lado da linha.
“Pois bem, Jakez, seja como você diz. Só espero que essa sua teimosia não cause
nenhum embaraço à Catarina nesse dia tão importante.”
“Mima; deixa-te de histórias, é só um baile.”
“Eu não vou sequer tentar explicar-lhe por que razão não é só um baile. Porém, vou
ter de confiar que não deixará a Catarina ficar mal. Adeus, Jakez.”
“Isso mesmo, Mima. Não te preocupes. Até depois.”
Irra! A comissão de organização subiu-lhe à cabeça. Imagino o que a pobre
da Catarina deve ter de aturar por causa do malfadado baile.
Mas agora reparo, nem sequer me falou na moto. Ela que era suposto estar
tão aborrecida comigo. Ter-se-á esquecido? Ou terá achado que não valia a
pena voltar ao assunto, depois de me ter mandado o Gonçalo? E eu tãopouco me lembrei de lhe perguntar quem lhes disse da nossa corrida por
Lisboa, mas que se lixe. Ao fim e ao cabo, que importância tem o que pensam
ou deixam de pensar a Mima e o Gonçalo.
A Mónica bate à porta para me dizer que está na hora de me pôr a andar, se
quiser chegar a tempo a Setúbal para o julgamento desta tarde. Agradeço-lhe
e começo a preparar-me. Com a Vasco da Gama em mau estado, devido ao
fogo e explosão da semana passada, e a nova ainda em fase de construção, só
a ponte velha é que dá acesso à margem sul do Tejo e, mesmo de moto, pode
levar-se uma eternidade.
90
Dobro a beca e enfio-a na pasta de couro juntamente com a papelada relativa
ao processo. Descalço-me, guardo os sapatos numa bolsa de lona, e visto o
macacão cinzento escuro com listas fluorescentes diagonais por cima do fato
castanho. Calço as botas e saio em direcção ao elevador.
No corredor dou de caras com um Pizarro de Almeida bem longe da
exuberância habitual. Avança de cabeça baixa, com ar preocupado, e mal me
vê. Preciso de dar um salto para o lado para não chocarmos de frente.
“Jakez, desculpe. Não, não o tinha visto”, diz, com ar macambúzio depois de se
cruzar comigo.
“Passa-se alguma coisa, Jorge?”
“Não, não. Porque pergunta?”, tenta disfarçar e recuperar alguma da sua verve
habitual.
“Você não parece estar nos seus dias.”
“Não, não é nada. Estava apenas a pensar numa questão que me puseram”, diz, sem
muita convicção.
“Ah, bom. Diga se quiser discutir isso.”
“Esteja descansado, esteja descansado. Obrigado pela oferta”, agradece, com um
abanar frouxo da mão esquerda à laia de saudação. E afasta-se em direcção
ao gabinete dele, que fica algumas portas depois do meu, no longo corredor
do escritório que arrendamos em conjunto.
Eu ainda fico a olhar para ele alguns momentos, mas depois lembro-me do
trajecto que ainda tenho de fazer e retomo o meu caminho.
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===================¤==================
Estranhamente, porém, a estrada está bastante desimpedida. Chego à ponte
sem problemas e sem demoras de maior para a hora. Faço o tabuleiro à
velocidade máxima permitida de trinta quilómetros por hora, para não ter a
carta imediatamente apreendida – uma daquelas medidas exageradas que
parece ter sido imposta a pensar no velho provérbio, „casa roubada, trancas
na porta‟, depois do trágico acidente de há quatro meses, em que dez pessoas
perderam a vida numa noite de sexta – quatro delas quando os carros em
que seguiam caíram do tabuleiro para o Tejo – em resultado de um choque
em cadeia causado por velocidade excessiva e condução irresponsável.
Entro na A2 propriamente dita com imenso tempo para gastar. O trânsito é
bastante fluído e resolvo não me pôr com velocidades e apreciar a paisagem.
Afinal, a grande vantagem de ter uma moto, não é poder furar as bichas e
chegar primeiro, é ter a liberdade de ver e sentir o que os enlatados não
sentem. Aliás, acho que eles sabem-no, e têm-nos uma inveja tão grande que
é por isso que passam a vida a meter-se connosco – e deixamos as coisas por
aqui, que é para não entrarmos em qualificativos feios; merecidos, sem
dúvida, mas não adequados a um dia tão bonito.
Hoje não estou mesmo para me chatear. Acho que este passeiozinho até
Setúbal veio mesmo a calhar, para me tirar do escritório e aproveitar este
tempo fabuloso de fim de Verão, que parece ter sido feito para andar de
moto.
92
Não há uma nuvem no céu, a temperatura está agradável e os inconscientes
que costumam pulular nas auto-estradas parecem ter arranjado coisas
melhores que fazer – ou, então, aprenderam finalmente a conduzir, quem
sabe. Não se pode pedir muito mais.
A moto quase se guia sozinha, direita que nem um fuso em relação à estrada.
Uma Touring por excelência. O novo sistema electrónico de estabilidade em
movimento por meio de giro-estabilizadores hidropneumáticos, apoiados em
amortecedores laterais em v invertido, com ligação directa a bolhas de nível
colocadas nos diversos pontos críticos de desequilíbrio, e os pneus
extralargos de desenho especial, fazem com que esta moto seja
extremamente segura de conduzir. Digamos que é quase preciso fazer força
para a fazer cair, seja a que velocidade for.
Como em deixa, começo a ouvir os primeiros acordes de Born to be wild dos
Steppenwolf, que me fazem pensar que está, talvez, na altura de ir dar mais
uma voltita até Espanha, comer uns bocadillos de jamon e fazer uns quantos
quilómetros de estrada boa sem ter de me preocupar com portagens.
Vou calmamente na faixa da esquerda, a ultrapassar um Touran, nem ele
nem eu em grandes correrias (e, portanto, aí a cento e poucos), quando vejo,
pelo retrovisor, um Jaguar cinzento-metálico com aspecto de novo,
aproximar-se a grande velocidade. Porém, ao contrário do que é uso
institucionalizado entre os apressados portugueses, que se acham no direito
de dizer „arreda‟ a quem mais vai na estrada, não vem a piscar
freneticamente com os máximos.
93
Tenho apenas tempo de pensar que se calhar é um que é civilizado e já está a
abrandar, quando tenho o gajo quase literalmente colado a mim. Devolvo,
imediatamente, o pensamento à procedência e dou gás à moto para não ir
fazer companhia ao gato que decora o capot.
Mas o tipo não descola. Vem-me à ideia que deve ser um apressado que
comprou o bicho à pouco tempo, e ainda não descobriu onde ficam os
máximos. Olhando com mais atenção para o retrovisor, porém, vejo que a
matrícula não é portuguesa, semelhante sim, mas não portuguesa. Pelo
estilo, parece de um país do leste europeu. O que explica, parcialmente, a
não utilização dos máximos. Se calhar, prefere servir-se apenas da buzina no
país dele, e este não tem; é o que me passa pela cabeça, antes de o carro estar
tão colado a mim que quase consigo sentir o calor do radiador.
Acelero novamente, passo os duzentos, e o gajo sempre atrás de mim. Para
onde quer que vá deve ir cheio de pressa. Mas eu não tenho nenhuma. Mudo
de faixa para o deixar passar e desacelero ligeiramente.
Mas o carro continua atrás de mim, acelerando ainda. Apercebo-me do
movimento, desço uma mudança e rodo a manete até ao fim para lhes
escapar, reduzindo drasticamente os níveis das baterias. O motor eléctrico
responde imediatamente, mas eles já traziam muita velocidade e batem-me
com o pára-choques na traseira; só o impulso e a estabilidade da moto me
livram de ir ao chão. Nesta altura começo a pensar que talvez não se trate
apenas de uma ultrapassagem mais agressiva do que é usual. Olho para trás,
e quando vejo as caras de facínoras dos tipos sentados à frente, tenho a
certeza que não me querem só ultrapassar.
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Subo a mudança e volto a acelerar, pondo assim distância entre mim e o
Jagas. Mas apenas por algum tempo, pois embora mais lento na resposta, o
motor do carro, seja qual for o combustível que usa, parece bem capaz de me
acompanhar. Mudo novamente de faixa, ultrapassando por dentro um
Porsche lilás – com o autocolante verde dos convertidos ao etanol colado no
pára-choques – cujo dono não fica muito satisfeito, mas não tem tempo de
reagir; antes de chegar com o pé ao acelerador já o outro lhe está a fazer a
barba tão rente que ele quase perde o controlo do carro.
Olho para o velocímetro, já passei dos duzentos e sessenta e os tipos não
descolam. O Jaguar não tem, ou então devem ter-se livrado do corte de
alimentação. Assim não me safo. Não faço a mais pequena ideia de qual a
velocidade que eles podem atingir, mas sei que a minha moto não dá muito
mais.
À minha frente vejo aparecer um daqueles cachos de veículos que,
juntamente com zonas sem movimento algum, parecem normalmente
caracterizar o trânsito interurbano. Dois camiões ao despique nas faixas de
dentro e um velho Mitsubishi Galant na da direita. Não tenho muito por
onde escolher, os tipos já estão quase outra vez em cima de mim. Dou tudo
quanto a moto tem e, tendo Bat out of Hell por banda sonora, enfio pelo meio
dos dois camiões, esperando que nenhum deles seja anti-motard.
É engraçado como há momentos na vida que parecem durar séculos. Tive
tempo de contar trinta e seis rodas, ver que um dos camiões era holandês e o
outro vinha do Porto, ver a cara de espanto do motorista do da direita
reflectida no espelho retrovisor e sentir o da esquerda guinar para fora e
95
começar a travar para não bater no rail de protecção, tudo antes de sair
disparado por entre os dois.
Ainda consigo respirar de alívio, antes de me aperceber que o Mitsubishi é
forçado para fora da estrada, atravessa a faixa de emergência e sobe
desajeitadamente a berma, partindo o eixo da frente e expelindo o cilindro de
metano do porta-bagagens.
Do lado direito do camião holandês sai o Jaguar enfurecido – o farol da
direita partido, metade da grelha metida dentro e o pára-choques a precisar
de arranjo depois do encontro com o Mitsubishi – que vem direito a mim
como um monstro zarolho.
Estou a pensar que já não devo chegar a Setúbal, até porque as baterias estão
nos últimos vátios, quando vejo a salvação à minha frente. Deixo-os
aproximar até estarem quase em cima de mim, desvio-me para a direita e
atravesso a via em diagonal, evitando a custo a trajectória de uma El-Express
dos correios que segue, pachorrentamente, na faixa de fora.
Entro na escapatória da estação de serviço ainda a mais de duzentos, mas
tenho a moto sob controlo e quando chego à praça de abastecimento já levo
bastante menos velocidade. Sigo ao longo do canteiro ajardinado, mantendome paralelo à auto-estrada, sem perder de vista o Jaguar, mas, como
esperava, eles não mais puderam fazer além de continuar em frente. Ainda
os sigo com os olhos durante alguns segundos, mas depois desaparecem de
vista.
Respiro finalmente de alívio e acho-me um tipo cheio de sorte.
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Deixo a moto no parque a carregar e dirijo-me lentamente para a cafetaria. A
sala está quase vazia. Decididamente, hoje há pouca gente a viajar para estes
lados. Tiro uma água do expositor, pago à menina e sento-me numa mesa ao
pé de uma das janelas, a pensar no que acabou de me acontecer, enquanto
espero que as pernas parem de tremer.
Que raio de porra foi aquela?!
Quem eram aqueles gajos?
Eu não conheço ninguém a leste da Suíça, nem sequer alguma vez visitei
algum sítio a leste da Suíça! Como é que, subitamente, tenho um Jaguar de
um país de leste qualquer colado às costas, com intenções manifestas de me
passar a ferro?
Dou voltas e mais voltas à cabeça, mas não consigo encontrar resposta para
nenhuma das perguntas. Os gajos devem ter-se enganado na moto, queriam
apanhar outro tipo e confundiram-me com ele; ou então fizeram aquilo
apenas pelo gozo doentio de pôr mais um motard fora da estrada.
Há realmente malucos para tudo.
===================¤==================
O resto do trajecto até Setúbal correu sem incidentes; o Jaguar não voltou a
dar sinais de si e consegui chegar ainda com tempo ao tribunal.
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Passei duas horas a discutir a propriedade de uma quinta com um advogado
muito chato, a interrogar testemunhas que devem ter sido arroladas por
grosso – para dar ao pedido a substância que a realidade lhe nega – e a ouvir
o chorrilho de mentiras inventado pelo autor do pedido, para se abarbatar
com uma quinta que nunca foi dele, e que nunca ninguém teve intenção de
lhe vender, e muito menos oferecer.
O problema existe apenas porque o proprietário da quinta faleceu há já
algum tempo, depois de ter estado doente e ausente durante vários anos, e o
autor aproveitou-se disso para fazer constar a quem o quis ouvir que a
quinta lhe tinha sido vendida, embora não apresente registo de tal venda,
nem tão pouco escritura. O homem passou realmente a ocupar a
propriedade a partir de dada altura, e reclama que a quinta é dele de
qualquer forma, que mais não seja por força do instituto da usucapião,
porque já a ocupa e cultiva incontestado há mais de vinte anos.
Se é verdade que ele cultiva a quinta, ou tem alguém que o faça por ele, pois
não o estou a ver guiar um tractor, quanto mais pegar numa enxada, é,
contudo, uma completa mentira que o faça há mais de vinte anos. Há vinte
anos ainda o dono estava de boa saúde e fiscalizava ele mesmo as vindimas
de um dos melhores moscatéis roxos de que há registo, isto sei-o eu sem
margem para dúvidas, porque o conhecia desde muito antes e estive várias
vezes com ele na quinta.
O tipo ocupará a quinta quando muito há uns dez anos, desde que a doença
do proprietário se agravou e este teve de se ausentar para tratamentos. Deve
ter conseguido os bons ofícios do caseiro, que hoje trabalha para ele e
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também é testemunha, e entrou pelo portão adentro com clara intenção de
deitar mão às vinhas, e já agora ao terreno também.
Os herdeiros foram difíceis de encontrar, mas quando finalmente
apareceram, quiseram tomar conta das propriedades, entre as quais a quinta,
para onde pensavam ir viver. Imagine-se o espanto quando deram de caras
com o novo „proprietário‟. Que logo tratou de intentar acção em tribunal
para confirmar o título que diz ter.
Isto parece saído de uma telenovela, mas infelizmente é pura realidade. E o
pior é termos tido de vir aqui perder tempo com esta fantochada.
Ao fim de duas horas, o juiz, possivelmente tão farto como eu, adiou a sessão
para data a marcar.
Saio para o corredor do tribunal e fico a conversar alguns minutos com o
casal de herdeiros, ela portuguesa e ele australiano, que se propõem retomar
as propriedades do tio avô dela e continuar a produzir vinho. Digo-lhes as
verdades de circunstância que é costume dizer nestes casos, explico-lhes que
não vejo qualquer hipótese no pedido do autor, mas que vai ser preciso
esperar mais algum tempo até termos uma decisão.
Achei por bem não falar nos obstáculos que o advogado da parte contrária
poderá ainda levantar, nem tão pouco nos recursos que poderá
eventualmente interpor.
Despeço-me deles, recolho o saco com as botas e o fato-macaco que deixei na
secretaria e saio do tribunal para ir buscar a moto que estacionei no parque.
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Vou a descer os degraus laterais, a acabar de fechar a pasta quando, ao
levantar a cabeça, vejo parado, do outro lado da praça, o Jaguar, cujos
ocupantes tanto interesse pareciam ter em fazer de mim estatística
rodoviária. Deixo imediatamente de ter dúvidas quanto a não ser eu quem
eles queriam.
Dir-se-ia não me terem ainda visto, ou então não me reconheceram sem o
fato macaco vestido. Pouso a pasta e o saco para maior liberdade de
movimentos e avanço calmamente na direcção do carro, esperando apanhálos desprevenidos e perceber, finalmente, porque é que tentaram acabar
comigo.
Mas, ou porque me viram, ou porque decidiram ir-se embora, o Jaguar
arranca subitamente com um chiar de pneus e deixa-me especado a meio do
largo, sem hipótese de o alcançar.
Cada vez mais estranho.
Os transeuntes que circulam pelo largo olham para mim e uns para os outros
com ar de quem não percebe muito bem o que acabou de se passar.
E de todos sou eu quem percebe menos.
===================¤==================
Decidi regressar a Lisboa pela N10, não fosse o Jaguar estar à minha espera
na auto-estrada.
100
Levei muito mais tempo, mas pareceu-me bastante mais seguro. A ideia de
fazer de rato a fugir de um gato com uma tonelada e meia de peso, a mais de
duzentos quilómetros por hora, não me parece muito aliciante.
Chego à portagem da 25 de Abril sem novidades de maior. Sigo pelo canal
da via verde da direita e vejo os meus amigos na bicha do bilhete, duas filas
mais à esquerda; o Jaguar cinzento inconfundível, com o pára-choques
amolgado e o farol partido. Não resisto, dou-lhes uma buzinadela e aceno
com a mão.
Quando me reconhecem, em discussão acalentada ainda tentam sair da fila,
tocam a buzina e fazem gestos para os deixarem passar, mas são
imediatamente silenciados por um buzinão e uma mão cheia de insultos,
atirados por quem, felizmente neste caso, não compreende faltas de
fidelidade à bicha.
Passo na portagem e deixo de os ver; mais uma peça no puzzle de
automóveis que lentamente se vai encaixando na ponte.
Decido ir ao escritório antes de regressar a casa. Saio da auto-estrada em
direcção à praça de Espanha, subo a avenida de Berna, atravesso a avenida
da República, continuo pela João XXI, entro na avenida de Roma e viro para
a praça de Londres. Deixo a moto no passeio em frente à Mexicana, para não
perder mais tempo, e desço a pé até ao escritório.
São sete e meia da tarde e o Sol já vai a caminho do horizonte; as sombras
dos prédios a dar aos passeios um descanso do calor que os aqueceu até
agora, embora a claridade do dia esteja ainda longe de nos deixar. Está um
fim de tarde muito agradável, próprio para um passeio; a brisa que
101
entretanto se levantou a ajudar a dispersar algum do calor que se fez sentir
durante as horas mais quentes do dia. Porém, a Guerra Junqueiro está quase
deserta de gente e de carros, nem parece ter sido daqui que saí no princípio
da tarde. Apesar do horário alargado até às dez da noite ter começado já a
fazer parte do dia-a-dia de muitas lojas, nesta avenida ainda há muitas que
fecham às sete. Especialmente nesta época do ano, em que ainda há tanta
gente de férias.
A porta do prédio já está fechada.
A esta hora nem vale a pena tentar a campainha porque já não há ninguém
que a possa abrir. As secretárias saem às seis, e se há algum advogado que
fique a fazer serão, não se vai dar ao trabalho de ir à procura do trinco.
Tiro o porta-chaves do bolso, procuro a chave que diz GJ1, abro a porta de
ferro e entro para o átrio de mármore cinzento e preto. Ao lado esquerdo ao
fundo, uma secretária minúscula em madeira preta, um telefone
antediluviano avariado em cima do tampo, e uma cadeira preta de cabedal
em mau estado, à qual já faltam alguns dos pregos decorativos em latão. Do
lado direito, a fiada de caixas de correio que servem os vários escritórios e
residentes do prédio.
À minha frente, por entre colunas de mármore a lembrar ao clássico fica o
elevador. Mais uma peça claramente antediluviana, embora esta esteja a
funcionar. Abro a porta exterior de metal canelado, corro a segunda porta de
harmónio em aço e entro para a cabine de madeira escura, que tem um
espelho ao fundo e duas janelas, uma de cada lado. Os botões são brancos e
redondos, a imitar marfim, sobressaindo de uma placa de latão, tão polida
102
que podia servir de espelho. Carrego para o quinto andar e espero,
calmamente, enquanto o elevador se põe em marcha e me transporta, muito
lentamente, até ao patamar do escritório.
Não consigo realmente perceber o que me aconteceu hoje. Quem seriam
aqueles gajos? Porque é que me perseguiram daquela maneira? E com tão
óbvias intenções homicidas?
Os tipos vinham mesmo decididos a deixar-me estendido na estrada. E só
por sorte não o conseguiram. Terei de passar a manter debaixo de olho todos
os carros que vir no retrovisor? Enfim, mais do que já faço hoje. Ou, pior
ainda, terei de passar a andar de automóvel?... Não, mas que péssima ideia.
Prefiro arriscar-me a novo encontro com os amigos de leste, a ter de usar o
carro todos os dias.
Entretanto, chego ao quinto andar. Saio do elevador e, com a chave marcada
GJ2, abro rapidamente a porta cor de vinho que tem uma placa que diz
“Advogados”. Entro com os dedos prontos para digitar o código do alarme,
que já está a piscar os trinta segundos de aviso.
Avanço ao longo do átrio adormecido, iluminado pela claridade que entra
através dos estores corridos e pelo lusco-fusco das lâmpadas de emergência,
e, dando ainda voltas à cabeça acerca dos tipos do Jaguar, percorro o
corredor até à minha porta que, como de costume, está aberta.
Pouso a pasta em cima da mesa, abro-a e retiro de lá a beca, que penduro no
cabide atrás da porta. Pego no saco de ginástica que vim buscar e volto a sair
do gabinete.
103
Quando saio e volto à quase penumbra do corredor, oiço música a tocar
baixinho e reparo que passa luz por baixo da porta do gabinete do Pizarro de
Almeida. Penso que deve ter-se esquecido de desligar o candeeiro e o rádio e
resolvo fazê-lo eu. Atravesso o espaço que separa os nossos gabinetes em
duas passadas. Vejo que a porta está fechada, mas não me dou ao trabalho de
bater, se o alarme estava ligado é porque não há ninguém aqui dentro.
O Pizarro de Almeida está sentado à secretária, com os olhos fechados rasos
de lágrimas e o cano de uma pequena pistola encostado à cabeça, enquanto o
Elvis lhe diz que “you‟re always on my mind”.
Vejo que o Jorge parece disposto a carregar no gatilho e de um salto estou em
cima da secretária – o estalar de vidros no chão a dizer-me que já fiz estragos.
Arranco a arma das mãos tremelicantes do aspirante a suicida, que abre os
olhos apavorado e que, ao olhar para mim, dir-se-ia estar a olhar para um
fantasma da comissão de boas-vindas do outro lado.
Depois debruça-se sobre o tampo da secretária e começa a chorar
convulsivamente, descarregando toda a tensão que não pôde descarregar
através da pistola. Eu deixo-o estar, não tenho muita experiência com
suicidas, mas parece-me que o melhor é não falar com ele até ele querer falar
comigo.
Desço da secretária e olho finalmente para a arma que tenho na mão, uma
Walther PPK; boa arma, sem dúvida, de fácil manejo e maneirinha, embora
não seja o tipo de pistola automática que mais me agrada. Volto-a e sorrio
para comigo. Não houve realmente grande perigo, o desgraçado estava tão
104
em baixo que se esqueceu mesmo de mudar a posição da patilha de
segurança. A arma não teria disparado. Porém, acho melhor não lho dizer.
Ele continua a chorar, ainda que agora menos convulsivamente. Penso em
arranjar-lhe uma bebida, mas o cheiro a aguardente velha que vai inundando
o gabinete a partir dos cacos que a minha intervenção desastrada deixou na
carpete, faz-me mudar de ideias. É capaz de já ter bebido que chegue.
Vou ao mini frigorifico onde sei que ele tem a água mineral e encho-lhe um
copo.
Volto à secretária e pouso-o em frente dos seus braços cruzados.
Ele pára finalmente de chorar, levanta a cabeça, e olha para mim com os
olhos vermelhos de lágrimas. Pega no copo com mão tremente e bebe um
pequeno gole de água.
“Peço imensa desculpa, Jakez. Não queria ter-lhe causado problemas. Não era
suposto estar aqui alguém”, diz e volta a soluçar, quase deixando cair o copo.
“E não estava. Eu acabei de chegar. Felizmente”, respondo calmamente, para não
o fazer sentir pior. “Posso ajudá-lo, Jorge? Não sei qual o problema que o preocupa,
mas matar-se não o iria certamente resolver. Pense na sua mulher e nos seus filhos,
que teriam ficado sem si.”
Ele olha para mim, acena com a cabeça e recomeça a chorar.
“Sabe, Jakez”, diz, quando consegue parar de soluçar, “foi precisamente por
causa dos meus filhos que eu; que eu...” Os soluços interrompem-no mais uma
vez. Eu deixo-me ficar à espera. Sento-me numa das poltronas que rodeiam a
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mesa de café que o Jorge usa para as reuniões com clientes, tiro o cachimbo
do bolso e começo a encher o fornilho para ter alguma coisa que fazer.
O Jorge acaba por conseguir interromper o choro. Limpa os olhos com um
lenço de seda que tira do bolso do casaco, bebe a água que lhe pus à frente, o
copo trémulo em mãos ainda inseguras; funga ruidosamente para segurar as
lágrimas, cruza novamente os braços e dispõe-se a falar:
“Aqui há uns tempos, numa viagem que fiz a Madrid, conheci uma rapariga que me
deixou perdido de amores.” Faz uma pausa. Eu não digo nada, aproveito para
acender o cachimbo e ele prossegue. “Sabe, Jakez, eu não tenho, nem nunca tive,
uma vida muito interessante. Casei-me muito novo, mal acabei o curso, e tenho
passado o resto do tempo a trabalhar e a ganhar dinheiro para comprar coisas para a
minha mulher, pagar os estudos dos meus filhos e o que mais fosse necessário. As
viagens que fiz foram quase sempre com a família, ou em trabalho. Nunca fiz
realmente nada que pudesse sentir que se destinava apenas a mim.” Encolhe os
ombros. “Foi assim que fui educado. Um homem trabalha, e torna-se um melhor
homem pelo bom trabalho que apresenta. De há uns anos para cá, porém, comecei a
questionar isso tudo. Crise de meia idade, desequilíbrio emocional, sei lá! Ou talvez
estivesse apenas a cair em mim, a pensar finalmente por mim próprio, em vez de
seguir os cânones que me foram ditados.” Olha para mim, como que para me
pedir que aceite as suas justificações. Mas eu não sei o que lhe diga. Torce as
mãos e faz estalar os dedos, nervosamente, enquanto prossegue.
“A minha mulher e eu há já muito que não nos damos bem. Os anos que temos
passado juntos parecem ter servido apenas para crescermos em sentidos divergentes.
Ela cada vez mais conservadora e tradicionalista, e eu questionando mais e mais o
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que me rodeia... Está certamente a pensar, há uma solução para isso, chama-se
divórcio, não é?”
Eu tiro o cachimbo da boca e abro os braços num gesto que espero signifique
que não estou a pensar o que ele pensa que eu estou a pensar, embora esteja.
Mas ele não me está realmente a prestar atenção; o discurso é para si mesmo,
eu não passo de uma tábua de ressonância.
“O problema está em que, a Madalena não acredita no divórcio e eu, apesar de tudo,
nunca fui capaz de tomar essa decisão. Divorciar-me da Madalena faria desmoronar
toda a estrutura à volta da qual construí penosamente grande parte da minha vida.
E, apesar de questionada, essa estrutura é a única coisa que me serve de apoio. Por
isso, fui-me deixando ficar.
Em vez de me separar da minha mulher, comecei a fazer como ela, arranjei interesses
extra matrimoniais... Oh, não me interprete mal, não estou a dizer que a Madalena
me seja infiel – nem que eu lho fosse, a princípio. Por interesses extra matrimoniais,
quero significar coisas feitas sem a participação do outro, ou sequer sem que o outro
saiba. Ela tem um grupo de amigas, com quem vai aqui e além. E eu comecei a
inventar viagens de negócios a sítios onde nunca tinha ido e sempre quis visitar.” Rise e encolhe os ombros. “Foi tudo muito inocente, a princípio... não, eu diria antes,
que tudo foi sempre muito inocente, pois nunca senti que estava a enganar a minha
mulher, nem mesmo quando conheci a Raisa. O nosso casamento estava morto há
muitos anos, nós é que ainda não nos tínhamos apercebido disso.” Faz nova pausa,
o olhar perdido na estante dos códigos.
“Enfim, para encurtar a história, aqui há uns tempos, em Madrid como disse,
levaram-me a um clube de striptease. O Jakez já foi a algum?” Digo-lhe
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distraidamente que sim para não o fazer perder o fio à meada. “Eu achei que
era um sítio fantástico. A decoração, a música, as bebidas e, claro, as raparigas. Todas
extremamente bonitas, e cada qual mais simpática. Vieram à nossa mesa, sentaramse connosco a conversar, e todas completamente despidas! Tudo aquilo foi uma
completa novidade para mim. Voltei lá uma e outra vez, e mais uma vez ainda. Não
conseguia afastar-me do sítio. Estava hipnotizado, como um insecto por uma
lâmpada. E foi lá que acabei por conhecer a Raisa. Ela era, é, bailarina... Começámos
a ver-nos fora do clube, ela dizia que gostava de mim, e eu acreditei... Que parvo,
meu Deus! As últimas vezes fiquei com ela num hotel... Enfim, pode imaginar como
ocupámos o tempo.” Termina, meio embaraçado.
“Há uns poucos dias recebi um envelope com fotografias a cores. Muito nítidas. E
uma carta em que me diziam que se não pagasse o que me pediam, a minha mulher
seria apenas a primeira a saber. Depois fariam circular as fotografias por toda a gente
que me conhece. Deram-me até ontem para lhes entregar o dinheiro...” Começa
novamente a soluçar. “A minha primeira reacção foi que era tudo uma brincadeira
de mau gosto. Não podia ser verdade. Tentei telefonar à Raisa, deixei-lhe não sei
quantas mensagens, mas não obtive qualquer resposta. Até que caí em mim. Tudo
não tinha passado de um esquema; o conhecer-me e o dizer-se apaixonada por mim,
nada mais tinha em vista do que chegar àquilo. Passei metade do dia de ontem e do de
hoje agarrado ao telefone. Liguei para a minha família e para toda a gente que
conheço, inclusive até para alguns que não conheço assim tão bem, e tentei pedir
dinheiro a todos... Mas pouco ou nada consegui, entre uma desculpa e outra quase
todos se recusaram... Era demasiado dinheiro, Jakez. Eu bem tentei, mas não
consegui arranjar tudo o que eles queriam. Nem metade sequer. E tudo o que eu
tenho está em nome da Madalena, não lhe posso mexer sem ela saber. Tentei
convencer os tipos que me telefonaram ontem com indicações de onde deveria
entregar o dinheiro, tentei convencê-los que não podia pagar-lhes, mas não me
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ligaram nenhuma”, diz, entre fungadelas. “Agora já nada me pode salvar.” Apoia
os cotovelos no tampo da secretária e esconde a cabeça entre as mãos.
Eu aproveito a deixa.
“Percebo que isso lhe possa parecer um problema insolúvel, mas tente ver as coisas
pelo lado positivo. Talvez você se possa antecipar a quem está a fazer chantagem
consigo. Conte tudo à sua mulher. Afinal, foi o Jorge mesmo quem disse que o vosso
relacionamento é mais uma coexistência pacífica. Que razão teria ela para não aceitar
que você possa ter conhecido outra pessoa? E, uma vez aceite isso, que haverá a dizer
a fotografias, tiradas sem o seu consentimento, nos momentos mais íntimos dessa sua
nova relação? Podem ser de mau gosto, mas não vejo em que isso o possa prejudicar.”
Ele continua a segurar a cabeça entre as mãos, limitando-se a abaná-la de um
lado para o outro sem dizer nada. Fica assim durante alguns minutos antes
de recomeçar a falar.
“Não sei como lhe hei-de dizer, mas não é assim tão simples... A Raisa fez-me
descobrir coisas que eu desconhecia. Formas de sentir prazer de que eu nunca tinha
ouvido falar e que nunca teria sequer imaginado pudessem existir... Ela gosta de usar
acessórios, muitos acessórios, e fez-me usar acessórios. E eu gostei. Tudo isto está
bem patente nas fotografias. E nunca há qualquer dúvida que sou eu que ali estou.”
Recomeça a chorar convulsivamente.
“Estou desgraçado!. Serei apontado a dedo por toda a gente. Os meus filhos vão ser
gozados na escola. E tudo porquê? Porque fui estúpido ao ponto de acreditar na
conversa de uma dançarina exótica. Como é que eu pude sequer pensar que uma
mulheraça daquelas poderia estar minimamente interessada em mim!? Como se pode
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ser ingénuo a esse ponto?” Os soluços tomam mais uma vez conta dele e não o
deixam continuar.
“Compreendo que a situação lhe possa parecer desesperada, Jorge, mas isso é apenas a
sua impressão das coisas”, digo eu, para o confortar. “Você poderá ter sido
ingénuo – ou talvez não, na mesma situação, quem sabe quantos teriam acreditado
no que você acreditou – mas não cometeu crime algum. Por mais embaraçante que
lhe possa parecer agora a ideia de ver os seus momentos íntimos passar a domínio
público, se as fotografias forem mesmo divulgadas e se alguém se interessar por elas o
suficiente para as publicar, quero eu dizer, a verdade é que, isso, como tudo o resto,
acaba por ser esquecido, e daqui a umas semanas já ninguém se lembra da história.”
Mas ele não parece convencido. Continua com a cabeça entre as mãos, as
orelhas tapadas pelos braços como para não me ouvir. Tento uma
aproximação diferente.
“O que eu quero dizer, Jorge, é que, por mais que assim lhe possa parecer agora, não
creio que isto seja motivo para você se matar, homem! Afinal, por mais acessórios que
tenham utilizado, por mais esquisitas que tenham sido as posições, ainda foi você que
esteve com ela – uma mulher deslumbrante e extremamente desejável, segundo
percebi. Se alguma coisa for dita, será certamente fruto de inveja. E isso, meu caro,
não é motivo de embaraço.”
Dir-se-ia que começou a prestar mais atenção.
“Quantos tipos é que você pensa que gostariam de ter estado no seu lugar? Quantos
não teriam gostado de passar umas noites num hotel, com uma mulher lindíssima
que se diz apaixonada por eles, mesmo sabendo que tudo não passava de uma farsa?
Para lhe dizer a verdade, conheço mesmo alguns que se teriam lançado de cabeça à
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oportunidade, mesmo correndo o risco de ver as suas proezas, ou miseráveis
falhanços, publicados num qualquer pasquim bisbilhoteiro... E até outros haveria,
talvez, que o fariam contando com essa publicação!”, acrescento, tentando
levantar-lhe mais o moral. Realmente, parece mais animado, embora não
completamente convencido.
“Talvez tenha razão, Jakez. Talvez as coisas se passem assim. Mas é com outros,
comigo trata-se mesmo de um desastre irremediável. Quando isto se souber, vou ser
trucidado. Porém, não se preocupe, acho que perdi a coragem. Não vou ser capaz de
puxar o gatilho. Em vez disso, vou ter de aguentar o que quer que seja que aí venha.
Divórcio – quando souber disto, a Madalena vai mandar a tradição às malvas.
Vergonha – minha e dos meus filhos, por terem um pai depravado. Vai ser bonito.”
Enxuga as lágrimas com o lenço e ajeita a gravata, já mais recomposto.
“De qualquer modo, agradeço-lhe a sua ajuda, Jakez. Do fundo do coração. E agora,
acho que vou para casa. Preciso de descansar. Dizem que a noite é boa conselheira,
por isso, vejamos que conselho me dá. Pelo sim, pelo não, amanhã não venho ao
escritório. Vou deixar um bilhete à Marta, para não me incomodarem em casa. Se as
fotografias aparecerem mesmo, é melhor que não tenha mais nada com que me
ocupar.”
Levanta-se da cadeira e eu levanto-me com ele. Rodeia a secretária e vem na
minha direcção com as mãos estendidas. Aperta a minha mão direita entre as
suas, os olhos mais uma vez lacrimejantes, e diz-me “Obrigado!”, antes de se
afastar. Dou-lhe uma palmada nas costas e aperto-lhe o ombro esquerdo
quando passa por mim.
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“Coragem, Jorge. Vai ver que amanhã tudo lhe parece muito menos desesperado.
Oiça, se não se importa, eu fico com a arma ainda por algum tempo, está bem?”
Olha para mim com ar de quem não percebe, mas depois acena que sim.
Encolhe os ombros, como quem diz „não importa, já nada importa‟.
“Quer que eu o acompanhe a casa?”, ofereço.
“Obrigado, Jakez, é muito gentil da sua parte. Mas não é necessário incomodar-se.
Vou apanhar um táxi à praça ali de baixo e ponho-me lá num instante.”
“Veja lá, não me incomoda nada.”
“Não, não, deixe estar. Eu prefiro ir sozinho. Mais uma vez, obrigado por tudo.”
Pega na pasta que, como sempre, tinha deixado no cadeirão mais perto da
porta e sai sem dizer mais uma palavra.
Ainda penso novamente em ir com ele, mesmo sem ele querer, mas depois
mudo de ideias. Já tem idade para saber o que quer. Se diz que quer ir
sozinho, é deixá-lo ir sozinho. Talvez lhe faça bem, pensar de si para consigo
acerca da melhor forma de gerir o problema.
Dou uma arrumadela às cadeiras, levo os copos sujos para a cozinha, deixo
um bilhete à empregada para a avisar dos cacos, desligo o rádio e a luz do
gabinete, pego no meu saco que ficou no chão do lado de fora da porta, e
depois de voltar ao meu gabinete para fechar a pistola no cofre, retomo o
caminho que interrompi há mais de hora e meia.
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===================¤==================
Estou em casa a lavar os pratos do jantar quando volto a pensar no Jorge
Pizarro de Almeida. Pobre desgraçado. É mesmo o tipo de homem ideal para
este género de esquemas extorsionários. Uma vida aparentemente certinha,
com tudo no seu lugar. Casado e com filhos, estável na profissão,
dependente dos relacionamentos que tem, enfim, um homem com tudo a
perder.
O céu deve ter-lhe caído das nuvens quando lhe chegaram as fotografias. A
mulher de sonho que julgava ter conhecido, subitamente transformada em
criatura de pesadelo. Tudo o que tinha construído até então prestes a ser
virado de pantanas. Não admira que se tenha sentido desesperado.
Espero que consiga encontrar coragem para contar à mulher. Tudo será
muito mais simples, se for ele a apresentar a história. Com um bocado de
sorte, até pode ser que ela perceba e se deixe ficar ao lado dele, pelo menos
enquanto estiver em baixo.
Ponho o tacho e a panela a escorrer na grade de plástico. Acabo de limpar os
pratos, o copo e os talheres já escorridos com o pano de algodão, arrumo
tudo no armário e vou para a sala, com um desvio pela casa de banho para
lavar os dentes.
Indeciso agora entre passar o resto da noite a rever The Thing e Escape from
New York, os dois filmes da dupla John Carpenter-Kurt Russell que tinha
separado quando cheguei a casa, ou afundar o nariz no que me falta ler de A
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Montanha Mágica, ao som de Bach, acabo por me decidir pelo livro. Esta noite
sinto-me mais para o contemplativo. Comparadas com o que me aconteceu
esta tarde, as aventuras de Snake Plissken e do outro personagem cujo nome
não recordo, iriam parecer-me talvez um pouco chochas. Enfim, salvas as
devidas distâncias.
===================¤==================
“Então, ó velhadas, quarenta e cinco, hem? Aposto que hoje de manhã foste a correr
para a casa de banho, ver se isso ainda levantava, não?” Primeiras palavras do
Leonel, na mensagem de parabéns que me deixou no telemóvel. Nada de
extraordinário, a mensagem é quase invariavelmente a mesma, só muda o
numerário – aliás, o mesmo se possa dizer das que lhe deixo a ele. “Olha, pá,
eu sei que começa a ser difícil recordares-te das coisas. A memória recente é das
primeiras faculdades que se perdem com o avançar da arteriosclerose, mas vê-lá se
não te esqueces disto: Deixa a moto em minha casa – tu tens a chave da garagem. Eu
depois passo a buscar-te. Tem um bom dia. Até logo.” As últimas frases foram
ditas muito devagar, palavra a palavra, como se falasse com uma criança ou
com alguém com um sério handicap.
É claro que não me esqueci de deixar a moto, e um saco com uma muda de
roupa, em casa dele. Nem teria sido preciso recordar-mo, mas ele gosta de
fazer estas palhaçadas, de mostrar que é mais novo do que eu, ainda que só o
seja pouco mais de três semanas.
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Quando cheguei ao escritório, não havia qualquer sinal de alguém ter dado
por se ter passado alguma coisa fora do comum. A recepcionista-telefonista é
normalmente a mais atenta, parece ter um faro especialmente apurado para
descobrir o tipo de novidades, com ou sem pinga de verdade, que a mantém
no topo da „bilhardisse‟ do prédio. Mas, ao entrar recebeu-me apenas com o
sorriso cínico e o olhar oco dos dias mortos. Nenhum sinal na sua expressão
dava a entender que uma novidade tão sumarenta como uma tentativa de
suicídio, pudesse ter tido lugar naquele escritório. Nem tão pouco os cacos
no gabinete do Pizarro de Almeida lhe devem ter parecido suficientemente
interessantes, para os incluir no seu reportório diário.
A Marta também me pareceu a mesma de sempre, ocupada, mesmo que hoje
só tenha a Maria Helena Marques para lhe dar que fazer.
Ainda bem. O homem já tem que baste sobre os ombros, não precisa de se
sentir também objecto de falatório no sítio onde trabalha.
A Catarina telefona-me pouco depois de me ter sentado à secretária. Um
telefonema rápido entre duas aulas. Falamos de amanhã e desejo-lhe um
bom-dia antes de desligar e começar a tratar de papelada.
Passei a manhã de volta de uma informação sobre os níveis aceitáveis de
endividamento para sociedades, segundo a lei portuguesa, para depois a
enviar por fax para o escritório de advogados de Filadélfia que ma tinha
pedido, para um cliente deles que tem uma sociedade em Lisboa, a meias
com uma outra empresa de Nova Iorque.
Durante a hora de almoço vou fazer o meu segundo treino semanal de
shorinji-kempo – bastante longe das duas horas cinco vezes por semana de
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há alguns anos. Depois, compro comida no sítio do costume e vou almoçar
para um banco no jardim da Alameda. Um dia tão bonito como está hoje,
pareceu-me um desperdício ir encafuar-me na Mexicana ou voltar a correr
para dentro do escritório.
Durante os anos que tenho conhecido esta alameda, e especialmente durante
os últimos vinte e seis ou vinte e sete, nunca a vi tão bem arranjada como
agora. A ideia de transformar o relvado central em socalcos e enchê-los de
árvores, sebes e bancos de jardim parece ter partido de um grupo de curiosos
da zona, cansados de ver o antigo relvado em permanente revolução, nunca
acabado e sempre maltratado. As pessoas começaram a vir sentar-se e a
ocupar o jardim recém-criado quando ainda estava muito no seu início,
durante a hora de almoço e também durante o resto do dia; o interesse foi
crescendo e a atenção dedicada ao seu arranjo também, até que a junta de
freguesia e a autarquia foram forçadas a prestar-lhe alguma atenção, para
poderem depois clamar alguma da glória da sua criação.
As sebes absorvem algum do ruído do trânsito que passa e as copas largas
das árvores proporcionam uma sombra muito agradável. É fácil esquecermonos que estamos no meio da cidade, mesmo ao pé do estaleiro de construção
que vai definitivamente transformar o antigo cinema no megalomaníaco
Templo do Reino de Deus. As duas torres de vidro em espiral coroadas por
cruzes flamejantes de néon, já se vêem por cima dos andaimes. Realmente,
quando se tem dinheiro, para que é preciso ter bom gosto.
Mas isso está lá fora. Aqui, debaixo das árvores, é preciso fazer um esforço
para ver o que se passa para além das sebes. E quem é que o quereria fazer?
Depressa se voltará lá para fora, por isso os momentos aqui passados são
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para serem bem aproveitados. À minha volta há gente sentada na relva, nos
bancos e nos pedregulhos espalhados aqui e ali, pelos socalcos suaves que
vêm desde o Técnico e vão até à Almirante Reis. Uns almoçam, como eu,
outros lêem o jornal, outros, ainda, fazem as duas coisas. Há velhotas a fazer
malha, amas com bebés que se rebolam na relva, pares de namorados que
namoram, nas mais diversas posições de equilíbrio e em diversos graus de
interactividade, e um casal de polícias que faz a ronda sem se meter com
ninguém. Realmente, as coisas mudaram muito nos últimos vinte e sete anos,
e não me refiro apenas ao arranjo do jardim.
Chego ao fim da meia hora extra que me dou para almoçar, deito a papelada
fora num dos caixotes e começo a descer na diagonal, em direcção à Guerra
Junqueiro.
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O Leonel telefonou a dar-me os parabéns e a avisar que iria chegar atrasado.
Quando toca à campainha de baixo já são quase oito. Nada que seja de
estranhar; o gajo é capaz de chegar atrasado ao próprio funeral.
Encontramo-nos no passeio.
“Então, pá, o que te aconteceu?”, digo à laia de saudação.
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“A mim especialmente, nada. Mas aconteceu a uma colega lá do banco, coitada. A
miúda vive ao pé de Oeiras e foi desterrada para Santarém. Estive com ela até agora a
ver se a consolava.”
Como me diz isto com ar sério, eu resolvo não lhe mandar nenhuma boca.
Apesar de se tratar de uma colega, é possível que o consolo tenha sido de
natureza assexuada. Apesar de tudo, o Leonel não deixa de saber comportarse como um cavalheiro nas alturas em que tal é necessário.
“Foi aquele marmelo que agora lá puseram como gerente da agência. Ela não me quis
dizer o que se passou, mas consigo imaginar. O gajo deve ter-lhe dito para fazer
alguma coisa que ela não quis, e por isso transferiu-a, exagerando um pequeno erro
que ela tinha feito e que, normalmente, não teria sequer dado direito a uma
advertência.”
“Mas, ouve lá, ela pode contestar, não?”
“Sim, claro que pode. Mas, diz-me cá, tu não tens ido ao tribunal de trabalho
ultimamente, pois não? Um atraso de quatro anos nos casos a julgamento, e depois
nunca se recebe nem metade daquilo que seria justo, supondo que se recebe de todo
alguma coisa. Não, o que ela precisa é de mudar de emprego e pôr o BTP para trás
das costas. Mas e descobri-lo?”, acrescenta para consigo mesmo, abanando a
cabeça.
“Sabes, é exactamente isso que me pergunto porque é que tu não fazes.”
“O quê?”
“Deixar esse emprego, pá! É um beco sem saída, e desde que lá puseram esse tipo
novo parece ser um beco bastante insalubre. Irra, Leonel, podias voltar a ensinar, sei
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lá. Podias escrever livros ou fazer montes de outras merdas. Podias até trabalhar com
a Tuuva, ou dedicar-te à pesca. Ela ganha dinheiro que chegue para os dois, não?”
“Sim, isso é tudo verdade. Mas eu gosto dos tipos com quem trabalho e, de certo
modo, até gosto do que faço. Voltar a dar aulas não é uma opção, neste momento.
Nem sei se algum dia voltará a ser... Há outras hipóteses, sim, mas, por enquanto,
estou bem onde estou. O ambiente de trabalho pode ser uma treta, mas o „convìvio‟
até nem é mau de todo.” Pisca-me o olho, como se eu precisasse disso para
perceber a que ele se está a referir.
“Tu é que sabes”, abano a cabeça, pensando que este gajo não tem cura. “Bom,
então, vamos?”
“Claro! Hoje vai ser uma noite e peras.”
“Sim, pois”, digo não muito convencido.
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O restaurante é num armazém portuário reconvertido, como tantos outros
estabelecimentos da zona. Foi caiado de novo, deixaram alguns tijolos à
mostra para efeito, e colocaram tubos de néon azul a toda a volta, seguindo
os contornos do edifício como um traço de lápis de cera.
Hoje em dia parece haver uma obsessão com o néon.
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À porta começa uma bicha que já quase dá a volta ao prédio. O nome do
restaurante está escrito em tubos fluorescentes na parede frontal, ao lado da
representação, também em néon, do que suponho ser uma das empregadas,
que saracoteia as ancas ao ritmo da corrente alterna.
“Ouve lá, já viste o tamanho da bicha, não será melhor irmos a outro restaurante?”
“Calma, pá! As bichas são para os artolas. Eu reservei uma mesa.” Ouço-o dizer
enquanto sinto desaparecer a esperança que ainda tinha.
Abrimos caminho por entre o grupo salivante de futuros comensais e
dirigimo-nos à porta, depois de o Leonel ter dito o nome dele a um tipo
grande de farda escura que, armado de um tablete A4 com a lista de
reservas, faz as vezes de cancela no princípio da bicha. Enquanto ele nos
risca electronicamente da lista e fica a murmurar para um microfone que tem
pendurado da orelha direita, nós entramos para um átrio cujas paredes estão
decoradas com um sem número de posters, reclames de mercearia,
matrículas de automóveis, raquetes de ténis, e tudo o mais que se possa
imaginar. Nada que não tenha já sido visto, do Hard Rock ao TGIFriday‟s,
todos parecem comprar os adereços por grosso ao mesmo fornecedor.
A morena bonita que nos espera, por detrás de uma pequena tribuna em
madeira escura que lhe chega aos ombros, recebe-nos com um sorriso de
orelha a orelha.
“Boa-tarde, senhor Leonel Paiva. Bem-vindos ao XL, onde tudo é pela medida
grande! Preferem uma mesa fumadores ou não-fumadores?” Saúda-nos com o
sotaque doce do norte do Brasil. O Leonel vai a abrir a boca para dizer nãofumadores, mas depois olha para mim e diz fumadores com ar resignado.
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“Então, queiram fazer o favor de me seguir. Os outros senhores do grupo ainda não
chegaram.”
Com um molho de placas de ementa na mão, sai de detrás da tribuna. O que
eu julguei serem as alças de uma camisola, são afinal uns suspensórios largos
às riscas azuis e vermelhas, decorados aqui e ali com estrelas prateadas de
cinco pontas. Tirando uns calções curtos de lycra rosa-escuro e umas botas
de salto alto que lhe abraçam as pernas até ao joelho, não traz mais nada
sobre o corpo.
Passamos por umas portas duplas situadas no lado direito do átrio para
entrarmos na sala do restaurante.
Somos recebidos por uma barragem de decibéis, proveniente de colunas
levadas ao limite da distorção. À nossa frente fica um bar, de balcão em
madeira clara e tampo em mogno, emoldurado por um arsenal de garrafas
de todas as cores, dispostas em prateleiras de vidro, com as respectivas
imagens reflectidas no espelho que cobre toda a parede traseira. Por detrás
do balcão, duas outras raparigas, com um uniforme semelhante ao da que
nos acompanha, atarefam-se na preparação de bebidas várias e cocktails
exóticos. Sentados no bancos estão alguns tipos que as observam com ar
interessado; não sei se nelas se nas bebidas que preparam.
O restaurante parece ocupar quase toda a área do antigo armazém. O tecto é
alto, apoiado numa estrutura de barrotes em madeira escura, possivelmente
mais decorativa do que outra coisa. A face interna das telhas está à mostra,
envernizada e provavelmente climatizada, para melhor conservar o calor nos
meses de Inverno. Por toda a parte, no chão, nas paredes e até no tecto, estão
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pendurados, atarraxados, rebitados ou pregados um sem número de
objectos, reunidos nesta sala aparentemente sem qualquer nexo ou ligação
entre si. Os também presentes tubos de néon azul e vermelho seguem o
trajecto de alguns dos barrotes, e dão à parte mais alta do restaurante uma
aparência quase irreal, envolta nas nuvens de fumo que sobem ao longo das
colunas de sustentação e que o sistema de ar condicionado parece ser
incapaz de controlar.
Cada uma das colunas tem um banco de seis televisores com écrans de 105
centímetros, colocado sensivelmente a três metros de altura, que as rodeia
completamente e que faz com que não haja ninguém na sala que tenha de
torcer o pescoço para ver televisão. Tirando os que estão sintonizados no
canal de música, cujo som tão entusiasticamente nos recebeu, os televisores
parecem estar com o volume no mínimo. A escolha da programação não
musical dir-se-ia ter tido por objectivo o entretenimento fácil. Do futebol à
fórmula 1; da Cadeia Feminina ao Harém, passando pela Ilha dos Amores; nas
suas versões 24 horas não censuradas, praticamente todos canais de desporto
e de voyeurismo estão representados.
A iluminação não procedente dos tubos de néon que decoram os barrotes,
provém de candeeiros com abajures em vidro martelado colorido em estilo
art-deco, suspensos por cima de cada uma das mesas por meio de longos
cabos que descem do tecto.
Dir-se-ia não haver uma mesa vazia. A maior parte dos grupos são
constituídos por homens, mas também há alguns mistos e duas ou três mesas
só com mulheres. As empregadas afadigam-se com pratos e bebidas, numa
correria constante.
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Uma pequena escaramuça irrompe subitamente numa das mesas do lado
esquerdo da sala. Dois tipos de boina, fardados de escuro como o que estava
lá fora, pegam num dos clientes e levam-no em braços para uma porta
lateral.
“Aquele senhor foi provavelmente incorrecto para com uma das nossas empregadas.
Nós somos um restaurante respeitável e as moças que aqui trabalham têm direito a
ser respeitadas.” Explica a nossa guia-recepcionista com voz séria, voltando o
rosto sorridente para nós enquanto continua a rebolar as ancas à nossa frente
e nos conduz a uma mesa grande no fundo da sala.
“Façam o favor de se acomodar. Alguém virá recolher os vossos pedidos dentro em
breve. Bom apetite!”
“Olhe, não, faça-nos o favor de dizer à sua colega para esperar até estarmos todos,
está bem”, diz-lhe o Leonel com um olhar maroto.
Ela corresponde. “Certamente, senhor Leonel. Eu mesma virei tratar das bebidas.”
Grande macaco, ainda agora chegou e já tem uma engatada.
“Obrigado, Neuza. Você é uma simpatia”, diz ele, olhando para a tabuleta que
ela tem presa à alça do suspensório, sobre o seio esquerdo.
Ela deita-lhe um último olhar convidativo e afasta-se, saracoteando as ancas
ao ritmo contagiante do vídeo da Britney Spears, que se pode ver nos écrans.
“Então, o que achas?”, pergunta-me o Leonel, mal ela volta costas.
“Enfim, se queres mesmo que te diga, não acho que seja nada de especial. É um
restaurante igual a tantos outros, na decoração e no conteúdo da ementa”, respondo
123
distraído, enquanto passo os olhos pela invariável lista de hambúrgueres e tbone steaks, grelhados ou preparados neste ou naquele estilo supostamente
único.
“Jakez, a ementa é a última coisa que me interessa neste restaurante. Refiro-me às
empregadas”, diz com voz de falta de paciência.
“Sim, eu percebi bem a que te estavas a referir. Parecem ter feito uma selecção
bastante cuidadosa, deve haver muita rapariga bonita a precisar de emprego.”
“Estás a brincar? Segundo ouvi dizer na altura, a lista de candidatas era realmente
muito longa mas, a maior parte das miúdas que trabalham aqui são universitárias,
que têm isto como part-time para ganhar umas massas”, diz, e depois acrescenta,
com uma expressão felina nos olhos: “Pois, felizmente as coisas mudaram muito
nos últimos anos...”
Passa os olhos perscrutadores pela sala, dir-se-ia um leão apreciando o seu
território de caça (ainda que, afinal, quem cace sejam as leoas). Às vezes não
percebo este gajo - penso enquanto encho o fornilho do cachimbo com Rhon
Saint-Malo - quase com quarenta e cinco anos, casado com uma mulher
lindíssima, e continua à procura não sei de quê. Engata quase tudo o que
mexe, desde que tenha uma saia e bom aspecto – embora creia que evite os
tipos de kilt. Colecciona namoradas como outrora deve ter coleccionado
cromos da bola; dorme com elas durante algum tempo (às vezes a meias com
a Tuuva) e depois acaba com tudo, sempre amigavelmente, para
imediatamente arranjar outra – quando não são outras. Li, já não me lembro
onde, que o tipo que escreveu o Maigret tinha feito amor com mais de dez
mil mulheres, e pergunto-me se este gajo não terá em vista bater o recorde.
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Embora também me possa perguntar porque é que alguém se daria ao
trabalho de fazer tal coisa.
Vou fumando o cachimbo enquanto o Leonel analisa minuciosamente as
redondezas à procura de presa. Os outros convidados vão chegando, tudo
tipos que já conheço de ginjeira, de jantares e cervejolas por uma razão ou
outra. Quatro foram ou são colegas do Leonel no banco, nos diferentes
departamentos por onde tem passado, dois estudaram com ele na faculdade,
e dois ainda fizeram com ele o terceiro contrato em Lamego, depois de eu já
ter saído.
O último a chegar, porém, é uma espécie de surpresa, foi nosso colega na
secundária e já não o via há uns bons quinze anos. Ao contrário de nós dois,
achava que a tropa era uma perda de tempo e como não conhecia ninguém
que o livrasse, saiu do país logo que acabou a escola. Não me lembro já para
onde foi mas, para onde quer que tenha sido, foi lá que tirou medicina.
Segundo me contou o Leonel, agora vive em França com a mulher, que é
francesa e médica como ele, e os filhos.
A Neuza, fiel ao prometido, aparece quando já estamos todos e toma nota do
nosso pedido de canecas refrigeradas, dando especial atenção ao Leonel,
para gáudio dos outros que, conhecendo-lhe a reputação se entretêm a fazer
apostas.
“Então, rapaz, o que te traz por cá? Pensei que te tinhas desinteressado
completamente disto, Miguel.” Pergunto ao recém-chegado logo que a Neuza se
afasta e despachamos os cumprimentos.
125
“Desinteressado, desinteressado, não”, responde sorrindo. “Por mais que se queira
é difícil desinteressarmo-nos completamente disto. Mas que cada vez quero ter menos
ligações, isso sim. Vim tratar dos registos de umas terras que o meu pai me deixou
em herança porque, embora ele já tenha morrido há mais de dez anos, entre as
desculpas do advogado e as confusões das finanças e do registo, com marcos que não
condizem e antigos proprietários que ainda aparecem como actuais, continuo sem ter
nada em meu nome.” Termina em desabafo.
“Se queres mesmo que te diga, dez anos não é nada. Conheço casos bem piores”, digo
à laia de consolação. “Conseguiste resolver alguma coisa?”
“Nem por sombras! Aquilo é uma confusão que ninguém entende, e eu já começo a
não ter paciência. Se ao menos pudesse vender as coisas, mas não, para o fazer é
preciso que estejam registadas em meu nome. Porém, ainda que já tenha pago
imposto como se estivessem, pelos vistos, isso não é coisa que vá acontecer tão cedo.
Enfim, ao contrário do que se poderia pensar, herdar, terras pelo menos, é uma
experiência bastante desagradável.” Encolhe os ombros. “Mas deixemos isso.
Então e tu, como estás? O Leonel contou-me que te tinhas divorciado. Isso agora é
que é vida, não?”, diz, ao mesmo tempo que me dá uma palmada no ombro.
Rio-me.
“Sim e não. Não foi exactamente um divórcio civilizado; ou melhor, foi, mas eu teria
preferido continuar casado.” Penso deixar a resposta por aqui, mas depois acho
que é melhor elevar os ânimos, e acrescento em tom conspiratório: “É claro
que, isto de um tipo viver sozinho tem muito que se lhe diga. Podemos chegar à hora
que queremos porque ninguém nos pede contas, temos a casa toda para nós, podemos
ver quem nos apetece... enfim, toda uma série de vantagens em relação à vida de
casado.” As palavras saem-me da boca sem que lhes dê muita atenção.
126
Limito-me a repetir lugares comuns que ouvi tantas vezes dizer a outros,
apenas porque não estou para entrar em confidências, nem aqui, nem agora.
O Miguel reage como esperado.
“Grande sacana! Eu estou muito bem casado e nunca me passaria pela cabeça deixar
a Virginie, mas isso não impede que haja dias em que inveje quem é solteiro. Só a
possibilidade de um gajo poder pegar no carro e fazer-se à estrada, deixar as
preocupações todas para trás, parar onde lhe apetecer, dar boleia a quem lhe
interessar; estás a ver, hem? Que vida, meu!” Sorri tristemente para consigo e
volta a encolher os ombros. “Mas é só de vez em quando que penso assim.
Ataques de meia-idade, talvez.” Ri-se; uma gargalhada extemporânea fruto de
uma piada silenciosa que só ele ouviu.
“A propósito, como está a tua família?”, pergunto para ver se o ponho a falar de
outra coisa.
“Estão bem. A Virginie está a chefiar oncologia em Saint-Cyr, e o meu filho começou
medicina no ano passado.”
“Medicina, também? Vocês devem estar satisfeitos. Mas, ouve lá, tu não tinhas
também uma filha?” Acabo de fazer a pergunta levado pela inércia, mas já
estou a pensar que meti a pata na poça.
Uma coisa que o Leonel me contou, começa lentamente a subir à superfície
do pântano que, por vezes, é a minha memória.
“Tinha, quero dizer, espero ainda ter. Mas há mais de um ano que pouco ou nada
sabemos dela”, diz, meio constrangido.
127
Imbecil, penso acerca de mim. Realmente sabes escolhê-las, Jakez.
“Desculpa, não sabia. Ou melhor, saber sabia, porque o Leonel contou-me, mas não
me lembrei.”
“Não faz mal. Os primeiros meses foram horríveis, mas há muito que decidi não me
preocupar e esperar pelo melhor.” Bebe um gole de cerveja antes de continuar.
“Ela sempre foi bastante independente e desde muito miúda que sabia tomar conta de
si.” Sorri. “Saiu ao pai”, diz, antes de levar novamente a caneca gelada à boca.
“Tinha muitos amigos, mas quando queria ir a algum lado e mais ninguém queria,
pegava na mochila e ia sozinha. Às vezes, nas férias, passavam-se meses sem que
soubéssemos dela. Um postal daqui ou dacolá, e era tudo.” Encolhe os ombros. “Eu
nunca me preocupei; achava que ela sabia cuidar de si (ainda acho) e não era por ser
forçada a ficar em casa ou a sair apenas em grupo que ela deixaria de estar sujeita a
acidentes ou qualquer outro tipo de problemas. Apesar de tudo, ela era, é, uma pessoa
cuidadosa, que não tem por hábito ir à procura de sarilhos. E quando os sarilhos vêm
à nossa procura; bom, honestamente, a experiência tem-me mostrado que não é o
facto de fazermos parte de um grupo que nos livra deles.”
“Por isso, quando ela desapareceu sem dizer água vai, achámos que era mais uma
viagenzita a qualquer lado. Afinal, tinha apenas despachado, e bem, o primeiro ano
da faculdade, e era normal para ela passar as férias a viajar. Que nenhum dos amigos
soubesse para onde tinha ido, também não era de estranhar, nem eles tão pouco
achavam estranho. A Lise é assim, basta conviver com ela para a gente se habituar.”
Só as mãos, fazendo rodar continuamente a rodela de cartão que deveria
servir de base à caneca, denunciam a inquietação que, apesar do que diz,
deve sentir. Tento imaginar o que sentiria eu se, apesar de tudo, a Catarina
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um dia desaparecesse, e não soubesse sequer se ela estava morta ou viva.
Mas não consigo.
A nossa conversa parece desenrolar-se numa mesa à parte, os outros riem-se
que nem uns perdidos de uma história qualquer que um dos colegas do
Leonel lhes está a contar e nem dão por nós.
“Quando, quase no fim das férias, começávamos a preocupar-nos, chegou-nos um
postal com uma vista de Paris, mas enviado de Cannes, em que ela nos dizia que
estava bem, que tinha encontrado alguém especial e que ia ficar por lá durante algum
tempo. Sempre nos descansou um bocado. A única data era a do correio, mas a letra
parecia a dela e, embora tivesse sido bom ter uma morada para resposta, saber onde
estava já não era mau.” Bebe mais um gole da caneca que já vai a meio.
“Recebemos mais um postal, cerca de um mês depois, com uma fotografia da Torre
Eiffel, mas enviado de Itália, de Rimini desta vez. Aí ela dizia que estava bem, que
estava muito feliz, e que, em breve, voltaria a França com o namorado. Mas depois,
mais nada. Falámos com a polícia, contratámos um detective que correu os hotéis
todos das duas terras de onde ela teria enviado os postais, mas nada. Ninguém a
tinha visto, ninguém se lembrava dela, parecia ter-se dissolvido no ar. A Virginie
ficou de rastos e eu também não sabia para que lado me havia de voltar. Só alguns
meses depois é que conseguimos recuperar alguma calma, e todo este ano tem sido de
reconstrução constante, tentando recuperar a normalidade perdida com o
desaparecimento dela.” Faz uma pausa, olha para mim, um olhar intenso,
seguro, e diz: “Mas eu sei que ela está viva. Sinto-o. Ela vai aparecer, é tudo uma
questão de tempo.”
Eu não sei o que lhe diga. Devo ser muito egoísta, pois não consigo deixar de
pensar na Catarina.
129
Mas ele resolve o problema por mim.
“Deixemo-nos de histórias tristes! Agradeço-te teres tido paciência para me ouvir,
mas agora já chega. A jantarada também é em tua honra, aliás, é mais em tua honra
do que dele, porque aquele brutamontes só faz anos daqui a três semanas, e não é
justo que te esteja a estragar a noite com problemas sem solução.” Volta-se para os
outros e diz, acima do burburinho que nos rodeia: “Ouçam lá, meninas,
esqueceram-se de nós?”
O Leonel deixa por um momento de dar atenção à empregada que veio
recolher os pedidos, à volta da cintura da qual já tem um braço, e diz-lhe
com ar divertido. “Nós esquecermo-nos de vocês? Tu e o Jakez é que estavam para
aí num cochicho interminável, pareciam duas comadres. Esta minha amiga, até já me
tinha perguntado se vocês tinham vindo jantar ou se estavam a dieta.”
A rapariga, uma loura platinada, bonitinha e cheia de curvas, ainda menos
vestida do que a Neuza, cora e abana veementemente a cabeça, entre risos.
“Não sênhor, eu não dizer nada O sênhor Leonel está contar pêta.” Abana-lhe um
indicador em frente ao nariz, como quem repreende um menino traquinas, o
que faz com que os outros se riam ainda mais.
Quando as gargalhadas acalmam, toma nota dos pratos que cada um quer no
pequeno terminal que traz consigo, pergunta-nos se queremos mais cerveja e
toma nota desse pedido também e, depois de descolar o braço do Leonel da
cintura com uma palmada seca bem aplicada, afasta-se - a roda da saia curta
a acompanhar-lhe o balançar das ancas bem torneadas - deixando o nosso D.
Juan de pacotilha com cara de infeliz no meio da risota geral.
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“Este tipo é demais!”, afirma o Tó, que andou na faculdade com o Leonel; é
oito anos mais novo que nós e está sentado à minha esquerda. “Qualquer
outro gajo que tentasse meter-se com ela tinha levado tampa. Se é que não tinha
mesmo chamado os seguranças, e agora estávamos todos lá fora na bicha da barraca
dos torresmos. Mas o Leonel não. Não senhor, não o Leonel. A miúda chega, o
homem diz-lhe duas larachas, ela ri-se, e ele põe-lhe o braço à volta da cintura como
se se conhecessem desde sempre. E a miúda não resiste. Aninha-se contra ele e ali
fica... Francamente! Gajos como este não deviam ser autorizados a andar na rua.”
Termina, abanando a cabeça com ar infeliz.
===================¤==================
Já vamos na terceira caneca quando a Neuza, a loura que se chama Bella, de
acordo com a tabuleta que traz pendurada no cós da saia, e mais duas
amigas, aparecem com os pratos. Estranhamente, porém, ninguém se queixa
do atraso, e estranhamente também, ou talvez não tanto, a chegada de quatro
raparigas bonitas, e bastante despidas, à nossa mesa passa quase
despercebida. Todos temos os olhos fixos nos pratos, eu diria antes travessas,
absolutamente descomunais, que trazem nas mãos.
Confesso que não prestei muita atenção ao peso que a ementa dizia que cada
bife tinha, fiz o pedido mais pelo nome e pelo acompanhamento do que
outra coisa. Bom, agora vai ser preciso que, pelo menos, tente acabar a
montanha de carne que tenho à minha frente, acompanhada do que parece
131
ser meio quilo de batatas fritas e de uma dose de coleslaw que deveria chegar
para um elefante.
Quase em silêncio, comparado com a algazarra que antecedeu a chegada dos
pratos, olhamos uns para os outros, como para não nos sentirmos sozinhos
perante a árdua tarefa que nos espera.
Depois encolhemos os ombros e metemos os talheres à obra.
“Não vos digo nada, rapazes. Se eu soubesse que os pratos iam ser tão grandes e a
carne tão tenra, não tinha almoçado hoje”, diz o Carlos depois da primeira
garfada; um dos tipos de Lamego que agora é professor de ginástica num
liceu, e está sentado à direita do Leonel. Responde-lhe um murmúrio de
concordância, de gente demasiado ocupada para se dar ao trabalho de falar.
Durante os dez minutos seguintes ninguém diz nada, ocupados como
estamos com o que temos à frente, preocupados em não dar parte fraca por
não querermos ou não sermos capazes de acabar o que nos foi servido,
receosos que os outros consigam fazê-lo.
É o Miguel quem quebra o silêncio.
“Bom, eu não sei o que vocês pensam fazer, mas eu tenho a certeza que não vou
acabar isto. Para mim, é capaz de ser um bocado pesado a esta hora e com tanta
cerveja. Por isso, com grande pena, é preciso que o diga, acho que vou ficar por
metade.”
Uma palpável sensação de alívio percorre a mesa. Ninguém concorda
imediatamente com ele, alguns até soltam risos de troça em boa medida; mas
isso pouco importa, o importante mesmo é que as palavras foram ditas.
132
Ainda para mais pelo único médico do grupo – pouco importa que ele seja
ginecologista. Agora todos temos uma desculpa para não comer tudo sem
darmos parte fraca.
“Eu acho que esta moda de servirem pratos cada vez mais descomunais que, de há
uns anos a esta parte, parece ter tomado conta deste tipo de restaurantes, chegou a
um nível de exagero que é por demais.” Vários pares de olhos se voltam para o
Mário, o colega de mestrado do Leonel que parece disposto a juntar mais
lenha à fogueira. “Em Maio fui aos Estados Unidos, à Carolina do Norte, a um
congresso. Os almoços faziam parte do programa, mas a maior parte dos jantares
eram por nossa conta. No segundo ou terceiro dia, fui com uns colegas americanos a
um restaurante, que poderia ter sido este – a decoração era mais ou menos a mesma, e
a ementa tinha sensivelmente a mesma composição, só que as empregadas não
andavam tão despidas – e ainda bem, tendo em conta o que tinham de estafermos...”
Sacode um arrepio antes de continuar. “Bom, o que interessa é que, depois de
uma série de entradas que teria sido mais do que suficiente, trouxeram-nos um prato
principal que deveria ser do tamanho deste. Por esta altura eu já não aguentava mais,
estava cheio que nem um odre, mas não via como dizê-lo aos dois americanos, que
continuavam a enfardar alegremente. Fui debicando o prato de camarão gigante que
me tinham posto à frente, assim como quem não quer a coisa, para não dizer que não
lhe tinha tocado, enquanto íamos falando do congresso e do que mais vinha à rede.
Os tipos não deram ou, polidamente, não quiseram dar por nada. Qualquer dos dois
era aí do tamanho do Leonel, ou então do Jakez, só que bastante mais largos de
cintura. Não sei se estão a ver as figuras? Enfim, mas lá fomos comendo e
conversando, eu movendo os camarões de um lado para o outro do prato para parecer
que estava a dar conta do recado, eles enfiando na boca garfada atrás de garfada,
como se fosse a coisa mais natural do mundo.
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Bem, os homens lá acabaram, o empregado veio tirar os pratos e limpar a mesa, e
depois perguntou-nos se queríamos sobremesa. Eu disse logo que não; só a ideia de
comer mais alguma coisa fez-me pensar naquele filme dos Monthy Python, como é
que se chamava... O Sentido da Vida, pois. Havia uma cena em que um tipo gordo
comia alarvemente num restaurante, e que depois literalmente rebentava, quando o
empregado lhe oferecia um chocolate com recheio de menta para compor a refeição.”
Ouvem-se umas quantas exclamações de nojo, dos tipos que viram o filme e
se lembram da cena.
“Vocês estão a ver, eu sentia-me tão perto disso que não queria sequer pensar em
comida, quanto mais comer uma sobremesa. Um dos americanos disse que não
também, desculpando-se com o colesterol – o que fazia algum sentido, porque depois
de ter despachado quase um quilo de lagosta grelhada com maionese e uma dose mais
do que generosa de cascas de batata fritas com queijo, era efectivamente capaz de
estar no cimo da escala – mas o outro disse que ainda era capaz de comer qualquer
coisa doce. Depois de muito ponderar, pediu ao empregado uma tarte de maçã com
canela – ainda hesitou se queria também uma bola de gelado de baunilha, mas depois
acabou por decidir que não.
Eu pedi apenas um café e também uma água com gás, que me trouxeram logo, e
continuámos a conversa enquanto esperávamos.
Passados aí uns dez minutos, o empregado regressou à nossa mesa e depositou em
frente ao homem uma tarte inteira de maçã – aí com uns trinta centímetros de
diâmetro.
O tipo olhou para a tarte e depois para o empregado, e disse: „Corto uma fatia do
tamanho que quiser, ou é você quem corta?‟ O empregado olha-o com ar espantado e
diz-lhe que pode fazer o que quiser, porque a tarte é toda para ele.
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Vocês estão a ver o tamanho da coisa, hem? Eu não queria acreditar, e acho que eles
também foram apanhados de surpresa. Uma tarte inteira para sobremesa, depois de
um jantar daqueles. Era inacreditável!
Bom, por uma razão ou outra o meu colega decidiu afinal não comer a tarte, pediu
que lha embrulhassem e levou-a para casa. Por sinal, eles tinham uma caixa de cartão
mesmo à medida, com „tarte‟ escrito no cimo, portanto, devem estar habituados a que
os clientes acabem a refeição em casa.”
Mentalmente todos tomámos nota de não cometer o erro de pedir uma tarte
de maçã com canela para sobremesa, para não termos de passar pela
segunda vergonha de não a acabar também.
“Mas isso deve sair-lhes caríssimo. Ou melhor dizendo, a menos que a sobremesa
tenha um preço compatível e, nesse caso, não vejo porque alguém a pediria,
oferecerem tartes inteiras deve dar-lhes prejuízo, não?”, pergunta o Tó, detrás de
uma montanha de ossos de entrecosto que parece saída de um episódio dos
Flinstones.
“Tu não olhaste bem para o preço das sobremesas na ementa daqui, pois não? Se
sacudires a placa e carregares no botão “doces”, vais ver que elas pouco menos
custam, se é que não custam mais, do que os pratos principais que é suposto
complementarem. A sobremesa hoje em dia é vista como um prato em si, não como
um complemento. Na verdade, segundo me disseram depois os meus colegas
americanos, há muita gente que vai aos restaurantes apenas para comer sobremesas –
como quem vai a uma pastelaria, estás a ver?”, explica o Mário. “E depois há a
questão da concorrência, que eles me contaram ser o grande motivo para estas doses
gargantuais. Ou seja, os custos de produzir e servir uma fatia generosa de tarte de
maçã, ou uma tarte de maçã inteira um pouco mais cara, são quase os mesmos, e o
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restaurante que o faça fica com a fama de fazer isso mesmo - o que atrai clientela, que
bebe sempre qualquer coisa, que é onde eles fazem realmente dinheiro. Os outros
restaurantes não querem ficar atrás e contrapõem por sua vez uma outra atracção
qualquer para recuperar clientes, sei lá, dois pelo preço de um ou coma o que quiser, e
assim por diante. É um círculo vicioso, e o cliente, parecendo ganhar, pois recebe
muito mais por quase o mesmo preço, fica na verdade a perder, dado que se habitua a
ingerir quantidades absolutamente anormais e acima das suas necessidades.”
“Tens toda a razão”, assegura o nosso ginecologista de serviço. “A questão está
precisamente no hábito. É verdade que se pode dizer que só come quem quer, que o
facto de o prato vir cheio não quer dizer que tenha de sair vazio. Mas nem sempre é
fácil seguir essa regra, especialmente se ninguém à nossa volta o faz. E, pouco a
pouco, começamos nós também a não o fazer.”
Dizemos quase todos que sim com a cabeça, enquanto continuamos a
mastigar.
“Segundo me parece, o problema não são as quantidades que se comem, mas mais o
que se come e a maneira como se come, e também aquilo que se faz, ou não faz, com o
que se come”, diz o Leonel, um homem que ainda hoje faz três séries de
quinze repetições em banco com 150 quilos quatro vezes por semana,
enquanto continua a dar baixa de um fabuloso bife grelhado acompanhado
de uma salada de rúcola. “Acho que o problema é antes que a maior parte das
pessoas não faz absolutamente nada, além de trabalhar sentado, comer e dormir.”
Levanta a mão para silenciar os argumentos em contrário que se começaram
a ouvir, e continua: “Não quero aqui entrar em discussões acerca dos preços
exorbitantes dos ginásios, das horas que se trabalham e das condições em que se o faz,
e do tempo que se perde a ir de e para o emprego. Sei que nenhuma destas condições é
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das mais favoráveis, mas caramba, a certa altura é preciso que nos deixemos de
desculpas, ou então que mudemos de hábitos alimentares!”
Isto vindo de um gajo que se levanta todos os dias às cinco da manhã, não
porque queira, mas para correr dez quilómetros antes do pequeno-almoço,
até parece fácil.
“Esqueces-te que nem toda a gente tem a mania do desporto, como tu. E que, mesmo
que até gostem de fazer exercício, nem toda a gente tem a disciplina necessária para
pôr isso em prática”, aponta o Paulo com ar ligeiramente ofendido; um dos do
BTP cujo músculo barrigal de executivo já começa a dar algum sinal de
desenvolvimento.
“Eu sei, eu sei. Não queria ofender ninguém. Nem tão pouco pensava apontar-me
como exemplo. Mas o problema é tão simples como o descrevi. Ou se arranja maneira
de gastar o que se come, ou se deixa de comer o que se come, como se come, ponto
final. A decisão e a forma de a aplicar cabe, obviamente, a cada um e dependerá do
tipo de vida que se tem. QED, meus caros.”
É, pois. Mas ninguém parece interessado em continuar a discussão, e o
assunto perde-se no burburinho do restaurante.
A nossa empregada, Bella, vem perguntar-nos se estava tudo bom e se
queremos mais alguma coisa, ou se já estamos prontos para escolher a
sobremesa. Olhamos uns para os outros, sem vontade nenhuma de nos
empanturrarmos ainda mais, mas querendo também acabar a refeição com
qualquer coisa doce. Até que alguém se lembra que a papaia, além de doce, é
bastante digestiva, e pedimos uma rodada geral de papaia.
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Reparo, como reparam também os outros, que desta vez não foi preciso o
Leonel pôr o braço à volta da empregada para a manter junto a si. Mal
chegou, ela encostou-se logo a ele. Os seus seios redondos estão
comprimidos de encontro às costas largas do Leonel, as auréolas ocre dos
mamilos, meio visíveis por detrás do tecido escuro do casaco dele, destacamse do tom branco-leite da pele, enquanto ela toma nota dos pedidos com os
cotovelos apoiados nos ombros do Leonel, que conversa distraído com o
atónito Manel do banco – como se fosse perfeitamente natural vir a um
restaurante cheio de empregadas bonitas meio despidas e antes do fim do
jantar, e com apenas três ou quatro larachas, já estar mais adiantado do que
muitos conseguem após uma noite árdua de conversa da treta num bar de
engate.
E eu não tenho qualquer dúvida que ele sai daqui acompanhado, se assim o
quiser.
Há já muitos anos que o conheço.
===================¤==================
Despachadas as papaias vieram os cafés, as aguardentes e a conta, que o
Leonel e eu dividimos entre os dois, apesar dos protestos de circunstância
dos outros, e preparamo-nos para sair.
A Bella começa a levantar a mesa, enquanto conversa em surdina com o
Leonel, por entre risos e olhares dengosos, que só aos dois dizem respeito.
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Não sei o que combinam, mas ela fica com ar satisfeito. Ele passa-lhe
qualquer coisa para a mão, rabisca o que ela lhe dita no pequeno bloco que
traz sempre no bolso do casaco e dirigimo-nos para a saída, ao mesmo tempo
que outros dois clientes são escoltados até à porta lateral pelos mesmos dois
matulões de farda. O Leonel pára no átrio para dar dois dedos de conversa à
Neuza e tomar nota de mais qualquer coisa no bloco, e só depois é que vem
ter connosco ao cordão de segurança, à entrada do qual ainda está especado
o mesmo tipo de boina e farda escura.
Cá fora, a bicha já diminuiu qualquer coisa, mas continua de tamanho
apreciável. Decididamente, o tipo que decidiu abrir o restaurante deve estar
muito contente consigo mesmo. Seja pelo tamanho dos pratos, seja pela farda
das empregadas, não precisa de se preocupar com mesas vazias – pelo
menos, enquanto não passar de moda, ou não houver outro que abra com
fardas ainda mais ousadas ou pratos ainda maiores.
Dividimo-nos pelos carros para fazer os mil e poucos metros de via portuária
que nos separam d‟A Gata Perfumada.
===================¤==================
Ao chegarmos ao edifício, mais um armazém de cara lavada e pintada, de
cor-de-rosa desta vez, somos recebidos por um holograma de um cartoon de
uma gata de pêlo creme, de uns dois metros, que, vestida com lingerie
vermelha provocante, se borrifa continuamente com perfume violeta contido
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num frasco de cristal, enquanto gritinhos de satisfação e os próprios ruídos
de aspergimento se ouvem em fundo, possivelmente provenientes de
colunas escondidas na sebe em meia lua que rodeia a entrada do clube e a
separa, assim, do parque de estacionamento, que por esta altura ainda não
está cheio.
Um toldo dourado, assente sobre uma armação e colunas em metal negro,
cobre a quase totalidade de uma passadeira vermelha, que se estende da sebe
até à porta.. Os porteiros de fato escuro e gravata que nos aguardam no fim
da passadeira, saúdam o Leonel e os tipos do BTP como se se tratassem de
velhos amigos, e cumprimentam, ainda, outros dois membros do nosso
grupo como se já os conhecessem. Entramos para um átrio com pouco mais
de dez metros quadrados, onde uma morenaça de vestido preto curto com
um decote mais do que generoso, toma conta de um guarda-roupa com
muitos cabides vazios, e, ao ver-nos, solta um gritinho satisfeito.
“Leonel querido... quero dizer; como está, Dr. Paiva!”
Sai a correr de detrás do balcão e pendura-se ao pescoço do Leonel, dandolhe um beijo rápido nos lábios. Depois cumprimenta, também efusivamente,
os demais bancários – embora o beijo seja na face e não se lhes pendure ao
pescoço – e ainda os mesmos tipos reconhecidos pelos porteiros.
O pessoal deste clube é muito amigável, ou então estes sujeitos passam aqui
a vida.
Sabendo de quem se trata, não me admiraria que assim fosse.
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Não deixamos os casacos no bengaleiro e passamos para a sala de bar,
enquanto o Leonel fica no átrio em conversa com a morena. É uma sala
grande, arredondada, de paredes espelhadas em tom de bronze, tendo um
balcão de bar em madeira clara com cerca de dez metros que lhe segue o
perímetro. A parede por trás do balcão não está coberta por um espelho, mas
sim por uma grelha de nichos quadrangulares, feito de madeira da mesma
cor do balcão, cheios de garrafas de whisky, gin, rum, vodka e tequilla, cada
uma tendo presa ao gargalo, por um cordel, uma etiqueta onde está escrito o
nome do proprietário, a preto em letras grossas. O som ambiente é de bossa
nova, salsa e rumba, misturadas com jazz do princípio do século passado.
De serviço ao bar e à sala estão quatro raparigas, tendo por uniforme o que
parecem ser os punhos e o peitilho de goma de uma camisa de cerimónia
com colarinhos virados, um lacinho de seda preta recoberto de brilhantes,
uma saia plissada curta no mesmo padrão do lacinho, meias pretas de nylon
com costura, que se seguram, como por magia, logo abaixo da saia, e sapatos
também pretos, de polimento com meio salto.
Sobre a alcatifa fofa, cor de vinho, que cobre completamente o chão, estão
espalhados vários maples de linhas modernas em cabedal preto, em grupos
de dois ou três, cada um com uma pequena bandeja em madeira fixa a um
dos braços. Um dos grupos de maples está ocupado por uma tertúlia de
fumadores de charutos, tendo cada um dos membros, mais ou menos
anafados, um balão de cristal facetado na mão, com o que parece ser
aguardente ou conhaque.
Encostamo-nos ao balcão, sob os olhares arrogantes dos fumadores de
charutos que procuram talvez fazer-nos sentir indesejados, ainda que
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nenhum de nós se sinta afectado, e somos recebidos pelos sorrisos simpáticos
das três „baristas‟ que nos perguntam o que queremos beber. Três dos nossos
apontam para determinados locais da grelha de nichos, e elas sobem a
pequenos escadotes para trazer para baixo as garrafas que lhes pertencem,
sob o olhar atento dos proprietários. Dois são homens de whisky e o terceiro
prefere vodka. Depois de recusarmos polidamente as ofertas que nos fazem
para um copo a partir da garrafa deles, dizemos o que cada um de nós quer,
pegamos nas bebidas e avançamos para as portas de vidro numa das pontas
do balcão. Aguardam-nos dois empregados, com físico de quem passa as
horas do dia num ginásio a levantar pesos, em uniformes semelhantes aos
das raparigas – só que eles trazem calças, os sapatos não são de salto alto, e
os peitilhos têm efectivamente camisas por baixo.
Depois de mais uma ronda de cumprimentos aos clientes habituais e vénias
ao Dr. Paiva, puxam as portas para o lado e deixam-nos entrar na segunda
sala, na toca d‟A Gata Perfumada.
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Não sei realmente o que esperava.
As minhas fontes de comparação são quase inexistentes, dado que apenas ao
cinema poderia ir buscar ideias sobre locais semelhantes.
A sala segue o tom de decoração do bar. Alcatifa cor de vinho, um tom
profundo de um vinho do Douro, e madeiras claras para contrastar. Aqui
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também as paredes estão cobertas de espelhos bronzeados, contribuindo
para dar à sala, pelo menos o dobro das dimensões que tem.
Haverá umas trinta ou quarenta mesinhas baixas espalhadas pela sala,
rodeadas por cadeiras de braços ou mini-sofás, com base em madeira e
estofos de veludo no mesmo tom da alcatifa. Algumas, bastantes, estão já
ocupadas por grupos de clientes, entre homens e mulheres conversando
entre si ou, em quatro ou cinco casos, com stripers que fazem a sala antes de
fazer o espectáculo.
O chefe de sala vem ter connosco, aperta a mão aos conhecidos, faz uma
vénia colectiva aos restantes e conduz-nos a uma mesa bastante central,
mesmo em frente à ponta arredondada da passarela, que aqui passa por
palco, de onde se eleva um varão prateado, que sobe até ao tecto abaulado,
pintado de azul-claro.
“Aqui tem a sua mesa habitual, Dr. Paiva. Já vejo que estão servidos. Se precisarem
de mais alguma coisa, estou à vossa disposição”, diz o homem, dirigindo-se ao
Leonel.
Sentamo-nos, e quando o Miguel apanha o Leonel a jeito pergunta-lhe:
“Ouve lá, ó Dr. Paiva, tu tens um bilhete de assinatura para esta coisa, ou quê?”
Ele ri-se.
“Não, mas nós vimos cá de vez em quando”, diz, distraído com as vistas.
“Ah, sim. Então, e qual é a periodicidade desse „de vez em quando‟? É que este
pessoal trata-te como se fosses dono disto”, inquire ainda o outro, interessado.
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“Sei lá, uma ou duas vezes por semana. Para tomar uma bebida, conversar um
bocado e ver o espectáculo.”
“Uma ou duas vezes por semana?! É isso que é „de vez em quando‟? O que diz a tua
mulher?” O Miguel parece chocado.
“Nada. Ela também já aqui veio algumas vezes, conhece as miúdas quase todas, e
gosta de ver o espectáculo. Apanha sempre umas ideias novas, não sei se estás a
perceber?” Pisca-lhe o olho com ar divertido.
O Miguel está atónito. Abre e fecha a boca umas quantas vezes, parecendo
não saber o que dizer, até que finalmente se decide.
“Tu és um gajo cheio de sorte!”, exclama finalmente.
“É, eu sei”, responde-lhe o Leonel com ar pensativo. Depois solta uma
gargalhada sonora, ergue o copo de whisky-ginger ale e faz uma saúde: “Às
mulheres! Namoradas, amantes e amigas, nas boas e más horas. Tchim-tchim.”
Juntamos os copos no centro da mesinha; o estalejar dos vidros uns contra os
outros quase inaudível, absorvido pelos acordes da música em alto volume
que se ouve na sala.
As stripers que estavam na conversa nas outras mesas, começam a sair em
direcção aos bastidores; duas delas passam por perto e atiram beijos na nossa
direcção, mas ninguém cria esperanças, todos sabemos quem é o alvo.
Houve alturas, quando éramos miúdos, em que tive vontade de o atirar de
um qualquer sítio alto, mas depois passou-me.
Hoje pergunto-me porque não o terei feito.
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Os números de strip sucedem-se a velocidade alucinante, as raparigas vão e
vêm quase tão depressa como a sala vai enchendo. Agora está lá uma ruiva
alta de cabelos compridos, que a voz do apresentador disse chamar-se
Tatiana, e que me parece estranhamente familiar, embora não possa sequer
imaginar de onde. Está quase completamente vestida (por enquanto) de
cabedal tingido de preto; camisa de seda também preta, colete, mini-saia,
meias de rede, botas de cano e um stetson branco na cabeça.
Agarrada ao varão que está à nossa frente, rodopia justamente ao som de
You can leave your hat on e vai atirando peças de roupa para a sala. Mas não
devem ser oferta aos clientes, porque quem as apanha é um dos empregados,
que parece estar sempre onde elas vão cair.
Já só tem vestido o soutien e uma tanga, ambos em renda preta, mas
continua com o stetson enfiado na cabeça – deve estar agrafado, certamente –
enquanto se enrosca e desenrosca à volta do varão, num corrupio de
movimentos, senão sensuais pelo menos muito atléticos.
Um encolher de ombros, combinado com um movimento rápido da mão, e o
soutien vai parar a meio da passarela. Mas ela não pára. Os seios generosos,
soltos da prisão em que se encontravam, parecem ter adquirido vida própria
e abraçam-se ao varão, subindo e descendo ao longo daquele, ao ritmo da
música.
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Joe Cocker está a chegar ao fim da canção e ela já quase nada tem vestido,
por isso, pouco deve faltar. Mais um rodopio, um último balançar de ancas,
um puxão seco para soltar as tiras de velcro e a tanga vai parar às mãos de
um tipo sentado numa mesa à nossa esquerda. O homem parece não caber
em si de contente.
O movimento rápido que lhe levou o stetson do cimo da cabeça para o meio
das ancas, não foi todavia suficientemente rápido que não deixasse ver o
pequeno tufo de pêlos encaracolados que tem entre as coxas. Uma ruiva
verdadeira, a Tatiana.
Termina com as costas voltadas para a cortina do fundo, numa vénia que
parece agradar imenso aos clientes cujas cadeiras emolduram a passarela.
“Meus senhores, uma calorosa salva de palmas para a nossa princesa da Geórgia;
Tatiana!”, diz a voz do chefe de sala, que também faz vez de apresentador.
Ninguém se faz rogado.
O Leonel vê-me bater palmas, como todos os outros, e pergunta-me: “Então,
tens estado a gostar?”
Respondo-lhe que sim, que elas dançam muito bem, mas que continuo na
minha, o strip não me dá tusa nenhuma. Ele olha para mim como se eu fosse
doido varrido, revira os olhos e dá atenção à nova dançarina que acaba de
subir para a passarela, uma loura de caracóis soltos, com uma cabeleira
quase branca que lhe chega quase ao fim das costas, e cujo nome não percebi.
Está vestida como o Angus Johnson, guitarra incluída, e avança para o varão
ao som dos AC/DC.
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Esta é ainda mais atlética do que a ruiva. Os movimentos que a vejo fazer
parecem saídos de uma coreografia para um campeonato de ginástica rítmica
ou aeróbica. Sem nunca largar a guitarra, vai-se livrando das roupas ao ritmo
da música, atirando-as para o meio da passarela ou para as mãos do
empregado de serviço. A coreografia está muito bem feita, incluindo mesmo
uns quantos passos da dança que se tornou a marca registada do Angus na
altura dos solos, e dando a ideia de ser ela própria quem toca a guitarra.
O soutien segue o caminho das peças que cobrem agora o chão de madeira
da passarela e pouco depois a tanga vai juntar-se-lhes. Ela acaba com o corpo
da guitarra em frente às ancas, tocando ainda, ou fingindo tocar, os últimos
acordes da música que dançou. Mas, eis que parece mudar de ideias;
enquanto se esvanecem as derradeiras notas, a guitarra passa-lhe por cima
dos ombros e desce-lhe ao longo do corpo, num movimento único, fluído e
sensual e sem o mais pequeno sinal de falsa modéstia.
Volta-se e avança lentamente pela passarela em direcção aos bastidores, com
a guitarra segura pela correia e a arrastar pelo chão, enquanto a sala quase
rebenta com assobios e aplausos. Sensivelmente a meio caminho pára, tira da
cabeça o boné de escola que ainda tem posto, parece hesitar um segundo,
volta-se num repente e lança-o como um frisbee para o meio da sala. Vejo-o
vir na minha direcção e, quase sem me aperceber do que faço, apanho-o num
reflexo. Ela olha ainda mais uma vez para trás com expressão de matadora,
directamente para mim dir-se-ia, e segue lentamente em frente, ao som de
aplausos redobrados; a borboleta que tem tatuada acima das nádegas
parecendo bater as asas com o balançar das suas ancas.
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A música passa a volume de quase ambiente, o chefe de sala anuncia que
terminou a primeira parte do espectáculo e que as dançarinas estão
disponíveis para danças de mesa.
Eu aproveito para encher o fornilho e dar início a mais uma cachimbada.
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As danças de mesa querem dizer isso mesmo, pela módica quantia de
duzentos euro, as meninas vêm dançar às mesas dos clientes, e depois ficam
na conversa enquanto bebem um sumo-de-fruta-a-preço-de-Taittinger-Brut
que o empregado lhes traz, que é automaticamente incluído na conta da
mesa. Como seria de esperar, os colegas do Leonel não resistem a alargar os
cordões à bolsa por tão boa causa.
Chamam o chefe de mesa, dizem-lhe os nomes das dançarinas que gostariam
que viessem dançar para o Leonel – sim, dançarinas, uma não chegava, pois
então – e ouvem as advertências que lhes são feitas, com cara de quem já as
ouviu muitas vezes.
“...tentativa de tocar a dançarina durante ou após o número, e se tal acontecer terei
de pedir aos senhores que abandonem o estabelecimento. As dançarinas podem
todavia tocar nos clientes, se assim o desejarem, a menos que o contrário lhes seja
explicitamente dito ao chegarem à mesa. Obrigado pela vossa preferência. Espero que
as danças sejam do vosso agrado.”
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A primeira a chegar é a crioula que fez o segundo ou terceiro número de
strip. Extremamente bonita, com traços ligeiramente asiáticos no rosto, que
misturados com a ascendência europeia e africana lhe dão um ar exótico.
Traz calçados sapatos pretos de salto alto, e vestido apenas um conjunto de
lingerie composto de calções e balconette em seda champanhe, bordados a
renda ocre, que lhe realçam a cor da pele. Os cabelos, cor de ferrugem e de
um encaracolado apertado, descem em catadupa sobre os ombros e os seios
arrebitados, emoldurando-lhe o rosto sorridente.
“Olá, rapazes! É bom saber que podemos contar sempre com vocês”, diz ela, com
um sotaque moçambicano que a torna ainda mais exótica.
“Olá, Luanna”, respondem eles, em coro como um grupo de meninos de
escola.
“Então, qual é a ocasião de hoje? Não que vocês alguma vez precisassem de uma para
me convidar...”
“Ah, mas hoje temos mesmo uma! É o aniversário do Leonel; enfim, daqui a uns dias,
mas a comemoração é hoje. Coitado, os anos vão tomando conta dele. Por isso, tens de
ser especialmente simpática”, diz-lhe o Jorge com ar fingidamente pesaroso.
“Ohh, querido Leonel. Que simpatia teres vindo celebrar o teu aniversário comigo”,
diz com voz dengosa enquanto lhe faz uma festa no cabelo. “Mas, vocês estão
enganados, rapazes. O Leonel não parece nem um dia mais velho desde a última vez
que o vi... que foi há três dias. Os anos parecem não o afectar.”
“É, a ele e ao Dorian Grey”, diz o Mário, e toda a gente se ri, mesmo aqueles
que não sabem quem é ou o que é Dorian Grey.
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“Estás pronto?”, pergunta ao homenageado, que lhe diz que sim com a
cabeça, os olhos fixos nela como os de um miúdo num presente de Natal, e
sem mais demoras começa a dançar em frente dele, ao ritmo de uma melodia
que só ela ouve.
Com as pernas abertas, uma de cada lado das dele, vai subindo e descendo,
balançando as ancas para a frente e para trás, cada vez mais próximas das do
Leonel, que continua sentado quieto que nem um rato. Ela finge acariciar-se,
agarra e solta os cabelos enquanto roda a cabeça para um lado e para o outro,
aproxima-se e afasta-se dele, não deixando todavia de estar cada vez mais
chegada, até todo aquele balancear se estar a passar apenas a meros
centímetros do desgraçado, que parece disposto a aguentar estoicamente
toda a sessão de tortura.
Num relâmpago, o soutien sai-lhe do peito e vai parar ao pescoço do Leonel.
Serve-se das alças para o puxar para si e enterra-lhe o rosto entre os seios,
mantendo-o ali com a mão que lhe põe na nuca e o faz mover em ritmo com
ela.
Um empurrão suave na testa, e o Leonel volta à posição de recostado no sofá,
enquanto ela continua a subir e descer por ele, mais e mais perto, os mamilos
a passarem-lhe a milímetros do rosto extasiado.
Agora pega-lhe nas mãos e, guiando-as com as suas, percorre-se os
contornos do corpo, das ancas para os ombros, sem deixar de dançar e sem,
todavia, lhe tocar na pele. Faz com que ele lhe acaricie os cabelos e volta a
descer ao longo das costas, quase pousando as mãos dele nas nádegas
quando parece ter as ancas literalmente coladas à virilha do Leonel.
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Novo empurrão, e ele dá por si novamente encostado ao sofá, as mãos sobre
o assento onde ela as deixou cair. O rosto contorce-se-lhe numa expressão
fingida de abandono quando a vê começar a afastar-se lentamente, sorrindo
com ar maroto e balançando os seios com as costas arqueadas.
Depois de se libertar das pernas dele, dá uma volta de cento e oitenta graus e
recomeça a aproximar-se, dançando para trás e baixando o tronco ao mesmo
tempo, enquanto vai, lentamente, tirando as cuecas.
Quando as tem nos tornozelos, volta-se num repente, atira-as ao ar com um
pontapé, dá, sorrindo, um beijo na testa ao Leonel e senta-se nos joelhos
deste com as pernas juntas esticadas para cima.
“Uaauu! Adoro dançar assim. Então, querido, gostaste?”
“Oh, sim. Tu sabes que danças divinamente, Luanna. Era capaz de cá vir todos os
dias só para te ver”, responde ele com aquele ar sincero que tanto lhes parece
agradar.
“Então porque não vens, meu maroto? Tu sabes a falta que me fazes”, diz ela rindo
e dando-lhe novo beijo na testa.
O empregado aparece com a bebida da praxe e ela aproveita para sair do
colo do Leonel e se sentar entre ele e o Tó, que se chega para a ponta do sofá
para lhe dar espaço.
Uma vez que a dança já acabou, a Luanna deixa subitamente de ser caça
reservada e todos parecem querer tentar a sua sorte, dizendo as coisas mais
estapafúrdias para a impressionar, numa conversa tão recheada de
insinuações e alusões veladas que é fácil perder o fio à meada. Habituada a
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este tipo de avanços, ela responde-lhes no mesmo estilo, rindo sempre, num
duelo de palavras de duplo-gume que nada tem de cortante.
A Luanna ainda vai a meio da bebida quando chega o segundo acto, um duo
desta vez. Não percebo se o pedido foi assim, ou se foram elas que decidiram
vir ao mesmo tempo, mas o Leonel não parece nada preocupado por ter de
se haver subitamente com uma dose dupla. As duas novas dançarinas são a
ruiva Tatiana e a loura, cujo nome não percebi, que se exibiu ao som dos
AC/DC.
Apesar do strip mútuo ser para mim uma novidade absoluta, e de as duas
raparigas terem o número coordenado na perfeição, depressa me canso. O
fastio da fartura, talvez.
Encho, distraidamente, o cachimbo, enquanto passo os olhos pela sala, para
ver o que está a acontecer noutros lados. Há mais duas mesas que têm
danças a decorrer, uma delas em cima da mesa propriamente dita, e o resto
da clientela reparte os olhares babosos pelos espectáculos simultâneos,
alguns como quem não quer a coisa, outros atentamente, como se fossem
escrever uma crítica para um jornal.
À nossa direita, por exemplo, está uma mesa com quatro tipos morenos com
ar de mafiosos, que têm os olhos fixos nas dançarinas que se requebram em
frente ao Leonel. Mas o chefe de sala vem quebrar o feitiço que os domina.
Diz qualquer coisa ao ouvido de um deles e este faz sinal aos outros que têm
de sair. Levantam-se a contragosto e começam a dirigir-se para a porta, o
último ainda com o olhar colado à loura. Quando vai para se voltar, os seus
olhos percorrem lentamente a sala e dá por mim a olhar para ele. Uma fugaz
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expressão de surpresa, um pequeno acenar de queixo, como quem diz, „olha,
estás aí?‟, e um sorriso feroz que não dura mais do que alguns segundos, são
tudo o que mostra de si, antes de finalmente se voltar e sair pelas portas de
vidro.
A cara não me é desconhecida, mas não sei de onde, o que, em si, não é
estranho. Ao fim e ao cabo, nesta profissão, conhecer criminosos não é
propriamente uma raridade. Alguns dos meus melhores clientes são, ou
foram, criminosos...
Estranhamente, ou talvez não, são dos que pagam sempre a horas e sem
discutir honorários. Por isso, este pode bem ser alguém que já tenha sido
meu cliente, ou até, pelo aspecto, alguém que é guarda-costas de alguém que
já tenha sido meu cliente.
De qualquer forma, pouco importa, não me lembro quem seja e não vou
perder tempo a tentar lembrar-me.
O súbito explodir de aplausos e assobios à minha volta diz-me que as
meninas já terminaram. E parecem ter sido do agrado de toda a gente,
especialmente da Luanna que, talvez por solidariedade profissional, é quem
bate palmas com mais força.
Depois de fazerem uma pequena cortesia de agradecimento, a ruiva salta
para o colo do Leonel e agarra-se-lhe ao pescoço, dando-lhe três beijos
sonoros, um em cada bochecha e um na boca, antes de lhe dizer: “Happy
birthday, Leonelu!”, enquanto a loura lhe estende a mão e sorri dizendo o
mesmo.
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Como em deixa, o empregado chega novamente com as bebidas e as
dançarinas procuram lugar para se sentar. Seja porque a ruiva tem mais
saída, seja porque o pessoal tomou o aperto de mão como sinal seguro de
que a loura é fufa e só gosta de mulheres, o que é certo é que a primeira se
senta ao lado do Leonel e é imediatamente rodeada por quem ainda não
estava de volta da Luanna, e a segunda vem para os meus lados.
Quando se aproxima de mim para se sentar, reparo, finalmente, que ela de
loura tem tanto como eu.
“Hello, I am Janna”, diz ela estendendo-me a mão.
“Jakez”, digo eu, tomando-a na minha.
Parece surpresa.
“Jakez?”, diz, pronunciando o meu nome quase como eu, e a seguir continua
em inglês. “Isso não é um nome português, pois não?”
“Não, efectivamente não é. É francês, ou melhor, bretão; da Bretanha, no noroeste de
França”, explico eu, talvez de forma um tudo nada pretensiosa.
“Sim, eu sei onde é a Bretanha. Saint-Malo, Brest, o Ankou e tudo isso”, diz ela
com um sorriso, deixando-me ao mesmo tempo impressionado e
envergonhado. “Tu prefères qu‟on parle français? „Prefères pas le breton,
j‟espère...” pergunta ainda, mudando de língua.
“Non, non, ça va bien en français, je parle très mal le breton”, digo mais
impressionado ainda.
Ela ri-se bem disposta e continua em francês.
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“Também és amigo do Leonel?”
“Sim, ele, eu e o Miguel – aquele ali de fato creme – fizemos juntos a secundária.”
“Ele é sempre a alma da festa?”, pergunta, apontando para o Leonel, agora com
os braços por cima dos ombros da Tatiana e da Luanna e um „sorriso pasta
de dentes‟ nos lábios, enquanto o Paulo os regista para a posteridade com a
máquina de filmar do telefone.
“Oh, claro! Especialmente se na festa houver mulheres.”
Ela ri-se novamente.
“Sim, já me tinham falado dele. Bem, hoje pelo menos tem razão para estar assim,
sempre é o aniversário dele.”
“Ahh, bom, sim é o aniversário dele, é verdade”, digo e deixo ficar assim para não
entrar em explicações complicadas. Mudo de assunto. “Diz-me cá uma coisa; já
ficaste a saber que o meu nome vem da Bretanha, e tu de onde és?”
“Eu sou checa. Originalmente de Praga; enfim, não exactamente, mas para o efeito
serve. E estou a viver em Lisboa desde há pouco mais de três semanas.”
“Então, e que tal? Estás a gostar?” Não é uma pergunta original, nem o
interesse é genuíno, mas há que fazer conversa.
Ela hesita um momento antes de responder, como se ponderasse sobre
aquilo a que eu me estou a referir exactamente.
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“Sim, tem sido uma experiência interessante.” E deixa ficar a resposta ali,
possivelmente farta de ouvir a mesma pergunta várias vezes por noite desde
que chegou.
Não sei bem onde pôr as mãos. Esta situação de ter sentada a meu lado uma
linda desconhecida, totalmente despida, com quem devo fazer apenas
conversa de chacha é, confesso-o, completamente nova para mim.
Acabo por segurar com uma mão o cachimbo que ainda tenho na boca e
pouso a outra em cima do meu joelho.
“Não há muita gente a fumar cachimbo hoje em dia, pois não?”, diz ela apontando
para o meu.
“É verdade, não há não, pelo menos, tabaco”, digo eu, piscando-lhe o olho.
Ela ri-se, mais uma vez. Parece uma rapariga bem disposta, descontraída, tal
como as outras duas, afinal. No entanto, apesar de estar completamente à
vontade sem roupas – dir-se-ia estar numa pastelaria qualquer a beber chá –
e de o número que apresentou ter sido tão bom como os demais, senão
mesmo melhor que alguns, a verdade é que ela parece, ainda assim, ser
diferente. Ao contrário delas, parece estar aqui e, ao mesmo tempo, não
estar. Ao contrário delas também, que se divertem à grande a ser cortejadas
por um grupo de machos com cio, ela não parece de todo interessada nesse
tipo de atenção.
Será mesmo lésbica, pergunto-me subitamente. Não que me faça qualquer
diferença, mas talvez seja tão simples como isso, talvez a razão porque a
conversa que decorre ao nosso lado não lhe interessa seja precisamente
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porque os homens não lhe interessam, com cio ou sem ele... Ou talvez seja
por outra razão qualquer.
“Tens a certeza de que encheste isso com tabaco?” Ouço-a subitamente perguntar,
ao mesmo tempo que me puxa pelo braço. Olho para ela sem perceber o que
quer dizer. “Parecias longe daqui”, acrescenta.
Rio-me.
“Desculpa, às vezes acontece-me. Mas talvez tenhas razão, acontece-me mais quando
fumo cachimbo, e a mistura vem, de facto, de Amsterdão. Não achas que...”, digo
com algum alarme na voz.
É a vez dela se rir.
“Tu és um tipo engraçado. O que fazes?”
“Nada de extremamente divertido, lamento dizer-te. Sou advogado.”
Ela olha para mim com ar sério. Os olhos, de um azul tão intenso que se diria
artificial, fixos nos meus, como que tentando ler aí que tipo de advogado
sou. Mas, depois, muda novamente de expressão. Sorri e pergunta-me se
tenho escritório em Lisboa, e quando lhe digo que sim pergunta-me se lhe
posso dar a morada.
“Estava a pensar ir falar com um advogado, mas não sabia bem onde o havia de
procurar, e já que te conheci hoje, se não te importas, aproveito.”
“Ora essa, porque haveria de importar-me. Será um prazer ajudar-te ou esclarecer
quaisquer dúvidas que tenhas. A propósito, por que razão precisas de um advogado?”
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Ela baixa ligeiramente a cabeça e encolhe os ombros antes de começar a falar,
num tom de voz um tudo nada mais baixo do que antes.
“Nada de especial, na verdade. Preciso apenas de saber como funcionam as coisas
aqui. Eu digo-te quando te for ver, acho que preciso de escrever as minhas dúvidas
primeiro”, diz em tom de desculpa.
Decido não tentar saber mais.
“Claro, claro. Como preferires. Eu estou normalmente entre as dez e as seis, quando
não até às sete ou oito, por isso, aparece quanto quiseres. O melhor, porém, é
telefonares antes, para não ires em vão. Olha, aqui tens o meu cartão. A morada é
esta, e a estação de metro é a da Alameda. A minha linha directa é esta, mas se eu não
atender, podes também ligar para o geral e pedir para falar com a Mónica, que é a
minha secretária.”
“Obrigada. Depois dou notìcias”, diz com ar sorridente, os olhos novamente
fixos nos meus.
“Quando quiseres.”
Os outros continuam na galhofa; o Leonel numa grande conversa com o
Miguel, e as meninas, rodeadas, cada uma, por quatro pretendentes que lhes
contam lérias, continuam satisfeitíssimas.
Mas um qualquer relógio escondido deve dizer-lhes que são horas de
regressar aos bastidores e começam as despedidas; para grande desgosto dos
conquistadores de ocasião que, todos e cada um, tinham até agora a certeza
de serem eles os eleitos.
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Os outros ainda querem ficar para o segundo espectáculo, convencidos que
são capazes de sacar uma das raparigas. Mas o Miguel diz que tem que fazer
amanhã e que não pode dar-se ao luxo de perder a noite, e o Leonel,
estranhamente, diz já não se aguentar de pé.
Despedimo-nos do resto da companhia e saímos os três do clube. Paramos
uns momentos a aspirar o ar fresco da noite e passamos a sebe para o parque
de estacionamento, mesmo a tempo de evitar um Jaguar cinzento com
matrícula estrangeira, que subitamente me faz pensar no que se passou a
caminho de Setúbal.
Não consigo ver se é o mesmo – não lhe vejo a frente e só presto, à placa
traseira, a atenção suficiente para perceber que é estrangeira – mas uma coisa
leva à outra e, subitamente, recordo-me de onde conheço o tipo com cara de
mafioso que estava lá dentro. Era ele que conduzia o Jaguar quando me
perseguiram na auto-estrada.
Tenho pena de não o ter reconhecido mais cedo, gostava de lhe ter feito
umas perguntas. Mas talvez tenha sido melhor assim. Se tivesse ido falar
com eles, as coisas teriam ficado feias e ter-se-ia estragado a festa.
Mas não há crise. Se os encontrei segunda vez, também os posso encontrar
uma terceira. E talvez aí as coisas sejam diferentes.
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Deixamos o Miguel na fila dos táxis e seguimos para o sítio onde o Leonel
estacionou, agora quase impossível de encontrar, no mar de carros que enche
o parque.
O Kalahari XC.EL verde-claro espera-nos, afinal, no sítio onde o deixámos,
com a frente para o rio. Mas não nos espera sozinho; quando estamos a
chegar ao carro, as portas abrem-se e saem lá de dentro a Bella e a Neuza,
com aspecto de prontas para começar a noite.
“Olá, meninas! Não tiveram de esperar muito, pois não?”, pergunta-lhes o Leonel
que as recebe de braços abertos e com um sorriso de orelha a orelha. “Então,
que me dizem, vamos os quatro passar um bom bocado?” Pisca-me o olho.
Eu olho para ele com cara de parvo. Mas não sei porquê, aquela história de
ele não se aguentar de pé não me cheirou bem quando a ouvi; que razão
tenho agora para estar surpreso.
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TRÊS
Acordo mais cedo do que gostaria de ter acordado. Levanto-me, lavo-me,
visto-me e vou para a cozinha tomar o pequeno-almoço. O Leonel e as
amigas passaram a noite às cambalhotas, primeiro na sala e depois no quarto
do outro lado do corredor, e não foi fácil adormecer com o concerto de
gemidos, grunhidos e gritos de satisfação delas e dele.
Com o uso que sei que ele e a Tuuva dão à cama – sem contar com
convidadas como as de ontem – acho que me posso dar por satisfeito por não
morar nos prédios ao lado. Ouvir esta sinfonia todas as noites, várias vezes
por noite, deve lixar o sono a qualquer um.
É claro que também eu podia ter passado a noite com uma delas, ou até com
as duas, à vez; pois isso era o que estava estabelecido desde o início, mas não
161
quis fazê-lo. Não que alguém tenha ficado ofendido, quem elas queriam
mesmo era o Leonel; eu teria sido apenas um bónus – tipo a pastilha elástica
que ofereciam no Epá quando éramos miúdos.
Mas estas coisas por uma noite não me dizem nada. E nunca poderia ter
passado disso, ou de ser sempre uma relação complicada, se acaso desse
para mais – segundo depreendi da conversa, antes de me ir deitar, são as
duas casadas e querem continuar a sê-lo – e nada disso me interessa. Ao
contrário do Leonel, eu gosto da minha vida o menos complicada possível.
Quando a Mima se afastou de mim, não houve noite que não dormisse ou
não tentasse dormir com alguém diferente. Corri os bares de engate todos de
Lisboa e arredores à procura não sei de quê, ou de quem. Arranjei não sei
quantas namoradas, umas atrás das outras, como numa linha de montagem
de automóveis. Comi-as na cama, na varanda, na cozinha, no elevador, em
cima da moto, no escritório, na praia, e até no cinema, o que já não fazia
desde sei lá quando.
Até que se começaram a confundir umas com as outras, e deixei de fazer
amor para passar a produzir quecas. Todas iguais – com mais ou menos
gemidos, mais ou menos acrobáticas, com esta ou com aquela gaja – e, no
fim, todas uma frustração. Por mais vezes que me viesse ou que as fizesse vir
durante a noite, à tarde ou de manhã, a sensação era sempre a mesma. Não
sentia nada. Não sentia absolutamente nada...
Sou interrompido nas minhas recordações pela voz do Leonel que, em
surdina, me chama de vale de lençóis.
162
Entreabro a porta do quarto e enfio a cabeça pela fresta. Estão os três
deitados na cama, ele no meio. A Neuza ainda profundamente adormecida
com a cabeça sobre o peito do Leonel, que lhe faz festas no cabelo, e a Bella já
meio acordada, encostada ao ombro direito dele, enquanto lhe mordisca a
orelha.
“Já estás de saída?”, pergunta-me em voz baixa. Digo-lhe que sim, que tenho
coisas que fazer, embora não tenha nada.
“Ouve, almoçamos juntos?...”, diz em voz baixa, para logo a seguir exclamar:
“Aie!” Quando a Bella lhe morde a orelha com mais força. “Não, pensando
melhor talvez seja preferível jantar. Acho que vou estar ocupado ao almoço”, diz a
rir, enquanto acaricia, com a mão livre, as costas e nádegas da Bella, que
acena com a cabeça e ronrona em concordância.
Eu vou dizer-lhe que sim, mas depois lembro-me da Catarina e digo-lhe que
não posso. Pensamos em amanhã, e ficamos de falar de manhã para
combinar o sítio.
Deixo-os entregues ao aquecimento antes das acrobacias matinais, pego no
saco com a roupa de ontem e desço à garagem para ir buscar a moto.
===================¤==================
A Tuuva e o Leonel vivem numa das encostas do castelo, num prédio antigo
de esquina, bastante lá para cima, com três andares e cobertura de azulejos,
163
que o pai lhe deixou em herança e que eles converteram em vivenda,
distribuindo as divisões pelos pisos e instalando um elevador para as ligar
entre si.
Os quartos ficam no último andar e são os que têm melhor vista para o
Terreiro do Paço e para o rio, através de umas janelas polarizadas enormes,
colocadas no sítio das antigas varandas. O segundo andar é quase uma sala
única, tirando as colunas e paredes de sustentação ou de separação acústica,
e é onde eles têm a colecção de armas do Leonel – que tem quase tudo, desde
arcabuzes e bestas até pistolas automáticas (algumas delas em perfeito
estado de funcionamento, embora não seja isso que conste do manifesto) –
bem como os livros, os discos e a aparelhagem, os filmes e o écran de parede.
No primeiro andar ficam a cozinha e a sala de jantar, a sala de visitas e uma
outra sala, onde estão o computador, o fax e toda a demais aparelhagem de
que a Tuuva se serve quando não pode ou não quer ir ao escritório.
O rés-do-chão, tirando o átrio que separa a porta de entrada da do elevador,
está totalmente ocupado pela garagem, onde desembocam as escadas de
serviço, e de onde abre a porta para o pequeno jardim das traseiras, com
cerca de quarenta metros quadrados.
Saio do elevador pelo lado da garagem, um metro mais baixo do que o lado
da entrada. Visto um blusão e embrulho as pernas numas capas
fluorescentes, ponho o saco com a roupa dentro da mala de trás, enfio o
capacete, subo para cima da moto e saio pelo portão basculante, que se abre
com a minha aproximação e se volta a fechar logo depois de eu ter saído.
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Aproveito o ter acordado cedo e vou direito para o ginásio fazer um treino
de spin, para queimar as calorias que podia ter queimado na cama. Mas o
sabê-lo parece duplicar a energia que tenho disponível, e consigo fazer um
treino arrasador. Amanhã talvez me arrependa, mas é só amanhã. Hoje sintome revigorado e, depois do spin, sigo com um treino de força que, modéstia
à parte, teria feito inveja ao super-homem.
Do ginásio vou para casa. Levo comigo o equipamento de reserva que ficou
todo encharcado, junto-lhe mais umas quantas peças de roupa que descubro
no cesto e ponho uma máquina de roupa a lavar, para a mulher-a-dias passar
quando vier na terça.
Pego n‟A Montanha Mágica e vou sentar-me na sala, enquanto espero. Mas
não estou com cabeça para ler Thomas Mann e decido-me antes por um
filme. Depois de alguma hesitação acabo por escolher Yojimbo, um clássico de
Kurosawa de 1961, que tive a sorte de comprar em edição Criterion, quando
ainda se encontrava.
Estou a escolher menus quando o telemóvel dá sinal. Carrego no botão de
pausa e atendo. É a Catarina, que me diz que a sessão a que ela vai deve
acabar por volta das seis e meia. Olho rapidamente para o relógio e confirmo
que tenho tempo de sobra para ver o filme e estar em Lisboa a horas.
Pergunto-lhe se gostaria de ir jantar a algum sítio em especial, e ela diz-me
que não. Combinamos encontrar-nos no Colombo e ir daí a qualquer lado.
Ela diz que vai pensar no que lhe apetece e despede-se.
165
Volto a pôr o aparelho em marcha, faço descer as persianas com o comando,
desligo o telefone e o telemóvel e recosto-me no sofá.
===================¤==================
Chego a Benfica pouco antes das seis e meia. Deixo a moto no piso um do
parque, apanho o elevador para o segundo andar do centro comercial e abro
caminho, a custo, pelo mar de gente que enche as galerias; gente que
caminha aparentemente sem objectivo, passeando-se entre paredes, quando
podiam estar a passear lá fora, ao ar livre.
Chego ao multiplex quando está precisamente a começar a sair gente. Paro
ao pé das portas de entrada para o átrio das pipocas e presto atenção a quem
sai.
Não tenho de esperar muito. Vejo-a vir no meio da segunda leva de
espectadores a chegar à rampa para o átrio. Vem acompanhada de mais duas
miúdas da idade dela, distraída na conversa, e ainda não me viu.
Chamo-a e faço-lhe sinal com a mão.
Tudo acontece muito rápido.
Ela volta-se na minha direcção ao ouvir o som da minha voz e começa a
sorrir.
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O grupo de rapazes que vinha atrás delas põe-se subitamente em movimento
coordenado. Enquanto uns lhes apalpam o peito ou lhes enfiam a mão entre
as pernas para as distrair, dois deles agarram-lhes nas malas e lançam-se em
correria para a saída.
Por sorte, passam ao pé de mim e não preciso de me mexer muito. Para o
primeiro, aproveito o impulso com que vem e empurro-o com força contra a
coluna mais próxima, ao longo da qual cai até ao chão. O outro, dou-lhe, ao
passar por mim, um calduço que o deixa atordoado, e agarro-o, primeiro
pela camisola que traz vestida e depois por um dos braços, que lhe torço
atrás das costas antes de o fazer sentar no chão ainda meio atarantado,
encostado à coluna que pôs o primeiro a ver estrelas.
Os outros acham por bem pôr-se em fuga, deixando os comparsas entregues
a si mesmos.
As miúdas estão mais furibundas do que outra coisa. O golpe foi tão bem
dado, que elas só se aperceberam que lhes tinham dado baixa às malas,
quando os rapazes deixaram de as importunar e se puseram em fuga,
perante a indiferença, ou total falta de percepção, das outras pessoas que
também descem a rampa dos cinemas.
Ainda penso em entregar os dois que ficaram para trás à segurança, mas
para quê? Se já são viciados no esticão, não é isso que os vai curar, e se se
tratou apenas de uma primeira vez desastrada, acho que já apanharam que
chegue.
Pego nas malas e vou ao encontro da minha filha e das amigas, que,
entretanto, se começaram a mover nesta direcção.
167
A Catarina atira-me os braços ao pescoço quando chega ao pé de mim e
começa a soluçar.
“Oh, pai! Que miúdos horríveis. Porque tinham de nos tocar? Não lhes chegava
levar as malas?”
Eu faço-lhe festas no cabelo para a acalmar, mas não sei o que lhe diga. É
claro que os apalpanços não teriam sido realmente necessários para lhes tirar
as malas, mas quem planeou o esticão foram rapazes, e os rapazes gostam de
tocar em raparigas – alguns mesmo contra a vontade delas.
Já há muito que não deveria ser assim, mas, infelizmente, parece que ainda é.
As amigas da Catarina não parecem ter ficado tão afectadas. Mas talvez
estejam só a fazer-se fortes porque, ao contrário dela, não têm em quem se
apoiar. Ajudo a minha filha a secar os olhos e pergunto se querem ir beber
qualquer coisa para acalmar.
Elas encolhem os ombros, como típicas adolescentes.
“Bom, já que ninguém se opõe, então venham comigo.” Meto a Catarina debaixo
de um braço e as outras duas debaixo do outro, e levo-as para a praça dos
restaurantes, onde as faço sentar numa mesa ao pé de um dos quiosques de
sumos de fruta.
Compro quatro limonadas, distribuo uma por cada e fico com a última para
mim.
“Então, como vai isso?”, pergunto, depois de as ter deixado beber um gole e
acalmar um bocado.
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“Melhor, obrigada”, responde a de rabo de cavalo, enquanto a Catarina e a
outra fazem que sim com o queixo.
“Ainda bem. E agora tentem pôr todo aquele episódio desagradável para trás das
costas. Já passou, pronto. Quando não se pode fazer nada para alterar as coisas, é
melhor não perdermos tempo a pensar nelas.” Elas olham para mim não muito
convencidas, mas depois acabam por concordar.
“Ora vamos lá a ver, como é que vocês se chamam?”, pergunto para as pôr a
pensar noutras coisas. A Catarina lança mãos à cabeça.
“Desculpa, pai. Esqueci-me de te apresentar as minhas amigas. A Mituxa e a
Filipa”, diz, apontado, respectivamente, para a morena do rabo de cavalo e
para a loira de cabelos curtos.
“Não é preciso desculpares-te, Catarina. Não começámos exactamente da maneira
mais calma. Muito prazer em conhecer-vos. Vocês andam todas no colégio?”
“A Mituxa sim, mas a Filipa, não.”
“E conhecem-se de onde?”, pergunto, esperando não estar a fazer muita figura
de pai inquisidor.
“Vamos todas à mesma classe de rítmica no ginásio clube”, responde a de cabelo
curto.
“Aha”, digo eu, ficando assim a saber que a minha filha frequenta uma classe
de ginástica rítmica. “Então, e este filme que vocês foram ver, o que era?”, digo,
para mudar de assunto e não parecer demasiado ignorante da vida da
Catarina. Afinal, não sei o que ela contou de mim às amigas.
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Contam-me a história e dizem-me o que lhes pareceu o enredo. Falam do
actor principal que acham fabuloso; um tipo novo, de quem já ouvi falar mas
de quem nada vi – a Mituxa parece estar apaixonada pelo rapaz, e as outras
não se ensaiam nada em gozar com ela. Depois falam de outros filmes dele e
perguntam-me se os vi, e eu tenho de dizer que não, o que não deve ter
abonado muito a meu favor, porque o não-sei-quantos é o melhor actor que
alguma vez existiu, para não mencionar que é também o mais bonito, na
modesta opinião da Mituxa.
Ficamos na conversa durante uma boa hora, e depois as amigas da Catarina
dizem que são horas de ir andando. Pergunto-lhes se querem ir jantar
connosco, mas elas dizem que não podem.
Depois de as enfiarmos num táxi, a Catarina volta-se para mim num repente
e diz:
“Tu foste fantástico, pai! A maneira como apanhaste aqueles dois rapazes foi incrível,
nunca tinha visto nada assim.”
Olho para ela surpreendido e sinto-me corar. Rio-me, para disfarçar.
“Achas mesmo? Não foi nada de especial; eles é que fizeram a asneira de correr na
minha direcção. O resto foi sorte.”
“Pois, diz que foi sorte. Eu bem vi a maneira como tu os agarraste. Parecia que tinha
voltado à sala de cinema. Bam! Shtof! Ueeeh-Spam!” E põe-se a imitar o Bruce
Lee, ou o Jackie Chan, ou outro qualquer das artes marciais. Eu olho para ela
com ar espantado. Decididamente, esta rapariga tem muito que se lhe diga.
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“Eu não quis dizer nada em frente delas para, sei lá, para não parecer que estava a
fazer reclame ao meu próprio pai. Mas, ena, foi fenomenal! Aposto que vão contar a
toda a gente do ginásio e ninguém vai falar de outra coisa no treino de segundafeira”, continua com voz excitada.
“Está bem, está bem. Já chega, menina. Ouve cá, já descobriste o que te apetece
jantar?”, digo eu, tentando manter-me sério, mas sem muito sucesso.
“Não, não sei o que me apetece. Qualquer coisa diferente, mas não sei o quê”,
responde, pensativa.
“Mmmh. Qualquer coisa diferente...” Vem-me à ideia qualquer coisa de
realmente diferente, que sei que ela quase de certeza não provou, porque
nunca consegui convencer a Mima a experimentar e o Gonçalo não tem ar de
quem se aventura muito por território alimentar estrangeiro. “Olha lá, estás
mesmo disposta a provar qualquer coisa diferente? Sentes-te com coragem?”
Ela olha para mim com os olhos muito abertos, de repente não muito segura
da vontade que tem de experimentar coisas novas.
“Que tipo de coisa diferente? Não são insectos, pois não?”, pergunta, com uma
expressão de pavor no rosto.
“Não, menina, não são insectos”, respondo-lhe rindo. “Se bem que os gafanhotos
fritos até nem são nada maus; um ligeiro sabor a galinha, sabes.”
“Oh, pai! Que nojo. Blah!”
“Agora a sério. Não são insectos, prometo-te. Há mais alguma coisa de que tu não
gostes, ou que penses que não gostes, e que não tenhas coragem para experimentar?”
171
Ela pensa um bocado, e depois diz que não. Pelos vistos, a coragem dela dá
para tudo menos para insectos.
“Ora, ainda bem. Vamos então a este restaurantezinho que eu conheço, onde se come
muito bem. Vais experimentar umas coisas que, tenho quase a certeza, nunca
provaste. Mas tu dir-me-ás quando chegarmos. Vamos buscar a moto, anda.”
“E... e não me dizes sequer onde vamos, ou que tipo de comida é?”, pergunta,
subitamente preocupada..
“Não, nicles, nada. Queres vir?”
Ela olha para mim, ainda hesitante, mas depois acena que sim.
Voltamos a entrar no centro comercial e subimos o corredor central em
direcção ao elevador que fica mais perto do sítio onde deixei a moto.
Sensivelmente a meio, a Catarina decide ir à casa de banho. Aproveito e
telefono para o Shimata para saber se têm lugar para nós – não teria piada
nenhuma chegar lá e ter de esperar ou não ter lugar de todo. Mas dizem-me
que não há perigo.
Os bons restaurantes japoneses são dos segredos mais bem guardados em
Lisboa, embora eu não consiga perceber porquê. Na verdade, deviam ser
anunciados aos quatro ventos. Eu nunca me canso, e é mesmo dos tipos de
comida que mais gosto. Ligeira, saborosa e agradável à vista.
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O trajecto até à Defensores de Chaves demorou perto de quinze minutos. A
Catarina passou o tempo todo a tentar tirar nabos da púcara acerca do
restaurante, e eu a fazer de conta que não percebia o que ela queria dizer.
Estaciono a moto mesmo em frente do Shimata, e ela continua sem perceber.
Mas não é estranho que assim seja. O restaurante não tem qualquer sinal
exterior, para além de uma tabuleta redonda em madeira escura, pendurada
por cima da porta também em madeira, de tal forma que só a vê quem olhar
para cima. Essa tabuleta só tem o nome do restaurante, escrito a vermelho,
com kangi de um lado e em alfabeto romano do outro, nada mais. O espaço
ocupado pela montra da antiga pastelaria ou café, já não me lembro bem, foi
coberto com tábuas, da mesma madeira da porta e da tabuleta, de forma a só
deixar espaço para umas janelas estreitas, colocadas cerca de um metro e
oitenta do passeio.
Toco à campainha e vêm abrir a porta pouco depois.
“Irasshaimase! Nanmei-sama desu ka”, diz, com uma vénia, a empregada
bonitinha de kimono, que já conheço de outras visitas.
“Futari desu”, respondo eu, valendo-me das poucas palavras que conheço.
A Catarina, que percebeu onde estávamos quando a porta se abriu, passa os
olhos de mim para a empregada e dela para mim, sem perceber patavina.
Mudo necessariamente para português e digo-lhe que gostaríamos de um
gabinete.
Ela acena com a cabeça e faz-nos sinal para a seguirmos. “Hai, kochira e,
dozo”.
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O restaurante está efectivamente quase vazio. Só duas das doze mesas estão
ocupadas, uma com duas e outra com seis pessoas. Não sei se haverá mais
alguém nos gabinetes, mas pela falta de barulhos de conversas estou em crer
que não.
A empregada corre a porta de papel de arroz com armação de madeira e faznos sinal para entramos, com um sorriso. Descalçamo-nos, pomos os sapatos
no tapete de corda, e sentamo-nos à mesa baixa, usando as almofadas que
cobrem quase totalmente a esteira. Ela dá-nos a ementa e sai, correndo
novamente a porta.
“Não sabia que também falavas japonês”, diz a Catarina baixinho, depois de a
rapariga ter saído.
Sorrio, abanando a cabeça. “E não falo. Aquilo é quase tudo o que sei, aprendido
aqui e ali; em filmes, nos treinos de shorinji-kempo e em restaurantes como este.”
“O que é shorinji-kempo?”, pergunta, curiosa.
“Shorinji-kempo é uma arte marcial japonesa, que hoje em dia treino duas vezes por
semana, mas que houve alturas em que treinava quase todos os dias. E os treinos são
todos em japonês.”
A Catarina ia dizer mais qualquer coisa, mas a empregada vem perguntarnos se já decidimos o que queremos, e ela muda de ideias.
Tendo em conta que é a primeira vez que a Catarina vai experimentar a
cozinha japonesa, peço uma mistura de pequenos pratos para ela poder
provar de tudo. Sopa misu, yakiniki, tempura moriawase, yakitori, e os
indispensáveis sushi e sashimi.
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“E para beber?”, pergunta a empregada, os erres macios como seda.
“Olha lá, Catarina, tu costumas beber cerveja?”
Ela olha para mim com os olhos muito abertos.
“Não, nem por isso.”
“Mas, não gostas é?”
“Não, é só que, a mãe diz que eu não devo beber”, diz, embaraçada por ter de
confessar a proibição materna.
“Sim, e a mãe tem toda a razão. Mas hoje é uma ocasião especial e vamos fazer uma
excepção, pode ser?”
Ela acena que sim e eu pergunto à empregada se têm cerveja japonesa. Como
esperava, diz-me que têm Kirin, Asahi, e Saporo. Peço-lhe uma lata de
Saporo bem fresca e dois copos, e também uma garrafa de água mineral, não
vá a Catarina não gostar mesmo de cerveja.
A empregada faz mais uma vénia e retira-se, fechando novamente a porta de
papel de arroz.
“Então, que tal te parecem a ideia e o restaurante?”, pergunto, depois de ela se
afastar.
“Gosto muito. Acho que tiveste uma boa ideia, pai. Mas, eu não sei o que pediste,
achas que vou gostar?”
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“Não te preocupes. Se não gostares não tens de comer”, digo, sorrindo ao olhar
para o ar receoso dela. “Mas eu acho que vais gostar.”
“E, o que é, posso saber?”
“Claro”, explico-lhe o que é cada um dos pratos que pedi, começando na
sopa e deixando o sushi e o sashimi para o fim, embora sejam precisamente
aqueles que serão servidos em primeiro lugar. Quando lhe falo destes, ela
não parece muito convencida. Tal como a maior parte das pessoas, já ouviu
falar em sushi, mas daí a sentir-se capaz de experimentar ainda vai um
bocado. E o sushi é mais fácil de gostar do que o sashimi – é espantoso o que
uma pequena almofadinha de arroz pode fazer pelo paladar.
“Repara, Catarina, eu não te trouxe aqui para te forçar a comer uma coisa de que não
gostes, ou que não tenhas vontade de experimentar. Os pratos vêm para a mesa, eu
digo-te o que é cada um e tu tiras só o que te agradar, combinado?”
Ela acena com a cabeça, com o ar sério de quem vai ao dentista e sabe que
hoje vai haver broca. Pergunto a mim próprio que raio de educação é que lhe
darão em casa. Que diacho, a miúda tem quase dezasseis anos, já não é
nenhuma criança, mas parece ter receio de provar uma coisa ligeiramente
diferente daquilo a que está habituada.
Quando os pratos chegam, mostro-lhe como usar os pauzinhos e deixo-a à
vontade. Primeiro a medo, mas depois com verdadeiro apetite, vai provando
de tudo, e nem o sashimi escapa. É claro que tive o cuidado de pedir apenas
peixe de paladar fácil – não teria sido aconselhável dar-lhe a provar ouriçodo-mar ou raia logo na primeira refeição. O paladar também se treina.
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Falamos do baile e do vestido. Pergunto-lhe se gosta de dançar e ela diz que
sim; pergunto-lhe se tem namorado e ela cora e diz que não. Insisto e
pergunto-lhe se não tem mesmo, se não há nenhum rapaz de quem ela goste
especialmente, e aí ela diz que sim, que há um. Mas que, nem ele, nem
ninguém sabe que a Catarina gosta dele. E que é tudo muito complicado.
Como sempre, quando se é adolescente e se está apaixonado.
“Mas, olha lá, e quem é esse rapaz?”
“É o irmão da Filipa, que também anda lá no ginásio”, diz ela, corando mais uma
vez.
“Então, e o irmão da Filipa, ainda não percebeu que uma rapariga tão bonita como tu
está interessada nele? Tens a certeza de que esse rapaz tem o miolo todo?”, digo,
meio sério.
Ela ri-se e volta a corar.
“Ó pai, não digas que eu sou bonita, porque não sou. Todas as outras são muito mais
bonitas do que eu”, diz, com ar tristonho.
“Épá! Tu não me digas. Tenho de ir assistir a uma dessas aulas de ginástica. Uma
sala cheia de raparigas, todas mais bonitas do que a minha filha Catarina! Isso é uma
coisa do outro mundo, vai ser preciso chamar a imprensa, e aqueles tipos que andam
à caça de beldades, como é que eles se chamam... não interessa. Posso ir já na
segunda?”, digo muito depressa e com a voz cada vez mais excitada. Ela ri-se
com gosto, mas não parece convencida.
“Catarinazinha, minha querida filha! Como é que tu podes pensar uma coisa dessas?
Eu não conheço as tuas colegas da ginástica, quero dizer, além da Mituxa e da Filipa,
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mas não acredito que tu possas ser a menos bonita da classe. Mas, mesmo que fosses,
que importância teria isso? O que conta não é a beleza exterior, mas a interior. Não
me digas que tu por dentro és assim como uma bruxa velha e feia, daquelas com
chapéu de bico e uma grande vassoura, que faziam sempre de más nos contos de fadas
que eu te lia quando eras pequena?”, digo, falando com ela como se fosse ainda
uma criança e fazendo a cara mais feia que consigo imaginar.
“Não, eu não sou assim!”, responde ela, rindo. “Mas os rapazes não olham para o
que está dentro de mim, mas sim para o que está por fora”, acrescenta, com ar de
quem está a dizer uma verdade indisputável.
“Isso é certo”, concordo, lembrando-me dos meus tempos de miúdo e de quão
estúpidos nós conseguíamos ser por vezes. “Mas então, voltamos ao início: se o
irmão da Filipa olhar para ti e não vir uma rapariga bonita por fora também, é
porque, ou precisa de óculos ou não tem o miolo todo e, neste último caso, tens a
certeza que esse tipo te interessa? Porque tu és bonita, filha! Não sei onde foste
buscar a ideia de que não és, mas é uma ideia errada. E não o digo porque sou teu pai.
Digo-o porque é verdade, percebes?”
Ela encolhe os ombros. Faço-lhe uma festa na cara. “A sério, filha. Achas que eu
o diria, se não fosse verdade?” Abana a cabeça. “Então?...”
“É que... a mãe chama-me sempre „patinho feio‟ e diz que eu tenho os pés grandes, e
eu não caibo nas roupas dela. E depois tenho borbulhas”, diz, com a cabeça baixa,
encolhendo os ombros novamente.
Que parvoíce, Mima! Penso para comigo. Como se isso fosse coisa que se
dissesse a uma adolescente. Tento resolver a situação sem a pôr em cheque.
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“Se calhar, a mãe chama-te „patinho feio‟ pela positiva. Sabes a história, não sabes?
Então, talvez ela queira dizer que tu és, afinal, um cisne pequenino... Concordo que
não terá sido uma escolha feliz, mas, às vezes, os nomes de carinho são escolhidos sem
pensar que podem magoar a quem se destinam, percebes? Não acho que ela o tenha
feito por mal.” Levanto-lhe a cabeça e vejo que tem os olhos húmidos. “Quanto
a teres os pés grandes, pode ser que até seja verdade, mas se for, isso são boas
notícias!” A expressão no rosto dela indica que tem a certeza que eu
enlouqueci.
“Olha lá, que altura é que tem a tua mãe?... Deixa lá, não importa; não é muito alta.
Tu tens quinze anos, quase dezasseis, e já estás maior que ela, é ou não é?” Acena
que sim “Sabes que altura é que eu tenho? Não, não te assustes. Não estou a dizer
que vais ficar da minha altura. Ainda de lembras da avó Marie?” Acena mais uma
vez que sim. “Tu és muito parecida com ela. E ela é muito mais alta do que a mãe.
A avó foi modelo fotográfico quando era nova, sabias?”
Ela olha para mim com ar de quem está a perceber onde a conversa vai
chegar.
“Ou seja, Catarina, o que eu quero dizer é que tu talvez saias ao teu pai e à tua avó
paterna. O que eu quero dizer também, é que tu, ao contrário da tua mãe, ainda estás
a crescer. Os teus pés talvez sejam grandes agora, embora daqui não me pareçam tal
coisa, mas em breve deixarão de o ser, percebes? Isso acontece porque as fases de
crescimento nem sempre são harmoniosas e, por vezes, há partes de nós que crescem
mais depressa que outras. Mas é só por uns meses, até o resto do corpo as apanhar.
Por isso, não te preocupes.”
“Eu sou mesmo parecida com a avó? E ela foi mesmo modelo?”, pergunta,
interessada.
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“Pareces quase irmã gémea dela, a sério. E ela foi mesmo modelo. Um dia hei-de
mostrar-te fotografias da minha mãe quando era nova. Ela era muito bonita, ainda é.
Tal como tu o és. Confia em mim.”
“Eu gostava muito que isso fosse verdade.”
“E é. Mas falemos de coisas práticas. O que vamos fazer acerca deste rapaz, como é
que ele se chama?”
“Chama-se Hugo. Mas o que queres dizer?”, pergunta, subitamente preocupada.
“Sim, o que vamos fazer, ou preferes ficar à espera que ele compre um par de óculos
ou ponha a funcionar a outra metade do cérebro?”
“Mas, mas, eu nem sei se ele gosta de mim...”
“Bah, e se ficares à espera nunca vais descobrir. E se ele for tímido, hem? Ora, deixa
cá ver... O que calhava bem era uma festazita, onde vocês se pudessem ficar a
conhecer melhor, mmm... Mas onde é que vamos arranjar uma. Tens alguma ideia?”
Ainda não acabei de falar, já ela pensou no baile, provavelmente pela
milésima vez desde que reparou neste Hugo, para logo depois abandonar a
ideia. Antes de pegar nela outra vez e a pôr em palavras.
“Quer dizer, há o baile, mas...”
“Ora, pois, aí está onde vocês vão ficar a conhecer-se melhor! A Filipa vai ao baile?
Não? Impecável. Que te parece convidá-la, dizendo que queres companhia e que ela é
a pessoa ideal; convidar também o irmão com a desculpa que é para ela não se sentir
sozinha, e no dia do baile deixar seguir a conversa para ver onde vos leva?”
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“Não sei...”
“Claro que sabes! Consegues pensar numa maneira melhor? Enfim, podes sempre ir
ter com ele quando o encontrares no ginásio e perguntar-lhe se quer ir contigo ao
baile, como teu par...”
“Não! Isso não. Morria de vergonha. Imagina que ele dizia que não?”
“Querida Catarina, ele só dizia que não se fosse completamente parvo. Acredita em
mim”, digo, segurando-lhe no queixo. “Bem, então está decidido. Vamos
convidar a Filipa e o irmão para o baile. E o melhor é fazê-lo depressa, porque ela vai
ter de arranjar um vestido e ele uma casaca. Tens convites feitos?”
“Não, eu não estava a pensar convidar ninguém. Nem sabia que podia fazê-lo”, diz
com voz sumida, cada vez mais preocupada por ver aproximar-se a altura
em que efectivamente terá de pôr a ideia em prática.
“Claro que podes. É o teu baile, podes levar quem tu quiseres”, desde que pagues,
ou os faças pagar a eles, acrescento para comigo. “Mas não te preocupes com
isso. Dá-me só os nomes e a morada deles e eu encarrego-me de lhes enviar um
convite. E pronto, assunto resolvido.”
Ela não parece muito convencida, mas como não consegue encontrar nada
para contrapor, diz que sim com a cabeça e escreve o nome e a morada da
Filipa e do Hugo no bloco-notas que lhe passo por cima da mesa.
“Tens a certeza que isto é boa ideia?”, pergunta quando acaba de escrever. Uma
última tentativa de desistência antes de não poder voltar atrás.
181
“Tenho. E tu também vais ter. Telefona à Filipa amanhã, diz-lhe que gostavas muito
que ela viesse ao baile também, e que, por isso, lhe vais enviar um convite. E que
convidas também o irmão, para ela não ir sozinha.”
“Mas, mas ela assim vai perceber tudo!”, exclama, subitamente preocupada.
“Então e depois? Ela não é tua amiga? Até é melhor que ela perceba, assim sempre
pode ir preparando o irmão, não te parece? Vá-lá, Catarina, deixa de te preocupar.
Qual é a pior coisa que pode acontecer? Que ele não queira ir, ou que indo não te
ligue nenhuma, o que eu acho improvável. Mas, a acontecer qualquer dessas duas
coisas, ficas desde logo com a certeza de que ele não está interessado em ti e podes
começar a pensar noutro, em vez de passar a vida a suspirar e a pensar nele, sem
nunca teres feito nada para o agarrar.”
Ela pensa por um bocado, e depois diz:
“Está bem. Acho que tens razão. Não vale a pena ter medo. Se correr mal correu,
paciência.” Parece finalmente decidida.
“Ora, muito bem! Assim é que gosto de te ver, Catarina. Um brinde à minha filha,
uma mulher decidida.” Levantamos os copos e fazemo-los tilintar um no outro
a meio da mesa. Ela ri-se; o rosto desanuviado, agora que se livrou do que
até há pouco lhe parecia ser uma questão irresolúvel.
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Mal saímos do restaurante, ela atira-se para cima de mim, enrolando os
braços à volta do meu pescoço num abraço apertado.
“Eu gosto tanto de ti, pai! Gosto muito de falar contigo”, diz num murmúrio, com
a cabeça no meu ombro.
Sinto que me vêm as lágrimas aos olhos.
“Sinto-me tão estúpida por ter passado todos estes anos quase sem te ver, zangada
contigo, por causa de coisas que agora não fazem o mínimo sentido. Tantas horas que
passei sozinha, fechada no meu quarto, triste por não ter ninguém com quem falar,
quando podia ter tentado falar contigo. Não devia ter deixado que o desgosto que
senti quando te foste embora, tomasse conta de mim e me dominasse ao ponto de não
querer sequer estar contigo. Fui muito estúpida mesmo!”
Há campainhas de alarme a tocar em todas as regiões e recantos do meu
cérebro. Agarro-lhe nos braços e desenlaço-os suavemente do meu pescoço,
seguro-lhe nas mãos e encosto-a a um velho Cordoba que está parado em
frente a nós.
“Deixa lá, Catarina. O que passou, passou. Agora sabes que podes falar comigo
sempre que quiseres, e isso é que interessa”, digo. “Só te queria dizer uma coisa,
porém. Porque já és uma senhorinha e tens idade para perceber estas coisas, mas
acima de tudo, para que tudo fique claro entre nós”, acrescento, olhando-a nos
olhos para ver como reage; uma sombra de preocupação já a escurecer-lhe o
olhar. “Não fui eu que me vim embora, filha. Eu nunca me quis separar da tua mãe,
e muito menos de vocês, entendes? Foi ela que me disse que não queria viver mais
comigo.”
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A expressão no rosto dela vai da surpresa ao choque.
“Mas, mas, mas não pode ser. A mãe sempre nos disse que tu não estavas bem
connosco, que tinhas outras coisas em que pensar, e depois acabou por nos dizer que
tu tinhas decidido deixar-nos porque isso era melhor para ti.”
“Não. Não foi nada assim que as coisas se passaram. E garanto-te que tenho tudo
muito nítido na memória”, digo, com alguma rudeza, para logo depois
emendar o tom. “A tua mãe começou a afastar-se de mim lentamente, talvez até
poucos anos depois de tu teres nascido – é-me difícil precisar quando exactamente,
porque lembro-me que na altura eu andava realmente muito ocupado e quando ela me
dizia que não queria ir aqui ou ali, eu tinha sempre qualquer coisa a pedir-me atenção
e podia utilizar esse tempo para trabalhar. Foi-se mostrando cada vez mais distante,
cada vez menos interessada em estar comigo, mesmo nas alturas em que eu me
lembro de ter insistido para sairmos ou fazermos qualquer coisa, até que um dia me
disse que a única solução era o divórcio.
Lembro-me que me senti como se o céu me tivesse desabado em cima da cabeça... Eu
gostei muito da tua mãe, entendes? Consegues entender isso?” Ela acena com a
cabeça, ainda demasiado chocada para vocalizar seja o que for. “Não me deu
qualquer explicação de concreto, disse que precisava de espaço, que se sentia sufocar,
que a nossa relação não lhe estava a dar o que ela queria; sei lá, as coisas que se dizem
nessas alturas.
Ainda tentei dissuadi-la, conversar com ela. Mas vi-a tão decidida que achei melhor
não discutir. Para quê? Tentar dissuadir alguém decidido a fazer determinada coisa,
de fazer essa mesma coisa, é normalmente uma completa perda de tempo e de energia.
E eu pensei, deixa-a ir-se embora, dá-lhe tempo para pensar e depois pode ser que
tudo volte ao normal. Assim, combinámos tudo entre nós: ela ficou convosco e com a
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casa, como quis; passámos a dividir a meias as despesas com a vossa educação e tudo
o resto, e eu podia ver-vos sempre que quisesse. ”
“Mas a mãe nunca voltou”, diz, pensativa.
“Não, realmente nunca voltou. Enganei-me nessa previsão. Acabámos por ir a
tribunal alguns meses mais tarde pôr tudo em papel, e pronto. Como vês, foi tudo
muito civilizado. E, como sabes, a tua mãe casou-se com o Gonçalo, um ano depois do
nosso divórcio.” Faço-lhe uma festa no cabelo, tirando-lhe dos olhos uma
madeixa que o vento lá tinha posto. “Quanto a ver-vos, bom, tu sabes como é que
isso correu.”
“Mas que parva que fui! Já não me lembro muito bem como se passaram as coisas,
antes de tu, quero dizer, antes do divórcio, mas tenho ideia de a mãe nos estar sempre
a dizer que tu estavas muito ocupado, que não tinhas tempo para nós, e até de nos
meter no quarto a brincar ou a estudar quando sabia que tu estavas a chegar a casa.
Tu foste ficando cada vez mais distante. Às vezes, passavam-se dias que não te via. E
eu pensava que tu não gostavas de mim... Mas, depois, chegava o fim-de-semana, e tu
lias-me histórias e brincávamos juntos e voltava tudo ao normal. A certa altura,
lembro-me de ter uma confusão enorme na cabeça.
E, depois, começaram as idas, ao fim-de-semana, para casa dos primos na Areia
Branca, e tu nem sempre vinhas, ou quando vinhas parecias zangado. E depois, e
depois...” Começa a soluçar e encosta a cabeça ao meu ombro. “Ó pai, o que se
passou? Eu já não percebo nada.”
“Nem eu, filha, nem eu. Mas o que parece que se passou, é que a tua mãe organizou
muito bem as coisas, antes e depois do divórcio, para ficar com vocês e fazer o possível
para vos afastar de mim. Porque o fez? Não sei. Terá tido razões que só ela conhece.”
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“Sabes, eu acho que ninguém da família da mãe gostava de ti”, diz, entre
fungadelas, em tom de confidência.
“Sim, isso é verdade. A família da tua mãe não achava que eu fosse o marido indicado
para ela. Mas, no início, a mãe parecia disposta a bater-se contra tudo e contra todos
para ficar comigo. Que diacho, nós até nos casámos sem dizer nada a ninguém! A
dada altura, porém, parece ter mudado de ideias, e começou a pensar como o resto da
família. Vá-se lá saber porquê. Durante anos, perguntei a mim mesmo que raio teria
eu feito para a afastar de mim, mas nunca encontrei explicação alguma.”
Paramos os dois de falar e ficamos assim durante não sei quanto tempo. Ela
abraça-se a mim com força, como se quisesse recuperar, num abraço, os seis
anos de vida comum que não tivemos.
De repente afasta-se.
“Estou muito zangada com a mãe. Acho que vou falar com ela e pedir-lhe
explicações”, diz, decidida.
“Sim, também acho... Não, espera. Talvez seja melhor esperar”, penso,
subitamente. “Tu ainda és menor, e estás à guarda da tua mãe. É melhor não te
pores em conflito aberto com ela, porque isso só te vai fazer a vida difícil.”
“Mas, não posso ir viver contigo?”, pergunta, a dor do abandono novamente
presente na voz.
“Não é assim tão simples, querida. Infelizmente, qualquer alteração à presente
situação só pode ser conseguida através do tribunal. Se tu viesses viver comigo sem
eu estar autorizado a tomar conta de ti, à luz do que acabámos de descobrir aqui hoje,
tenho a certeza que a tua mãe e o Gonçalo fariam tudo para te tirar lá de casa, sem
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apelo nem agravo. E, depois, talvez acabássemos por ficar separados mais dois anos,
até tu poderes decidir, por ti, o que queres fazer com a tua vida.”
Ela concorda a custo, o queixo subindo e descendo maquinalmente,
enquanto grossas lágrimas lhe correm pela face e os lábios lhe tremem,
tentando controlar um ataque de choro que não quer que a controle a ela.
Seco-lhe as lágrimas com o lenço que tenho no bolso do casaco, encosto-me
também eu ao Cordoba e passo-lhe o braço direito por cima dos ombros,
puxando-a para mim.
“Não, isto vai ter de ser feito com calma. Diz-me cá, a mãe sabe que vieste jantar
comigo hoje?”
Ela baixa os olhos e diz que não abanando a cabeça.
“Disse que ia ao cinema com a Mituxa e com a Filipa, e que depois íamos jantar a
casa de uma amiga. A mãe não tem o telefone da Filipa e a Mituxa está em casa dela,
porque os pais foram passar o fim-de-semana a Barcelona. Não há maneira dela
saber.”
“Ainda bem. Tudo muito bem organizado, sim senhora. Tu tens jeito para estas
coisas, sabias? Já pensaste em ir trabalhar com o James Bond?”, digo a brincar,
para ver se lhe levanto o moral. Ela ri-se, mas sem muita vontade.
“Bom, isto é o que proponho que façamos. Tu vais voltar para casa; espera, ouve-me
até ao fim. Vais voltar para casa e procurar fazer a vida que sempre fazes. Vais à
escola, vais aos treinos e a todas as outras actividades que tens, como se não se tivesse
passado nada. Não lhes vais dizer que me viste e vais tentar não te zangar com a tua
mãe, para não tornares a situação mais difícil para ti. É que, repara, a tua mãe pode
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ter feito o que fez, pensando que estava a fazer o melhor para ti. Errou, é certo, mas
talvez com boa intenção. Eu sei que isso não é desculpa, mas também não estou a
tentar desculpá-la, estou a tentar não te dificultar a vida.
Eu, pela minha parte, vou pegar na sentença do tribunal e vou ver em que termos é
que posso pedir uma revisão, para te tirar lá de casa o mais rapidamente possível.
Está bem?”
Ela volta a dizer que sim com a cabeça, triste e sem vontade de falar.
“Vá-lá, Catarina, vais ver que consegues. Mantém-te ocupada, estuda, e vais ver que
antes que dês pela passagem do tempo já estás a viver em Cascais. Entretanto, vamos
ver-nos o máximo que pudermos, para não te sentires tão sozinha, está bem?
Combina com a Filipa e com a Mituxa, ou com outras amigas que tenhas em quem
confies, para sair com elas e para ires dormir lá a casa aos fins de semana. Costumas
fazer isso, não costumas?”
“Sim, às vezes. Hoje não fico em casa da Filipa porque ela tem lá uma prima, e como
a Mituxa lá está já não há lugar para mim. A mãe e o Gonçalo não gostam muito que
durma fora, dizem que nunca se sabe o que pode acontecer, mas como são sempre os
pais delas a convidar, não têm dito que não”, diz, encolhendo os ombros.
“O Gonçalo?! Mas o que tem ele a ver com isso? Muito gosta esse tipo de meter o
nariz onde não é chamado”, digo, irritado. “Bom, tu arranja as coisas de modo a
que sejam sempre os pais delas a convidar, inventa que tens de estudar, ou que vais
falar do baile, ou outra coisa qualquer do género. Está bem?”
“E não posso dizer que vou para casa delas, e em vez disso ir para a tua?”,
pergunta, ansiosa.
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Faço-lhe uma festa na face, ainda húmida das lágrimas que há pouco a
percorreram.
“Não, querida, não pode ser. Se eles descobrissem, podiam fazer-nos a vida mais
difícil. Mas nós podemos almoçar juntos durante a semana, e ir ao cinema ou passear
ao fim-de-semana, e vai ser como se estivéssemos juntos o tempo todo. Assim até é
capaz de ser melhor, porque não te chateias de mim tão depressa”, dou-lhe um
empurrão com a anca que a desequilibra e despenteio-lhe o cabelo.
“Pára! Olha que me zango”, diz, rindo, procurando afastar a tristeza que a
assolou há pouco.
“Vês? Eu bem dizia.”
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Levo-a à Lapa, à rua e à casa onde em tempos morei e onde pensei que iria
morar o resto da vida; às vezes dava-me para ser assim romântico. Paro
numa transversal para não corrermos o risco de nos verem e despeço-me
dela com mais um abraço apertado.
Fico a vê-la até entrar em casa e depois dou gás à moto e vou apanhar a
marginal.
A marginal é normalmente uma seca a esta hora da noite, com o limite de
velocidade novamente reduzido, desta vez para os cinquenta quilómetros
hora, e constantes patrulhas da GNR, dispostas a apanhar o prevaricador
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incauto e a complicar-lhe a vida por uns bons vinte minutos de imediato e
por mais seis meses ou um ano se decidirem ficar-lhe com a carta.
Mas hoje apetece-me ir devagar. Tenho muito em que pensar, com todas
estas novidades que vieram ao de cima durante e após o jantar. E andar de
moto sempre me ajudou a pôr os pensamentos em ordem. Ponho o leitor na
discografia dos Pink Floyd e passo o som para o capacete; que se lixe que seja
proibido.
Aborrece-me ter tido que deixar a Catarina ainda em casa da Mima. Agora
que ela sabe que a mãe lhe mentiu, por mais que possa ou queira acreditar
que tinha boas intenções ao fazê-lo, vai ser-lhe difícil conviver com ela. Mas
não havia outra possibilidade.
Não consigo compreender porque razão a Mima se terá comportado desta
forma comigo e com os filhos. E, provavelmente, nunca o saberei. Se a
confrontar com o que descobri esta noite, o mais provável é que ela negue
tudo, ou até se recuse de todo a falar no assunto, dizendo que não passa de
uma invenção minha, se ainda conheço alguma coisa dela. Quando nos
conhecemos, a única coisa que não gostei nela, foi, precisamente, a
capacidade que ela tinha para declarar não existentes as coisas que não lhe
agradavam, e não havia nada que a fizesse mudar de ideias. Achei que era
casmurrice. Mas, nessa altura, não me pareceu um defeito por aí além e
pensei que, com o tempo, ela deixaria de ser assim. Pois.
E o que fazer em relação ao Martim? Se ele está assim tão ligado ao Gonçalo
como diz a Catarina, vai ser difícil convencê-lo que lhe mentiram durante os
últimos seis anos. Pode até acontecer que ele prefira ficar como está.
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O melhor é não avançar por essa estrada, por enquanto. Agora é a Catarina
que precisa de ajuda. Deixemos o Martim para mais tarde.
Esta semana foi do caraças, penso subitamente. Primeiro recrutam-me para
um baile a que não me apetece nada ir; depois volto a conhecer a minha filha
e mudo ligeiramente de opinião; a seguir reaparece o monte de esterco que
me deu metade dos cromossomas; quase me passam a ferro na auto-estrada;
evito o suicídio de um tipo que nem sabe que as pistolas automáticas têm
uma patilha de segurança; vou a um bar de strip pela primeira vez na vida e,
finalmente, fico a saber que a minha ex-mulher tem uma certa propensão
para criar obras de ficção tendo-me a mim como vilão principal. Nada mal,
para um tipo que acabou de completar quarenta e cinco anos.
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Passei o domingo quase todo em casa. Acordei perto das sete e fui correr
para a estrada do Guincho, fiz dez quilómetros e voltei para casa para me
arranjar. Depois do meu passeio higiénico semanal até Sintra, telefonei ao
Leonel para ver se ele ainda estava a fim de um almoço. Confirmou que sim,
mas perguntou-me se eu me importava se levasse companhia. Respondi-lhe
que não e ele disse que se ia pôr a caminho. Apareceu-me lá em casa pouco
depois do meio-dia, acompanhado da Neuza e da Bella, todos três
sorridentes e satisfeitos da vida. Tinham passado o sábado todo na cama.
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Fomos almoçar ao Farol da Guia e depois voltámos para minha casa e
ficámos na conversa até meio da tarde. Fiquei a saber que a Bella é Lituana,
bacharel em marketing, e que o marido, que é português, trabalha para a
TAP e está esta semana toda em Londres a fazer um curso. E, também, que a
Neuza, psicóloga formada em São Paulo, é casada com um sul-africano que
está em Durban a tratar de negócios. E, ainda, que ambas gostaram imenso
de conhecer o Leonel, tanto mesmo que pensei que me iam pedir o quarto de
hóspedes emprestado, para mais uma sessãozinha de cambalhotas.
Por volta das cinco e meia deixaram-me em paz. O Leonel foi levá-las ao XL
porque tinham de trabalhar e depois foi ao aeroporto buscar a Tuuva que
chegava de Helsinquía, via Fancoforte.
Como não tinha nada planeado e estava com vontade, passei o resto da tarde
entretido com o livro do Thomas Mann. A Catarina telefonou perto das oito,
a dizer que estava tudo bem, que já tinha visto a mãe e o Gonçalo e que lhe
parecia que ia conseguir fazer de conta que continuava tudo na mesma.
Disse-lhe que ainda bem e combinámos almoçar juntos.
Jantei pouco mais do que uma salada, vi as notícias às nove na EuroNews e
fui meter-me na cama pouco depois, com A Montanha Mágica debaixo do
braço.
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Mal chego ao escritório percebo que se passou qualquer coisa. A fulana dos
telefones está com cara de caso e, ao mesmo tempo, com uma expressão
radiante nos olhos, que só se lhe vê quando detém o exclusivo de grandes
novidades do tipo divórcios sumarentos de cabeças coroadas, relatos
tórridos de romances extra-maritais de alguém conhecido, catástrofes
naturais ou mortes macabras... Tenho um pressentimento que a expressão
triste no rosto da Marta se encarrega de confirmar.
“Dr. Jakez, aconteceu uma desgraça”, diz quando chega ao pé de mim. Eu
dirijo-a gentilmente para o corredor e para o meu gabinete, enquanto lhe
faço sinal que falamos lá dentro. A coscuvilheira da recepção já deve saber
que chegue, não vale a pena ficar a saber ainda mais.
“Então, Marta, o que foi que se passou?”, pergunto depois de encostar a porta.
Ela controla a custo as lágrimas e diz que a mulher a dias encontrou o
Pizarro de Almeida morto em casa dele hoje de manhã. Parece que se
enforcou.
“Mas, e como é que você descobriu?”
“Eu, eu, telefonei a saber como ele estava. Ele deixou-me um bilhete na sexta, a dizer
que não vinha porque estava adoentado. E como ele chega quase sempre primeiro, e
hoje não veio, eu resolvi telefonar-lhe para casa. Atendeu-me a mulher-a-dias. Estava
no jardim, com o telefone na mão, à espera que chegasse a polícia, porque não queria
estar dentro de casa com o Dr..., com o cadáver.”
“A mulher e os filhos do Dr. Jorge, não estavam?”, pergunto, com alguma
surpresa.
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“Não sei, a mulher-a-dias não dizia quase nada que se percebesse. Estava muito
assustada; só tinha ficado por lá porque a polícia lhe disse que ela tinha de esperar por
eles, por isso, presumo que não havia mais ninguém em casa.”
“Que estranho. Onde é que eles estarão?”
“Não sei, Dr. Jakez. Entretanto, já telefonou um senhor da PJ. Pediu para falar
comigo, quer dizer, com a secretária do Dr. Jorge, perguntou-me se o Dr. Jorge tinha
gabinete próprio e quando eu disse que sim, disse para o manter fechado até eles
chegarem.”
“Mas porquê?”
“Isso não sei, Dr. Jakez. Ele não me disse porquê, só me disse para o fazer”, diz, com
um encolher de ombros. “Pobre Dr. Jorge. Andava muito triste, pobrezinho. E ele
era tão boa pessoa.” As lágrimas correm-lhe agora livremente pela face, e os
soluços tomam conta dela. “Desculpe, Dr. Jakez. Eu não queria, mas é tudo tão
triste”, diz entre soluços.
“Não, deixe, Marta, deixe. Chore que isso faz bem. Oiça lá, porque é que você não vai
para casa?”
“Eu gostava, mas a Dra. Maria Helena diz que eu tenho de estar cá quando vier o
senhor da PJ, porque ela não quer ter nada a ver com o assunto.”
Típico da Maria Helena, penso eu.
“Oiça, Marta, você faz alguma ideia por que razão o Dr. Jorge terá decidido pôr
termo à vida?”, pergunto.
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“Não, Dr. Jakez, nenhuma. Bem, quer dizer, ele de há uns tempos para cá modificouse um pouco...”
“Ah sim, e de que maneira?”
“Como disse antes, ele sempre foi muito boa pessoa. Tinha aqueles modos dele,
antiquados talvez, e um pouco exuberantes, e adicionava a isso uma grande
delicadeza. Trabalhei com ele durante quase doze anos e nunca me tratou mal ou
gritou comigo. Enfim, uma jóia de pessoa. Mas o que eu queria dizer é que, de há uns
tempos para cá, ele parecia mais alegre, mais bem disposto, ainda mais exuberante do
que antes. Se eu não soubesse que ele era casado até teria dito que tinha arranjado
uma namorada nova! Mas depois, aqui há uma semana talvez, mudou
completamente. Passou a andar cabisbaixo e preocupado, esquecia-se das coisas,
aborrecia-se por nada, Uma mudança do dia para a noite. Havia qualquer coisa que o
preocupava, e muito. Mas ele nunca me disse o que seria. Nem tão pouco sei se se
trataria de um assunto de trabalho.”
Não, esta parece não saber nada daquilo que o Jorge me contou. Se ficar aqui
vai passar o dia a chorar pelos cantos, sem conseguir fazer nada de jeito. A
Maria Helena que se foda.
“Olhe, Marta, vá para casa. Descanse; vá fazer compras, ou vá ao cinema. Deixe a PJ
e a Dra. Maria Helena por minha conta. Vá-se embora, ande.”
Ela agradece-me entre soluços e sai porta fora com o lenço nos olhos,
secando uma nova levada de lágrimas.
Pobre homem, penso para comigo. Devia estar mesmo desesperado. Mas,
onde é que estarão a mulher e os filhos?
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Pensando ainda nisto, vou ao gabinete da Maria Helena e digo-lhe que
mandei a Marta para casa. A princípio protesta, dizendo que a secretária é
dela e que eu não posso mandá-la embora sem lhe perguntar. Com alguma
insistência, consigo explicar-lhe que ela não lhe teria servido de nada hoje,
proponho que seja a Mónica a assisti-la durante o dia, e ela acaba por
reconhecer que talvez seja melhor assim. De repente, lembra-se da PJ e volta
a dizer que precisa da Marta, porque não tem nada a ver com o assunto e não
quer ser ela a lidar com eles. Digo-lhe que também não precisa de se
preocupar com isso, que eu trato da PJ. Ela olha para mim com ar de quem
diz, „o que te deu hoje?‟ encolhe os ombros e volta a dar atenção ao DR,
deixando imediatamente de dar pela minha presença.
Vou ao átrio de entrada e faço a minha boa/má acção do dia. Ponho a minha
cara mais amável, e digo à Susana dos telefones que deve estar a chegar um
senhor da PJ para falar com a Marta, o que lhe capta logo a atenção, e que,
quando ele chegar, ela deve dizer à Mónica para me avisar. Por esta altura,
ela já está a salivar. Mas é precisamente aqui que eu deixo ficar a conversa.
Agradeço-lhe e volto para o meu gabinete, deixando-a quase em estado de
choque por não ficar a saber mais.
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Fui almoçar com a Catarina conforme combinado e ela perguntou-me se não
podíamos almoçar juntos todos os dias. É claro que isso seria agradável, e até
talvez aconselhável, nesta fase de reaproximação em que, ainda por cima, ela
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se sente ainda mais sozinha em casa, depois de ter descoberto que a mãe lhe
mentiu acerca de mim.
Mas, para isso, vai ser preciso que altere quase completamente as minhas
rotinas diárias de treinos e idas ao ginásio. Vou passar algumas para de
manhã cedo e outras para o fim da tarde, pondo outras ainda, como os
treinos de natação, em horário alternado até as coisas se resolverem.
Disse-lhe que já tratei do pedido para revisão da sentença, o que a deixou
bastante contente, por sentir que tem realmente alguém do lado dela, talvez.
Mas também lhe disse que isso tornava as coisas oficiais, o que significava
que ela iria ter de se preparar para uma eventual confrontação com a mãe, e
com o estúpido do padrasto que, de certeza, a apoiaria, que mais não fosse
para se dar a si mesmo importância.
Combinámos que o melhor era ela dizer que não sabia de nada, dando assim
a impressão de que o pedido teria sido de minha inteira responsabilidade,
pelo menos até à altura em que a Catarina tiver de ser ouvida. Ao mesmo
tempo, porém, podia ir dizendo que lhe agradava saber que eu a queria a
viver comigo e que seria talvez uma experiência interessante, conhecer-me
melhor ao fim de todos estes anos.
Estou a acabar de pôr ordem no meu plano quando a Mónica me bate à porta
com a minha agenda, já com as marcações para a semana, e para me dizer,
em tom conspiratório, que estão lá fora dois tipos da Judite que querem falar
comigo.
Olho para ela atónito, a princípio sem compreender, não porque não saiba
quem, ou o que, é a Judite, mas porque não esperava que a Mónica estivesse
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nesses termos de familiaridade com a PJ. Mas ela não parece aperceber-se da
minha surpresa, pousa a agenda sobre o tampo da secretária, pergunta se
quero mais alguma coisa e se os pode mandar entrar.
Digo-lhe distraidamente que sim, saio da agenda do telefone e volto a pô-lo
no bolso do casaco, precisamente na altura em que ela abre mais uma vez a
porta para os deixar entrar.
Apresentam-se como sendo o inspector Paulo Sequeira e o adjunto Tomé
Antunes, encarregues da investigação da morte do Dr. Pizarro de Almeida.
Vem-me à ideia que eles estão a tratar isto com muita urgência e a dar-lhe
talvez muita importância, tendo em conta que se trata da morte por suicídio
de um advogado não muito famoso e nem por isso bem relacionado no
mundo da política. Mas o dito Sequeira já começou a falar e deixo de pensar
nisso.
“Nós estávamos à espera de falar com a secretária da vítima, mas disseram-nos que
ela não está e que devíamos falar com o senhor”, diz, em tom agressivo e ar de
quem duvida que eu tenha alguma coisa de interessante para contar.
“Sim, é verdade. Ela não está porque eu lhe disse para ir para casa. A Marta ficou
muito sensibilizada com o sucedido, e teria sido contraproducente tê-la aqui no
escritório a chorar pelos cantos.” Exagero, começando a encher o fornilho do
cachimbo.
“Mas, sabe que assim está a prejudicar a investigação de um crime...”, avisa mais
agressivo ainda, pensando talvez que me assusta.
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“Por amor de Deus, inspector. A rapariga nada sabia de relevante... Espere aí, disse
crime? Porque não utilizou a palavra suicídio?”, digo, subitamente alarmado,
um fósforo aceso na mão, parada a meio caminho do cachimbo ainda por
atear. O suicídio pode também ser um crime, um crime contra a vida, só que
não é punido, por razões óbvias, e daí não ser normalmente referido como tal
em conversa.
“Porque, para todos os efeitos, estamos a investigar o sucedido como se tratasse de
um homicídio”, afirma, com ar satisfeito por me apanhar desprevenido.
Penso por alguns momentos. Apago o fósforo que estava prestes a queimarme os dedos e acendo outro, que, desta vez, levo ao fornilho.
“Isso é interessante, surpreendente até. Mas não altera em nada o que eu disse em
relação à secretária da vítima. Ela nada sabe de relevante, pelo menos, nada que
justificasse mantê-la aqui à vossa espera, ou que não pudesse ser ouvido noutra
altura, quando ela estiver mais calma”, digo, em tom que não admite discussão,
faço uma pausa para ver reacções, em que aproveito para puxar o lume ao
tabaco, enquanto o inspector engole em seco, e recomeço quando eles vão a
abrir a boca para falar. “Aliás, creio até que, salvo outras informações de que
disponham, eu terei sido a última pessoa deste escritório a ver o Dr. Pizarro de
Almeida ainda em vida.” Agora sim, estão muito interessados em ouvir o que
tenho para dizer.
“Quinta-feira passada, no regresso de um julgamento em Setúbal, vim ao escritório
deixar umas coisas. A porta estava fechada e o alarme ligado, o que me levou a pensar
que não estava cá ninguém. Ia a sair do meu gabinete, que é este onde estamos,
quando reparo que havia luz, e se ouvia música, no gabinete do Jorge. Pensei que ele
se tivesse esquecido de apagar a luz e desligar o rádio e decidi fazê-lo.
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Encontrei-o sentado à secretária com uma pistola na mão, apontada à cabeça.
Pareceu-me que ele estava prestes a premir o gatilho, atravessei o espaço que me
separava dele o mais rapidamente que pude e tirei-lhe a arma da mão ainda a tempo.”
Eles olham para mim com ar de quem não acredita na história.
“Onde está a arma?”, pergunta o adjunto, o que lhe vale um olhar repreensivo
do inspector, que acha talvez que a pergunta devia ter sido dele.
“Ali, naquele cofre de parede, na gaveta por baixo da primeira prateleira. Pode abrir a
porta, não está trancada”, respondo, apontando com o bocal do cachimbo para
a parede que fica ligeiramente à direita deles, dado que estão sentados na
diagonal em relação à minha secretária. E continuo: “Enfim, toda a urgência em
lhe tirar a arma teria sido na verdade desnecessária, pois, logo que a tive na mão, vi
que ele se tinha esquecido de rodar a patilha de segurança. A arma não teria
disparado.”
Eles abanam a cabeça, não sei se de pesar, pela segunda tentativa de suicídio
ter sido bem sucedida; se de incredulidade, por não conseguirem conceber
como alguém pode pôr uma pistola à cabeça, sem primeiro verificar se o
gatilho está ou não travado. Decido não lhes perguntar para ter a certeza.
“Uma Walther PPK”, diz o adjunto Antunes, já com a arma na mão. “Está
descarregada”, acrescenta, olhando para mim.
“Sim, é verdade. O carregador está na prateleira de cima, logo à esquerda”, digo,
tirando o cachimbo da boca e expelindo uma baforada de fumo azulado.
O inspector não aguenta continuar a ver-me fumar, puxa de um pacote de
Ventil e acende um, claramente aliviado.
200
“Ele disse-lhe alguma coisa, depois de o ter impedido de puxar o gatilho?”,
pergunta, depois da primeira dose de nicotina lhe ter entrado no sangue.
Demoro algum tempo a decidir-me se lhes devo dizer ou não. O Jorge
parecia tão preocupado que mais alguém soubesse do que se estava a passar,
que me sinto um traidor por pensar sequer em falar do assunto. Mas ele está
morto e, mais tarde ou mais cedo, vai acabar por se saber tudo.
“Sim, disse. Contou-me que estava a ser vítima de chantagem, embora não me tenha
dito quem exactamente seriam os autores”, acabo por dizer, ao fim do que me
pareceu ser bastante tempo, embora realmente não tenha passado de alguns
segundos. “Aparentemente, tinha conhecido uma rapariga num clube de striptease
em Madrid, por quem se tinha apaixonado, julgando ser recíproca a paixão. Porém,
há uma semana ou pouco mais, terá recebido um envelope com fotografias dele e dela,
em posições que ele achava que se fossem conhecidas lhe arruinariam a vida. Foi-lhe
pedido dinheiro, presumo que em troca dos negativos e do silêncio, embora ele não mo
tenha dito, mas ao que parece a quantia era demasiado elevada e ele não a podia
pagar. O prazo para pagamento terminava precisamente quinta-feira passada,
segundo percebi, e findo esse, a ameaça era que as fotografias seriam enviadas à
mulher e a quem mais o conhecia. Por isso, em vez de ter de viver com a vergonha
que tinha a certeza iria resultar da revelação das fotografias, decidiu pôr termo à
vida.
Estivemos a conversar durante algum tempo, depois de eu lhe ter tirado a arma das
mãos. Ele parecia calmo, deprimido ainda, mas calmo, resignado até. Ofereci-me para
o acompanhar a casa, mas recusou, dizendo não ser necessário. Disse inclusivamente
que não teria coragem para tentar novamente. Nada parecia indicar que o fizesse, por
201
isso, foi um choque saber, esta manhã, que o tinha feito”, explico, sentindo que
tinha realmente sido um choque.
O inspector Sequeira olha para mim enquanto vai fumando o seu Ventil; o
olhar intenso e profundo parece ao mesmo tempo perscrutador e distante,
tentando talvez descobrir aqueles pequenos sinais, que nos livros policiais
sempre dão ao detective a indicação que alguém está a mentir. Ou, talvez,
esteja apenas a pensar no conjunto de lingerie em renda transparente que
comprou para a namorada. Ou ainda, e tão somente, na feijoada que comeu
ao almoço de ontem. Vá-se lá saber.
“Sabe se a vítima era apreciador da vida ao ar livre, desportos náuticos,
montanhismo, qualquer coisa desse género?”, pergunta, tirando o cigarro dos
lábios no meio de uma nuvem de fumo acinzentado, quando consegue
deixar de pensar no que quer que fosse que esteve a pensar.
“Não, não sei. Mas parece-me muito pouco provável que o fosse. Aliás, creio mesmo
que não era apreciador da prática de qualquer tipo de desporto. Não era coisa que
parecesse interessá-lo; tirando o futebol, claro, e mesmo assim só para o discutir,
segundo as crónicas que lia num ou noutro jornal. Mas, porque pergunta?”
Entreolham-se os dois investigadores, como que deliberando telepaticamente
se devem partilhar comigo as informações de que dispõem.
“Como deve provavelmente saber, o método usado foi o enforcamento. O que em si
nada tem de extraordinário; é um método que tem subido bastante na tabela do
suicídio nos últimos tempos”, acaba por explicar o Antunes, com um encolher
de ombros. “Porém, o que nos pareceu estranho, entre outras coisas, foi o tipo de
corda utilizado, assim como a perfeição dos nós nela dados; qualquer dos dois indícios
202
apontando para alguém ligado aos meios náuticos ou, possivelmente, praticante de
montanhismo. Uma vez que nos confirmou que a vítima não manifestava qualquer
interesse por esses tipos de actividades, isso leva-nos a concluir, definitivamente, que
ele não estava sozinho quando se matou, apesar de não termos encontrado nada na
casa que indicasse terem lá estado outras pessoas com ele.”
“Não percebo. Porquê matá-lo? Segundo percebi, a ideia era conseguir que ele lhes
desse dinheiro. Morto é que não lhes vai dar nenhum.”
“Talvez quisessem fazer dele um exemplo, do que pode acontecer a quem não satisfaz
as exigências que lhe são feitas”, avança o Sequeira, enquanto acende novo
cigarro na ponta do anterior. Não admira que o homem parecesse irritado,
deve fumar como uma chaminé.
“O castigo para isso seria a divulgação das fotografias, ou não?”
“Sim, isso seria a conclusão lógica, mas as coisas parecem não se ter passado assim.
Os indivíduos que estão por detrás disto parecem ser bastante violentos, talvez que
tendo visto que não iam receber nada, e achando, nessa altura, que a divulgação das
fotografias os deixava insatisfeitos, decidiram matá-lo para responder assim ao
insulto que lhes pareceu a recusa de pagamento.
Sem revelar demais, posso dizer-lhe que as fotografias foram efectivamente entregues
à mulher da vítima. Estavam em cima da mesa da sala, juntamente com uma carta
dela, em que dizia ao marido que ele era um porco desavergonhado, que se
considerava insultada e que se ia embora e levava os filhos. Ou seja, primeiro
humilharam-no, deixaram-no saber que os receios dele se iam concretizar e depois
mataram-no, por não ter feito o que lhe ordenaram.”
“Posso perguntar-lhe quando é que ele morreu?”
203
“Nesta altura ainda não temos uma determinação horária, mas pelo estado de
decomposição, foi, quase de certeza, durante o dia de sexta”, diz o Antunes.
“Foi rápido, então. Quero dizer, eles não esperaram muito depois do fim do prazo
dado. Nem para divulgarem as fotografias, nem para lavarem a „honra‟ ferida”, digo,
pensativo.
“Não, não esperaram. Não esperam, normalmente”, explica o inspector, fazendo
uma pausa para dar uma passa no Ventil. Quando lhe vou perguntar porquê
„normalmente‟, recomeça. “Em confidência, doutor, posso perguntar-lhe se tem
conhecimento de outros casos de colegas ou conhecidos seus que presentemente
possam estar a ser vítimas de chantagem?”
Não preciso sequer de pensar para lhe dizer que não.
“Mas, porque pergunta?”
Eles olham novamente um para o outro, antes de o Antunes responder.
“Este caso, infelizmente, não é único”, diz. “Sabemos de mais dois, pelo menos, em
que as vítimas estavam a ser sujeitas a chantagem sexual. Mas não sabemos por
parte de quem; as fotografias, embora muito nítidas e permitindo identificar o
chantageado em qualquer dos casos, nunca permitem visualizar correctamente a
parceira, tal como acontece com as do seu defunto colega. Porém, podemos concluir,
clarament,e que foi utilizado um parceiro diferente em cada caso – duas mulheres e
um homem, para ser exacto.
A informação que nos deu acerca de um clube de striptease em Madrid é o primeiro
indício concreto acerca de um contacto que nos aparece. Lembra-se de ele lhe ter dito
o nome ou a localização do clube?”
204
“Não, aliás, tenho a certeza mesmo que ele não mencionou nem um, nem outra. A
única coisa que disse foi o nome da rapariga, Raisa, mas o mais provável é que não se
trate do seu verdadeiro nome. Disse que tinham sido amigos que o tinham levado ao
clube, mas não sei quem poderão ser essas pessoas, espanhóis provavelmente, pois ele
disse, também, que costumava viajar sozinho. Lamento, mas não me parece que os
possa ajudar muito mais”, digo, tirando o cachimbo já apagado da boca e
pousando-o na base em cima da secretária. Eles tomam isto como um sinal e
começam a levantar-se. Levanto-me com eles.
“Já nos ajudou bastante. De qualquer forma, se se recordar de mais qualquer coisa,
pode ligar-nos para os números de telemóvel que estão nos cartões”, diz o inspector
Sequeira, ao mesmo tempo que ambos me dão cartões de visita para a mão.
“Apesar do que nos disse, nós gostaríamos de falar também com a secretária do seu
colega. Pode ser que ela saiba coisas que não pense que sabe. Posso enviar-lhe uma
notificação para aqui? Tornava as coisas mais fáceis para nós.”
“Certamente, certamente. Estou certo que ela não se importará nada de vos dizer o
pouco que deve saber mas, se puder, dê-lhe alguns dias. E, mesmo assim, creio que
vai ser bastante penoso para ela, já trabalhava com o Pizarro de Almeida há doze
anos. Vou pedir à minha secretária que lhe dê o nome completo dela.” Carrego no
botão do intercomunicador e peço à Mónica que venha ao meu gabinete e
que traga o que eles querem.
Eles estendem-me as mãos e agradecem, saindo bastante mais afáveis do que
pareciam ter entrado, acompanhados pela Mónica que, entretanto, chegou
com uma folha em que está escrito o nome completo da Marta e o endereço
postal do escritório.
205
===================¤==================
“Então, ó patego, continuas a dormir sozinho?”, diz-me o Leonel mal atendo o
telefone. Deve estar com pressa, para não se pôr com brincadeiras. É terçafeira e acabei de regressar do almoço com a Catarina.
“Pois, eu bem tento, mas há este gajo que deita a mão a tudo o que mexe, e acabo por
nunca conseguir nada”, respondo, fingindo-me infeliz. “Ao que vens? Contar-me
as tuas aventuras em vale de lençóis? Epá, poupa-me, já ouvi anúncios com mais
enredo.”
“Não, não te vou contar nada. Para quê? Nem com instruções detalhadas serias
alguma vez capaz de fazer coisa igual”, esclarece, para logo a seguir continuar.
“Hoje venho apenas contar-te uma coisa que me disseram os tipos que deixámos n‟A
Gata. Aposto que não adivinhas de que se trata.”
“Sei lá, meu! Quando saímos, o gerente lembrou-se que também fazia anos, e ele e as
meninas ofereceram uma geraldina aos clientes. Terá sido isto?”, pergunto,
enquanto vou preparando uma cachimbada.
“Não, pá. Tu não tens mesmo imaginação nenhuma!”, diz, repreendendor. “Mas
hoje sinto-me magnânime. Vou dizer-te a novidade sem te fazer suar muito para a
conseguires...”
“Obrigado, Grande Senhor, obrigado. Que os céus se abram sobre vós e de lá desçam
mil vestais, para vos aconchegar nas noites frias do Inverno que se aproxima”,
interrompo. Dou lume a um fósforo e chego-o ao fornilho. Duas puxadelas e
fica aceso.
206
“Pois, pois, diz que sim. Devias era estar a pedir para ti. Mas, voltando ao assunto
em questão. Para aí uma meia hora depois de nós sairmos; os tipos ainda lá estavam,
a ver se caíam no goto a alguma das miúdas; enfim, meia hora depois, dizia, entra
pela porta adentro, acompanhado de duas torres que mal cabiam nos fatos, o senhor
Comendador Seabra Vilela!”
“Ora, ora, quem diria, hem? O velho bode ainda tem apetite”, digo, não muito
surpreso, por saber o meu distinto progenitor interessado num clube cheio
de mulheres jovens meio ou quase totalmente despidas. Afinal, foi por ele
gostar delas novas que eu nasci. “E o que ele foi lá fazer, pode saber-se?”,
pergunto, deveras interessado, enquanto me vou deixando envolver no
aroma do tabaco com especiarias.
“Ah, isso meu caro, só ele sabe. Mas posso dizer-te outra coisa, porém. O chefe de
sala tratou-o como se ele fosse o Faraó do Egipto. Sentou-o na melhor mesa da sala,
aparentemente desocupada, mandou dois dos empregados pôr-lhe um balde de gelo
com uma garrafa de Taittinger ao lado, serviu-lhe uma flute e afastou-se às arrecuas,
tal como teria feito perante um faraó. Os dois guarda-costas sentaram-se atrás dele,
como duas múmias aguardando a ressurreição. Deve ter sido uma cena digna de ser
vista.”
“Imagino. Olha uma coisa, como é que os tipos que estiveram lá connosco sabiam
quem ele era?” Segundo sei, os círculos em que se move o insigne
comendador, não fazem dele uma celebridade de reconhecimento imediato.
Sua excelência é mais do tipo eminência parda, do que borboleta de ribalta.
“Tipo, não tipos. Só um é que sabia quem ele era e foi esse que me contou o sucedido.
Para os outros, assim como para os demais clientes, creio que a coisa passou
despercebida. Tratava-se apenas de mais um gajo importante a quem o chefe de sala
207
fez vénias, nada mais. E o tipo que me contou sabia quem ele era porque trabalha
aqui comigo no banco, e foi quem primeiro o atendeu, quando o homem cá veio com a
mala cheia de dinheiro. Obviamente, ele nem sequer sonha que existe uma relação
entre ti e o comendador.”
“Relação, enfim, talvez seja levar a coisa demasiado longe. Vinte e três cromossomas,
queres tu dizer. Não existe nada mais entre mim e esse indivíduo”, digo,
aborrecido. Ainda hoje, caramba, ainda hoje, não consigo pensar no homem
com outro sentimento que não asco.
“Mas espera, a história ainda não acabou”, diz o Leonel do outro lado da linha.
“O comendador chegou no meio do segundo espectáculo. E lá esteve, sentado à sua
mesa a beberricar o seu Taittinger, enquanto as miúdas iam fazendo as suas danças.
O Manel diz que ele não tirou os olhos do palco. Depois, quando elas voltaram ao
circuito das danças de mesa, o homem fez sinal ao chefe de sala, que saiu
imediatamente para os bastidores. Regressou pouco depois com a bela Luanna pela
mão, sorridente como sempre. Eu acho que elas são fantásticas! Qualquer que seja o
gajo que lhes peça para vir à mesa abanar o esqueleto, elas vêm sempre de sorriso nos
lábios”, exclama, embevecido. Pois sim, penso eu. Se me pagassem duzentos
euro para tirar a roupa em cima de uma mesa, também eu seria todo
sorrisos. Não sei é se alguém pagaria.
“Mas o que aconteceu depois foi, no mínimo, esquisito”, continua o Leonel.
“Quando os vê dirigirem-se para a mesa dele, o homem fez uma cara, que o Manel
diz ter sido de nojo, e manda-os para trás com um acenar de mão. Como ainda
vinham a meio caminho, o Manel diz que quase ninguém deu por nada. A Luanna
descolou-se do chefe de sala e veio dar mais dois dedos de conversa aos nossos que,
208
naturalmente, ficaram muito satisfeitos. Enquanto o desgraçado foi à mesa do faraó
ver o que tinha desagradado a tão excelsa pessoa.
O Manel diz que quase se podiam ouvir as pancadas, tal foi o desancanso verbal que
o comendador deu ao tipo! Mas, finalmente, lá o deixou afastar-se, às arrecuas como
sempre, para voltar para os bastidores. Quando voltou, trazia consigo a Tatiana. E,
dessa vez, não houve problemas.”
“Ele já quando era mais novo as preferia ruivas”, digo, pensando na minha mãe.
“Agora, essa cena com a Luanna é que foi triste. Ela ficou muito sentida?”
“Não sei. O Manel não me disse nada, mas o mais provável é que ele não tenha
reparado. Não é tipo para reparar nessas coisas. Mas deve ter ficado, com certeza. Por
mais pele dura que se possa ter, um insulto desses sente-se sempre. E ela é uma
rapariga sensível, apesar daquele ar de devoradora que tem.”
“Eu nem te vou perguntar como é que sabes isso, porque o mais provável é que já a
tenhas comido também”, digo, sabendo que não se trata de uma probabilidade.
“E depois, aconteceu mais alguma coisa?”, volto a inquirir, interessado ainda,
como um viciado em reality shows que não consegue descolar-se do écran.
“Nada de especial. Ah, sim, o Manel diz que, pouco depois, se lhes juntou o marido
da tua ex, que, talvez saibas, faz parte da excelentíssima direcção do BTP e que andou
pel‟A Gata Perfumada como se também fosse dono daquilo. Mas o comendador não
parecia muito satisfeito com ele. Diz que trocaram umas frases e que o Manel pôde
ver que o outro não estava a gostar muito da conversa.”
“Ora vês, quem diz que as almas gémeas não se encontram. Muito folgo em saber o
comendador em tão respeitável companhia”, comento, não muito surpreendido
por os dois se conhecerem. “Sabes que o Gonçalo veio cá outro dia a pedir-me
209
batatinhas acerca de um assunto com que nada tem a ver, e quase saiu daqui com um
olho negro. Mas eu achei que não valia a pena sujar as mãos, e deixei-o ir”, contolhe, sem entrar em mais detalhes.
“Ah, sim? Fizeste bem. Há sujidade que é difícil de sair, mesmo com sabão macaco”,
retorque o Leonel, sem tentar saber mais.
“Mas diz-me, o que aconteceu depois?”
“Depois disso mais nada, pelo menos que o Manel achasse digno de nota. O Gonçalo
foi para outra mesa onde já estavam uns tipos, veio logo um empregado solícito com
um balde de champanhe, mandaram vir uma das raparigas, e o Manel perdeu o
interesse, logo que viu que não lhe ia calhar nada a ele. Entretanto, o clube começou a
fechar e eles tiveram de saír. O Manel diz, porém, que, quando eles saíram, já não
estava lá quase ninguém, mas o comendador continuava a ensaiar a cantiga do
bandido, agarrado à Tatiana como se não fosse nada com ele.”
“É, o Dr. Seabra Vilela sempre achou que as regras dos outros não se lhe aplicam a
ele. Achas que terá conseguido alguma coisa?”
“Com a Tatiana? É possível. Ela vive com um tipo, mas sei que faz biscates por fora,
com quem lhe agrada, ou com quem lhe paga o que ela pede. E não tenho dúvidas que
sua excelência pudesse pagar”, responde, com um encolher de ombros
telefónico.
“E tu, pagaste?”, atiro-lhe. Ele ri-se.
“Meu caro senhor, há certas informações que um cavalheiro não revela, para não
manchar a honra de uma dama”, responde seráfico.
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É a minha vez de rir.
“Ouve lá, ainda não te tinha perguntado. Como correu o jantar com a tua filha?”
“Bem, correu bem. Muito bem até.” Conto-lhe o que se passou nos nossos três
encontros, e também o que pensamos ter descoberto em relação à Mima.
“Eu bem te disse que não gostava muito da gaja quando te casaste. Que, apesar do ar
angelical, havia qualquer coisa nela que não me agradava. Por isso, não me admirei
quando ela disse que se queria divorciar, como também não me admira nada saber
agora que andou a contar histórias da carochinha aos miúdos, para te fazer parecer o
lobo mau”, declara e eu sei que é verdade. Quer ele quer a minha mãe
aceitaram a Mima apenas porque eu gostava dela e deitando-lhe uma grande
pitada de sal, como se costuma dizer. Mas eu não lhes prestei atenção,
mesmo quando lhe apontaram defeitos, que ela depois revelou efectivamente
ter.
“Sim, talvez tenhas razão. Mas agora a questão deixou de ser a Mima, para passar a
ser a Catarina. Vou tirá-la de casa da mãe. A miúda diz que não quer continuar a
viver lá, depois do que descobriu. Ontem interpus um pedido de revisão de sentença,
e tenho a certeza que será decidido a nosso favor. Não vejo como algum juiz, por mais
obtuso que seja, possa querer forçar uma rapariga de quase dezasseis anos a viver
onde ela não quer”, explico, enquanto despejo o cachimbo no cinzeiro.
“Só posso desejar-vos boa sorte. E, a propósito, já foste tirar a casaca às traças? É
que, está-me cá a parecer que vais estar a precisar dela não tarda muito.”
“Pois, parece que tens razão. Ela quer mesmo que eu a acompanhe a esse tal baile”,
digo, mais contente do que pensei pudesse estar. E depois acrescento: “Sabes,
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acho que até vejo o baile com outros olhos. Acho que vou gostar realmente de a
acompanhar.”
“Ora, ainda bem. Em todo o caso, creio recordar-me vagamente de que havia uma
questão pecuniária por resolver, uma aposta de 10 euro, não sei se te diz alguma
coisa? É que me parece que tu perdeste. Por isso, vai tirando os trocos do mealheiro,
porque vai ser preciso pagares-me”, atira com voz ameaçadora.
Rio-me.
“O estranho seria tu não te lembrares disso. Espécie de agiota, a querer tirar-me
dinheiro do bolso. E logo agora que, provavelmente, vou passar a ter uma filha a meu
cargo. És um tipo sem coração.”
“Qual coração, qual quê. Trata mas é de pagar, ou vou fazer queixa aos guardacostas do comendador. Caloteiro.”
“Banqueiro. Explorador.”
“Aldrabão... Foda-se, agora telefona-me este marmelo. Olha pá, adorava continuar a
insultar-te, mas tenho de atender o telefone. Até depois, ó tosco.”
“Então adeus, ó maricas.”
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212
Saio de Lisboa depois das dez e percorro, ao som das melhores dos Xutos,
uma auto-estrada adormecida, iluminada pelas lâmpadas amarelas dos
candeeiros centrais e pela luminosidade difusa que emana dos écransplacards da JCDecaux, que se sucedem, uns atrás dos outros, na berma,
janelas com vinte metros de área para mundos virtuais de desejo, satisfação e
felicidade infinita. A esta hora já com programação para bebidas alcoólicas e,
por isso, sou praticamente perseguido por anúncios de cerveja, whisky, gin e
rum, que me garantem sucesso no engate em qualquer situação, desde que
tenha um copo de um deles na mão.
A seguir a Oeiras passo pela GNR, um velho Subaru ainda com motor a
gasolina, mas eles já têm presa para a noite e deixam-me seguir em paz.
As traseiras de Cascais estão sossegadas, como uma qualquer vilória perdida
no meio de um monte, a contrastar com o bulício que caracteriza as noites
perto da baía, onde os bares e as discotecas tentam ainda competir com a 24
de Julho, vinte quilómetros mais a leste.
Passo por ruas adormecidas e mal iluminadas, até chegar à rotunda que dá
acesso à estrada do Guincho, onde os candeeiros, a cada vinte cinco metros,
não chegam para estragar o reflexo do brilho da lua sobre o mar.
Viro à direita e enfio pela pequena estrada „calcetada à antiga‟, como dizem
os prospectos de vendas, que dá acesso ao prédio em que vivo, um quase
cilindro pintado com uma miríade de cores pastel, numa combinação tão
aberrante que deve constar da lista de causas para os golfinhos terem
abandonado, pela enésima vez, esta zona do Atlântico.
213
A garagem abre-se com a minha aproximação, o sensor da porta reconhece a
moto e deixa-me entrar com a saudação electrónica do costume: Bem-vindo,
veículo do décimo andar, dita pela voz de uma qualquer locutora de televisão
que parece acabada de sair da cama. A ideia era poder gravar uma saudação
pessoal, que acolhesse os habitantes no fim de cada dia ou quando quer que
regressassem a casa, mas nem eu, nem os tipos que aqui moraram antes de
mim, nos demos ao trabalho de „personalizar‟ a coisa. Havia também a
hipótese de ser disparada uma voz masculina, grave e sensual, para quem as
prefere. Mas a boneca é a instalada por defeito, e como eu não fiz nada, além
de registar a moto para poder entrar, foi a que ficou.
Paro a moto no sítio do costume, ligo-a à corrente, e vou para o elevador
onde insiro o meu código, e deixo-me elevar a velocidade reduzida até à
porta de casa, enquanto sou embalado por Eine kleine Nachtmusik, a minha
única concessão aos programas de personalização do edifício.
O telefone vibra enquanto estou a teclar o código da fechadura da porta. O
mostrador exterior diz-me que é a Catarina.
“Olá, filhita. Ainda estás a pé?”, digo, antes de pensar que as miúdas com
quase dezasseis anos gostam de tudo menos de se deitar cedo. Mas ela
parece preocupada ou assustada com qualquer coisa. “O que tens, Catarina?”
Ela olha para mim do pequeno écran do telefone com os olhos molhados de
lágrimas. Dir-se-ia estar num sítio com muita reflexão porque distingo mal o
que a rodeia e ouço o ruído de água corrente em fundo.
“Olá, pai. Olha, sabes, acho que a mãe e o Gonçalo já devem saber que interpuseste o
pedido de alteração da sentença. Telefonaram para o Gonçalo depois do jantar e ele e a
214
mãe têm estado a discutir no escritório desde essa altura. Achas que eles podem fazer
alguma coisa, sei lá, mandar-me embora ou assim?”
Só se forem completamente idiotas, penso para comigo.
“Não filha, não te preocupes. A tua mãe nunca faria uma coisa dessas, até porque só
pesaria contra ela na audiência. Mas tens a certeza de ser isso que eles estavam a
discutir? É que me parece muito cedo para eles já terem conhecimento do pedido.
Afinal, ainda só deu entrada ontem”, digo, tentando acalmá-la.
“Não sei, mas eles estavam a falar de ti e de mim, tenho a certeza. Não consegui
ouvir muito bem porque a porta é espessa e tive medo que alguém me visse”,
desculpa-se.
A imagem da Catarina a escutar a uma porta faz-me sorrir. Quase todos os
miúdos o fazem e nem sempre é caso para sorrir, mas no caso dela é mais
uma coisa que fico a conhecer, depois de tantos anos sem nada saber.
“É bem possível que estivessem a falar de nós, mas isso não quer dizer que fosse por
já saberem do pedido. Podia ter qualquer coisa a ver com o baile, por exemplo, talvez
a tua mãe estivesse a discutir com o Gonçalo como é que se vai processar tudo; se eu
te vou buscar, se vais lá ter com eles, enfim, essas coisas, para depois me telefonar a
dizer o que quer que eu faça. Não te parece plausível isto?”
“N-não sei”, balbucia ela, pouco convencida. “Ele parecia zangado e a mãe
também, um pouco. Eu ouvi realmente a palavra baile, mas também ouvi restaurante
e moto, por isso não sei.”
“O mais provável é que estivessem a planear o baile, e uma ida a um restaurante
num dia qualquer, e se calhar também pensam convidar-me, desde que eu não vá de
215
moto, estás a ver?”, digo eu, compreendendo imediatamente que não é disso
que se trata. E depois continuo: “Vá-lá, não te preocupes. A tua mãe e o Gonçalo
não podem fazer nada que vá contra a tua vontade. Não só porque eu não deixaria,
mas também porque a lei não os deixa. Além do mais, eu tenho sinceras dúvidas que
a tua mãe te queira magoar ou forçar a fazer o que não queres. Ela pode não querer
viver comigo, e pode ter feito tudo o que pôde, inclusivamente algumas coisas
bastante parvas, para te ter com ela, mas isso foi apenas porque gostava de ti. Tenho
a certeza que, se tu lhe dissesses que querias ir viver comigo, ela acabaria por
aceitar.” Depois penso melhor e acrescento: “Porém, como combinado, não lhes
digas nada ainda. Espera que eles venham falar contigo e faz de conta que não sabes
nada acerca do pedido, está bem? Nessa altura só tens de dizer que é tudo uma
surpresa para ti, mas que ficas muito satisfeita por eu te querer a viver comigo, e que
eras capaz de gostar de morar em Cascais. Deixa as explicações detalhadas para a
audiência, combinado?”
Ela acena que sim, depois olha para o lado e parece sair do campo da
pequena câmara digital do telefone.
“O meu banho está pronto”, diz quando reaparece, com um sorriso
embaraçado. “Acho que vou ter de entrar para a banheira, para não estar aqui
durante muito mais tempo. Podemos falar outra vez amanhã?”, pergunta, quase
suplicante.
Então era daí que vinha o ruído de água a correr. Estava a encher a banheira.
Que inteligente que eu sou! Ou falta de viver com mulheres e com os seus
banhos de imersão.
“Claro que podemos falar amanhã. Podes telefonar-me sempre que quiseres. Vá, e não
te preocupes mais, vai correr tudo bem. Boa noite, filha.”
216
Ela despede-se também e a imagem esfuma-se do écran, deixando um
fantasma que ainda parece sorrir, depois de a Catarina já lá não estar para o
fazer.
Eu dispo o macacão, descalço as botas e saio finalmente do átrio de entrada,
onde estive especado durante toda a conversa. Passo pela cozinha para ir
buscar uma garrafa de vittel ao frigorífico, entro na sala, vou ao gravador,
troco a bobine por uma diferente e vou para a varanda ao som de Meddle dos
Pink Floyd. Sento-me numa das cadeiras reclináveis e só então penso nas
implicações daquilo que a Catarina terá ouvido.
===================¤==================
São onze da manhã, estou a meio de um fax referente a uma nova consulta
que me fizeram os clientes de Filadélfia, quando a Mónica bate à porta
entreaberta e mete o nariz pela fresta para me dizer, com um sorrisinho
estranho, que já chegou a minha marcação para agora. Olho para a agenda
em que ela me marca os clientes, ainda a pensar no que estava a escrever e
leio: Joana Dacla... (ñ prcbi nome. nv. cliente), mas fico na mesma. Pergunto-lhe
de onde é que nos chegou. Ela diz, enigmaticamente, que foi marcado por
telefone, e eu continuo na mesma. Encolho os ombros e digo-lhe para
mandar entrar.
Ela encosta novamente a porta e afasta-se. Regressa pouco depois, abre a
porta completamente e desvia-se para o lado para deixar passar uma
217
rapariga, ligeiramente mais alta do que ela, cabelos curtos castanhoavermelhado, olhos ocre muito claros, bonita, que tenho a impressão de já ter
visto, embora não faça a mais pequena ideia onde.
A Mónica sai e fecha a porta, mas não sem antes me deitar um olhar dengoso
por cima do ombro, seguido de um farfalhudo abanar de pestanas.
“Bom-dia, sou Jakez Saint-Hervé, em que posso ajudá-la?”, digo, ao mesmo tempo
que ponho a minha cara das apresentações. Mas ela ri-se, e passo
subitamente a ter cara de parvo.
“Não esperava que me tivesses esquecido tão depressa”, diz em francês enquanto
me estende a mão. Olho-a ainda sem perceber e aperto a mão esguia que me
estende. A voz também não me é estranha, mas não consigo associá-la à
pessoa que tenho à minha frente.
“Sou a Janna”, diz ela com um sorriso.
Compreendo, então, porque não a reconheci, embora ao mesmo tempo me
pareça estranho que apenas a falta de uma peruca loura e o facto de ela estar
vestida me tenham impedido de o fazer. De súbito, porém, faz-se luz na
minha confusa mente. Recordo-me, finalmente, de onde a vi primeiro.
“Eras tu na sessão dupla de outro dia!”, exclamo.
“Bravo! Tens boa memória”, cumprimenta, sorrindo sempre. Nunca me teria
ocorrido que a rapariga do isqueiro no intervalo da sessão dupla e a Janna
d‟A Gata Perfumada fossem a mesma pessoa. Mas, verdade seja dita, tão
pouco reconheci a Tatiana quando a voltei a ver no clube, e essa estava igual
a si mesma. Olho para ela ainda durante um momento, como que tentando
218
perceber como uma mesma pessoa pode parecer tão diferente por causa de
tão pouco.
“É realmente espantoso”, digo como que para comigo. “Mas diz-me, o que posso
fazer por ti?” Indico-lhe uma das cadeiras em frente da secretária.
“Incomoda-te se continuarmos a falar francês?”, pergunta, enquanto se senta.
A princípio não percebo porque mo pergunta, mas depois recordo-me que
no cinema a ouvi falar português. Digo-lhe que não me incomoda nada.
Explica que ainda não se sente suficientemente à vontade para tratar de
coisas complicadas em português, pois é uma língua que recomeçou a falar
há pouco e que só usa fora do clube.
Enquanto ela me explica isto, pego no cachimbo e pergunto-lhe,
silenciosamente, se a incomoda. Diz que não, que do odor do tabaco de
cachimbo até gosta bastante. Satisfeito, encho o fornilho com Rhon SaintMalo. Depois de bem comprimido, vou para lhe atear o lume, mas descubro
que a caixa de fósforos está vazia. Procuro, em vão, por outra e vou desistir
da cachimbada já ligeiramente irritado comigo mesmo, quando ela tira o
célebre isqueiro da mala e mo estende sorrindo. Agradeço, a irritação a
desaparecer como que vaporizada pelo calor da chama que acabo de
acender, levo o lume ao tabaco e devolvo-lhe o isqueiro, que ela volta a
guardar.
Pousa a mala em cabedal castanho na alcatifa ao lado da cadeira, procura,
discretamente, uma melhor posição no assento, ajeita delicadamente a saia e
cruza as longas pernas pelo tornozelo, dobrando-as para o lado e para trás,
219
num gesto antiquado e muito feminino que já não vejo ser usado há muitos
anos.
Olha-me nos olhos, da mesma forma intensa que o fez sexta à noite, quando
me disse que precisava de conversar com um advogado, e começa a falar.
Explica que entrou em Portugal como turista, embora soubesse, já nessa
altura, que iria dançar n‟A Gata Perfumada, porque lhe foi dito que seria
menos moroso tratar da papelada com ela já dentro do país e a trabalhar.
Não lhe pareceu estranho, o contrato anterior, seis meses como dançarina
num cabaret em Viena, tinha começado da mesma forma, embora tivesse
sido legalizado em menos de uma semana.
Pediram-lhe o passaporte quando começou a trabalhar, com a desculpa que
era preciso enviá-lo ao serviço de estrangeiros e fronteiras para tratar da
legalização, mas que rapidamente lhe seria devolvido. No entanto, já se
passaram três semanas e ainda não lhe devolveram o passaporte, nem
recebeu qualquer comunicação do Estado português a dizer que tinha
autorização de trabalho, ao contrário do que acontecera em Viena.
Procurou falar no assunto ao gerente do clube, mas este deu-lhe respostas
evasivas, desculpando-se que Portugal não é a Áustria e que as coisas
demoram muito mais tempo, mas que não se preocupasse que estava tudo
sob controle e que ela não precisava realmente do passaporte enquanto
estivesse dentro da União, porque, afinal de contas, o seu país era Estadomembro e uma qualquer carta de condução bastaria. Depois do segundo
pedido de esclarecimento feito ao gerente ter recebido uma resposta tão
inconclusiva como o primeiro, resolveu dirigir-se directamente ao serviço em
220
questão, através de um número de telefone que vira anunciado numa estação
de correios. Foi-lhe dito que não havia qualquer processo em nome dela e
que o serviço nunca fica com os passaportes em sua posse, limitando-se a
fazer cópias das páginas que lhe interessam. Desligou apressadamente sem
responder às perguntas que lhe começaram a fazer.
Esta conversa com o serviço de estrangeiros tinha tido lugar precisamente na
sexta-feira durante a tarde. Pouco antes de ir para o clube tinha-se finalmente
decidido a ir falar com um advogado, e foi nessa altura que eu entrei em
cena.
Digo-lhe que não há realmente qualquer razão que justifique a retenção do
passaporte dela pela gerência do clube e que o terem-no feito é
completamente ilegal. Sugiro que seja apresentada queixa à polícia e junto do
serviço de estrangeiros, uma vez que a retenção do passaporte se traduz
numa obrigação de fidelidade ao empregador e, portanto, por outras
palavras, em trabalho forçado, o qual é proibido por lei na União Europeia e
em qualquer outro país civilizado.
Mas ela diz que não quer apresentar queixa.
“Mas, porquê?”, pergunto, admirado; o cachimbo na mão, a meio caminho
entre o braço da cadeira e a minha boca.
Ela encolhe os ombros.
“Porque se o fizer nunca mais voltarei a trabalhar. Ali ou noutro clube qualquer.”
Passa a mão pela franja para a afastar dos olhos. “Este é apenas o meu segundo
contrato fora da República Checa, mas já percebi que neste ramo o melhor é não fazer
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muitas ondas. Mesmo quando tudo é legal e a papelada está toda em ordem, como
creio que era o caso em Viena, se se fizerem muitas ondas acaba-se no olho da rua. E
depois, como este é um meio pequeno, ninguém nos quer contratar por receio de estar
a meter em casa alguém que lhe vai dar mais chatices do que proveitos.”
“Foi isso que te aconteceu em Viena? Foi por isso que vieste para Lisboa?”
“Não, não”, nega, abanando enfaticamente a cabeça. “O meu contrato em Viena
era mesmo só por seis meses. Fui apenas substituir uma dançarina que tinha ido em
tournée promocional aos EUA. Éramos seis substitutas e fomos fazer parte do
conjunto de coristas a que pertenciam as que estavam em tournée. Quando elas
voltassem teríamos de sair porque não haveria lugar para nós, e foi isso que se
passou. A vinda para Lisboa aconteceu por causa da Tatiana, que eu já conhecia, e
que me disse, um dia ao telefone, que o clube novo para onde ela tinha vindo, estava à
procura de mais dançarinas.
Embora não me tendo acontecido pessoalmente, sei de dançarinas a quem aconteceu
ficarem sem emprego de um dia para o outro. Começaram a fechar-se-lhe portas que
antes estavam sempre abertas e foram parar ao desemprego, ou então foram forçadas
a trabalhar por menos dinheiro ou em clubes de pior categoria. E eu não posso correr
esse risco. O dinheiro faz-me falta, é por isso que faço o que faço”, diz, olhando-me
nos olhos. Como que desafiando-me a criticá-la.
Eu abro os braços e levanto as palmas das mãos para ela, procurando
significar que não tenho qualquer intenção de a criticar.
“Percebo a tua situação. Porém, não apresentando queixa, como esperas recuperar o
teu passaporte?”
222
“Não sei. Enfim, posso sempre ir ao consulado e pedir um novo, mas isso é uma
complicação muito grande e só me dão um temporário, para me permitir regressar a
casa. Por isso, só quereria servir-me deles em último recurso.” Faz uma pausa para
rearranjar a saia e descruzar e re-cruzar as pernas, mudando-as de posição.
“Acho que vou tentar falar com o gerente mais uma vez e pedir-lhe novamente que
me dê o passaporte. Vou dizer-lhe que tenho de ir ao consulado e que não posso lá
entrar sem levar o passaporte comigo, o que, por acaso, até é verdade. Logo vejo o que
me responde. O que te parece?”
“Sim, se a tua ideia é não criar ondas, essa parece-me uma justificação muito
plausível. E depois, como fazes para não ter de o voltar a entregar?”
Ela ri-se, com ar de quem já pensou no que vai acontecer a seguir. Presto
atenção ao que me diz enquanto vou saboreando o rico aroma do tabaco
holandês.
“Quando o tiver na mão, vou mesmo ao consulado e peço uma fotocópia autenticada.
Se no clube mo pedirem novamente, digo-lhes que tive de o deixar para verificação,
mas que no consulado me deram uma fotocópia selada que tem exactamente o mesmo
valor. Se eles a quiserem, podem ficar com ela!”, explica, satisfeita consigo
mesma.
“Muito bem”, digo, tirando o cachimbo da boca. “Vejo que já pensaste em tudo.
Esperemos, então, que ele te dê o passaporte quando lho pedires. Mas vejamos
também o que fazer, se ele não to quiser dar, pode ser? Nesse caso, acho que deves
apresentar queixa; eu posso ajudar-te a fazê-lo. A retenção de passaportes ou de
qualquer documento de identificação é severamente punida por lei.”
Ela concorda acenando com a cabeça.
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“Sim, nessa altura sim; acho que nada mais me restará fazer. Embora isso me vá
custar caro. Se fizer queixa não vou poder continuar ali, e como não tenho
autorização de trabalho, vai ser difícil encontrar outro sítio. Isto supondo que alguém
estaria interessado em contratar-me depois de eu ter feito queixa.” Encolhe os
ombros com um ligeiro suspiro, que nem se apercebeu ter dado. “As
possibilidades de emprego bem remunerado para alguém na minha situação são
bastante limitadas, como deves calcular. Porém, se ele não me devolver o passaporte,
não me resta mesmo outra alternativa”, acrescenta, pensativa, para logo mudar
para tom mais positivo. “Mas vou esperar pelo melhor. Eles não têm qualquer
razão para ficar com os passaportes, por isso, deve tratar-se tudo de um mal
entendido. Se eu lho pedir, dizendo que preciso dele, não têm como não mo dar”,
enuncia, tentando convencer-se que é assim que as coisas se vão passar.
Eu acho melhor não dizer nada. Na verdade, há mesmo bem pouco que
possa dizer. A atitude a tomar depende agora do que se passar quando ela
lhes for pedir o passaporte. Por isso, esperarei eu também.
“Mas queria pedir-te uma coisa, se não te importas”, confessa.
Digo-lhe que não me importo nada.
“Depois de ter o passaporte na minha mão e de ter feito uma fotocópia no consulado,
gostava de to dar para guardar”, pede.
“Mas, porquê?”, pergunto, não muito seguro de querer a responsabilidade
sobre os meus ombros.
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“Porque pode acontecer alguma coisa. Porque acho que está mais seguro aqui.
Porque, se mo pedirem novamente, posso dizer, sem mentir, que não o tenho comigo e
que tão pouco o tenho em casa.”
“Mas deves trazê-lo sempre contigo. Pode ser necessário.”
“Não creio. Nunca tive necessidade de o mostrar a ninguém. Só a polícia mo pediria,
mas, se o fizerem, posso sempre dizer que o deixei contigo, não? De qualquer modo,
farei uma fotocópia também para mim e trarei essa sempre comigo, que te parece?”
“Sim, claro, podes dizer sempre que o deste a guardar ao teu advogado, por receio que
alguém lhe deitasse a mão. Não sei até que ponto um polícia obtuso vai ligar alguma
coisa a isso, mas podes sempre dizê-lo. E sim, acho boa ideia trazeres uma fotocópia
contigo. Só serve para corroborar o receio que tens de ver desaparecer o original”,
noto, ao mesmo tempo que bato com o cachimbo no cinzeiro para me livrar
do borrão e o pouso na base, ao lado da caixa dos clipes. Levanto o olhar
para ela e vejo que sorri. “O que é?”, pergunto, sorrindo também.
“Então, és o meu advogado?”, inquire, divertida.
“Desde que entraste naquela porta e me começaste a contar o problema e até que me
digas que não queres que o continue a ser”, esclareço, apontando para a porta.
“O que significa: em primeiro lugar, que tudo o que me disseres fica entre nós; em
segundo lugar, que estou à tua disposição para esclarecer quaisquer dúvidas ou
resolver quaisquer problemas legais que possas ter; e, em terceiro lugar, que, apesar
do que dizem as anedotas, podes mesmo confiar em mim”, digo, contando pelos
dedos e fazendo cara de inocente.
Ela ri-se. Uma gargalhada sonora e bem disposta.
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“Ainda bem. Gosto disso. Sinto-me mais segura, sabendo que tenho alguém em quem
confiar”, diz, rindo novamente. “Nesta profissão, talvez mais do que noutra
qualquer, é coisa que nem sempre se encontra”, acrescenta, encolhendo mais uma
vez os ombros.
“Porque o dizes?”
Olha-me como se eu fosse de outro planeta.
“Tu não costumas ir a muitos bares de strip, pois não?”, inquire, incrédula. Digolhe que não, que antes de sexta não me lembro de ter ido a nenhum. Ela
arregala os olhos em surpresa e depois ri-se.
“Desculpa, não me estou a rir de ti”, esclarece, embaraçada; mas eu digo-lhe
que não tem importância. “Assim não me admira que tenhas perguntado”,
acrescenta, pensativa, e depois continua: “Mas, para quê falar de coisas
desagradáveis? Já chega ter de as aturar”, diz, fazendo um gesto com o braço,
que parece atirar com aquilo em que estava a pensar para trás das costas.
Muda de assunto. Deixamos a parte jurídica da conversa. Falamos acerca dos
filmes de outro dia e de cinema em geral. De Peter Weir e Ridley Scott para
Truffaut e Hitchock e destes para Orson Wells, o que nos leva a falar de
Kafka, por causa d‟O Processo de 1963, com Anthony Perkins. De Kafka
saltamos para Milos Forman, porque também é checo, e depois para
Polanski, que não o é, mas que, tal como Forman, foi para Hollywood fazer
filmes. Falamos de Chinatown e de Frantic e também d‟O Pianista, e estamos
precisamente a discutir o que nos agradou mais e menos em cada um deles,
quando oiço as unhas da Mónica matraquear levemente na porta e esta abrirse ligeiramente. Logo depois, a Mónica mete a cabeça pela fresta e diz:
226
“Desculpe incomodar Dôtorjáquess, mas já passa do meio-dia e meia e o senhor
Miguel Ventura está à sua espera.”
Esqueci-me completamente do gajo! Agradeço à Mónica ter-me recordado,
peço-lhe para dizer ao Miguel Ventura que espere só mais um bocadinho e
volto a dar atenção à Janna.
“Perdi completamente a noção das horas”, diz ela.
“Pois, também eu”, confesso. “É coisa que acontece facilmente quando se fala do que
se gosta”, acrescento, à laia de justificação.
Ela olha-me com um sorriso enigmático nos lábios e depois levanta-se. Eu
levanto-me com ela, estende-me a mão esguia que aperto novamente, diz-me
„obrigada‟, pergunta-me se me deve alguma coisa e eu digo que não, sorri
novamente, diz-me „adeus‟ e dirige-se para a porta, enquanto eu fico atrás da
secretária com a boca a saber-me a pouco.
Pára com uma mão na ombreira e outra no puxador da porta. Hesita por um
momento, e depois volta-se lentamente para mim e pergunta:
“Gostarias de ir jantar comigo?”, di-lo num tom quase embaraçado, pouco
característico da Janna que até aqui tenho visto. Para logo de seguida abrir os
lábios num sorriso e acrescentar, já mais desenvolta: “Assim, pelo menos
terminávamos a conversa.”
Estou a dizer-lhe que sim, que seria um prazer, ainda antes de ela ter
acabado de falar. Sorrio como um imbecil, enquanto pego no cachimbo para
manter as mãos ocupadas, sem perceber muito bem o que me está a
acontecer.
227
Ela pergunta-me a que horas é que acabo de trabalhar, e eu riposto
perguntando-lhe a que horas é que gostaria de jantar. Ela ri-se e diz que hoje
está de folga, por isso posso decidir eu a hora e o sítio.
Combinamos encontrar-nos às oito, no escritório, por ser mais fácil e eu
ainda não fazer a mínima ideia de onde iremos depois disso.
Faz-me adeus com a mão e sai do gabinete fechando a porta atrás de si,
enquanto eu carrego no botão do intercomunicador e peço à Mónica para
fazer entrar o Miguel Ventura.
===================¤==================
Três e meia. Estou no cemitério da Ajuda a acompanhar o funeral do Jorge
Pizarro de Almeida. Veio quase toda a gente do escritório, tirando aqueles a
quem era de todo impossível vir.
Está uma tarde bonita, como convém aos que aqui estão, ainda que ao Jorge
isso seja já completamente indiferente.
Dizem-me que estão cá os pais e as duas irmãs dele, bem como outros
familiares cujo parentesco com o Jorge ninguém me assoprou. Da mulher e
dos filhos, ou de alguém da família dela, parece não haver sinal. Dir-se-ia
que nem a morte lava a afronta que as fotografias terão representado para
ela.
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Avançamos em cortejo mudo até à campa em que o esquife vai ficar, os
homens da funerária pousam-no em dois cavaletes enquanto o padre de
serviço diz as frases de circunstância, depois descem-no, por meio de cordas,
para dentro do buraco e deitam-lhe umas pazadas de terra para cima, com a
falta de pompa que estas coisas têm sempre.
Após um último cumprimento aos pais e às irmãs do Jorge, a assistência
começa a debandar, cada um de volta aos seus afazeres.
Eu deixo-me ficar, à sombra do limoeiro que alguém plantou ao lado da
campa. Não porque precise de mais tempo a sós com o defunto, afinal,
tirando o fim de tarde de quinta-feira passada, não conversávamos assim
tanto um com o outro. Não, deixo-me ficar porque vi alguém que me
despertou a atenção e quero tirar umas coisas a limpo.
Reparei numa mulher vestida de escuro, com um ramo de rosas vermelhas
no braço, que seguiu o cortejo desde a entrada do cemitério, mas sempre a
uma certa distância, como se não quisesse ou não pudesse juntar-se a ele.
Vejo-a ainda, mais abaixo em frente ao muro dos gavetões, o rosto coberto
por um chapéu escuro de abas largas, fingindo arranjar as flores de uma
outra sepultura, esperando que esta seja deixada a sós consigo mesma.
Desço pelo ligeiro declive empedrado e aproveito o primeiro jazigo para
voltar à direita, como que em direcção à saída. Encosto-me à parede lateral
do jazigo, de maneira a não ser visto por ela quando subir, e aguardo.
Não preciso esperar muito. Um minuto mais tarde, vejo-a passar em frente
da abertura enquanto sobe apressada a ladeira de paralelepípedos, o ramo de
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rosas ainda aninhado no braço, um lenço creme encostado ao rosto logo
abaixo dos olhos, impedindo-me de lhe ver as feições.
Deixo passar mais um minuto e saio calmamente do meu esconderijo,
subindo lentamente a ladeira em direcção à campa que passou a ser a
morada permanente do Pizarro de Almeida. Ela está ajoelhada num dos
degraus de mármore, o casaco de algodão a servir-lhe de almofada, e tenta
colocar o ramo de rosas num espaço ainda livre.
Pôs a mala no chão, encostada à pedra tumular de mármore em que se pode
ler uma lista em alto relevo, com os nomes de todos os locatários a dourado.
O nome do Jorge aparece destacado no fim da lista, apenas por ser o mais
recente e, por isso, o mais brilhante. O chapéu descansa, agora, em cima da
mala, desnecessário por baixo da copa do limoeiro.
Traz posto um vestido preto sem mangas, que lhe chega acima do joelho e se
lhe molda às curvas do corpo. Tem calçados um par de sapatos de salto
baixo, abertos atrás, também pretos. Os cabelos são castanho-claro e chegamlhe quase aos ombros, embora sem lhes tocarem. Tem o rosto húmido das
lágrimas e ainda não reparou em mim, absorta que está no arranjo das flores;
por isso, aproximo-me dela o mais possível antes de falar.
“Raisa”, chamo suavemente. Ela volta-se em sobressalto, o rosto bonito numa
expressão de alarme. Não me enganei, portanto.
“Não te assustes, sou um amigo do Jorge”, continuo, suavemente, em espanhol,
língua que presumo fale, tentando ao mesmo tempo não parecer ameaçador.
Ela, primeiro, parece quase pronta a dar um salto e a tentar a fuga, mas ao
ouvir o nome acalma-se ligeiramente.
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Acena que sim com a cabeça e senta-se sobre as pernas no degrau de
mármore. Eu sento-me devagarinho em frente a ela.
“Eu vi-te no enterro”, diz ela como que confirmando a si mesma que não tem
razão para me recear. “Ele falou-te de mim?”, pergunta-me, em espanhol
também.
“Sim, falou.”
“E o que disse?” A pergunta é quase ansiosa.
“Que não percebia o que se tinha passado. Não percebia como se podia ter enganado a
esse ponto acerca de uma pessoa que, afinal, só parecia interessada em servir-se dele”,
digo sem qualquer emoção na voz.
Ela recomeça a chorar.
“Não, não é verdade! Nunca quis fazer-lhe mal. Eu estive fora toda a semana passada
e não soube o que aconteceu até ter recebido as mensagens dele, no Domingo. Passei o
dia a tentar ligar-lhe, mas já era tarde demais”, diz entre soluços. “Nunca quis
fazer-lhe mal”, repete. “Eu amava-o!”
“Calma, calma”, aconselho, os braços abertos com as palmas das mãos viradas
para ela. “Ninguém nega isso. E o Jorge também me disse que estava apaixonado
por ti. De facto, creio mesmo que o esteve até ao último momento, esperando sempre
que tudo não passasse de uma brincadeira de mau gosto”, esclareço. “Mas isso não
explica as fotografias...”
“Não fui eu quem as tirou! Eu nem sabia da sua existência até ouvir as mensagens
do Jorge”, apressa-se ela a dizer.
231
Olho para ela com cara de quem não acredita.
“É verdade! Por favor, acredita em mim”, suplica, os olhos novamente rasos de
lágrimas. “Eu tenho feito muita coisa estúpida na minha vida, algumas até mesmo
muito estúpidas, mas nenhuma foi ao Jorge. Eu gostava mesmo dele...” Os soluços
tomam conta dela e não consegue dizer mais nada.
“Como esperas que acredite nisso? Que alguém vos fotografou sem tu saberes de
nada, quando tu estás sempre fora do campo da objectiva?”, questiono, a dureza a
subir-me na voz.
Ela baixa a cabeça e continua a chorar. Fica assim durante alguns minutos
antes de me responder.
“Eu não sei por que razão estou sempre fora do campo da objectiva, possivelmente
porque fui apagada digitalmente ou porque revelaram e cortaram assim as
fotografias. Mas sei que não sabia que elas existiam, e é nisso que te peço para
acreditares”, diz, já mais calma, olhando para mim. Em algum embaraço,
morde o lábio inferior e baixa os olhos novamente antes de continuar “Não foi
a primeira vez que os homens para quem trabalho deram um golpe semelhante. Na
verdade, têm-no dado até muitas vezes”, faz uma pequena pausa, como que para
ganhar coragem para o que quer dizer a seguir: “E, em algumas dessas vezes,
foi a mim que usaram.” Continua a olhar para o chão, como que falando para o
morto. “Mas não desta vez! O Jorge nada tinha a ver com os arranjos e com os
golpes deles. O Jorge era só meu!”, apregoa, voltando o rosto para mim,
chorando novamente, enquanto aponta para o peito com o indicador direito.
Reparo que tem a unha ruída quase até ao sabugo, o mesmo sucedendo com
as dos restantes dedos, restos de verniz ocre atestando ainda um cuidado
que circunstâncias recentes a impediram de lhes prestar.
232
“Mas aqueles filhos da puta devem ter achado que a oportunidade era boa demais
para se deixar passar. E então filmaram-nos sem me dizer nada.” Acrescenta,
encolhendo os ombros num gesto de resignação. “Não lhes deve ter sido difícil
fazê-lo. O Jorge ficava sempre no mesmo hotel. Bastaria subornar alguém para os
deixar entrar no quarto, espalhar as máquinas por sítios estratégicos, e esperar que
nós entrássemos para começar a rodar.
As máquinas que eles usam são do tamanho do meu polegar e extremamente precisas,
quase sem iluminação conseguem-se filmes muito nítidos. Mas só é necessário que
um ou dois fotogramas saiam bem para o golpe poder dar resultado”, explica, com a
autoridade de quem fala daquilo que conhece bem.
Estou a prestar atenção ao que ela diz, quando volto a pensar em algo que
me está a incomodar desde o início da conversa.
“Como soubeste da morte dele e do funeral?”
Ela estremece ligeiramente antes de responder, como que recordando coisas
que preferiria deixar esquecidas.
“Como ele nunca atendeu do móvel que me deu, ontem resolvi ligar-lhe para o
escritório. Foi a secretária que me disse que ele tinha morrido. Eu nem sei como
consegui aguentar-me, acho que fiquei em choque, nem queria acreditar. Pergunteilhe se ela sabia quando era o funeral, e quando me disse que era hoje, apanhei o
primeiro CAV para cá. O mínimo que podia fazer era vir pôr flores na campa dele”,
termina, com um encolher de ombros.
As pessoas são realmente engraçadas. Esta passa umas noites num quarto de
hotel com o homem, troca com ele umas quantas anedotas ao jantar, e paga
um bilhete de seiscentos e cinquenta quilómetros em comboio de alta
233
velocidade para vir pôr flores na campa dele. A outra, foi casada com ele
uma série de anos, têm dois ou três filhos juntos, e é incapaz de vir ao funeral
por causa de umas tantas fotografias mais ou menos indecentes do marido
com outra mulher, por acaso, a primeira que mencionei.
“Como é que ele morreu?”, diz, subitamente.
A pergunta surpreende-me, a princípio, mas depois percebo que ela não teria
como saber. A última coisa que a Marta lhe diria seria que o Jorge se tinha
enforcado.
Vai ser preciso contar-lhe, mas que versão? A do suicídio ou a do homicídio?
Começo pela primeira.
Ela acena apenas com a cabeça. Como se já o esperasse.
“Ele soava tão desesperado no gravador! Quando não me atendeu, receei o pior. E o
pior era precisamente isto.” Limpa os olhos, que se voltaram a encher de
lágrimas, com o lenço creme que já antes lhe tinha visto. “Pobrezinho. Mas
porque é que eu aceitei aquela maldita viagem a Nice?! Se tivesse ficado em Madrid,
teria recebido as mensagens e ele ainda estaria vivo. Sinto-me tão culpada!”,
censura-se, com uma expressão de infelicidade estampada no rosto,
enquanto se abana para um lado e para o outro, como um animal
desesperado numa jaula.
Vejo-a tão infeliz que acho melhor contar-lhe a outra versão.
“Talvez não tivesse servido de nada ficares em Madrid”, digo, obtenho de
imediato toda a sua atenção. “É bem possível que ele tenha sido morto, em
234
retaliação por não ter pago o que eles queriam. Pelo menos, é nesse sentido que vai a
investigação da polícia.”
Ela empalidece de imediato, até lhe desaparecer quase toda a cor do rosto.
“Como é que eles sabem?”, pergunta com voz embargada.
Conto-lhe a história da corda e dos nós de marinheiro ou de alpinista, que o
Jorge não teria a mínima ideia de como fazer.
“Vlad!”, exclama, num suspiro, ao mesmo tempo que leva a mão à boca.
Depois, recomeça a chorar, mas de raiva desta vez. Cerra os punhos e solta
um chorrilho de epítetos em russo que devem ter amaldiçoado o sobredito
Vlad até à décima geração.
“O grandessíssimo javardo! Agora percebo tudo. A viagem organizada em cima da
hora, nada mais foi do que um pretexto para me afastar. Para eles poderem fazer o
trabalhinho em paz”, continua em espanhol, como que falando consigo mesma.
E depois, voltando-se para mim: “Sabes, o Jorge tinha-me pedido para vir para
Lisboa viver com ele. Não que isso seja algo fora do comum, nesta profissão ouvem-se
propostas dessas quase todas as semanas, senão mesmo todos os dias. Mas nenhuma
delas é honesta; nenhuma delas significa mais do que umas quantas noites num
quarto de hotel, ou um apartamento mantido enquanto o tipo não se cansar e voltar
para a mulher, ou arranjar outra”, diz, encolhendo os ombros. “Mas com o Jorge
foi diferente. Foi o primeiro homem que gostou de mim por quem eu sou; que me
aceitou tal como sou, sem querer saber do meu passado ou sequer do meu presente.
Para ele só eu importava. Eu podia ver que ele estava completamente caidinho por
mim, e depressa estava eu também caidinha por ele.
235
Tínhamos o mesmo sentido de humor, gostávamos das mesmas coisas e, depois,
entendíamo-nos às mil maravilhas na cama. Nunca, nunca gostei tanto de estar com
um homem como com ele. Era muito meigo, muito gentil, sempre atento às minhas
necessidades, sempre pronto a experimentar coisas novas... Mas agora, agora
acabou.”
Leva novamente o lenço aos olhos e recomeça a soluçar baixinho. Deixo-a
chorar em paz, durante alguns minutos. Ainda penso em lhe fazer uma festa
no braço para a confortar, mas mudo de ideias.
“Eles devem ter percebido que eu me ia mesmo embora, e resolveram actuar”,
conjectura para consigo. “Do ponto de vista deles, era muito mais fácil, e
proveitoso, livrarem-se do Jorge, do que tentarem convencer-me a ficar, a bem ou a
mal. Se ele não me tivesse ligado e deixado as mensagens que deixou, pobrezinho, eu
nem sequer saberia das fotografias. Se a chantagem tivesse corrido bem, ele teria
deixado de dar notícias, eu talvez o tivesse tentado contactar e receberia uma resposta
torta, se alguma, e, com o tempo, apesar da dor que sentiria no início, ele passaria a
ser apenas mais um tipo que me tinha passado por entre as pernas. O que,
obviamente, agradaria muito aos montes de esterco para quem tenho trabalhado!”
“Mas isso não explica porque o mataram”, contraponho.
“Não, não explica. Mas muitas das coisas que aqueles tipos fazem não têm
explicação.” Um arrepio percorre-lhe o corpo. “O Vlad, e o Boris especialmente,
são extremamente violentos e gostam de fazer os outros sofrer. Por motivos
absolutamente irrisórios, vi-os bater em pessoas, homens ou mulheres não fazem
distinção, até as deixarem inconscientes, e depois mais ainda; abandonarem-nos onde
caíram e afastarem-se sem qualquer preocupação. Matarem o Jorge, apenas porque
não lhes pagou, não me parece que esteja fora das suas possibilidades.”
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Olha para mim durante um momento, com os olhos vermelhos de choro,
analisando se deve ou não contar-me outras coisas, depois encolhe mais uma
vez os ombros, passa as pernas para a frente, abraça-as como para se fechar
sobre si mesma, e prossegue em tom mecânico, o olhar perdido algures na
floresta de campas e jazigos:
“Eu andei com o Vlad, durante uns dois anos, quando comecei a trabalhar para eles.
Enfim, talvez seja melhor dizer que fodi o Vlad regularmente durante dois anos,
quando comecei a trabalhar para eles. Mas depois isso acabou. Ele começou a dedicar
mais tempo a outras e eu, felizmente para mim, percebo-o agora, não fiz nada para o
impedir. Afastámo-nos, por assim dizer, de comum acordo. Ele ainda me procurou
uma ou duas vezes depois disso, e eu nunca me fiz rogada. Afinal, porque o teria
feito? O filho da puta até nem é mau na cama. No entanto, acho que foi precisamente
isso, o eu estar disponível quando ele queria, que fez com que não me tratasse mal, ao
contrário do que o vi fazer a outras.
Antes de conhecer o Jorge, já trabalhava para eles há seis anos. Fazia um pouco de
tudo, strip, sexo por telefone, e visitas a casa de clientes especiais. Quando era
preciso, era a mim que recorriam se queriam chantagear alguém. Sempre me
pagaram bem e sempre pude fazer o que me apetecia.
Mas quando conheci o Jorge, quando vi que ele gostava realmente de mim, tudo se
modificou. Subitamente, passei a não suportar o que fazia, deixei de gostar de mim.
Quis deixar de ser quem era, quis deixar aquilo tudo para trás... Foi esse o meu erro.
Se me tivesse deixado ficar onde estava, o Jorge talvez ainda estivesse vivo.”
Recomeça a soluçar convulsivamente.
Ponho o braço por cima dos seus ombros trementes e ela aninha-se de
encontro a mim, aceitando o apoio que lhe ofereço.
Deixo-me ficar assim enquanto ela chora tudo o que ainda tem para chorar.
Não há nada que eu possa dizer que a ajude, por isso deixo-me estar calado.
237
Aos poucos, os soluços vão diminuindo até cessarem por completo. Afasta-se
de mim com algum embaraço, murmurando desculpas. Digo-lhe que não
tem qualquer importância.
Pergunto-lhe o que vai fazer agora e ela encolhe os ombros.
“Não sei. Não posso voltar para Madrid”, declara, enquanto acaba de limpar as
lágrimas. “Eles saberiam que eu sei que foram eles que mataram o Jorge, porque eu
não seria capaz de olhar para o Vlad sem o deixar transparecer. E, mais tarde ou mais
cedo, apareceria eu morta também. Não, a minha única hipótese reside em não os
voltar a ver.
Quando ia a sair, tive um pressentimento e meti ao bolso todo o dinheiro que tinha e
enfiei na mala todas as roupas que lá couberam, mas a partir de agora não sei o que
fazer. Não posso voltar ao strip, mesmo que quisesse, até porque sei que o homem
que, no fim, é o dono do clube de Madrid e os emprega a eles, também tem alguns
clubes em Portugal, e correria o risco de dar de caras com o Vlad, com o Boris ou com
um dos outros. Mas vai ser preciso que encontre outra coisa para fazer, porque o
dinheiro não vai durar sempre”, conclui com novo encolher de ombros.
Pergunto-me como ajudá-la, mas não me ocorre nada. Aconselho-a a ir ao
serviço de estrangeiros com o visto de residência e trabalho espanhol para o
alterar para Portugal. Dou-lhe o meu cartão e digo-lhe que me telefone se
precisar de ajuda. Falo-lhe nos cursos de português da faculdade de letras
que devem precisamente estar a começar e aconselho-a, também, a inscreverse ali ou numa escola de línguas qualquer.
Ela acena distraidamente com a cabeça, pensando possivelmente no que
fazer e para quanto tempo lhe chegará o dinheiro que tem na carteira. Quase
a posso ver contar mentalmente as notas de euro e dividir o resultado pela
diária do hotel onde se instalou, para depois se perguntar se não seria
melhor voltar a Madrid e tentar a sua sorte com o Vlad e os outros.
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Num repente, lembro-me do antigo apartamento da minha mãe, vazio desde
que ela se mudou para Paris, e ofereço-lhe ficar lá enquanto organiza a vida.
Ela olha para mim com ar estranho, parecendo não ter percebido a proposta.
Ou, então, percebendo-a da forma a que está habituada que lhe sejam feitas.
Explico-lhe que não quero nada em troca, além das contas pagas e da chave
de volta, quando ela decidir mudar-se.
“Tu não me conheces. Porque fazes isto?”, inquire, ainda não muito convencida.
“Porque precisas. Porque posso. Porque aquilo que disseste acerca do que poderá
acontecer se regressares a Madrid também me parece uma hipótese muito provável, e
porque acho que um morto já chega nesta história.”
“Mas, mas eu posso dar-te cabo da casa! Roubar tudo que lá está dentro, partir o que
não posso levar, sei lá!”, protesta ainda.
Eu rio-me.
“Não, não creio que o faças. É verdade que quase não te conheço, mas o que já
conheço diz-me que posso confiar em ti. O teres vindo ao funeral do Jorge quando
outras na mesma situação teriam apenas encolhido os ombros e seguido o seu
caminho; aquilo que me contaste e a forma como o contaste; tudo isso me diz que és
boa pessoa”, contraponho. “E depois, o apartamento está no seguro e praticamente
vazio. Não há muito que roubar e ainda menos que partir”, termino sorrindo.
“Não sei o que te diga. Dizer que te agradeço do fundo do coração é pouco. Nunca
ninguém fez uma coisa assim por mim. Não sei como te poderei algum dia pagar.”
“Não penses nisso. O apartamento não está arrendado a ninguém, por isso não perco
nada por lá estares. E assim, sempre evitas ter de gastar dinheiro em hotéis e de ter de
te preocupar se tens que chegue até encontrares trabalho”, asseguro-lhe, e
continuo, lembrando-me de uma coisa: “A propósito, sabes onde podias procurar
trabalho? Em ginásios. Há sempre necessidade de instrutores de dança e de aeróbica.
Achas que te serve?”
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“Sim, claro”, responde, e depois acrescenta, meio desanimada: “Mas não tenho
certificado nenhum.”
“Eu não me preocupava com isso se fosse a ti. Tu pareces uma mulher
desenvencilhada, mostra-lhes o que sabes fazer e vais ver que não terás qualquer
problema. Acabei de me lembrar que o ginásio a que vou anda precisamente à procura
de um instrutor. Podes começar por esse.”
Ela parece mais animada. Olho para o relógio e vejo que já são quase cinco
da tarde, não esperava estar fora tanto tempo.
“Ouve, eu tenho de fazer uns telefonemas. Queres mais algum tempo a sós com o
Jorge? Eu vou ali para cima. Quando terminares vem ter comigo, para irmos buscar
a tua mala ao hotel e para te levar ao apartamento”, digo, apontando para uma
zona de jazigos aparentemente abandonados.
Ela está ao pé de mim dez minutos depois, os olhos novamente molhados,
mas com uma expressão menos triste do que anteriormente.
Levo-a de moto ao Ibis em que se hospedou, ela paga a conta enquanto eu
telefono para a Autocoope a pedir um táxi. Quando a carrinha Skoda chega,
digo ao motorista para vir atrás de mim e sigo em direcção à praça de
Espanha, que atravesso, seguindo ao longo da avenida de Berna para ir ter à
João XXI. Viro à esquerda para depois entrar na avenida de Roma, em
direcção a Alvalade. Estaciono em cima do passeio, em frente ao prédio onde
morei com a minha mãe.
Ajudo a Raisa com a mala, onde ela deve mesmo ter enfiado tudo quanto
tinha em casa porque é pesada que se farta. Metemo-nos no elevador sob o
olhar vigilante da porteira, que, como de costume, aparece à porta para ver
quem entra. Digo-lhe que a Raisa é parente da minha mãe e vai ficar a viver
no apartamento durante algum tempo. Assim fica com a curiosidade
satisfeita e escusa de se pôr com conjecturas.
240
Chegados ao sexto andar, abro a porta, desligo o alarme e explico-lhe como
funciona. Ligo os electrodomésticos à corrente, abro o gás e acendo o piloto,
mostro-lhe como fazer para usar o fogão e levo-a atrás de mim para a visita
guiada.
Não que haja muito para ver. Além do átrio de entrada e da cozinha, apenas
dois quartos, uma casa de banho e uma sala, quaisquer das divisões
esparsamente mobilada. Quase tudo o que havia de interesse, ou está em
minha casa, ou foi para Paris com a minha mãe.
A sala tem apenas um sofá cama e um cadeirão; um tapete de cor clara, uma
estante em mogno, onde está uma televisão ainda a preto e branco que veio
com o apartamento, e por cujas prateleiras se espalham alguns catálogos de
moda e livros com fotografias de paisagens, daqueles que se oferecem
quando nada mais se sabe que oferecer, aos quais nunca se sabe o que fazer,
e que se abandonam quando se muda de casa.
O quarto da minha mãe tem apenas a armação da cama, um colchão e uma
cadeira, além do guarda-roupa embutido na parede, vazio de tudo também.
Só o meu tem menos aspecto de ser uma divisão de uma casa numa cidade
fantasma. A cama está feita e coberta com uma colcha, como a deixei da
última vez que aqui dormi, quando me separei da Mima. As estantes ainda
têm grande parte dos meus livros, de estudo e outros, bem como alguns dos
modelos de navios que fiz quando andava na secundária. Os posters que
dizem Ziggy Stardust and the Spiders from Mars e Les Aventures de Tintin,
Objectif: Lune, ainda estão agarrados à parede nos sítios onde os pus, há mais
anos do que me apetece recordar.
O meu gira-discos portátil e a minha pequena colecção de LP e 45 rotações
ocupa toda a prateleira de baixo de uma das estantes de pinho. O rádiogravador continua sobre a mesinha de cabeceira, ao lado do despertador de
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corda que sempre me acordou a horas enquanto aqui dormi.
No roupeiro do corredor, descubro alguns lençóis para a cama de casal e
algumas toalhas, fechados em sacos de vácuo, mas acho que deve ser melhor
lavá-los antes de os usar. Levo a Raisa à marquise, mostro-lhe como funciona
a máquina de lavar e o secador de roupa. No armário ainda há amaciador e
detergente líquido e, com um bocado de boa vontade, até são capazes de
lavar e amaciar alguma coisa.
Pergunto-lhe se precisa de mais alguma coisa, ela diz que não e pergunta-me
apenas onde fica o supermercado mais próximo. Da varanda mostro-lhe o
caminho para o Lidl e dirijo-me para a saída.
Ao passar novamente pela sala, reparo no telefone em cima da mesinha
rectangular ao pé da porta. Levanto o auscultador e oiço que está desligado.
Insiro o código de reactivação no teclado, escrevo-lhe o número de casa e o
nome, endereço e telefone do ginásio na primeira folha do bloco de notas,
que também está em cima da mesinha, e digo-lhe novamente para me
telefonar se precisar de alguma coisa.
Abro a porta da rua e dou-lhe as chaves para a mão.
“Bom, então, até depois. Boa sorte com a busca de emprego”, digo-lhe à laia de
despedida.
Ela hesita por um momento, mas depois põe-me os braços à volta do
pescoço, aperta-se de encontro a mim e dá-me dois beijos sonoros em cada
uma das faces.
“Muito, muito obrigada. Fico-te eternamente grata”, diz quando se afasta.
Digo-lhe que não pense nisso, desejo-lhe boa sorte mais uma vez e desço a pé
pelas escadas para não ter de esperar pelo elevador.
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243
244
QUATRO
Saio do prédio às oito em ponto. Ao marcar esta hora pensei que iria ter
tempo para me meter debaixo do chuveiro e mudar de roupa, mas o desvio
que o ter conhecido a Raisa me fez fazer, alterou-me os planos. Estive
agarrado ao computador até há poucos minutos, tentando não deixar
demasiadas coisas por fazer das que me tinha proposto para hoje. Lavei
apenas a cara, mudei a gravata para uma menos fúnebre, troquei o casaco do
fato por um blusão de cabedal e nada mais.
Já enfiado no macacão, encosto-me à moto e preparo uma cachimbada
enquanto espero.
Consigo acender o tabaco ao segundo fósforo da carteira que tenho no bolso.
Os fósforos de carteira não prestam mesmo nada para acender cachimbos.
245
Cinco minutos mais tarde, ela acena-me do outro lado da rua. Desencostome ao mesmo tempo que lhe respondo ao aceno, e vou ter com ela à borda
do passeio. Mudou de roupa e quase não a reconheci outra vez. Traz umas
calças curtas, em tecido ligeiro de cor creme, que lhe chegam a meio das
pernas bronzeadas e bem torneadas; uma camisola larga rosa-desbotado com
mangas curtas; e umas sandálias de lona, rosa também, cujas tiras lhe
enlaçam os tornozelos, com solas de corda e salto em cunha.
“Olá. Desculpa o pequeno atraso”, diz quando chega ao pé de mim. Além da
mala castanha que lhe vi hoje de manhã, traz dois sacos de compras nas
mãos, um de uma livraria e outro de uma loja de roupa para miúdos. “Fui às
compras”, diz, exibindo os sacos. “O meu sobrinho faz dois anos na segunda, por
isso comprei-lhe um presente. E comprei também uma gramática e um livro de
exercícios de português, para ver se melhoro.”
Isso faz-me pensar numa coisa.
“Ouve cá, onde é que tu aprendeste português? E porque é que aprendeste
português, que será talvez mais interessante saber?”, pergunto.
Ela ri-se bem disposta.
“Aprendi nos últimos dois anos de escola secundária. A escolha era entre o espanhol,
o italiano e o português, e houve alguém que me disse que o português era a porta
ideal para as outras duas. Por isso resolvi experimentar. Mas até agora não dei por
nada. Dir-se-ia que a tal porta só se abre com um nível de conhecimentos que eu
obviamente não tenho.”
246
“Talvez não, mas daquilo que recordo da tua conversa no cinema, não me parece que
o teu nível de conhecimentos seja mau, para quem só teve dois anos de
aprendizagem.”
Ela agradece com um ligeiro dobrar de joelhos, em tom de brincadeira, e
pergunta-me onde vamos, para mudar de conversa.
Sou apanhado de surpresa e só nesta altura me lembro que era suposto ter
escolhido o restaurante e provavelmente feito uma reserva. Ainda tento
inventar uma história qualquer, mas estou de tal forma aparvalhado com o
meu esquecimento que nem isso consigo. Digo-lhe que não faço a mais
pequena ideia.
Ela olha para mim com ar espantado e depois desata a rir à gargalhada.
“Tu és mesmo um tipo engraçado”, diz quando pára de rir. “Esqueceste-te, não
foi? Se pudesses ter visto a tua cara quando te perguntei onde íamos.” Mas depois
põe uma expressão mais séria. “Desculpa, talvez não devesse ter-me rido. Às
vezes faço-o sem pensar.”
“Não te preocupes, não me ofendi. Imagino que a minha expressão tenha sido
bastante risível. Lamento é ter-me esquecido. Aliás, estou a tentar, furiosamente,
lembrar-me de um restaurante onde possamos ir, mas não me vem nada à ideia”,
digo, quase em desespero
“Talvez eu possa ajudar”, diz ela, em tom de quem acabou de se lembrar de
algo. “Quando apanhei o metro para aqui, vinha um homem sentado à minha frente
a falar ao telefone. Era alemão e deve ter pensado que ninguém o percebia, porque
estava a fazer uma descrição de uma coisa que comeu, em termos tais que fazia
247
crescer água na boca. Estive quase para lhe pedir informações pormenorizadas, mas
vi-o tão satisfeito por julgar a sua conversa secreta que não tive coragem.
O prato chama-se naco na pedra e o restaurante tem o mesmo nome e, segundo
percebi, fica perto de um sítio chamado Colégio Militar. Isto diz-te alguma coisa?”
“Sim, claro que sim! Belíssima ideia. Hoje não deve ser difícil conseguir mesa.
Vamos já para lá e brindamos o primeiro copo a esse teu alemão providencial”, digo,
satisfeito por ter sido encontrada uma solução.
“Então, está decidido. Como vamos, de metro?”
“Não, a menos que faças questão nisso ou tenhas alguma coisa contra motos”, e
aponto para a BMW por cima do ombro.
“É tua? Mas que grande moto! Não te imaginava nada em cima de uma coisa destas.
Sim senhor, isto é o que se chama uma surpresa”, diz, admirada. “Não, não tenho
nada contra motos, antes pelo contrário, nunca andei foi numa assim. Enfim,
também não andei assim em tantas que me possa pôr a fazer comparações”,
acrescenta.
Dou-lhe para as mãos o integral e o colete fluorescente que entretanto tirei da
mala traseira.
“Vejamos, então, se é do teu agrado”, digo e bato com a palma da mão no
assento, convidando-a a sentar-se. Ela veste o colete, põe o capacete, dá-me
os sacos que enfio numa das malas laterais, alarga a alça da carteira, passa-a
a tiracolo, e sobe para a traseira da moto.
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Subo também e sigo em velocidade moderada, em direcção a Benfica,
enquanto ela se agarra a mim e nos envolve aos dois num delicado aroma de
baunilha.
===================¤==================
O jantar está a correr bem.
A carne é fabulosa e parece derreter-se na boca, cortada na perfeição, que é o
que distingue este restaurante de tantos outros que se dizem do mesmo sem
o ser. A selecção de vinhos dava muito por onde escolher, mas nenhum de
nós queria beber demasiado, por isso ficámo-nos por uma meia garrafa, das
poucas que parece, invariavelmente, haver à disposição onde quer que se vá.
Continuamos a nossa conversa sobre cinema e falamos também sobre livros
e outras coisas. Fiquei a saber que terminou o secundário em contabilidade e
que tem uma licenciatura em história contemporânea, e também que o ser
dançarina exótica não é uma vocação, mas antes uma necessidade.
Aparentemente, os empregos para licenciados em história também não
abundam na República Checa, e os que há não pagam que chegue para viver.
Na nova economia global, a História, tal como o resto, parece só ter valor se
vender. Diz que tentou a sua sorte numa firma de consultoria, dessas
multinacionais que estão em toda a parte, e que tinha começado uma carreira
em contabilidade, mas o salário também não era nada de especial, para as
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horas que lhe pediam que fizesse e para a responsabilidade que queriam que
assumisse.
Tornou-se dançarina profissional quase por acaso. Fazia aeróbica e dança
desde miúda, e participava também em exibições e concursos. E foi
precisamente num desses eventos que viu um anúncio para um clube de
Praga, oferecendo nada mais do que o triplo do que ela recebia por mês.
Respondeu, foi aceite e daí para a frente foi seguindo a estrada que a trouxe
aqui. Começou por ser apenas dançarina de linha, mas depois passou a fazer
strip também. “É muito mais bem pago”, esclarece.
“Claro, é preciso ser-se um tudo-nada exibicionista, senão a actuação sai frouxa – se
bem que, aqui entre nós, a maior parte dos tipos que nos vêem, não estejam em
condições de fazer uma apreciação isenta”, explica, piscando-me o olho. “Mas eu
acho que, no fundo, todos os bailarinos acabam por ser ligeiramente exibicionistas.
Senão já estariam a fazer outra coisa qualquer.”
Penso na única actuação que vi dela e acho que se aquilo é exibicionismo,
então o exibicionismo é uma coisa boa.
“Em geral, posso dizer que, apesar de ter entrado nisto há relativamente pouco
tempo, a profissão em si não é má e os cachets são bastante altos, o que é precisamente
a razão que aqui me trouxe”, continua “Os bêbados e os que têm mãos magnéticas
são suportáveis, até porque os clubes querem manter o nível que se propuseram, por
mais baixo que alguns o possam considerar, e têm sempre alguém de olho em nós, que
os afastam quando é preciso. O pior são os tipos insalubres que parecem vegetar à
roda disto. Até agora não tenho razão de queixa, e espero que esta história com o
250
passaporte se resolva, para continuar a não ter, mas as histórias que se ouvem são de
pôr os cabelos em pé.
Para os meus lados, grande parte destes clubes são propriedade de criminosos ou
servem de frente a outros negócios menos legítimos, e é fácil metermo-nos em sarilhos
sem darmos por isso. Contam-se histórias de raparigas que desaparecem e de outras
que se tornam viciadas em heroína ou noutra droga qualquer e depois são obrigadas a
prostituir-se, por conta do vício e dos donos do clube, etc. etc. Embora se trate sempre
uma amiga de uma amiga e nunca alguém que se conhece pessoalmente, são histórias
que assustam. E foi por isso, também, que eu achei melhor vir mais para oeste,
pensando que aqui seria diferente.”
“E é?”
“Enfim, até agora, como te digo, se excluirmos a questão do passaporte, não tenho
razão de queixa”, responde, encolhendo os ombros. “A clientela insalubre existe.
São fáceis de reconhecer, especialmente porque alguns até são dos meus lados. Mas
têm-se limitado a ver o espectáculo.”
Ao ouvi-la, penso nos meus amigos da auto-estrada, que voltei a encontrar
precisamente n‟A Gata Perfumada, e pergunto-me se será a esses que ela se
refere, ou se estes não passarão apenas de parvos com instinto homicida.
“Porém, se queres mesmo que te diga, o tipo mais assustador é o dono. Brrr, até fico
arrepiada só de pensar nele. Felizmente, não aparece por lá muitas vezes, e eu nem
sequer lhe fui apresentada. Mas já o vi, e o que vi não me agradou”, diz. “As
raparigas dizem que ele não é antipático, que é cativante até, e que o ar seco e
misterioso que ele tem é muito atraente, mas não me convencem. Eu não gosto do
homem, pronto, acho-o demasiado Bella Lugosi para o meu gosto.”
251
A imagem do dono do clube, de capa preta e incisivos salientes, agarrado a
várias das suas empregadas e sem saber por qual se decidir primeiro, numa
sala de espectáculo decorada com veludo cor de sangue, faz-me soltar uma
gargalhada sonora que atrai a atenção dos outros clientes do restaurante.
“Desculpa. Não deve ter piada nenhuma, mas imaginar Drácula a gerir um clube de
striptease, é como imaginar um miúdo à solta numa doçaria.”
Ela olha para mim com ar maroto, pensa um bocado e depois ri-se também.
Uma gargalhada límpida e cristalina, que se eleva por cima do burburinho
da sala e recebe olhares repreensivos dos clientes menos dados a esse tipo de
extroversões.
“Ouve cá uma coisa que te queria perguntar. Como é que tu falas tão bem francês? E
depois também falas português, inglês, e alemão, pelos vistos. És uma verdadeira
poliglota. Onde é que aprendeste essas línguas todas?”
Ela ri-se e ruboresce ligeiramente.
“Não sou nada poliglota. Não me chames nomes feios!”, atira-me com ar
falsamente ofendido. “O alemão e o inglês eram as línguas obrigatórias na escola
secundária, o português já sabes por que razão o aprendi, e o francês aprendi-o com o
meu pai, que era professor de línguas e completamente apaixonado por tudo quanto
fosse da cultura francesa. Aliás, nós as três, as minhas irmãs e eu, aprendemos
francês com ele. Fez-nos ler Zola, Hugo, Proust, Yourcenair e todos os outros por
quem ele tinha uma especial predilecção. Foi difícil porque ele era muito exigente,
especialmente com a pronúncia, mas acabei por gostar tanto como ele. Hoje, posso
dizer que é quase como uma segunda língua materna.”
“Eu não diria outra coisa, se te ouvisse falar e não conhecesse a verdade.”
252
“Obrigada, obrigada. Em meu nome e em nome do professor, muito obrigada.”
“Ainda ensina, o teu pai?”
“Não”, diz com uma expressão subitamente triste. “Ele morreu há quase três
anos”, acrescenta com voz embargada.
“Lamento sabê-lo. Foi um acidente?”, pergunto, para disfarçar o meu embaraço.
“Cancro. Quando o descobriram já estava muito avançado e durou pouco mais de
dois meses depois disso”, explica e bebe um gole de água para clarear a voz.
“Aliás, foi por ele ter morrido que eu decidi procurar qualquer coisa onde pudesse
ganhar melhor, para poder ajudar a minha mãe e irmãs. Acho que se ele soubesse o
que faço era capaz de não aprovar”, ri-se; um riso nervoso, mais para afastar a
tristeza do que por achar engraçado o que acabou de dizer. “Mas, não falemos
de coisas tristes. Deixa-me antes fazer-te uma pergunta. Como é que tu apareces com
um nome francês e advogado em Portugal?”
“Ah, isso sim, é um mistério”, digo, piscando-lhe o olho. “Não, na verdade não é
nada de extraordinário. Saint-Hervé é o nome de família da minha mãe, e Jakez o
nome que ela me queria ter dado quando nasci, mas que eu só adoptei muito mais
tarde, porque na altura não era possível.”
“Os teus pais não são portugueses? Desculpa, se calhar estou a perguntar demais.”
“Não, de modo nenhum. Não são coisas de que costume falar, mas não tem
importância”, asseguro-lhe. “O meu pai sim, mas a minha mãe não.”
“E não é costume ficar-se com o nome do pai, em Portugal?”
Rio-me.
253
“Não se te pode esconder nada.”
Não querendo dizer-lhe tudo, explico-lhe que preferi ficar com o nome da
minha mãe, porque sempre me senti mais próximo da família dela, e que já
há muitos anos que nada sei do meu pai. Ela não me pergunta mais nada e
muda de assunto.
Conta-me como são as noites do clube, descreve, com humor, alguns dos
habituais que já lá viu e quais os tipos de pessoa que reconhece em alguns
dos que aparecem pela primeira vez. Compara o que já conhece daqui com o
que viu em Viena e com o conheceu em Praga e na cidadezinha onde viveu
até ir para a universidade. Fala da família, da mãe, da irmã mais velha, do
sobrinho, e da irmã mais nova ainda a acabar a secundária. Explica-se bem,
falando com paixão acerca das pessoas, locais e coisas que lhe agradam,
descrevendo-as minuciosamente, dando voz aos sentimentos que lhe enchem
a alma.
Entretanto vamos jantando. Passamos à sobremesa e ao café, eu encho uma
cachimbada e continuamos a conversar sem dar pelo tempo passar. O
restaurante esvazia-se sem que dêmos por isso e quando reparamos é quase
meia-noite e somos os únicos fregueses dentro da sala. Os empregados
olham para nós com um ar de cansaço concentrado, como quem tenta
transmitir-nos, telepaticamente, um comando para nos irmos embora, sem o
quererem dizer por palavras, para não ficarmos com má impressão e
deixarmos de voltar. Não há perigo de tal acontecer, mas não é por isso que
deixamos de fazer o que nos pedem.
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Depois de uma pequena discussão bem-humorada, a Janna acaba por aceitar
dividir a conta a meias. Deixamos uma gorjeta generosa em cima da mesa,
ela pede que lhe chamem um táxi e subimos os degraus que nos separam da
rua, onde ficamos lado a lado à espera que aquele chegue.
“Gostei muito do restaurante. Corresponde exactamente ao que esperava que fosse.
Obrigada por me teres trazido cá”, diz ela, voltando-se para mim e quebrando
um silêncio que parecia ter-se levantado como um muro com a abertura da
porta do restaurante .
“Ora essa, eu é que tenho de agradecer o convite. E, aliás, se há alguém a quem
ambos tenhamos de estar reconhecidos é ao alemão do metro. Se não fosse ele ainda
éramos capazes de andar à procura de sítio!”, contesto, aliviado por lhe ouvir a
voz mais uma vez.
Rindo, ela reconhece que é verdade, e depois como que recordando-se do
que decidimos antes de jantar, diz, com ar falsamente preocupado, que nos
esquecemos de brindar ao ilustre desconhecido, cuja salivante descrição tão
bem nos orientou.
“Ó Diacho! Isso é indesculpável. Vai ser preciso que o façamos da próxima vez. Uma
sugestão dessas não pode deixar de ser recompensada, ainda que in absentia”,
respondo-lhe, rindo e cruzando os braços enfaticamente, enquanto tento
copiar a sua expressão preocupada.
Ela muda de expressão e olha para mim com o mesmo ar que lhe vi hoje no
escritório.
255
“A sério, gostarias de voltar a jantar comigo?”, pergunta-me à queima-roupa, o
ocre dos seus olhos como que fazendo mira sobre os meus.
“Sim, acho que gostaria muito”, respondo-lhe sinceramente, correspondendo
ao olhar. Mas antes que possa dizer mais seja o que for, um táxi pára à nossa
frente com um chiar de travões e o motorista pergunta-nos, através da janela
do passageiro aberta, se foi dali que o chamaram.
Ela sobressalta-se e ri-se, eu rio-me com ela e respondo ao motorista que sim,
estendendo, sem pensar, a mão para abrir uma das portas traseiras da velha
Passat com o motor convertido para metano. Ela agradece, e pensando
provavelmente que a estou a mandar embora (o que não é nada o caso),
entra para o táxi e senta-se, abrindo a janela mal acabei de fechar a porta.
“Mais uma vez, obrigada, Jakez. Gostei muito de jantar contigo”, diz, tentando
manter o contacto e estendendo-me a mão que eu tomo na minha.
“Não recomeces, o prazer foi todo meu”, respondo-lhe em tom divertido, para
não pensar em que gostaria que ela não se fosse embora, e acrescento em
lembrete e à laia de despedida: “Mas vamos ter de o fazer outra vez, para não
deixarmos o pobre do alemão sem o brinde que lhe é devido!”
Ela ri-se novamente, eu largo-lhe a mão e sem saber o que mais fazer, faço
sinal ao motorista que pode seguir, com duas palmadas no tejadilho. Ainda
lhe aceno uma vez, antes de os ver desaparecer atrás de um prédio, e depois
enfio novamente o cachimbo apagado entre os lábios e dirijo-me para a
moto.
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Desligo o alarme com uma pressão do polegar na placa de gel. Tiro o integral
da mala traseira, esvazio o cachimbo de encontro ao muro, guardo-o na bolsa
de cabedal, coloco-a no bolso do casaco e visto, uma vez mais, o fato-macaco
que a lei me obriga a usar, após o que subo para o assento e ponho o
capacete na cabeça com a moto a besourar debaixo de mim. Faço entrar a
primeira e saio do largo para ir apanhar a A5.
Foi uma noite muito bem passada, penso para comigo. Ela é uma rapariga
muito interessante, para além de muito bonita, não esquecendo ainda os
restantes atributos, os quais pude sobejamente admirar sexta-feira passada. E
parece gostar da minha companhia.
Mas, o que o me pergunto agora mais a frio é, o que eu vou fazer com ela –
para além do óbvio, naturalmente. De que nos serve levar as coisas mais
longe, investir tempo e sentimentos, numa relação que vai certamente ser
como todas as outras e que vai acabar como elas também. Se é que passa da
primeira queca, ou sobrevive ao acordar da primeira noite...
Agora que ela tem muito que se lhe diga, lá isso tem. Não creio ter alguma
vez encontrado alguém que gostasse tanto de falar de livros e de cinema
como ela, e que, ainda por cima, gostasse dos mesmos filmes que eu e tivesse
tanta coisa interessante a dizer sobre eles.
Mas o melhor é deixar as coisas por aqui. Ir jantar com ela uma segunda vez
só irá criar expectativas que acabarão, necessariamente, por se frustar e
deixar-nos aos dois magoados.
Reparo que a iluminação pública parece estar bastante reduzida, por falha ou
manobra consciente de poupança de energia, o que dá a esta zona da cidade
257
um aspecto fantasmagórico e me afasta o pensamento da Janna. A esta hora
da noite não há quase carros a circular e tão-pouco se vê alguém na rua, o
que contribui ainda mais para a sensação de estar a conduzir a moto por uma
cidade fantasma.
Passo entre o Colombo e o estádio, dois monolitos cobertos de sombra cujos
contornos enormes se percebem à luz fraca do luar, e sigo pela avenida do
colégio em direcção ao Fonte Nova e à auto-estrada.
Na segunda-circular já há mais lâmpadas acesas, mas nem por isso deixa de
haver poucos automóveis a circular, só os tipos do costume, que se servem
dela como pista de ensaios. Hoje não me apetece entrar em corridas, chegome à direita e deixo que me ultrapassem, seguindo calmamente em direcção
à A5 enquanto vou ouvindo Hawkwind e tento não pensar na Janna.
Há poucas nuvens no céu e a brisa que corre tem pouco de fresco, mesmo a
setenta. O dia que deve amanhecer daqui a poucas horas parece fadado para
ser mais um de grande calor, se é que estes sinais significam isto e não outra
coisa qualquer.
Passo as portagens de Oeiras e a estrada fica ainda mais deserta, à minha
frente não segue ninguém – os que me ultrapassaram, há muito que devem
ter chegado ao seu destino – e atrás de mim só um táxi, lá mais para longe,
seguindo pachorentamente ao ritmo do taxímetro e, ao que parece, com
problemas nos faróis.
As luzes do tejadilho do táxi fazem-me pensar outra vez nela. Rais‟parta a
mulher! Logo tinha de me aparecer agora, que já me tinha habituado a estar
sozinho.
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Procuro afastá-la novamente do pensamento e concentro-me na letra de
„Infinity‟. Mas isso não me ajuda nada, e procuro antes concentrar-me na
estrada. Mantenho-me a setenta até ao fim circulável da A5, antes do ínicio
das obras que, diz-se, a devem levar ao Guincho e ao Cabo da Roca, e depois
ao longo da costa até à Ericeira e a Mafra, para finalmente se ir juntar à A8
em direcção a Leiria. Mas não deve passar de um boato.
Sigo a velocidade moderada por entre as vivendas adormecidas, num
ensarilhado de estradas com pouca luz feitas ruas mal iluminadas, que me
vão levando cada vez mais próximo do mar e da rotunda por onde
finalmente entro na estrada do Guincho.
Chego à garagem, onde sou recebido pela voz sonolenta da locutora de
serviço permanente, ponho a BMW a carregar ao pé do carro e meto-me no
elevador para o décimo andar.
===================¤==================
Depois de entrar e acender as luzes da casa, acabei de me descalçar e de
atirar o blusão para cima de uma cadeira, e estou a deitar as mãos à gravata,
quando ouço tilintar a campainha da porta da frente do prédio. Olho para o
monitor do sistema de vigilância, que permite fazer de conta que não se está
em casa quando não se quer abrir a porta a quem achamos que nos vai
incomodar, mas quem é está demasiado perto para permitir uma imagem
nítida.
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Tenho uma súbita premonição acerca de quem seja e, apesar de tudo o que
pensei e conclui enquanto vinha para casa, com o coração aos pulos como
um adolescente em dia de baile, pergunto:
“Quem é?”
“Jakez! Ainda bem que acertei na campaínha! Sou eu, a Janna. Desculpa vir tocar tão
tarde, Jakez, mas esqueci-me dos meus sacos na mala da tua moto, e preciso de enviar
a prenda para o meu sobrinho amanhã de manhã sem falta.”
Cai-me o coração ao chão.
Os sacos! A porra dos sacos, ela esqueceu-se da porra dos sacos! Foi só isso.
Que imbecil, como pude sequer pensar que poderia ter vindo até aqui por
outra razão. A custo, domino a desilusão que me consome, e respondo.
“Claro, Janna, entra para o átrio. Eu já os vou aí levar.” Abro o trinco da porta
principal, calço uns mocassins e desço à garagem, tiro os sacos da mala da
moto, subo no outro elevador e estou a abrir a porta para o átrio ainda não
passaram cinco minutos.
Ela está encostada ao balcão das caixas do correio, e apesar do ar
preocupado, parece-me ainda mais bonita do que quando a deixei há cerca
de meia-hora.
“Jakez, desculpa, vir assim atrás de ti. Mas o táxi tinha um problema qualquer na
caixa de velocidades e não conseguia passar dos sessenta ou coisa que o valha, daí que
só me tenha restado seguir-te. O motorista fez-te sinais, mas tu não deves ter
reparado...” diz, assim que me vê, avançando na minha direcção. Os seus
260
olhos procuram os meus quando chega ao pé de mim, como para lhes
confirmar o que ela acabou de dizer por palavras.
Eu tento sorrir e digo que não tem importância, pensando que teve muita
sorte em terem conseguido acompanhar-me. Podia ter vindo a duzentos e
ter-me-iam perdido de vista logo à saída de Lisboa, para já não dizer que me
poderiam ter perdido no labirinto de ruas por que passei antes de chegar à
estrada do Guincho.
Mas o sorriso sai certamente amarelo. Ainda me sinto um pouco tolo, por ter
pensado que ela teria vindo bater à minha porta por mim e não para
recuperar o presente para o sobrinho, que eu nem me lembrava que estivesse
ainda na mala. Isto apesar de saber, perfeitamente, que nada do que pensei é
do seu conhecimento.
Dou-lhe os sacos para as mãos, sem tirar os olhos dos dela e sem que ela os
tire dos meus, e ficamos assim parados, a olhar um para o outro, quase nos
tocando mas sem fazermos um movimento, como duas estátuas numa
alameda de jardim.
E, de repente, tendo-a assim tão perto de mim que posso sentir o bafo da sua
respiração, deixo de me sentir tolo. Nesse instante, passo a saber o que
quero. E, o que é mais, vejo nos seus olhos, na sua expressão, em todo o seu
corpo, que ela quer o mesmo que eu.
Devagar, inclino-me na sua direcção, enquanto ela se põe em bicos dos pés
para vir ao meu encontro. As nossas bocas encontram-se algures a meio
caminho, atraídas uma para a outra como por magnetismo. Os meus lábios
tocam os seus num beijo ténue que lentamente nos envolve e toma conta dos
261
nossos corpos, aproximando-nos um do outro até não haver espaço entre
nós. Sinto-a estremecer. Os meus braços movem-se sem me pedir licença,
envolvendo o seu corpo esbelto num enlace que nos cola ainda mais um ao
outro.
Os nossos lábios acariciam-se sofregamente, enquanto os olhos fechados nos
fazem ver cenas de histórias que ainda estão para ser contadas.
Ao longe, muito ao longe, ouço alguém bater num vidro. Primeiro
suavemente, e depois com alguma insistência. Desperto do meu sonho e abro
os olhos, para ver os seus a olhar para mim, com uma ternura e um desejo
que espero que os meus mostrem também.
Ficamos assim, perdidos no olhar um do outro, sem dizer uma palavra,
longe de tudo o que nos rodeia, até que o bater teimoso de uma chave no
vidro da porta nos faz voltar à realidade. Vagarosamente, quase com
dificuldade, consigo despegar o meu olhar do seu, para dar de caras com um
tipo de cabelo grisalho e bigode que, com um sorriso amarelo colado nos
lábios, me faz sinal da porta da rua. A Janna segue o meu olhar e quando se
apercebe do homem, leva a mão à boca em surpresa e volta a cara
atrapalhada, soltando uma exclamação em checo.
Delicadamente, afasto-me dela, quebrando o abraço que nos mantinha ainda
juntos, e vou ver o que o homem quer.
“O senhor, desculpe incomodá-los...” diz ele, num tom que se situa em qualquer
parte entre o jocoso e o genuinamente embaraçado, mal abro a porta da rua.
“Mas eu gostava de saber se a menina ainda vai precisar de mim, porque senão
regresso a Lisboa.”
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Demoro um bocado a perceber quem é o homem e a que se está a referir.
Devo estar a olhar para ele com uma expressão perfeitamente bovina até que,
pelo canto do olho, me apercebo do táxi parado em frente aos degraus da
escadaria de entrada, com o motor ainda a trabalhar.
Volto-me para dentro, para a Janna, para saber o que ela quer que diga ao
homem e, quase antes de ela abanar ligeiramente a cabeça, sei que o vai fazer
e estou a dizer as palavras que já sabia que ia dizer.
“Obrigado por ter esperado. Não, não vai ser preciso levar a senhora de volta a
Lisboa”, tiro uma nota de duzentos da carteira que tenho no bolso de trás das
calças, entrego-lha e acrescento: “Espero que isto cubra a tarifa. Se cobrir, pode
guardar o troco.”
O homem olha para mim com ar incrédulo e vai a dizer qualquer coisa, mas
depois pensa melhor e diz apenas: “Muito obrigado!”
“E uma boa-noite para os senhores...” acrescenta quase de seguida, num tom
que agora é decididamente mais jocoso que outra coisa. Desce as escadas
rapidamente, saltando os degraus dois a dois, enfia-se dentro da Passat e
mete-a em marcha; eu sigo-o com os olhos durante os segundos que leva a
sair do parque, antes de fechar novamente a porta.
A Janna está ainda onde a deixei, ao pé do balcão em madeira que aloja as
caixas do correio. Pego-lhe nas mãos e puxo-a para mim, para o abraço que
fomos forçados a interromper, para o beijo que não acabámos de dar.
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“Tens a certeza que queres ficar? Enfim, agora talvez já seja tarde para mudares de
ideias...”, pergunto-lhe ao fim de alguns minutos – ou terão sido horas; não
sei.
Ela olha para mim, sorri, diz-me que tem a certeza absoluta e conduz-me
pela mão para o elevador.
===================¤==================
Estou deitado na carpete em frente ao écran de parede, recostado num puff e
em algumas das almofadas que tirámos do sofá. As nossas roupas,
espalhadas por todo o lado, dão à sala um ar de desarrumação que,
estranhamente, não me faz qualquer impressão. No ar ouve-se a bobine
Vangelis/Jean-Michel Jarre que ontem pus no gravador.
A Janna sai da cozinha, trazendo, nas mãos, uma bandeja com um bule de
chá e duas chávenas. Ao vê-la caminhar na minha direcção, a silhueta do seu
corpo nu recortada no rectângulo de luz projectado pela porta, tudo em mim
diz que nada poderia estar mais certo do que isto. Todos os meus receios
deixaram de fazer qualquer sentido; sinto-os agora como coisas passadas,
que tiveram a ver com outras pessoas, com outras situações, e que não se
aplicam a esta. Com a Janna vai ser diferente.
“Porque sorris?”, pergunta, quando chega ao pé de mim e se ajoelha para pôr
a bandeja no chão, ao mesmo tempo que me dá, de fugida, um beijo no nariz.
264
“Não tinha consciência que o fazia”, respondo, surpreendido. “Mas será
certamente porque me sinto um homem com sorte, por te ter aqui ao meu lado”,
acrescento, passando-lhe a mão pelos cabelos.
Ela cora ligeiramente e estica-se por cima da bandeja para me dar um beijo
ao de leve nos lábios, trazendo consigo um subtil odor a baunilha que me dá
logo vontade de lhe dar uma dentada.
“Obrigada. Eu também me sinto muito bem ao pé de ti”, diz, quando se volta a
recostar ao sofá, com os cabelos coroados por um diadema de luz, os ombros
muito direitos e as mãos sobre o colo. Tem as pernas nuas cruzadas pelo
tornozelo e dobradas por baixo de si, como a vi sentar-se hoje de manhã,
numa pose que me parece deliciosamente antiquada e extremamente
feminina ao mesmo tempo.
Uma das características que mais me atrai nela é a capacidade que ela parece
ter de conseguir estar completamente à vontade totalmente despida, como
aqui e agora ou na sexta-feira passada no meio de uma sala cheia de gente,
sem, no entanto, perder este recato e estes maneirismos arcaicos que aos
poucos lhe vou conhecendo.
“Não olhes assim para mim, Jakez!”, exclama bem-humorada. “Fazes-me corar.”
“Desculpa. Não era minha intenção incomodar-te. Mas reconheço que me é difícil
tirar os olhos de ti”, digo, ao despertar do transe em que me encontrava.
“Está bem, eu perdoo-te. Mas só porque tu sabes o que dizer para te desculpares”,
esclarece, brincalhona, ao mesmo tempo que estende a mão para me fazer
uma festa ao de leve no rosto. “O chá já deve estar pronto. Queres?”
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“Claro! Eu nunca digo que não a uma chávena de chá.”
“Eu reparei! Tens um armário quase cheio. Entre pacotes abertos em caixas
hermeticamente fechadas e pacotes por abrir envoltos em celofane, todos muito bem
organizados, contei umas quinze variedades. Como não as conhecia todas, e não quis
escolher um chá vulgar, de entre as mais invulgares decidi-me por uma que me
pareceu saber o que era. Formosa Oolong. Espero que seja do teu agrado.”
“Sim, esse é perfeito. Nem demasiado fraco, nem demasiado forte. Seria o que eu teria
escolhido para beber nestas circunstâncias.”
“A sério?”
“Sim, a sério. É um chá ligeiro e aromático, tónico, mas não em demasia, de modo a
manter-nos acordados, mas sem nos forçar a isso.”
“Porquê? Tens receio de não dormir esta noite, é?”, pergunta, brejeira, enquanto,
fingindo não ser nada com ela, vai deitando o chá nas chávenas.
“Não, rapariga, não tenho receio de não dormir esta noite”, respondo, fingindo-me
ofendido e dando-lhe uma beliscadela acima do joelho, que faz estremecer o
braço com que me estende a chávena e quase me dá um banho de chá.
“Ainda bem”, continua, fazendo-se desentendida. “Não quereria que o chá que
eu escolhi fosse responsável por passares a noite acordado.”
“Aha, porque tu não tencionas ter nada a ver com essa possibilidade?”, inquiro, no
mesmo tom.
“Mmm, não”, afirma, distante, enquanto leva a chávena aos lábios e,
distraída, passeia o olhar pela sala. E depois muda completamente de
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assunto, com o mesmo ar de falsa displicência. “Mas, agora reparo; olha lá,
aquilo são tudo filmes, naquelas estantes ali em frente?”
Decido seguir o jogo dela e continuo, também, a fazer-me desentendido.
“Onde? Ah, pois, são filmes são.”
Olha-me com alguma admiração, o ocre dos seus olhos brilhante à luz suave
do candeeiro de mesa, a única lâmpada acesa na sala. “Não admira que saibas
tanta coisa sobre cinema!”
“Olha quem fala! Até parece que tu és uma ignorante sobre o assunto.”
Ela ri-se, um riso cristalino, e abana a cabeça enfaticamente. “Bom, talvez não o
seja, mas eu tenho uma justificação”, diz com ar misterioso.
“Ah, sim; e qual é essa justificação, pode saber-se ou é segredo?”
Ela ri-se novamente.
“Não, não é segredo. Nem sequer é nada de especial. O meu avô foi operador de
câmera e, depois de reformado, foi projeccionista no cinema do sítio onde vivíamos,
por isso, acabei quase por crescer no meio de filmes.”
“Estou a ver; uma espécie de „Cinema Paradiso‟, versão checa.”
Os seus olhos arregalam-se de espanto, antes de soltar uma gargalhada
espontânea que lhe estremece o corpo e faz balancear os seios.
“É verdade. Nunca tinha pensado nisso”, diz, quando consegue parar de rir.
“Mas, olha, original ou não, aí tens a justificação.”
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“E tu nunca pensaste seguir as pisadas do teu avô?”, inquiro, curioso.
“Não. Sabes, o meu avô era um homem muito sensível, criativo, e completamente
apaixonado por cinema, mas, ao mesmo tempo, era muito crítico em relação a tudo o
que se passava na sétima arte. E, embora me transmitisse a paixão que sentia, acho
que, de certo modo, me transmitiu também o azedume que lhe ia na alma”,
responde, pensativa. “Creio que as coisas não lhe correram bem enquanto foi
operador de câmera. Acho que teve problemas com o antigo regime, mas nunca
conseguiu sair do país; ou porque não quis deixar a minha avó, ou porque teve medo,
ou porque não o deixaram; não sei. Por isso, acabou por ficar a contragosto, foi
fazendo o que lhe diziam, sem se aplicar a fundo e sem dar quase nada de si. Como ele
dizia, passou de criador de imagens, a executante das imagens que outros queriam
ver através da máquina manuseada por ele.”
“É pena que se tenha deixado ficar. A julgar pela carreira de alguns dos profissionais
de cinema checos, podia ter ido para Hollywood e talvez feito sucesso também ele.”
Ela olha fixamente para mim durante um momento e depois sorri, um
sorriso triste.
“Sabes, é engraçado que digas isso. O meu avô não tinha uma opinião muito elevada
dos realizadores checos que se mudaram para Hollywood. Provavelmente, resultado
do azedume que sentia para com a arte em geral, não sei. Mas ele costumava dizer
que eles tinham vendido a alma ao Diabo”, ri-se novamente, o mesmo riso
cristalino de há pouco, antes de continuar, em tom mais ligeiro. “Era um
velhote muito simpático e carinhoso, mas com um sentido de humor absolutamente
corrosivo. Agora não me lembro de nenhuma das histórias que contava ou das
críticas que fazia, mas, o sentido geral era de que nenhum deles tinha feito nada de
jeito ou sequer original, depois de ter emigrado. Que lhes tinham dado dinheiro, mas
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que em troca lhes tinham exigido que se desfizessem da criatividade, ou que lhes
tinham dito que se a usassem lhes tiravam o dinheiro outra vez. Sei lá! Eram tantas
as coisas que dizia... Também costumava dizer que, se o cinema é a sétima arte, como
é que alguém pode fazer algum cinema digno desse nome num sítio onde todos
gostam de dizer que trabalham numa indústria, a qual, por definição, é a antítese da
arte. E assim por diante”, termina abanando a cabeça com um sorriso
enigmático nos lábios, num gesto que não percebo se é de apoio ao retrato
que o avô fazia de Hollywood e da indústria de filmes em geral, ou de
desacordo com as opiniões dele.
Depois encolhe os ombros, como que deitando tudo aquilo para trás das
costas, pousa a chávena e o pires na bandeja, inclina-se para a frente para me
dar um beijo na testa, levanta-se e avança na direcção das estantes onde
tenho os filmes.
Em três passadas airosas das suas pernas esguias – lindíssimas, por sinal –
cobre a distância e chega-se às estantes, para tentar distinguir os títulos das
lombadas na fraca iluminação oferecida pelo candeeiro da mesinha. Vendo-a
em dificuldades, deito mão ao comando geral e, apontando-o aos focos por
cima das estantes, faço aumentar a claridade naquela zona.
Ela olha para mim por cima do ombro e agradece-me com um sorriso
carinhoso, que me deixa completamente embevecido.
“Dedicas-te a algum género ou segues algum critério em particular?”, inquire,
distraída, enquanto vai percorrendo com os olhos os títulos dos filmes,
arquivados por realizadores, em ordem alfabética.
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“Nã, nem por isso. Quando comecei a comprar filmes, dediquei-me apenas à ficçãocientífica, que foi, por assim dizer, a minha primeira paixão na sétima arte. Mas
depressa verifiquei que, dos muitos filmes que existem e que vi, no cinema ou em
DVD, há pouquíssimos pelos quais daria dinheiro. É um género muito mal tratado,
infelizmente.
Porém, apesar de a ficção-científica ter sido a minha primeira paixão, a verdade é que,
em cinema, são poucos os géneros de que não gosto. Das comédias aos dramas, das
biografias às aventuras, dos históricos aos filmes de acção, passando pelos de guerra
por via das coboiadas, spaghetti ou não, vais encontrar aí um pouco de tudo. Acho
que, no fim, o único critério é mesmo esse; compro aquilo de que gosto ou que me diz
alguma coisa, independentemente do género em que se situa.”
Acena absorta enquanto continua a sua inspecção dos meus DVD. Agradame vê-la assim interessada nos filmes, pois estes, tal como os livros que li e
leio, são parte de mim e representam muito de quem sou. Por isso, o seu
interesse faz-me sentir bem por dentro. Uma espécie de, se ela gostar dos
filmes, então também gosta de mim, ou coisa que o valha.
Na expectativa de um veredicto favorável, porém, apenas vê-la ao pé de
coisas de que gosto, faz crescer o afecto e o desejo que já sentia por ela. O
corpo que sexta-feira passada, a frio, me pareceu proporcionalmente bonito e
agradável à vista, tal como o de uma estátua ou de um modelo o pode
parecer, parece-me agora, que conheço qualquer coisa da personalidade que
o habita, o corpo mais bonito e desejável que alguma vez vi.
Subitamente, sinto que ter feito amor com ela uma vez não foi suficiente. Mil
vezes não serão suficientes para saciar a sede que sinto nascer em mim.
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Levanto-me lentamente e dirijo-me para ela, que continua entretida com os
filmes. Agora tem na mão a cópia de O Ditador de Chaplin, uma edição MK2
que comprei há alguns anos, e está completamente absorvida pelo folheto.
Aproximo-me e, sem lhe tocar, aspiro profundamente o delicado odor a
baunilha que dela emana e abandono-me a um quase êxtase, perguntando a
mim mesmo que perfume mágico será este que, de uma especiaria que
sempre me pareceu tão comezinha, faz tão potente arma magnética.
Encosto o meu corpo ao seu e envolvo-a nos meus braços pela cintura,
beijando-lhe, leve e repetidamente, o pescoço. Ouço-a suspirar e sinto-a fazer
pressão de encontro a mim.
“Começava a pensar que já não querias nada comigo”, diz, num sussurro de voz
rouca das primeiras horas da madrugada.
Volta-se, o folheto e o disco esquecidos num qualquer espaço livre da
estante, põe-me os braços à volta do pescoço e fixa nos meus olhos as duas
brasas cor de canela que parecem os seus, antes de se erguer em bicos de pés
e me beijar suavemente nos lábios.
Levanto-a e encosto-a à estante, enquanto ela me enlaça com as pernas,
puxando-me mais para si com os calcanhares aninhados na curva das
minhas costas. Beijamo-nos com avidez, como dois esfomeados à solta num
banquete, enquanto os nossos sexos se procuram e se encontram, buscando
refrigério para o desejo que os queima e consome.
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Não sei que horas são.
Não sei quantas vezes fizémos amor.
Pouco me falta já para não saber quem sou.
Estamos deitados na cama em desalinho, a Janna descansa aninhada sobre o
meu peito. Nenhum de nós dormiu ainda fosse o que fosse. Quando não
fazemos amor, conversamos, trocamos impressões, ideias e conhecimentos,
num jogo de pergunta-resposta que nos faz sentir cada vez mais perto um do
outro.
Sinto-a mexer de encontro a mim. Cruza e descruza as pernas numa agitação
crescente, até que atira o lençol para o lado e sai da cama.
“Ohh, mas que coisa! Não queria nada sair de ao pé de ti, mas vai ter de ser. Onde é
a casa de banho?”, diz, apressada, enquanto continua a cruzar e descruzar os
tornozelos, com as mãos sobre o baixo ventre, como que a segurar qualquer
coisa.
Indico-lhe o caminho, e fico a vê-la avançar em passinhos apressados,
pensando para comigo que talvez não fosse má ideia ir fazer o mesmo.
Ouço a descarga e vejo-a aparecer pouco depois, à entrada do quarto,
quando eu estou precisamente a levantar-me.
“Ufa! Foi mesmo à justa, por pouco fazia xixi na cama”, exclama com ar divertido
e aliviado, enquanto sopra para cima a franja que lhe tinha caído sobre os
olhos. “Estou cheia de sede. Posso beber água?”, pergunta.
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“Claro! Estás como em tua casa. Podes beber a da torneira, se quiseres. Mas também
há vittel no frigorífico – os copos estão no armário onde encontraste as chávenas.”
Sopra-me um beijo e volta as costas para seguir em direcção à cozinha. Fico a
observá-la por alguns instantes, pensando, sei lá porquê, que afinal, sem o
querer, tinha mesmo sacado uma striper n‟A Gata Perfumada.
Sorrio para comigo com o absurdo da ideia, embora saiba que é a mais pura
verdade. Ao olhar para a Janna, a última coisa que me passaria pela cabeça é
que ela e a louraça de olhos azuis, que tão vigorosamente dançou ao som dos
AC/DC sexta-feira passada, são uma e a mesma pessoa.
Olhando para ela enquanto caminha pelo corredor em direcção à cozinha,
tento imaginá-la com os cabelos louros que lhe chegavam às nádegas e ora
cobriam e descobriam a tatuagem de uma borboleta, que parecia bater as
asas com o seu andar.
Mas não consigo. Até porque a borboleta não está lá...
“Olha lá, tu não tinhas a tatuagem de uma borboleta no fundo das costas? E os olhos
azuis?”, pergunto, confuso, a caminho da casa de banho.
Da cozinha chega-me uma gargalhada meio tremida.
Quando regresso ao quarto, encontro-a sentada em cima da cama, de pernas
cruzadas, encostada às almofadas que dispôs de encontro à cabeceira. Fazme sinal para me sentar ao pé dela e estende-me uma das garrafas de água
mineral que tem nas mãos.
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“Sentes falta da loura da borboleta, é?”, pergunta com ar divertido, embora lhe
note uma nota ansiosa na voz.
“Não, nem por isso. Apenas reparei nela quando te vi dançar, e agora dei-lhe pela
falta. Porém, se posso mesmo dizê-lo, até prefiro assim”, digo, fazendo-lhe uma
festa na coxa. Ela suspira de alívio.
“Pois, também eu. A borboleta é de pôr e tirar, tal como o são a peruca loura e as
lentes de contacto azuis que uso no clube”, diz, depois de beber um longo gole
da garrafa de plástico. “São o meu uniforme, o meu fato de trabalho, se assim se
lhes quiser chamar. E, enquanto uniforme, tem tanto a ver comigo, como com outra
rapariga qualquer que o queira vestir.” Aninha-se de encontro a mim, e eu
passo-lhe um braço sobre os ombros, antes de continuar: “É que, como sabes –
e creio que sempre soubeste, e é uma das razões porque aqui estou – a Loura que
dança não é a Janna. A Janna não tem nada a ver com a Loura – para além de ser ela
que lhe dá vida, mas isso já é mais do que os tipos que vêem dançar a Loura querem
saber. „Blondes are more fun‟; „as raparigas tatuadas são umas feras‟, e aì por diante,
numa longa linha de descrições e ideias preconcebidas, que não começa nem acaba
naquele tipo de actividade. Ao caracterizar-me assim, eu nada mais faço do que tirar
partido dessas ideias, é só isso.
A maior parte das vezes, danço para uma assistência de tipos semi-alcoolizados, que
vêm para ali descarregar as frustrações do dia e que se estão positivamente borrifando
para quem eu sou realmente. Dou-lhes uma louraça tatuada que se requebra ao som
de hard-rock, deixo-os salivar à vista de uma borboleta que parece voar com o
saracotear das minhas ancas e ouço-os discorrer sobre banalidades, apaixonados que
sempre parecem estar pelo som das suas próprias vozes. Gabam-se da vida que têm,
falam dos carros que guiam, do dinheiro que gastam e que gostariam de gastar
comigo, do bons que são na cama, e eu vou soltando exclamações de admiração com
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uma vozinha parva nas alturas indicadas, mesmo que nada do que dizem seja
verdade – porque, no fim de contas, é só isso que eles querem. E, enquanto for assim,
vão-me chamando para as mesas deles e vão-me pagando a porcaria das danças
privadas que, no fim de contas, é onde eu ganho mais dinheiro, que é o objectivo final
de todo aquele exercício.”
Encolhe-se de encontro a mim, esperando, talvez, que eu diga qualquer
coisa. Mas eu nada digo.
“Achas-me hipócrita, falsa?”, pergunta-me, embaraçada, ao fim de alguns
momentos.
“Porquê? Porque danças vestida com as ideias preconcebidas de quem te veio ver?
Ou porque lhes respondes com a voz e a falta de inteligência que eles esperam que
tenhas, quando te contam uma série de patacoadas, tentando parecer melhores do que
são com vista a conseguir de ti coisas que tu não lhes queres dar? Não, não acho que
sejas hipócrita. Eu faria o mesmo. Se bem que, a mim ninguém me pedisse para tirar
as roupas.”
Ela ri-se, já mais bem disposta. Desencosta-se e, rodando sobre si, volta-se
para mim apoiando as mãos no meu peito.
“Ah, mas aí é que te enganas! Daqui de onde te vejo, acho que tu serias um sucesso
estrondoso.”
“Pois sim, brincalhona. Agora é que acho que estás a ser falsa”, atiro-lhe, meio
admirado com o elogio.
“A sério!”, assegura-me. E acrescenta: “Não sei é se eu gostaria de te saber
rodeado por uma assistência de mulheres esfomeadas... Mas, talvez seja melhor não
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falarmos nisso...” A voz diminui-lhe gradualmente, talvez por se ter
apercebido que o oposto pode ser verdade.
Estendo os braços e puxo-a para mim, ela volta a aninhar-se de encontro ao
meu peito e deixamo-nos descair de encontro às almofadas.
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CINCO
Acordo às dez com o pensamento de que talvez não seja má ideia ir até ao
escritório – considerando que tenho uma reunião com um cliente ao meiodia.
A Janna ainda dorme quando finalmente saio da cama e vou para a casa de
banho tratar de pôr alguma ordem no desgaste nocturno.
O espelho diz-me que me sinto pior do que pareço. Ao menos isso. Talvez
uma chuveirada quase fria me ajude a acordar.
Trato das necessidades fisiológicas matinais, aparo a barba e o cabelo com a
máquina eléctrica – pente um para a barba e cinco para o cabelo – e enfio-me
no cubículo de vidro martelado, onde me esfrego energicamente com uma
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luva de crina ensaboada, enquanto a água cada vez mais fria que cai do
chuveiro me martela o crânio e os ombros e acaba de me despertar.
Já mais refeito, embrulho-me no roupão, esfrego desodorizante nos sovacos e
dou duas borrifadelas ao frasco de perfume, antes de voltar ao quarto para
me vestir.
A Janna continua a dormir. Abro a porta do guarda-fatos o mais
silenciosamente possível e tiro um fato limpo – o de ontem não está
exactamente nas condições ideais, depois de ter sido fumigado no
restaurante e atirado ao chão sem cerimónia quando voltámos para cima.
Escolho uma camisa e uma gravata, tiro roupa interior e meias da gaveta e
estou a preparar-me para sair do quarto, pé ante pé, quando a ouço
despertar.
“Mmm, mas que cheirinho tão bom. És tu que cheiras assim tão bem? Deves ser.
Anda cá, para eu te cheirar melhor.”
Faço-lhe a vontade e sento-me na cama ao pé dela.
“Bom-dia, menina! Dormiste bem?”, inquiro, enquanto lhe faço uma festa no
cabelo em desalinho.
Acena que sim.
“Que horas são? Devo estar virada do avesso! Que horas eram quando
adormecemos?”, diz, espreguiçando-se.
“Bom, queres as tuas respostas uma de cada vez ou todas ao mesmo tempo? Por
ordem, são dez e meia da manhã. Não me pareces virada de coisa nenhuma, aliás, até
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me pareces muito bem. E quanto às horas que eram quando adormecemos, presumo
que te estejas a referir à última vez? Pois, não sei, mas o céu começava a clarear para
os lados de Lisboa.”
Ela sorri.
“Só dez e meia? Então não é assim tão tarde”, afirma, espreguiçando-se mais
uma vez. “Mas, tu já estás lavado e perfumado. Vais sair?”
“Infelizmente, sim. Hoje é um dia normal para mim e tenho coisas que fazer no
escritório. Mas tu podes ficar, se quiseres. Dorme, descansa; faz o que te apetecer.
Quando quiseres sair, basta fechar a porta, ela tranca-se sozinha.”
Abana a cabeça. “Não, eu também não posso ficar. Preciso de ir aos correios enviar
a encomenda ao meu sobrinho, senão ele não a recebe a tempo.”
“Se é só por isso, não vale a pena saíres de casa. Dá-me o pacote que eu envio-te
isso.”
Olha para mim espantada.
“A sério? Tu fazes isso por mim?”
“Claro. Qual é o espanto?”
“Não sei. Parece-me uma coisa tão chata, que não me passaria pela cabeça pedir a
ninguém para o fazer por mim.”
“Não me parece que seja assim tão chato. Anda, dá-me lá o pacote e diz-me como
queres que o mande.”
280
Ela salta da cama nua e apressa-se a ir buscar o pacote do sobrinho. Ao vê-la
caminhar assim ainda penso em telefonar à Mónica para cancelar a reunião,
mas depois controlo-me.
Começo a vestir-me, para não deixar à vista o sinal do meu descontrolo
momentâneo, e quando ela regressa já vou nas calças. Sento-me na cama a
calçar as meias, enquanto a Janna me explica que tipo de correio quer e qual
a morada para onde devo enviar o presente.
“Tens espectáculo, hoje?”, pergunto-lhe quando ela acabou de me dar
instruções.
“Sim, hoje sim”, diz, e fica-se por ali.
“A que horas acabas?”
“Às três. Porquê?”
“Porque eu gostava de te ver depois, tontinha! Ou achavas que ia deixar-te ir embora
assim tão facilmente?”
Ela ri-se e bate as palmas de contentamento, quase como uma menina
pequena.
“Eu também não quero que tu me deixes ir embora, porque eu não quero ir-me
embora”, afirma com segurança, agarrando-me nas orelhas e dando-me um
sonoro beijo nos lábios.
“Ainda bem que ambos estamos de acordo quanto a isso, assim poupa-se muito tempo
e discussões”, digo, abraçando-a e sentando-a no meu colo. “Olha, vamos fazer
assim. Eu não digo que te vou esperar porque amanhã tenho um julgamento cedo e
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alguma coisa vai ser preciso que durma, mas, presumo que saibas conduzir?” Ela
hesita ligeiramente, mas depois acena que sim. “Vou deixar-te as chaves do
carro – se a polícia te parar, os documentos estão dentro do porta-luvas. Tu serves-te
dele para o que precisares, e depois regressas aqui quando acabares a tua actuação no
clube. A garagem reconhece o carro e abre automaticamente a porta quando te
aproximares, por isso não tens de te preocupar com outras chaves. O elevador e a
porta da rua funcionam com o mesmo código, que é este...” Tiro a caneta de feltro
preta que tenho ao pé do telefone da mesinha de cabeceira e, à falta de papel,
escrevo-lho na mão. “E pronto, tens tudo o que precisas para estares à tua vontade.
Agora descansa. Eu tenho de acabar de me vestir para me pôr a andar.”
Ela sai do meu colo e senta-se na borda da cama a ver-me vestir.
Quando acabo inclino-me sobre a Janna para lhe dar um beijo de despedida,
vacilo momentaneamente perante um ataque concentrado de radiações de
baunilha e saio do quarto a correr para não me deixar ficar. Atrás de mim ela
ri-se bem-disposta e vai para a casa de banho.
Já vou a sair a porta da rua, quando me lembro que ela não sabe que carro é
nem qual a matrícula. Escrevo-lha num papel que deixo na mesinha de
entrada ao pé da mala, em que lhe digo também o andar da garagem onde o
encontra.
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Despachei-me do tipo que veio ver-me ao meio-dia a tempo de ir buscar a
Catarina e de a levar a almoçar ao restaurante de Telheiras onde já nos
tornámos fregueses habituais.
Ela achou que eu estava com ar satisfeito, rejuvenescido até (o que me fez rir
para dentro), e perguntou-me se tinha acontecido alguma coisa de invulgar.
Eu pensei por um bocado, mas depois achei melhor não lhe contar nada
acerca da Janna.
Afinal de contas, sou pai dela, e não me sinto assim muito bem a falar-lhe de
uma namorada nova que arranjei. Por mais que goste dela, a verdade é que
conheço a Janna há pouquíssimo tempo, e isso talvez seja difícil de explicar à
Catarina. Para já não mencionar como explicar-lhe o que ela faz.
Resolvi deixar passar mais uns dias antes de lhe dar as novidades.
Separámo-nos ao pé do portão verde das traseiras, que a velhota do costume
veio abrir para ela entrar. Antes de desaparecer por detrás do muro assoprame um beijo, que eu apanho com a mão, para depois o pôr na cara e lhe dizer
adeus.
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A Mónica também acha que estou com ar rejuvenescido! Decididamente,
tenho de passar mais noites em claro; parece ser a coisa a fazer se se quer
manter o ar juvenil.
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Passo a tarde ocupado com faxes e telefonemas até perto das cinco, altura em
que me aparece um tipo de quem já não me lembrava de todo e que me
entretém até mesmo às seis, hora em que tenho de sair a correr para ver se
consigo chegar a tempo ao treino de shorinji-kempo.
Estes almoços com a Catarina desorganizaram-me a vida toda. Não que
quisesse voltar à relação não existente que tínhamos antes, mas que a minha
agenda desportiva cuidadosamente planeada foi às malvas, isso foi.
Enfim, que assim seja. A verdade é que também não o há-de ser por muito
tempo, quando ela se mudar lá para casa os almoços deixam de fazer
sentido, porque passaremos a estar muito mais tempo juntos.
Recebi hoje à tarde a confirmação de que foi oficialmente comunicado à
Mima o meu pedido de custódia da Catarina. Achei estranho que a coisa
tenha sido tão rápida, mas isso só significa que os tribunais estão a funcionar
melhor, o que em si não é mau.
A nota não me diz quando lhes foi efectivamente comunicado, mas é
possível que ainda tenha sido ontem. O que significa que aquilo que a
Catarina ouviu, podia bem ter a ver com o pedido.
Mas isso não explica a história do restaurante e da moto de que ela me
falou... Eles tê-la-ão sob vigilância? Porque, se foi isso que ela ouviu, só
poderiam estar a referir-se a eu tê-la levado a jantar fora no sábado. E o tê-la
sob vigilância explicaria também a visita do Gonçalo...
Acho que, se chegou ao ponto de eles terem a miúda sob vigilância, então
está mesmo na altura certa de a tirar lá de casa. É claro que não posso
284
confrontar a Mima com o que sei, ou sequer admitir que levei a Catarina a
jantar, porque senão meto-a em maus lençóis, mas o melhor será falar com a
Mima rapidamente e pôr tudo em pratos limpos a respeito do pedido. Para
que, pelo menos, eles saibam que eu estou de olho neles, para o caso de
resolverem fazer alguma coisa estúpida, tal como levá-la daqui para fora.
Saio do treino quase às nove da noite, esfomeado, e resolvo ir jantar antes de
regressar a casa. Escolho um restaurante ao pé do ginásio, mas entro sem
olhar para a ementa primeiro, pelo que, quando olho para ela depois de
sentado e sem vontade de me levantar outra vez, acabo por só pedir uma
sopa e uma salada mista para enganar a fome, pensando que me posso
abastecer quando chegar a casa.
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Estou sentado no sofá a ver os noticiários das dez. Em fundo tenho a bobine
Ry Cooder, cujo ambiente tristonho serve às mil maravilhas de suporte às
notícias que o pessoal das redacções dos canais escolheu para nos oferecer
hoje.
Como de costume, por falta de paciência para ouvir um noticiário de fio a
pavio, vou saltando de um canal para outro e parando onde me interessa.
O tipo que me sorri do écran com ar pesaroso está a falar da situação em
Moçambique.
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“...onde a contagem de mortes relacionadas com a epidemia continua a crescer, dado
que o país continua sem ter acesso aos medicamentos genéricos de combate à doença,
devido à nova moratória imposta pela OMC, a pedido das empresas farmacêuticas
que se considerariam financeiramente prejudicadas pela possível importação e
consequente distribuição de genéricos aos doentes afectados. Recorde-se que
Moçambique não tem possibilidade de produzir os genéricos em questão, devido a
uma anterior proibição...” zap! Passo a um tipo vestido de caqui e ar suado,
que faz um directo de algures no meio de um deserto. “... forças de ocupação
reagiram com violência a mais este atentado, fazendo buscas em todas as casas das
várias áreas residenciais adjacentes, tendo prendido diversos habitantes e
alegadamente capturado todos os responsáveis, bem como elementos de outras
alegadas células terroristas que operariam a partir das referidas áreas...” zap! Uma
loura bronzeada, de longos caracóis, com decote generoso para um seio farto
e tendo o pescoço rodeado por um colar de fantasia, sorri-me com ar
cúmplice “...seu solar de Alcochete, chegou acompanhado de Isabel Fernandes,
vencedora da última edição de „Harém‟ que trazia vestido um modelo Lagerfeld que,
segundo disse, lhe foi oferecido pelo seu par especialmente para a ocasião. O recémfeito Conde de Alcochete, o industrial Meire Silva, declinou comen...” Este, então,
não me diz mesmo nada, zap! Vou parar a uma morena de cabelo curto e
casaco abotoado, como que a antítese da anterior, com o ar grave das notícias
sérias: “...ONG baseada na Suécia, de combate ao tráfico de mulheres, que afirma em
comunicado que este tráfico tem aumentado assustadoramente durante os últimos
dezoito meses, com a entrada em campo de um ou vários novos traficantes. Estes não
só operariam por conta própria, como teriam também acordado contratos de
fornecimento com os vários grupos de marginais que anteriormente procuravam as
vítimas para as explorarem eles mesmos. O alerta foi dado em conferência de
imprensa esta manhã em Gotemburgo. A KvinnorVård urgiu a Europol, a Interpol e
286
as polícias nacionais a uma estreita colaboração, nomeadamente nos países de
provável destino das vítimas, pois acredita estar-se perante uma nova forma de
exploração de mulheres, bastante mais sofisticada e sórdida do que as tradicionais
casas de prostituição geridas por criminosos.
Passando à actualidade nacional; o muito discutido caso das fugas ao fisco dos clubes
de futebol e suas ligações a membros do actual governo, voltou esta manhã a ser
mencionado pelo Secretário de Estado...” zap! “...ter-se gorado mais uma tentativa
de restabelecer a paz, quando ao chegar a um aeroporto de Nova Iorque para
participar na conferência de paz organizada pela ONU, a inteira delegação da
oposição foi declarada persona non grata e impedida de entrar em território
americano sob ameaça de prisão, com base na nova lei contra actividades terroristas
aprovada esta semana por decreto presidencial, medida que foi criticada apenas por
alguns membros do Congresso. Recorde-se que esta nova lei tem alcance retroactivo e
se aplica a toda e qualquer organização que seja, ou tenha sido, considerada terrorista
por um governo norte-americano. Contra os protestos ouvidos na Câmara dos
Representantes acerca da aprovação por decreto presidencial, William Snyder, portavoz da Casa Branca, disse, e passo a citar: „os Estados Unidos estão em guerra contra
o terrorismo mundial, uma situação de excepção que necessita de medidas de
excepção‟, fim de citação. Esta é uma guerra que, recorde-se, já vai no seu oitavo ano,
apesar de algum resultado palpável estar ainda para ser visto. A respeito da
declaração de toda a delegação como persona non grata, William Snyder não quis
fazer comentários e declarou apenas que o assunto estava em análise, mas que os
Estados Unidos têm o direito de recusar entrada no seu território a todos os
presumíveis terroristas, tenham eles passaporte diplomático ou não.
De Bruxelas continua a não haver qualquer comentário oficial ao comunicado
emitido na semana passada pelas delegações da Polónia, Lituânia e Hungria.
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Interrogado pelos jornalistas à saída de uma reunião do governo, o primeiro-ministro
declarou que todos os membros da União tinham o direito de tecer críticas à mesma, e
de a abandonar se assim o desejassem, especialmente se se sentissem defraudados em
relação a promessas feitas pela mesma União. Instado a responder se concordava com
a atitude dos países signatários e se Portugal os poderia eventualmente seguir, o
primeiro-ministro respondeu apenas não querer fazer comentários. No Parlamento
Europeu foi hoje aprovado não tomar, enquanto prosseguirem as investigações,
qualquer medida contra os Eurodeputados cujos nomes apareceram, na semana
passada, mencionados em supostos ficheiros de clientes, apreendidos durante uma
rusga da polícia belga a uma casa de prostituição que funcionaria num palacete dos
arredores de Bruxelas...” zap! “...Câmara de Moscovo, acompanhado do pastor Piotr
Malkovich da Igreja da Verdade Eterna, deu hoje nova conferência de imprensa em
que, mais uma vez, criticou os organizadores da manifestação que teve lugar
segunda-feira passada em Moscovo, em frente ao edifício que serve de local de culto à
dita igreja, em Kolseboy Prospiekt, a famosa avenida moscovita onde também está
situado o Kremlin. Leonid Pavlov declarou ter novas provas, fornecidas pela própria
Igreja da Verdade Eterna, que alegadamente demonstrariam, sem margem para
dúvidas, que os manifestantes estavam efectivamente armados e tinham em vista não
apenas atacar o local de culto, mas que a manifestação era o início de um movimento
que tinha por objectivo último derrubar o governo. De acordo com a tradição
estabelecida de há alguns anos a esta parte, as provas não foram exibidas ou
fornecidas aos jornalistas presentes, tendo-lhes apenas sido dito que as mesmas
existiam, que tinham sido declaradas fidedignas por especialistas não nomeados, mas
que não podiam ser exibidas por razões de segurança nacional. O Presidente da
Câmara de Moscovo, eleito para o cargo há cerca de quatro anos, foi alvo de muitas
críticas por altura da campanha eleitoral, por alegadamente ter recebido contribuições
avultadas da Igreja da Verdade Eterna, embora quer ele quer a Igreja o tenham
sempre negado...”
288
O telemóvel dá sinal de si. Pesco-o de dentro do bolso do casaco, que deitei
no sofá a meu lado. O visor exterior não dá sinal, quem me telefona não tem
acesso a uma micro câmara. Mesmo assim, resolvo atender.
“Saint-Hervé.”
“Pai, sou eu, a Catarina. Não sei onde pus o telemóvel. Estou a telefonar do de casa.”
“Olá, filha. O que é, aconteceu alguma coisa?”
“Não, nada. Mas precisava de falar contigo ainda hoje. A mãe e o Gonçalo foram
jantar fora com umas pessoas, por isso não há perigo de alguém me ouvir.”
“Está bem, Catarina. Diz lá então.”
“Falei com a Filipa e combinei com ela dizer que ia passar o fim-de-semana lá em
casa...”
Eu ouço o que ela diz, mas estou ao mesmo tempo a tentar descobrir como é
que eu lhe vou contar da Janna, quando ela me disser que quer ficar aqui em
casa. Merda! Não me lembrei que tínhamos combinado passar o fim-desemana juntos. Julguei que ia ter mais tempo.
“...e então pensei que tu podias ir buscar-me lá a casa amanhã depois do jantar. Os
pais dela não vão lá estar, por isso, só mesmo ela é que vai saber onde eu estou. O que
achas?”, pergunta, ansiosa.
“Acho bem, filha. Olha, mas amanhã almoçamos juntos na mesma, ou não?”,
sugiro, pensando que sempre posso ir dizendo qualquer coisa acerca da
Janna durante o almoço.
289
“Claro, se tu não te importares. Como vamos passar o fim-de-semana juntos pensei
que talvez não quisesses almoçar amanhã.”
“Ora, que ideia, Catarina. É sempre um prazer almoçar contigo.” Especialmente
quando preciso desse tempo para te falar de uma pessoa que conheci, de
quem gosto muito, e de cuja existência tu não fazes a mais pequena ideia,
penso com os meus botões. “Encontramo-nos à mesma hora, no sítio do
costume?”
Ela ri-se.
“Como se eu tivesse outra alternativa! Lá te espero, pai. Beijinhos. Boa-noite.”
“Adeus, filha. Dorme bem.”
Bonito serviço! Afinal não tenho tempo nenhum para deixar avançar as
coisas com a Janna. Mas também não lhe quero dizer que não pode ficar aqui
em casa, só porque a Catarina vem cá passar o fim-de-semana. Não, isso
seria cruel, para não dizer também que seria de muito má educação.
Pouco tempo ou não, eu sei que gosto dela. E estou quase certo que ela sente
o mesmo por mim, por isso, creio que não haverá problemas. Vou falar com
ela quando chegar.
A Catarina, bom, a Catarina, terei de a converter amanhã durante o almoço.
===================¤==================
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Acordo quando a ouço abrir cuidadosamente a porta da rua e pousar uma
mala no átrio de entrada. Reparo, com alguma ternura, que tenta não fazer
ruído, mas eu tenho o sono leve; hábitos de outros tempos.
Passa quinze minutos na casa de banho e depois vem enfiar-se
silenciosamente na cama ao meu lado, aconchegando-se de encontro a mim.
As suas formas macias cheirando levemente a baunilha, provocam no meu
corpo a reacção esperada, e fazemos amor suave e lentamente sob a parca luz
do luar que entra através dos estores meio corridos, sem todavia dizermos
uma palavra um ao outro.
Ouço-a soltar um último suspiro, estremecendo ao libertar-se da excitação do
orgasmo, e sinto que os seus braços me rodeiam o pescoço, enquanto os seus
tornozelos enlaçam os meus e me mantém colado a ela.
“Obrigada. Era mesmo disto que eu precisava”, sussurra-me ao ouvido na quase
escuridão do quarto. Sinto os seus lábios beijar fugazmente os meus, ao
mesmo tempo que os seus braços que me cingem ainda mais contra si,
prendendo-me ternamente.
“Sabes, tenho boas notícias!”, diz, excitada, num repente. “Falei hoje com o
gerente acerca do passaporte. Telefonei-lhe ao princípio da tarde e disse-lhe o que
tínhamos combinado, que precisava dele para ir ao consulado. Estava à espera de ter
de o convencer, mas não, ele não se fez nada rogado; disse que estava bem, que o ia
mandar buscar e que o depois mo daria. E já o tenho! Não é fantástico?”
291
“Sim, isso são realmente boas notícias. A questão que se pode pôr é, porque é que ele
se terá armado em parvo, quando lho pediste a primeira vez...”, interrogo-me,
fazendo o papel de advogado do Diabo, que creio competir-me.
“Sei lá! Se calhar, porque é mesmo parvo. O que interessa é que o tenho na mão, e
agora já não lhe tornam a pôr a vista em cima!”, exclama, entusiasmada,
abraçando-me com mais força. “Ohhh, sinto-me tão feliz que tu nem imaginas!”
“Ainda bem, Janna. Fico muito contente por te saber assim”, digo-lhe ao ouvido, e
depois, sentindo-me ligeiramente idiota por o estar a fazer, aproveito a deixa
dela e continuo, fazendo-lhe uma festa no cabelo sedoso. “Mas, sabes, eu
também gostava de te dizer umas coisas.”
Não sei se foi o tom em que o disse, ou se o meu corpo deu sinal do algum
embaraço que penso sentir em ter de falar disto tão à pressa, mas tenho a
sensação de que ela se retrai e que o seu corpo, ainda que continuando
chegado ao meu, deixou todavia de o estar.
Este afastamento imaginário faz-me pensar que talvez deva procurar outra
posição para lhe falar da Catarina e do fim-de-semana que se aproxima. Com
cuidado, saio de cima dela e estendo-me a seu lado, apoiado no cotovelo
esquerdo. Ela volta-se para mim, alguma ansiedade estampada no rosto
bonito.
“Rhhm, bom, eu ainda não te tinha dito, porque, enfim, não calhou; mas...”, começo,
mais atrapalhado do que pensei estar e sem que, racionalmente, consiga
encontrar qualquer razão para isso. “...sabes, é que eu sou, quero dizer, fui,
casado durante algum tempo e, pois, bom, na verdade, tenho uma filha, ou melhor,
até tenho uma filha e um filho, mas isso já não vem ao caso. Pois, enfim, o que
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interessa realmente é que as coisas parecem não estar a correr muito bem entre a
minha ex-mulher e a minha filha e eu até já pedi para ficar com a custódia; mas,
enquanto isso acontece e não acontece, ela vai começar a vir passar os fins-de-semana
comigo, sempre que tal for possível. E, por isso, eu queria perguntar-te, enfim, se
queres continuar a ficar cá em casa enquanto ela aqui estiver, e se não te importas de
ficar, porque, bom, eu gostava que ficasses e que a conhecesses...”
A sua expressão vai-se modificando num crescendo de ansiedade, à medida
que eu vou falando; ansiedade essa que, a partir de uma certa altura, se
converte em incredulidade e espanto, que aumenta com cada palavra que
profiro.
De súbito, estende a mão e põe-me um dedo à frente dos lábios; dizendo,
shhhh, quase num sussurro. Vejo que tem os olhos húmidos, duas gemas de
âmbar, brilhantes neste lusco-fusco acinzentado que nos envolve.
Depois abraça-me ternamente e dá-me um beijo nos lábios.
“Queres, então, que eu passe o fim-de-semana contigo e com a tua filha?”, pergunta
baixinho passado um momento.
“Ehh, pois. Não te importas?”
Ela quase chora e ri ao mesmo tempo. Eu sinto-me um bocado parvo, sem
perceber bem porquê.
“Não, tonto, não me importo nada! Que querido. E eu a pensar que...”, interrompese subitamente, cortando a frase a meio. “Vou gostar imenso de conhecer a tua
filha. Que idade é que ela tem? Achas que vai gostar de mim?”
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Respondo-lhe quase sem pensar.
“A Catarina faz dezasseis anos no mês que vem e, sim, acho que ela vai gostar de ti.
Ainda não lhe disse nada, mas acho que também ela vai gostar muito de te conhecer”,
digo, para a sossegar e procurando sossegar-me também a mim. Na verdade,
não faço a mais pequena ideia de qual vá ser a reacção da Catarina, ao dizerlhe que, afinal, tenho uma namorada e que ela também vai passar o fim-desemana connosco.
A Janna ri de contentamento, um riso que a faz parecer uma miúda pequena
que sabe que vai receber um presente. Passa as costas de uma mão pelos
olhos, diz qualquer coisa em checo, e depois continua.
“Acho que tu não fazes a mais pequena ideia de como me sinto feliz! Primeiro
recupero o passaporte, e agora tu dizes que me vais apresentar à tua filha. Sente o
meu coração. Bate tão depressa que dir-se-ia prestes a rebentar”, pega na minha
mão e coloca-a sobre o lado esquerdo do peito, de onde se ergue a forma
erecta e algo rugosa do mamilo, destacando-se da macieza do seio e vindo de
encontro à minha palma, como se para me transmitir a batida acelerada do
seu coração.
O seu seio pequeno cabe perfeitamente na curva da minha mão aberta.
Acaricio-a levemente; ouço-a suspirar e logo colo os meus lábios aos seus
num beijo sôfrego, empurrado pelo desejo que sinto de novo começar a
dominar-me.
Fazemos amor mais uma vez. Os nossos corpos parecem diluir-se um no
outro, como vagas que se atiram contra a costa num ritmo crescente, até que
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um arroubo final nos deixa cansados e extasiados, deitados lado a lado nos
lençóis em desalinho.
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Pouco ou nada mais dormimos depois disso. A Janna pediu-me que lhe
falasse da Catarina e do Martim; a seguir perguntou-me porque é que eu e a
Mima nos tínhamos separado, e eu disse-lhe que, na verdade, não o sabia.
Quase a medo, perguntou-me também se eu ainda gostava dela; mas eu
respondi-lhe que não sem hesitar, o que a parece ter deixado algo sossegada.
Perguntou-me se tinha uma fotografia da Catarina que lhe mostrasse, mas,
meio embaraçado, tive de lhe dizer que não. Pediu-me, então, que lha
descrevesse, o que fiz, dizendo, entre outras coisas, que a achava muito
parecida com a minha mãe quando era nova. Ao que me pediu que lhe
falasse dela, e, sem saber nem como nem porquê, dei por mim a falar-lhe de
coisas de que nunca tinha falado a ninguém.
Falei-lhe do homem que me deu metade do meu património genético; de
como conheceu a minha mãe, a fingiu amar, lhe prometeu o mundo, e de
como depois a abandonou quando ficou grávida de mim, dizendo-lhe que
não passava de uma putéfia francesa, e papista ainda por cima.
Falei-lhe de como o meu avô, talvez escandalizado com o comportamento do
filho e querendo provavelmente penitenciar-se, ajudou a minha mãe durante
os meses de gravidez e de como cuidou dela e de mim, numa altura em que
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ser-se mãe sem se ter um marido ainda era bastante mal visto, tendo-me
inclusivamente registado como seu filho, para que, em tempos de tão
brandos costumes, eu não ficasse marcado como filho de pai incógnito.
Falei-lhe de como o meu pai e a minha avó tentaram impedir que nos fosse
entregue o legado que o meu avô nos deixara em testamento, e de como
tentaram mesmo conseguir a anulação da escritura de doação do
apartamento, que ele tinha celebrado a favor da minha mãe poucos meses
antes de morrer, apresentando-o como incapaz. Tudo sem sucesso,
felizmente.
Enfim, contei-lhe todos os detalhes sórdidos da história dos nossos primeiros
anos, e de como o meu progenitor procurou sempre fazer a vida negra à
minha mãe – que estava completamente entregue a si própria, pois tinha,
teimosamente, decidido não regressar à Bretanha nem pedir nada à família.
Mas acabou por não poder resistir às pressões a que estava a ser sujeita e
pediu ajuda ao irmão mais velho, o meu tio Stephane, fazendo-o jurar
silêncio, e este – alarmado com o que a minha mãe lhe contou – veio por aí
abaixo e explicou, ao que parece bem, ao Dr. David Wentworth de Seabra
Vilela o que lhe poderia acontecer se não deixasse a irmã e o sobrinho em
paz.
Contei-lhe, finalmente, da minha ignorância de toda a história até muitos
anos depois – pensara sempre que o meu pai morrera antes de eu nascer, e
foi só já na secundária que uma conversa de „homem para homem‟ com o
Stephane, me ajudou a perceber que, afinal, as coisas não se tinham passado
bem assim – e de como o colmatar dessa ignorância, me levou a querer cortar
todos os laços passíveis de serem cortados, com aquele que foi o meu pai
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biológico, mesmo à custa de cortar a única ligação visível que ainda tinha ao
meu avô, o apelido Seabra Vilela.
Contei-lhe tudo isto e senti-me estranhamente liberto. Como se me tivessem
tirado um peso enorme de cima. Por sentir que, finalmente, encontrei alguém
a quem posso confiar toda esta história.
É verdade que o Leonel sabe quase tudo o que se passou – depois de falar
com o Stephane, ele foi o único com quem discuti o assunto – mas, nem ele
sabe toda a história, nem tão pouco me estou a ver a contar-lha como a contei
à Janna. Há coisas que só à mulher que se ama se contam...
Há coisas que só à mulher que se ama se contam.
Foi precisamente a certeza disso que esta madrugada, ali deitado na cama
desfeita ao lado dela, tomou conta de mim.
Eu amo a Janna.
Apesar de a ter visto pela primeira vez há pouco menos de duas semanas,
apesar de termos passado juntos apenas as poucas horas que passámos.
Eu amo a Janna. Sei-o com a mesma certeza que também me diz que estou
vivo.
Porém, apesar disso, achei mais ajuizado nada lhe revelar dos meus
sentimentos em relação a ela. Tive medo de a assustar. Tive medo que ela
pensasse que estou a avançar muito depressa. Tive medo, enfim, que ela não
sentisse o mesmo por mim.
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Saí de casa mais cedo do que costumo, deixando-a adormecida no quarto,
sem conseguir realmente livrar-me deste receio que me tem atormentado
desde então. E se ela não sentisse realmente o mesmo por mim? Claro que
lho posso perguntar. Mas, e sinto-me ridículo por o admitir, tenho medo de
saber a resposta.
Tenho passado a manhã no meu gabinete, com a porta fechada, a transferir
papéis de um lado para o outro da secretária, abrindo e fechando pastas e
escrevendo notas sem nexo em folhas de papel de rascunho que rapidamente
vão parar ao caixote do lixo, num corrupio de actividade estéril, que só serve
o propósito de me manter ocupado com alguma coisa inócua, dado que
pareço não conseguir pensar em nada de concreto, embora tenha imenso que
fazer.
Estou a pousar o auscultador do telefone depois de ter falado com a Raisa,
que ligou para me dizer que tinha conseguido emprego no ginásio, que
estava muito contente e que me queria oferecer um jantar um dia destes,
quando ouço as unhas da Mónica acariciar ritmicamente a madeira da porta
e pouco depois vejo-a abrir-se. Entra e vem até à minha secretária.
“Dôtorjácquess, está mal disposto? Preocupado com alguma coisa?”, pergunta,
interessada.
“Não. Não, Ja... Mónica, não estou. Porquê? Tenho estado aqui enfiado toda a
manhã, não é?” Ela acena que sim, com um trejeito de lábios que me diz que
não acredita no que lhe digo. “Não, sabe, tenho estado aqui a preparar umas
coisas e precisava de estar sozinho. Nada de especial.” Minto com um encolher de
ombros e um sorriso, sabendo perfeitamente que ela sabe que lhe estou a
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contar uma mentira, mas faz de conta que não se apercebe. “Mas obrigado por
ter perguntado.”
Ela toma o meu agradecimento como sinal de que não quero continuar a
falar daquilo, o que corresponde, de certa forma, à verdade e faz meia volta,
deixando-me outra vez sozinho.
A Mónica e eu damo-nos muito bem – apesar daquela insistência dela em
continuar a tratar-me por „dôtorjáquess‟, mesmo depois de lhe ter dito várias
vezes que o meu nome é só Jakez – e as qualidades que mais aprecio nela
são, precisamente, esta empatia e esta capacidade de compreensão, aliadas a
um completo desprezo pela bisbilhotice e um desinteresse total pela parte da
vida dos outros que só a eles pertence.
===================¤==================
A minha linha directa dá sinal quando já estou de saída para ir almoçar com
a Catarina. Ainda penso em não atender, mas depois, penso que pode ser ela
e levanto o auscultador.
“Saint-Hervé.”
“Está!...” diz uma voz irritada. “Olhe, fala da Comissão para os Bons Costumes.
Temos aqui uma denúncia contra si. Por andar a meter-se com raparigas imigrantes
que tentam apenas fazer a sua vida... Ouça lá, você não tem vergonha?”
Só faltava mais este.
299
“Olá, Leonel”, digo, fingindo enfado. E nada mais, embora sinta alguma
curiosidade em saber como ele descobriu.
“Então, menino. Grande história, hem? „Ah, não, eu não ligo nada ao strip. Eu até
nem ligo nada a gajas. Sou um asceta, vivo para meditar.‟ Pois sim.” Vai dizendo
com ar de gozo. “E depois, vai e saca uma das raparigas mais bonitas que lá
estavam! És um grande malandro, é o que tu és.”
Eu rio-me.
“Como é que descobriste?”, agora que já se riu às minhas custas posso
perguntar-lhe.
“Foi a Tatiana. Ontem fui com a Tuuva ao clube, ela esteve a conversar connosco e
contou-nos o segredo”, esclarece, divertido.
“Enfim, eu não diria que se tratava de um segredo. Não andei foi propriamente a
contar a toda a gente.”
“Eu sei. Mas para ela tinha mais piada que fosse um segredo. Não sabes como elas
gostam de revelar os segredos umas das outras?”, continua, no mesmo tom. “Mas
isso pouco importa. O que eu queria era dar-te os parabéns, pá! Finalmente,
caramba! E, segundo disse a Tatiana, as coisas vão de vento em popa. Ela tem ficado
em tua casa, não é?”
Esta é parte que eu detesto acerca de ter amigos. Conseguem sempre saber
mais da nossa vida do que nós gostaríamos que se soubesse.
300
Rio-me novamente e digo-lhe que sim – pois embora não gostando de falar
da minha vida amorosa, não tenho, todavia, qualquer razão para negar – e o
Leonel, conhecendo-me já de ginjeira, deixa ficar o assunto por ali.
“Bom, enfim, olha, fico contente por ti, rapaz. Ouve cá, não vem nada a propósito,
mas sabes se já saiu a nova caixa blu-ray com os quatro Indianas?”
Conversamos ainda durante alguns minutos, mas depois lembro-me das
horas e desligo à pressa para ir ter com a Catarina.
Ela reagiu bastante melhor do que eu pensava, quando lhe disse que tinha
conhecido alguém de quem gostava. Não diria que deu saltos de alegria, mas
também não me parece ter ficado desapontada com o facto de haver mais
alguém na minha vida. Mostrou-se talvez um tudo nada distante, mas
quando nos separámos disse que gostaria muito de conhecer a Janna. Quem
sabe, talvez tudo corra bem.
===================¤==================
Fui buscar a Catarina a casa da Filipa por volta das sete e meia e pergunteilhe onde queria ir jantar. Ela respondeu-me que queria ir para minha casa, e
foi o que fizémos. Disse que não sabia o que lhe apetecia, mas que não tinha
muita fome. Como a mim tão pouco me apetecia jantar, fizemos uma sopa de
301
legumes e uma salada César e comemos na varanda enquanto o oceano à
nossa frente engolia lentamente o disco vermelho do sol.
Como quem não quer a coisa, foi-me fazendo perguntas acerca da Janna. O
tipo de perguntas que se imagina que um pai possa fazer a uma filha acerca
de um namorado por quem ela pareça estar realmente interessada,
procurando saber o mais possível sem dar a entender que se está interessado
em saber o que quer que seja. Estranhamente, porém, factos (idade, o que
faz, onde mora, etc.) não lhe despertaram interesse. Pelo contrário, a cor do
cabelo e dos olhos, se é alta ou baixa, se é bem-disposta, como se veste; essas
coisas pareceram-lhe suficientemente importantes para as incluir em várias
linhas de interrogatório.
Quando me pareceu satisfeita mudei de assunto e falámos do baile, da Filipa
e do irmão e dos convites para uma e para o outro. Disse que a Filipa lhe
tinha prometido que se ia encarregar de fazer com que o irmão não faltasse,
nem que tivesse de o arrastar pelas pernas, o que obviamente a deixou
bastante contente, mas também ansiosa, por não saber como ele reagirá.
Disse-lhe que não se preocupasse, que se ele não ficasse apanhadinho por
ela, eu o levava pessoalmente a um oculista para examinar os olhos, o que a
fez rir e corar ao mesmo tempo.
Perguntei-lhe como iam as coisas em casa, mas não quis falar do assunto.
Disse que estava tudo bem. Que ninguém lhe tinha dito nada acerca do
tribunal e que, embora a mãe e o Gonçalo continuassem com as conversas em
surdina, o comportamento deles em relação a ela parecia-lhe inalterado.
302
Depois, perguntou-me se podia ver um filme, e eu tomei isso como sinal de
que não queria que lhe fizesse mais perguntas e disse-lhe que sim. Pediu-me
uma comédia ou um filme de aventuras. O primeiro título que me veio à
cabeça foi „La Chévre‟, da dupla Richard/Depardieu, mas ela não conhecia
um e não imaginava o outro a fazer comédia ou a meter-se em aventuras
com aquele peso todo, e aceitou apenas por não ter ela própria outra
sugestão. Não demorou muito a ter uma opinião completamente diferente.
Deixei-a a rir-se sozinha na sala e fui para a cozinha lavar os pratos e pôr as
coisas em ordem.
Depois fui sentar-me na sala; enquanto ela acabava de ver o filme fui pondo
ordem no meu programa da próxima semana. Quando acabou perguntoume se o Richard e o Depardieu tinham feito outros filmes juntos e eu disselhe que sim, mas que eram difíceis de encontrar em DVD fora de França.
Perguntou-me se tinha mais algum, eu disse-lhe que sim e sugeri „Les
Fugitifs‟ e ela ainda o foi buscar à prateleira, mas depois disse que estava
demasiado cansada e foi-se meter na cama, dormindo, pela primeira vez, no
quarto que lhe estava destinado desde que comprei o apartamento.
Eu deixei-me ficar na sala, decidido a esperar pela Janna. Enchi o cachimbo,
encostei-me no sofá e peguei no molho de revistas da semana. Passei os
olhos pelo Spirou e pela Fluide Glacial, mas nenhuma das histórias me
despertou a atenção; tentei ler o Economist e o Nouvel Observateur que o
carteiro deixou no escritório, mas tão pouco me seduziu a análise da
actualidade presente. Acabei por tirar um Maigret da estante, e foi o que me
manteve acordado até a Janna chegar.
303
Ela ficou muito contente por me ver acordado, largou as coisas no chão do
átrio e veio aninhar-se ao meu colo.
Mas, pouco depois, decidimos que era melhor mudarmo-nos para a cama.
===================¤==================
Acordo com o som de vozes que me chega da cozinha. Olho para o
despertador e vejo que são quase onze da manhã.
A Janna manteve-me ocupado até perto das sete – não é que esteja a queixarme, note-se – mas não me lembro de mais nada depois disso, devo ter
adormecido como uma pedra pouco depois. Nem dei por ela se levantar.
Talvez seja da idade...
O cheiro de torradas com manteiga misturado com o do café com leite
quente, entram-me, insinuantemente, pelas narinas e começo a pensar em
arrastar-me para fora da cama. Levanto-me, não me levanto; durmo mais um
bocado ou vou meter-me debaixo do chuveiro...
Enquanto me entrego a estas considerações existenciais, elas conversam
animadamente, como se já se conhecessem há anos.
Espreguiço-me, ajeito a almofada e deixo-me ficar a gozar o quentinho dos
lençóis, ouvindo-lhes a conversa sem que elas saibam que o faço. Pode não
ser muito bonito, mas acho que a minha curiosidade é justificada. Afinal, é
meu legítimo interesse que elas se dêem bem.
304
“...não fazia a mínima ideia. Sempre pensei que ele fosse espanhol.” Está a Janna a
dizer, admirada.
A Catarina ri-se. “Estás a ver o que eu dizia? E como ele há outros. Assim como há
bocados inteiros da História de Portugal completamente negligenciados, ou até
menosprezados, muitas vezes a favor de outros que chegaram depois e não fizeram
metade! Ora, o que eu digo é que a nossa história dá pano para mangas. Não são os
exploradores, nem os feitos heróicos, nem os primeiros contactos com gentes e
civilizações de que quase ninguém ouvira falar, nem tão pouco as batalhas ganhas em
desvantagem ou perdidas com honra, ou sem ela, que nos faltam; disso temos tudo de
sobra. Aquilo que não temos, e que dir-se-ia não fazermos a mais pequena ideia de
onde encontrar ou, tendo-o, como o aplicar à história, é marketing, técnica de vendas,
capacidade promocional, criatividade dramática, ou o que se lhe queira chamar, que
torne essa história num produto acessível a toda a gente.
Claro que, quando se pensa em termos de investigação séria, não duvido que a
verdade dos nomes e eventos seja conhecida, mas isso diz respeito a um pequeno
grupo de professores em quase igual número de universidades, porque, para além
deles, mais ninguém sabe quem nós somos ou o que temos feito. Pessoas ainda há que
pensam que Portugal fica em Espanha...”
“Está bem, aceito que seja assim, mas isso é normal, não? Quantas pessoas achas
que, fora da República Checa e sem serem os nossos vizinhos, conseguem dizer onde
ela fica exactamente, ou mencionar um acontecimento da nossa história que não
esteja relacionado com a destruição do muro de Berlim? Infelizmente, é assim que as
coisas são.”
“Sim, é assim que as coisas são. O que eu digo, porém, é que não têm de ser
necessariamente assim. Mais, o que eu digo é que não é só fora de fronteiras que o
305
conhecimento se perde. Olha, aposto contigo que se fores perguntar a umas quantas
escolas aqui à volta, são mais os miúdos que te sabem dizer quem foram Marco Polo,
Cristóvão Colombo, ou, sei lá, Daniel Boone, do que aqueles que sabem explicar quem
foram Fernão de Magalhães, Vasco da Gama, Pero da Covilhã, Afonso de
Albuquerque, ou Fernão Mendes Pinto – isto para já não falar de tantos outros, ou
tantas outras, igual e injustamente desconhecidos. E, no entanto, não é possível
dizer, de forma alguma, que os primeiros tenham tido maior relevância em termos
históricos.
O que se passa é que, do Marco Polo e do Daniel Boone ou da Calamity Jane, tal
como do Cristóvão Colombo e do Thomas Cook, do Cecil Rhodes e do Livingstone, da
Amelia Earhart e do... daquele homem que atravessou o Atlântico para Leste no
Spirit of St. Louis, em 1927 – cinco anos depois de uns portugueses chamados Gago
Coutinho e Sacadura Cabral o terem feito para Sudoeste – como é que ele se
chamava...”
“Lindbergh, Charles Lindbergh.”
“Esse. O que se passa é que, sobre estes tipos e tipas todos ouve quem fizesse filmes e
escrevesse versões, mais ou menos dramatizadas, das suas supostas vidas, ao
contrário do que tem acontecido a respeito dos outros. E eu acho que é isso que nos
faz falta. Para consumo interno, acima de tudo. Mas também para exportação, para
ver se os feitos e aventuras destes homens e mulheres deixam de ser atribuídos a
outros!”
“Compreendo onde queres chegar. E a verdade é que o problema não é apenas
português – embora perceba, por aquilo que descreves, que aqui a situação seja talvez
mais caricata. Na República Checa começa também a haver muita gente que, por
causa dos filmes e das séries de televisão, conhece melhor episódios obscuros, e
306
personagens que de outro modo pouco teriam de memorável, da parca história da
colonização da América do Norte, do que personagens importantes ou eventos chave
da nossa história bastante mais longa, que se estuda na escola.”
“É precisamente isso que eu digo! Se se deixa ficar a história apenas nas escolas e nas
universidades ou nas mãos de investigadores, ela depressa se torna uma coisa morta,
cheia de pó, em que pouca gente vê interesse; quando, afinal, é tudo menos isso. Basta
vê-la com outros olhos. E se outros o fazem, porque não nós que andamos nisto há
muito mais tempo e temos coisas muito mais interessantes para contar?
Era isso que eu gostava de fazer. Escrever romances e argumentos para filmes e séries
de televisão baseados em personagens históricos. Tipo, levá-los para casa das pessoas
e sentá-los à mesa de jantar com eles, estás a ver?”
“Sim, estou. Isso parece muito interessante. Já escreveste alguma coisa?”
“Já. Mas não te quero mostrar”, responde, rindo. “Fiz um plano para uma série de
aventuras sobre a vida de um dos homens que mencionei antes, que se chamava
Fernão Mendes Pinto, baseado num livro que ele escreveu, a que chamou
„Peregrinação‟. Mas ainda vai ser preciso que lhe dê muita voltas... Olha, este Fernão
Mendes Pinto é um bom exemplo daquilo que digo, acerca da história poder e dever
ter uma aproximação mais romanceada. Há historiadores que dizem que o homem foi
um grande aldrabão e que metade do que ele contou no livro, não passa de invenção.
Embora também haja quem diga que não, e parece que não são poucos a pensar assim.
Mas, que ele tenha sido aldrabão, ou não, é, creio eu, pouco importante – vê o que se
tem passado com Marco Polo. Acho que os marinheiros e exploradores daquele
tempo, e de outros tempos depois daquele, são todos dados ao exagero; acho que é
307
como que um traço de personalidade, que faz conjunto com a sede de aventura e com
a ambição de riqueza.
Aliás, queres maior aldrabão que Cristóvão Colombo? O homem serviu-se de todos os
estratagemas que pôde para conseguir que os reis de Espanha lhe pagassem a viagem
ao que ele julgava ser a China, Cipango, como lhe chamava. Contou à Isabel de
Aragão todas as lérias de que se lembrou, e afinal para quê? Para ir ver as praias a
Cuba e depois à Florida. No entanto, à conta dele e dos enganos dele, já se fizeram
não sei quantos filmes e escreveram uma catrefada de livros, sérios ou não!
Ora, acontece que, aldrabão ou não, o Fernão é um personagem tremendamente rico,
muito mais rico do que o Cristóvão e, no entanto, ninguém lhe pegou ainda. Porquê?
Por continuarem a acreditar em quem diz que ele era aldrabão ou mentiroso, ao que
parece, sem qualquer fundamento e vá-se lá saber por que razões? Ou por outros
motivos ainda?”
“Mas tu vais mudar isso. Vais fazer um filme dele e enfiá-lo em casa das pessoas!”,
diz a Janna, bem disposta.
“Quem me dera! Mas ainda tenho mesmo muito que escrever até lá chegar”,
responde a Catarina, sonhadora. “E depois vai ser preciso que alguém pegue no
argumento. E que essa pessoa esteja interessada em dar ao personagem o tratamento
que merece”, continua no mesmo tom, “e isso, ainda é capaz de levar algum
tempo”, ri-se.
A Janna ri-se com ela.
Eu estou completamente aparvoado. De as ouvir em tão animada conversa,
como se já se conhecessem há anos; e em francês, que eu nem sabia que a
Catarina ainda falava. De saber que a minha filha quer romancear a História
308
para a passar ao écran. E que já fez um plano para uma série sobre „Fernão
Mentes Minto‟... Esta, então, far-me-ia mesmo cair de costas, se não estivesse
já deitado.
Tanto tempo sem a ver fez-me esquecer que não foram só os anos que
passaram; ela também cresceu. Já não é uma miúda, embora eu persista,
estupidamente, em a querer ver assim, e, pelos vistos, tem ideias muito
claras acerca do que quer fazer na vida.
Não sei é se a escolha é alguma coisa de jeito; meter ombros à tarefa de
restaurar a fama perdida, ou talvez nunca tida, de uns quantos personagens
históricos, por mais que eles o mereçam, é capaz de ser uma ideia um bocado
visionária e ingrata. Mas quanto a isso não há nada a fazer, vai ter de ser ela
a descobrir sozinha se é mesmo assim. O pior que se pode fazer quando um
adolescente mete uma coisa na cabeça, é tentar convencê-lo que está
enganado. Dá muito trabalho e, na maior parte das vezes, não funciona.
Se aquilo que se propõem fazer não os coloca em perigo de morte – ao
contrário do que aconteceria se se propusessem, sei lá, descer a avenida da
Liberdade de patins durante a hora de ponta, de olhos vendados e em
sentido contrário ao do trânsito – acho que o melhor é deixá-los ir em frente,
e depois ajudá-los a digerir a experiência quando ela der para o torto. Mas,
que sei eu? Cada miúdo é uma caixinha de surpresas, e não me passaria pela
cabeça dar isto como conselho a ninguém.
No caso dela, porém, vou mesmo esperar para ver. Afinal, claras ou não,
pode ser que as ideias dela ainda dêem muitas voltas, antes de assentarem
em algo de concreto.
309
O meu estômago interrompe-me o discurso para me advertir que está na
altura de me levantar e de lhe dar qualquer coisa com que se entreter.
Salto da cama, vou à casa de banho lavar os dentes, enfio as calças do pijama,
que não chegaram a sair de debaixo da almofada, e tiro da gaveta o roupão
que quase nunca visto. Hábitos de quem vive sozinho, que vai ser preciso
que quebre. Pelo menos enquanto a Catarina cá estiver em casa.
Entro na cozinha e deparo com um estendal que eu não faço nem quando
tenho visitas para jantar. Três pacotes diferentes de café moído, todos
abertos; a cafeteira em cima do fogão, pronta para mais uma rodada. Uma
forma fresca na base de madeira, a torradeira ligada e em plena actividade
tostadora. A manteigueira, um pacote de vigor azul, uns quantos frascos de
compota variada, facas e colheres sortidas e uma caixa de plástico com
fiambre entre as duas, ainda de pijama – a Janna num meu, as calças e as
mangas enroladas quase até metade e o cabelo em desalinho, dão-lhe um ar
gaiato que, estranhamente, a faz parecer ainda mais bonita. Sentadas frente a
frente ao balcão, entretidas a folhear um semanário enquanto comem
torradas e bebem café com leite, estão claramente alheias à minha presença.
“Bom-dia, meninas! Isso é que foi madrugar”, atiro da porta, para ver se me dão
atenção.
“Pai! Já acordaste”, exclama a Catarina, e vem pendurar-se-me ao pescoço
para me dar um beijo. “A Janna e eu temos estado a conversar, e sabes, entendemonos muito bem.”
Volta a sentar-se no banco e eu vou ao frigorífico buscar o sumo de limão
com que sempre começo o dia. Passo pela Janna que se inclina para mim,
310
ainda penso em dar-lhe um beijo na testa, mas depois penso „que se lixe‟ e
beijo-lhe os lábios. Ela fica satisfeita, eu também, e a Catarina parece nem ter
reparado, ou fingiu não ter reparado.
“Sabes, Catarina, ainda bem que disseste que se entendem bem. Quem olhasse para
vocês era capaz de pensar que nem se podem ver”, digo, enquanto deito o sumo
num copo e lhes pisco um olho. Elas olham uma para a outra e riem-se.
“Estão a pé há muito tempo?”, pergunto, entre goles de sumo de limão.
“Eu levantei-me às oito, e a Janna veio ter comigo logo depois. Temos estado a
conversar e a ler o jornal que encontrei esta manhã enfiado na gaveta da porta.”
“Pois, o homem da banca vem-mo cá entregar”, digo, distraidamente, enquanto
olho para a Janna e faço contas de cabeça. Ela percebe o que estou a fazer,
cora ligeiramente, sorri e pisca os olhos. “E agora, Catarina; agora o que
gostavas de fazer?”, pergunto, voltando a dar atenção à minha filha para que
ela não se sinta excluída.
“Não sei. Qualquer coisa. Eu não queria era estragar os vossos planos.”
Tanto eu como a Janna lhe dizemos que não estraga nada, e que gostamos
muito de a ter connosco. Eu aproveito a deixa para ver se consigo dar
descanso à Janna e digo à Catarina que ela não tem nada que se preocupar,
porque a Janna e eu temos muito tempo para estar juntos durante a semana,
e que provavelmente ela, se calhar, até quererá dormir umas horas... ia a
dizer antes de ir trabalhar, mas lembrei-me que ainda não contei à Catarina o
que a Janna faz, nem sei se ela o fez, e emendo para, dormir umas horas
311
durante a tarde, e que, por isso ,poderemos dar uma volta os dois, enquanto
ela descansa.
A Janna faz-me cara de ofendida e diz que não precisa nada de dormir e que
gostaria muito de passar o dia com a Catarina e comigo, se a Catarina assim
quiser. Ela diz logo que sim e lembra-se, de repente, que gostava de ir à
praia, o que parece boa ideia a toda a gente.
Subitamente excitada com a ideia, pede licença e vai para o quarto à procura
de um fato de banho que se lembra de ter algures no saco que trouxe
consigo, deixando-me a mim e à Janna a sós na cozinha.
Quando a oiço mexer-se no quarto, digo num sussurro: “Tu estás doida,
rapariga. Não dormiste nada, ou quase nada.” A Janna olha furtiva para a porta,
levanta-se lampeira e vem encostar-se a mim, envolvendo-me nos seus
braços. “Não faz mal, o que fizémos juntos soube-me muito melhor”, diz baixinho,
os olhos nos meus. Depois baixa a cabeça e encosta a pele suave do rosto ao
meu peito, o movimento fazendo chegar-me às narinas um ténue odor a
baunilha, que transporta consigo outras recordações e me faz aumentar de
volume e crescer de encontro a ela.
Abraço-a e puxo-a mais para mim, beijando-lhe suavemente o alto da cabeça
e deixamo-nos ficar assim, de olhos fechados, tão juntos quanto nos é
possível estar tendo em conta as circunstâncias.
Um bater tímido na ombreira da porta, faz-nos despertar do nosso desvario.
Uma Catarina muito vermelha pede desculpa e pergunta à Janna o que ela
vai levar vestido, fato de banho ou biquíni, e acabam por acordar as duas em
levar biquíni.
312
“Terá ouvido alguma coisa do que dissemos?”, murmura a Janna, quase tão
vermelha como a Catarina, depois de ela ter regressado ao quarto. Abano a
cabeça, esperando sinceramente que assim tenha sido de facto. Não preciso
de me ver ao espelho para saber que também eu devo ter mudado de cor.
Além disso, estou com uma enorme vontade de rir, e depressa chego a um
ponto em que não consigo conter-me mais.
O riso sai-me em catadupa, meio gargalhada meio ataque de tosse, que tento
a todo o custo conter, enquanto as lágrimas me correm pela cara livremente.
A Janna olha para mim com ar preocupado durante um segundo e depois
também ela começa a resfolgar, para ver se consegue conter o riso, para não
magoar a Catarina.
Mas não precisávamos de nos preocupar, do quarto dela chegam-nos ruídos
semelhantes.
===================¤==================
Passámos o dia todo na praia. Levámos sanduíches e uma caixa refrigerada
com limonada, chá fresco e água, e fomos para uma das enseadazitas que se
apanham antes de chegar ao Guincho.
Apesar de ser sábado, de o céu estar quase enjoativo de azul e sem uma
nuvem, e de termos chegado já depois do meio-dia, não estava lá ninguém.
O fim do Verão, aliado ao vento que hoje soprou com força, deve ter feito
313
toda a gente pensar que estariam melhor noutro sítio qualquer – num centro
comercial, talvez.
A maré estava em baixo quando chegámos, por isso pudemos passar as
primeiras horas em cima da pouca areia seca disponível. Ao contrário do que
poderia talvez parecer a quem passasse na estrada, lá em baixo não fazia
vento algum. Soprava literalmente por cima das nossas cabeças.
Mal chegaram, a Catarina e a Janna estenderam as toalhas uma ao lado da
outra, puseram-se creme, deitaram-se de rabo para o ar, desapertaram as
tiras dos soutiens dos biquínis e estiveram a conversar as duas durante quase
toda a tarde, com ocasionais paragens para voltar a apertar as tiras dos
soutiens e mudar de lado. Falaram de revistas, de livros, de trapos, de
sapatos, de música, de aeróbica, de História novamente, e de outras coisas,
certamente. Mas, a partir de uma certa altura, eu perdi a conta. Como não me
ligavam nenhuma refugiei-me nos jornais e nas revistas que tinha levado,
fumei duas cachimbadas, fui ao banho umas quantas vezes e até passei pelas
brasas.
Acho que se tivesse decidido ir-me embora à socapa, talvez tivessem
demorado um bocado a dar pela minha falta.
Se antes de se conhecerem tive receio de que não se dessem bem, hoje
cheguei a perguntar a mim mesmo se não seria eu quem estaria a mais...
Brinco, claro. A verdade é que estou contentíssimo que elas se estejam a dar
desta forma. Nem a minha projecção mais optimista previa que se dessem
assim tão bem. O ser negligenciado nesta fase inicial, em que elas parecem
querer conhecer tudo uma da outra, é um preço que pago de boa vontade, se
314
o que vi hoje durante todo o dia for indicativo do futuro relacionamento
entre as duas.
Saímos da praia passava das oito. A mancha alaranjada do Sol já se
aproximava do horizonte atrás de nós, quando finalmente chegámos ao cimo
da escadaria improvisada na parede de rocha, que sobe desde a areia até ao
terreiro onde tínhamos deixado o carro.
Depois de termos tomado banho e mudado de roupa, fomos jantar a um
restaurante cabo-verdiano em São Bento que o Leonel me tinha
recomendado. Bastou ver as empregadas para perceber porquê. Porém, os
pratos que escolhemos tão pouco lhes ficavam atrás.
O jantar correu tão bem como o resto do dia.
Mas estou sem saber o que fazer a respeito do regresso a casa, pois sei que
está quase na hora da Janna ir para o clube e não sei se a Catarina sabe o que
ela faz, nem se deva ser eu a dizer-lhe. Acabo, finalmente, por perceber que a
Janna já lhe contou, quando a Catarina me pergunta, casualmente, por
alturas da sobremesa, se a vamos levar ao clube depois de jantar.
Disfarçando a minha surpresa pela pergunta inesperada, tanto mais que ela a
faz com o ar mais natural deste mundo e a meio de uma conversa com a
Janna; digo-lhe que sim, claro que a vamos levar ao clube. Ela fica satisfeita e
come mais uma garfada do bolo de banana que tem à frente.
Deito um olhar inquisitivo à Janna, mas ela apenas sorri, sopra-me um beijo
silencioso, e retoma a conversa com a Catarina.
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Bom, assim fica mais um assunto resolvido. Se a mim não me choca o que a
Janna faz, não sei porque tinha receio que a Catarina pudesse não aprovar,
mas ao que tudo indica estava enganado. Melhor assim.
Deixamos a Janna no parque de estacionamento em frente ao clube pouco
antes das onze da noite. Ela sai do carro, sopra-me um beijo e diz „até logo‟
com os lábios, antes de nos voltar as costas e se dirigir para a entrada.
A Catarina não se calou durante todo o caminho até casa. A Janna isto, a
Janna aquilo. Está apanhada de todo. Confessa que tinha tido um bocadinho
de medo de conhecer „a namorada do pai‟ – imaginava uma mulher mais
madura, muito bem apresentada e um pouco distante, assim como a mãe, diz
– mas assim que a viu aparecer na cozinha e começaram a conversar, soube
que se ia dar bem com ela. E depois achou o máximo ela ser dançarina e
fazer striptease, que é uma coisa que ela, Catarina, nunca seria capaz de
fazer. O striptease deixou-a mesmo impressionada, achou a Janna muito
corajosa, por ser capaz de se despir em frente a tanta gente.
Para não estragar o momento, pensei ser melhor não lhe explicar que a
necessidade, às vezes, vale mais do que a coragem. Afinal, uma coisa não
invalida a outra, e deve de facto ser precisa alguma coragem para subir
assim a um palco todas as noites e sair de lá completamente em pêlo,
enquanto uma chusma de homens, mais ou menos embriagados, lhe atira
piropos não muito graciosos.
Chegados a casa, ainda me interrogou durante mais uma hora, querendo
saber tudo acerca da nova amiga. Como nos conhecemos, se eu gostava
mesmo muito dela, se ela ia ficar a viver sempre comigo, se vamos ficar os
316
três no apartamento quando ela também vier morar para cá, et cetera, et
cetera, et cetera.
Deitou-se já passava da uma. Dado o adiantado da hora, ainda pus a
hipótese de esperar pela Janna a pé, mas depois pensei melhor e fui também
meter-me na cama.
317
SEIS
A Janna não regressou a casa ontem à noite. Quando acordei cedo, domingo
de manhã, dei pela falta dela e apercebi-me que só eu tinha dormido na
cama. Levanto-me e vou ao quarto da Catarina, para ver se não teriam ficado
na conversa depois de ela chegar. Mas a minha filha dorme e não está mais
ninguém no quarto.
Enquanto tomo o pequeno-almoço, vou pensando que talvez tivesse
decidido ir dormir a casa dela para nos deixar sozinhos, à Catarina e a mim.
Uma parvoíce pegada, mas era o tipo de coisa que a imaginava a fazer.
Entretanto, a Catarina levanta-se também e vem ter comigo à cozinha,
ficando, obviamente, muito admirada por não encontrar a Janna.
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Conto-lhe que ela não dormiu em casa e falo-lhe da explicação que me
parece mais lógica e que ela também acha ser uma completa parvoíce.
Aborrecido comigo mesmo por não lhe ter pedido um número de telefone ou
de telemóvel onde a pudesse encontrar, que mais não fosse para a
descompor e para lhe dizer que tínhamos saudades dela, decido não pensar
mais no assunto e aproveitar para me dedicar completamente à Catarina. Se
a Janna decidiu afastar-se, para que nós os dois pudéssemos passar o
domingo juntos, então é isso mesmo que vamos fazer. Afinal, ela tem o meu
telemóvel e pode ligar-me quando quiser.
Fiel à minha rotina de domingo, pergunto à Catarina se quer ir à missa
comigo. Ela olha para mim de forma estranha, mas encolhe os ombros e diz
que está bem. Descemos à garagem, pegamos na BMW e subimos a estrada
da costa até Sintra, onde chegamos mesmo a tempo de nos sentarmos no
último banco, sem que nenhuma das dez pessoas que lá estão dê por termos
entrado.
Estas visitas à igrejinha quase vazia, para vir a uma missa funcional e sem
aparato, são sempre um momento alto da minha semana. Sinto-me sempre
em paz enquanto cá estou, uma paz que dura até ao meu regresso, à mesma
hora, oito dias depois.
À saída, a Catarina diz-me que gostou muito de estar ali comigo, que se
sentiu calma e consolada, ao contrário do que é costume. Diz-me que estava
à espera de uma coisa completamente diferente quando eu lhe perguntei se
queria ir à missa. Que as únicas missas a que ultimamente tem ido, as do
colégio, são muito lentas e aborrecidas. Eu encolho os ombros, percebendo
perfeitamente o que ela quer dizer. Infelizmente, não há nada a fazer, há-de
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sempre haver tipos que escolhem a profissão errada e persistem no erro até
ao fim da vida, chateando uma data de gente pelo caminho.
Alguns desses são padres e dizem missa.
Depois diz-me que achou esquisito estar sentada ao pé de mim, ainda que
saiba que é assim cá fora, porque, no colégio, os rapazes, a quem persiste em
chamar „meninos‟, sentam-se sempre à frente delas, ou então, quando é uma
cerimónia com convidados, num lado diferente das „meninas‟. Eu olho para
ela verdadeiramente espantado, mas depois recordo-me do que me disse
acerca das aulas de moral. Pergunto-lhe se as missas também são
obrigatórias, e ela diz-me que sim. O que me faz interrogar que tipo de
estabelecimento será o colégio em que a Mima meteu os miúdos, e decidir
logo de imediato que, seja ele de que tipo for, não será um onde a Catarina
vai estar muito mais tempo. Para já não vale a pena fazer ondas, mas logo
que haja uma decisão do tribunal, que estou confiante será a nosso favor, a
Catarina não volta lá a pôr os pés. Basta de fundamentalismos parvos.
Depois de um passeio pela vila, deixamos Sintra e regressamos a Cascais
pela mesma estrada. A Catarina diz que não quer fazer nada de especial, que
só quer passar o resto do dia comigo em casa, por isso faço-lhe a vontade.
Jogamos às damas durante um bocado e depois vamos os dois para a
cozinha preparar o almoço.
Descongelamos bacalhau desfiado e fazemos arroz de bacalhau com salada
de alface às tiras que, não sei porquê, sempre foi um dos meus pratos
favoritos e, ao que descobri, também o é da Catarina.
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Estendo o toldo, pomos a travessa com o arroz de bacalhau, a saladeira, pão
fresco do congelador, duas cervejas, um jarro com água com limão, copos,
pratos e os talheres necessários sobre a mesa de plástico verde, e comemos
no terraço, à sombra de um Sol que parece decidido a não deixar o Verão
sem nos fazer suar uns quantos litros mais.
Falamos do apartamento, de que a Catarina diz gostar muito e ter bastante
pena de nunca aqui ter estado antes, ao que lhe respondo que também eu,
mas que não serve de nada pensar nisso agora, e que pouco importa, uma
vez que ela em breve virá viver para cá. Falamos novamente da Janna, do
bem que se entende com ela, e diz-me que eu não podia ter arranjado uma
namorada mais bonita, inteligente e simpática. Aproveito a deixa e perguntolhe o que pensou daquilo que ela faz, porque me causa alguma confusão, o
ela ser capaz de aceitar tão naturalmente que a Janna, a namorada que ela
tanto gosta que o pai tenha arranjado, tenha por ocupação despir-se para
entretenimento de outros, quando no meio em que vive e na escola a que vai,
a Janna seria tudo menos aceite, tolerada talvez, se tal fosse necessário; mas
nunca aceite.
A Catarina encolhe os ombros e diz que pouco lhe importa o que a mãe ou o
Gonçalo pensem, ou o que lhe digam na escola que deve ou não deve fazerse, ela deixou de ligar às pessoas pela carreira que seguem ou pelo nome e
dinheiro que têm. Porque não passam de acessórios que em nada os definem,
atrás dos quais se podem esconder muitas falhas de carácter. Agora, as
pessoas interessam-lhe ou não, pela personalidade que têm e pela maneira
como se comportam com os outros. Antes, diz, uma das primeiras perguntas
que teria feito acerca da Janna teria sido, „o que ela faz?‟ tal como lhe tinham
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ensinado a fazer, mas agora isso parece-lhe completamente irrelevante e até
descabido.
Encolhe novamente os ombros, bebe um gole de cerveja e abana a cabeça
pensativa, como que para afastar da memória a imagem da pessoa que era,
em quem já não se reconhece.
Seja pela cerveja, que tem normalmente o condão de fazer soltar a língua a
quem não está habituado a bebê-la mesmo em pequenas quantidades, ou seja
lá por que outra razão for, a Catarina decide começar a falar da mãe e do
Gonçalo, e da vida dela com eles.
“Sabes” – diz, entre outras coisas – “eles nunca falam comigo, ou melhor, falar até
falam; mas não conversam, em vez disso, limitam-se a dizer-me o que devo ou não
fazer. A minha opinião, o que eu quero, é pouco importante”, sorri tristemente.
“Mesmo esta coisa do baile; foi a mãe quem decidiu que eu tinha de ir, ninguém me
perguntou nada. Na altura, eu também não saberia o que dizer, a verdade é essa.
Acho que já não gostei que a mãe tivesse presumido que podia decidir a minha ida
por mim, mas não me teria atrevido a dizer-lhe que não queria ir. Porém, quando ela
me disse que ia ser o Gonçalo a acompanhar-me, passou-me não sei o quê pela cabeça
e disse que não, que só iria ao baile se fosse contigo”, ri-se, sem muita convicção.
“Se pudesses ter visto a cara da mãe, quando lhe disse! Mas, sabes, para dizer a
verdade, acho que, no princípio, dizer que só iria se fosse contigo, foi só mais para ver
se a mãe punha o baile de parte, porque julgava que ela nunca me deixaria ir contigo;
e como não poderiam forçar-me a ir, se pedisse o impossível talvez conseguisse não ir.
Mas, ultimamente, tenho visto as coisas de outra forma. As minhas colegas mais
chegadas, aquelas que têm estado sempre comigo e que me percebem, também vão lá
estar. O que quer dizer que, no meio de toda a fantochada, ainda somos capazes de
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nos divertir. E agora a Filipa também vai, e o irmão dela...” Cora visivelmente. “E
depois és tu quem me leva”, diz, já recomposta. “Tudo isso faz muita diferença.
Sabes, a mãe está sempre a dizer que este baile é muito importante, simbólico; porque
é a minha apresentação à sociedade, porque representa o abandono dos meus anos de
criança e o abraçar da idade adulta.
Pois, que o seja; mas nos meus termos. Eu já não sou a pessoa que fui até há uns
meses a esta parte. Mudei; mudei muito; e gosto bastante mais de mim como sou
agora. O baile será então a apresentação simbólica da nova eu, aquela que vou ser de
agora em diante, quer os outros queiram, quer não.
E, se é tudo muito simbólico, então também é para mim muito importante ser
acompanhada pelo meu pai.” Quase a medo, estende a mão por cima da mesa e
aperta a minha. “Por causa de todos os anos que passámos sem nos conhecer, e de
todas as mentiras que me contaram acerca de ti. Por isso tudo, é muito importante
que sejas tu a acompanhar-me. E eu gostava muito que fosses.”
Eu olho para ela embasbacado e embevecido ao mesmo tempo. Se me
restassem quaisquer dúvidas de que a Catarina que tenho à minha frente
nada tem a ver com aquela que fui conhecendo ao longo dos anos em que
viveu só com a mãe, este pequeno discurso tê-las-ia desvanecido por
completo.
Poderá ainda haver ali muitas ideias ingénuas e fantasias infantis – quem
não as tem aos quinze anos? – mas a personalidade desta Catarina, que agora
recomeço a conhecer, está mais do que pronta para passar à idade adulta.
“Sabes, filha; a honra é realmente toda minha. Nunca na minha vida terei entrado em
tão distinta companhia numa sala de baile. Não só porque tenho a certeza que tu
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serás a rapariga mais bonita que lá vai estar, mas também porque lá estarás por
motivos que te dizem realmente alguma coisa, e não apenas porque é „uma coisa que
se faz‟ em certa idade.” Ela fica vermelha que nem um pimentão, mas eu faço
de conta que não vejo, inclino-me para a frente e dou-lhe um beijo na testa.
“Obrigada, pai. Mas não digas essas coisas que fico envergonhada”, diz passado
um momento. “Sabes...” acrescenta, deixando a palavra ressoar, enquanto
procura um assunto que a tire dali depressa. “Acho que tu, a Janna e eu nos
vamos dar muito bem”, conclui finalmente, satisfeita.
“Eu também acho, Catarina, eu também acho”, respondo, sorrindo.
===================¤==================
Lavada e arrumada a loiça, a Catarina pergunta-me se quero ver „Les Fugitifs‟
e eu digo que sim, porque realmente já há muitos anos que não vejo o
original – embora haja uma versão americana com Nick Nolte e Martin
Short, realizada inclusivamente pelo mesmo Francis Veber, que, de vez em
quando, ainda se apanha num dos canais de cinema.
Acabado o filme, de que a Catarina disse não ter gostado tanto como de „La
Chévre‟, ela enfia no saco as roupas que não quer deixar ficar no quarto, para
a próxima vez, explica, e levo-a à Lapa.
Volto a deixá-la ao cimo da rua e, depois de a ver entrar em casa, regresso a
Cascais pela auto-estrada.
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A Janna não telefonou durante todo o dia. Começo a ficar ligeiramente
preocupado, não me parece de todo dela não dar notícias. Ter-lhe-á
acontecido alguma coisa, ou decidiu apenas desaparecer completamente
enquanto a Catarina estivesse lá em casa... Mas porque é que eu não fiquei
com o número dela, caramba?! Se realmente resolveu desaparecer só para me
deixar a sós com a Catarina, vai ouvi-las boas.
Chegado a casa, despacho o jantar sem grande vontade, encho uma
cachimbada e sento-me a ver televisão, para fazer alguma coisa que me
distraia e não necessite concentração, enquanto vou passando de uns canais
para os outros sem ligar muito ao que transmitem.
De filmes para documentários, para séries, para lojas interactivas, para
desenhos-animados, para outras lojas interactivas, novamente para filmes,
para entrevistas, para mais documentários, e ainda para mais lojas
interactivas, vou correndo, distraidamente, os duzentos e setenta canais
digitais que o cabo me põe em casa, até chegar à hora dos noticiários nos
canais aéreos e de cabo nacionais.
Uma tipa já minha conhecida de outros jornais, está a ler a notícia de
abertura no primeiro canal que apanho. Antes de ouvir seja o que for, porque
tenho o som desligado por causa das flutuações, penso que deve ser
importante, mas não grave, porque tem um ar sério mas, ao mesmo tempo,
de alguma excitação. “...sequência da negação de entrada à delegação palestiniana
e da moção de protesto aprovada sexta-feira passada pela Assembleia Geral da ONU,
o embaixador americano àquela organização declarou ontem, sábado, ao fim da tarde,
em conferência de imprensa, que é intenção do governo americano impedir que
terroristas perigosos entrem em território dos EUA a coberto de passaportes
325
diplomáticos, pelo que lhe tinham sido dadas instruções para comunicar as novas
regras de acesso ao complexo das Nações Unidas. As alterações e novas regras são as
seguintes: Serão erguidas três novas torres de cinquenta andares em redor do famoso
paralelepípedo de vidro que serve de sede à ONU, torres essas que servirão para
alojar, em permanência ou temporariamente, todas as delegações que os EUA não
queiram eventualmente receber no seu território. Será construído um muro de
segurança em torno de todo o complexo, de modo a impedir que alguém dessas
mesmas delegações tente deixar o território neutro das Nações Unidas, território que
passará a ser constituído pelo terreno e pelos edifícios nele erigidos. Reclamando
terrenos ao rio Hudson, será construído, em frente ao complexo, um novo aeroporto
para aviões de médio porte, considerado também ele território da ONU, dedicado em
exclusivo ao tráfego aéreo das Nações Unidas e onde passarão a aterrar todos os voos
destinados àquela organização – os diplomatas de países ou organizações acreditados
na ONU, mas cuja permanência no interior do complexo não seja exigida, deverão,
todavia, utilizar aquele mesmo aeroporto, solicitando, posteriormente, a sua entrada
em território americano à segurança do muro. O prazo para conclusão dos edifícios e
do novo aeroporto é de um ano e meio, pelo que, até lá vigorarão medidas de excepção
a serem comunicadas durante a próxima semana. O embaixador Patrick Ryan
recusou-se a responder a quaisquer perguntas dos jornalistas presentes, limitando-se
a acrescentar que aproveitava a ocasião para tornar público o seu pedido de demissão
do cargo, enviado, por carta, ao Secretário de Est...” zap! “...fausto a que já nos
habituou, mas que desta vez conseguiu exceder todas as expectativas dos membros do
jet-set presentes. A senhora marquesa do Funchal, que trazia vestida uma criação da
casa Grimwood of Kent, disse à nossa repórter que estava „absolutamente encant...”
Não há paciência. zap! “...ONU, totalmente dedicado ao tráfego aéreo...” zap!
“...em conta todos os subsídios entregues pela UE, bem como todos os investimentos
realizados nesses países, com vista ao seu desenvolvimento; subsídios e investimentos
esses dos quais a União gostaria de receber o justo retorno, uma vez que os
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beneficiários dos mesmos decidam, efectivamente, seguir o seu próprio caminho. A
pergunta que necessariamente se põe é, tendo em conta a situação económica desses
países e a natureza da organização a que se propõem aderir, como e quando é que a
UE verá ressarcidas estas despesas? Obrigado, Francisco. Foi a análise de Francisco
Tavares, a resp...” zap! “...apão, que declararam, em conferência de imprensa, logo
após o comunicado do embaixador americano, que os respectivos países não podem
aceitar que a dignidade da ONU seja „insultada‟ em nome da luta contra o
terrorismo a ser levada a cabo pelos EUA, pelo que, iriam começar, desde já,
contactos diplomáticos oficiais com todos os países membros da ONU, de forma a
levar à Assembleia-geral uma proposta de transferência da sede das Nações Unidas
para novo local; tendo sido avançada a cidade de Genebra, na Suíça, único país que
ainda mantém um estatuto de rigorosa neutralidade, não sendo inclusivamente
membro da própria Organização das Nações Unidas. Na actualidade nacional, o
ministro das finanças, de férias na Penha Longa, declarou hoje aos jornalistas que o
seu relacionamento com o presidente do clube despor...” zap! “...kyo, que as novas
regras propostas pelo governo dos EUA são ina...” zap! “...inda a entrevista do
presidente do movimento para a independência dos Açores, que continua a não
suscitar qualquer reacção por parte dos meios políticos do arquipéla...” zap! “...xaile
de lantejoulas e um vestido creme muito justo que realçava as bonitas curvas do seu
corpo de mod...” zap! “...novo aeroporto para aviões de médio porte que...” zap!
“...ONU. O novo complexo proposto por Washington ser...” zap! “...ssembleia Geral
da Organização...” zap! “...baixador saiu da sala sem responder...” zap!
“...indíssima lingerie em tons de lilás, composta por uma balconette reveladora e por
uma tanga decorada com lantejou...” Irra! zap! “...riada para servir como fórum de
discussão dos problemas mundiais, a ONU...” clic! Já vi que hoje de pouco mais
falam. E com isto já são quase onze. Decido que não vale a pena esperar pela
Janna na sala e vou enfiar-me na cama com O Americano Tranquilo.
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===================¤==================
Acordo sobressaltado às cinco e meia da manhã, o livro ainda aberto e
esquecido sobre a cama, embora o candeeiro da mesinha se tenha apagado
sozinho ao fim de uma hora sem movimento. Reparo imediatamente que,
mais uma vez, sou o único ocupante da cama.
Esta ausência da Janna começa a preocupar-me mais do que ligeiramente.
Onde é que ela estará? A esta hora já deveria ter regressado! Porque não veio
para cá quando saiu do clube? A hipótese que pus de ela ter decidido afastarse por causa da Catarina, por mais absurda que fosse, perdia todo o valor
ontem à noite; a Janna sabia que a Catarina ia jantar a casa da mãe. Deixava
assim de haver qualquer razão para ela não voltar aqui a casa.
E eu sem um número de telefone onde a possa encontrar!
De súbito, lembro-me que ela se dá bem com a Tatiana. E que o Leonel
também se dá bem com a Tatiana, para não lhe chamar outra coisa.
Para não o tirar da cama tão cedo – afinal, pode nada ter acontecido – resolvo
vestir o fato de treino e ir correr para a estrada, e fazer tempo enquanto se faz
dia.
Faço duas vezes o meu percurso habitual, enquanto o céu se vai tornando
progressivamente mais claro e os primeiros carros começam a descer a
estrada em direcção a Cascais e a Lisboa, e depois regresso ao apartamento.
328
Passo um quarto de hora no chuveiro, visto-me e depois ligo-lhe para o
móvel. Ele atende ao segundo toque.
“Ora, quem diria; estás madrugador, hoje. Ela pôs-te fora da cama, foi?”, diz, bem
disposto quando reconhece o número e atende a chamada, para mudar de
tom logo que me vê. “Aconteceu alguma coisa, Jak?”
Devo estar mais preocupado do que penso, se se consegue ver num monitor
com sete centímetros de lado.
“Não sei da Janna há dois dias. Tens forma de contactar a Tatiana? Pode ser que
talvez saiba dela.”
A imagem por detrás do Leonel é um tom claro indistinto, e o som de fundo
um crescendo de maquinaria, seguido de um chiar de travões.
“Sim, eu tenho o móvel dela”, diz, quando o ruído finalmente diminui. “Ouve,
estás a chegar-me com péssimo som. Estou no metro e vou a caminho do banco. Posso
ligar-te logo que chegue?”, percebo, finalmente, o cenário e o ruído de fundo.
Digo-lhe que sim, desligo e começo a pôr ordem na casa, de modo a deixar
tudo pronto para a mulher que vem fazer a limpeza e passar a ferro. Desfaço
as camas e ponho em cima dos colchões roupa lavada para ela as fazer de
novo, ponho uma máquina a lavar e deixo um monte de roupa no chão para
a seguinte, e escrevo-lhe num papel uma lista das outras coisas a que quero
que dê atenção hoje.
Acabei de calçar as botas e estou a vestir o macacão quando o móvel vibra
sobre a mesinha do átrio.
329
“Sou eu. Então conta lá o que se passa”, diz o Leonel quando atendo, o som
cheio, característico de uma linha de terra.
“É como te disse. Não sei dela desde sábado à noite. Fomos levá-la ao clube e depois
nada. Não voltou, não disse nada ontem durante todo o dia e tão-pouco veio dormir
lá a casa ontem à noite. Primeiro pensei que se estivesse a manter afastada para nos
dar, à Catarina e a mim, mais tempo para estarmos juntos, mas depois de ontem à
tarde, essa desculpa deixaria de fazer qualquer sentido. Ela sabia que a Catarina
regressava a casa da mãe antes da hora do jantar.”
“Olha lá, vocês chatearam-se, discutiram, ou qualquer coisa do género?”
“Não, nada. Correu tudo muitíssimo bem. Elas entenderam-se como se se
conhecessem desde sempre, ou até melhor. À noite, fomos os dois levá-la ao clube e ela
disse-me até logo, antes de entrar. Por isso, não percebo. Pensei que talvez pudesses
ligar à Tatiana e saber o que se passa, se aconteceu alguma coisa a alguém da família
da Janna, se posso ajudar, sei lá!”
“Já tentei, mas ela tem o telefone desligado. O que não é de estranhar, são só oito e
meia e ela deve ter chegado a casa por volta das cinco, se não mesmo mais tarde.
Ouve, mas deixa isto comigo. Eu vou continuar a tentar até a apanhar e mal saiba
alguma coisa, telefono-te”, faz uma pausa, um silêncio pesado de quem
pondera a pergunta que quer fazer. “Olha, francamente pá, tu, tu... não achas
possível que ela tenha talvez encontrado outra pessoa? Sei lá, outro tipo que lhe
parecesse mais interessante? Desculpa perguntar-te isto, mas sabes como são as
coisas. O que menos deve faltar naquele sítio são gajos cheios de propostas ou à
procura de um ombro para carpir as mágoas. E, afinal, vocês conhecem-se há pouco
tempo... não sei, o que achas?”
330
Penso no que ele me diz, nos momentos que passei com a Janna, nas nossas
conversas e no pouco tempo que na realidade se passou, mas que me
pareceu ter sido imenso pelos sentimentos que vi despertar em nós.
“Não. Francamente, acho que não foi isso que aconteceu. Em termos reais pode ter-se
passado pouco tempo, mas não foi isso que eu senti passar enquanto estivemos
juntos. Acho que já conheço a Janna bastante bem, e ela não é pessoa para
desaparecer assim, sem dizer água vai, só porque aparece um tipo que lhe faz uma
proposta interessante. Se isso tivesse acontecido – o que, sinceramente, acho
extremamente improvável – ela ter-mo-ia dito.”
“Compreendes, eu tinha de perguntar. Bom, mas deixa as coisas comigo. Telefono-te
assim que souber alguma coisa. Não te preocupes, à tarde já vais, com certeza, poder
falar com ela.”
Mas não pude não me preocupar. Passei a manhã na Boa Hora, cada vez
mais preocupado e com a sensação crescente de que algo de errado se estava
a passar. Liguei menos do que devia aos dois julgamentos que tinha
marcados, e só por completa inépcia dos advogados da parte contrária num
caso, e no outro por nítida ajuda da procuradora-adjunta, que deve ter
reparado que eu não estava bem, é que os meus clientes não foram
prejudicados.
Almocei com a Catarina, mas achei melhor não lhe dizer nada, ela estava
muito bem disposta e queria falar de quando vier viver comigo; por isso,
aproveitei para pensar em coisas mais alegres, em vez de continuar a dar
alento a uma preocupação que, tentei convencer-me, era provavelmente
infundada.
331
Às duas e meia estava de volta ao escritório. Tinha duas marcações seguidas,
referentes a situações bastante complicadas que, felizmente, exigiram a
minha total concentração, impedindo-me assim de continuar a raciocinar em
seco, acerca do que se estaria, ou não, a passar.
O Leonel telefona-me às cinco, estavam os últimos clientes a sair a porta do
gabinete com a Mónica.
“Não consigo falar com ela, Jak. Tentei a Luanna também, mas ela disse-me que não
sabia de nada. Que iria tentar encontrá-las e depois me ligava. Acho que só nos resta
esperar.”
“Pois, estou a ver que sim. Mas, ouve lá, isto não te parece estranho, a ti? Ela está
muito bem lá em casa, dá-se com a Catarina como Deus com os anjos, diz-me „até
logo‟ e depois desaparece sem voltar a dar sinal, já lá vão quase três dias?”
“Bom, sim, sem dúvida. Mas, há, com certeza, uma explicação lógica. A Luanna vai
encontrá-las e em breve saberemos.”
Mas nada se soube.
Às seis horas saí do escritório e fui ter com o Leonel ao banco. Como de
costume, ainda estava toda a gente lá dentro, apesar do horário de saída ser
às quatro e meia. Telefonei-lhe da porta, veio abrir e fomos para o gabinete
dele.
“Então, ela disse-te alguma coisa?”, pergunta-me quando entramos.
“Não, nada. E a Luanna?”
332
“Nada também. Acabei agora de falar com ela. Diz que não consegue encontrar nem
uma nem outra, que as duas outras miúdas que partilham a casa com a Tatiana e
com a Janna estão de férias, e que, por isso, não consegue sequer ir lá a casa. Mas
também me disse que vai perguntar ao tipo com quem anda, que é um lá do clube, se
ele sabe alguma coisa acerca delas. Disse que ia jantar com ele e perguntou se
podíamos ir ter com ela depois à Gata Perfumada.” Olha-me pensativo. “Sabes, ela
também me perguntou se a Janna não teria simplesmente decidido arranjar outra
pessoa, sem te dizer nada. Por ver que as coisas estavam a ficar demasiado sérias, e
para não te magoar, estás a ver? Disse que seria o que ela teria feito, cortar as coisas
logo no início, antes de doerem demasiado”, diz, tentando consolar-me.
“Irra, homem!”, expludo, talvez extemporaneamente. “Desculpa. Agradeço que
tu e a Luanna procurem explicar-me os factos da vida. Mas eu não sou exactamente
uma criança, Leonel. Eu sei que não foi isso que ela fez. A Janna não é assim,
garanto-te. Se fosse o caso de não querer estar comigo, ela dir-mo-ia. Portanto, das
duas, uma; ou lhe aconteceu alguma coisa a ela, ou a alguém da família dela, e, em
qualquer dos casos, ela não quer pedir-me ajuda, talvez por um sentimento deturpado
de honra ou outra coisa igualmente imbecil. Aliás, quanto mais penso nisto, mais me
parece que algo de estranho se está a passar... Mas, está bem; deixemos a Luanna
averiguar por sua conta, junto lá desse tipo com quem ela anda, e depois vamos,
então, ter com ela ao clube.”
Ele estica o braço por cima da secretária e dá-me uma palmada no ombro,
levantando-se de seguida e dizendo: “Isso assim é que é falar. Demos tempo ao
tempo. Olha, eu já não tenho mais nada que fazer aqui, por isso vamos arranjar lugar
aí numa cervejaria, beber umas bejecas e jantar, enquanto esperamos por serem horas
de irmos ter com a Luanna. Pago eu, que é para me penitenciar das perguntas parvas
que tive de te fazer.”
333
Sigo-lhe o exemplo e levanto-me também. “Não sejas tosco, Leonel. Tens lá
agora que te penitenciar. Eu é que tenho de te agradecer a ajuda, se não fosse tu
conhecer aquelas miúdas todas, ainda andava às apalpadelas. Quando muito
pagamos a meias.”
“Bom, está bem, pagamos a meias então”, concorda, e depois acrescenta. “Mas
olha que, isso de andar às apalpadelas, se fosse n´A Gata Perfumada até eras capaz de
ter ficado mais bem servido sem a minha ajuda”, ri-se, uma das suas gargalhadas
homéricas ... e eu não posso deixar de me rir com ele.
Saímos do cubículo a que o BTP chama gabinete e avançamos pelo corredor
em direcção à saída.
“Ó Leonel! Onde é que vai?”, ouvimos chamar, arrogantemente, atrás de nós.
O Leonel estaca, revira os olhos e volta-se com um sorriso nos lábios.
“Vou para casa. Porquê? Aconteceu alguma coisa?”
O tipo que nos interpelou parece um rapazola e está de braços cruzados,
desafiador, em frente à porta de um gabinete, duas atrás da do Leonel. Tem
ar de quem se tem em muita consideração, cabelo não muito curto, nem
muito comprido, penteado para trás com gel – à corretor de bolsa anos
oitenta – sem casaco, traz vestidas as calças do fato cinzento-escuro que
passa por uniforme neste banco, seguras por suspensórios às riscas azuis,
uma camisa azul-claro, e uma gravata que parece igualmente saída de um
catálogo de roupas para bancários com vontade de fazer carreira.
334
“Aconteceu alguma coisa?! Aconteceu alguma coisa? Você ainda pergunta? Eu
ainda não saí, pois não? Portanto, isso é sinal que ainda há trabalho para fazer, não
acha?”, diz, num tom perfeitamente desagradável.
O Leonel, como sempre o vi fazer, mantém uma calma de fazer inveja a um
morto.
“Repare, isso talvez seja verdade para si, mas eu há já bastante tempo que acabei o
que tinha a fazer. Passa muito da hora, por isso, vou para casa.”
“Ah, não tem que fazer. Bem, mas isso resolve-se já. Eu dou-lhe já que fazer, que há
aqui ainda muito trabalho”, retorque o outro, com a mesma soberba. “E essa da
hora, não pega. Aqui há isenção de horário, como bem sabe. É para isso que lhe
pagam.”
“Não, Duarte, repare, a mim pagam-me para fazer o meu trabalho, que já fiz. Não me
pagam para ficar aqui à espera que você faça o seu, para sair depois de si. Por isso,
voltamos à primeira forma. Eu vou para casa – a menos que haja alguma emergência,
que não estou a ver qual seja”, diz o Leonel, sempre afável.
“Em primeiro lugar, você trata-me por Dr. Duarte. Eu não andei consigo na escola.
Em segundo lugar, se você sair por aquela porta, fica avisado que participarei de si à
Administração e farei com que você seja despedido. Entendido?”
O rapazola deve ser completamente desmiolado e não sabe com quem se está
a meter, ou então tem instintos suicidas, penso para comigo. Deixo-me estar
encostado à parede, à espera que a coisa se resolva.
Mas o Leonel continua calmo, como se não fosse nada com ele. Um ligeiro
acenar do queixo é a única indicação de que já decidiu o que fazer.
335
“Bom, está bem. Disse então que tem aí coisas que precisam de ser feitas. Faça o favor
de mas dar”, diz, avançando. O outro rejubila com a vitóriazinha a que já
sente o sabor e entra para o gabinete. O Leonel alcança-o em duas ou três
passadas calmas, volta-se para trás, pisca-me o olho, entra e fecha a porta.
Primeiro ouvem-se dois estalos, depois alguns ruídos de protesto que
depressa se convertem em murmúrios, um monólogo abafado e, finalmente,
o Leonel volta a sair do gabinete, sorridente como sempre.
Ao corredor tinham, entretanto, chegado duas outras pessoas, atraídas pela
comoção. Um homem mais velho e uma rapariga nova. Mas o Leonel levanta
as mãos para os sossegar.
“Está tudo bem. Não se passa nada. O Duarte já saiu e disse que podíamos todos ir
para casa”, anuncia, sorrindo.
O homem sorri e pisca o olho ao Leonel. A rapariga não parece convencida.
“De certeza, Leonel? Olha que eu não quero mais problemas.”
“Absoluta, Té. Aliás, acho que não vai ser preciso preocupares-te mais, seja com que
o for. Algo me diz que o Duarte vai admitir, finalmente, que se portou mal contigo.
Vais ver que vai ficar tudo resolvido e passas de desterrada a promovida. Anda, vai
para casa, vai.”
Ela dir-se-ia não querer acreditar no que ele lhe diz. Mas depois deixa-se
convencer; dá-lhe um beijo na cara, murmura „obrigada‟ e sai porta fora com
ar feliz, a marcar um número no telemóvel.
336
Os outros, que entretanto foram aparecendo, seguem-na pouco depois. Uma
vez que alguém lhes disse que podiam sair, a responsabilidade deixa de ser
deles.
Quando ficamos sozinhos, o Leonel chama-me com a mão e abre a porta do
gabinete do Doutor Duarte. Lá dentro, ele não parece tão arrogante como há
pouco. Furioso, talvez, mas não tão arrogante.
O fio eléctrico que lhe prende os pulsos por cima dos punhos duplos da
camisa de algodão e o suspende da armação que suporta o tecto falso é
suficientemente comprido para lhe manter os braços esticados, mas deixarlhe, ainda, os pés no chão. Tem as calças ao fundo das pernas, um umbigo
peludo e um slip minúsculo de cetim creme às pintinhas cor-de-rosa
aparecem por baixo da fralda da camisa repuxada, que também deixa ver um
coração, cruamente desenhado a marcador vermelho por cima das nádegas.
Os pés, atados com os suspensórios, oscilam-lhe de um lado para o outro,
enquanto ele tenta, em vão, libertar-se. Enfiada na boca tem a ponta enrolada
da gravata de bancário em ascensão.
Quando dá por nós, pára de estrebuchar. O olhar carregado segue o Leonel
quando entramos no gabinete, e se a intenção pudesse matar, ele já teria
deixado de respirar. Tudo na sua expressão denuncia o ódio que sente pelo
Leonel.
Mas este ignora-o completamente e nem sequer se aproxima dele. Senta-se
na borda da secretária, coloca a tampa no marcador vermelho de que se
serviu para decorar o outro, pega num ponteiro que estava em cima do
tampo e começa a chicotear o ar com ele.
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“Sabes, aqui o „Doutor‟ Duarte, é um verdadeiro déspota à moda antiga. Gosta muito
de gritar ordens a toda a gente. E depois não tem respeito por ninguém. A pobre da
Té que o diga...” O homem arregala mais os olhos, desta vez de surpresa.
Pensava talvez que, o que quer que seja a que o Leonel se está a referir, não
era do conhecimento de ninguém. É nesta altura que começa a perceber que
a sua posição é capaz de ser ainda mais desconfortável do que lhe parecia.
“Mas sabes o que eu penso? Que toda esta arrogância, toda esta prepotência, têm em
vista compensar a falta de alguma coisa. Estás a ver o que quero dizer?”
Eu finjo que me interrogo e depois faço sinal que não sei. Já estou mesmo a
ver como é que isto vai acabar. O Leonel continua o discurso, como se
estivesse perante uma sala de aula, a analisar um qualquer problema
abstracto, chicoteando, distraidamente, o ar com o ponteiro, fazendo-o sibilar
perigosamente perto da zona genital do outro. O tipo, agora deveras
assustado, encolhe-se o mais que pode, dobrando os joelhos e puxando as
pernas para cima, para evitar as pancadas que já sente como inevitáveis. Os
olhos quase lhe saem das órbitas e não deixam de fitar o ponteiro.
Um último movimento brusco com o pulso, e o ponteiro pára a milímetros
do tecido creme às pintinhas cor-de-rosa, enquanto o Leonel o fita
duramente nos olhos e lhe diz:
“Ouve, pázinho, tenho más notícias; se não tens, já não cresce. Por isso, aconselho-te
a fazer o que fazem muitos outros: compra um carro grande. E deixa de chatear toda
a gente, está bem? Ah, a propósito, vais dar o dito por não dito, vais cancelar a
transferência da Té, e não voltas a meter-te com ela, percebes? Da próxima vez, és
capaz de não te safar tão airosamente.” Ele acena que sim com quanta força tem
– pensando que o castigo chegou ao fim e satisfeito por ver que, afinal, não
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lhe aconteceu nada de maior – disposto a concordar com tudo o que o Leonel
quiser, desde que ele o não deixe naquela posição. Mas o Leonel não lhe liga
nenhuma.
“Bom, então, até amanhã. Deixamos-te aqui para ver se arejas as ideias por mais
umas horas. Mas não te preocupes, as mulheres da limpeza depois ajudam-te a
descer”, diz, com um sorriso, enquanto se dirige para a porta
Duarte grunhe e resfolega de raiva quando percebe que vai mesmo ficar
pendurado como um presunto e com as calças em baixo. O Leonel volta atrás
e o outro cala-se subitamente e encolhe-se, pensando que vai apanhar.
Porém, ele limita-se a tirar-lhe a gravata da boca e a dizer, quase
preocupado, “Era capaz de se estragar com a saliva.” Dá-lhe duas palmadinhas
amigáveis na face e volta a dirigir-se para a porta, enquanto o outro lhe atira
um chorrilho de insultos bastante criativos. Mas o Leonel fecha a porta e o
som desaparece quase por completo.
“Já era tempo de ter uma conversa com ele, e hoje pareceu-me um bom dia. Achas que
percebeu?”, pergunta, fingindo-se preocupado.
“Oh sim, disso não tenho qualquer dúvida. Mas não pensas que ele possa apresentar
queixa?”
“De quê? Contra quem? Não estava aqui ninguém quando isto aconteceu. Já
tínhamos todos ido para casa, infelizmente, pois o banco faz questão que todos
piquemos o ponto às quatro e meia”, diz, exibindo uma expressão de pesar
fingido e depois ri-se. “Nâ, ele vai calar-se muito bem calado; e se não conseguir
libertar-se antes da chegada das mulheres da limpeza – e não consegue – vai contarlhes uma história qualquer ou oferecer-lhes dinheiro para as calar, mas isso não lhe
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vai servir de muito, porque elas não vão deixar morrer uma história assim, e dentro
de dois dias já o banco todo sabe que ele foi apanhado no gabinete com as calças em
baixo e um coração desenhado a vermelho no fundo das costas. E como quem conta
um conto, acrescenta um ponto... Por isso, o melhor que o Duartito tem a fazer é
bater a bola rasteirinha durante os próximos tempos, até que o assunto passe de
moda. E ver se muda de personalidade, porque aquela só lhe faz mal ao fígado.
Anda, vamos beber uma cervejola.”
===================¤==================
Algumas horas, um jantar e umas quantas cervejas mais tarde, paramos o
Kalahari, que fomos buscar ao Castelo, no parque de estacionamento do
clube e entramos; o Leonel acolhido pela mesma calorosa recepção da última
vez, eu indiferentemente recebido na sua companhia. Quer os porteiros quer
a empregada do bengaleiro, já devem ter-me catalogado como curioso, do
tipo não evolutivo para cliente fixo, e dispensam-me apenas a atenção
estritamente necessária a não raiar a má-educação.
Passamos pelo bar sem nos deter e entramos na sala obscurecida, onde estão
a decorrer várias danças, nas mesas dos clientes que se sentiram mais
dispostos a separarem-se do dinheiro. O ambiente é festivo, como seria de
esperar, e a sala está quase cheia, o que eu não esperaria a uma segundafeira. Mas talvez cá estejam para esquecer que a semana começou hoje,
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afinal, todos os motivos são bons. O chefe de sala vem ter connosco mal nos
vê, apertando, calorosamente, a mão que lhe estende o Leonel.
“Dr. Paiva. Que prazer revê-lo. Quer a sua mesa habitual ou posso oferecer-lhe
outra?”, pergunta justamente esperançoso, dado que „a mesa habitual‟ do
Leonel parece-me daqui estar ocupada.
“Uma qualquer serve, Sr. Torres. Aliás, de preferência uma mais abrigada, porque
precisamos de conversar.”
O homem fica visivelmente satisfeito com a resposta, e diz:
“Certamente, Dr. Paiva. Faça o favor de vir por aqui.”
Chegados à mesa que nos destina, a meio caminho entre a parede e o fim da
sala, sentamo-nos e quando o homem nos pergunta o que queremos beber, o
Leonel diz-lhe para trazer o costume, e depois pergunta-lhe:
“Você sabe alguma coisa da Janna?”
O outro pára a meio da palavra que estava a escrever no bloco electrónico,
como se uma corrente de ar glaciar o tivesse, de súbito, congelado entre
letras. Olha nervosamente à sua volta, como que receoso que alguém o possa
ouvir e depois diz a meia-voz:
“Desculpe, Dr. Paiva. Mas não sei se o posso ajudar. Creio que ela já não trabalha
aqui.”
Surpreso, não reajo. O que, pensando bem, até nem é mau de todo. Porque
talvez tivesse sido asneira reagir. O Leonel, porque o viu assustado, continua
a conversar com o homem no mesmo tom de confidência.
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“Então, e não sabe onde a podemos encontrar? É muito importante.”
O chefe de sala passa a língua pelos lábios e volta a passear nervosamente os
olhos pelas mesas; o que deve ter visto pareceu-lhe suficientemente seguro
para se curvar para nós, com as costas para a sala, e dizer rapidamente:
“Desculpe, não posso falar acerca desse assunto aqui. Por favor, sem dar nas vistas,
vá ter comigo ao meu gabinete dentro de dez minutos – passando a toilette, é a porta
à esquerda que diz „privado‟.”
Endireita-se, rasga um rectângulo de papel contendo o recibo do pedido do
minúsculo rolo que o bloco acabou de imprimir, deposita-o sobre a mesa e
afasta-se, com o mesmo ar seráfico que lhe reconheço da última vez. Não
sem antes poder ter visto as grossas bagas de suor que lhe rodeavam a
cabeleira rala. Numa sala nem por isso aquecida, não haveria razão para
tamanha reacção; a não ser que esteja realmente assustado. O que me faz a
mim ficar mais preocupado. E tudo sem saber, ainda, realmente porquê.
Pouco depois, trazem-nos o costume do Leonel. Mais cerveja. Onde é que
este gajo a mete é que não faço a mais pequena ideia. Beberricamos
levemente enquanto passeamos casualmente o olhar pela sala, para ver
quem está, mas também para tentar perceber a razão do terror do nosso
anfitrião. Eu vejo pelo menos uma cara conhecida, entre três não muito
recomendáveis, sentados sensivelmente a meio da sala e completamente
vidrados no requebrar das ancas de uma curviliníssima morena de cabelos
compridos, que parece não ter falhado um único dia de sol no Meco. O meu
amigo do Jaguar; talvez, os meus amigos do Jaguar.
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Meto os olhos no copo, para não lhes atrair a atenção, ao mesmo tempo que
me interrogo se serão eles a razão da aparente falta de verbosidade do chefe
de sala e, nesse caso, se a sua presença terá algo a ver com o desaparecimento
da Janna.
Entretanto, o Leonel decide que já passaram dez minutos, pousa a tulipa na
mesa e abre caminho em direcção à toilette, sem despertar aparentemente a
atenção de ninguém. Eu deixo-me ficar sentado, não só porque talvez fosse
contraproducente irmos os dois falar com o homem, mas também porque é
conveniente que alguém fique a guarnecer a retaguarda, no caso de quem
quer que seja que esteja a assustar o Torres decida fazer-lhe uma visita.
Indiferentes a estas considerações, as bebidas vão chegando às mesas e a
animação continua ruidosa, com nada menos do que oito danças privadas a
decorrer ao mesmo tempo e a dar à sala uma aparência de festim romano.
Vinte minutos mais tarde, vejo-o regressar, apertando distraidamente o
casaco, percorrendo a sala com o olhar, aparentemente sem se interessar por
nada nem ninguém em particular. Mas eu já o conheço, para saber que a
expressão que exibe é tudo menos de desinteresse. E também percebo quem
é o objecto do seu interesse.
As minhas suspeitas confirmam-se.
O Leonel senta-se a meu lado, volta a pegar no copo de cerveja para beber
mais um gole e depois diz:
“Os tipos que nos interessam estão sentados atrás de nós. Vamos sair daqui a pouco e
esperar por eles lá fora.”
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“Sim. Eu sei quem são. Já tive o prazer de os conhecer.”
Ele olha para mim com alguma surpresa, mas nada pergunta. Lá fora terei
tempo de lhe contar como e de onde os conheço.
Acabamos as cervejas. Eu aproveito para ir despejar a parte da minha que já
foi reciclada, e saímos calmamente d‟ A Gata Perfumada.
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Estamos dentro do Lada, estacionado junto a uma velha Traffic com os pneus
em baixo, que não dá ideia de poder sair dali, dois carros ao lado do Jaguar
cinzento que, entretanto, descobri na primeira fila do parque, mesmo ao pé
do rio. O sítio é ideal, dado que nos permite ver claramente as duas entradas
do clube, ao mesmo tempo que nos esconde de quem de lá saia.
O motor eléctrico central do Kalahari besoura quase imperceptivelmente em
dueto com o ar condicionado, enquanto fumo uma cachimbada, vou
pensando no que o Leonel conseguiu descobrir. Primeiro que a Tatiana afinal
está de férias esta semana, foi para as Baleares com uns amigos. Quando o
Torres lho disse, o Leonel recordou-se, então, de a Tatiana ter mencionado
qualquer coisa acerca do assunto. O que significa que ela tão-pouco deve
saber da Janna, a quem o Torres não põe a vista em cima desde sábado.
Quando ela não apareceu no domingo, tentou falar-lhe para casa e como não
teve resposta, avisou o gerente. Este respondeu-lhe que ela tinha deixado de
trabalhar ali. Quando o Torres lhe perguntou se se tinha passado alguma
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coisa, o outro disse-lhe apenas que não se metesse onde não era chamado, se
sabia o que era bom para ele. Entretanto, hoje, a Luanna apareceu no clube
com o lábio rebentado e outros sinais menos evidentes de maus tratos,
aparentemente por ter perguntado ao tipo com quem anda, um dos que
estavam sentados na mesa, se ele sabia alguma coisa da Janna. O homem
estava bastante assustado com toda aquela história e dizia que ia despedir-se
mal voltasse a ver o gerente. O Leonel perguntou-lhe quem eram o
namorado da Luanna e os amigos e ele disse que não sabia, que eram russos
ou polacos ou coisa que os valha, músculos de aluguer, certamente, e que só
respondiam ao dono do clube, mas que ele preferia não falar mais do
assunto.
“Então, e tu não sabes mesmo quem são os gajos?”, pergunta o Leonel,
interrompendo as minhas recordações e trazendo-me de volta à realidade.
“Não, não faço a mínima ideia”, afirmo enfaticamente, e depois explico:
“Primeiro pensei que se tivesse tratado de uma coisa aleatória, tipo „olha, vamos
passar por cima deste gajo para ver se ele espicha‟, mas depois, da primeira vez que
aqui vim, reconheci um dos tipos – uma cara de facínora daquelas não se esquece,
mesmo vista por um retrovisor através de um pára-brisas – e percebi que ele me
reconheceu. Ora, isso teria sido impossível se o ataque tivesse sido aleatório, por
causa do capacete. Era mesmo a mim que eles queriam quando tentaram atropelarme. Agora, quem eles são e porque tentaram fazê-lo é que eu não sei.
Se queres que te diga, porém, também não tenho pensado muito nisso. Como a
tentativa foi única, achei que não valia a pena dedicar-lhe muito tempo. Tenho tido
coisas mais interessantes a que o dedicar.”
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Ele ri-se, embora não tenha sido de todo aquilo em que ele pensou a que eu
me estava a referir.
“Pois, percebo o que dizes. Bom, mas hoje talvez fiques a saber. A propósito, com
licença...” Estende o braço, abre o compartimento superior do tablier e tira de
lá duas Makarov 9 e dois supressores de som.
“Onde é que as arranjaste?”, pergunto, enquanto enfio na coronha o
carregador cheio que, entretanto, me passa para as mãos.
“Estas? De há uns anos a esta parte, é a arma que mais facilmente se encontra no,
chamemos-lhe assim, circuito paralelo. Barata, de confiança e capaz de fazer grandes
estragos – tal como eu gosto delas.”
“Tens provavelmente razão nos três pontos, embora eu prefira as HK12.”
Ele encolhe os ombros, não podendo discutir a minha preferência, mas
achando, provavelmente, que não vale a pena pagar a diferença entre uma
arma e outra. Não o vou contradizer, especialmente quando foi ele quem se
lembrou de trazer as Makarov, pois, quanto mais penso nos tipos a quem nos
vamos dirigir, mais me parece ser boa ideia tê-las connosco.
Aguentamos calmamente a passagem das horas, o ir e vir de carros no
parque de estacionamento, dos tipos e tipas que fazem o calmo circuito da
noite lisboeta das segundas; até que, depois do último empregado ter saído,
eles acabam, finalmente, por dar sinal de si, já a primeira claridade do novo
dia começa a alastrar por um céu até agora de um tom escuro indistinto.
Trazem com eles três raparigas, uma delas a Luanna, o que não estava
previsto. Mas há coisas que não se podem prever.
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Saímos silenciosamente do 4x4 e circundamos a Traffic pelo lado do cais,
descendo eu entre esta e outro carro que nos separa do Jaguar, e
prosseguindo o Leonel ao longo da margem do rio.
A sorte parece estar do nosso lado, só um vem abraçado a uma rapariga – o
da Luanna, procurando, talvez, redimir-se do tratamento anterior. As outras
duas acompanham-nos apenas, embora entre a Luanna e um dos tipos. O
terceiro vem ligeiramente à frente e tem a chave na mão.
Um sinal do Leonel diz-me que ele está pronto. Eu confirmo-lhe que também
estou e saímos de detrás dos nossos esconderijos e apontamos-lhes as armas,
dizendo-lhes para ficarem quietos onde estão.
Mas eles, ou porque não percebem português, ou porque o que beberam os
terá deixado duros de ouvido, não obedecem. O que leva a chave, deixa-a
cair e lança a mão ao sovaco, presumivelmente para ir buscar uma arma. Mas
não chega a completar o movimento. Quer eu, quer o Leonel, estamos
atentos, e ele cai para o chão com quatro orifícios extra no corpo; embora não
sirvam de nada, porque quando lá chega já vai morto. Os paralelepípedos
escuros da calçada começam a desaparecer debaixo de uma mancha
aveludada escura que alastra a partir do corpo.
A rapariga do meio, solta um grito histérico, faz meia volta e tenta fugir em
direcção ao clube, mas os saltos altos das sandálias que traz calçadas, não
foram feitos para movimentos rápidos em pavimentos calcetados e ela vai
parar ao chão agarrada ao tornozelo, dois passos mais à frente, onde fica a
choramingar.
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Os outros dois fazem o que se esperaria deles, agarram nas raparigas que
restam e protegem-se com elas. O que está mais perto de mim tenta,
desesperadamente, tirar qualquer coisa do bolso do casaco, enquanto segura
a assustada rapariga, rodeando-lhe o pescoço com um braço. Ponho-lhe fim
aos esforços, metendo-lhe uma bala no antebraço, que o deixa a ganir e a
sangrar copiosamente, embora não solte a sua presa, que, entretanto, perdeu
o controlo da bexiga e chora baixinho com os olhos fechados de medo,
enquanto uma pequena poça de urina vai crescendo sob os seus pés.
O que vinha agarrado à Luanna, o meu conhecido da auto-estrada, foi mais
expedito; conseguiu tirar do bolso e abrir uma navalha de ponta e mola, que
agora tem encostada ao pescoço dela, que treme como varas verdes no alto
dos tacões de quinze centímetros.
A situação começa a tornar-se complicada. Alguém pode ouvir o que se
passa e chamar a polícia e depois é que vão ser elas. É preciso sairmos daqui
depressa.
Mas como? O tipo vai gritando um chorrilho de palavras em russo,
dirigindo-se ao outro – que mal o ouve, pois se não fosse estar agarrado à
miúda e ter-se encostado a um carro, já tinha caído para o chão –, alternando
com insultos em espanhol macarrónico, presumivelmente dirigidos a nós.
“Coño de tu madre! Hijos de puta! Venid, venid, que la nena se muére aqui ya!”
Enquanto vai recuando, afastando-se de nós em direcção ao companheiro.
Mas a natureza dispôs que a mistura de urina com sangue sobre
paralelepípedos de calçada fosse escorregadiça e os pés deslizam-lhe para
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onde ele não quer, fazendo-lhe perder, momentaneamente, o equilíbrio.
Cerra com mais força o braço que tem em volta da cintura da Luanna; mas
isso revela-se insuficiente, dado que ela também parece prestes a perder o
equilíbrio. A navalha acaricia-lhe, perigosamente, o longo pescoço, e vê-selhe nos olhos que ela está deveras aterrorizada.
Entretanto, o seu captor prossegue um bailado frenético para se manter de
pé. A dado ponto deixa de o conseguir e larga a navalha para se apoiar nos
ombros da Luanna. Não sem antes a cortar, talvez inadvertidamente, pouco
abaixo do ombro.
Fosse pela dor fina do corte a ter soltado da paralisia aterrorizada em que se
encontrava, fosse por já não se sentir ameaçada, a rapariga escolhe reagir.
Empurrando o seu agressor para trás com os cotovelos e fazendo-o
desequilibrar-se ainda mais, solta-se do abraço que a detinha e afasta-se,
fazendo meia volta e alçando um joelho para o encaixar violentamente entre
as pernas dele.
O tipo cai no chão de joelhos ainda agarrado aos tomates, enquanto ela se lhe
dirige em termos que o deixariam num honroso segundo lugar numa
competição de insultos.
“...eiro! Cabrão! Gostas de bater, é? Então, toma lá mais, a ver se também gostas de
levar!” E dá-lhe novo pontapé entre pernas.
Por mais que gostássemos de a deixar descarregar a sua frustração, a
verdade é que não nos parece que tenhamos muito tempo. Enquanto eu
mantenho os dois tipos ainda vivos sob cobertura, o Leonel abraça a Luanna
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e conforta-a, dizendo-lhe que têm de sair dali depressa. Pergunta-lhes se têm
carro e ela diz-lhe que não.
Uma troca de olhares serve para decidirmos rapidamente o que fazer.
Depois de confirmarmos que ninguém nos observa, deitamos o cadáver para
a água, juntamente com as pistolas e os silenciadores. Armas ilegais usadas
num homicídio, ainda que numa situação que se poderia alegar de legítima
defesa, não são do tipo que o Leonel gosta de conservar na sua colecção.
Atamos os braços e as pernas dos dois tipos vivos, servindo-nos dos cintos
deles e das tiras de cabedal das sandálias de uma delas. Rasgo a camisa do
ferido para estancar o sangue que lhe escorre pelo braço, e atiramos com eles
para a traseira do Kalahari, cobrindo-os com um oleado.
Metemos as outras duas miúdas comigo no Jaguar, enquanto a Luanna se
senta no Lada com o Leonel, saímos do parque de estacionamento quase
vazio o mais disfarçadamente que podemos, e seguimos por caminhos
diferentes para a costa do Castelo.
===================¤==================
Depois de um primeiro momento, em que dir-se-ia querer deixar o Leonel
em piores condições do que os tipos que tínhamos atados, pés e mãos, no
chão da garagem, a Tuuva pareceu acalmar-se e com um estoicismo nórdico
levou as miúdas para cima, para cuidar delas.
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“Nunca vi a Tuuva assim tão zangada”, digo depois de elas subirem.
O Leonel encolhe os ombros.
“Não te preocupes. Ela fica bem. Deve ter ficado aborrecida por a termos acordado tão
cedo”, ri-se, sabendo bem que não tinha sido, de todo, por isso que a mulher
tinha gritado com ele. “Bom, vamos ver o que sabem estes marmanjos acerca da
Janna?”
Digo-lhe „vamos a isso‟, e prevendo que seja necessário empregar alguma
persuasão para os fazer falar, pegamos neles e levamo-los para o ginásio nas
traseiras que, não tendo janelas e estando semienterrado na encosta, parece
ser a divisão ideal para este tipo de conversas.
Uma hora mais tarde estamos exactamente onde começamos. O ferido já
desmaiou duas vezes e não parece estar em condições de revelar seja o que
for. Deve tratar-se de uma adição nova ao grupo, porque se vê, nitidamente,
que o tipo está cheio de medo e já teria revelado tudo o que sabe, se acaso
soubesse alguma coisa e um de nós falasse russo, ou ucraniano, ou qual seja
a língua que ele fale.
O outro, mais seguro de si, mais perigoso e bastante mais resistente, finge
não saber mais nada de espanhol, além dos insultos que continua a atirar-nos
sempre que pode.
Um censo rápido revela-nos que nenhuma das raparigas nos pode ajudar.
Além da Luanna, que de russo não pesca nada e que diz que se entendia com
o ex-amigo em portunhol, as outras duas, uma eslovena e a outra romena,
tão pouco sabem alguma coisa da língua de Tolstoi.
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Estou prestes a resignar-me à impossibilidade de obtermos informações
acerca do paradeiro da Janna da boca destes dois energúmenos, quando me
lembro que até conheço alguém que fala russo. Alguém que, se as suspeitas
que tenho acerca da identidade destes nossos amigos estão certas, estará
mais do que disposta a ajudar-nos.
Deixando os outros a lamber as feridas no ginásio, empurro o Leonel para a
garagem e conto-lhe a história da Raisa e do Jorge, dando-lhe uma versão
mais completa dos acontecimentos. Quando termino, ele olha para mim com
ar apreciativo.
“Sim senhor! E eu a julgar que tu levavas uma vidinha chata e sensaborona”, diz,
aparentemente satisfeito por não ser assim. E continua: “Parece-me a pessoa
ideal Tenho a certeza que estes tipos sabem qualquer coisa, mas a continuarmos
assim, eles podem contar-nos a vida toda deles e ficamos exactamente na mesma. São
oito da manhã, achas que a podemos ir buscar?”
Encolho os ombros para significar que não tenho a mais pequena ideia, mas
depois digo que sempre podemos tentar. Avisamos a Tuuva e outras que
vamos sair, confirmamos que os tipos da cave não têm hipótese de se soltar e
vamos na S6 Quattro da Tuuva buscar a Raisa.
===================¤==================
Quando vamos a meio caminho, lembro-me que tinha reactivado a linha de
telefone lá de casa e ligo-lhe. Atendeu à segunda tentativa, a voz receosa, ou
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por ser ainda muito cedo para ela, ou por não estar à espera que alguém lhe
ligasse para ali.
Quando lhe digo que preciso da ajuda dela e que vou a caminho, ela
concorda em encontrar-se connosco à porta do prédio daí a vinte minutos.
Uma vez na carrinha, explico-lhe o que se passa e quem penso serem os tipos
que temos na cave – membros do grupo que gere o clube de Madrid em que
ela trabalhou e que poderão, eventualmente, ter morto o Jorge Pizarro de
Almeida.
Peço-lhe que me descreva o Boris e o Vlad. Quando o faz, chego à conclusão
que o primeiro já deve estar a fazer as regalias de um ou mais cardumes de
peixes, enquanto o segundo espera por nós no ginásio do Leonel. O terceiro,
descrito por mim, parece ser-lhe desconhecido.
Visivelmente agradada com a ideia de poder fazer pagar a Vlad o mal que
ele lhe fizera, a Raisa envolve-se num abraço e recosta-se no assento de pele
castanha-escura, dando asas à imaginação.
Prosseguimos o resto do caminho em silêncio, e é em silêncio ainda que
entramos na garagem e esperamos que a porta acabe de fechar.
===================¤==================
Os tipos ainda estão onde os deixámos. O ferido deitado no chão, ou dorme
ou desmaiou novamente, embora a quantidade de sangue que perdeu não
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me pareça justificar tal fraqueza. Vlad, porque se trata efectivamente dele,
continua sentado de encontro à perna do banco de peitorais, que está presa
ao chão com rebites e só com um macaco hidraúlico poderia ser solta. O que
não o impede de ter tentado, conforme demonstram as marcas avermelhadas
que as algemas do Leonel lhe deixaram nos pulsos, apesar da protecção
aveludada.
Tendo em conta as circunstâncias, não vi razão para perguntar aos donos da
casa para que lhes servem os quatro pares de algemas forradas a veludo
negro, que usámos para restringir os movimentos dos nossos convidados.
Mas tomei nota.
Fechamos a nesga da porta que nos permitiu observá-los sem sermos vistos e
acordamos rapidamente o que fazer a seguir.
Não dispondo de meios sofisticados para provocar a inconsciência, vimo-nos
forçados a recorrer a meios mais tradicionais. Um porrete, expressamente
trazido da colecção do Leonel e sabiamente empregue, depressa reduz o
Vlad a um peso morto.
Depois de levado o outro ainda algemado para a garagem, onde a Tuuva lhe
faz um penso mais adequado ao buraco que tem no braço, damos cuidada
atenção àquele que esperamos conseguir converter em arara ou em qualquer
outra espécie de ave canora.
Despimo-lo por completo e sentamo-lo no banco de peitorais inclinado, com
uma almofada encostada aos rins, para que o assento se torne quase
demasiado pequeno para as suas nádegas.
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Abrimos-lhe as pernas à largura máxima que podemos e prendemos cada
uma delas com cordas, às costas de bancos de exercícios, deixando-as
suspensas. O pénis pequeno e mole e o escroto enrugado são atraídos para o
solo pela gravidade e dão-lhe um aspecto ainda mais ridículo.
Sentamo-nos cada um num dos bancos a que lhe prendemos as pernas,
prevendo os coices que ele dará quando perceber o que lhe queremos fazer, e
esperamos calmamente que desperte.
Quinze minutos depois, quando já penso se não lhe terei dado com
demasiado entusiasmo, começa a dar acordo de si.
Quando abre os olhos dá de caras comigo e com o Leonel que lhe sorrimos
abertamente.
“Então, a soneca, foi boa?”, pergunto-lhe em espanhol, língua que a Raisa nos
disse perceber perfeitamente, ainda que o seu vocabulário de respostas seja
bastante limitado.
“Cabrón. Chinga tu madre!” É a resposta que recebo. Sorrio-lhe de volta e
mostro-lhe a tesoura de podar que tenho nas mãos. Ele repara, então, que
nada tem vestido; sente, porque a posição em que está não o permite que
veja, o sexo dependurado, e parece, então, realizar o apuro em que se
encontra.
Mas, honra lhe seja feita, não desarma. Faz voz grossa e redobra os insultos
em espanhol e em russo, pensando, talvez, que se vai ficar a falar mais fino, o
melhor é deixar uma boa recordação da voz que teve. Porém, não dá sinal de
estar interessado em conversar.
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“Sabes, Vlad, as coisas não são tão simples quanto por vezes parecem”, digo
suavemente; o uso do nome fazendo-o, nitidamente, pensar que nós talvez
saibamos mais acerca dele do que gostaria. “É por isso que, ao contrário do que
te parece, não vamos ser nós a ocupar-nos de ti.”
Obedecendo ao sinal combinado, Raisa abre a porta e entra na sala, sorrindolhe sardonicamente.
Ao vê-la assim frente a si, ele empalidece visivelmente, compreendendo,
então, que ela sabe o que ele fez ao Pizarro de Almeida.
Eu passo a tesoura para as mãos da Raisa, e ela avança lentamente por entre
os bancos em que nós estamos sentados, pelo meio das pernas abertas do
outro, em direcção ao seu escroto exposto e vulnerável.
Ele fala-lhe em russo, tentando convencê-la, tentando fazer com que ela volte
para trás, mas ela avança sempre, muda e surda, o olhar fito no dele, até lhe
chegar mesmo ao pé e se inclinar para ele, com as mãos e a tesoura aberta
quase a tocar-lhe. É nessa altura que ele se vai abaixo.
O choque da realização de que vai mesmo ser castrado, e ainda por cima por
uma mulher que tem razões de sobra para o detestar, deve finalmente ter
tomado conta dele, como nós esperávamos que acontecesse, dado o tipo do
personagem.
Grita para que a afastemos dele, dizendo que nos conta tudo o que sabe.
Pede, por favor, que tiremos aquela louca dali, num espanhol muito
acentuado, misturado com russo, mas perfeitamente compreensível.
356
A Raisa olha para ele, com os olhos cheios de ódio e desprezo, e ainda hesita.
Mas depois cospe-lhe e volta-lhe as costas, indo sentar-se num banco ao
nosso lado.
Ele sua por todos os poros e tenta recuperar a crista perdida, mas sem
sucesso. Foi batido e sabe que o foi.
Suspira audivelmente e pede qualquer coisa em russo, que percebo ser com
que se cobrir, pois a Raisa atira-lhe uma das toalhas penduradas atrás da
porta.
Lentamente, começa a falar, respondendo às perguntas que lhe faço em
espanhol e que a Raisa traduz para russo, para maior certeza de
compreensão.
O que ouvimos deixa-nos aos três de boca aberta.
SETE
357
Algumas horas depois, estamos os quatro sentados à mesa da cozinha, em
volta de um bule de chá, tentando compreender e assimilar o que acabámos
de ouvir.
O Vlad e o amigo estão novamente algemados no ginásio, enquanto as
raparigas apanharam um táxi e foram para casa. Segundo elas, ninguém
sabia que tinham saído d'A Gata Perfumada com os nossos convidados, pelo
que podem perfeitamente dizer que não os vêem desde ontem à noite, se
alguém se der ao trabalho de lhes perguntar. Nenhuma delas morre de
amores por nenhum dos tipos; saíam com eles porque não tinham realmente
escolha. Era isso ou ir para a rua, ou pior.
Para o corte no ombro, a Luanna vai à polícia contar que foi atacada e
roubada, algures em Lisboa, criando assim uma explicação para a sua
existência, ao mesmo tempo que dá uma justificação para não ir trabalhar,
até a cicatrização estar suficientemente avançada para permitir o disfarce
cosmético.
Não lhes contámos o que o Vlad nos disse. Não nos iria ajudar contar-lhes e
só serviria para as perturbar ainda mais, impedindo talvez que conseguissem
manter a história que acordaram em conjunto. Segundo percebi do que ouvi,
nenhuma delas corre perigo, as únicas que tinham tido testes positivos
tinham sido a Janna e uma lituana de nome Mikki.
“Mas que história!”, exclama a Tuuva, deitando mão ao bule e servindo-se de
mais chá.
358
“Si”, concorda a Raisa, abanando a cabeça e estendendo-lhe a chávena. “Si no
la hubiera ohido yo misma, no la creheria.” Como a Tuuva, além do inglês, só
fala português e finlandês e a Raisa nada mais além do espanhol e do russo,
decidiram falar cada uma a sua língua adoptada e deixar os esclarecimentos
e traduções que sejam necessários com o Leonel e comigo.
A história a que elas se referem diz respeito à selecção e tráfico de mulheres,
cujos perfis correspondam aos resultados indicados nas tabelas dos kits de
testes fornecidos pelo comprador. O qual, segundo o Vlad – numa tentativa
desesperada de nos dar qualquer informação sumarenta para ver se o
deixávamos ir embora – seria, nem mais nem menos, do que a Igreja da
Verdade Eterna, através de uma fundação do Liechtstenstein, supostamente
dedicada à pesquisa científica para fins caritativos.
O que fazem com as mulheres, o Vlad disse não saber. Limita-se a fazer a
pesquisa e selecção, e a entregar as escolhidas a quem se encarrega delas
depois disso.
“Porque é que me interessaria saber o que eles fazem às gajas? Dos testes resulta
óbvio que as querem limpas e sem doenças – embora também testem uma data de
merdas genéticas, que eu não faço a mais pequena ideia para que sirvam – e isso pra
mim só significa uma coisa: os tipos querem ter um bordel privado e gostam de
material de qualidade! Se depois as comem até se cansarem, ou se se servem delas
apenas uma vez para fazer um snuff e a seguir batem pívias em frente a um ecrã, éme absolutamente indiferente”, disse, com um sorriso cruel. Embora tendo
muita vontade de lhe redecorar as trombas, não respondi, seria dar-lhe
demasiada importância.
359
A Janna e a lituana Mikki tinham testado positivas aos critérios do cliente e
haviam sido entregues para transporte na noite de sábado – quem o ouvisse
falar, julgaria tratar-se da venda de gado ou de um qualquer produto
consumível. Instado a dizer qual tinha sido o destino, disse primeiro que não
sabia, mas quando a Raisa lhe mostrou novamente a tesoura, lembrou-se,
subitamente, de ter ouvido dizer que iam para a Albânia, que não sabia
exactamente onde, mas que no gabinete do gerente, no clube, havia um
ficheiro onde estavam, de certeza, essa e outras moradas que talvez nos
pudessem interessar, e que ele, por acaso, até tinha todas as chaves
necessárias.
Quando pensámos já saber tudo o que era possível saber através do Vlad, o
Leonel e eu pegámos na BMW e fomos a Santos, cortando rapidamente
através da perpétua hora de ponta que é o trânsito de Lisboa.
No parque de estacionamento não há quaisquer sinais de a polícia lá ter
estado; a mancha de sangue deixada pelo Boris na calçada já num tom de
ferrugem velha, que a torna cada vez menos visível.
Entrámos no clube, completamente vazio àquela hora da manhã, desligámos
o alarme seguindo as instruções do Vlad, procurámos aquilo que nos
interessava, fizemos fotocópias e voltámos a sair sem deixar marcas da nossa
presença, ligando de novo o alarme.
Novamente sentados os quatro à volta da mesa da cozinha, examinámos as
folhas A4 que trouxemos connosco, sem saber bem o que fazer do seu
conteúdo. Uma contém mensagens de email que corroboram a história da
selecção e transporte da Janna e da outra rapariga, referindo o resultado
360
positivo dos testes e marcando uma data em que elas deveriam ser
entregues. Outra nada mais é do que uma tabela com números e nomes de
locais – provavelmente em código, porque nenhum de nós os reconheceu –
que se estende por três anos, sendo o presente o primeiro. Sugeri que se
parecia muito com uma projecção de volumes de negócio, embora os
números sejam relativamente baixos e nada pareça indicar que a sua leitura
deva ser feita como milhares ou milhões.
As outras duas contêm moradas, telefones e endereços de correio electrónico
em várias partes do mundo; entre as quais estavam efectivamente a da sede
de uma fundação no Liechstenstein, “Ad Vitam Anstalt – Science for Charity”, e
a de um ProcStion.14, algures na Albânia – tão algures que o internetatlas.eu
precisou de várias tentativas para a localizar.
“Realmente, quando ontem fui ao clube saber o paradeiro da Janna, não esperava que
daí resultasse uma complicação tão grande”, digo, concordando com os
comentários da Tuuva e da Raisa. “Pobre rapariga! Custa-me pensar no que lhe
possa estar a acontecer. Estes tipos são uma cambada de animais!”, acrescento,
pensando que, afinal, talvez seja boa ideia partir os dentes todos ao Vlad, e
depois castrá-lo realmente.
“O que eu não entendo, é o que a Igreja da Verdade Eterna tem a ver com isto?”,
interroga-se, subitamente, a Raisa. “Não percebo porque é que o Vlad tinha de a
chamar ao barulho”, conclui, abanando a cabeça e tentando mostrar uma
convicção que não sente.
A Tuuva e eu encolhemos os ombros quase ao mesmo tempo.
361
“Sabes, o facto de uma organização qualquer dar a si mesma o nome de „igreja‟ não
quer dizer que funcione como tal, no sentido tradicional da palavra. Em alguns
paìses, a instituição de uma „igreja‟ faz-se por escritura pública ou até por contrato
privado, aos quais a crença em qualquer princípio ou ordem sobrenatural é
meramente acessória, senão completamente dispensável. Estas „igrejas‟ existem, na
sua grande maioria, para servir os seus instituidores e não, ao contrário do que
tradicionalmente se esperaria, para ajudar os que as procuram.” Ela olha para mim
como quem diz, „estás a gozar comigo?‟ e, apesar de tudo, eu não consigo
deixar de sorrir antes de continuar. “A sério! Aliás, em certas legislações, a
criação ou estabelecimento de uma „igreja‟, ou de assim chamadas „organizações de
caridade‟, não tem, muitas vezes, outro fim em vista que não seja a obtenção de
vantagens e benefícios fiscais, num ou mais países em que a dita entidade se
proponha operar. Para não falar no bem que soa dizer que se está a fazer o trabalho de
Deus na terra.”
“Mas, se isso é verdade, é uma grande aldrabice!”, exclama, subitamente
alarmada. “Eu dei bastante dinheiro à Igreja da Verdade Eterna quando estava em
Espanha. Porque os panfletos em que eles descreviam a ajuda que davam aos mais
necessitados me convenceram que estavam a fazer um trabalho muito digno. E, ao
dar, senti-me bem por estar a fazer alguma coisa de útil, alguma coisa de bom, no
meio de toda a porcaria que me rodeava”, continua, abanando a cabeça. “Se agora
me dizes que tudo pode não ter passado de um esquema para me sacar dinheiro, que
depois ia parar aos bolsos de tipos ainda piores do que aqueles para quem
trabalhava... Isso faz-me sentir duplamente roubada e enganada!”
“Receio bem que seja mesmo assim, Raisa. A menos que haja mais do que uma „Igreja
da Verdade Eterna‟, e que sigam princìpios diametralmente opostos uma da outra, o
que creio ser pouco provável; a que eu conheço não me parece que seja mais do que
362
um esquema para sacar dinheiro a quem dele necessita. Se, além do mais, o nome da
igreja aparece agora envolvido em histórias de escravatura branca, então, é mais do
que provavelmente assim”, explico. “O comendador faz parte da administração em
Portugal”, digo para o Leonel, que percebe, imediatamente, porque me
inclino tanto a favor da culpabilidade da „igreja‟.
“Mas, que a Igreja da Verdade Eterna, seja ou não a proprietária última da fundação
do Liechstenstein e desta ProcStion.14 é, para mim, pouco importante neste
momento. Isso é uma coisa a ver mais tarde. Primeiro é preciso recuperar a Janna, e
rapidamente... embora não faça, neste momento, a mais pequena ideia de como chegar
à Albânia, ou do que fazer, quando lá chegar.”
“É por isso que essas coisas não se fazem sozinho, patego”, atira-me o Leonel com
um sorriso selvagem. Para logo de seguida acrescentar: “Quando partimos?”
Estendo-lhe a mão por cima da mesa, e ele aperta-a.
“Obrigado pela oferta, marmelo, sabia que poderia contar contigo”, agradeço,
verdadeiramente reconhecido. “Mas não sei se deva aceitar. Não quero sofrer a
ira da Tuuva por te tirar de ao pé dela, e depois tens o banco; como é que te irias
arranjar? Além disso, não sei se deixam entrar macacos na Albânia.”
“Não te preocupes por mim, Jak. Francamente, prefiro que o Leonel vá contigo, por
perigoso que isso possa ser, a vê-lo ficar por minha causa”, explica a Tuuva,
arvorando um à-vontade e uma calma que não sente, e que ela sabe que eu
sei que não sente. Mas ela também sabe que seria asneira ir sozinho. “O meu
homem está a ficar mole, e assim deixa de ter interesse para mim. Talvez a viagem lhe
faça bem”, diz com um sorriso sarcástico dirigido ao marido, que a mira de
alto a baixo com desprezo altaneiro, tão fingido como o sorriso dela.
363
“E quanto ao banco, miolos de andorinha; já não te lembras do que se passou ontem à
tarde? O meu superior directo ficará certamente mais do que satisfeito por não me
pôr a vista em cima durante os próximos dias. Aliás, aqui entre nós, o banco já
começa a chatear-me; acho que está na altura de seguir o teu conselho e procurar
outra coisa que fazer. Esta excursãozinha ao país das águias vem mesmo a calhar;
tipo retiro para meditação, „tás a ver?”, assegura, por seu lado, o Leonel.
Estas demonstrações de verdadeira amizade comovem-me. Sempre soube
que podia contar com o Leonel – ao fim de trinta anos de se conhecer
alguém, depois de o ter aturado na escola e na tropa, sabe-se mais ou menos
com o que se conta – mas, entre o saber, ou pensar que se sabe, e o precisar, e
o gajo estar lá para o que der e vier, vai, por vezes, uma grande distância.
Quanto à Tuuva, pois, mais sentido fico. Sempre nos demos muito bem;
acho-a uma mulher excepcional, forte, inteligente – embora não consiga
perceber o que ela vê no tosco que escolheu para marido – mas também sei
que ela gosta muito do Leonel e que se preocupa muito com ele. O facto de o
deixar ir assim para uma aventura que será certamente perigosa, à procura
de alguém que ela nem sequer conhece, e que até já pode estar morta
(embora eu prefira não pensar nisso), representa muito para mim.
“Bom, mas, se vocês não se importam, falamos de detalhes mais tarde. Não sei o que
se passa convosco, mas eu estou cheia de fome!”, diz a Tuuva, fazendo com que
eu deixe de pensar no que estava a pensar e olhe para o relógio de parede.
Meio-dia e meia!
Nem dei pelas horas passarem. Não pus os pés no escritório – a Mónica deve
estar preocupada, porque nem o telefone tenho ligado – e são quase horas de
ir ter com a Catarina.
364
Rapidamente, digo-lhes que tenho de sair e que voltarei logo a seguir ao
almoço.
Desço à garagem, enquanto vou telefonando à Mónica para lhe dizer que
estou bem e que falarei com ela mais tarde, salto para cima da moto e largo à
desfilada pelas ruas estreitas da encosta do castelo, desço ao Martim Moniz,
subo a Almirante Reis sem parar num único semáforo, viro na Alameda,
sinto vibrar o telefone mas não ligo, desço a António José de Almeida e a
avenida da República toda até ao Campo Grande, sinto novamente o
telefone, viro à esquerda, subo e depois desço a calçada de Carriche até
poder voltar para Telheiras. Chego ao restaurante já ela lá está, com o
telefone na mão e uma expressão preocupada no rosto, que meio se desfaz
quando me vê.
“Olá, pai. O que te aconteceu? Tentei ligar-te mas tu não respondeste. Estava a ficar
preocupada”, diz, com uma voz que denota essa preocupação, ainda que no
rosto já não seja visível.
“Olá, Catarina. Desculpa o atraso, filha. Eu senti o telefone, mas como já vinha a
caminho, achei melhor não perder tempo a responder”, esclareço, tentando
sossegá-la. “Anda, vamos para dentro. Antes que fiquemos sem mesa.”
Durante o almoço explico-lhe que não vamos poder ver-nos durante alguns
dias, porque eu vou ter de fazer uma viagem, sem lhe dizer exactamente
onde ou porquê. Mas que não devo demorar muito e que, em breve,
poderemos retomar os nossos almoços. Obviamente, ela não fica muito
satisfeita, sentindo talvez regressar o pai ausente e desinteressado que
pensava ter tido até há pouco tempo. Contar-lhe as razões porque tenho de
365
me ausentar, ajudá-la-ia talvez a perceber a necessidade e a urgência da
viagem, e a melhor aceitar o meu afastamento dela, mas prefiro não o fazer.
De pouco ou nada serviria preocupá-la, e deixá-la a pensar no que poderia
estar a acontecer, a mim ou à Janna, a todos os momentos do dia. Não, é
preferível que pense que se trata de uma vulgar viagem de trabalho; urgente,
inadiável, mas, à parte isso, perfeitamente vulgaris de Lineu.
Pergunta-me se lhe posso dar o número de telefone da Janna para falar com
ela enquanto eu não estiver, e eu vejo-me na necessidade de lhe contar a
primeira peta deste nosso reatado relacionamento. Digo-lhe que a Janna vai
comigo, e depois, para tornar a história menos falsa, que ela é uma das
razões para a viagem. A Catarina olha-me pouco convencida, mas não diz
nada, ficando talvez a pensar se o que lhe disse faz sentido ou não.
Para não a deixar encontrar os buracos enormes que as minhas mal tecidas
explicações devem ter, digo-lhe que ela nem vai dar pelo tempo passar e que
me pode ligar sempre que quiser, para falar comigo ou com a Janna, quando
ela puder. Aquelas coisas que se dizem, quando mais não se sabe o que
dizer.
É uma Catarina conformada e tristita que vou deixar ao portão verde do
colégio. Disse que percebe que eu tenha de viajar e que a Janna tenha de ir
comigo, que ela fica bem, só que se sente triste por nos saber longe dela,
ainda que só por uns dias, agora que começava a gostar tanto de estar
connosco. O que pode bem ser tudo verdade, e não apenas a maneira dela se
proteger da nossa ausência, ou de nos proteger a nós do abandono em que se
366
sente, mas o ar infeliz com que se despede de mim, faz-me pensar, pela
terceira vez, em rearranjar dolorosamente a fronha ao Vlad!
===================¤==================
Depois de ter passado pelo escritório, explicado à Mónica que ia ter de me
ausentar, e pedido se ela se podia encarregar de remarcar tudo o que fosse
remarcável e desculpar-se por mim em relação a tudo o que o não fosse, o
que a deixou ocupada para o resto do dia, regresso à casa do Castelo umas
três horas depois de ter saído de lá, e encontro uma azáfama fora do comum.
A Raisa está ao telefone e conversa em russo com alguém, que deve ouvir
mal ou então estar numa ligação péssima. A Tuuva está quase deitada no
sofá com a placa do teclado nas mãos e tem o écran de parede ligado à
internet com, pelo menos, umas cinco janelas abertas para sites de
companhias aéreas.
O Leonel pôs duas mochilas de armação interna no chão e está a enfiar, lá
para dentro, uma série de coisas de que provavelmente vamos precisar, bem
como umas quantas roupas e um par de botas que reconheço como minhas.
“Viva, já voltaste. Então, como é que ela ficou?”, pergunta quando me vê. E
continua: “Aproveitei e fui a tua casa buscar roupas e outras merdas. Do que a
Tuuva descobriu em relação aos voos, acho que o melhor será tu dormires aqui esta
noite. Mas o melhor é veres se te chega isto ou se queres ir comprar alguma coisa
mais.”
367
Eu aceno que sim, querendo dizer que, de certeza, deve chegar o que ele
trouxe, mas vou verificando de qualquer forma, ao mesmo tempo que lhe
descrevo o almoço com a Catarina e o estado de espírito dela.
“Isso passa-lhe”, diz o Leonel. “Não vai ser fácil, mas ela vai ultrapassar isso.
Afinal, nem sequer vais estar ausente por muito tempo. Daqui a dois dias já estás de
regresso, e a Janna contigo, e ela não vai sequer poder entender que se tenha sentido
como se sente hoje”, acrescenta, dando-me uma palmada nas costas para me
confortar, como se fosse eu a Catarina, ou se ela pudesse ser confortada com
uma palmada nas costas que talvez lhe tivesse feito perder a respiração. Para
não falar no facto de ele prever o nosso regresso vitorioso para daqui a dois
dias... às vezes, pergunto-me se este tipo não devia ter tentado a carreira
política, eterno optimista que é.
Entretanto, a Raisa termina a conversa, pousa o auscultador com um gritinho
de satisfação e levanta o polegar dizendo que está tudo bem, ao mesmo
tempo que a Tuuva nos chama do sofá.
“Meninos, venham cá, se fazem favor”, diz, reordenando as janelas no écran e
sentando-se direita. “Ora bem, as coisas passam-se assim. As más notícias
primeiro, Jakez. O Leonel já sabe, e agora ficas tu também a saber. A primeira má
notícia é que não há voos directos para Tirana ou para qualquer outro aeroporto
albanês. A segunda é que é preciso um visto para entrar na Albânia e é demorado
conseguir um.
Desanimador, não é? Pois, eu também achei. Por isso tentámos outras hipóteses. A
Raisa lembrou-se de um tipo que ela conhece, um ucraniano, que faz contrabando
entre a Itália e os países do outro lado do Adriático, e tem estado a falar com ele para
ver se o convence a levar-vos até à costa albanesa sem atrair as atenções de ninguém.
368
Segundo parece, conseguiu. O que quer dizer que, transporte até à costa já têm.
Assim, só vai ser preciso fazerem quase 200 quilómetros a pé por caminhos de cabras,
num território cheio de tipos armados e com comichão no indicador, que falam uma
língua que ninguém entende excepto eles. Vai ser um passeio!”, termina,
desanimada.
“Não, espera!”, exclama a Raisa que, entretanto, se juntou a nós ao pé do sofá.
“O meu amigo diz que também consegue arranjar-lhes carro e condutor, desde que
estejam dispostos a pagar. Ele falou em cinco mil euro, mas tenho a certeza que é
negociável. A Albânia é muito pobre, e as coisas não têm melhorado nos últimos
anos.”
“E quanto é que o teu amigo vai custar?”, pergunta a Tuuva.
A Raisa ri-se.
“O Andrei? Nada. É um favor que ele me deve, e que tenho o maior gosto em cobrar
assim.”
Eu faço-lhe uma festa nos cabelos e ponho-lhe o braço em volta dos ombros,
puxando-a para mim. “Obrigado, Raisa. Não me vou esquecer”, digo-lhe.
“Ora, Jakez. Sou eu quem está em dívida. O que fizeste por mim, ninguém nunca
fez”, responde. “Aquilo que puder fazer para te ajudar a recuperar a tua rapariga,
será sempre pouco.”
“Oiçam, deixem-se lá de salamaleques, e prestem atenção ao programa de festas”,
chama-nos a Tuuva. “Vocês vão amanhã cedo para Milão – o melhor que se
conseguiu arranjar foi o TAP que sai daqui às seis e quarenta e cinco – e depois vão
369
encontrar-se com o amigo da Raisa na marina de Ravenna, não é?, ao fim da tarde”,
descreve, apontando o nosso itinerário num mapa que fez surgir no écran.
“Mas, espera aí, se vamos encontrar-nos com ele em Ravenna, porque não voar para
Bolonha, ou até para Veneza, que ficam muito mais perto?”, pergunto, mostrandolhe a localização relativa das duas cidades em relação a Ravenna.
“É verdade que ficam mais perto, mas as ligações com Lisboa não são tão boas. De
qualquer modo, vocês têm de ir a Milão, não é Leo?”
“Há a questão do armamento, Jak. Não me parece muito aconselhável ir para as
montanhas da Albânia, declaradamente à procura de sarilhos, sem levarmos com que
nos defendermos”, esclarece o Leonel. “Como não é possível metermos as armas na
mala, achei que o mais indicado seria arranjá-las lá. Daí ter telefonado ao Pepino e
perguntado se nos podia ajudar. Lembras-te dele? Aquele tipo que era dos
Carabinieri e esteve em Lamego no meu último contrato, depois até veio cá passar
umas férias e estivemos os três em Lagos?... Enfim, esse tipo. Bom, ele continua
ligado ao ramo. Agora tem uma empresa de segurança, daquelas que fornecem
guarda-costas e escoltas armadas a quem as pode pagar. Telefonei-lhe, ele disse que
ajudava, claro, e vai mandar alguém buscar-nos ao aeroporto.”
“Fantástico!”, digo, sem me conter, e dando ao Leonel uma palmada nas
costas que faz eco. “Pareces ter finalmente conseguido fazer alguma coisa bem na
vida, chóninhas! Essa ideia de nos fornecermos de armas em Itália é perfeita. Ainda
há bocado vinha a pensar nisso sem chegar a conclusão alguma.”
“Isso é porque eu sou mais inteligente que tu, alforreca”, riposta, porque nunca foi
de se deixar ficar calado.
370
“Meninos!”, chama a Tuuva. “Portem-se bem! Tenho sempre a impressão de estar
a tomar conta de um jardim infantil”, diz para a Raisa que, apesar de nenhum
de nós traduzir, percebe o sentido e sorri entendida. “Se não é pedir demasiado
aos vossos diminuídos intelectos, gostaria de vos chamar a atenção para o facto de
que vai ser preciso levarem dinheiro vivo, papel, carcanhol. Os cartões de crédito não
vos vão dar muito jeito lá no meio das montanhas. Não sei quanto tens no bolso,
Jakez, mas eu aqui só tenho mil e quinhentos euro e umas centenas de dólares no
cofre. Vai ser preciso arranjarmos mais.”
O Leonel olha para o relógio e diz: “Deixa isso comigo, querida. Ia telefonar para
o banco para avisar o meu distinto chefe que não vou trabalhar durante os próximos
dias, mas assim aproveito, vou lá e trago o dinheiro. Aliás, até é capaz de ser melhor
ir lá mostrar a cara, não vá o outro caramelo pensar que me esqueci dele, e voltar a
fazer das suas”, termina, com um sorriso malévolo.
Depois de ele sair, telefono à Mónica para ver como estão as coisas. Diz-me
que está tudo arranjado, adiou o que foi possível adiar e desculpou-se como
pôde nos casos em que não foi possível o adiamento. Felizmente, não vai
haver danos de maior. Mas, a bem dizer, os danos dos meus clientes são a
última coisa que me dá que pensar nesta altura.
Agora que a Tuuva está a tratar de coisas dos negócios dela e a Raisa está ao
telefone em conversa com mais um ginásio, para ver se consegue
complementar as horas que arranjou no outro, tenho finalmente tempo para
pensar a sós no que se está a passar. E confesso que tudo me parece muito
estranho.
A começar pela explicação do Vlad, que me suou bastante coxa. Porque é que
a „Igreja da Verdade Eterna‟ haveria de querer ter um bordel? Se assim se
371
sentirem inclinados, os seus administradores, pastores e convidados podem
perfeitamente dirigir-se de uma das inúmeras e reputadas casas que se
dedicam a esse infame comércio e aí encontrar mulheres para todos os
gostos, bolsas e feitios. Ou podem chamar uma ou mais das sempre
independentes call-girls. Dinheiro não lhes falta, com certeza. Porquê dar-se
ao trabalho e à despesa de pôr de pé um estabelecimento desses, ainda por
cima longe de tudo, quando podem ter o mesmo em quase qualquer cidade
do mundo, com um simples telefonema. Será uma questão de discrição? Não
querem ser apanhados com a boca na botija, como aqueles deputados do
Parlamento Europeu na semana passada? Mas, certamente, seria muito pior
para a reputação da IVE, aparecer associada a um caso de sequestro e
lenocínio, e, mais tarde ou mais cedo, essas coisas acabam sempre por se
saber; ou não? Estou a lembrar-me que ouve, aqui há uns dois anos, uns
rumores de que esta mesma igreja teria estado envolvida em tráfico de
órgãos. Depois ficou tudo em águas de bacalhau, parece que não havia
provas, ou que o tipo que era suposto apresentá-las desapareceu... Mas,
imaginemos por um momento que era mesmo verdade. Que eles tiveram, ou
têm ainda, alguma coisa a ver com o tráfico de órgãos humanos. Que a
„igreja‟ não seja mais do que uma fachada para sacar dinheiro aos infelizes e
desesperados que acreditam nas suas apregoadas boas intenções. O que os
impediria de se expandirem para a escravatura branca? Escrúpulos não,
certamente, pois, se sei alguma coisa acerca do meu „querido‟ progenitor, é
que ele não sabe sequer que a palavra existe, quanto mais conhecer-lhe o
significado. E fazendo ele parte da administração, os outros não devem ser
muito diferentes.
372
No entanto, a ideia continua a não me convencer. Porquê dar-se ao trabalho
de procurar e seleccionar um certo tipo de mulheres, raptá-las e depois
transportá-las para um sítio no meio das montanhas da Albânia, ou para
uma das outras treze „Proc.Stion‟ em locais igualmente remotos? Se a ideia é
montar bordéis de classe em cenários agrestes, quem é que esperam ter como
clientes; pastores de cabras? Não me parece muito provável. Um
estabelecimento desse tipo quer-se, como se costuma dizer, exclusivo, distinto
e de serviço personalizado, ou seja, cobra-se bem. Mas, a menos que as coisas
tenham mudado radicalmente, a última vez que ouvi falar do assunto, a
pastorícia não era exactamente uma profissão bem paga. Antes pelo
contrário.
Parece-me muito trabalho e investimento para pouco ganho. Não, supondo
que é realmente a IVE que está por detrás do rapto da Janna, ou quem quer
que esteja por detrás do rapto dela, não o fez para a pôr num bordel nas
montanhas da Albânia. Embora o Vlad nos diga que foi mesmo para lá que a
levaram, e os documentos que encontrámos assim o pareçam confirmar.
Claro que o nosso convidado pode ter mentido. Mas não me parece. O terror
que lhe tomou conta da expressão, quando viu a tesoura nas mãos da Raisa e
pensou que ia ser castrado, era genuíno. Ele contou-nos realmente o que
sabia.
Portanto, dando por assente que a Janna foi levada para a Albânia, resta
saber porquê; mas isso, receio que só quando lá chegar poderei descobrir. O
que me parece importante é chegar o mais rapidamente possível. Seja qual
for a razão porque a levaram, não foi, de certeza, só para lhe oferecerem a
viagem.
373
“Ora, cá estou eu!”, diz Leonel, saindo do elevador, com um envelope do BTP
nas mãos. “Tuuva, querida, toma aí nota, se fazes favor; levantei quatro mil euro e
quatro mil dólares. Assim, com os mil do cofre, temos os cinco que poderão ser
precisos para o condutor – embora, de certeza, não chegue sequer a metade – e temos
também uns quantos dólares, se ainda por lá houver quem os prefira.” A Tuuva fazlhe, da secretária, sinal que ouviu, e ele volta-se para mim. “O que te parece,
pá, achas que chega, ou queres levar mais?”
“Não, acho que é suficiente. Em Itália servem o multibanco e os outros cartões, para
o que der e vier. E se for preciso pagar a alguém na Albânia, será só mesmo o guia.
Aliás, eu diria mesmo que, se tivermos de entrar numa de começar a pagar a muita
gente, então é porque estamos metidos em sarilhos, e não há notas que nos chegem. A
propósito...” Tiro o telefone do bolso, vou ao acesso directo da minha conta,
vejo o câmbio euro-dólar, selecciono o menu de transferências usuais,
procuro o NIB da conta da Tuuva e transfiro para lá dinheiro suficiente para
cobrir a quantia que o Leonel trouxe mais os mil do cofre. “Assim, ficam as
contas feitas. Lá que tu venhas comigo, ainda vá que não vá; dá sempre jeito ter-se
um gorila amestrado para nos servir de guarda-costas. Mas agora que sejam vocês
também a querer financiar a expedição, é que já me parece um abuso da vossa parte!”
“Epá, vê-lá se era um grande problema. Até parece que não podias transferir isso
quando regressássemos. Tosco!”, comenta, amavelmente, o Leonel.
“Não, assim fica feito. „As boas contas fazem os bons amigos‟, nunca ouviste dizer, ó
pacóvio?”, respondo-lhe, no mesmo tom.
“„Tá bem, „tá bem; a caixa agradece, reconhecida. Mas não faças disso um hábito”,
diz o Leonel, fingindo-se ofendido. “Ouve cá, já que falamos de contas, vai ser
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preciso fazermos qualquer coisa acerca dos nossos convidados. Não podemos
propriamente deixá-los no ginásio, algemados, à nossa espera, não te parece?”
“Não, tens razão. Ainda bem que falaste nisso, porque eu preciso de perguntar uma
coisa àquele monte de esterco lá em baixo.” Peço à Raisa que venha connosco e
descemos os três ao ginásio. A conversa em surdina que decorria foi
rapidamente terminada quando abrimos a porta, o Vlad tentando mostrar
um ar desafiador, que lhe assenta tão mal como uma peruca barata, e o outro
limitando-se a encostar-se ao banco a que está algemado.
Pergunto-lhe se ele sabe quem eu sou, enquanto a Raisa traduz para russo.
Ele encolhe os ombros e abana a cabeça. Começamos bem.
“Se não sabes quem eu sou, porque tentaste atropelar-me?” Ele sorri, o olhar
recuperando algum desafio, ao perceber que tem sobre mim, pelo menos, o
controle que lhe vem de saber quem me quer mal. Não deixando de me fitar,
diz qualquer coisa em russo à Raisa.
“Ele diz que lhe pediram para o fazer, como um favor, e que lhe pagaram bem. Mas
que se tivesse sabido quem tu eras, tê-lo-ia feito de borla”, traduz ela.
“Quem? Quem é que te pediu para me matar?” Confesso que me faz alguma
confusão; não tenho, nem me lembro de alguma vez ter tido, um caso em
tribunal que possa suscitar tanto ódio.
“Virerinkastre”, diz ele, com um sorriso selvagem, cuspindo a palavra como
se fosse um projéctil dirigido a mim, enquanto me olha com toda a força do
ódio que sente.
“Quem?”, pergunto, veramente confuso.
375
“Virerinkastre!”, repete ele, agora aborrecido por a palavra não ter tido o
efeito desejado. “Virerinkastre!”
Mas eu fico na mesma. O que quer que seja que ele esteja a tentar dizer,
parece não significar nada para mim. Peço à Raisa que lhe diga para
descrever a pessoa que lhe deu ordem para me matar, para ver se assim lá
chego.
“Ele diz que é o sócio do patrão dele; um tipo baixo, moreno, com bigode, veste
roupas de marca, fuma charutos e guia um Cherokee.” Eu, porém, continuo sem
conseguir identificar o fulano. Um tipo baixo com bigode que fuma charutos
e veste roupas de marca, é uma descrição que pode bem servir a oitenta ou
noventa por cento dos potenciais don Juans de meia idade que fazem o
circuito da noite lisboeta. A referência ao Cherokee lembra-me qualquer
coisa, mas... como foi carro a que nunca liguei, acho que talvez não o
distinguisse de um qualquer outro, sem primeiro ler o nome na placa. Mas a
Raisa continua a traduzir, perante a insistência do outro, nitidamente
aborrecido por a sua revelação surpresa não estar a produzir o efeito
desejado. “Um tipo baixo, moreno, usa brilhantina, fuma charutos, tem bigode...
Muito irritante, cheira imenso a perfume e tem um grande anel na mão direita.”
“Virerinkastre!”, repete ele novamente.
O perfume e o anel deram finalmente significado ao nome que ele voltou a
pronunciar.
“Vilarinho de Castro!”, exclamo surpreso.
“Da, da!”, diz o Vlad, satisfeito ao ver produzir em mim o efeito desejado.
376
“Vilarinho de Castro? Mas, ouve lá, esse não é o nome do, coiso, como é que ele se
chama, do marido da Mima?”, pergunta o Leonel.
“É”, digo, ainda sob surpresa. O Vlad nutre-se do efeito retardado da sua
bomba, como uma célula fotoeléctrica se nutre de luz. Até a Raisa achar que
o sorriso dele se estava a alargar demais e lhe dar um bofetão que o deixa a
ver estrelas.
“E porque é que esse sacana haveria de te querer matar? Ficou-te com a mulher,
ficou-te com a casa; que mais quer, herdar por tua morte?”, continua o Leonel
“Não. Não sei, deixa-me pensar”, digo, tentando encontrar uma explicação para
o que acabei de saber. É verdade que nunca me dei bem com o Gonçalo, mas
também nunca o tratei mal. Aliás, eu mal o vejo; tirando aquela visita
relâmpago de há uns... péraí, ele veio ao escritório na terça, e eu fui a Setúbal
na quinta...
“Ouve lá, ó monte de esterco, quando é que o Vilarinho de Castro te disse para me
passares a ferro?”, digo, agarrando subitamente o Vlad pelos cabelos e
puxando-o para cima, com uma violência que me surpreende a mim mesmo.
Ele deve ter ficado tão surpreso quanto eu, porque começa de imediato a
balbuciar datas em russo, que a Raisa se apressa a traduzir.
“Ele diz que foi na semana antes da última, na quarta-feira à noite, ao jantar,
lembra-se bem porque ia dar o Air Force One na televisão, o homem nunca mais se
calava e ele queria ir para casa, por isso disse-lhe que sim que o fazia se lhe pagasse
vinte cinco mil euro, o que o outro aceitou sem discutir e o fez pensar que talvez
devesse ter pedido mais. Diz que é tudo o que sabe, que o outro lhe deu uma
377
fotografia sua, a marca e a matrícula da moto e lhe disse onde o podia encontrar. É
tudo. Pede se lhe pode largar os cabelos, se faz favor.”
Olho para a minha mão, que ainda segura um tufo apreciável dos cabelos do
Vlad, e abro-a, deixando-o cair para o chão.
“Aquele filho da puta, pediu a este balde de merda para me matar, por causa de uma
discussãozeca que tive com ele acerca da Catarina!”, digo para o Leonel. “Mas tu
já ouviste falar de coisa igual? É grotesco. O gajo é absolutamente nojento.”
“Mmm, tens a certeza? Se foi isso que ele lhe disse, porque é que não voltou a tentar?
Ele já te viu pelo menos duas vezes depois disso.”
“Tens razão”, pergunto ao Vlad porque é que não voltou a tentar depois do
falhanço da auto-estrada, mas ele encolhe os ombros e diz que o outro lhe
tinha pedido para fazer as coisas parecer um acidente, o que tornava tudo
mais complicado. E depois, diz com ar importante, que tinha estado ocupado
com outros assuntos; hesita, olha de soslaio para a Raisa e resolve não entrar
em explicações mais detalhadas. Termina dizendo que já tinha sido pago,
por isso estava sem muita pressa de cumprir o contrato.
Enfim, se não há honra entre ladrões, entre assassinos então, deve ser uma
palavra desconhecida. Não que me queixe, porém.
De repente, dou por mim a pensar numa conversa que tive com o Leonel.
“Ouve cá, tu não me disseste outro dia que o Gonçalo tinha estado n‟A Gata com o
comendador?”, pergunto-lhe.
378
“Sim; não te lembras que até te contei que o teu velho lhe estava a dar uma
rabecada?”
Esta confirmação do Leonel encaixa perfeitamente no raciocínio que tenho
em construção.
“E se fosse... Raisa, por favor, pergunta ao nosso amigo como se chama o patrão
dele?”
Mas o Vlad percebeu a pergunta e, sempre solicito no seu gosto em provocar
surpresas desagradáveis, diz, com o mesmo sorriso mesquinho: “Vilhela. El
patrón es Vilhela.”
Desta vez, não me cai o queixo por pouco. O comendador é o empregador do
Vlad. O que quer dizer que é também o dono d‟A Gata Perfumada. E o
Gonçalo é sócio dele, talvez mesmo o gerente do clube. O que significa que
ambos podem estar envolvidos no rapto da Janna... A menos que a história
de ser a IVE que está por detrás de tudo isto seja verdade e, nesse caso, é
mesmo o comendador o responsável por tudo – com o Gonçalo a servir-lhe
de ajudante, como num filme policial barato da década de quarenta do
século passado.
Sento-me num dos bancos para digerir o que acabei de descobrir, indiferente
ao riso alarve do Vlad, que, sem perceber nada do que se está a passar, julga
estar na origem do meu mal-estar. Mas não se ri por muito tempo. O peito do
pé direito da Raisa entra-lhe pelo meio das pernas a uma velocidade
apreciável, e deixa-o preocupado com outras coisas.
O Leonel chega à mesma conclusão que eu.
379
“Para um tipo que dizia não ter qualquer relação com o pai além dos cromossomas,
não podias estar mais enganado”, diz, tentando gracejar, mas sem muito
sucesso. “Bem, apesar de tudo, talvez se tentarmos ver as coisas pela positiva, elas
pareçam melhores; pelo menos assim sabemos com quem nos temos de haver.”
Sim, isso é sem dúvida verdade, penso para comigo, mas não me serve de
conforto. Saber que o homem que, se tivesse podido, teria transformado a
vida da minha mãe, e a minha, num verdadeiro inferno, é também o
responsável pelo rapto da mulher que amo, e tenciona provavelmente
sujeitá-la a sei lá que torturas ou sevícias, não é exactamente uma descoberta
agradável. Chamar-lhe-ia antes um trágico fechar de círculo.
“Jak, olha uma coisa, pá; compreendo que tudo isto seja um choque para ti, é-o para
mim, certamente, mas temos de decidir o que fazer com estes dois marmelos”, diz o
Leonel, afastando-me de um beco mental sem saída aparente.
“Sim, tens razão. Acho que já nos disseram tudo o que sabem, enfim, um deles pelo
menos, porque o outro parece só cá andar mesmo a ver passar os comboios.
Infelizmente, não podemos dar-lhes o mesmo destino do Boris. Seria complicado
alegar legítima defesa, se alguém reparasse que estavam algemados.”
O Leonel ri-se, embora não tivesse sido minha intenção fazer humor.
Embora, do ponto de vista de humor negro, a imagem de nós os dois em
frente a um juiz, tentando demonstrar que o Vlad algemado constituía um
perigo sério para as nossas vidas, e por isso lhe metemos cada um 14 balas
no corpo, não deixe de ter a sua piada.
380
“O melhor é entregá-los à Judiciária”, sugiro. “Afinal, eles andam à procura dos
responsáveis pela morte do Jorge Pizarro de Almeida, e eu tenho quase a certeza que,
pelo menos, um deles está aqui.”
“Concordo. Como fazemos? Passamos na Gomes Freire e atiramo-los do carro em
andamento?”
“É, pois, algemados com essas coisas, vinham cá bater à porta antes da hora de
jantar! Onde é que compras essas tretas, nalgum catálogo?”
Ele ri-se, uma gargalhada homérica que faz eco nas paredes nua do ginásio.
“Não, mando vir de Amsterdão”, diz, quando recupera a fala. “Ok, a Gomes
Freire talvez não seja boa ideia, o que fazemos então?”
“Não, a ideia de os atirarmos de um carro em si não é má, e se excluirmos o atirar e
mudarmos a localização talvez até seja viável”, digo, mais para comigo do que
outra coisa. “O inspector que foi lá ao escritório fazer o inquérito pareceu-me um
tipo interessado, que merece que lhe dêem uma ajudazinha para chegar ao fundo da
questão. Ouve o que eu acho que devemos fazer: metemos os tipos no Jaguar e vamos
aí para um sítio sossegado, de onde tu telefonas ao inspector, com uma das tuas
vozes, a dizer para os vir buscar, porque têm informações importantes a prestar
acerca do caso das chantagens fotográficas, e depois pomo-nos a milhas antes deles
chegarem. Assim, fica toda a gente contente, menos estes amigos, claro, mas isso
pouco importa. Que te parece?”
“Acho que sim. Mas vamos fazê-lo já, porque começo a ficar farto de lhes olhar para
as fronhas.”
381
===================¤==================
Depois de uma conversa a sós com a Raisa, que aceitou a proposta de
entrega à Judiciária mais serenamente do que eu pensava que aceitasse, um
encolher de ombros, novo pontapé entre pernas ao Vlad e foi tudo,
devolvemos-lhes as roupas, trocámos as algemas requintadas por cordas
simples e atirámo-los para cima do banco traseiro do Jaguar. O Leonel
sentou-se ao volante, e eu segui-os na BMW.
Estacionámos o carro num dos parques ao ar livre do aeroporto, ao pé de
uma cabine telefónica. Sentámo-los à frente os dois, um com as mãos presas
ao volante, e o outro sentado em cima dos pulsos amarrados com uma corda
de sisal. O Leonel fez o seu pequeno número ao telefone, com uma voz que o
Chico Fininho talvez tivesse hoje, se fosse algo mais do que uma criatura de
ficção e mais vinte e oito anos de drogas duras não tivessem ainda dado cabo
dele. E sentámo-nos a uma distância razoável, com o local debaixo e olho,
mas sem que eles nos pudessem ver.
Quinze minutos depois aparecem dois Golfs azul-polícia em alta velocidade,
que só falta terem escrito Judite à frente e Bófia atrás, para serem mais
óbvios. Entram no parque de estacionamento segundo as instruções que lhes
demos, param com grande aparato, um em frente e o outro atrás do Jaguar, e
de lá de dentro saem uns seis „juditos‟ que se colocam em posições
estratégicas em volta do carro e começam a gritar ordens lá para dentro,
como numa série policial „realista‟ de uma qualquer cadeia americana.
382
Mas para quê tanta gente, Senhor! Se nós lhe dissemos que eles não se
podiam mexer. Não deviam ter nada que fazer, certamente.
O Vlad grita com eles por sua vez, tentando explicar-lhes, no seu espanhol
macarrónico, que não pode pôr as mãos na cabeça porque as tem amarradas.
O outro limita-se a gritar em russo, com medo que lhe façam mais um buraco
de que não necessita.
Finalmente, quando percebem que os do Jaguar não se mexem com ameaças
de nenhum tipo, lá há um que resolve quebrar as regras do protocolo para
apreensão de suspeitos e se aproxima o suficiente para ver que estão os dois
atados como chouriços.
Dessa altura em diante, é um vê se te avias. Abrem as portas do Jaguar,
depois de verificarem que não estão armadilhadas, e devem fazer o Vlad e o
outro borrarem-se de susto, quando enfiam os canos de duas pistolas e
quatro metralhadoras pelas aberturas. Soltam rapidamente as cordas que os
prendem, põem-lhes algemas novas, atiram com eles para a traseira dos
Golfs, um em cada um, e saem dali quase tão depressa quanto chegaram,
sem dar tempo a que se juntassem mirones. Um bocado demasiado teatrais
para o meu gosto, mas sem, por isso, deixar de ser um trabalho bem feito.
Esperamos que eles desapareçam de vista, pegamos na moto e fazemos
calmamente o caminho de regresso, pela Gago Coutinho e depois pela
Almirante Reis e rua da Palma, até chegarmos ao Martim Moniz e subirmos
pelo labirinto de ruelas que acabam por nos conduzir a casa do Leonel.
Com isto são seis da tarde, e eu começo a sentir que passei uma noite em
claro.
383
As nossas cúmplices esperam-nos na sala, em frente da televisão, enquanto
ouvem as notícias na Euronews. Parece que há novidades com respeito à
ONU e à transferência da sede para Genebra, mas eu não estou de todo
interessado. Aproveito o eles estarem a conversar e escapo-me para o quarto
de banho, onde enfio a cabeça debaixo da torneira de água fria durante um
bocado, para ver se espevito.
Quando volto à sala já o curto boletim terminou e a Tuuva acabou de
sintonizar uma estação de lounge na Internet, passando o écran a mero
visualizador de efeitos caleidoscópicos mais ou menos psicadélicos. O som
de fundo é da última colaboração entre Moby e os Massive Attack, e parece
ser exactamente aquilo que eu precisava para acabar de acordar.
Estão os três sentados nos sofás, o Leonel tem uma cola sem açúcar na mão –
a variante dele para combater a moleza de fim de tarde – e parece estar a
contar às raparigas o que descobrimos. E quase tem de lhes contar toda a
história da minha vida, porque nem a Tuuva fazia a mais pequena ideia de
que o meu pai ainda era vivo, quanto mais de quem se trata.
A Raisa está de boca aberta, espantada. Ela tinha obviamente percebido que
algo se passava enquanto estivemos lá em baixo no ginásio, mas não sabendo
o suficiente da questão para seguir a parte da conversa que se desenrolava
entre o Leonel e eu, e não querendo fazer perguntas indiscretas, ficara sem
perceber exactamente do que se tratava.
Quando me sento no sofá ao pé dela, agarra-me na mão e segura-a no colo
entre as suas, num singelo gesto de conforto que me faz realmente sentir
melhor. Sorrio-lhe agradecido e deixo a mão estar onde está, enquanto com a
384
outra pego numa garrafa de vittel que a Tuuva trouxe do frigorífico e pôs
numa das mesinhas que eles têm à volta dos maples.
“Mas que grande confusão! Pensei que enredos assim só se viam nos filmes”,
exclama a Raisa, largando-me e atirando os braços ao alto, quando o Leonel
acaba, finalmente, o relato.
“Sim, nunca me passaria pela cabeça uma coisa assim”, concorda a Tuuva. “Esse
tal „comendador‟ deve ser uma pessoa absolutamente nojenta, para fazer o que vos
fez, a ti e à tua mãe. E agora parece querer voltar à carga, estragando também a vida
à tua namorada.”
“Bem, sabes, por mais que me custe dizê-lo, acho que ele é inocente de querer fazer
mal à minha namorada”, digo, com um meio sorriso que não procura ser
engraçado.
“Como? Não percebo”, interroga-se ela.
“Sim, não creio que a Janna tenha sido escolhida por eu gostar dela, aliás, tenho
mesmo a certeza de que ela foi testada e seleccionada antes de nos termos conhecido
sequer”, esclareço, e depois continuo, contando-lhes as coisas à medida que
elas começam a fazer sentido para mim. “Daí toda a história com o passaporte
dela, que a trouxe ao meu escritório em primeiro lugar. Eles tiraram-lhe o passaporte,
com uma desculpa esfarrapada qualquer, para terem a certeza de que ela não podia
sair do país se lhe apetecesse, e foi só quando ela disse que precisava de ir ao
consulado que lho devolveram; quinta-feira passada. Pela data da mensagem de
correio electrónico que trouxemos esta manhã, nessa altura já eles sabiam que ela lhes
servia e quando a iam transportar, e provavelmente acharam que não valia a pena
385
criar ondas; que, se fosse preciso, poderiam mantê-la sob vigilância até ao momento
do transporte. Aliás, quem sabe se não o fizeram mesmo.”
“Claro, tens razão. A ideia de que se poderia tratar de perseguição pessoal, após todos
estes anos é um bocado absurda”, diz a Tuuva, tentando ver as coisas pelo meu
lado.
“Não, espera, desculpa se te dei a ideia errada. Eu não poria abaixo do comendador
qualquer tipo de perseguição pessoal, seja em que altura for e tenham passado os anos
que tiverem passado. Acho apenas que, neste caso, não é isso que se passa.”
“Mas, oiçam uma coisa. Mudando completamente de perspectiva; uma vez que o
comendador é o chefe desta tropa toda e está em Lisboa, não seria mais fácil deitar-lhe
a mão aqui e forçá-lo a trazer a Janna de volta, em vez de irem vocês para a Albânia
correr perigos desnecessários?”, pergunta Raisa.
“Sabes, também já pensei nisso. Mas não creio que resultasse”, digo.
“Não, infelizmente, eu também acho que não resultaria”, concorda a Tuuva.
“Primeiro porque seria difícil deitar-lhe a mão. Por mais ineptos que o meu querido
marido goste de considerar os guarda-costas do comendador, a verdade é que
ninguém lhes deu o emprego pela bonita cor dos olhos. Portanto, para terem a certeza
de fazerem um trabalho bem feito, uma vez que não fazem a mais pequena ideia da
vida que ele leva, seria preciso planear bem as coisas; o que implica tempo, que é
precisamente aquilo de que não se dispõe. Segundo, porque apesar de o comendador
ser o administrador, ou um dos administradores, da Igreja da Verdade Eterna em
Portugal, é apenas chefe de uma filial entre várias e, estando a Janna fora daqui, não
sabemos se teria autoridade para a trazer de volta, por mais que vocês lhe enfiassem o
cano de uma pistola pelas goelas adentro. Terceiro, porque pode bem acontecer que a
386
tentativa falhe, ficando ele a saber que és tu, Jakez, quem o quer e talvez até o motivo
porque o queres, e então as coisas passariam mesmo a ser pessoais e seria muito mais
difícil recuperar a Janna.”
“Sim, eu não o teria descrito melhor”, afirma o Leonel. “Contactar as autoridades
também não me parece boa ideia. Ao mínimo sinal de envolvimento policial, a
primeira coisa que eles fariam seria eliminar as provas incriminatórias. O que talvez
não fosse bom para a Janna e para as outras.”
“Ouçam cá, se há essa possibilidade, vocês acham que terá sido boa ideia entregar os
outros à Judiciária?”, diz a Tuuva, subitamente preocupada.
Tanto eu como o Leonel encolhemos os ombros.
“Não creio que haja esse perigo. Em primeiro lugar, porque a Judiciária vai ter muito
que conversar com eles e tão cedo não saem de lá. E depois, porque acho que nenhum
dos dois quererá admitir que foram apanhados tão facilmente, e que deixaram o Boris
ir fazer companhia aos peixes sem fazerem nada para o evitar”, esclareço. “Não,
honestamente, não creio que haja mesmo esse perigo. O mais provável é, se alguém
lhes perguntar, eles terem sido atacados por um grupo rival, de pelo menos uns
quinze matulões armados até aos dentes, que mataram o Boris e depois os entregaram
à Judiciária para os humilhar. Ou qualquer coisa no género.” O Leonel concorda
com um aceno de cabeça e ela parece ficar satisfeita.
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OITO
Desembarcamos em Malpensa depois de um voo sem história. À saída da
manga deparamos com a nova separação de corredores entre Schengen e
Não-Schengen/ExtraUE, medida de controle unilateral recém-aplicada pela
Itália, e entramos no edifício aberto do aeroporto, depois de darmos a ler a
uma máquina o chip dos nossos passaportes. Entretanto, no outro corredor,
três homens de negócios ingleses que também vinham no avião, envolvem-se
numa discussão com os funcionários do serviço de estrangeiros italiano,
dizendo não perceber por que razão têm de esperar na fila com todos os
extra-comunitários e conseguem que lhes tirem as impressões digitais e lhes
façam diagramas da retina por distúrbio da paz.
Chegados ao átrio exterior depois de recolhermos as mochilas e passarmos
pelos oficiais da alfândega sem que nos chateiem, deparamos com uma
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pequena multidão de familiares dos passageiros de voos extra-União
aterrados a esta hora, que os esperam pacientemente, enquanto os mesmos
oficiais da alfândega que não nos chatearam a nós, por causa da faixa azul e
verde que temos nas mochilas, lhes revistam a bagagem toda.
No meio da mole, lá conseguimos distinguir um tipo novo de farda cinzenta
escura e boné da mesma cor, erguendo em frente ao peito um cartão A4 com
o nome do Leonel escrito a negro.
O Leonel diz-lhe quem somos e ele responde que o sigamos sem mais
cerimónias. Estacionado em segunda fila em frente ao passeio do aeroporto,
com um papel cor-de-rosa a decorar-lhe o pára-brisas verde-escuro, esperanos um velho Phaeton cor de areia, com interiores em madeira e estofos em
cabedal cor de baunilha. O nosso motorista aponta o comando à traseira do
carro, abre o porta-bagagem, deixa-nos a pôr as malas lá dentro e vai tirar a
multa de debaixo da escova do limpa-pára-brisas. Com a multa na mão,
atravessa a estrada e dirige-se à fiscal de trânsito que está a decorar com um
papel semelhante um Saab 93 Aero estacionado do outro lado. Segue-se uma
pequena conversa quase em tête-à-tête, e depois o nosso homem regressa
com um sorriso nos lábios e mãos vazias para espanto da fiscal que, de papel
cor-de-rosa na mão, o olha sem perceber bem o que lhe aconteceu.
Nós deixamo-nos ficar a observar a cena, porque nos pareceu interessante,
mas também porque as portas do VW ainda estão trancadas. Quando vem a
meio da travessia, o motorista aponta distraidamente o cilindro do comando
ao automóvel; as portas traseiras abrem-se sozinhas e podemos, finalmente,
entrar.
390
Quando arrancamos, diz-nos que a viagem deve demorar meia hora e
pergunta-nos se queremos ver alguma coisa durante o caminho. Eu faço-lhe
sinal que não, mostro-lhe o cachimbo e vejo-o acenar afirmativamente no
retrovisor, mas o Leonel quer ver as notícias. O homem diz-lhe que há
auriculares descartáveis na gaveta do braço divisor, e liga-lhe o monitor do
encosto para a Euronews.
Enquanto ele vê o que se passa no mundo, eu encho uma cachimbada e vou
vendo a paisagem por entre nuvens de fumo azulado aromatizado.
A auto-estrada de quatro faixas que passa por Malpensa e segue em direcção
a Milão está bastante carregada de trânsito, como me lembro de sempre
estar, de todas as vezes que cá vim. Imensas composições TIR na faixa lenta
especial – resultado da falta de combustível, da dificuldade de conversão dos
veículos pesados e da ainda pouca potência dos motores eléctricos – mas
também furgonetas e carros de todos os tamanhos e feitios, que vão da costa
e dos lagos para Milão e vice-versa.
As construções ladeiam a estrada numa linha quase continua de povoações,
fábricas, supermercados, estações de abastecimentos e restaurantes selfservice, entremeados com algumas terras de cultivo e alguns, poucos,
bosques minúsculos de árvores frondosas. O dia está quente, apesar de
oficialmente já ser Outono; o monitor na traseira do encosto à minha frente
faz-me saber que lá fora estão vinte e cinco graus centígrados e setenta e oito
por cento de humidade, o que é ainda bastante quente para esta época do
ano.
391
Entretanto, acabam as notícias. O Leonel tira os auriculares dos ouvidos e
deita-os no compartimento para lixo situado entre os assentos da frente,
enquanto o monitor entra em descanso e passa a exibir a temperatura e o
grau de humidade exterior, tal como o meu.
“Esta situação na ONU está complicada. Ouve só o que acabou de acontecer”, diz, à
laia de introdução. “Parece que os japoneses, os alemães, os indianos e os
brasileiros vão mesmo apresentar à Assembleia-geral uma proposta para transferir a
sede para Genebra, em retaliação pelas medidas impostas por Washington no sábado.
Os tipos, a princípio, não acreditaram que levasse a nada, mas tem havido tantas
críticas que acho que começam a ter receio que a proposta passe. Conforme o membro
do governo que se ouça, tão depressa oferecem promessas, como fazem ameaças.
Agora, era o secretário de estado, em directo de uma conferência de imprensa em
Londres, que procurava avisar-nos que os Estados Unidos poderão deixar de
contribuir para as missões humanitárias das Nações Unidas, se a sede destas for
transferida, porque não acreditam que em mais nenhum lado a organização possa ter
a isenção que deriva da sua presença em Nova Iorque. Os jornalistas começaram com
as perguntas de cábula, sabes como são, aquelas que parecem feitas para as respostas
que os tipos trazem de casa, e aquilo estava a correr tudo normalmente, até que se
levanta um que pergunta ao gajo se esse abandono das missões humanitárias era para
antes ou depois de pagarem o que os EUA devem à ONU. Havias de ver a cara dele,
ficou verde. Mas não se foi abaixo, fez de conta que a pergunta não tinha sido feita e
passou a outro de braço levantado, só que, este disse que também queria ouvir a
resposta à pergunta anterior. E depois houve mais gajos que se levantaram e
disseram que também gostavam de saber a resposta, até estar uma catrefada deles de
pé. O tipo pegou nos papéis, levantou-se e foi-se embora, sem dizer mais nada!
Nunca tinha visto nada assim.”
392
Embora reconheça que sim, que se trata de uma coisa que também eu nunca
vi, não consigo dar-lhe a importância que talvez mereça. Desde domingo à
noite que não penso noutra coisa que não na Janna e no que lhe pode estar a
acontecer. As birras e os arrufos de políticos, mesmo que da única
superpotência parecem-me, mais do que nunca, de importância muito
secundária.
Entretanto, sinto vibrar o meu telefone. O monitor diz-me que é a Raisa.
Quando atendo ela aparece com uma cara muito preocupada.
“Raisa, o que foi?”, pergunto quando a imagem estabiliza.
“Jakez! Ainda bem que vos apanhamos. A Tuuva tem estado a tentar o número do
Leonel mas parece estar desligado. Aconteceu uma desgraça”, exclama, a
preocupação patente na voz.
“O que foi, o que aconteceu?”, digo, subitamente preocupado, pensando na
minha filha.
“Esta manhã houve uma explosão enorme no edifício da Polícia Judiciária, na parte
dos calabouços. Acho que morreu muita gente.”
“Mas, como foi isso? Como é que soubeste?”, pergunto; o Leonel agora também
interessado, ao ouvir a urgência na minha voz.
“Ouvimos na rádio, e depois na televisão. Acho que foi pouco depois das dez, quando
estava a decorrer ou tinha acabado de ter lugar a hora das visitas. O edifício ainda
está a arder, mas os bombeiros têm imensa dificuldade em lá entrar por causa da
temperatura. Dizem que deve ter sido um atentado e que, provavelmente, foi
utilizada uma carga incendiária de alta potência.”
393
Estas últimas palavras vêm confirmar o que eu estava a pensar. Mesmo sem
ela mo dizer, sei quem foram os alvos do atentado e também que estão
ambos mortos. O Vlad e o amigo sabiam demais para que se lhes pudesse ser
permitido continuarem vivos e despejarem o saco. Despeço-me da Raisa
ainda em choque com a notícia, dizendo-lhe que tenham cuidado e que
talvez seja melhor ficarem as duas juntas, para se poderem proteger uma à
outra, não tenha o Vlad dito qualquer coisa acerca do envolvimento da sua
ex-namorada antes de lhe limparem o sebo.
O ataque à Judiciária deixa-me seriamente preocupado. Não porque eles
tenham decidido eliminar o Vlad e o outro – isso não me custa nada aceitar –
mas porque o fizeram da maneira que fizeram. Um tal desrespeito pelas
vidas de quem estava naquela altura no edifício da Judiciária, não me augura
nada de bom em relação à Janna. Sinto que o medo tenta envolver-me nas
suas garras e procuro libertar-me, tentando concentrar-me no que posso
fazer e no que estou efectivamente a fazer para tentar alterar a situação.
Ajuda alguma coisa, porém, não o suficiente para que deixe de me
preocupar. Mas talvez seja melhor assim. Talvez a preocupação me ajude a
ter sempre presente a urgência da situação.
Entretanto, começamos a chegar aos arredores de Milão. Saímos da autoestrada para as ruas da cidade, passando de umas para outras mais depressa
do que eu as consigo reconhecer e ainda menos nomear, até chegarmos a
uma avenida larga e enfiarmos a direito pelo corredor central dos eléctricos,
em princípio reservado apenas para transportes públicos. Prosseguimos à
velocidade acelerada de um transporte sob escolta policial, ultrapassando
394
eléctricos e trolleys, por dentro ou por fora do corredor central, saindo ou
entrando no mesmo, conforme parece mais conveniente ao nosso condutor.
O que me parece sempre estranho de cada vez que venho aqui ou a outra
cidade italiana, porém, é que esta progressão acelerada por ruas lajeadas,
desperta pouquíssimo interesse por parte dos outros condutores, ou dos
peões, e menos ainda por parte da polícia. Quase ninguém buzina, ninguém
faz sinais de luzes, nada. O nosso Phaeton e os outros automóveis parecem
estar entregues a um bailado de coreografia muito precisa, aceite pelo que é,
que todos se diriam interessados em não perturbar.
Embora isso não impeça os acidentes. Acabamos de passar por um Lancia
Thema, que deve ter calculado mal as distâncias ao ultrapassar um eléctrico
pela direita para entrar no corredor central. Apanhou uma pancada que lhe
meteu a traseira para dentro e o empurrou para a frente e para a outra linha,
onde, por acaso, vinha a circular outro eléctrico, que se encarregou de
restaurar a simetria ao automóvel, metendo-lhe a frente também para dentro.
Resultado, agora está o corredor central completamente parado.
O motorista parece nem dar pela perturbação. Sai do corredor antes de
chegar ao eléctrico, passa entre duas carrinhas, sem que eu perceba
exactamente onde encontrou o espaço para tal, e volta a enfiar-se lá dentro
vinte metros mais à frente, indiferente à bicha de carros do outro lado, que
procuram, desesperadamente, sair do engarrafamento, nomeadamente,
avançando pela linha de sentido contrário sobre a qual vimos nós.
A imagem que me vem à cabeça, é que este tipo conduz o Phaeton como se a
Volkswagen tivesse começado a fazer motos, sem ter dito nada a ninguém.
395
Chegamos à parte mais antiga da cidade e entramos numa rede capilar de
ruas e ruelas, de sentidos únicos e proibições de voltar à direita ou à
esquerda, que, ao fim de umas quantas voltas sem a mínima lógica, nos
conduzem, finalmente, à Piazza San Sepolcro, onde está situada a igreja do
mesmo nome, maravilha arquitectónica do século IX, mencionada em todos
os guias, e uma salada russa de edifícios de quase todas as épocas. Depois de
dar quase uma volta à praça no sentido obrigatório do trânsito, dirigimo-nos
para um portão basculante em aço canelado, que parece desaparecer
lentamente no cimo da abertura à medida que nos aproximamos.
A entrada é, afinal, para uma cabine de elevador, cujas portas, também em
aço, se fecham mal o carro acaba de entrar, sem esperar que a basculante
complete o círculo.
“Per cortesia, rimaneti seduti”, instrui-nos o motorista, num raro momento de
exercício das cordas vocais. Não é que pudéssemos fazer outra coisa; não há
espaço dentro da cabine para abrir as portas do automóvel. “Ciao Francesca,
sono io. Puoi dire al dottore ché sono arrivati? Grazie”, prossegue, falando como
que para si mesmo.
A descida é lenta, até chegarmos ao que me parece ser o quarto nível
subterrâneo. Quando o elevador estaciona, o motorista desce o vidro, insere
um código num teclado numérico, e volta a subir o vidro. Mesmo a tempo,
dir-se-ia, pois mal toca na borracha de cima, o elevador enche-se de um
vapor qualquer, com um ligeiro cheiro a amónia.
“Non preocuparvi; é solo un desinfettante”, explica o reflexo do nosso guia no
espelho; um sorriso estudado nos lábios, provavelmente resultante de ter
396
dito a mesma frase a muita gente, que terá tido a mesma reacção de surpresa
que nós. As portas de aço à nossa frente abrem-se finalmente e saímos da
cabine em marcha reduzida para cima de um pavimento de borracha, num
espaço que terá, talvez, uns duzentos metros quadrados, semeados de
colunas aqui e ali, com paredes nuas de betão pintadas num tom creme, onde
estão arrumados um Cayenne azul-escuro, um Velsatis dourado metalizado,
um Cinquecento rosa-bebé, todos convertidos para metano, e umas quantas
motoretas eléctricas de cores sortidas, demasiadas e demasiado encostadas
umas às outras para saber ao certo quantas.
À nossa frente abrem-se umas portas largas em madeira rosa, com aspecto
de serem mesmo tão antigas como parecem, e avança por entre elas um tipo
alto, de cabelo negro quase tão curto como o meu, cara rapada, bigode já a
tender para o grisalho e um sorriso franco e bem-disposto; os braços abertos,
num gesto tão franco como o sorriso.
“Leonelo! Benvenuto a Milano!”, saúda.
Nós, entretanto, vamos saindo do carro. Eles encontram-se a meio caminho e
dão-se um abraço, com muitas palmadas nas costas e mútuos cumprimentos
jocosos. Quando acabam as saudações, o Leonel pergunta ao outro se se
lembra de mim, ao que ele responde que sim, claro que se lembra, e, com o
mesmo sorriso que ofereceu ao Leonel, estende-me a mão e dá-me também
as boas-vindas.
Depois de o ver ao perto e de o ouvir falar, reconheço-o finalmente, embora
ele esteja diferente da última vez que o vi, que deve ter sido há uns sete ou
oito anos. Aperto-lhe a mão, como se não me tivesse esquecido de quem ele
397
era e procuro fazer-lhe um sorriso que corresponda ao que ele parece ter
atarraxado aos lábios.
“Mas, venham, venham comigo. Vamos para o meu gabinete”, diz, convidandonos a segui-lo. Fala-nos em italiano, como me lembro de sempre ter feito,
assumindo que, por sermos latinos, nos entendemos todos uns aos outros. O
que nem sempre é verdade, e se nós falássemos apenas português, talvez não
percebesse patavina. Mas, como falamos os dois italiano até está cheio de
sorte.
“Que tal te parece o nosso novo escritório?”, diz, depois de passarmos as portas
de madeira e uma antecâmara com portas automáticas, que parece servir de
separador, entre a área de garagem e o escritório propriamente dito.
A arquitectura é a mesma da garagem, se bem que, deste lado, as colunas e
uma boa parte das paredes e o tecto estejam forrados a madeira.
Reproduções de quadros famosos de diversas épocas, preenchem, com gosto,
os espaços vazios nas paredes, e várias plantas verdadeiras, dos novos
géneros criados especialmente para a luz artificial, foram estrategicamente
colocadas, para dar à sala um ar menos estéril. O chão de borracha foi
substituído por um pavimento em mármore, num mosaico bonito de vários
tons, entre o branco, o castanho, o rosa e o verde de Estremoz.
Sentados a várias mesas, formando grupos de tamanho variável, estarão
umas trinta a quarenta pessoas. Umas apenas ao telefone, com os auriculares
nos ouvidos, de onde se prolongam braços de microfones, que começam
finos e terminam pouco maiores do que uma cabeça de alfinete. Outras
falando
ao
telefone
e
seguindo
percursos
398
em
monitores
Galileu,
acompanhando quem quer que seja que segue ao longo das ruas que os
monitores deixam ver. Outras ainda, seguindo atentamente os progressos
dos portadores das câmaras de vídeo cujas imagens aparecem em alguns dos
monitores.
Ninguém parece dar por nós enquanto atravessamos a sala de um lado ao
outro e abrimos umas portas semelhantes às primeiras, que nos conduzem a
um átrio interior, totalmente chapeado a aço mate, à excepção das portas de
um elevador, cobertas com um espelho de tom acinzentado. A iluminação é
de um amarelo relaxante, tal como a da sala.
O nosso anfitrião prime um código num teclado numérico semelhante ao da
garagem e as portas do elevador abrem-se para nós, deixando-nos entrar
numa cabine não muito ampla mas totalmente espelhada no mesmo tom
acinzentado-sóbrio das portas exteriores, onde soa baixinho um jazz de clube
nocturno da década de cinquenta. Premido novo botão, o elevador sobe,
suave e silenciosamente, durante pouco mais do que dois minutos, até as
portas se abrirem novamente, desta vez para um pequeno átrio de janelas
amplas, com tecto abobadado em vidro colorido de várias cores, em cujo
interior estão plantas de espécies diferentes, colocadas em vasos de cerâmica
e terracota e subindo ao longo das paredes em direcção ao Sol, que brilha
fortemente lá fora. Apesar da cobertura de vidro e das muitas plantas, a
temperatura é amena e o nível de humidade baixo, sinal seguro de que o ar é
condicionado.
Passamos umas portas automáticas de vidro espelhado a bronze, que não
nos deixa ver para o outro lado, e entramos numa sala ampla, com chão de
tábua escura corrida, coberto, aqui e ali, com tapetes persas, artisticamente
399
colocados de modo a parecer que foram deixados cair onde estão. À nossa
direita, rodeada por janelas com vidros num tom acastanhado, fica uma área
com sofás em pele ocre e uma mesa larga em madeira clara e tampo escuro,
com algumas revistas de actualidade e várias congéneres da Lux em duas ou
três línguas diferentes. Ligeiramente à nossa esquerda, uma secretária em
madeira clara com tampo forrado a pele negra, que terá talvez uns dois
metros de comprido, sobre o qual está um monitor plano com uns setenta
centímetros de diagonal, um teclado e um rato sem fios e pouco mais. Por
trás da secretária está uma cadeira de encosto alto, também em pele negra,
na qual está sentada uma rapariga com os seus trinta e poucos anos, bastante
bonita, muito morena, cabelos compridos presos no alto da cabeça, pelo que
parecem ser dois pauzinhos de um restaurante japonês, tendo postos uns
óculos de lentes octogonais sem aro. Veste um conjunto saia-casaco creme; a
saia muito curta sobe-lhe acima do meio das coxas e deixa à mostra um par
de pernas que fariam inveja a qualquer bailarina; ao passo que o casaco
assertoado, ligeiramente aberto, põe em evidência um seio generoso que dirse-ia desafiar a lei da gravidade. Sorri amigavelmente quando nos vê passar
a porta.
“Ciao, Franci. Senti, da adesso in avanti, non sono per nessuno, ok”, atira-lhe o
nosso anfitrião quando passa por ela.
“Ciao, capo. Va bene”, responde; e depois acrescenta, quando já estamos a sair
pela porta ao fundo: “Pepi! Senti, ha chiamato tua moglie. Ha bisogno di parlare
con te.”
“Va bene. Grazie”, diz o nosso acompanhante e fecha a porta.
400
A sala onde estamos deve ter uns noventa metros quadrados. Do nosso lado
esquerdo, a parede é composta por janelas que vão do chão ao tecto, os
vidros no mesmo tom acastanhado das da outra sala, enquanto a parede do
lado direito está pintada de branco-nata e serve de suporte a mais três
reproduções de pinturas antigas, desta vez do século dezasseis – escola
italiana, claro – enquadradas em molduras douradas do mesmo estilo
ornamental das que se encontram na cave O chão é em madeira clara, balsa
ou carvalho francês, parcialmente coberto por um tapete que parece ter sido
tecido à medida, cujo centro é ocupado por uma mesa redonda em castanho,
de tampo lacado, em redor da qual se encontram umas dez ou doze cadeiras
em pele negra, com braços na mesma madeira da mesa.
Ao fundo da sala há uma passagem em arco, com duas portas de correr, uma
de cada lado, pintadas na cor das paredes. É por ela que seguimos, indo ter a
um gabinete arredondado, com sensivelmente dois terços do tamanho da
sala, e o mesmo chão claro, coberto por três tapetes, também aparentemente
dispostos ao acaso. A maior parte da área de parede está coberta por estantes
em mogno cheias de livros, à excepção de dez metros quadrados ocupados
por duas janelas e da porção coberta por mais duas pinturas, dos séculos
quinze ou dezasseis, emolduradas a dourado como todas as outras. Ao nosso
lado direito fica uma lareira em pedra, à frente da qual estão dispostos três
maples em couro de tom amarelado – avestruz, parece – e uma mesinha de
madeira escura com entalhes em marfim, de aparência norte-africana, sobre a
qual estão um telefone e um cinzeiro em cerâmica.
Sensivelmente à nossa frente, para a esquerda, precisamente enquadrada
pelas duas pinturas, está uma secretária em madeira negra com decorações a
dourado em estilo Napoleão III, de tampo recortado e entalhado protegido
401
por um vidro no mesmo feitio. Sobre o tampo apenas um monitor plano,
também negro, e um telefone da mesma cor. Por trás da secretária, uma
cadeira de encosto alto, semelhante à da outra sala, mas cuja pele é no
mesmo tom da dos cadeirões à nossa direita.
É para eles que nos dirigimos, enquanto o Giuseppe – Pepino para os amigos
– nos vai falando das modificações que fez desde a última visita do Leonel.
“Quando tu cá vieste ainda só existia este andar, não era?” O Leonel acena-lhe
que sim, e ele continua. “Era o que eu pensava. Isso deve ter sido há uns três anos
e pouco, porque foi mais ou menos nessa altura que comprei a última cave. A ideia
nessa altura era procurar outras instalações, mas quando eles puseram a cave à
venda decidi ficar.”
“Mas porquê a cave? Não se pode dizer que seja uma escolha óbvia para um
escritório”, pergunto, enquanto nos sentamos e lhe faço sinal com o cachimbo.
Ele acena que sim e ri-se. “A cave era originalmente um abrigo antiaéreo – este
edifício é totalmente em betão armado e foi feito na altura da guerra – e,
provavelmente, desde essa altura que não servia realmente para nada, dizia-se que
estava cheia de ratos e outras parvoíces do género. Quando a administração do prédio
decidiu pô-la à venda, para ver se fazia umas coroas, eu fui vê-la e, felizmente, decidi
arriscar. Expandindo para a cave, em vez de ir para novas instalações, que seriam,
necessariamente, mais longe do centro, mantivemos o mesmo endereço – e posso
garantir-vos que não há muitos com mais classe do que este.
Ainda gastámos umas massas a limpá-la e a dar-lhe um aspecto decente, mas não
mais do que teríamos gasto se tivéssemos ido para um escritório novo, para o adaptar
ao nosso gosto”, diz, com um encolher de ombros.
402
“Sim, tem realmente muito bom aspecto”, cumprimenta o Leonel.
“Obrigado. Não sei se fazes alguma ideia da importância que a aparência tem neste
ramo, mas posso dizer-te que é uma coisa quase doentia. Mais importante do que
fazer um bom trabalho é quase parecer fazer um bom trabalho, ou até, ter uma
aparência que leve os outros, nomeadamente os clientes, a pensar que se faz um bom
trabalho. Por isso, tive muito cuidado com a decoração a dar ao espaço cá de cima;
que modifiquei totalmente, como deves ter reparado, para agora servir quase
exclusivamente para recepção e entretenimento dos clientes – só cá estamos a
Francesca, eu e os quatro da contabilidade – tudo o resto funciona lá em baixo. Mas
também prestámos muita atenção ao aspecto e ao conforto das salas lá de baixo, não
só porque, afinal, íamos ter a maioria do pessoal a trabalhar lá, e o bem-estar dos
meus é importante para mim, mas especialmente porque, embora os clientes
raramente lá vão, bastaria um ir e ver o que não gostasse para me estragar a
reputação”, explica.
“O que queres dizer com isso?”
“É simples. De há uns anos para cá, os grandes clientes deste ramo são pessoas que
não precisam de todo de alguém que os proteja, mas que gostam de dar a impressão
de precisar. Ou seja, têm dinheiro, não sabem o que fazer com ele e resolvem criar
uma áurea de inacessibilidade ou estabelecer uma barreira de protecção, para afastar
hipotéticos agressores ou raptores, é certo, mas também, e especialmente, para
inflacionar a sua auto-importância nos meios em que se movem.
Ora, para este tipo de pessoas é importante poder dizer que a firma que lhes fornece
os guarda-costas é uma firma reputada; ou seja, uma firma que tem instalações em
que eles pensem reconhecer-se – mesmo que não tenham realmente nada a ver com o
403
ambiente que aqui se procurou criar, ou saibam sequer nomear um dos pintores cujos
quadros adornam as nossas paredes.
A aparência representa noventa por cento do que aqui fazemos; mesmo que, em
qualquer caso, façamos um bom trabalho. A aparência física dos guarda-costas é
também importante. E, embora nunca o diga fora desta sala, contrato os meus
operacionais, quer eles quer elas, com base na experiência sim, mas também nunca
perdendo de vista o aspecto que possam ter de fato cinzento e óculos escuros!”
Nós devemos estar com cara de espantados.
“Ridículo, não é? Eu sei. Mas é isso que faz de nós a empresa mais bem cotada no
mercado, e também a que melhor se cobra, sem que qualquer dos clientes se queixe. E
não paramos de crescer”, termina, abrindo os braços com as palmas das mãos
voltadas para cima, como que para demonstrar a sua incapacidade para
compreender o fenómeno.
“Mas, deixemos isso. Vocês não vieram cá para saber como vão os meus negócios.
Contem-me, então, quais são os vossos planos.”
Dizemos-lhe do Andrei, que nos vai levar discretamente até à Albânia, e do
tipo que depois nos há-de conduzir até perto do sítio onde pensamos que
estará a Janna. Ele ouve-nos atentamente.
“Vocês conhecem esse ucraniano? Ou o outro, o guia?”
“Não; nem um, nem outro. Mas conheço a rapariga que conhece o Andrei, e sei que
posso confiar nela. O outro é uma incógnita e vai ter de ser tratado como tal. Mas
não temos outra hipótese. O rapto foi no sábado, hoje já é quarta, e algo me diz que
não devemos perder mais tempo”, esclareço tirando o cachimbo dos lábios.
404
Ele concorda comigo. “Também acho. Sabendo que eles não a levaram para pedir
resgate, quanto mais depressa lhes sair das garras melhor. Vocês têm a certeza do
sítio em que ela está?”
Olhamos um para o outro.
“Uma certeza relativa, sim”, digo. “A informação foi extraída sob pressão a alguém
que não creio nos possa ter mentido, e depois confirmada em documentos que
encontrámos no gabinete de um dos tipos provavelmente responsáveis pelo rapto. A
localização é algures no nordeste da Albânia, num sítio chamado Tropojê, cinquenta
quilómetros para norte de uma terra chamada Bajram Curri. Zona de montanhas, e
também pouco recomendável, ao que parece.”
Ele solta um assobio e arqueia as sobrancelhas.
“Zona de montanhas é uma descrição correcta. Pouco recomendável é um eufemismo.
Tropojê deve ser o distrito da Albânia com mais criminosos por quilómetro quadrado.
E não me refiro a carteiristas, que nessa zona devem passar por pessoas honestas”,
explica. “Sim senhor, escolheram bem o sítio, pode dizer-se. Ir para lá sem artilharia
seria suicídio.”
“Por isso viemos ter contigo. Podes abonar-nos com coisas de jeito?”, pergunta o
Leonel.
O outro olha para ele durante um momento e depois ri-se.
“Coisas de jeito tenho muitas, e posso fornecer-vos sem problema. Mas, numa
condição: eu vou convosco.”
“Porquê?”, perguntamos os dois ao mesmo tempo.
405
“Porquê? Acabei de vos dizer porquê! Olhem à vossa volta; vão lá a baixo ver como
ocupamos o nosso tempo. É tudo uma fantochada. Uma fantochada bem paga, mas
uma fantochada na mesma. E eu já estou pelos cabelos”, diz, numa crescente
exaltação, e depois continua, num tom mais calmo. “Desculpem, isto é um
assunto que me faz subir a mostarda ao nariz. Ganho praticamente aquilo que quero,
mas à custa de andar a fazer de ama-seca a imbecis com mais dinheiro do que juízo.
Claro que vos arranjo as armas que quiserem, e sem condições. Aquilo foi só um
desabafo. Embora continue a dizer que gostaria de ir com vocês. Aliás, melhor
dizendo, eu acho que devo ir com vocês.”
“Mas, porquê?”, volto a perguntar, por entre uma recém-criada nuvem de
fumo denso.
“Algum de vocês fala albanês?”, interroga por sua vez; um sorriso malicioso a
curvar-lhe os lábios. Temos de lhe dizer que não.
“Ora aí está uma razão porque devo ir. Outra é porque, segundo percebi, nenhum de
vocês esteve alguma vez na Albânia; e isso é um sério handicap, para a situação e
país em questão. E uma terceira, é que nunca se leva gente a mais para uma operação
destas – desde que seja gente com experiência, e vocês sabem que eu a tenho.”
“Está bem, está bem; não ponho em questão o que dizes. Três é melhor do que dois e o
conhecimento do terreno é obviamente uma vantagem”, diz o Leonel,
concordando com ele. “Mas, com essa de falares albanês, estás a querer atirar-nos
areia para os olhos, pá. Quando encontras algum, o que fazes, perguntas-lhe se ele
fala italiano?”
Ele ri-se.
406
“Não, eu sei mesmo falar albanês”, garante. Mas o Leonel ainda não está
convencido.
“Pois. Desde quando?”
“Desde que me casei com uma albanesa.”
“Como, casaste com uma albanesa? Então, a Lena não é grega?” O Leonel está
estupefacto.
“Não, pá! Conhecemo-nos na Grécia, realmente, mas ela é albanesa. Então, estás
satisfeito? Já acreditas, agora, que eu sabia albanês, ou queres que faça um teste?”,
diz, divertido com a expressão admirada do Leonel.
“Não, não. Desculpa ter duvidado, mas pensei mesmo que estavas a gozar”, diz este,
embaraçado, e depois olhando para mim, como que para obter o meu
acordo. “Não sei o que pensas tu, para mim, o albanês é um bónus importante, mas
as outras duas razões bastariam para o levarmos connosco.”
“Sim, sem dúvida. E se é isso mesmo que queres, eu só tenho a agradecer-te a ajuda.
Primeiro as armas e agora reforços. Fico duplamente endividado para contigo, a
sério”, digo e estendo-lhe a mão, que ele aperta com a mesma franqueza com
que sorri. E assim selamos um pacto.
“Nâ, não te preocupes por isso. Eu fico é satisfeito por, finalmente, poder fazer
alguma coisa de útil, em vez de aturar caprichos fazendo de conta que são problemas
sérios”, responde, afastando com um acenar da mão a dívida que acabei de
reconhecer-lhe. Mas ela não desapareceu, e ele próprio sabe que, se algum
dia precisar de mim, pode vir bater-me à porta e eu não poderei dizer-lhe
que não. Porque é assim que estas coisas funcionam.
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“Bom, creio que está tudo dito. Sugiro que vamos à armaria escolher o que queremos
levar e que depois nos ponhamos a caminho”, diz, ao mesmo tempo que carrega
no intercomunicador do telefone da mesinha. “Franci, uscimo adesso. Puoi
prendere la mia borsa, per cortezia. Grazie.”
Não tendo mesmo mais nada a discutir, e porque o tempo urge, se queremos
estar em Ravenna a horas de irmos ter com o amigo da Raisa, esvazio o
cachimbo no cinzeiro de cerâmica e meto-o na bolsa de cabedal, levantamonos dos cadeirões e fazemos o caminho inverso ao de entrada. Na primeira
sala, espera-nos a Francesca de pé, do alto dos seus sapatos rasos – que
mesmo assim a põem a quase um metro e oitenta de altura – com uma
mochila semelhante às nossas na mão.
“Ena, já estavas de mala feita e tudo. Isso é que foi confiança”, diz o Leonel,
quando a vê. O Pepino ri-se. “Claro, em hipótese alguma não iria convosco, nem
que tivesse de pagar para ir!”, afirma, pegando na mochila que a secretária lhe
estende.
“Stai atento, capo. E non dimenticare de chiamare Lena!”, adverte-o aquela.
Ele faz-lhe, de passagem, uma festa carinhosa no braço, como para lhe
agradecer e avança dois ou três passos, antes de dizer:
“Va bene. Grazie, bambola. Arrivedercci.”
Entramos novamente para o elevador e começamos a descer. O Pepino pega
no telefone mal as portas se fecham: “Dashnori! Bella mia, me volevi?” E
continua numa algaraviada meio caminho entre o italiano e o que penso ser
albanês, tal como penso que seja com a mulher que esteja a falar. Para não
408
prestar atenção à conversa, passo os olhos pela cabine. Reparo, então, que os
comandos são muito simples, além de um intercomunicador, três botões
apenas, um vermelho para o alarme, um com uma seta para cima e outro
com uma seta para baixo.
“Este elevador é só para vosso uso?”, inquiro, quando vejo que acabou a
conversa, achando estranho que assim possa ser.
“É, foi mandado instalar quando se comprou a cave”, responde ele. “Corre ao longo
da parede traseira do prédio e a única outra entrada é na nossa cave. Assim estamos
em contacto directo com eles, e ninguém lá pode entrar sem sabermos. O elevador dos
carros só funciona com código e tem uma câmara que transmite directamente para o
monitor da Francesca, sempre que o código é inserido. A única outra saída da cave
são as escadas de emergência, e essas têm uma porta blindada que só abre por dentro
– também vigiada por vídeo”, esclarece, nitidamente orgulhoso. “O que aqui
fazemos pode não ser o trabalho mais importante do mundo, mas isso não é razão
para descurar a segurança. Além do mais, os clientes ficam sempre bem
impressionados quando vêem que levamos a segurança a sério.”
Entretanto, chegamos à cave. Saímos do elevador e percorremos lateralmente
a sala por onde passámos em primeiro lugar. Ao fundo, espera-nos uma
porta em madeira elaboradamente decorada, semelhante a quase todas as
outras que dão para esta sala. Ao contrário das outras, porém, o acesso ao
que está para além desta é mais restrito. Para entrarmos, o nosso anfitrião
tem de apoiar o polegar numa placa de gel de reconhecimento digital, que
nos abre finalmente a porta, depois de confirmar que a impressão digital é de
alguém autorizado e que o dedo ainda está agarrado ao resto do corpo.
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Entramos para um pequeno átrio-corredor, com duas prateleiras largas em
aço dispostas a meia altura e a todo o comprimento. À nossa frente está uma
segunda porta, em aço também, que Pepino abre pelo mesmo processo da
anterior.
Lá dentro, dispostas em prateleiras estão algumas dezenas de armas de fogo,
entre pistolas automáticas e pistolas-metralhadoras de diversos tipos e
marcas, algumas caçadeiras de cano curto e alguns rifles de precisão.
Escolhemos as armas que melhor se adaptam ao nosso gosto, tiramos
munições do cofre ao fundo da divisão, que o Pepino entretanto abriu, e
voltamos a sair.
Passamos novamente pela sala, em direcção à garagem, desta vez, onde nos
espera o motorista que nos foi buscar ao aeroporto. Pomos o saco com as
armas e a mochila do Pepino na mala do carro, juntamente com as nossas, e
saímos da garagem em direcção a Ravenna. A nossa visita a Milão durou
pouco mais de uma hora.
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NOVE
O ucraniano mostrou ser tão de confiança quanto a Raisa esperava que fosse.
Estava à nossa espera na marina e largamos pouco depois de termos
chegado. Atravessámos o Adriático na diagonal, uma travessia que durou o
resto da tarde e quase toda a noite, e fomos depositados na costa albanesa ao
começo da madrugada de quarta, quinze quilómetros ao norte de Shengjin,
juntamente com os produtos de luxo italianos que o Andrei contrabandeia
para novos-ricos e criminosos de gosto exigente.
Um Humvee com aspecto de já ter conhecido melhores dias, aguardava-nos
na areia da praia. Pintado no verde-escuro e baço dos veículos militares,
continua a ter KIFOR escrito a negro dos dois lados, embora essa seja apenas
uma das marcas que agora lhe adornam a pintura, as outras sendo ferrugem
e remendos variados.
411
O nosso guia e proprietário do veículo chama-se Fatos. Um homem magro,
de pele morena e cabelo escuro que fuma, constantemente, cigarros sem
filtro, cujo fumo intenso e desagradável tornam ainda mais denso o seu olhar
desconfiado. O rosto escondido por detrás de um par de grossas
sobrancelhas e de um farto bigode, ambos tão negros como o cabelo, fazemno parecer o estereótipo de um contrabandista saído de um romance policial
do princípio do século vinte. Após alguma discussão, concordou em levarnos até Bajram Curri, mas não mais além, e só depois de ter deixado em casa
a parte do contrabando que lhe toca. Acordámos num preço, muito aquém
dos cinco mil euro originalmente pedidos, e numa forma de pagamento
repartida e pusemo-nos a caminho.
Com o Andrei ficou combinada uma viagem de regresso no fim da terceira
noite, e depois outra no fim da sexta, se acaso falharmos a primeira.
Paramos numa quinta perdida entre dois vales, atravessados pela estrada
poeirenta e pessimamente pavimentada que nos vai levando, aos solavancos,
em direcção a Bajram Curri. O nosso condutor descarrega todas as caixas de
cartão com DVD pornográficos que trouxe do barco, e voltamos a pôr-nos a
caminho. Se até pararmos na quinta, ele se manteve quedo e mudo,
dispensando-nos a mesma atenção que à mercadoria que levava e limitandose a fumar continuamente, acendendo os cigarros uns nos outros, depois
parece ter dado pela nossa existência e tenta fazer conversa, em italiano e
albanês, misturado com palavras em inglês que deve ter ido buscar ao
mesmo sítio que o Hummer.
“Unë businessman, unë vende DVD em todo rath Lerhe. Nojh të gjithë; conheço toda
a gente. Vetëm mire gjë send; Good quality only!”, diz, apontando enfaticamente
412
ora para si ora para o tecto da cabine, enquanto segura o volante só com a
mão esquerda, a meio de uma curva fechada na picada que nos leva para o
cimo de mais um monte, a uma velocidade muito acima do limite imposto
pelos escassos sinais e mais acima ainda do que seria razoável.
E continua, durante quase todo o trajecto, dentro dos limites do seu parco
vocabulário, tentando dar-nos uma imagem o mais empolada possível do
que tem, do que faz e de quem conhece. Talvez por ter acreditado na peta
que o Pepino lhe contou, que somos jornalistas, e vamos a Tropojé
entrevistar o chefe de um dos bandos que se dedicam à pilhagem em ambos
os lados da fronteira, dando-lhe o nome de imposto revolucionário.
Provavelmente, por pensar que também ele mereceria ser entrevistado.
O Pepino vai-lhe dizendo que sim de tempos a tempos, mas o homem nem
disso precisa; está de tal maneira entusiasmado com o personagem fora do
comum em que se vai transformando a cada nova frase, que já fala só pelo
prazer de se ouvir. O nosso eventual interesse pela história passou a ser
secundário, agora conta-a a si mesmo; quiçá descrevendo um eu futuro,
nascido das cinzas do contrabandista de meia tigela, que se especializa em
filmes pornográficos e outras porcarias e conduz um Hummer surripiado em
tempos à KIFOR.
No banco de trás, protegidos da vista do nosso guia pelas costas dos assentos
da frente, o Leonel e eu reverificamos as armas e as munições, e repartimolas pelas cargas de cada um, juntamente com a farmácia, as barras de
suplementos alimentares, os pacotes de refeições liofilizadas, as pastilhas
para a água e o resto.
413
A viagem de pouco menos de duzentos quilómetros demora quase o dia
todo. À medida que avançamos para o interior e para norte é visível o estado
de abandono das estradas, algumas pouco mais sendo do que caminhos de
terra batida, pavimentados, aqui e ali, por extensões de alcatrão mal
colocadas e hoje em muito mau estado. Gravados na terra e no alcatrão
podem ver-se e sentir-se os sulcos das rodas dos incontáveis carros de bois,
automóveis e camiões que têm passado por aqui desde que alguém prestou
pela última vez atenção a estas estradas. As poças cheias da água das
primeiras chuvas, que chegaram com o Outono, pouco contribuem para
ajudar o nosso progresso, e juntamente com os sulcos, as curvas apertadas
em que, invariavelmente, nos cruzamos com alguém, e os problemas de
mecânica que obrigam o Fatos parar o Hummer e abrir o capot quase de hora
a hora – já para não falar nas vezes que teve de encher o depósito – fazemnos parecer participantes numa gincana cujo objectivo fosse encontrar o
maior número de obstáculos possível.
Chegamos aos arredores de Bajram Curri já o Sol desapareceu por detrás dos
cumes que à nossa frente nos separam da fronteira. O resto do caminho é
preciso que o façamos a pé; embora lhe ofereçamos um bónus, o Fatos não
quer avançar mais por receio de ficar sem o Hummer, que pode ser do
agrado de um dos bandidos locais. Embora nós não percebamos bem o
receio dele, dado que várias vezes nos cruzámos com 4x4 bem mais vistosos
e de modelo mais recente, cheios de tipos que tinham tudo menos ar de
honestos. Mas, como os medos de cada um de nós são quase sempre
inexplicáveis para os outros, deixamo-lo ir sem protestar. Afinal, ele cumpriu
o prometido.
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Pomos as mochilas às costas e procuramos fazer os vinte quilómetros que
nos separam do nosso objectivo o mais discretamente possível.
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Com ajuda do Galileu acedido a partir do telefone do Pepino, cujo cursor
cintilante nos guia como um farol em direcção ao norte, avançamos pelo
mato rasteiro, interrompido por ocasionais extensões de bosque virgem, que
cobre a face do monte. Evitamos as poucas casas iluminadas que
encontramos, cujo aspecto exterior pareceria indicar estarem desabitadas e
prosseguimos a nossa subida, a coberto das sombras e do silêncio.
Esta é uma zona muito pobre; a diferença entre o pouco que vimos desde a
costa até aqui cada vez mais marcada, à medida que nos entranhamos na
montanha e nos afastamos das poucas estradas que a servem.
Após quarenta anos de um dos regimes mais xenófobos de que há memória,
que pouco mais fez além de preservar ardentemente essa xenofobia e ensinar
os albaneses a ler (a taxa de alfabetização é quase de cem por cento), e depois
de já quase quinze anos de pouco ou nenhum controle governamental sobre
o noroeste do país, os sinais de abandono têm estado bem à vista. O facto de
muita gente ter emigrado, para a Grécia, Itália, Alemanha e Estados Unidos,
também não tem ajudado – embora não se lhes possa criticar o terem querido
procurar uma vida melhor.
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O noroeste do país está praticamente sob o controle de grupos armados que
se guerreiam entre si, ao mesmo tempo que combatem as parcas guarnições
do exército albanês aqui estacionadas. Arvorando-se ideais revolucionários e
nobres intenções, a maior parte destes grupos não passam, na verdade, de
gangsters e assassinos que se servem das armas para impor a sua vontade às
populações de um e do outro lado da fronteira.
Quem quer que sejam os raptores da Janna, aqui devem certamente sentir-se
em casa.
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Progredimos a coberto de uma noite escura, procurando o caminho mais
directo a coberto de um céu cheio com as nuvens baixas da tempestade que
se avizinha, que quase não deixam passar a pouca luz reflectida pela lua e
fazem com que o cenário que nos rodeia pareça saído de um filme sobre os
vampiros da vizinha Transilvânia.
Avançamos em silêncio, armas coladas ao corpo, prontas a falar por nós com
quem nos procurar deter. O Galileu diz-nos que estamos perto do nosso
objectivo, e embora a configuração do terreno ainda não nos tenha permitido
uma confirmação visual, à nossa volta começam a aparecer sinais de que há
aqui quem não goste de receber visitas inesperadas. Câmaras de vídeo,
sensores de movimento montados no caminho – que nos levaram
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precisamente a avançar fora dele – e minas antipessoal estrategicamente
colocadas, de modo a apanhar o maior número de incautos.
Pepino levanta um braço e faz-nos sinal para parar, da posição de ponta em
que o facto de ser o proprietário do telefone-guia o colocou. Agachamo-nos
os três ainda mais no mato rasteiro que nos rodeia, a três quartos da face do
monte que vamos a subir. O Leonel fecha o cortejo e toma imediatamente
conta da nossa retaguarda, voltando-nos as costas e deixando que o
protejamos a ele.
Ao fundo da encosta, no meio de um bosque que se estende ao longo do
ribeiro que ali corre, consigo distinguir várias figuras de negro que se
movem ao longo da corrente quase tão furtivamente como nós. Uma
patrulha, faz-me sinal o Pepino. Talvez, respondo-lhe também por sinais.
Porque é que se movem tão sorrateiramente em terreno que não parece serlhes disputado, pergunto a mim mesmo. O mais provável é tratar-se de um
dos grupos armados que aqui operam; o ribeiro sendo o caminho mais lógico
de que se servem para cruzar esta zona, sem terem de se preocupar com
armadilhas e câmaras de vídeo.
Deixamo-los passar, aguardando, em silêncio, que o último deles dobre a
curva da encosta, e continuamos o nosso caminho para cima, em direcção ao
planalto que o monitor nos diz estar trezentos e cinquenta metros à frente e
vinte metros abaixo de onde nos encontramos.
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Descemos em direcção ao planalto onde se ergue aquilo que a fotocópia que
trouxemos d‟A Gata Perfumada descreve como Proc.Stion.14. Um edifício
baixo com dois pisos apenas, de construção recente, estrutura em aço coberta
com placas de betão pré-fabricadas, completamente às escuras com a
excepção de duas janelas, ocupando grande parte da extensão de terreno
limpo da parte de dentro da vedação que circunda o planalto, que terá talvez
uns dois mil metros quadrados. Do nosso lado esquerdo podemos ver um
portão em aço e folha canelada, ladeado por duas torres em betão com a
altura de um segundo andar, em cujos cimos estão colocadas metralhadoras
pesadas, apontadas à estreita picada que sobe a encosta depois de ter
atravessado o ribeiro. Entre o edifício e o portão há um espaço aberto, sem
árvores ou arbustos, onde estão parados dois Sikorsky S-112 e ao pé da
vedação há um telheiro, debaixo do qual estão três Humvees H3 pintados de
preto-baço.
Os binóculos de visão nocturna mostram-nos dois homens bastante
aborrecidos em cada torre; um deles fuma distraidamente um charro,
enquanto o segundo ouve música através de auriculares, e os outros dois
jogam ruidosamente aos dados.
Do que conseguimos ver da posição em que nos encontramos, dentro da
vedação, além dos quatro das torres, há mais três que jogam às cartas, numa
mesa debaixo de um alpendre ao pé de uma das portas do edifício. Em dois
cantos diagonalmente opostos do telhado, estão colocadas baterias antiaéreas
mas, aparentemente, não estão guarnecidas. Fora do perímetro há ainda mais
quatro equipas de dois, que vigiam as encostas que rodeiam quase
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completamente o planalto – duas destas equipas têm cães mas, felizmente
para nós, são as da outra encosta.
Entretanto, a sorte fez com que já tivéssemos conseguido melhorar
ligeiramente as probabilidades a nosso favor, neutralizando os dois que
faziam a ronda mais acima na encosta. Encontrámo-los sensivelmente a meio
e aproveitei o momento em que um deles parou a acender um cigarro, ao pé
de onde estávamos à espreita, para lhe passar a lâmina da faca de mato pelo
pescoço, enquanto o Pepino enfiava uma bala no outro, deixando-o caído de
encontro a um pinheiro; o sopro da pistola quase inaudível no meio da
folhagem.
Alguns metros mais abaixo e os nossos caminhos cruzam-se com os outros
dois. Avançam despreocupadamente ao longo de uma vereda, armas a
tiracolo, os dois de cigarro na boca, conversando em inglês como se
estivessem a passear num qualquer parque de Lisboa ou noutro sítio
igualmente aprazível.
“É como te digo, meu, tu vais lá e comes as gajas que quiseres durante uma tarde e só
tens de pagar uma vez”, promete o primeiro, um tipo alto e alourado, no
sotaque arrastado dos texanos, enquanto dá uma última passa no cigarro e o
atira para a sua frente para o esmagar com a bota.
“Mas, como é que isso pode ser? Os gajos assim não ganham dinheiro nenhum”,
contesta o outro, igualmente alto mas moreno, num inglês forçado, de
sotaque emprestado, e com ressonâncias de russo ou coisa que o valha.
O texano pára e olha para ele como se pensasse que o outro precisa de um
cérebro novo.
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“É claro que ganham, pá! Tu pagas-lhes em dólares, „tás a ver? E a moeda dos gajos
não vale puto, percebes? Mulheres é que eles têm de sobra. Quando dizem que podes
lá ir, pagar só uma vez e foder as vezes que quiseres durante uma tarde ou uma noite,
é claro que tu vais, „tás a ver? Mas depois, a maior parte dos gajos não dão mais do
que uma ou duas, e eles conseguiram chamar uma datas deles com a ideia, „tás a ver?
Assim, mantêm as gajas sempre a rodar, porque o pessoal quer é despachá-las para
poder dizer que comeu muitas, e há quase sempre mais gajos à porta com dinheiro na
mão. É um negócio do caralho!”, explica, sarcástico.
O outro olha para ele com ar de pouco convencido. Vai responder-lhe
quando é subitamente interrompido por gritos lancinantes que nos chegam
do edifício em frente.
Eles riem-se os dois.
“Sacana do Al! Deve estar a fazer das dele. O cabrão deixa as gajas todas em mau
estado”, protesta o louro, com alguma admiração na voz. O outro ri-se
novamente.
“Pois, mas nunca te vi recusar nenhuma das que ele conseguiu apanhar primeiro.”
“É, ia dar-te a vez a ti, não?”, pergunta, belicoso, o primeiro.
O moreno, porém, não lhe chega a responder. Os gritos que ainda se ouvem
no edifício e a conversa dos dois acerca do que se estava a passar fazem-me
pensar que a vítima poderia ser a Janna e a fúria toma conta de mim.
De um salto cubro os três metros que nos separam dos dois homens. Enfio a
faca que levo na mão direita no pescoço do moreno, fraccionando-lhe a
medula e fazendo-o subitamente parecer um boneco articulado a quem
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cortaram os fios. O louro apercebe-se do movimento, mesmo antes de me
ver, e tenta pegar na M16 que tem cruzada sobre o peito, para a apontar para
mim enquanto o outro parece cair lentamente para o chão. Mas não chega a
disparar; atrás de mim ouço o familiar sopro de um silenciador e ele
interrompe o movimento a meio caminho. Um círculo vermelho aparece-lhe
subitamente na testa, as pupilas juntam-se-lhe no nariz e ele cai para trás,
para o meio da folhagem e arbustos rasteiros que cobrem o solo.
“Obrigado, pá. Mais uma que te devo”, digo, em surdina, ao Leonel.
Ele faz-me sinal que não preciso de me preocupar com isso. Escondemos os
corpos o melhor possível debaixo de folhas e arbustos, e continuamos a
descer para a vedação, com os ouvidos alerta para ver se alguém se
apercebeu do que se passou.
Entretanto, os gritos passaram a um choro convulsivo, misturado com
gemidos de dor e com os gritos de incitamento de outras vozes, masculinas
desta vez. Os tipos que estão a jogar às cartas, à parte uma primeira reacção
semelhante à dos dois que agora jazem a coberto das folhas, parecem não
ligar de todo ao que se está a passar a poucos metros deles, o que me faz
pensar que deve ser ocorrência normal e recear novamente pela Janna.
O som parece vir de uma janela do primeiro andar, uma das únicas
iluminadas, uns dez metros para a direita do alpendre e para a nossa
esquerda.
Uma rápida inspecção à vedação revela-nos que está electrificada. Sendo
demasiado alta para passarmos por cima, tentamos ver até que distância está
enterrada, para a podermos transpor por baixo.
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Enquanto o Leonel cava, e o Pepino fica de guarda, eu bato o terreno à volta.
É afastando-me da grelha de arame que reparo, finalmente, na vala funda
com cerca de um metro de largura, que tivemos de saltar para chegar à
vedação. Correndo ao longo daquela, como um fosso em redor de um castelo
medieval, segue a ligeira inclinação do planalto em direcção ao ribeiro mais
abaixo. Embora saiba que a sua função é principalmente escoar as águas que
escorrem das encostas e evitar que ensopem o solo argiloso do planalto, uma
rápida olhadela ao edifício e aos canos de escoamento que, a intervalos
regulares, dividem a parede, faz-me pensar que talvez seja boa ideia verificar
se é mesmo só para isso que serve.
Trinta metros mais à frente, a minha curiosidade é recompensada. Escondida
dos olhares menos inquisitivos pelos muitos arbustos e ervas que enchem a
vala e a tornam praticamente inútil, pode ver-se a negra abertura de uma
manilha em aço.
Uma linha recta desde a abertura conduz-me o olhar até a uma caixa de
escoamento de águas ao pé da parede do edifício, perceptível pelas várias
ervas que lhe crescem à volta, ao contrário do que acontece no resto da
planura estéril para além da vedação.
Volto atrás para chamar os outros. O Leonel abana a cabeça quando me vê, a
vedação parece estar bem enterrada e continuamente electrificada. Faço-lhes
sinal para abandonarem a ideia e aponto para o sítio onde vi a manilha.
Cobrimos rapidamente o buraco com ramos e folhas, não vá dar-se o caso de
algum deles decidir fazer uma inspecção ao perímetro, e subimos ao longo
da vala.
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O espaço era à justa, mas conseguimos encolher-nos o suficiente para nos
arrastarmos os cinquenta metros que nos separavam da caixa de escoamento.
A grelha foi um pouco mais complicada. Estava ferrugenta e foi difícil fazê-la
mover sem ruído. Além de ter sido precisa muita força, foi também
necessária alguma paciência, para a ir levantando pouco a pouco.
Seguimos para a direita ao longo da parede, afastando-nos dos jogadores de
cartas, até chegarmos às escadas de metal, que levam ao varandim que
rodeia o primeiro andar até perto das janelas iluminadas.
Avançamos rapidamente ao longo do varandim até ao fim, uns quinze
metros antes do nosso objectivo. Uma rápida inspecção mostra-nos que a
porta não está fechada à chave e não dispõe de qualquer alarme. Entramos
para uma sala às escuras, no centro da qual estão duas secretárias, cada uma
com o seu monitor, e respectivas cadeiras. Para além de um mapa-mundo na
transferência de Peters colocado na parede da direita, decorado com diversas
bandeirinhas azuis ou vermelhas que assinalam diversos pontos do globo –
um deles este, marcado a vermelho – a sala nada mais contém e pouco
aspecto tem de ser usada.
Dir-se-ia estarmos num edifício desabitado há muito, não fossem os gemidos
abafados e os ruídos de incitamento selvagem que nos chegam através das
paredes, vindos da sala vizinha.
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Abrimos a porta interior e saímos para um longo corredor de paredes creme,
o chão coberto por uma alcatifa industrial de cor indefinida, sob a luz difusa
de lâmpadas de emergência colocadas de cinco em cinco metros. De um lado
e outro do corredor podem ver-se portas semelhantes àquela de onde
acabamos de sair, a metade superior quase totalmente ocupada por um vidro
fosco, em que está escrito a negro o que presumo seja a função da sala LGSTCS no caso daquela de onde acabámos de sair -, a parte de baixo em
alumínio esbranquiçado pouco diferenciável da cor das paredes.
Além da sala à nossa esquerda, nenhuma outra parece estar ocupada. Aliás,
todo o edifício parece estar envolvido num pesado silêncio sepulcral, tão
pesado que nem os gritos e exclamações obscenas que se ouvem conseguem
realmente afastar.
Avançamos cautelosamente em direcção às portas iluminadas. Iguais a todas
as outras, só a luz que as atravessa e a legenda as distingue. MTNGRM 1 é o
que está escrito nas duas.
Tomamos posição ao lado de cada uma. O Pepino e eu na primeira e o
Leonel na segunda. Infelizmente, o vidro fosco não nos deixa ver nada do
que se passa no interior, e não queremos abrir as portas para ver, por receio
de nos darmos a conhecer antes de tempo. Um cálculo das dimensões da sala
com base na distância entre portas, diz-nos que deve ter sensivelmente o
dobro do tamanho daquela por onde entrámos, e o som das diferentes vozes
dá-nos a entender lá estarem quatro ou cinco homens e duas ou três
mulheres.
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“Go Al Go! Fuck her good, man!” Os gritos de incitamento continuam, embora
os gemidos tenham deixado de se ouvir.
Ao sinal combinado, abrimos as portas de rompante, as armas em riste e
prontas a disparar.
A cena parece saída de um mau filme de sexo e violência. De costas para nós,
sobre uma mesa comprida de madeira escura, em redor da qual estão ainda
dispostas algumas cadeiras em pele com rodas nos pés, está semideitada
uma mulher, completamente despida. De bruços, os braços esticados e
seguros por dois tipos, um de cada lado da mesa; as pernas abertas caídas
sobre a borda, enquanto entre elas, um terceiro com ar abrutalhado a
sodomiza, apoiando-se nas suas ancas para a penetrar. Os cabelos negros em
desalinho, um fio de sangue escorre-lhe dos lábios; ela parece desacordada.
Do outro lado da mesa, outro marmanjo sentado numa cadeira força uma
rapariga a uma felação, segurando-lhe pelos cabelos e empurrando-lhe a
cabeça de encontro à base do pénis, enquanto um segundo, de joelhos, a
penetra por trás, batendo-lhe com força nas nádegas já vermelhas com uma
chibata em couro.
“Meu, eu adoro este trabalho!”, exclama o grandalhão com mais um empurrar
de ancas contra a rapariga deitada sobre a mesa, que continua sem dar sinal
de si. Os outros riem-se com ar alarve, ao mesmo tempo que dão por nós
quando entramos na sala.
A primeira reacção é de incredulidade, dois deles riem-se novamente,
pensando talvez tratar-se de uma partida dos outros guardas; as nossas
roupas e garruços de malha negra sobre caras chamuscadas fazem-nos
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parecidos com quaisquer outros com as mesmas farpelas. Mas depois vêem
que nenhum de nós está a rir.
“Mas que cara...”, começa a dizer o apaixonado pelo trabalho quando vê as
expressões dos outros, e volta-se para trás para ver o que se passa.
Ao mesmo tempo, apercebo-me de um terceiro vulto, uma mulher caída de
encontro à parede, como um molhe de trapos atirado para o chão. Nua
também, tal como as outras duas, as pernas dobradas debaixo de si, a cabeça
pendente sobre os ombros, os seios pequenos marcados por maus-tratos, o
cabelo avermelhado em desalinho cobrindo-lhe o rosto. Vejo o que não quero
ver, o que tenho receio de ver, e subitamente é a Janna que tenho ali à minha
frente caída no chão.
Entretanto, o tipo da mesa está a acabar de voltar-se e eu dou de caras com
uma expressão abrutalhada, violenta, que me olha com ar de enfado.
“Mas quem caralho são estes?”, diz, arrogante, não parecendo aperceber-se das
armas que lhe apontamos.
É quem está mais à mão de semear. Faço rodar a HK nas mãos e dou-lhe com
a coronha na cana do nariz, enchendo-lhe a cara de sangue e fazendo-o cair
para trás, para cima da rapariga e depois para o chão, meio atordoado.
Os outros, entretanto, começam a reagir.
Os
que
seguram
os
pulsos
da
rapariga,
largam-na
e
deitam,
atabalhoadamente, as mãos a uma AK47 colocada sobre o tampo da mesa.
Mas cada um puxa para seu lado e nenhum consegue fazer uso dela. Sinto
mais do que oiço, dois sopros à minha esquerda e eles caiem os dois para o
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chão, um agarrado à garganta num gorgolejo animalesco e o outro sem um
ruído, a parte superior do crânio explodindo em mil fragmentos de branco
numa nuvem cor-de-rosa.
Um tiro bem colocado do Leonel, faz com que o que está sentado na cadeira
não se levante mais. Infelizmente, não antes de que consiga fazer fogo com
um .44 que sacou do assento de outra cadeira. Um bacamarte daqueles deve
certamente ter alertado os outros. Vamos começar a ter problemas.
Eu dou cabo do último. Quando viu o companheiro estremecer sob o
impacto da bala da Beretta que o Leonel lhe coloca no peito, ele agarrou
imediatamente na rapariga pelos ombros e puxou-a para a sua frente,
pensando proteger-se. Mas não lhe serve de nada. Se o ângulo não é bom
para o Leonel e para o Pepino, a mim pouco me afecta, e estou para além de
pensar nos riscos da refém.
Passo a arma para a mão esquerda e enfio-lhe um tiro através do crânio que
o faz largar a rapariga e cair para o lado sob o impacto da bala.
Entretanto, o que ficou com o nariz em papa, consegue que o cérebro lhe
deixe de tinir o suficiente para deitar mão à pistola que tem no cinto e
dispara contra o Leonel, ainda com a atenção posta no que eu acabei de pôr
fora de serviço. O Pepino reage, mas já fora de tempo, e o Leonel cai de
encontro à ombreira da porta, antes do outro tocar no chão com o tronco
feito num passador.
Lá fora começam a ouvir-se gritos de alarme, dado que os outros perceberam
já que não se trataram de disparos acidentais. Ou talvez até porque tenham
dado pela falta dos quatro que deixámos na encosta.
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O Pepino vai ver como está o Leonel, enquanto eu corro para a rapariga que
penso ser a Janna. Mas não é ela. Graças a Deus, penso; para logo pensar que
talvez não tenha nada que agradecer, pois assim continuo a não saber dela.
Tomo-lhe o pulso e verifico que está bem. Apenas desmaiada e talvez em
choque depois do que lhe fizeram. Mas estes já não voltam a fazer o mesmo a
mais ninguém.
“O Leonel está mal, Jak!”, grita-me Pepino, deixando-me subitamente
preocupado.
Corro para eles, fazendo de passagem uma festa no cabelo da terceira
rapariga que chora baixinho no chão, enrolada num novelo no sítio onde
caiu quando o outro a empurrou. Digo-lhe que está tudo bem em português,
porque não faço a mínima ideia que línguas é que entende e, nesse caso,
tanto me parecem boas umas como as outras, o tom de voz é que importa.
Entretanto, de fora chegam-nos gritos de chamada. Pedindo pelo Al, pelo
Mikka e perguntando o que se passa. Mas ninguém lhes pode dar resposta.
Quando chego ao pé deles deparo com um Leonel ensanguentado. A bala
atingiu-o no peito, acima do coração e ele está a perder sangue. Ainda por
cima, o impacto projectou-o para trás e fê-lo bater com a cabeça na esquina
da porta, deixando-o duplamente desacordado.
“Acho que vou conseguir estancar o sangue”, diz o Pepino, comprimindo a
ferida com um coagulante rápido. “Mas vai ser preciso levá-lo daqui, depressa.
Ele tem de ir para um hospital, sem demora.”
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A hipótese de levar o Leonel às costas, nem que seja por absoluta
necessidade, não me agrada de todo. O tipo pesa perto de uma tonelada!
Vamos ter de levar um dos Sikorskys. O problema está em que, para
fazermos isso, vai ser preciso convencer os tipos lá de fora, e eles não
parecem de todo interessados em ser convencidos.
Como se para eliminar quaisquer dúvidas que ainda pudesse ter acerca
disso, os vidros das janelas voam em estilhaços com as rajadas disparadas de
baixo. Devem ter chegado à conclusão que a falta de resposta dos cúmplices
era mau sinal e resolveram deixar claro que não gostam de brincadeiras.
“É preciso sairmos daqui, rápido!”, digo para o Pepino. “Leva esse gajo para um
gabinete do outro lado do corredor. Eu trato delas.”
Dirijo-me primeiro à que chora baixinho no chão. Falo-lhe novamente em
português, e depois sucessivamente em francês, em italiano e em inglês, mas
ela não parece perceber nenhuma das línguas. Repete apenas “Unë flas shqip;
unë flas shqip.” Mas eu não faço a mínima ideia do que isso queira dizer.
Consigo, porém, que deixe de tremer e me preste atenção. Convenço-a a vir
comigo, e fazendo com que se apoie em mim, faço-a atravessar o corredor
para a sala, três portas à esquerda, que o Pepino escolheu.
Deixo-a sentada numa cadeira ao pé da porta e volto para ir buscar as outras
duas, quando oiço já passos apressados que ressoam no metal no varandim.
Corro para as janelas, agora sem vidros, e pondo a arma de fora disparo uma
rajada contra eles, deitando um ao chão com as pernas cheias de buracos e
fazendo os outros pensar duas vezes antes de continuarem a avançar.
429
Sem grandes cerimónias pego nos corpos desacordados das duas raparigas,
ponho-as sobre os ombros e carrego com elas para a outra sala, fechando as
portas atrás de mim.
===================¤==================
O compartimento parece tratar-se de um armazém ou talvez do arquivo
morto do que quer que seja que aqui se faça. Há filas atrás de filas de
armários de metal com gavetas, cada um com talvez um metro e setenta de
altura. Ao fundo, no canto esquerdo, uma outra porta, sem vidro desta vez e
em aço, com RSTRCTD escrito a meio em letras gordas. À entrada, uma mesa
com um computador e duas cadeiras, uma das quais aquela em que está
sentada a rapariga que primeiro trouxe.
Deposito, cuidadosamente, as outras duas no chão e vou ver como está o
Leonel.
“Então?”
“A hemorragia parou. Mas ele não pode ficar sem atenção médica durante muito
mais tempo. E elas também não”, diz o nosso amigo italiano, apontando com o
queixo para as mulheres.
Eu concordo com ele com um aceno de cabeça. Isto está a revelar-se mais
complicado do que seria desejável. E ainda não sei onde está a Janna.
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Supondo que ela está efectivamente aqui. Embora isso seja coisa em que
prefira não pensar de momento.
“Ouve, Pepino, só temos uma hipótese. Os Sikorskys que estão parados lá em baixo.
Mas, para isso, vai ser preciso tratar dos tipos lá de fora primeiro, e para isso temos
de sair daqui. Ajuda-me.”
Com cuidado, tentando fazer o mínimo de ruído embora trabalhando
depressa, alteramos a disposição dos armários no fundo da sala, criando
uma espécie de compartimento secreto atrás dos mesmos. Com um bocado
de sorte, se se limitarem a inspeccionar a sala da porta, pode ser que não se
apercebam que está mais curta. Carregamos o Leonel e as duas raparigas
desmaiadas para trás dos armários, e depois conduzimos também a outra
para mesmo sítio.
Afinal ela é albanesa e Pepino consegue explicar-lhe que temos de a deixar
ali. A princípio não quer aceitar, abre muito os olhos e diz: “Jo, jo, jo! Kurrë
më, kurrë më!”, acenando, verdadeiramente aterrorizada. Mas ele consegue
convencê-la, dizendo-lhe, provavelmente, que o Leonel precisa de atenção e
que nós temos outras coisas para fazer. Finalmente, abana a cabeça e suspira
um “Po” muito sumido, que presumo queira dizer sim. Pepino explica-lhe o
que fazer no caso de Leonel recomeçar a perder sangue e deixa-lhe a
farmácia para que possa tratar de si e atender às outras duas raparigas.
Damos um último jeito aos armários e dirigimo-nos para a porta, quando as
sombras no corredor nos dizem que já não estamos sós dentro do edifício.
Sair agora, sem saber quantos estão lá fora, seria um grave erro táctico e era
capaz de os querer levar a inspeccionar melhor esta sala. No entanto, é
431
preciso que saiamos daqui depressa. Temos de os atrair para longe daqui,
antes que os tipos com os cães voltem para dentro do perímetro. Se os
fazemos lançar os cães às cegas à nossa procura, é possível que encontrem
quem não queremos que encontrem.
A porta das traseiras parece ser a única saída possível.
Mas não está aberta, como as outras até aqui. A legenda “restricted” pintada
em maiúsculas, na variedade sem vogais do inglês que é moda neste sítio,
parece querer dizer mesmo “acesso restrito”. A porta abre-se por meio de um
código a inserir num teclado alfanumérico onde, estranhamente, só constam
as vogais, além dos numerais de 0 a 9. Por cima do pequeno teclado, uma luz
vermelha cintilante, diz-nos que é melhor termos cuidado e não pensarmos
em forçar a porta.
O Pepino, porém, não parece preocupado. Examina rapidamente a placa e a
caixa de aço que lhe serve de base, tira do bolso do colete um pequeno
aparelho semelhante a um amperímetro electrónico e insere cada um dos
dois pernos que lhe estão ligados, em cantos diagonalmente opostos na
almofada do teclado. Digita um comando no pequeno teclado do pseudoamperímetro e este começa à procura da combinação correcta para abrir a
porta, fazendo os números e as vogais sucederem-se a uma velocidade
incrível no pequeno monitor. Em poucos segundos diz-nos qual o código a
inserir.
“Hop‟lá!”,
exclama,
visivelmente
satisfeito
com
o
desempenho
do
aparelhómetro. E acto contínuo insere, sem hesitar, a combinação que nos foi
fornecida.
432
Apesar da minha grande ansiedade, a luz do teclado passa a verde e a porta
emite o estalido característico de uma tranca que se abre.
Esperando que esta área restrita não funcione com turnos às vinte e quatro
horas, abrimos cautelosamente a porta.
Mas nada mais vemos do que um corredor largo e comprido, desprovido de
qualquer interesse. Iluminado a néon por uma placa contínua que se estende
de uma ponta à outra do tecto, as paredes pintadas de um creme que parece
hospitalar e o chão coberto por um linóleo ou por uma borrachite qualquer,
que se diria ser destinado à mesma utilização que a tinta creme que cobre as
paredes. Além das portas em cada extremidade, do nosso lado há ainda mais
duas, embora apenas uma se veja do lado oposto, cerca de cinco ou seis
metros à nossa direita. Essa porta tem gravado STRGCHMBRS, enquanto
que aquela de onde acabámos de sair foi agraciada com MDCLRCRDS. Estes
gajos devem ter uma predilecção por charadas, certamente.
Como as portas do nosso lado não nos interessam, não vão as salas para
onde dão terem visitas, resolvemos tentar as outras, começando por aquela
que está mais perto.
Do lado de cá não há teclados nem são precisos códigos, como se quem
tivesse acesso ao corredor pudesse ter acesso a tudo o resto.
Uma simples barra longitudinal, como nas saídas de emergência que se
encontram em quase todos os edifícios públicos, um pequeno empurrão e a
porta abre-se sem dificuldade, apoiada sobre dobradiças bem oleadas.
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===================¤==================
Entramos num armazém de grandes dimensões, como uma nave de um
templo dedicado a um deus desconhecido, que sobe a toda a altura do
prédio e que parece também estender-se a quase todo o seu comprimento,
em que a estrutura em aço foi usada para servir de base a um sistema de
carris, de onde estão suspensos aquilo que não me parece que possa
descrever-se como outra coisa além de „casulos‟, pois essa é a imagem que
me vem à mente, quando percorro, com os olhos, o espaço para além do
varandim de ferro em que nos encontramos.
Casulos enormes, com mais de dois metros de comprimento e seguramente
um de diâmetro; cilíndricos, dispostos longitudinalmente ao longo dos
carris, dos quais pendem por meio de braços articulados que os seguram
pelas extremidades. A base e as pontas são num metal negro, onde cintilam,
aqui e ali, pequenas luzes coloridas e monitores de fundo verde-escuro; a
meio de base, um monitor maior e um teclado alfanumérico igual ao de um
qualquer computador caseiro. A parte superior, ocupando mais de três
quartos da dimensão do casulo, é em vidro ou num outro material
transparente, e dentro desta podem ver-se, uma por casulo, envoltas num
líquido espesso de cor amarelada e em estado de aparente hibernação,
mulheres de todas as raças em diversos estados de gravidez. Das
extremidades dos casulos mais próximas das cabeças das hibernantes saem
tubos que terminam numa máscara que lhes cobre o nariz e a boca, enquanto
da extremidade oposta sai outro tubo, que termina num arnês em plástico
que lhes cobre o sexo e lhes cinge as ancas. Flutuando no líquido amarelado,
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como o fluido amniótico em que flutuam os embriões e fetos que têm no
ventre, as grávidas parecem repousar em paz, alheias à obscenidade que as
rodeia.
A imagem do templo que as dimensões da nave me fizeram vir à mente
parece-me agora ainda mais correcta, sinto-me realmente num templo; um
templo cheio de casulos em hibernação, à espera que um qualquer deus
maldito lhes dê ordens para passarem à fase seguinte.
A iluminação é reduzida, há somente pequenos focos colocados entre cada
três casulos, e o silêncio é quase completo; ouve-se apenas o longínquo
zumbir contínuo de maquinaria indefinida, que me faz recordar “Wish you
were here” e contribui para dar ao local um aspecto irreal e fantasmagórico.
O Pepino, ao meu lado, abana a cabeça, incrédulo.
“Porca putana troia! Ma ché cose sono queste?”
Eu sei tão pouco como ele e não lhe posso responder, mas o meu receio pela
Janna cresce a cada segundo que passo dentro desta câmara. Pensar que ela
foi raptada para ser cruelmente exposta num qualquer bordel, para ser usada
e abusada por um grupo de javardos e quem mais eles quisessem convidar,
já era muito penoso, mas isto... isto ultrapassa os limites da crueldade. Isto é
coisa de pesadelo.
Quem são estes tipos? Para que querem todas estas mulheres? E como é que
parecem estar grávidas, todas elas? Pergunto. Mas ninguém me responde.
Elas continuam a flutuar, alienadas e indiferentes às interrogações que me
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ponho, e o Pepino tem no olhar a mesma incompreensão que certamente
veria no meu, se pudesse ver-me ao espelho neste preciso momento.
De súbito, vemos começar a acenderem-se holofotes circulares, pendentes do
tecto em filas longitudinais colocadas entre as carreiras de casulos, um após
outro, inundando de luz o ambiente que até agora era de quase escuridão.
Fthou! Fthou! Fthou!
O estalar dos interruptores como sopros de morteiros, que nos fazem
estremecer e sair da letargia em que a visão do que nos rodeia nos tinha
colocado.
Fugindo para a escuridão que ainda resta, corremos para a direita, para o
fundo da nave. Mas reagimos demasiado tarde, ou foi o ressoar dos nossos
passos sobre a grelha de aço do passadiço que nos traiu, não sei.
“Lá em cima! Eles estão lá em cima. São dois!”
Grita alguém, e somos saudados pelo crepitar ritmado característico das
armas automáticas. A saraivada de balas que nos procura não nos descobre,
mas encontra outros alvos. Duas das hibernantes são atingidas mortalmente
e passam a flutuar sem vida num fluido amarelado com laivos de vermelho.
“Jon! You dumb fuck! Vê o que fazes. Não dês cabo das gajas, foda-se!”, grita nova
voz. “Klaus, Ganadi, Lufter, subam pelas escadas e vão apanhar esses cabrões. Pete,
Jack, levem os cães e vão pelo outro lado. Jon, Vagjelis, vocês vêm comigo, vamos
pedir reforços e continuar à procura das gajas.”
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Se se acredita em Deus ou num qualquer poder superior que ordene a vida,
há alturas em que nos sentimos quase obrigados a agradecer os pequenos
favores que nos são concedidos. Embora saibamos perfeitamente que Deus
tem mais o que fazer do que prestar atenção aos nossos agradecimentos, por
mais merecidos que sejam.
Como agora, por exemplo, por descuido do nosso amigo lá debaixo, não só
ficámos a saber por onde os esperar, como também sabemos os nomes deles,
para o caso de lhes queremos mandar um postal para o inferno. Mas, mais
importante ainda, ficámos a saber quantos andam à nossa procura. Não é o
dia ganho, mas já é qualquer coisa.
Voltar para trás não é uma hipótese viável. Se eles passaram para este lado
do corredor sem dar com o Leonel e com as raparigas, seria pouca esperteza
da nossa parte regressar ao outro lado; a sorte podia não estar connosco uma
segunda vez.
Tomamos a única via que nos resta. Por cima do parapeito, saltamos para o
casulo mais próximo, fazendo sacolejar a sua locatária, que abre os olhos com
sonolência, voltando logo de seguida ao sono letárgico anterior. Descemos ao
longo da coluna mais próxima até ao chão enterrado da nave, dois pisos
abaixo do nível zero do edifício por onde entrámos, sem querer acreditar na
nossa sorte. Que os nossos perseguidores tenham ido atrás de nós sem
pensar que poderíamos trocar de lugares com eles.
Caminhamos para a entrada por onde eles vieram, a coberto dos casulos, dos
carris e do emaranhado de cabos que se estendem por entre eles, procurando
não perder de vista o varandim e os cinco enviados à nossa procura, que,
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aliás, acabam de se encontrar a meio e perceber que foram enganados. Pois é,
rapazes, a vida tem destas coisas. O melhor é habituarem-se.
“Estão ali, caralho! Jack, atiça-lhes os cães, depressa”, grita um deles ao ver-nos,
lembrando-se, talvez, que o tipo que os mandou lá para cima não quer que
eles “dêem cabo das gajas”.
Ele obedece-lhe e solta os quatro enormes mastins de pêlo negro que
desatam a correr na nossa direcção sem rosnar sequer, rápidos e letais como
raios de quatro patas.
Nunca gostei de cães treinados para atacar em silêncio, fazem-me sempre
lembrar aqueles filhos da puta que se aproximam de nós à socapa para nos
espetar uma faca nas costas. Se bem que tenha sido mesmo isso que eu fiz
aos dois tipos lá fora, e os pobres dos animais não tenham qualquer culpa do
treino que receberam.
Acontece, também, que não é possível convencê-los a desistirem da ordem
que lhes foi dada - é o que penso quando os vejo aproximarem-se na ponta
da mecha, as fauces abertas, os dentes à mostra e prontos a abocanharem-nos
a garganta, se nos apanharem a jeito.
Saco da HK12 e ponho-me em posição para despachar os meus logo que os
tenha na linha de tiro. Ouço os disparos da Beretta do Pepino ao mesmo
tempo que sinto o coice da minha Heckler&Koch quando solta o primeiro
projéctil. Três foram ao chão com a salva inicial, mas o quarto esquivou-se a
tempo, ou eu não tenho tão boa pontaria como penso, e vem direito a mim,
demasiado perto para confiar na pistola. Deixo-o saltar e enfio-lhe a HK na
boca, como um freio que ele morde instintivamente, enquanto me desvio e
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com a mão esquerda puxo da faca que tenho no ombro e o degolo. Ele cai no
chão a espichar sangue da jugular com os dentes ainda ferrados na pistola,
fiel à última ordem que lhe foi dada, provavelmente sem perceber o que lhe
aconteceu.
Entretanto, os nossos amigos do varandim já vêm a descer as escadas para
nos fazer companhia, pelo que não podemos perder mais tempo. Recupero a
pistola da boca do cão, já sujeita à flacidez da morte e incapaz de me resistir,
e avançamos a coberto dos casulos na direcção das escadas.
A ideia é apanhá-los quando ainda vierem a descer e não tiverem onde se
esconder, o que conseguimos, embora apenas parcialmente. Os últimos dois
não chegam ao chão, uma rajada da MP5 deixa-os esparramados nos
degraus.
Os outros, porém, conseguem refugiar-se atrás de uma pilha de vigas de aço,
prontos a disparar sobre nós logo que saiamos da protecção dos casulos.
E nós precisamos mesmo de sair daqui.
Os hélicos estão lá fora e não chegamos lá sem primeiro passar por estes
gajos.
O Pepino faz-me sinal e aponta-me uma empilhadora, provavelmente usada
para transportar casulos, parada a meio da nave, já fora das carreiras. Digolhe que sim, avanço para a frente dele e começo a disparar rajadas curtas
para manter ocupados os das vigas, enquanto ele corre para a Komatsu.
Pensei que a ideia seria juntar-me a ele e depois manter a empilhadora entre
nós e os outros enquanto tentamos chegar às escadas do outro lado da nave,
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por isso, admiro-me bastante quando a ouço tossir e depois arrancar em
direcção à pilha de vigas, no meio de uma fumarada de vapores diesel de um
motor a precisar de ser revisto ou reciclado.
Eles também se apercebem do perigo e saem do seu refúgio a disparar
contra a empilhadora que se aproxima com alguma velocidade; mantêm,
porém, as vigas entre mim e eles, o que me impede de os poder atingir da
posição em que me encontro.
Reparo que o Pepino não vem na cabine, mas sim agachado no estribo
lateral, protegido pela carroçaria em aço reforçado, de onde segura o volante
com a mão direita, enquanto com o pé carrega no acelerador.
Quando a Komatsu passa por mim, saio para trás dela, acompanhando-a no
movimento enquanto disparo contra os três tipos, impossibilitados de
novamente procurar refúgio no sítio de onde saíram.
Atinjo no peito o que está mais perto de mim, empurrando-o de encontro a
outro que me tinha na mira, o que faz com que parte da rajada de M1 que se
me destinava tenha ficado no corpo dele. Infelizmente, foi só parte. Apesar
da mudança de ângulo que o empurrão do outro causou à arma, sinto que as
pernas me falham subitamente, como se alguém me tivesse passado uma
rasteira, e estou no chão antes de começar a aperceber-me das dores.
Entretanto, o garfo de aço da empilhadora choca com as vigas num grande
estardalhaço, atirando-as de encontro à parede de betão e embatendo
também contra a mesma logo depois e tombando para o lado sobre si
própria. O italiano salta antes do embate. Com pontaria certeira, põe fim à
ambição que o meu amigo tinha de acabar o trabalho começado, e não
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precisa de fazer nada a respeito do terceiro porque uma viga solta fez o
serviço por ele. Eu vou-me arrastando para trás da Komatsu, sem saber bem
o que fazer às dores, esperando não ter ficado sem nenhuma parte
insubstituível, mas não querendo parar para verificar.
A Beretta do Pepino dispara duas vezes, fora do meu ângulo de visão, e
depois vejo-o vir na minha direcção, com ar de quem fez um trabalho bem
feito.
“Questi non enbozzolano piú nessuno”, diz, introduzindo a pistola no coldre
que trás, debaixo do braço direito. Eu tento sorrir, mas acho que me sai
amarelo.
Ouço o disparo antes de me aperceber das consequências. Vejo uma
pequena nuvem de rosa como que ejectar-se do lado esquerdo da cabeça do
Pepino, ou talvez seja ele que cai e o vapor rosa fica no mesmo lugar. Vejo-o
revirar os olhos, enquanto as pernas se lhe dobram debaixo do corpo e ele cai
de borco para a frente e para o lado, rebolando para ao pé das vigas em
desordem, aparentemente sem vida.
“Pepino!”, chamo, tentando pôr-me de pé, encostado ao fundo da
empilhadora. Mas ele não responde. “Que foda do caralho. Porra!”, grito,
irritado comigo mesmo, por não conseguir pôr-me de pé com a velocidade
desejada. Mas nem ao ralenti. As pernas não me obedecem de todo.
A voz chega-me como um insulto, vinda de cima, de onde partiu o tiro que
derrubou o Pepino.
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“Yo! Loser! Your boyfriend‟s gone an we‟re gonna getcha too! Ouviste, paneleiro?
Vais fazer companhia ao teu amiguinho. Mas primeiro vamos fazer-te sofrer,
cabrão!”
Sinto um embate no meu braço direito, logo seguido de uma dor surda que
me faz largar a arma no colo, ao mesmo tempo que uma rajada desenha uma
linha pontilhada no chão, cerca de dois metros para além das minhas botas
vermelhas de sangue, como para confirmar as intenções do meu ofensor.
O que eu não daria por ter aqui uma granada! Calava já este filho da puta.
Mas não. Granadas não faziam parte do nosso arsenal.
Com a mão esquerda, levanto a arma para trás de mim e disparo uma rajada
para o local de onde veio o som, mas só gargalhadas me respondem, já mais
para a direita, para o lado das escadas.
Tentando ignorar as dores, procuro pôr-me em posição de os receber
condignamente, ao mesmo tempo que penso que as coisas não podiam ter
corrido muito pior.
O Pepino morto. O Leonel à rasca e sem possibilidade de sair daqui, se é que
já não deram igualmente cabo dele. Eu sem me poder mexer, e em vista de
também estar prestes a ir desta para outra; e tudo em vão. Realmente, há
mesmo alturas em que é melhor deixarmo-nos estar quietos.
Pobre Janna. Quem sabe o que, senão isto, lhe poderá estar a acontecer. Teria
sido bom descobrir como se passariam as coisas entre nós.
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E a Catarina. Agora terá de continuar a viver com a Mima. Que seca! Isso
chateia-me deveras. A miúda não quer mesmo continuar a viver com a mãe!
Este sacana que ali vem vai ter de pagar por isto.
Nada do que digo faz muito sentido. Suponho que devo estar a começar a
delirar, por causa da perda de sangue. Tento pôr a cabeça de fora para ver
onde eles vêm, mas só tenho tempo de ver que são três e que vêm a descer as
escadas, antes de ter de me deixar cair outra vez, porque estavam à minha
espera e quase me fazem a folha, com uma rajada que passa tão perto que
provoca uma corrente de ar. E os sacanas riem-se.
Decididamente, não tenho estofo para suicida. Pôr a cabeça de fora para que
eles façam tiro ao alvo não é a minha definição de como passar um bom
bocado. Combatendo as tonturas, arrasto-me para a traseira da empilhadora,
apoio com dificuldade a MP5 na roda mais próxima do chão e resolvo
confiar na pouca sorte que ainda me reste, esperando que algum deles me
passe na mira.
Ouço-os chegar ao fim das escadas, rindo ainda. Depois ouço o thouf-thoufthouf de uma metralhadora pesada, e o matraquear de vários pés em corrida
pelas escadas abaixo. Penso: „bonito, não bastavam três‟. E depois não penso
mais nada.
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DEZ
Dou por mim semideitado em cima de uma maca articulada de lona,
daquelas que a Cruz Vermelha deixou de usar há perto de quarenta anos, de
braço ao peito, descalço, com as calças cortadas rente às ancas e sem meias.
As minhas pernas parecem as de uma múmia, quase completamente
enfaixadas de cima a baixo. As metades inferiores enfiadas em sacos de gesso
rápido amarelo fluorescente, que me deixam os pés à mostra e me devem
fazer parecer ainda mais ridículo do que me sinto.
À minha volta há uma azáfama intensa. Homens e mulheres completamente
vestidos de negro, alguns com as caras ainda mais enfarruscadas do que a
minha, afadigam-se a transportar casulos para fora da nave onde ainda me
encontro. A empilhadora anda num corrupio, juntamente com outras duas
mais pequenas, que não me lembro de ter visto antes.
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Falam uns com os outros numa língua que não conheço, mas que, no
entanto, me parece estranhamente familiar.
Olho para tudo isto sem perceber nada do que se está a passar, e isso deve
ser bem visível na minha cara.
“Vi estis fortunata”, diz alguém que se aproxima pela minha direita, na
mesma língua estranha. O alguém é uma mulher, na casa dos trinta, talvez,
ar afável, alourada, cabelo apanhado num novelo junto à nuca, alto da
cabeça coberto por uma espécie de barrete cor de vinho e tão vestida de
negro como os outros, mas com uma cruz vermelha sobre o lado esquerdo
do peito e a palavra Medico escrita por baixo. Digo-lhe que não percebo, em
português e depois em francês, quando vejo que não me está a entender.
Ela abana a cabeça das duas vezes, e depois pergunta: “Ĉu vi mi ne
komprenas?” Mas perante a minha óbvia incompreensão adiciona, com cara
de último recurso: “English?”
“Yes, English is ok”, respondo, aliviado. “Desculpe, mas não percebi o que disse
antes”, repito.
Ela ri-se.
“Tem razão. Falo a língua há tanto tempo já, que, por vezes, me esqueço que nem
toda a gente a percebe. Disse-lhe que teve muita sorte, sabe? As balas passaram-lhe
resvés aos joelhos. Ficou cheio de buracos, mas só duas pequenas fracturas, uma na
tíbia e outra no perónio, uma em cada perna. Logo que lhe tratem disso como deve ser
e lhe ponham pensos novos, é melhor que recomece a andar, para não perder o jeito.”
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“Havia mais pessoas comigo...” começo a dizer, antes de me recordar de tudo o
que se passou. Depois calo-me. Mas ela já me está a responder.
“Sim, estão os dois bem. E as raparigas também.”
“Como, estão os dois bem? Desculpe, não percebo”, digo, não porque não queira
que seja verdade, mas por ter receio de ter ouvido mal.
“Sim, os seus dois amigos estão bem. O que estava aqui em baixo consigo já está lá
fora. A bala roçou-lhe apenas o crânio e depois alojou-se na omoplata. Além do
choque inicial, não tem nada de preocupante... Embora talvez precise mudar de
penteado”, acrescenta, pensativa. E depois continua: “O outro inspira maiores
cuidados, mas já está consciente, a sua situação está sob controle e estamos a tratar
de o levar para fora daqui. Não creio que haja qualquer problema.”
O choque é demasiado, sinto que me vêm as lágrimas aos olhos. Mas não
quero começar a chorar aqui, frente a uma tipa que não conheço e, ainda por
cima, nestes preparos. Que diacho, há que manter uma certa dignidade, não?
Mas de nada me serve o que quero, a alegria de os saber bem é mais forte, e
as lágrimas correm-me mesmo pela cara abaixo sem que nada possa fazer
para as deter.
A Medico estende-me um lenço de papel que tira de um pacote que tem no
bolso.
“Obrigado”, agradeço. Olho novamente à minha volta enquanto seco as
lágrimas; os casulos continuam a ser retirados dos carris com celeridade, dos
gabinetes vão saindo computadores e ficheiros, a urgência da operação quase
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palpável e claramente visível nos rostos de quantos se apressam nas suas
tarefas.
“Oiça, nós viemos à procura de uma pessoa, uma rapariga, que pensamos ter sido
trazida para aqui”, digo, não querendo que toda esta urgência me faça perder
a oportunidade de encontrar a Janna ou de, pelo menos, saber onde ela está.
“Para onde levam os casulos? Encontraram alguma rapariga que tenha sido trazida
para aqui recentemente, além das que estavam com o meu amigo? E, já agora, quem
são vocês?”
Ela ri-se, mais uma vez.
“Tantas perguntas! Já sabemos da rapariga que vieram resgatar. Estamos à procura
dela nos ficheiros. Quanto ao resto não me compete a mim responder-lhe. Eu já peço
que vão falar consigo. Agora, vai desculpar-me, mas tenho outros afazeres.”
Faz sinal a dois tipos, que pareciam estar só à espera de ordens dela, que
pegam na maca e me levam para um dos quatro monta-cargas na
extremidade da nave, por onde têm saído os casulos e o que mais tem vindo
dos gabinetes.
Saímos para o ar livre e para uma chuva miudinha e irritante, que começou a
cair enquanto estivemos dentro do complexo. Se possível, a azáfama ainda é
maior cá fora. Os Sikorskys parecem ter desaparecido, substituídos por dois
enormes Mil-HL900K, no bojo dos quais estão a ser guardados os casulos
retirados do edifício. Os motores dos hélicos estão em ralenti, esperando
apenas o final da carga para levantarem novamente voo.
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Os meus maqueiros levam-me para debaixo do alpendre onde antes decorria
o jogo de cartas, enquanto vou tentando encher o cachimbo só com uma mão
sem desperdiçar muito tabaco.
À minha espera está o Pepino; o cimo da cabeça envolto numa ligadura e o
braço ao peito.
“Oh, sei svegliato? Pensavo dormireste fino à domani”, diz, sorrindo.
“Brincalhão! O Leonel, não está aqui?”, pergunto, ao mesmo tempo que consigo
finalmente atear lume no fornilho.
“Já o levaram, e às três raparigas também.”
“Para onde?”
“Não sei”, encolhe os ombros, como alguma irritação no rosto. “Assim como
ainda não sei quem são estes tipos, nem o que querem realmente, para além de serem
muito organizados, parecerem estar do nosso lado, ou pelo menos não estar contra
nós, e falarem esperanto entre eles.”
“Esperanto?”, pergunto, percebendo, então, de onde me parecia reconhecer a
língua.
“Pois. Esquisito, não é?”
“Tu percebes o que eles dizem?”
“Não, nada”, diz, abanando a cabeça. “Reconheço a língua porque tenho um
amigo que é esperantista e já o ouvi falar, mas é tudo.”
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“E ninguém te disse ainda nada?”
“Nada, népia. As únicas pessoas com quem falei foram a médica, a quem disse o que
tínhamos vindo fazer quando os vi começar a trazer aquelas coisas cá para fora, e o
tipo que depois me veio fazer perguntas acerca da tua namorada, mas eu pouco ou
nada lhes podia dizer. Entretanto, o Leonel parece ter recuperado a consciência e acho
que eles conseguiram saber mais por ele.”
“Sim, a médica disse-me que estavam à procura da Janna nos ficheiros desta coisa,
seja lá o que for que isso quer dizer. Chegaste a falar com o Leonel?”
“Nicles. Também não”, volta a abanar a cabeça. “Eles não o levaram lá abaixo, e
quando para aqui vim já o hélico tinha levantado. Foi para um hospital, parece.”
“Mmm, gostava de poder acreditar nisso. Mas, tal como tu, não percebo nem quem
são os nossos salvadores, nem tão-pouco o que se passa aqui. Aliás, o ideal seria
mesmo que alguém começasse por explicar-me que raio de sítio é este! Quando parti,
pensei vir resgatar a Janna de um bordel. Afinal, dou por mim num híbrido Morbus
Gravis/Matrix e não encontro a Janna em lado nenhum!
“Um pouco de paciência, Dr. Saint-Hervé. Tudo lhe será explicado”, oiço dizer
atrás de mim, no sotaque melódico do norte do Brasil.
Volto-me para o som da voz e deparo com um tipo da altura e arcaboiço do
Leonel, tez morena, cabelo curto, ar cansado e a mesma fardamenta negra
dos outros.
“Meu nome é Roberto Jobim e sou o responsável por essa operação. Gostaria de
começar por dizer que o senhor Leonel Paiva está bem, acabei de receber confirmação
do hospital. As senhoritas também estão bem.” Depois repara no Pepino. “O
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senhor desculpe, fala português? Eu lamento, mas não falo italiano. Consegue me
entender?” Pepino diz-lhe que sim, não sei se por ser verdade, se para deixar
andar as coisas.
“A senhorita que estavam buscando, Joanna Dackladev, já foi localizada. Seguiu no
primeiro transporte e estará sendo examinada em breve. Agora só lhes peço um pouco
mais de paciência. O nosso tempo aqui é extremamente curto e precisamos tirar todas
aquelas moças do edifício antes que ele se esgote.”
Enquanto ele fala, vejo aproximarem-se, vindos do mar, mais dois Mil quase
a rasar o solo, os rotores duplos girando em sincronia, o vupp-vupp-vupp
extremamente baixo do voo furtivo quase os fazendo passar despercebidos
apesar do tamanho. Também estes não têm qualquer marca ou distintivo
visível.
Permanecem estacionários no exterior no perímetro, enquanto os homens no
terreiro acabam de fechar os porões e os outros dois levantam voo, depois
tomam o lugar daqueles e o carregamento recomeça. O nosso recémdescoberto anfitrião aproveita para nos explicar que:
“Se tudo correr como esperamos, esses dois vão ser suficientes para carregar as
unidades que ainda restam. Os Sikorskys já estão também vindo de regresso, por isso
contamos estar de saída dentro de meia-hora. Em breve mandarei buscá-los. Agora,
com licença.”
E deixa-nos sem mais explicações.
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O S-112 progride velozmente rumo a sudoeste, cortando o país na diagonal
em direcção ao mar. Voamos a baixa altitude, seguindo os contornos do
terreno, procurando abrigo de olhares indiscretos no céu nocturno que ainda
nos resta. O hélico de vinte lugares era usado para transporte do pessoal de e
para o complexo, mas tal como o seu irmão gémeo, e tudo o mais que não
estava agarrado ao chão e foi considerado de interesse, não foi deixado para
trás.
À nossa frente seguem os últimos dois Mil, os porões cheios com os últimos
casulos, os três Hummer e tudo o que havia de computadores, ficheiros ou
suas cópias electrónicas, dentro do edifício.
Já no ar, pairando sobre o ribeiro ao pé do complexo, a última coisa que os
nossos salvadores fizeram antes de começarmos a perseguir a noite que se
afasta, foi rebentar as cargas implosivas e incendiárias que haviam colocado
por todo o edifício, reduzindo-o a uma massa de escombros fumegantes.
Segundo nos diz Roberto Jobim, esta operação já vinha sendo preparada há
várias semanas, e era mesmo para ter sido executada o fim-de-semana
passado, só não o tendo sido por causa da meteorologia. Eu penso „ainda
bem que foi adiada‟ porque senão o ataque teria apanhado a Janna em
trânsito e quiçá para onde a teriam desviado. Além do mais, nós estamos
obviamente muito satisfeitos que eles tenham decidido fazer as coisas hoje,
em vez de amanhã; da maneira que tudo correu, amanhã era capaz de ter
sido ligeiramente tarde demais.
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Pergunto-lhe quem são e porque fazem o que fazem, e o que era o sítio onde
estivemos, mas ele desculpa-se e responde que lhe deram ordens para não
nos dizer nada até chegarmos ao nosso destino. Não insisto. Não estou em
condições de discutir com um tipo deste tamanho e, de qualquer modo, não
tenho pressa. Nada me faz pensar que possamos estar em perigo na
companhia destes desconhecidos e, desde que me levem para onde levaram
a Janna, o que parece estar a acontecer, nada tenho a opor.
Pepino também não, pelos vistos, mal o outro acabou de falar adormeceu, e
agora ressona com tanto entusiasmo que me pergunto se a mulher dele não
será surda.
Estamos já no Adriático e acabámos de mudar o rumo para sul, a meio
caminho da costa italiana, apontados ao Estreito de Otranto. Seguimos tão
baixo que dir-se-ia estarmos a cortar as águas e não a voar sobre elas. De
tempos a tempos, sinto que o rumo se altera, para depois regressar ao vector
original, provavelmente para evitar algum dos navios que por aqui
navegam.
Ultrapassado o calcanhar da bota italiana, alteramos novamente o rumo para
sudoeste, em direcção a Tripoli e sinto que começamos a desacelerar – o que
até nem me parece nada mal, para não entrarmos na zona de exclusão aérea
imposta pelos gatilhos nervosos da sexta esquadra em missão de protecção
ao petróleo líbio, e ainda termos de nos haver com algum cowboy à procura
de uma presa fácil.
Cinco minutos mais tarde estamos a pairar sobre o nosso objectivo, enquanto
esperamos que o último dos Mil acabe de ser descarregado e a placa liberta.
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Tendo bem uns duzentos metros de comprimento, é certamente um dos
maiores navios que vi nos últimos tempos. Um superpetroleiro, creio que se
chamavam assim até aqui há uns anos, quando ainda havia uso para eles; o
petróleo é agora transportado em menores quantidades, e sob escolta armada
na maior parte das vezes. Se bem que não me pareça que seja petróleo que
contêm os porões deste navio. Na verdade, para além do tamanho e do
aspecto geral, o navio tem pouco a ver com um petroleiro – pelo menos da
posição em que me encontro, a cerca de vinte metros acima da torre de
comando.
A secção de proa do convés foi convertida em placa de aterragem, não se
vendo os muitos canos que normalmente atravessavam estes navios de uma
ponta à outra e serviam para carregar e descarregar o crude; enquanto que a
partir, sensivelmente, do meio do navio, o convés deixou mesmo de existir,
tendo sido erigida sobre ele uma secção habitacional de quatro cobertas, que
se estende até ao castelo de popa e que, vista de longe, pela forma como está
pintada, dá a ideia de ser um carregamento de contentores a caminho de um
qualquer porto.
Ao longo do casco, tubagens parcialmente submersas percorrem todo o
comprimento do navio. Turbinas que aspiram a água à proa e depois a
expelem à popa, impulsionando assim o navio.
A placa de aterragem está novamente operacional e o nosso piloto pousa
suavemente o S-112 sobre ela, para o trem ser imediatamente preso à placa
por meio de faixas de nylon. Ainda o rotor não está totalmente estacionário e
já o pavimento está a descer, levando-nos para o porão.
454
“Benvindos ao Vega”, diz Roberto Jobim, interrompendo o silêncio que se
parecia ter imposto quase desde o início do voo.
Não sei como imaginava que fosse o interior do porão de um navio com
tanta tonelagem, creio mesmo que nunca me dei ao trabalho de pensar nisso,
mas se alguém me dissesse „grande e escuro‟, seria talvez tentado a
concordar.
Acontece que não é esse, de todo, o caso. Quanto ao escuro, pelo menos.
Pintado num branco sujo a atirar para o amarelo, o interior do casco reflecte
bem a luz proveniente dos holofotes rectangulares de grande potência,
colocados nas anteparas que iluminam todo o compartimento e o fazem
parecer tudo menos o escuro bojo de um navio. Junto a uma das anteparas
está marcada uma escala, que me dá a altura do porão como sendo de doze
metros; o que significa que, se continuo a saber tirar medidas a olho, ainda
estamos acima da linha de flutuação e que há, pelo menos, mais vinte metros
de navio por baixo de nós.
O Mil que desceu antes de nós já tem os rotores em posição de hangar e está
a ser empurrado por um tractor para a secção de proa, onde vai juntar-se aos
outros três, encaixados com precisão entre os resguardos que dividem o
porão em quatro baias, e seguros por faixas de nylon que os prendem
àqueles e às anteparas do casco.
Para ré do porão estão o outro Sikorsky e os H3, igualmente presos ao casco
e bem amparados. Um tractor eléctrico, semelhante aos usados nos
aeroportos para levar bagagem para os aviões, reboca os últimos casulos em
455
direcção ao portão que separa esta secção da seguinte, cerca de trinta metros
mais atrás.
À nossa espera está um outro veículo, semelhante a um carrinho de golfe,
com quatro assentos corridos frente a frente, onde nos sentamos, o Pepino, o
Roberto, a médica – que vinha mais atrás no helicóptero – e eu. Os restantes
ocupantes do helicóptero são deixados entregues aos seus afazeres.
O motorista conduz-nos através do portão e das divisórias duplas para um
outro porão, igualmente pintado no mesmo branco sujo do anterior. As
semelhanças, porém, ficam por aqui. Se o primeiro porão foi alterado para
funcionar como um hangar ou armazém, as alterações deste foram
claramente projectadas em termos humanos.
Um corredor central de setenta metros de comprido e cinco de largo, divide
em duas esta secção. Cada lado está, por sua vez, dividido em três galerias
sobrepostas, em estrutura de aço, cada uma das quais com vinte e cinco
metros de profundidade, cheias com filas atrás de filas de casulos
semelhantes aos que havia no complexo albanês. Aparentemente, todos
ocupados, cada um deles ligado a um pequeno aparelho electrónico, num
tom creme hospitalar, que contrasta marcadamente com o negro do metal.
Por toda a parte se vêem placas com a legenda “Bonvolu Ne Fumi”, por
baixo de desenhos que explicam a quem não sabe ler que é proibido fumar.
Várias pessoas com batas brancas vestidas circulam por entre os casulos,
tomando notas e verificando os dados nos monitores e no monitor do novo
aparelho.
456
Subitamente preocupado, olho para o Pepino e vejo que também está a
pensar o mesmo que eu. E se estes tipos não forem diferentes dos outros?
Olho disfarçadamente para um e para outro dos nossos anfitriões, mas nada
lhes consigo ler no rosto. Eles não parecem aperceber-se do nosso sobressalto
ao depararmos com os casulos, ocupados que estão a discutir qualquer coisa
que os parece interessar, embora eu não faça a mais pequena ideia do que
possa ser, dado que o fazem em esperanto.
Tento afastar a ideia de mim; nada, além da existência dos casulos, me leva a
pensar que eles sejam realmente da mesma laia dos outros, e talvez ainda
haja uma explicação perfeitamente lógica para uma operação de resgate que,
afinal, para mais não parece ter servido do que para mudar os casulos de
sítio.
Roberto Jobim parece, finalmente, aperceber-se, pelo menos, da minha
curiosidade, e começa uma descrição das funções do local por onde estamos
a passar:
“Esse aqui é um dos locais onde mantemos as inseminadas sob observação, logo após
terem sido resgatadas, para ver se não ficaram machucadas durante o transporte.
Procuramos, ainda, checar se a gravidez está correndo bem e em que fase subjectiva
da mesma se encontra cada uma delas, para depois podermos agir em conformidade.
A nossa política é, obviamente, facilitar a interrupção em tantos casos quantos
possíveis, desde que esse não coloque em perigo a vida da inseminada, nem cause
sequelas que impeçam uma futura gravidez desejada. A inseminada não é ouvida
quanto à decisão de provocar essa interrupção. Considerando que a quase totalidade
das moças não tem sequer consciência de estar grávida, e que seria complicado, para
não dizer impossível, alterar a condição suspensa delas durante a gestação, achamos
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melhor tomar essa decisão nós mesmos. O mesmo acontece naqueles casos em que a
decisão tem de ser no sentido de deixar prosseguir a gravidez. O parto é efectuado e
os ritmos da paciente são posteriormente elevados até ao seu nível consciente, sem
que ela se aperceba que esteve grávida ou do nascimento do nenen. Este só lhe é
comunicado bastante mais tarde, quando o aconselhamento psicológico nos indica
que ela está preparada para o aceitar.”
Eu vou-o ouvindo, sossegando ligeiramente os meus receios à medida que o
ouço falar, mas sem, todavia, perceber o que se passa aqui; ou o que se
passava na Albânia. Estes parecem realmente ser os bons da fita, mas que
fita?
Saí de Lisboa num avião do século vinte para ir resgatar a minha namorada
de um bordel de uma Albânia sujeita a um barbarismo pré-medieval e venho
parar a meio do Mediterrâneo, ao bojo de um superpetroleiro que não o é,
num cenário de pesadelo de um século vinte e um que não sabia existir.
Todos estes casulos ocupados por grávidas e esta conversa de inseminações e
de fases subjectivas de gravidez, não me deixam exactamente mais
esclarecido e continuo sem perceber nada. De cada vez que fazemos
perguntas a Roberto Jobim ou lhe pedimos para explicar o que diz, ele fechase em copas, como se achasse que já disse demais e remete para uma
explicação completa que nos vai ser dada mais tarde.
Digo-lhe que sim, que acho tudo muito bem, como se percebesse de que está
a falar, troco um olhar com Pepino, que percebe tão pouco como eu e
preparo-me para descer do carrinho que, entretanto, chegou ao fim do
corredor. À minha espera está um tipo com uma cadeira de rodas, que me
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empurra até à cabine de um elevador instalado na divisória. Os outros três,
bem como o motorista, entram connosco.
Subimos lentamente, não sei bem quantos níveis, mas já devemos estar fora
do casco porque o átrio para onde saímos, em que desembocam quatro
corredores, já tem janelas. Tomamos o corredor da direita, que revela ser
perfeitamente igual a qualquer outro corredor neste ou noutro navio, só
talvez mais largo. Alcatifado a verde-cinza, as paredes pintadas também a
verde, num tom pastel; portas cinzentas com placas escritas em esperanto
vão aparecendo de ambos os lados, alternando entre um lado e o outro todos
os cinco metros, até chegarmos a uma porta ao fundo, dupla, cinzenta
também e dispondo igualmente de uma placa ilegível, pelo menos por nós.
Entramos para um salão espaçoso, semicircular, talvez com uns oitenta
metros quadrados, uma comprida janela sobre o mar ocupando a parede à
nossa direita, uma outra porta quase oposta àquela por onde acabámos de
entrar, e as restantes paredes ocupadas com mapas e com monitores de
televisão, alguns sintonizando canais de informação, outros desligados, mas
todos sem som. A sinalética anti-fumadores persegue-me ainda aqui, entre as
primeiras coisas que noto estão mais duas placas que não deixam margem
para dúvidas.
À nossa frente está uma mesa redonda, enorme, em madeira, sem centro,
como um círculo gigante, à volta da qual estão dispostas bem umas trinta
cadeiras.
Sentado numa dessas cadeiras, do lado da janela e voltado para ela, absorto,
está um homem com aspecto ainda jovem, trinta e poucos anos talvez,
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vestindo um fato claro bem talhado, que se volta na nossa direcção quando
entramos na sala.
Tem o cabelo cor de gengibre cortado curto, e tem postos uns óculos de sol,
com que procura, talvez, disfarçar a cicatriz que lhe cobre a face superior
direita, do olho até à orelha, colada ao crânio e transformada numa massa
disforme. Sorri tristemente na nossa direcção e levanta-se da cadeira com a
ajuda de uma bengala em madeira com cabo de prata. Caminha para nós,
coxeando ligeiramente; a perna direita prolonga-se, a partir do joelho, numa
prótese a que, ainda, não parece ter-se adaptado completamente.
Abraça efusivamente o Roberto, dando-lhe uma palmada nas costas, dá um
beijo à médica, chamando-lhe Maureen, se bem percebo, e depois dirige-se a
nós, estendendo-nos a mão, um aperto forte e directo, como a sua expressão
indicava que o fosse.
“Bem-vindos a bordo do Vega. O meu nome é Carl Nebuloni”, diz, em português,
e aponta as cadeiras aos outros.
O meu ajudante empurra-me até à mesa e volta a sair, fechando a porta.
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Feitas as apresentações, o nosso anfitrião percebe que o português do Pepino
é fraco ou não existente, ao contrário do que este havia dado a entender, e
muda para italiano sem que se lhe note o mais leve sotaque.
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“Espero que tenham sido bem tratados”, diz, não me parecendo que seja suposto
responder-lhe. Mas respondo-lhe na mesma.
“Sim, não temos razão de queixa. Mas diga-me uma coisa, devemos considerar-nos
prisioneiros?”
Ele parece genuinamente surpreso.
“Prisioneiros? Não, de maneira nenhuma. Longe de nós tal intenção. Se vos
trouxemos para aqui foi para melhor vos protegermos. Além de que, o vosso amigo
precisava de cuidados que a Maureen não lhe podia dar, lá onde vos encontraram.
Logo que ele recupere, ou até antes, se assim o desejarem, levar-vos-emos a terra, ao
porto que preferirem”, explica.
“Tem de aceitar a minha preocupação como legítima. É certo que vos estamos muito
gratos por terem aparecido quando apareceram, e por todo o auxílio que nos
prestaram. Mas, a verdade é que não sabemos quem são, nem o que fazem, nem tão
pouco percebemos o que se passa. A existência do complexo na Albânia era-nos
completamente desconhecida há menos de uma semana, a única razão por que
soubemos dele resulta de informações que recebemos, dizendo que alguém que me é
muito querido ali se encontrava.”
Ele ouve-me com atenção, e acena várias vezes, como que pensando para
consigo mesmo.
“Compreendo, então, que vos pareça tudo muito estranho. Peço desculpa de não vos
terem sido prestados esclarecimentos mais cedo, mas preferimos esperar até que
estivessem a bordo. É mais seguro assim”, esclarece, e depois continua. “A pessoa
que foram procurar ao complexo 14 foi encontrada, creio que já vos disseram e está
presentemente a ser examinada por um colega da Maureen, para ver em que estado se
461
encontra e o que pode ser feito. O vosso amigo foi operado mal chegou e está fora de
perigo; creio que, neste momento, deve estar a recuperar da operação. O mesmo se
passa com as raparigas que vieram com ele, que foram observadas e tratadas, tendolhes sido depois dado um sedativo para que pudessem descansar. Quando acordarem
começaremos a fase psicoterapêutica, que provavelmente será necessária.”
A médica, sentada na cadeira ao lado de Carl Nebuloni, toca-lhe na manga,
inclina-se para ele e diz-lhe qualquer coisa em surdina, em esperanto, que
leva Roberto a acenar novamente com a cabeça. Não precisava de lhe ter
falado ao ouvido, a língua é para mim tão estranha como quando pela
primeira vez a ouvi. Ele parece concordar com ela.
“Estando os vossos amigos fora de perigo, creio que está na altura de vos pôr a par do
que se passa. A menos que prefiram descansar primeiro?” Mas eu não quero
sequer ouvir falar de adiar a oportunidade de saber mais sobre esta história,
e o Pepino parece tão interessado como eu. Abanamos a cabeça quase
enfaticamente. “Muito bem. Nesse caso, peço-vos que nos contem como chegaram
ao complexo 14, e também o que sabem ou julgam saber sobre tudo isto.”
Troco um olhar com Pepino, que encolhe os ombros, como que dizendo,
“perdido por cem, perdido por mil” e conto-lhes tudo o que sei, enquanto
Carl Nebuloni traduz para esperanto, para benefício de Maureen e Roberto.
Falo-lhes d‟A Gata Perfumada, da Janna e do seu desaparecimento, de Vlad e
das informações que nos deu, da alegada ligação à IVE, e da decisão de vir
de imediato resgatar a Janna, por receio do que lhe pudesse estar a acontecer
– embora nada me pudesse ter levado a pensar que fosse o que vimos no
complexo 14.
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Eles ouvem-me os três com toda a atenção, verdadeiramente interessados em
saber o que sabemos, para ver se é alguma coisa que eles não saibam.
Quando acabo, acenam os três com a cabeça, como um trio de bonecos com
pescoço de mola e ficam alguns momentos em silêncio, provavelmente
digerindo o que acabaram de ouvir.
“Tem toda a razão, sabe, é provável que nada vos pudesse ter levado a imaginar a
existência de um lugar como o complexo 14, e dos outros como ele. Nós, que sabemos
da sua existência e que os combatemos com todas as nossas forças, temos, ainda
assim, dificuldade em acreditar que não sejam apenas pesadelos”, acaba por dizer o
membro mais jovem do triunvirato que nos faz companhia à mesa.
“Infelizmente, o que vos vou contar não é um pesadelo, mas sim a mais pura
realidade. Há cerca de cinco anos...”
A porta à nossa esquerda abre-se e deixa passar uma mulher morena, de
cabelo curto, que cochicha qualquer coisa ao ouvido da médica e depois se
senta ao pé dela. O nosso anfitrião interrompe-se até ela acabar de se sentar.
“Há cerca de cinco anos, descobrimos que a Igreja da Verdade Eterna servia de
fachada, e actuava também como angariadora, numa actividade absolutamente
monstruosa...”
O telefone que está sobre a mesa tilinta baixinho e, depois de olhar para o
número em chamada, ele atende, vira-nos ligeiramente as costas, falando
ainda uma outra língua. “Hej, älskling! Du, är det jätte viktig? Jag sitter i ett
mötte... Ok, puss”, e pousa novamente o auscultador, voltando-se para nós.
“Desculpem. Esta actividade a que se dedicava, e dedica ainda a IVE é a manutenção
de seres humanos em cativeiro, para se servirem deles como bancos de órgãos,
463
prontos a ser colhidos segundo as necessidades. Isto já de si seria suficientemente
obsceno, no entanto, os vermes que se dedicam a este negócio conseguiram descer
ainda mais na escala da perversidade, pois, os cativos são exclusivamente crianças até
aos três anos de idade.”
“Desculpe lá, espere aí para ver se percebo. Quer que eu acredite que eles mantêm
crianças vivas em cativeiro, apenas para lhe retirarem os órgãos à medida que deles
precisam? Então, para além de qualquer juízo moral sobre o assunto, como é que
pode ser possível uma coisa dessas? Como é que se faz um negócio disso? E a
compatibilidade? Em princípio, os órgãos de uma criança só serviriam para outra
criança da mesma idade, e apenas se não fossem rejeitados, ou não?”, pergunta
Pepino, parecendo bastante céptico.
“O incomum da coisa está precisamente aí. O processo foi descoberto acidentalmente
pelo falecido Prof. James Friedkin – talvez tenham ouvido falar, foi expulso da OIS
aqui há uns anos? – quando procurava fazer clonagem de tecido humano para fins
terapêuticos. A clonagem não resultou. No entanto, a descoberta permitiu-lhe
manipular suficientemente o tecido humano a nível genético e molecular, de modo a
fazer desaparecer, pura e simplesmente, o problema da incompatibilidade. Mais do
que isso, o processo permitia, e permite ainda, desenvolver rápida e perfeitamente
quaisquer órgãos do corpo humano, até ao estádio e tamanho requeridos, com a
vantagem de terem todas as potencialidades e nenhum dos problemas dos órgãos
recolhidos de cadáveres, nomeadamente, os resultantes de má nutrição, doenças ou
hereditariedade. Os órgãos assim obtidos são jovens – recém-nascidos mesmo, ou
mais precisamente ainda, recém-produzidos – sem quaisquer doenças ou defeitos e
com uma expectativa média de duração entre os setenta e oitenta anos.”
“Ou seja, o que nos está a dizer é que descobriram uma forma de transformar os
órgãos do corpo humano numa espécie de peças soltas, adaptáveis às necessidades
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particulares de cada freguês; mas que, para o processo resultar, os órgãos têm de
provir de crianças com idades inferiores a três anos. É isso?” Ele faz que sim. “Não
está realmente à espera que acreditemos numa fantasia dessas só com base no que nos
está a contar, pois não?”, inquire, novamente, Pepino. E eu apoio-o. “O que
vimos na Albânia é, sem dúvida, estranho, obsceno até, concordo, e não percebo que
razão poderá haver para manter todo um exército de grávidas em hibernação; mas o
que nos está a contar é pura ficção-científica! Quem é que faria uma coisa dessas? E,
quem é que estaria disposto a aceitar esses órgãos? A aceitação deliberada de órgãos
com essa proveniência transformaria os recipientes em cúmplices de um crime
absolutamente inqualificável, para não falar nos médicos que efectuem os
transplantes, ou nas enfermeiras que os assistam, ou até, nos próprios hospitais!”
Eles sorriem com ar entendido. A morena que entretanto chegou tem estado
a traduzir o que dizemos para esperanto, para benefício de Roberto e
Maureen.
“Boa argumentação, Dr. Saint-Hervé. No entanto, deixe-me dizer-lhe que a aceitação
é explicável por uma palavra apenas, ganância. Existindo essa, todas as objecções
deixam de fazer sentido”, diz o nosso anfitrião. E continua: “Mas, deixem-me
dizer-vos também que o vosso cepticismo tem toda a razão de ser. Eu próprio não
quis acreditar quando primeiro soube do que se passava. Mas não tive outro remédio
senão acreditar mesmo, pois tinha as provas em frente aos olhos. E é isso que vos
proponho agora. Se fizerem o favor de se voltar, vão poder ver imagens conseguidas
num dos muitos complexos que atacámos e destruímos, na tentativa de pôr fim a este
tráfico hediondo. As imagens estão como foram recolhidas, não sofreram qualquer
tratamento e o disco original está guardado, para ser usado logo que seja possível.”
Fazemos o que ele diz e, durante a meia-hora seguinte, vemos coisas que eu
julgaria impensáveis, mesmo depois de o ter ouvido descrevê-las. Coisas que
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fazem os casulos do complexo albanês parecerem algum novo e
revolucionário tratamento de beleza para grávidas, por suspensão num
líquido pseudo-amniótico.
Incapazes de tirar os olhos do écran, vemos crianças, bebés alguns, enfiados
em charutos de vidro mantidos na vertical, flutuando num líquido verde de
aspecto frio e desagradável, com tubos inseridos em todos os orifícios,
cobertos de cicatrizes, em todos os sítios onde tinham sido abertos para se
recolherem os órgãos que foram vendidos a outros. E todos eles vivos.
Nenhuma das crianças que vemos está morta. Vejo-os abrir os olhos, e vejoos mexer as mãos e os pés; lenta e penosamente, como num transe, não
sabendo realmente onde se encontram, nem o que lhes está a acontecer.
Vemos ficheiros computorizados de cada criança, desprovidas de um nome
ou de uma identidade e reduzidas a um índice mecanográfico geral, divisível
nos parciais de cada órgão potencialmente removível do seu corpo.
Vemos ficheiros dos clientes, dos órgãos que receberam, das datas em que os
receberam e de quem os receberam. Vemos os preços altíssimos a que os
órgãos foram vendidos, as margens de lucro astronómicas, obtidas
literalmente com o sangue de inocentes, e os fac-similes das declarações
assinadas em que os recipientes afirmam conhecer a origem do transplante.
Vemos nomes de muita gente rica e famosa, e de alguns outros não tão
famosos e talvez ainda mais ricos, que, apesar das muitas virtudes que
sempre os vejo apregoar, não parecem ter tido qualquer pejo em matar uma
criança para que pudessem viver melhor.
E depois não vemos mais nada porque o disco chega ao fim.
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Pepino está vermelho de raiva, os punhos cerrados sobre os joelhos, parece
incapaz de dizer uma palavra.
Eu tenho os maxilares tensos, doridos, de tanto os cerrar. Sinto-me sujo e
indignado por partilhar a mesma espécie com gente que é capaz de fazer
semelhante coisa. Tento dizer a mim próprio que não é possível, que tudo
não passa de uma aldrabice, mas as imagens que agora tenho gravadas a
fogo no cérebro e que sei serem verdadeiras, não me permitem, nem por um
momento, acreditar em baboseiras.
Eles deixam-nos em paz todo o tempo que precisamos.
O primeiro a falar é o Pepino.
“Scusate, non facevo próprio idea che fosse cosi.”
“Todos passámos pelo mesmo”, retorque o nosso anfitrião, à laia de conforto.
“Não é fácil aceitar que uma coisa destas possa ser verdade.”
“Sim, como aceitar que existam entre nós criaturas capazes de tão indiscriminada e
abjecta crueldade contra os filhos da sua própria espécie? Ou de qualquer outra
espécie! É nojento.”
“É seguido algum critério, além da idade? Raça, zona geográfica, carácter genético?”
“Não, nenhum desses critérios tem qualquer importância para estes senhores. Como
disse, para eles, os órgãos não passam de peças soltas a serem instaladas em quem as
quiser pagar; uma vez passada a fase de compatibilização, a proveniência do órgão, a
sua herança genética ou a cor do „banco‟ tornam-se irrelevantes”, esclarece. “Um
único critério parece ser seguido na escolha das vítimas. O desamparo. Escolhem
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aqueles cujo desaparecimento passará em princípio despercebido; crianças de rua,
fugitivos, crianças abandonadas. Ou aqueles cujos pais podem ser convencidos a
separarem-se deles, por promessas de uma vida melhor para os filhos e uma quantia
em dinheiro que lhes dará bastante mais jeito do que uma outra boca para alimentar.
Ou ainda aqueles que não foram queridos em primeiro lugar, gravidezes pagas para
serem levadas a termo, com o compromisso, quase se poderia dizer a opção de compra
do bebé no fim da gestação, porque afinal para eles não passa de uma qualquer
mercadoria.”
“É nessa ordem de ideias que vem o que encontrámos na Albânia? Aquelas grávidas
tinham sido pagas para ter as crianças, e estavam guardadas nos casulos para
protecção da „mercadoria‟ sob opção, é isso?”, pergunto, pensando ao mesmo
tempo como é que isso explicaria o rapto da Janna, ou as três que
encontrámos no primeiro andar do complexo.
Ele abana a cabeça.
“Não, infelizmente, não é nada de tão simples, nem de tão mesquinho, como a mera
protecção de uma gravidez paga”, diz Nebuloni. “Todas as mulheres que ali
estavam foram sequestradas e inseminadas sem o seu conhecimento. A inseminação é
feita em laboratório, com a paciente inconsciente – embora tenhamos conhecimento
que grande parte delas passa primeiro pelas mãos dos guardas, como tiveram
oportunidade de ver. As „candidatas‟ são procuradas entre prostitutas, adolescentes
fugidas, turistas ou viajantes solitárias, migrantes ou outras categorias de raparigas
ou mulheres cujo desaparecimento possa não ser notado, ou sendo-o, seja facilmente
atribuível a outras causas – obviamente, cometeram um erro no caso de Joanna
Dackladev. A selecção é feita por meio de testes que procuram determinar a
capacidade reprodutiva máxima de cada mulher e a sua resistência, bem como o seu
potencial genético.”
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“Mas porquê a resistência? E a capacidade reprodutiva máxima?”
“Porque, aquilo a que chamam casulos, não têm em vista a protecção das mulheres
que flutuam dentro deles, como um verdadeiro casulo teria; na verdade, acabarão
mesmo por matá-las por exaustão. Os casulos – ou, como são conhecidos pelos seus
proprietários, as unidades de aceleração fecundativa ou unacef, num trocadilho de
mau gosto a que parecem achar muita piada – destinam-se a manter as vítimas
permanentemente férteis e a acelerar o tempo de gestação do embrião, multiplicandoo por um factor três. Isto significa que, não contando com as gestações múltiplas,
cada sequestrada pode produzir, pelo menos, quatro crianças por ano. Crianças essas
que, imediatamente após o nascimento, são inseridas num tubo igual aos que viram
no filme, e aí se desenvolvem, enquanto os seus órgãos são colhidos e vendidos a
quem os quiser comprar. Como vos disse, esta prática dura até à idade máxima de
três anos, dado que o processo deixa de funcionar uma vez passado esse limite etário.
Deixando assim de ter qualquer utilidade, as poucas crianças ainda vivas e viáveis
são „destruìdas‟ – na linguagem deles, cruamente assassinadas, diríamos nós.”
Nem eu, nem o Pepino conseguimos dizer seja o que for, durante muito
tempo. Eles esperam pacientemente por nós.
“Quan, rhm, quantos anos pode durar o calvário de uma destas infelizes?”,
pergunto, não conseguindo deixar de pensar na sorte que teria sido a da
Janna.
“Não sabemos”, responde, encolhendo os ombros. “Com base nas análises e
projecções que fizemos, quatro, talvez cinco anos. Mas é difícil saber ao certo. Os
casulos são uma coisa relativamente nova. Começámos a dar com eles há perto de
dois anos, e a unacef mais antiga que encontrámos, contendo ainda a sua ocupante
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original, tinha uma data de activação de pouco mais de um ano antes; portanto,
digamos que as começaram a utilizar há três anos, ou perto disso.”
“Mas, porquê essa mudança de estratégia? Deixou de haver crianças abandonadas e
famílias pobres que possam ser enganadas e forçadas a vender os seus filhos? Não me
parece”, inquire Pepino, sarcasticamente; a raiva surda que sente, bem clara
na expressão ameaçadora dos seus olhos.
“Não se trata de uma mudança. Houve apenas uma acumulação de processos. As
crianças continuam a ser procuradas e obtidas pelos métodos que antes descrevi.
Infelizmente, as guerras e os problemas económicos dos últimos anos nada têm feito
para diminuir o número de desamparados e desprovidos no mundo e a colheita tem
sido fértil. Acontece que, ao porem em funcionamento as unidades, eles passaram a
ter controle sobre...”
“Todas as fases de produção, desde a matéria-prima até ao serviço de instalação e pós
venda!”, termino por ele, não querendo acreditar no que acabei de dizer.
“Meu Deus, como é possível... Diga-me que não é isto.”
Mas ele já está a fazer-me sinal que sim, que é mesmo isto.
“Infelizmente, não o posso contradizer. A razão é apenas essa. Tudo é feito segundo
os mesmos princípios de qualquer outra estratégia de domínio monopolístico,
aplicada aqui tão friamente como o poderia ser noutra actividade qualquer, e sem que
pareçam sequer pausar para pensar nos crimes hediondos que cometem em série”,
diz, parecendo subitamente muito cansado. Tira os óculos escuros e reparo
que lhe falta um olho, a pálpebra direita pendente sobre uma órbita vazia e
lacrimejante, que ele se apressa a secar com um lenço de algodão que retira
do bolso do casaco, para depois voltar a colocar os óculos. E continua:
470
“Assim, dispondo de mulheres seguramente férteis em cativeiro, dispondo da
possibilidade de controlar o fluxo de produção a seu belo prazer, com um muito
eventual atraso de apenas três meses sobre uma qualquer solicitação do mercado, não
estando pois dependentes de eventuais faltas de matéria-prima, e sendo os únicos a
prestar este serviço, eles controlam completamente o dito mercado e podem fazer-se
pagar, literalmente, o que querem. Que o ganho daí resultante seja proveniente da
exploração e morte de inocentes é-lhes completamente indiferente. ”
“A finalidade de tudo isto, de todas estas mortes e de todo este sofrimento é, então,
apenas encher os bolsos de uns quantos maduros? Mais um sucesso na história da
expansão da economia de mercado, mais uma prova da sua aplicabilidade a todas as
facetas da vida? Só isso e nada mais?”, pergunto ao nosso anfitrião, a voz
embargada pelo sarcasmo.
“Nada mais”, confirma, tristemente.
“É um sinal dos tempos em que vivemos; a regra costumava ser que era possível serse perseguido, preso, torturado e até morto, pelas ideias que se defendiam, pela
religião que se seguia ou deixava de seguir, e até pela raça em que se tinha nascido
sem se ser consultado; hoje, aparentemente, é-se-o apenas, ou também, porque há uns
tipos que querem enriquecer. Sinal dos tempos, realmente.”
“Mas, espera aí, Jak, há uma coisa que eu ainda não percebi bem. Estes enriquecem,
OK, percebo o que retiram daqui. E os outros, os recipientes dos transplantes, o que
eles ganham com isso?”
“Primeiro deixe-me só corrigir uma coisa”, responde Carl Nebuloni. “Os homens
e mulheres que desenvolvem esta actividade não precisam de enriquecer, nem nunca
precisaram; qualquer deles tem mais dinheiro do um de nós poderia ganhar ao longo
471
de três vidas! Como disse antes, a palavra-chave aqui é ganância, não necessidade.
Aos outros, aos clientes, quase todos tão ricos como, e alguns até talvez mais ricos do
que os primeiros, move-os, essencialmente, a ganância pelo tempo.
Querem viver para sempre. Mas não lhes basta apenas existir agarrados a uma
máquina que lhes mantenha o cérebro a funcionar, não, querem ser jovens para
sempre! A cirurgia plástica pode hoje dar-lhes quase qualquer aparência que desejem,
mas se por dentro continuarem a ter sessenta ou setenta anos, é essa a idade que vão
continuar a ter. É essencial a renovação interior, do sangue e dos órgãos, para que o
processo de degenerescência seja invertido ou, pelo menos, retardado por mais algum
tempo. Ora, é isso que os órgãos obtidos desta forma conseguem fazer. Dão nova vida
e nova força aos recipientes.”
“E, se para eles viverem para sempre, tiverem de morrer uns quantos desgraçados
que ninguém conhece e de quem ninguém ouviu falar a não ser as famílias, pois, que
assim seja. Afinal, os recipientes até são pessoas que se consideram importantes, que
mais não seja porque são ricos, e os desgraçados não passam disso mesmo,
desgraçados”, termino por ele, na lógica distorcida que está subjacente ao que
descreve.
“Mas, ouça lá, se vocês têm filmes e sabem tudo isso, porque é que não denunciam
estes energúmenos e acabam com esta nojeira, de uma vez por todas? Porquê perder
tempo a atacá-los aqui e ali, quando poderiam expô-los na imprensa e na internet?”,
pergunta, exaltado, o Pepino.
A princípio pensei que o outro se fosse zangar; afinal, a pergunta é, sem o
querer ser, claramente uma censura à actividade dos nossos salvadores. Mas
não. Reconhecendo, talvez, na pergunta uma crítica que façam a si mesmos,
os nossos anfitriões não parecem ficar ofendidos. Só Roberto Jobim parece
472
agitar-se quando a pergunta lhe é traduzida, mas Nebuloni faz-lhe um sinal
e ele nada diz.
“Não é coisa em que não tenhamos pensado mais do que uma vez”, responde.
“Aliás, começámos mesmo por fazê-lo. Mas apanhámos uma grande sova e não
conseguimos nada.”
“Mas, como? Vai desculpar-me, mas eu não percebo como é que isso pode ter
acontecido, como é que eles podem impedir-vos de divulgar o que está a acontecer?”,
insiste o italiano.
“Oh, não, ninguém nos impediu de divulgar nada. Falámos com jornalistas,
contámos o que sabíamos, fornecemos-lhes cópias dos dados que tínhamos recolhido
num dos complexos e a notícia saiu em vários jornais. Não em todos os que
gostaríamos que tivesse saído, mas em alguns. Nas mesmas edições, havia
desmentidos dos pastores locais ou regionais da IVE, dizendo que iriam processar os
jornalistas por difamação. As edições dos dias seguintes apareceram cheias de artigos
sobre o trabalho caritativo da Igreja da Verdade Eterna e do muito que fazia pelas
comunidades onde estava implantada. Colunáveis, famosos, pessoas de importância e
gente do povo, todos foram entrevistados para dizer que não acreditavam que aqueles
„boatos‟ pudessem ser verdade, que não podia ser verdade que a IVE se dedicasse a
tais práticas, que era um insulto à inteligência dos membros da Igreja, etc. Sobre a
reportagem nunca mais saiu nada. Os jornalistas que acreditaram em nós e nas
provas que lhes mostrámos foram quase todos despedidos ou postos na prateleira e,
menos de um ano depois, estavam todos mortos. Acidentalmente, claro. Um apanhou
um choque eléctrico, outro morreu a fazer windsurf, outro ainda teve um acidente
vascular cerebral, enfim, nada que pudesse ser apontado à IVE ou aos seus
seguidores.”
473
“E a Internet?”
“A mesma coisa. Essa ainda demorou menos tempo a ser censurada. Quando
começámos a ver as reacções ao que foi publicado nos jornais, pusemos rapidamente
de pé um site com todos os dados que tínhamos, os artigos dos jornais e a localização
dos complexos que na altura sabíamos existirem. Não conseguimos sequer pôr-nos
em rede. O resultado foi sempre o mesmo, no momento em que o nosso endereço saía
para o ar, era imediatamente posto fora de serviço. Existia, mas ninguém lhe podia
aceder, o que era o mesmo que não existir”, esclarece. “Acredite, não foi por falta de
tentativas, mas eles têm os meios de comunicação nas mãos. Veja, por exemplo, isto.
No monitor da direita está a edição original do Corriere di Notizie, aquela que saiu
para a rua na data; no monitor da esquerda está a edição que podia comprar uma
semana mais tarde e que pode comprar hoje, cinco anos depois, se for ao jornal pedi-la
ou se a descarregar da net.”
“Parecem iguais... Não, a primeira página da esquerda não traz a história da IVE!
Mas, como é que isso é possível? Ninguém dá por nada? E as bibliotecas?”
Nebuloni encolhe os ombros.
“Quem é que se interessa pelos jornais do dia anterior? A maior parte das pessoas
nem o de hoje lê, quanto mais o de ontem. E depois, não é que a edição tenha deixado
de existir; ela existe, foi só ligeiramente modificada. Quanto às bibliotecas, nada mais
fácil, basta substituir uma pela outra e toda a gente fica satisfeita. O bibliotecário tem
a colecção sem buracos, os eventualíssimos leitores podem na mesma ficar a saber o
que se passou naquela data, e a IVE regressa às sombras de onde gostaria nunca ter
saído. Algum de vocês se lembra de ver esta história nos jornais?”
474
Temos de confessar os dois que não. Se vi, provavelmente não liguei,
pensando tratar-se de mais um escândalo parvo envolvendo seitas
apocalípticas que, por essa altura, estavam novamente em plena ofensiva em
Lisboa.
“Depois tentámos os tribunais, mas não consegui sequer chegar a julgamento. Pouco
depois de iniciado o processo, apesar de todas as medidas de segurança que tínhamos
implementado, fomos atacados e o escritório destruído. Supostamente foram
gangsters, mas nenhum de nós acredita nisso.”
“Isso já me diz qualquer coisa, sim. Mas, é advogado? E foi quem propôs a acção?
Sim, claro, agora me lembro, Nebuloni, da M2NC+A. Claro! Desculpe, devia tê-lo
reconhecido”, exclamo, embaraçado. O nome do homem é tão comum como o
meu, caramba, e ainda assim não consegui mantê-lo na memória. Chiça! Mas
ele afasta as minhas desculpas com um aceno de mão. “Mas não sabia que
tinha sido atacado?! Se bem me lembro, a notícia que correu na altura foi que tinha
desistido do processo e que tinha desaparecido; exactamente, houve até quem falasse
em problemas com o fisco... Estou a ver, não passou de mais uma invenção, é isso?”
Ele acena, sorrindo tristemente pela segunda vez desde que nos sentámos à
mesa.
“A parte do desaparecimento não, eu desapareci realmente; senão, talvez não
estivesse aqui hoje. A parte do fisco sim. Esse boato foi lançado por eles, em Portugal
pega sempre bem, as pessoas rapidamente o tomam como verdadeiro, especialmente se
o visado for um advogado, com nome estrangeiro ainda por cima, e depressa se
esquecem da história.”
475
O telefone toca novamente, a médica atende, ouve durante um momento,
depois diz qualquer coisa como “Dankon. Ĝis la” e repõe o auscultador no
descanso. Faz sinal a Nebuloni que retribui o aceno e depois nos diz:
“O vosso amigo Leonel acordou, se quiserem, podemos ir vê-lo”, diz, apoiando-se
na mesa para se levantar. Os outros três e o Pepino levantam-se também. Ele
vem pôr-se atrás de mim, mas a médica afasta-o com um gesto.
“You‟re in no condition push wheelchairs, mate. Leave this to me.”
Ele anui, mais por ter visto o ar decidido dela do que por perceber o que lhe
diz e junta-se aos outros dois que seguem à nossa frente com a morena de
cabelo curto.
“O vosso ataque ao complexo foi ao mesmo tempo muito corajoso e muito estúpido”,
diz, crítica. Eu tenho de concordar com ela quanto à estupidez.
“Sim, bom, foi uma coisa muito mal preparada. A rapidez de acção parecia-nos
essencial, pois não sabíamos de todo o que poderia estar a acontecer à Janna. A pressa
foi, neste caso, claramente inimiga da perfeição”, digo, ao mesmo tempo que
tento encolher os ombros. Imediatamente me arrependo da tentativa, quando
uma dor aguda me sobe pelo braço direito acima e me convence que é
melhor deixar-me ficar quieto daqui em diante.
“A tua Joanna é, apesar de tudo, uma mulher de sorte, se tem um homem que é capaz
de largar tudo e vir assim atrás dela.”
Não sei bem o que lhe diga. Sabendo onde ela estava e podendo fazê-lo, que
outra decisão poderia ter tomado? Um rapto não é exactamente o tipo de
coisa que se pode esperar que se resolva por si mesma.
476
“Sim, pois. Bom, eu gosto muito dela”, digo, para dizer alguma coisa.
Ela ri-se, uma gargalhada simpática, muito feminina.
“Se isso fosse justificação bastante, a maioria destas pobres talvez não estivessem
aqui. Não, ela é realmente uma mulher de sorte. E, já que falamos de sorte, tu
também; não haveria muitos que embarcassem numa aventura perigosa para tentar
resgatar a namorada de um amigo.”
É a minha vez de sorrir.
“Sim, aí acho que tens razão. Sou um homem de sorte. Por ter a Janna e por ter
amigos suficientemente doidos que não me deixaram vir sozinho buscá-la. Se o
tivessem feito, não estaria provavelmente aqui”, riposto. “E tu, qual é a tua
história? Como é que vens parar ao meio disto?”, pergunto para afastar a
curiosidade dela.
“Oh, nada de especial. Foi mais isto que veio ter comigo. Aqui há uns dois anos e
meio, estava de férias na Suíça e pescava numa represazita no meio de lado nenhum,
quando o Kalle, o Carl, veio literalmente cair-me em cima”, ri-se novamente, um
riso triste desta vez.
“Estava no meio do lago, quando oiço passar um carro em alta velocidade sobre a
ponte estreita que o cruza, logo seguido de outro em sua perseguição. Volto-me para
o ruído, ainda a tempo de ver qualquer coisa explodir em contacto com o segundo
carro, que galga o parapeito da ponte e vem parar à água, uns dez metros afastado de
mim. Os outros não abrandaram sequer. Fui pescá-lo ao fundo do lago, não muito
fundo, felizmente, e trouxe-o para a margem onde o reanimei, após o que ele me
pediu, quase implorou, que não chamasse a polícia e telefonasse a um Gehrard
Beauchamp – que ainda não conheces – antes de me dar um telefone para a mão e
477
desmaiar mais uma vez. Ainda hoje não sei porquê, procurei o nome na lista do
telefone e fiz o que me pediu. E foi assim que aqui vim parar.”
“Não se pode dizer que vocês levem uma vida aborrecida. Foi assim que ele ficou sem
o olho?”, pergunto, referindo-me ao Nebuloni e olhando para cima, para ela.
“Foi”, diz, acenando com a cabeça. “O projéctil entrou pelo pára-brisas da frente
e explodiu de encontro à parte traseira do automóvel que ele vinha a conduzir. Ficou
sem o olho e sem a perna direita, um estilhaço cortou-lha logo abaixo do joelho.”
“Caramba! Isso é que foi. Podia ter sido pior, porém. Podia ter apanhado com ele em
cheio”, digo, assobiando. E depois: “Mas, porque é que ele vinha a perseguir o
carro de onde o alvejaram?”
Ouço-a hesitar, como se não soubesse se me deve contar. Mas depois decidese.
“Tinham acabado de raptar a mulher dele, de uma cabana onde estavam a passar uns
dias de férias sozinhos.”
“Mas quem? Os tipos da IVE?”
“Sim.”
“E sabem alguma coisa dela?”, pergunto.
“Não. Não pediram qualquer resgate, nem foi nunca encontrada. E foi mais ou
menos por essa altura que começámos a dar com as unacefs, portanto, podes imaginar
como ele se sente. Cada dia que passa, cada ataque que fazemos sem a encontrar,
aumenta o peso que tem sobre os ombros”, esclarece com a voz pesarosa. “Ele
sente-se culpado por aquilo que lhe aconteceu. Diz que se não fosse ele ter insistido,
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nunca se teriam envolvido nesta história que, a propósito, já lhe custou, os pais e
uma irmã.”
“Meu Deus! Pobre tipo.” Estou chocado. Peço-lhe que explique melhor o que
acabou de dizer, e ela explica. Os rumores que, na altura, tinha ouvido acerca
do acidente que vitimou os pais e a irmã do Nebuloni voltam-me lentamente
à memória. Na altura, há seis ou sete anos, tinha sido bastante falado. O pai
era um advogado conhecido em Lisboa e o desaparecimento dele,
juntamente com a mulher e a filha, causou alguma sensação. Durante uns
dias, o acidente foi a coqueluche dos boatos do foro, já de si sempre a
abarrotar de histórias acerca de uns e de outros. As versões acerca do que se
tinha passado variavam obviamente de pessoa para pessoa, umas mais
criativas, outras mais horríveis, mas, nunca nenhuma se referira ao
acontecimento como outra coisa que não um acidente.
O que ela me conta altera tudo isso.
Eles foram assassinados. Empurrados para uma morte certa do cimo de um
viaduto. Pela mesma organização que lhe raptou a mulher e que, estes anos
todos depois, continua a matar e a fazer a vida num inferno a uma série de
outros.
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Passamos por uma sala enorme onde muita gente se dedica a seguir o que se
passa nos vários monitores colocados em cada mesa e também nas paredes, e
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onde parece correr uma azáfama de salão de bolsa em dia de bons negócios.
Alguns dos monitores parecem, efectivamente, seguir cotações de empresas,
daí talvez a minha comparação, mas outros estão sintonizados para canais de
informação, vejo a FoxNews, CNN, Sky, Al-Jazira, TFI, Euronews, a BBC e
outras cujos nomes não conheço, mas que lembro de ter sintonizado uma vez
ou outra. Outros monitores ainda parecem estar ligados à Internet ou a
outras redes, internas ou não, cujos conteúdos desconheço.
Mas ninguém nos explica o que aqui se faz. Quando pergunto à Maureen o
que é a sala, ela responde apenas que é ali que funcionam as secções de
tratamento de dados e investimentos, e parece querer deixar ficar as
explicações por ali. Eu, porém, quero saber mais.
“O que fazem exactamente as secções de tratamento de dados e investimentos?”,
pergunto, voltando-me para ela.
Ela parece hesitar, como se não soubesse ou não pudesse dizer mais.
Finalmente, acaba por decidir-se.
“A pergunta apanhou-me de surpresa. Eu sei o que eles fazem, mas não estava à
espera que me pedisses para to explicar”, diz, tentando desculpar-se. “Na verdade,
a explicação do que se faz nesta sala é bastante simples. Procuramos informações
sobre a IVE, sobre os seus investimentos e sobre as suas actividades, oficiais e nãooficiais. Penetramos nas contas e nos fundos que têm, desviamos tudo o que podemos
para outras contas sobre o nosso controle, embora não directamente ligadas a nós.
Levantamos o dinheiro e voltamos a depositá-lo nas contas usamos.”
Eu devo estar com cara de parvo, porque ela solta uma gargalhada.
480
“Mas isso é roubo, seja em que legislação fôr!”, consigo finalmente dizer.
Ela encolhe os ombros.
“Isso não me preocupa absolutamente nada. Temos hackers absolutamente fabulosos
a trabalhar connosco, e a possibilidade de serem encontradas provas que apontem
para nós ainda que remotamente, é tão irrisória que nem merece a pena ser levada em
consideração. Por outro lado, eles não têm interesse nenhum em nos denunciar, pois
isso poria à mostra a actividade suja a que se dedicam – isto supondo que têm a mais
pequena ideia de quem somos ou de onde estamos, o que não nos parece”, esclarece,
pacientemente. “E depois, como é que achas que conseguimos manter tudo isto a
funcionar, com doações? Este navio, o combustível – de que ainda necessitamos,
apesar das hidroturbinas – a alimentação, as operações de resgate, os tratamentos
médicos e psicoterapêuticos das mulheres que resgatamos, o apoio financeiro que lhes
damos quando as voltamos a colocar em terra, e por aí fora. Tudo é feito em segredo –
infelizmente sabemos bem demais o que sucede quando esta regra é desrespeitada – e,
por isso também, os financiamentos devem ser secretos. E que melhor financiamento
que o dinheiro que a Igreja da Verdade Eterna e seus proprietários acumulam, dia
após dia, à custa das vidas de inocentes.”
Não sei o que responder, especialmente porque ela até tem razão. O meu
impulso inicial, legalista, de chamar roubo ao que eles fazem para financiar
uma actividade mais do que meritória, mais não foi do que uma reacção
pavloviana de advogado, completamente desfasada da realidade.
“Sim, tens razão”, acabo por dizer, concordando com ela. “Se existe melhor
forma de usar esse dinheiro, não me vem à ideia de momento.”
481
Entretanto, chegamos à parte hospitalar do navio e à enfermaria de seis
camas onde está o Leonel. A cama dele é a única não envolta em cortinas.
Contamos-lhe o que se passou depois de o deixarmos no arquivo com as três
raparigas, e o nosso anfitrião explica-lhe o que nos explicou a nós, na sala da
mesa redonda.
Passa pelas mesmas fases que nós passámos, de incompreensão e de rejeição,
e depois de raiva e de vergonha, antes de aceitar os factos que lhe são
revelados.
Um outro médico vem ter com a Maureen e diz-lhe duas ou três palavras,
após o que ela se volta para mim. “Podemos ir ver a tua namorada, se quiseres.
Ela deve estar prestes a vir a si.”
Deixamos o Leonel em conversa com os outros e ela conduz-me até uma das
outras camas, rodeada por cortinas grossas que descem desde o tecto e a
escondem completamente. A face interior das cortinas é escura, negra ou
antracite; depois de passarmos por elas, o médico que veio connosco volta a
cerrá-las de modo a deixar entrar apenas um mínimo de luz por baixo. Preso
à cabeceira da cama está um pequeno candeeiro de cabo flexível cuja
lâmpada brilha suavemente numa luz violácea, muito perto do vermelho.
Rodeada por vários aparelhos, entre os quais reconheço, talvez, um
electroencefalógrafo e um electrocardiógrafo, com fios presos a almofadinhas
de espuma colocadas sobre a testa, o peito, quatro sobre o ventre, de onde sai
também um fio de uma sonda que lhe colocaram no umbigo, e com uma
agulha de um tubo de soro enfiada num braço, a Janna parece dormir
pacificamente na penumbra que a rodeia.
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“Porque é que a mantêm assim nesta escuridão?”, pergunto, preocupado.
“As pacientes suportam muito mal a luz quando acordam”, diz o médico que aqui
nos trouxe. “Além de ficarem completamente desorientadas – algumas acordam
mesmo com agorafobia. As cortinas limitam-lhes a área com que têm de lidar,
reduzindo-lhes o mundo a uma dimensão que se adequa mais à percepção de espaço
que a estadia na unacef lhes deixou.”
“Mas, eu pensei que elas estivessem num estado de hibernação ou de animação
suspensa dentro dos casulos, quero dizer, das unidades. Como é podem ter qualquer
noção do espaço que as rodeia?”
“Foi exactamente o que nós pensámos, no início, mas depois vimo-nos forçados a
mudar de ideias”, diz Maureen. “Não creio que a Joanna vá ter qualquer problema
de readaptação, porém. O tempo subjectivo de imersão a que esteve sujeita foi
demasiado curto para isso. Mas o seguro morreu de velho, como se costuma dizer.”
“As últimas leituras indicam que ela deve estar prestes a acordar. A fase em que está
é semelhante à que se verifica num período de sono normal antes do despertar”,
informa o médico. Mas acrescenta: “Ainda que não sejam exactamente a mesma
coisa e, mesmo em casos de curto tempo de imersão como este, pode haver lugar a
desorientação, receio de espaços abertos e também amnésia. Peço-lhe que tenha
paciência e não espere demasiado deste primeiro encontro.”
Digo-lhe que sim, distraído; toda a minha atenção centrada na figura
adormecida da mulher que amo, indefesa no meio do lençol branco da cama
em que a deitaram, a pele branca, quase transparente, o bronzeado bonito de
antes absorvido talvez pelo líquido em que esteve mergulhada. Parece-me
muito pequena e frágil, o crânio quase rapado e falta de expressão do seu
483
rosto adormecido, dão-lhe um ar de manequim à espera de roupa, a quem
tiraram a cabeleira para melhor lhe passarem as peças pela cabeça.
Percorro-lhe o corpo com os olhos e apercebo-me então das manchas negras
que sujam a sua pele. Nos tornozelos, nos pulsos, nos ombros, no pescoço,
manchas de dedos que a agarram e tentam ainda prender ao pesadelo por
que acabou de passar. Lembro-me da cena que presenciámos com as outras
três raparigas e pergunto a mim mesmo por que razão haveria a Janna de ter
sofrido sorte diferente. Sinto subir em mim uma raiva surda, que tento
controlar a custo. Digo a mim mesmo que está tudo acabado, que os animais
que a magoaram estão mortos, que nunca mais poderão voltar a fazer o
mesmo a ninguém, mas não ajuda muito, gostaria de os poder matar outra
vez, de lhes dar mil mortes todas igualmente horríveis, por tudo o que
fizeram à Janna e a todas as outras que tiveram a pouca sorte de lhes passar
pelas mãos.
“Estas, rhnm, estas marcas que tem nos braços, foram resultado de maus-tratos
sofridos em cativeiro, ou têm outra origem?”, pergunto, querendo ter a certeza.
A Maureen e o médico olham um para o outro, tentando decidir qual deles
vai ter de me explicar os factos da vida. Da sorte dos olhares resulta ser ela
quem fica com o pavio mais curto.
“Jakez, sabes, lembras-te do que disse o Carl há bocado… os guardas aproveitam-se
sempre. É rara, raríssima, a mulher que não é violentada antes de ser posta num
casulo. A Joanna não foi excepção. Lamento”, diz, com a expressão resignada de
quem já viu aquilo muitas vezes.
484
Eu faço-lhe que sim, incapaz de dizer seja o que for; a raiva ainda fazendo
das suas dentro de mim.
“Nós faremos o possível para que ela ultrapasse as más recordações que a expe...”
Interrompe-se porque a Janna acaba de abrir os olhos. A expressão vazia de
uma boneca percorre o espaço que a rodeia, passando por cada um de nós
sem realmente nos ver, e depois começa a gritar e a agitar-se. O grito parece
vir-lhe do fundo da alma, como em resposta a uma dor imensa de que se
tenha apercebido com o despertar. Maureen e o outro médico correm para
ela, segurando-a e tentando evitar que caia da cama, falando-lhe suavemente
em inglês.
“You‟re ok now. You‟re safe. We are your friends.”
Mas sem resultado. Ao ouvi-los falar, ela debate-se ainda mais, e riposta no
que creio seja checo.
“Z‟ádný, prosìm ne... Pomoci mně!”
“Que língua é esta? Sabes?”, perguntam-me.
“Suponho que seja checo, a sua língua natal.”
O médico puxa de um pequeno intercomunicador que traz ao cinto e prime o
botão de chamada, dizendo:
“Malsanejo, 5B. Iu kiu parolas Ĉeĥo. Ek!”
485
Entretanto, a Janna continua a gritar como uma desalmada.
Eu estico-me para a frente até quase cair da cadeira, pego-lhe na mão e tento
confortá-la. Ela parece acalmar-se ligeiramente ao som da minha voz; o grito
passando a um murmúrio rouco, como o de um animal ferido perdido de
dores, mas continua a não dar realmente sinais de me ter reconhecido, ou de
estar a perceber o que lhe estou a dizer.
Entretanto, chega o tradutor de checo que o médico pediu. Uma rapariga
parecendo pouco mais velha do que a minha filha, que se dirige de imediato
para a Janna, pega-lhe na outra mão e começa a falar com ela num tom muito
suave e reconfortante.
Maureen empurra-me para mais perto da cama e sai juntamente com o outro
médico, deixando-me ficar ao pé dela; a sua mão esguia envolta nas minhas,
procurando fazer-lhe sentir que está realmente entre amigos.
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ONZE
Estivemos uma semana e meia a bordo do Vega, o tempo necessário para
recuperarmos minimamente dos ferimentos sofridos no complexo 14.
A Janna precisou de várias tentativas para conseguir acordar definitivamente
e só dois dias depois de primeiro ter aberto os olhos é que finalmente me
reconheceu. Os dias seguintes foram difíceis para ela, pois, para a ajudar a
lidar com o que aconteceu, foi necessário fazê-la recordar pormenores que a
pobre tinha guardado em cantos recônditos da memória e tentado esquecer.
Eu estive sempre com ela, excepto durante as sessões com a psicoterapeuta, e
procurei dar-lhe todo o apoio que pude, mas, embora ela parecesse gostar da
minha companhia, procurou sempre evitar qualquer contacto mais íntimo,
como se tivesse medo que da ternura passássemos ao sexo – reacção normal,
previsível e inteiramente compreensível em vítimas de violações, para a qual
o único remédio é a contínua oferta de apoio e conforto. Mostrei-lhe que
estava do seu lado, mas deixei que fosse ela a decidir onde me queria.
Os meus dois companheiros de aventura dedicaram o seu tempo a bordo a
aprender mais sobre a guerra não declarada que aquele pequeno grupo de
pessoas trava, contra o que parece ser uma organização muito bem montada
e decidida a levar a bom termo os seus planos de exploração e utilização de
seres humanos, como se de uma qualquer matéria-prima se tratassem.
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Fartos, um da vida civil e o outro de fazer de ama-seca a milionários, quer o
Leonel quer o Pepino decidiram oferecer os seus préstimos e considerável
habilidade à causa da equipagem do Vega, juntando-se ao grupo de
operacionais que um tal Gehrard Beuchamp – que conhecemos no nosso
terceiro dia a bordo – tem vindo a juntar. A maior parte é ex-forças especiais
– nomeadamente ex-legião estrangeira francesa, onde ele parece ter passado
alguns anos – que lhe vão chegando uns através dos outros, sempre no meio
do muito secretismo que parece caracterizar o particular tipo de paranóia de
que padecem as gentes do Vega.
Ao contrário do que se poderia pensar, porém, o oferecimento e posterior
aceitação do Leonel e do Pepino como membros daquele bando de robinsdos-bosques da actualidade, não implicou o seu engajamento a bordo do
navio. Qualquer dos dois regressou a casa – para gáudio das respectivas
mulheres, completamente alheias ao recém-encontrado voluntarismo dos
maridos – para depois serem chamados a participar na preparação e
execução de próximas operações, sempre que tal for julgado adequado por
quem as organiza. Uma espécie de centro de trabalho temporário para
elementos das forças especiais na reserva, em que as boas intenções e a
impiedade são condições sine qua non. Nesta guerra não se fazem
prisioneiros.
Em termos de locomoção fui eu o mais lento dos três a recuperar. Embora os
ferimentos deles fossem a princípio mais graves do que os meus, nenhum
teve de soldar ossos e depressa puderam andar por onde quiseram. Eu,
apesar das injecções de cálcio e das sessões de radiação, precisei de algum
tempo mais – os meus ossos parecem ter chegado à meia-idade antes do
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resto de mim. Só quase no fim da nossa estadia é que me tiraram as talas de
suporte e os parafusos que me tinham enfiado nas pernas.
Um dos Sikorsky deixou-nos discretamente aos quatro num aeródromo
perto de Palermo, onde a primeira coisa que fiz foi puxar do cachimbo e
encher o fornilho, para satisfazer o vício depois de quase duas semanas de
abstinência. À nossa espera estava o motorista do Pepino, devidamente
prevenido.
Uma vez que a falta de passaporte da Janna tornava impossível uma viagem
por avião – o controle automático feito através do chip dos passaportes não
nos dava qualquer hipótese – Janna e eu apanhámos, em Ventimiglia, o
Talgo que faz ligação Zurique-Madrid, e depois o CAV para Lisboa,
enquanto o Leonel se fez transportar pela Alitalia para a Portela.
===================¤==================
Passaram-se quatro dias desde que chegámos. Temos estado quase sempre
em casa, ou na praia. Transferi a minha linha directa para Cascais e a Mónica
tem-me reenviado todas as mensagens que me deixam e os faxes que
chegam, o que quer dizer que fui ao escritório apenas duas vezes, por causa
de reuniões com clientes, que nesta época do ano são sempre poucas –
embora o Verão já tenha acabado ainda parece estar tudo em horário de
férias. Enquanto eu trabalho no computador, a Janna vê filmes ou lê a minha
banda-desenhada, ou algum dos outros livros que aqui tenho.
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Pouco fala. Tal como durante a viagem, de vez em quando vem aninhar-se
de encontro a mim, como uma gata à procura de carinho, e conta-me o filme
que viu ou alguma coisa de um livro que está a ler. Fala de coisas simples, ou
às vezes complicadas, mas ainda nunca tocou no que se passou desde que a
levaram daqui.
Eu continuo a deixar as decisões por conta dela, falar ou não falar, fazer ou
não fazer amor, acho que deve ser ela a decidir, quando achar que é chegada
a altura. Limito-me a oferecer-lhe os meus braços e a estar disponível para
ela, sempre que ela me quer.
Ontem almocei pela primeira vez com a Catarina desde que chegámos e
expliquei-lhe o que tinha acontecido, embora sem entrar em grandes
pormenores. Não quis assustá-la; embora depois tenha perguntado a mim
próprio se não teria sido melhor assustá-la mesmo. Ela ficou devastada.
Saber que a sua nova amiga tinha sido raptada e maltratada, deixou-a muito
triste e preocupada com o seu bem-estar. Insistiu imenso que queria ver a
Janna e que eu tinha de a levar a Cascais, mesmo que faltasse às aulas e aos
treinos. Eu acedi e levei-a. Estiveram a tarde quase toda a conversar e depois
fui depositar a Catarina à Lapa. Despediu-se de mim com um, “Cuida bem
dela, pai”, e uma lágrima ao canto do olho. Quando regressei a casa, a Janna
pareceu-me um pouco melhor, embora ainda não a mesma pessoa alegre que
conheci antes de tudo isto se ter passado.
Custa-me ter de deixar a Catarina na mesma casa em que mora um dos
safardanas que despachou a Janna para a Albânia, que, ainda por cima,
tentou mandar-me desta para melhor, e que pode também ter sido quem deu
a ordem de pôr a bomba na Judiciária, mas digo a mim mesmo que é por
490
pouco tempo. A audiência está marcada para depois de amanhã e o baile é já
este sábado, depois disso ela nunca mais precisa de o ver. Tentar qualquer
coisa agora, como por exemplo, trazer a Catarina para Cascais, sem provas
de espécie alguma, só funcionaria contra nós na audiência.
Por isso vou deixá-la onde está. Ela não sabe o que se passou, nem do
envolvimento do Gonçalo, e este não deve saber da minha excursão à
Albânia, nem do regresso da Janna, por isso não creio que corra perigo.
É claro que também me custa saber que eles continuam vivos e de boa saúde,
enquanto as sabe-se lá quantas desgraçadas enviadas para o complexo 14
antes de os tipos da Vega lá terem chegado podem não ter tido essa sorte –
vem-me à ideia a filha desaparecida do Miguel e a esperança de ela ser uma
das raparigas resgatadas do complexo albanês...
Mas que posso eu fazer? Posso ir ter com o Gonçalo e fazer-lhe um enxerto
de pancada – embora me pareça que seria mais bem empregue no senhor
meu pai – mas onde é que isso me deixava? Acabava por ter de me defender
de uma acusação de agressão, ele passava a ofendido e eu a mau da fita.
Nem sequer poderia mencionar o seu envolvimento em toda esta história,
porque não tenho quaisquer provas, e porque, se o fizesse, dava-lhe a
hipótese de juntar a calúnia à agressão, e não creio que isso abonasse muito a
meu favor.
Não, embora a hipótese de fazer justiça por minhas próprias mãos não me
desagrade de todo, vai ser, porém, necessário esperar pela ocasião propícia.
E depois vai ser necessário agir com cautela, de forma a evitar que as
atenções se voltem para nós. Sabendo a facilidade com que eles afastam
491
permanentemente quem se lhes mete no caminho, a última coisa que me
interessa é que eles saibam quem eu sou.
Até agora creio que estamos seguros. Saberão certamente do ataque ao
complexo 14, mas creio mesmo ser pouco provável, senão impossível, que
saibam que estive envolvido. Assim como é pouco provável que eles saibam
do meu relacionamento com a Janna – saberiam talvez que ela tinha alguém,
mas não creio que lhes interessasse saber quem. E deve ser ainda menos
provável saberem que está em minha casa.
Ponho fim à minha cogitação quando ouço French Kiss chegar ao fim e a
Janna sai da sala para vir ter comigo. Vem com boa cara, Meg Ryan e Kevin
Kline parecem ter-lhe feito bem.
“Então, bebé, bem disposta?”, pergunto quando a vejo entrar na sala onde estou
a trabalhar.
Ela sorri e diz que sim. Não é ainda o sorriso que lhe conhecia, mas é quase.
“O que estás a fazer?”, diz, apontando para a papelada que tenho espalhada
em cima da secretária, faxes, cópias de mensagens de correio electrónico,
dois códigos, o segundo volume do Raul Ventura e um bloco, onde comecei
a tomar notas para um fax e acabei a fazer bonecos enquanto pensava.
“Nada de especial. Estava a trabalhar, mas depois comecei a pensar noutras coisas e
acabei a fazer bonecos. E tu?”
Ela encolhe os ombros.
492
“Nada de especial também. Acabei de ver „French Kiss‟ e fiquei com saudades tuas.
Por isso resolvi vir ter contigo”, diz, sorrindo.
“És sempre bem-vinda.”
Ela rodeia a mesa que nos separa, empurra para trás a cadeira com rodas em
que estou sentado e aninha-se no meu colo, põe-me os braços à volta do
pescoço e encosta a cabeça ao meu ombro.
Deixa-se ficar assim em silêncio durante algum tempo.
“Não te importas que me sente assim ao teu colo?”, acaba por dizer.
Eu fico atónito com a pergunta e, durante um momento, não sei o que lhe
responda.
“Não, claro que não! O que te pode ter dado tal ideia?”, digo, fazendo-lhe uma
festa nos cabelos ainda muito curtos e apertando-a nos meus braços. Ela
encolhe novamente os ombros, encostando-se mais a mim.
“Não sei. Depois de tudo o que se passou, e apesar das conversas com a
psicoterapeuta a bordo do Vega, acho que tenho receio que já não me queiras. Que só
tenhas ido buscar-me porque... porque tu és assim, e terias feito o mesmo por
qualquer pessoa na mesma situação”, diz, de um só fôlego, como se as palavras
lhe estivessem a queimar a língua e tivesse de as deitar cá para fora
rapidamente.
Eu não quero magoá-la, mas não há outra forma de dizer as coisas. “Janna,
minha querida, isso é uma completa parvoíce. Como podes pensar uma coisa dessas?
É claro que te quero. Eu amo-te, Janna. Percebes?”
493
Ela acena que sim, a cabeça dela oscilando ligeiramente para cima e para
baixo de encontro ao meu ombro.
“Acho que sim, Jakez...”, começa a dizer, mas depois interrompe-se e sinto-a
soluçar, o meu ombro começa a ficar molhado por baixo da camisola de
algodão que tenho vestida. “Mas eu sinto-me tão suja. Não percebo como podes
gostar ainda de mim”, consegue dizer, entre soluços. “Não consigo deixar de
pensar que foi tudo culpa minha, que devia talvez ter agido de maneira diferente.
Que os devo ter provocado para eles me fazerem o que fizeram.”
“Não, querida, não. Não penses isso. Os tipos que te raptaram e aqueles que te
violaram são, ou eram, canalhas da pior espécie, que fizeram o que fizeram
precisamente porque é o que os canalhas fazem. Nada do que aconteceu foi culpa tua.
Não penses isso, por favor”, digo, apertando-a ainda mais a mim, quase
sentindo o coração saltar-me do peito com o desespero que lhe ouço na voz.
Ela continua a chorar, soluçando baixinho de encontro ao meu ombro. Um
choro que lhe parece vir do fundo da alma e que, se calhar, há muito era
devido.
“Sinto-me tão triste, Jakez. Tão deprimida.”
Oiço-a dizer, entre soluços, enquanto a sinto estremecer. Eu tento acalmá-la,
fazendo-lhe festas na cabeça e no pescoço e tentando mostrar-lhe que estou
do lado dela. Mas ela apenas se enrola mais sobre si mesma, estremecendo
sempre e continuando encostada a mim. Como que procurando fugir das
recordações que a assaltam.
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“Eu estou do teu lado, Janna. Aqui estás segura. Não estejas triste”, vou dizendo,
uma e outra vez, tentando convencê-la que não tem nada a temer, enquanto
a aperto ao meu peito e lhe faço festas que, espero, a ajudem a deixar a
tristeza. Beijo-lhe os cabelos, a testa e a face, sentindo a macieza da sua pele.
Sinto que a princípio se retrai, mas que depois corresponde às carícias que os
meus lábios lhe fazem, aconchegando-se mais a mim e voltando a cara para
cima para me beijar também.
Ficamos assim durante alguns minutos, beijando-nos suavemente até ela
acalmar e deixar de estremecer.
O doce sabor dos seus lábios e o fresco toque da sua pele fazem crescer em
mim o desejo de fazer amor com ela, para sentir todo o seu corpo ao
encontro do meu e poder mostrar-lhe quanto a amo. Sinto-me endurecer e
ela deve senti-lo também, pois encosta mais as suas nádegas de encontro a
mim, demonstrando assim o desejo que igualmente deve sentir.
Levanto-me com ela ainda abraçada a mim e levo-a ao colo para o quarto,
depositando-a sobre a cama. Dispo-lhe a combinação de calças e camisola de
algodão que tem vestida, enquanto suavemente lhe vou beijando o rosto, os
ombros, os seios, o ventre, as coxas e os peitos dos pés. Desfaço-me
rapidamente das minhas roupas e deito-me a seu lado.
Acaricio-lhe os ombros e percorro, com a mão, as curvas do seu corpo,
sentindo-a estremecer ao meu toque. Um estremecimento de excitação e de
antecipação desta vez. Os meus olhos nos seus, puxo-a suavemente para
mim, beijando-a na boca, e deito-me em cima dela, sentindo os seus mamilos
erectos que sobem de encontro ao meu peito ao ritmo da sua respiração.
495
“Faz amor comigo, Jakez, por favor. Preciso de te sentir dentro de mim”, pede em
voz rouca, entre um beijo e outro.
O pedido é de todo desnecessário, eu também nada mais quero do que
sentir-me dentro dela. As suas coxas afastam-se para me receber, e o meu
sexo procura com sofreguidão o seu, como um caminhante perdido no
deserto procuraria um oásis.
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Permanecemos muito tempo deitados um ao lado do outro sem nada dizer.
Ela encontrando conforto nos meus braços, eu satisfeito por lho poder dar
novamente.
Acabo por ser eu quem primeiro quebra o silêncio.
“Houve uma altura em que cheguei a pensar que te tinha perdido mesmo, sabes.
Julguei desesperar”, digo.
Sinto-a estremecer. Ela chega-se mais a mim e abraça-me com força.
Ficamos nos braços um do outro por mais algum tempo, até o desejo
despertar novamente em nós e voltarmos a fazer amor.
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Passámos o resto do dia na cama. E o dia seguinte também. Fizemos amor
mais algumas vezes, mas a maior parte do tempo estivemos apenas
abraçados.
Falámos muito. Ou melhor, a Janna falou e eu ouvi. Quis contar-me tudo o
que se lembrava de lhe ter acontecido. Chorou várias vezes, de raiva e de
frustração, e também de pena, por todas as que não tiveram a mesma sorte
que ela e ainda estão algures dentro de um sarcófago de vidro.
Quando a deixei em casa hoje de manhã disse-me que não me preocupasse,
que ficava bem. Que agora precisava de estar sozinha. Acedi, fazendo-a
prometer que me telefonaria se sentisse que precisava de ajuda. Disse que
sim.
Passei as horas até ao almoço a pôr em ordem a papelada dos últimos dias
com a ajuda da Mónica.
Ao meio-dia e meia almoço com a Catarina, que está uma pilha de nervos, de
preocupada com a audiência. Comemos uma baguete cada um, enquanto
passeamos a ver as montras do Colombo, para a distrair. Depois levo-a de
volta ao colégio – onde a mãe ficou de a vir buscar às duas horas – e vou eu,
também, para o Tribunal de Menores.
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A audiência correu como eu esperava. O juiz viu para além de todos os
argumentos que o advogado da Mima e do Gonçalo tentou apresentar – a
minha ex-mulher limitou-se a estar calada, não sei se por não saber o que
dizer, se por achar que não valia a pena dizer qualquer coisa, e o marido fezlhe companhia a contragosto – e depois de ouvir a Catarina dizer que
preferia viver comigo, deu razão ao pedido e o caso por encerrado sem
perder mais tempo.
Foi preciso dominar-me, para não encher o Gonçalo de pancada mal o vi.
Mas a raiva com que o vi ficar quando ouviu a sentença do juiz, fez valer a
pena o sacrifício.
Não percebo o tipo. Não percebo porque é que leva o assunto tão a peito. Ele
não tem absolutamente nada a ver com isto. Aliás, nem percebo sequer o que
veio hoje fazer ao tribunal – para além de chatear o juiz, que teve de o
mandar calar duas vezes e prometer que o multava se voltasse a abrir a boca
– mas também agora pouco me importa.
Fora da sala, troquei quatro, literalmente quatro, palavras com a minha exmulher, enquanto a Catarina lhe disse que se mudava hoje mesmo para
minha casa e recebia um encolher de ombros. A frieza de trato entre as duas
é palpável. A única pergunta que fez à Catarina foi se ainda assim ia ao baile.
Satisfeita com a resposta, disse que a esperava amanhã à tarde em casa da
modista para irem experimentar o vestido uma última vez, e afastou-se em
direcção ao marido. Deixámos o tribunal, enquanto o Gonçalo continuava em
animada conversa com o advogado e fazia de conta que não dava por nós.
498
A Mima estava com o aspecto que as roupas de marca dão a quem as usa.
Parecia um estereotipo da pessoa que há vinte anos dizia não querer tornarse. O rosto bem cuidado por tratamentos de beleza e os cabelos pintados de
louro e bem arranjados, num penteado solto, tentavam demonstrar uma
juventude que o conjunto saia-casaco, a mala de crocodilo e os sapatos do
mesmo se apressavam a contradizer.
“A tua mãe estava com bom aspecto”, digo, fazendo conversa quando estamos a
preparar-nos para subir para a moto.
A Catarina encolhe os ombros.
“A mãe tem sempre aquele aspecto. De manhã, quando sai do quarto já vem
completamente vestida e arranjada. Para dizer a verdade, se eu quisesse saber se
dorme de pijama ou de camisa de noite, teria de ir procurar às gavetas da cómoda.
Não me recordo de a ver de outra forma”, diz, pensativa. “Sempre com aquele ar
distante e artificial, que afasta quaisquer ilusões de carinho que, à partida, se
pudessem ter”, acrescenta, com alguma amargura na voz.
Procuro lembrar-me de como eram as coisas quando estávamos casados, mas
não consigo. As recordações desses tempos têm vindo a desvanecer-se ao
longo dos últimos anos. Agora, quando penso nela, o que raramente
acontece, vejo-a sempre com o ar frio e distante que hoje tinha e que já lhe
conhecia de outros, breves, encontros.
“A mãe e o Gonçalo não são exactamente pessoas afectuosas ou interessadas, pelo
menos comigo e com o Martim. Embora eu ache que ele nem dá por isso, sendo do
mesmo tipo”, continua a Catarina, com mais um encolher de ombros. “Nestas
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últimas semanas, tu conversaste mais comigo do que eles os dois durante todos os
anos que vivemos juntos.”
“Oh, Catarina, mas que exagero, filha”, digo, meio a brincar, pensando na
grande improbabilidade do que ela diz.
“A sério! Como já te disse uma vez, a mãe e o Gonçalo não conversam realmente
comigo. Dizem-me o que fazer. Mas, mesmo para isso, é raro falarmos. Uma ou duas
vezes ao dia, talvez, coisas de circunstância à mesa de jantar, nada mais. Acho que
são grandes adeptos da máxima que diz que, as crianças são para ser vistas, não
ouvidas. O facto de eu ter quase dezasseis anos parece não fazer qualquer diferença.”
“Não tenho a tua mãe na conta de uma pessoa calada. Pelo menos do que me
lembro”, comento, mais para mim do que para a Catarina.
“Não, eu não disse que a mãe e o Gonçalo não falavam. O que eles não fazem é falar
comigo. Entre si conversam, é claro. À mesa falam de coisas sem interesse algum;
festas e jantares para que foram convidados, o que serviram, que vestido levou
fulana, com quem foi beltrano, o que se diz desta e do outro, e pouco mais. Quando
querem falar de outras coisas fecham-se no escritório, ou então à noite, no quarto. Eu
tentei várias vezes ver se percebia o que diziam, mas...”,
“Oh, filhita! Francamente, a escutar às portas!?”, exclamo, fingindo-me
zangado.
“Eu sei que não é muito elegante, mas fazia-o porque não queria sentir-me excluída.
De qualquer maneira, nunca consegui perceber grande coisa e deixei de o fazer
quando nos começámos a ver. Depois disso, só o fiz daquela vez que te contei. De
qualquer maneira, a maior parte das conversas eram aborrecidas, sempre acerca de
500
dinheiro e investimentos; os restaurantes e bares do Gonçalo e uma quinta qualquer,
porque ele, de vez em quando, também falava em mulas, cabras e chocadeiras.”
O que a ela lhe parecem conversas acerca de uma quinta, têm para mim um
significado completamente diferente e fazem soar um alarme na parte
intuitiva do meu cérebro. Com um arrepio apercebo-me que a minha exmulher deve estar a par da real natureza dos “investimentos” do Gonçalo.
Confesso que não o esperava.
Mas, também, quem poderia esperar fosse o que fosse de toda esta história...
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A Janna ficou muito satisfeita quando soube que a Catarina já ficava lá em
casa e para celebrar resolvemos ir jantar fora.
Passaram as duas o tempo todo na conversa, só me prestando atenção de vez
em quando. Mas valeu a pena, só para ver a Janna rir com gosto novamente.
Ter a Catarina ao pé vai fazer-lhe bem.
A noite quase lembrou as nossas primeiras. Fizémos amor duas vezes e, pela
primeira vez desde que regressámos, a Janna dormiu a sono solto; fruto
talvez da tensão e do cansaço acumulado dos últimos dias.
Quando saímos de casa de manhã dormia ainda. Escrevi-lhe um bilhete que
colei ao espelho da casa de banho e deixei-a dormir.
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O dia teve alguma aparência da normalidade a que fugiram os anteriores.
Duas reuniões com clientes da parte da manhã, um fax recebido e outro
enviado, um almoço sentado à secretária, e o pôr em ordem da papelada
referente ao julgamento de segunda às nove, antes de decidir subitamente ir
levar a Catarina à modista.
Despeço-me da Mónica, corro até à moto e largo, a toda a velocidade, em
direcção ao Lumiar para conseguir chegar ao colégio antes das quatro e meia,
hora a que ela me disse ir sair.
Entro na praceta onde fica a entrada principal do colégio faltam cinco para a
meia, e quase sou passado a ferro por um Grand Cherokee verde-escuro, que
estava parado em frente ao portão e cujo condutor parece ter subitamente
decidido que estava atrasado para qualquer coisa importante. Por pouco não
me desequilibro, só mesmo a grande estabilidade da BMW me impediu de ir
ao chão.
Ele há mesmo tipos que julgam não haver mais ninguém com direito a andar
na estrada, penso, lembrando-me do Jaguar que, há tempos, tentou passarme a ferro.
Estaciono a moto em frente ao portão de ferro forjado, encosto-me a ela e
saco do cachimbo, pronto para umas baforadas enquanto espero que a
Catarina saia.
Três quartos da praceta são ocupados pelo muro cinzento, alto de três
metros, que faz o perímetro do colégio, dois prédios e uma vivenda em mau
estado de conservação preenchem o resto. Os LCD laterais do telheiro verdeescuro/cromado da JCDecaux que serve de terminal a uma carreira de
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autocarros, mostram um corrupio de anúncios variados sem que haja alguém
para lhes prestar atenção. O velho Scania amarelo deixa a paragem no meio
de um coro de protestos do sistema hidráulico, vazio de passageiros,
seguindo um horário inflexível.
Para além dos protestos do motor que se afasta, não se houve qualquer
ruído. Se não soubesse onde estou, pensaria ter estacionado ao pé de um
cemitério em vez de uma escola. Mesmo supondo que estão todos em aulas,
considerando o leque de idades que aqui se ensinam, da pré-primária à
secundária, algum alvoroço se deveria ouvir. Afinal, é próprio de miúdos
fazer barulho.
Mas não. Um manto de silêncio parece cobrir tudo à minha volta, dando ao
sítio um aspecto bastante deprimente.
Como é que os pais – nos quais me incluo, para não deixar de me atribuir a
parte de responsabilidade que me cabe por não me ter oposto a inscrever os
miúdos num colégio do qual nada sabia, por mais divorciado que estivesse –
podem pensar que os miúdos se sentem bem num sítio como este, está para
além da minha compreensão. Mas talvez o que os miúdos sentem não seja
realmente importante para quem aqui os põe. Ou talvez sejam todos pais
ausentes, como eu fui durante uns anos.
Uma pequena porta recorta-se no vulto maciço do portão negro de ferro e a
Catarina sai, muito circunspecta e cabisbaixa, para a praceta.
O cabelo atado num chinó preso no alto da cabeça; a gravata cinzento-pardo
cinge-lhe o pescoço e desce ao longo da camisa branca de mangas compridas,
até chegar ao cós de uma saia abaixo do joelho, da mesma cor da gravata.
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Umas meias cinzentas no mesmo tom cobrem-lhe as pernas e terminam
algures por baixo da saia. Nos pés traz calçados uns sapatos pretos de fivela,
os mesmos ou iguais aos que já lhe conhecia.
É a primeira vez que a vejo sair pela porta principal, completamente
uniformizada e tão aparentemente imbuída do espírito colegial. Quase nem a
reconheci quando olhei para ela.
Nas últimas semanas, quando a vim buscar esperei-a no portão lateral, uma
vez que essas saídas, ao contrário da de hoje, não eram autorizadas. Nessas
alturas quando saía para a rua já nem sempre trazia o uniforme completo, ou
se o trazia não vinha com o ar seráfico que agora traz, pelo que sempre me
pareceu igual a si mesma.
Atravessa quase até meio o largo passeio, com o Sol pela frente, antes de se
aperceber de mim.
A mudança é palpável, mesmo à distância de dez metros a que ainda nos
encontramos um do outro.
“Pai!”, grita, começando a correr para mim. “O que estás aqui a fazer? Vieste
buscar-me?”, pergunta.
“Sim, claro. Porquê, não posso? Agora que vives em minha casa já não posso ver-te
durante o dia, é?”, respondo, fingindo-me ofendido. “Ou estavas à espera do teu
namorado?”
Ela muda repentinamente de cor; o embaraço visível.
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“Não, não é nada disso. Tu sabes que eu não tenho nenhum namorado”, diz com
um sorriso acanhado. “Não estava à espera que viesses buscar-me, é só isso. Como
vou para a modista, pensei que fosse a mãe ou o Gonçalo.”
“Bom, como vez, nenhum deles aqui está”, digo, sacudindo o cachimbo de
encontro ao salto. “Anda, salta para a moto que eu levo-te a casa da modista.”
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Entre provas de vestidos na sexta, idas ao cabeleireiro no sábado de manhã,
juntamente com a Filipa e uma outra cujo nome já esqueci, uma cerimónia de
vestir que Luis XIV teria aprovado, e muita nervoseira (mais por causa de
um rapaz chamado Hugo do que por outra coisa) fomo-nos aproximando da
hora do baile.
Contagiada pelos preparativos ou, se calhar, apenas por ser mulher e não
querer resistir a um baile e a um vestido novo, a Janna pôs para trás das
costas o receio de se ver subitamente cara a cara com o Gonçalo e decidiu vir
connosco.
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O pomposamente chamado Palácio dos Marqueses de Catalazete, uma
construção dos anos trinta do século passado a imitar o estilo dos anos
oitenta do anterior, fica situado no meio de um parque ajardinado entre
Cascais e Sintra. Hoje parece ter reencontrado o fausto de outros tempos –
mesmo que seja só por algumas horas e fruto de um contrato de
arrendamento mais do que temporário com a associação que organiza o
baile.
Um arrumador de libré, com o que presumo sejam as cores do nosso suposto
anfitrião, e com a cabeça enfiada numa peruca empoada que já conheceu
melhores dias, tira-me o carro das mãos e vai arrumá-lo em sítio
desconhecido, algures no meio do parque. Outro tipo, também de libré mas
com cores de outra casa – talvez no Anahori não houvesse fardas que
chegassem com as cores de Catalazete... – entrega-me um recibo pelo carro
que o outro foi esconder.
Subimos a escadaria de granito, onde a cada dois degraus estão plantados
mais tipos em farpelas semelhantes às dos que se ocupam dos automóveis,
cruzamos o átrio e juntamo-nos à curta fila que se vai formando à entrada do
salão, enquanto dois mestres de cerimónia, igualmente de libré e peruca mas
com muitos mais dourados, anunciam, ao desafio, quem vai chegando
àqueles que já lá estão.
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A parte formal do baile é, felizmente, de curta duração. Não creio que tenha
alguma vez visto tanta gente dançar tão mal.
Embora tenha sido muito agradável dançar com a Catarina. Apesar de nunca
termos chegado a praticar juntos, ela parece fazê-lo tão naturalmente como
respira – como a minha mãe, aliás, com quem aprendi.
Dancei com ela as danças da praxe e depois foi-me pedido que cedesse a vez,
e pela cara de satisfação e patente embaraço dela, creio saber quem agora me
substitui.
Quando me dirijo para a Janna, que acabou de dançar com um rapaz
alourado, passo pela Filipa que, rodopiando com um dos muitos cavalheiros
disponíveis, pisca descaradamente o olho à Catarina e a faz ficar ainda mais
vermelha do que já estava.
“Então, que tal o teu par?”, pergunto quando chego ao pé da Janna e lhe
rodeio a cintura com um braço.
“É simpático, mas demasiado jovem para mim. Tu és bem mais a meu gosto”, diz
com um sorriso maroto, ao mesmo tempo que me dá um encontrão com a
anca e se encosta a mim. “Sabes, estou a gostar de ter vindo. Não sei do que estava
à espera, mas não era isto”, acrescenta.
Eu também tenho de reconhecer que me sinto agradavelmente surpreendido.
Embora o ambiente geral seja nitidamente forçado, com uma série de
meninos e meninas a brincar aos crescidos sob o olhar vigilante dos
progenitores babados, nem todo o salão parece seguir as mesmas regras e há
muita gente que dir-se-ia estar genuinamente a divertir-se. Entre folhos, saias
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de merengue, casacas compridas que podiam assentar melhor, laços prestes
a desfazer-se e alguns penteados que começam a precisar de retoque, vêemse muitos sorrisos e ouvem-se várias gargalhadas bem-dispostas.
“Olá, Jakez. Vejo que já arranjou companhia”, ouço dizer atrás de mim.
Voltamo-nos para deparar com a Mima e com o Gonçalo, que nos olham com
ar superior.
Ainda penso em dar dois pares de estalos ao Gonçalo, assim, só para começo
de hostilidades. Mas depois mudo de ideias. O baile é da Catarina, não vale a
pena estragar-lhe a noite.
“Viva, Mima”, digo, olhando para ela e ignorando o Gonçalo que fita a Janna
como que a tentar perceber de onde a conhece, enquanto ela se faz
despercebida. “Já viste a Catarina, que bonita que está?”, pergunto, sem lhe dar
mais satisfações.
“Sim, vi-a quando dançavam os dois. Mas depois perdi-a. Sabe onde está? Quero
apresentá-la a umas pessoas. Só porque ela vai viver consigo, não é razão para deixar
de conhecer quem deve”, responde sarcástica.
Resolvo não lhe dar troco.
“Creio que ainda está a dançar”, digo. “Afinal, foi para isso que aqui veio, não?”,
acrescento, sabendo que a vou irritar.
“Você há-de ser sempre o mesmo, Jakez. O baile é a coisa menos importante deste
evento”, retorque, o olhar rutilante, e afasta-se sem se despedir. O Gonçalo
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segue-a a contragosto, ainda com os olhos fixos na Janna que, por sua vez, o
observa com desprezo.
“Ele não me reconheceu”, diz ela. “Não, espera; parece que agora sim. Acabou de
perceber quem sou.”
Realmente, o Gonçalo parece ter-se recordado de onde a conhece. Os olhos
crescem-lhe para o dobro do tamanho e a cara contorce-se-lhe numa
expressão de surpresa e de receio, perante o rosto de pedra da Janna, que o
continua a fitar com patente desprezo.
Sussurra qualquer coisa ao ouvido da Mima, que olha distraidamente para
nós durante um momento, e depois afasta-se em direcção ao bufete,
deixando-a a conversar com os pais de uma das debutantes.
“E agora, o que fazemos?”, pergunta, voltando-se para mim.
“Nada. Vamos deixá-lo saber o que é o medo, por algum tempo. Ele é um tipo
esperto, deve ter certamente muita imaginação”, respondo, com um encolher de
ombros.
“Anda, vamos dançar”, sugiro, quando a pequena orquestra recomeça a tocar.
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Dançamos até à pausa seguinte e depois pego na mão da Janna e saímos para
apanhar ar fresco. Caminhamos de braço dado enquanto vou enchendo o
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cachimbo, apreciando o ar fresco de uma noite sem nuvens. Passamos por
um parzito que se beija furiosamente encostado a um varandim e a Janna
encosta-se mais a mim, quase ao mesmo tempo que reparo que a rapariga é a
Mituxa, a colega de escola da Catarina. Sobressalta-se quando nos vê;
primeiro tenta esconder-se atrás do par, mas depois muda de ideia quando
percebe que nós também a vimos.
“Olá, Mituxa. Viste a Catarina?”, pergunto, casualmente.
Vermelha que nem um tomate, passa para a frente do rapaz que, tão
vermelho quanto ela, não se faz rogado, incerto ainda da sua situação.
“N-não, Dr. Jakez. Quer dizer, sim. Vi-a há um bocado, com o irmão da Filipa.
Estavam sentados no coreto. A conversar”, pareceu-lhe ser conveniente
acrescentar.
Faço-lhe adeus e continuamos em frente. Descemos para o jardim e
passeamos por entre as sebes que dividem os diversos canteiros, sem que
nenhum de nós queira falar, aproveitando a companhia um do outro. Passo o
braço por cima dos ombros da Janna e puxo-a para mim, sentindo o seu
corpo de encontro ao meu e o subtil perfume a baunilha que se liberta da sua
pele e se mistura com o aroma do tabaco que se eleva do fornilho ainda por
acender.
Encontramos mais pares entretidos no estudo mútuo da anatomia humana,
mas nenhum parece ter dado por nós – ou então fingiram que não deram.
Aproveitando o facto de os progenitores preferirem o ar condicionado do
salão e a companhia uns dos outros, os filhos parecem achar melhor
conhecerem-se bem, ou pelo menos mais intimamente.
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Sem os querermos incomodar, afastamo-nos de uns e outros e acabamos por
ir parar ao pé do coreto, onde a Mituxa disse estar a Catarina.
“Achas boa ideia chamar por eles?”, pergunta a Janna, embora o tom da
pergunta pressuponha já que quer ouvir uma resposta negativa.
“Nâ. Deixa-os estar. Ele parece ser um miúdo simpático e a Catarina tem uma
paixoneta por ele. Pode ser que deixando-os sossegados eles se entendam”, digo,
perfeitamente confiante que a Catarina sabe o que faz, e acrescento: “Anda,
vamos também procurar um canto para nos pormos na marmelada.”
Ela ri-se bem disposta enquanto eu enfio o cachimbo cheio no bolso, incerto
agora de o querer fumar nesta altura. Abre a boca para me responder, mas é
interrompida por um suspiro que nos chega do coreto. Olha para mim com
ar maroto e temos os dois de sufocar o riso.
“Parecem adiantados”, diz.
Pois, penso eu, já não muito seguro de que a minha filha de quinze anos
saiba o que faz. Mostro-lhe um sorriso amarelo e pego-lhe novamente no
braço para nos afastarmos, quando novo som vindo no coreto me faz estacar.
Um gemido de dor chega até nós.
Entreolhamo-nos e percebemos imediatamente que alguma coisa está mal.
Percorremos rapidamente a distância que nos separa do coreto e subo os
cinco degraus de um salto, parando no cimo para ver o que me espera.
No chão está um vulto, formas indistinguíveis sob o coreto não iluminado,
numa noite sem lua.
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“Catarina!”, chamo e aproximo-me, juntamente com a Janna que, entretanto,
chegou ao pé de mim. Nos segundos que se seguem, pergunto-me o que
poderá ter acontecido; digo a mim mesmo que o rapaz parecia simpático, e
como é que posso ter-me deixado enganar desta maneira.
Mas, quando chegamos suficientemente perto, percebo que não é a Catarina.
O meu suspiro de alívio é um nado-morto, quando me dou conta que a
Catarina não está em parte nenhuma do coreto.
Entretanto, o irmão da Filipa tenta, em vão, levantar-se. Os braços parecem
não lhe obedecer quando tenta erguer-se da posição em que está. Um fio de
sangue corre-lhe ao longo da fronte.
“Hugo! O que aconteceu?”, pergunto baixando-me para o ajudar.
Ele vira lentamente o rosto e fita-me com olhos desfocados, como se tentasse
combater um ataque de sono.
“Não sei... Nós estávamos a conversar... A Catarina olhou para trás de mim e gritou
assustada; quando tentei voltar-me senti uma dor na cabeça e nada mais. A Catarina,
onde está?”
“Não sei, rapaz. Deixa-te estar aqui, eu vou ver dela”, digo, subitamente muito
preocupado. “Janna, fica com ele. Toma o meu telefone, liga para o 112 e pede a
polícia e uma ambulância. Dá-lhes o endereço que aqui vem,” Passo-lhe o telefone
e convite amarrotado que tiro do bolso do casaco e saio em corrida para o
portão lateral do parque, distante uns quinhentos metros por meio do
bosque ajardinado, pensando que quem a levou só o poderá ter feito para aí,
pois o outro portão fica muito perto da casa e está demasiado à vista.
512
A cena que se me depara confirma os meus receios. Os portões estão
escancarados e não há sinal do segurança. O piso de cascalho da alameda
apresenta sinais de um carro que arrancou violentamente; marcas profundas
de pneus largos e a distância entre elas parecem indicar um carro grande,
embora não faça a mais pequena ideia de qual.
Examino rapidamente o local à procura de quaisquer pistas que me
indiquem qualquer coisa. Mas não. Além dos sulcos indefinidos deixados
pelos pneus nada mais é visível.
Desisto e decido voltar para junto da Janna e do Hugo. Cada vez mais
preocupado, começo a fechar os portões sem pensar muito no que estou a
fazer, mas um deles empanca numa bota que sai de um dos arbustos
plantados ao longo do caminho.
Debruço-me para ver de quem se trata e vejo o corpo inerte de um rapaz com
vinte e poucos anos, vestido com a farda verde-azeitona cheia de dourados
da firma de segurança contratada para o baile. Uma mancha escura cobre-lhe
o peito e o ventre. Dir-se-ia já não estar a perder sangue; o que empapa a
camisa já começou a adquirir a pastosidade inicial da coagulação, mas o
rapaz não dá sinais de vida. Procuro-lhe o pulso e acabo por encontrá-lo,
embora muito fraco. Olho à minha volta, mas não vejo ninguém. Esta zona
do parque é mal iluminada e pouco procurada por passeantes.
Decido que talvez seja melhor transportá-lo para o coreto, em vez de o deixar
aqui sozinho à espera da ambulância, que espero já venha a caminho, e vou
curvar-me para o levantar quando ouço um restolhar de folhas à minha
frente.
513
Tentando não dar a entender que ouvi qualquer coisa, procuro situar de
onde veio o ruído, e levanto-me calmamente. Os arbustos defronte a mim
voltam a mexer ligeiramente, quando a pessoa que se esconde por trás deles
tenta encontrar melhor posição sem dar nas vistas.
Afasto-me pela esquerda, rodeio uma acácia e um carvalho plantados ao
longo do caminho para ir aparecer atrás do grupo de arbustos de onde veio o
ruído. Aproximo-me, lenta e silenciosamente, até conseguir ver para dentro
do círculo formado pelos arbustos: uma rapariga está ajoelhada no chão que
estremece continuamente, com a cara encostada às folhas, e chama com
insistência pelo ferido, sussurrando o seu nome entre lágrimas e soluços.
“Tónì! Tónì! Estás m‟a ouvir? Tóni! Diz que me ouves, pá. Tónì! Ó meu Deus, mas
porque é que isto m‟ avia de acontecer...”
Possivelmente a namorada do rapaz, penso para comigo. Resolvo não perder
mais tempo. Saio do esconderijo onde me encontro, fazendo tanto barulho
quanto possível, para lhe dar tempo para se voltar e ser ela a ver-me
primeiro.
Quando se volta para ver quem vem e me vê, leva as mãos à boca e tenta
soltar um grito, mas não lhe sai som algum da garganta. Encosta-se aos
arbustos, procurando manter a maior distância possível entre mim e ela.
Faço-lhe sinal para se acalmar, mostro-lhe as mãos abertas para que veja que
não lhe quero fazer mal e que não tenho comigo qualquer arma.
514
“Acalma-te, pequena, acalma-te. Quero ajudar-te. Acalma-te. O teu amigo Tóní está
ferido e eu preciso da tua ajuda para o levar daqui”, vou repetindo lentamente à
medida que me aproximo cautelosamente dela.
A pouco e pouco consigo que me ouça e me preste atenção. Pausadamente,
acena que me percebe, ou que concorda comigo, não sei, e eu tomo isso como
sinal de que posso chegar-me ao pé dela.
Ponho um joelho em terra para ficarmos quase ao mesmo nível e baixo-me à
sua frente.
É talvez um pouco mais velha do que a Catarina, com cabelos curtos de um
castanho muito escuro e uns olhos quase negros; uma camisola de mangas
curtas, uma saia de ganga e um par de alpercatas sem meias, parece ser tudo
o que traz vestido. Na fronte tem a marca de uma pancada. Envolve-se nos
braços para tentar controlar a tremedeira, mas sem muito sucesso.
“Shh, tem calma. Não te quero fazer mal”, digo, mantendo os braços abertos e
procurando não lhe tocar. Ela acena que sim novamente.
“Eu chamo-me Jakez. E tu, como te chamas?”, pergunto, para tentar estabelecer
uma qualquer ligação com ela para a fazer sair do choque e na esperança que
tenha visto o que se passou e quem levou a Catarina.
“Márcia... o-o meu nome é Márcia”, consegue dizer, entre soluços.
“Muito bem, Márcia. Olha uma coisa, vais ter de me ajudar, percebes?” Acena que
sim. “Ainda bem. O teu amigo Tóní está muito ferido e precisa de ir para o hospital.
Já vem uma ambulância a caminho, mas vais ter de vir comigo para os trazer aqui,
515
está bem?”, digo, decidindo que talvez seja melhor não o mover, agora que
tenho alguém que sabe onde está.
Ela começa mais uma vez a acenar que sim, um movimento automatizado
que já vinha de trás, mesmo antes de ter acabado de ouvir o que lhe digo.
Mas pára e fita-me com algum desafio:
“E você, onde é que vai?”, pergunta, subitamente desconfiada.
“Eu vou levar-te ao sítio onde devem estar os paramédicos, e a polícia também, mas
depois tenho de me ir embora. Tu viste o que se passou aqui, Márcia? Viste a
rapariga que levaram no carro? Era minha filha, percebes?”
Ela estremece mais violentamente, ao recordar o que se passou. Mas nada
diz. Pego-lhe no braço e faço-a levantar suavemente.
“Anda, vem comigo”, digo, puxando-a gentilmente em direcção ao caminho.
Quando chegamos, penso que é melhor deixar o amigo dela em posição mais
confortável, pergunto-lhe se quer vir comigo mas sacode a cabeça a medo.
Deixo-a no caminho e volto ao local onde o rapaz ainda jaz desacordado.
Dispo a casaca e o colete, enrolo este último num chouriço, coloco-lho por
baixo do pescoço e cubro-o com a casaca, regressando rapidamente para de
onde vim.
“Agora, Márcia, diz-me o que aconteceu?”, inquiro, passando-lhe um braço por
cima dos ombros, tentando dar-lhe algum conforto. Ela continua a tremer, e
embora se enrijeça a princípio, depressa se encosta a mim de modo a
aproveitar o calor que o corpo dela não parece ser capaz de lhe dar, apesar
da amenidade da noite.
516
Explica que o rapaz a tinha convidado para vir passar o turno com ele e
poder assim ver os vestidos de perto. Que estavam a conversar ao pé do
portão quando um carro se aproximou e ela se escondeu, pensando que fosse
o chefe do namorado a fazer uma inspecção.
Diz que o rapaz abriu a porta pequena e saiu ao encontro de quem estava no
automóvel, segundo percebeu, pareciam querer saber para que lado ficava
Monserrate.
Mas, quando o namorado chegou ao pé do carro, ela viu de repente dois
clarões e ouviu dois sopros e ele caiu para o chão.
Diz que ficou paralisada, sem saber o que fazer. Deixou-se ficar onde estava,
enquanto dois homens saiam do carro e abriam os portões com as chaves que
tiraram ao namorado. Falavam uma língua esquisita, que lhe pareceu a que
ouve falar ao casal de Moldavos que moram ao pé dos pais, mas não tem a
certeza.
Depois chegou um senhor vindo de dentro, vestido como eu, que perguntou
qualquer coisa em voz baixa e depois se zangou com os homens e lhes disse
para o seguirem em inglês.
O motorista ficou no carro e estava a dar a volta quando ela reencontrou
força nas pernas e resolveu sair dali para ir buscar ajuda. Mas tropeçou e
bateu com a cabeça num tronco. Quando acordou, reparou no corpo
inanimado do namorado, que os raptores da Catarina devem ter trazido para
dentro. Tentou chamá-lo, sem resposta, e foi quando eu apareci.
517
Ouço-a pacientemente enquanto ela conta a sua história e nos aproximamos
da parte mais frequentada do parque. Tenho medo de a interromper, não vá
ela esquecer qualquer coisa.
Uma explicação começa a formar-se no meu espírito, embora seja tão
absurda que me custe aceitá-la.
“Márcia, sabes de que marca era o carro? E o senhor que veio da festa, como é que ele
era?”, pergunto usando as suas próprias palavras.
“O carro não sei de que marca era. Eu acho que nunca tinha visto um carro assim.
Era grande, como aqueles a que o meu pai costuma chamar banheiras, só que mais
moderno; cinzento, acho eu, e não me lembro de mais nada... ah, sim, acho que tinha
uma estátua qualquer sobre o capot; um gato, parece.” explica, encolhendo os
ombros numa desculpa muda.
“E o senhor?”, insisto, quase sabendo quem ela vai descrever, se o conseguiu
ver, enquanto, ao mesmo tempo, receio que o faça.
“Não sei; era um senhor como outro qualquer. Vestido de preto, com o mesmo casaco
que você trazia.” diz, encolhendo novamente os ombros. “Ah, sim, reparei que
tinha bigode e que era baixinho, mesmo tendo em conta que os outros eram uma
torres, e que vinha a fumar um charuto gordo. Ah, e também que trazia um grande
anel de ouro; tenho a certeza porque se fartou de brilhar à luz dos faróis do carro.”
O que ela diz chega para que eu reconheça a figura do Gonçalo. Grande
pulha! Mas porquê raptar a Catarina? Não consigo sequer começar a
perceber porque o faria, e logo aqui. Mas sei quem mo pode dizer.
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Entretanto, chegamos ao pé do coreto, onde já está uma equipa do INEM e
dois polícias que falam com o pseudo-anfitrião e tomam notas em
antiquados blocos de papel. Um pequeno grupo de mirones juntou-se ao
redor da cena e os comentários em voz baixa inundam o ar à nossa volta.
“O que se passou?”
“Não sei, parece que houve alguém que se sentiu mal.”
“E a polícia, para que veio?”
“Deve ter-lhes cheirado a gratificação, certamente. Ou então, não tinham mais nada
que fazer... É sempre a mesma coisa, quando é preciso nunca aparecem, desmaia um
qualquer e mandam logo dois. Francamente!”
“Olhe, aquele não é o Marquês de Catalazete?”
“É ele é. Ah, mas que elegância. E que distinção, veja a forma altiva como põe os
polícias no lugar que lhes compete? Aquilo sim é nobreza.”
Tento, em vão, descortinar a Janna no meio do pequeno grupo de pessoas
que quase enche o coreto. Estou prestes a desistir e a ir-me embora sem a
avisar, quando alguém me agarra na mão direita.
“Jakez. Ainda bem que voltaste”, diz, suavemente, ao meu lado.
Percebo que ela achou melhor não esperar pela polícia e ser sujeita a
perguntas para as quais não tinha resposta. Afinal de contas, uma
estrangeira é sempre uma suspeita conveniente, especialmente se não puder
explicar cabalmente o que se passou.
519
Digo à Márcia que temos de a deixar e que o melhor é ela ir ter com os
paramédicos e com a polícia e levá-los ao sítio onde deixámos o namorado.
Peço-lhe que não diga nada acerca de mim, se lhe perguntarem acerca da
casaca, que diga que não sabe de nada, que quando saiu de ao pé do rapaz as
roupas não estavam lá. Ela parece perceber as minhas razões. Depois de um
está bem muito sumido, e de um obrigada nitidamente sentido, abre
caminho por entre os mirones e aproxima-se do coreto, aos gritos de:
“Acudam! Está uma pessoa muito ferida ao pé do portão! Acudam!”
Nós aproveitamos o pandemónio que a entrada dela gera na pequena
multidão de curiosos e regressamos ao palácio em passo acelerado. Pelo
caminho explico à Janna o que acabei de ver. Quando lhe falo nas minhas
suspeitas em relação à identidade do raptor, ela suprime um grito de
surpresa.
“Mas não é possível, Jakez! A própria filha adoptiva?”, exclama, chocada.
“Infelizmente, tudo indica que sim. Vamos falar com a Mima e pôr isto tudo a pratos
limpos.”
Encontramo-la na sala do bufete, em conversa com várias pessoas.
“Mima, preciso de falar contigo. Agora”, digo, ao chegar ao pé dela.
Olha-me por cima do ombro.
“Agora não posso, Jakez. Não vê que estou ocupada?”, diz numa voz melosa,
cheia de sarcasmo.
520
“Não há tempo a perder, Mima. Vem comigo.” Pego-lhe no braço e tento afastá-la
suavemente dos outros, mas ela solta-se. “Deixe-me, Jakez! Já lhe disse que agora
não posso. Não seja inconveniente, se faz favor”, exclama em tom de irritação
crescente.
Um dos homens do grupo, resolve fazer de cavalheiro.
“Oiça, amigo, a senhora já disse que não quer ir consigo e pediu que a deixasse em
paz. Por isso, faça o que ela diz.” E tenta afastar-me violentamente,
empurrando-me. Por esta altura eu já estou sem paciência nenhuma. Agarrolhe no braço, torço-lho atrás das costas e atiro-o para cima da mesa, onde vai
aterrar de cabeça numa das muitas travessas com aperitivos dispostas sobre
a toalha branca que a cobre.
Os outros membros do grupo acham o meu comportamento escandaloso e
murmuram que é preciso chamar a segurança, mas eu não lhes presto
atenção, nem tão-pouco lhes dou tempo de fazerem seja o que for.
Pego novamente no braço da Mima, puxo-a para mim e agarrando-a pela
cintura, ponho-a sobre o ombro e levo-a dali, sem ligar aos seus protestos, ou
aos dos seus companheiros de conversa, que continuam a murmurar entre si
e a abanar as cabeças sem quererem acreditar no que vêem, mas sem que
nenhum mexa uma palha, nem sequer para ir chamar a segurança.
Levo a Mima, que entretanto deixou de protestar, para um dos cantos da sala
onde não se encontra ninguém; pouso-a no chão. Os restantes convidados
presentes, depois de terem manifestado algum interesse quando o outro foi
parar em cima da mesa dos aperitivos, voltaram já a dedicar-se às suas
conversas e não nos prestam qualquer atenção.
521
“Sabes para onde foi o Gonçalo, Mima?”, pergunto, enquanto ela, furibunda,
alisa o cabelo.
Ela põe uma expressão ofendida.
“Parece impossível, Jakez. Você faz uma cena, só para me perguntar para onde foi o
Gonçalo?”, pergunta irritada, mas sem querer realmente uma resposta. “Você
faz a mais pequena ideia de quem são as pessoas com quem eu estava a falar? Ou o
cavalheiro que tão gentilmente veio em minha ajuda, só para você o empurrar como
um Neanderthal?”, continua, cada vez mais furibunda.
Interrompo-a.
“Mima, a Catarina desapareceu”, digo, à queima-roupa.
Ela parece hesitar por um momento, mas depressa se recompõe.
“Como, „desapareceu‟? Não sabe onde ela está, quer você dizer”, responde,
sarcástica.
“Não, quero dizer que desapareceu mesmo. Alguém a raptou. E tenho razões muito
fortes para acreditar que o Gonçalo está envolvido.”
“Não diga asneiras, Jakez! O que mais quer? Já a tem a viver consigo, e agora quer
também insultar-nos?”, atira, sibilante, embora os olhos me digam que não
está muito segura de si.
“Mima, eu sei que tu sabes dos negócios sujos do Gonçalo. A tua expressão, quando
ele há pouco te apontou a Janna, não deixou margem para dúvidas. É uma opção tua,
que eu não vou sequer tentar entender, e que não vou perder tempo a criticar. Agora,
o que me interessa é recuperar a nossa filha, antes que alguém lhe faça mal.”
522
“Não acredito no que você está a dizer”, persiste teimosamente, negando, talvez
para si mesma, o que agora é óbvio para mim.
A ansiedade, porém, começa a fazer-me perder a paciência.
“Mima, ouve-me bem. Que tu queiras viver com a cabeça enfiada na areia, é-me
absolutamente indiferente. A vida da Catarina, por outro lado, não é. Diz-me para
onde o Gonçalo a poderá ter levado e não me faças perder mais tempo, por favor!”,
peço, e depois continuo em tom menos agressivo. “Ela é tua filha também.
Como podes deixar que a usem desta maneira? Porque tu sabes o que lhe vai
acontecer, não sabes?”
Ela parece cada vez menos segura.
“Não é verdade! Não lhe vai acontecer nada! O Gonçalo disse que precisava apenas
de uma amostra de ADN. Ela não é como as outras”, protesta quase gritando.
As pessoas à nossa volta olham-nos por cima do ombro e afastam-se,
desagradados com aquela exibição de emoções descontroladas.
“Mima, se se tratasse apenas de uma colheita de material genético, não teria sido
preciso raptá-la. Qualquer desculpa de consulta médica teria servido para isso”,
tento explicar-lhe, o mais calmamente que posso. “Tu sabes para onde ele a
levou, não sabes? Diz-me, por favor. Antes que seja tarde demais.”
Ela fita-me com os olhos húmidos e cheios de raiva, porque sabe que falo
verdade, embora lhe custe a aceitar que tenha de ouvir de mim que o marido
lhe mentiu.
523
Por um momento que parece interminável ficamos assim. Olhos nos olhos,
ela procurando aceitar o que lhe digo, eu tentando mostrar-lhe que,
infelizmente, não estou a contar-lhe histórias.
Finalmente cede. Acena que sim e o queixo cai-lhe de encontro ao peito.
“Para o clube, ele deve tê-la levado para o clube”, admite, derrotada. “Antes de
virmos para aqui ouvi-o falar ao telefone acerca de um transporte especial para hoje à
noite. Pareceu-me estranho, porque não havia nada programado. Mas agora faz
sentido”, diz, numa raiva crescente. “Maldito seja! Como é que me pode fazer isto
a mim?! Levar a minha filha para um sítio daqueles?”
Olho para ela, espantado. Nunca me tinha apercebido da extensão do seu
egoísmo. Vê o rapto da Catarina como uma afronta que lhe é feita a ela
pessoalmente, e não como algo que acontece à nossa filha.
A Janna está de boca aberta.
Num repente, antes que eu possa fazer seja o que for – supondo que o teria
feito, se tivesse podido – levanta a mão espalmada e dá um valente tabefe à
Mima, que a faz desequilibrar de encontro à parede. As poucas pessoas que
ainda se mantinham perto de nós, descobrem subitamente outros sítios mais
interessantes onde continuar as conversas que estão a ter.
“Conasse! Tu est vraiment degoulasse”, diz-lhe, e afasta-se voltando-lhe as
costas.
A Mima recupera ligeiramente a pose e põe-se de pé, apoiando-se à parede.
A expressão arrogante ainda não lhe deixou o rosto, mas os rastos negros de
524
rimel que o mascarram de cima a baixo e a mão da Janna ainda impressa a
vermelho, fazem-na parecer apenas ridícula.
“Eu-eu não sabia, Jakez. Acredite. Eu não deixaria que fizessem mal à Catarina”,
afirma, protestando a sua inocência; mais para se convencer a si mesma do
que para me convencer a mim.
“O Gonçalo pediu apenas para fazer uma colheita do ADN da Catarina, para poder
produzir órgãos para ele. Não confiava nas garantias que lhe davam acerca da
segurança dos outros, queria ter a certeza que sabia de onde vinha o material genético
de ambos os dadores...” Pára a meio da frase, leva a mão à boca em surpresa e
exclama: “Oh! Você acha que ele a vai engravidar?”
Francamente!
“Olha, Mima, vai para o raio que te parta”, atiro-lhe, antes de lhe voltar as costas
e sair dali.
===================¤==================
Meti a Janna num táxi para casa e segui, a toda a velocidade, para Santos.
Conduzi o carro como um louco, com a preocupação de já chegar tarde,
receando que a já tivessem levado do clube. A razão dizia-me que só o
fariam depois de fechar, longe de olhares indiscretos. Mas nada me garante
que os tipos sejam racionais.
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Felizmente, apesar de ter feito a maior parte do caminho acima dos duzentos
à hora, nenhuma patrulha da Guarda ou da Polícia se interessou por mim.
Chego à doca de Santos e largo o carro no estacionamento ao pé do clube.
A gata virtual continua a menear-se no alto da sua coluna de luz, borrifandose eternamente com perfume e ajeitando a lingerie. Dirijo-me para ela
decidido a levar tudo à frente e a tirar dali da Catarina. A meio do caminho
ainda penso que talvez fosse boa ideia ter comigo qualquer coisa com que
me defender, mas estou demasiado agitado para dar ouvidos à razão.
O Leonel sopra-me um assobio agachado atrás de um Range Rover.
“O que estás aqui a fazer?”, pergunto, entre dentes, quando me junto a ele.
“A Janna telefonou-me do táxi e disse-me onde vinhas”, diz, com um sorriso pasta
de dentes, ao mesmo tempo que mantém os olhos fixos na entrada para além
da sebe que nos esconde de olhares indiscretos. “Não são os tipos do costume à
porta. Quando aqui cheguei fui fazer um pequeno reconhecimento e deparei com dois
bacamartes, quase tão largos quanto altos. E mais, estão ambos armados.”
“Só faltava mais essa!”
Mal acabo de falar, ele tira dos bolsos do blusão duas HK, uma nove e uma
doze e passa-me a doze para a mão dizendo que lhe tinha parecido que iriam
ser precisas. Extraio o carregador e vejo se está cheio, mais por força de
hábito do que por julgar que possa não estar, e enfio uma bala na câmara.
“Tens-te fartado de arejar a colecção”, digo, olhando para a sebe e tentando
descortinar qualquer coisa para além dela.
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“É, começavam a ter musgo”, riposta o Leonel, procurando também perceber o
que se passa do outro lado. “Qual é o plano agora, patrão?”
“Não sei, não tenho um plano. Pensei apenas em entrar pela porta adentro e correr
tudo à estalada”, digo, ligeiramente irritado comigo próprio. “Não se pode dizer
que seja uma grande ideia, pois não?”
“Não, nem por isso. Aqueles dois paquidermes podem ter olho vivo e lançar o alarme
antes de lhes tratarmos da saúde. Mas também não vejo que outras opções possam
existir”, responde pensativo. “Ouve, e se tentássemos as traseiras? A entrada é
partilhada com o restaurante do lado e podemos lá chegar seguindo ao longo do cais,
sem que estes dois se apercebam.”
Faço-lhe sinal que sim e contornamos o Range Rover pela frente,
caminhando pelo carreiro de lajes que nos separam do rio a coberto dos
muitos outros carros que, ao sábado, sempre enchem este espaço.
Enquanto avançamos sub-repticiamente ao longo dos trinta metros que nos
separam do nosso objectivo, penso que talvez não haja nenhuma razão para
o estarmos a fazer, afinal, nada me diz que os dois tipos novos que estão à
porta lá estejam por causa de mim.
Mas também nada me diz que não estejam.
O portão que dá acesso ao pátio interior para onde dão as portas das
cozinhas parece não estar guardado. Rapidamente, atravessamos a faixa de
paralelepípedos de basalto entre o cais e o portão e entramos no pátio.
O homem vem a sair da porta das traseiras d‟A Gata Perfumada ainda às
voltas com os botões da braguilha e quase choca connosco. Apercebe-se que
527
há mais alguém no pátio, larga a braguilha, levanta a cabeça e leva a mão
direita à anca onde tem um colt 45 com aspecto de muito uso, ao mesmo
tempo que começa a abrir a boca para gritar.
Mas não chega a fazê-lo.
Um golpe ao esófago dado com a mão em riste impede-o de fazer qualquer
som, enquanto o seguimento com o cotovelo à nuca o deixa estendido no
chão.
Atiramos com ele para trás dos contentores do lixo e entramos pela porta por
onde saiu.
A cozinha está deserta, o que não é de estranhar tendo em conta o pouco uso
que deve ter num sítio como este. A batida sincopada e os gritos e
exclamações de incitamento que nos chegam através das paredes dizem-nos
que o espectáculo deve estar a decorrer.
Melhor assim. Quanto mais ruído houver mais possibilidades temos de
passar despercebidos.
De armas em riste, saímos da cozinha adormecida para o corredor mal
iluminado que faz a ligação entre o salão e as casas de banho, e que leva
também ao gabinete do gerente, que agora sabemos ser mesmo o Gonçalo.
Encostamo-nos à porta, mas nada conseguimos ouvir.
Faço rodar suavemente a maçaneta. A porta blindada roda silenciosamente
em dobradiças bem oleadas, e entramos.
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A sala está quase às escuras. A única fonte de luz é a janela de vidro
martelado, que deixa passar a parca claridade de um candeeiro de rua.
De bruços sobre a secretária em mogno maciço está o Gonçalo. Pelo tampo
de couro claro alastra lentamente uma mancha escura, decorada aqui e ali
com flocos de matéria mais clara de aspecto mais ou menos esponjoso.
Guardo a HK e sinto-lhe a carótida, mas ele está tão morto quanto parece.
O corpo quente, porém, e o charuto quase inteiro que ainda lhe fumega
lentamente entre os dedos da mão estendida sobre a secretária, indicam que
não o devem ter liquidado há muito.
Quem o fez, fê-lo pelas costas. Ele nem se deve ter apercebido, entretido que
talvez estivesse a acabar de acender o charuto. O Montblanc que o Leonel
acaba de pisar confirma isso mesmo.
A sorte do Gonçalo faz-me sentir subitamente apreensivo. O motivo porque
ele fez raptar a Catarina, por mais torpe que fosse, era uma garantia de que
ele a manteria viva e incólume – pelo menos até conseguir o que queria.
Com o Gonçalo fora de cena, essa garantia deixa de existir.
“E agora?”, pergunta-me, em surdina, o Leonel.
“Sei tanto como tu. Vai ser preciso descobrirmos o paradeiro da Catarina sozinhos
porque este já não nos pode ajudar”, digo, tentando manter-me calmo.
“Ela deve estar aqui. De outro modo, porque teria ele vindo para cá?”
“Sim. Mas onde? Há alguma outra sala antes do bar?”
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O Leonel abana a cabeça de imediato.
“Não. Tenho a certeza absoluta. O átrio e o bar são de facto a mesma sala, dividida
por uma parede falsa. Há apenas uma toilette do lado esquerdo, mas tem somente a
porta que dá para o bar.”
“Então deveria estar deste lado...”
Não acabo de falar. Ouve-se um ligeiro besourar de um motor eléctrico e
uma das estantes do lado direito põe-se em movimento, rodando sobre
gonzos como uma porta.
O Leonel está mais perto da parede e de um salto coloca-se atrás da estante.
Eu encosto-me às sombras atrás da secretária, procurando passar
despercebido, apesar do branco da camisa saltar à vista na parca
luminosidade da sala.
No rectângulo de luz que se forma quando a estante acaba de rodar recortase uma figura que acende languidamente um cigarro, chupando por ele com
a sofreguidão do vício há muito insatisfeito. Depois da primeira dose de
nicotina, passa a ombreira da porta dissimulada, entra na sala e vai ter com
punho do Leonel, que o atira de encontro à estante para depois escorregar
desacordado para o chão.
“Queres apostar que encontramos a Catarina no sítio de onde este veio?”, desafia,
enquanto amarra o outro servindo-se do cinto e dos atacadores dos sapatos e
lhe enfia a fralda da camisa na boca. “Assim não se põe aos gritos”, diz,
declarando-se satisfeito com o trabalho.
530
Vendo que a chave está na porta, fecho a sala por dentro e deixo a chave na
ranhura, impedindo que alguém use outra para entrar.
“E por aqui também ninguém passa, sem deitar a porta abaixo”, digo.
“Vamos?”, pergunto, enquanto tiro a HK da faixa que tenho em torno da
cintura e a armo novamente.
O pequeno compartimento por detrás da estante dá para um lanço em
caracol de escadas largas em pedra, inseridas num poço em tijolo
monobloco, com aspecto de estar ali há muito mais anos do que o resto do
edifício, provavelmente restos do tempo em que toda esta zona eram
armazéns de transitários ou das alfândegas. A iluminação, porém, é de
instalação recente; dois tubos flexíveis de néon a baixa intensidade,
colocados a meio do tecto abobadado do poço, seguem-lhe o contorno até ao
fundo.
Começo a descer, com o Leonel imediatamente atrás de mim, tentando fazer
o menor barulho possível apesar do efeito de eco, que amplifica e distorce as
vozes vindas de baixo.
Ao fundo, uma porta estanque em aço, semelhante às que se encontram a
separar porões de navios e tão antiga quanto as escadas. Entreaberta, deixa
passar alguma luminosidade do compartimento contíguo.
Silenciosamente, encostamo-nos à parede junto à porta. Tento ver o que se
passa para além dela, mas nada consigo descortinar além do brilho agreste
de lâmpadas fluorescentes, reflectido em paredes brancas.
As vozes chegam-nos agora mais nítidas.
531
“Essas seis são para meter nas bolsas de transporte e para entregar ao submarino que
as vem buscar esta noite. Percebes?”
Sinto uma estranha sensação ao ouvir estas palavras, numa voz arrogante e
desagradável, e o olhar curioso do Leonel confirma-me o pensamento que
tive ao ouvi-las.
O comendador não se importa de sujar as mãos, é ele mesmo quem dá as
ordens.
Ou talvez o faça apenas por o Gonçalo ter sido subitamente forçado a
apresentar demissão.
Pouco importa, porém, a voz é dele, conforme me assegura o acenar de
cabeça do Leonel, em resposta à minha interrogação muda.
No compartimento para além da porta, a voz do comendador volta a fazer-se
ouvir.
“A miúda, porém...” Interrompe-se, e continua em tom mais irritado. “Que
imbecil, aquele Gonçalo! Eu sempre achei que nos iria dar problemas com as ideias
parvas dele! Bom, agora também já não empata a vida a mais ninguém.”
Não o vejo, mas pelo desprezo que lhe ouço na voz dir-se-ia estar a referir-se
ao conteúdo de um qualquer caixote de lixo.
“A miúda livras-te dela, percebes? Viola-a, dá-lhe uns quantos tabefes para a marcar
bem, torce-lhe o pescoço e depois atira-a para um sítio qualquer onde a possam
encontrar. Ah, deixa-lhe na mão uma coisa qualquer do Gonçalo, o telemóvel, ou o
anel; assim fica encontrado o culpado e deixam de andar à procura. Importante, não
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se esqueçam de usar borrachas e luvas. Não queremos que haja outras provas que
confundam o cheiro aos cães. Percebeste bem? Pohnyatiui?”
“Da, boss, ya pohnimahya!”, responde-lhe uma voz com sotaque das estepes. E
continua, procurando talvez precisar qualquer coisa das ordens que lhe
foram dadas.
Mas eu já não lhe presto atenção.
A miúda não pode ser outra que não a Catarina e ouvi-lo determinar assim
friamente o seu destino faz-me entrar em ebulição.
Com a HK12 em riste, mal dando tempo ao Leonel de se preparar para me
seguir, empurro violentamente a porta e entro de rompante no
compartimento além desta.
Além do comendador, estão outros cinco homens dentro do compartimento.
Um é o que acaba de receber as ordens, enquanto os outros quatro parecem
afadigar-se em torno do que parecem ser cilindros arredondados em plástico
transparente, executando as ordens que o primeiro acabou de lhes
retransmitir.
Olham para nós surpresos, como se não percebessem bem o que estamos ali
a fazer, nem vissem as armas que lhes apontamos.
O comendador e o seu interlocutor são os primeiros a reagir.
“Matem-nos! Obivahy Iukhs!” O mesmo comando ouve-se a duas vozes e
outras tantas línguas.
Mas são todos demasiado lentos.
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O mais próximo de nós cai com um buraco pequeno na testa e outro muito
maior na parte de trás do crânio, antes mesmo de acabar de pronunciar a
ordem para nos liquidarem. E os outros quatro vão pelo mesmo caminho,
enquanto tentam, atabalhoadamente, puxar pelas armas que têm no cinto ou
deitar a mão às pistolas-metralhadoras que, descuidadamente, deixaram
abandonadas encostadas a uma parede.
O comendador não se dá sequer ao trabalho de resistir.
Após ter dado ordem de nos liquidar, afasta-se calmamente para um dos
cantos, ao pé de uma lâmpada que pisca em vermelho-vivo, observando,
friamente, enquanto os outros cinco se fazem matar.
Quando lhe apontamos as armas, olha-nos com uma arrogância e um
desprezo infinitos.
“Vocês não sabem com quem se estão a meter. Saiam agora e poderão ainda conservar
as vossas vidas desgraçadas”, ameaça, tranquilo. “Se me acontecer seja o que for,
garanto-vos que, não só vocês não ficarão impunes, como também alguém muito
criativo se ocupará das vossas miseráveis famílias”, termina, com um sorriso
sardónico nos lábios, encostando-se, languidamente, à parede forrada a
tijoleira branca e cruzando os braços.
“Já „alguém‟ se ocupou da minha famìlia, espécie de energúmeno!”, atiro-lhe, num
ataque de raiva mal contida, mantendo-o na mira da HK que seguro com as
duas mãos, enquanto com o queixo indico a forma imóvel da Catarina ao
Leonel, ainda vestida com o que levou ao baile, deitada de lado sobre uma
mesa de observação semelhante às de um hospital, no fundo do
compartimento.
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Ele segue o Leonel com o olhar, quando este se dirige à mesa onde está a
minha filha para a observar, enquanto eu mantenho o comendador sob
vigilância.
“Está tudo em ordem, Jak. Ela está apenas desacordada”, informa, para meu
conforto.
O comendador limita-se a arquear uma sobrancelha, como se recordasse um
pormenor insignificante de uma história que alguém lhe tivesse contado.
“Sim, na verdade, há realmente uma certa parecença”, concede, sarcástico.
“Especialmente com a avó, na época em que eu a conheci”, diz em voz sibilina,
fitando-me nos olhos, desafiador.
O choque é demasiado para que consiga sequer manter uma aparência de
calma. Baixo a arma e olho-o sem querer acreditar no que ouço.
“Tu-tu sabes quem é a Catarina?... E sabes quem eu sou? E mesmo assim deste
ordem para a violarem e matarem?! Grande cabrão! Não sei o que me impede de...”,
grito, erguendo mais uma vez a HK e apontando-lha à cabeça.
“Então, então, Jakez, ou lá como te chamas. Não serias capaz de fazer mal ao teu
velho pai, pois não?”, pergunta em tom gelado, a voz pesada de cinismo, um
sorriso trocista curvando-lhe os lábios finos.
“Pai?... Pai? Tu não és digno desse nome, javardo! Para se ser pai de alguém não
basta contribuir com metade da composição genética; é preciso dar muito mais do que
isso, e tu demonstraste, há muitos anos, não estar à altura”, riposto, recuperando
parte da compostura que me fizera perder. “Como é que alguém pode ser sacana
ao ponto de dar ordem para violarem e matarem a própria neta? Ou condenar
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qualquer destas desgraçadas a uma gravidez permanente, para satisfazer os caprichos
hedonistas de uns quantos degenerados? Tu és um monstro da pior espécie!”
“Vejo que estás bem informado. Pergunto-me onde...”, começa, com alguma
surpresa na voz, mas depois abandona o que ia a dizer. “Mas, monstro, eu?
Não, meu rapaz, estás enganado. Sou apenas um homem de negócios que fornece um
produto que tem procura.”
“Produto? Procura? Como podes sequer tentar justificar o que fazes?!”, interrogome, enojado, sentindo a raiva subir por mim acima, enquanto os escrúpulos
fazem o caminho inverso. “As raparigas a que chamas „produto‟ e que forneces a
quem te paga são condenadas a uma vida muito pior que a morte. E os filhos que lhes
fazem não chegam sequer a viver realmente. Tudo para que alguns marmanjos com
dinheiro se possam comprar peças novas a retalho e viver mais uns anos ao estilo a
que se habituaram. Mas isto sabe-lo, certamente? Um homem de negócios do teu
gabarito não ia deixar de querer saber qual a aplicação do produto que fornece”,
atiro-lhe, com todo o sarcasmo que consigo demonstrar, sentindo-me, ao
mesmo tempo, estupidamente infantil por o fazer.
Ele encolhe os ombros.
“Assim é a vida. Há sempre quem tenha de se sacrificar para que outros possam
continuar a viver. E, „antes os outros que eu‟, é como se diz desde sempre, não é? Tu
deves sabê-lo bastante bem, tendo passado vários anos da tua vida numa ocupação
cuja principal razão de ser é matar outros para os impedir de conseguir o que
querem, evitando ao mesmo tempo que nos matem a nós.” Volta a encolher os
ombros cinicamente. “E depois, quem são estas mulheres, realmente? Ninguém;
nada, menos que nada. A maior parte são prostitutas ou perto disso, que acabariam
mortas de uma forma ou de outra, após alguns anos de uma vida totalmente
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infrutífera; embora, provavelmente, não sem antes terem contagiado uma série de
pobres diabos com doenças venéreas, que estes depois passariam às mulheres que, por
sua vez, as dariam aos amantes. Ninguém quer saber delas! Talvez haja quem se
interrogue para onde foram quando as despachamos, mas depressa as esquecem, pois
a sua principal característica é precisamente essa. São tão fáceis de esquecer como de
utilizar, e mais fáceis ainda de substituir pela nova que acabou de chegar”, explica,
arrogante. “Ou pensavas que alguém se preocupava realmente com a sua sorte?
Sim, de vez em quando chegam-nos pedidos de informações acerca desta ou daquela
tipa, algumas usadas por nós outras não, mas não passam disso mesmo; pedidos de
informações, passos burocráticos que têm de ser dados porque um regulamento
qualquer assim o exige. Nada mais. Em todos estes anos nunca dei por um inquérito
chegar mais longe...”, diz, e depois acrescenta, com um sorriso sardónico,
claramente satisfeito consigo mesmo: “E nem sequer tem sido necessário
pressionar ou pagar muito nesse sentido.”
“És nojento!”, lanço-lhe à cara, sabendo, porém, ser bem verdade o que ele
diz, acerca da falta de interesse suscitada pelos desaparecimentos de
mulheres de vida itinerante ou profissão ligeiramente duvidosa. As polícias
acabam por ter outras coisas de que se ocupar, e se alguém de importância,
como o comendador, lhes diz que o assunto não tem interesse deixam de lhe
prestar atenção. Lembro-me da conversa que tive com o Miguel acerca do
desaparecimento da filha, que ninguém parece ter sido capaz de solucionar,
apesar da insistência dele e do detective que contratou para a procurar.
Imagino que uma que não tivesse quem se interessasse por ela teria visto o
inquérito encerrado muito antes.
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“Não, não, meu rapaz; realista, apenas”, responde, falsamente prazenteiro, de
sorriso nos lábios, ainda encostado à parede, como se estivesse a falar do
tempo numa qualquer praça de aldeia.
“E deixa de me chamar „meu rapaz‟! Há muito tempo que deixei de ser um rapaz e,
enquanto o fui, nunca fui o „teu‟ rapaz. A forma como trataste a minha mãe deixou
isso bem claro!”, volto a elevar a voz, sem o querer, irritado comigo mesmo
por o fazer e por deixar que, após tantos anos, o comendador ainda me faça
perder o controle. Sinto-me cada vez mais próximo de me tornar parricida,
mesmo que apenas formalmente, dadas as circunstâncias. O homem é tão
desprezível como sempre pensei que fosse.
“Jak, deixa de perder tempo com esse balde-de-merda e vamos tratar de levar a
Catarina e as outras daqui para fora”, interrompe o Leonel, desviando a minha
atenção e fazendo com que me acalme imediatamente ao dar atenção a
assuntos mais importantes. “Talvez seja melhor chamar os tipos do Vega, porque
eu não faço a mais pequena ideia como se desligam estes casulos. Não se parecem
nada com os que vimos na Albânia ou a bordo.”
Mantendo o comendador sob mira da HK, dirijo-me ao casulo mais próximo
da Catarina e vejo que o Leonel tem razão. Ao contrário dos que vimos
anteriormente, bojudos e de estrutura sólida, estes parecem ser feitos de uma
película transparente, plástico ou outro material, que, quando vazia parece
amorfa e, quando cheia, com a sua forma redonda e alongada, lembra ainda
mais um casulo do que os anteriores.
Diferentemente daqueles, porém, nenhum painel de controlo é visível.
Situado na parte superior do casulo, sobre a cabeça das raparigas, inserido
na película que as envolve, pode ver-se um monitor quadrangular que pulsa
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em tom verde a um ritmo muito baixo, e em cujo canto inferior esquerdo
correm os números de uma contagem crescente e os de uma decrescente –
ambas presumivelmente iniciadas quando o casulo foi ligado.
Nada mais.
Nenhum teclado ou botão aparente que possa servir para o desligar. Aliás,
nem tão pouco se percebe por onde abrem.
“Já viste que não se lhes vê qualquer abertura?”, pergunta o Leonel, obviamente
à procura do mesmo que eu. “A coisa parece ter sido feita num molde, de uma
peça só e já com elas dentro.”
“Pois é, realmente não se parecem nada com os que conhecemos. Não imagino sequer
como funcionam, e tu?”, digo, mantendo um olho no comendador, enquanto
passo novamente a vista pelo casulo.
“Eu? „Tás a gozar, não?”, responde, olhando não para mim, mas para o
comendador. “Mas acho que sei quem sabe... Ouve lá, ó chefe, explica aqui como se
desligam estas coisas, se não queres deixar de ter cotovelos para jogar golfe”, diz,
fazendo sinal para que se aproxime.
Mas o outro abana a cabeça.
“De maneira nenhuma, caro senhor, trata-se de equipamento patenteado que só deve
ser manuseado por especialistas. E, de qualquer modo, eu já estou atrasado para um
compromisso...”
“O que queres dizer com isso, ó marmelo?”, diz o Leonel, começando a dirigir-se
para ele. Estaca um passo à frente e faz fogo quase imediatamente, mas o
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projéctil já vai embater na parede vazia, ao lado da luz que antes piscava
vermelho e agora pisca amarelo.
“Filho da puta! Enganou-nos bem enganados, o cabrão.”
Mas de pouco adianta insultá-lo. O comendador foi realmente mais esperto
do que nós. Vamos os dois em corrida para o sítio onde antes estava e só lá
encontramos o espaço vazio que ali deixou. Encostou-se à saída de
emergência, esperou calmamente que esta estivesse armada fazendo
conversa de chacha, e depois limitou-se a premir o pedal que está
dissimulado no canto e a deixar-se cair pelo túnel que se lhe abriu debaixo
dos pés.
Poderia recriminar-me por não lhe ter dito para se afastar do sítio para onde
se dirigiu, um erro clássico, mas para quê? Que vá para o diabo que o
carregue. Eu recuperei a Catarina, e só isso me interessa realmente.
===================¤==================
Trouxemos os casulos todos para cima, os activos e os outros, e enfiámo-los à
socapa nas traseiras do Kalahari do Leonel, que ele entretanto foi buscar ao
parque, sem que nenhum dos trogloditas que ainda estavam à porta se
mostrasse minimamente interessado. Depois, por indicação de Calle
Nebuloni, a quem telefonámos para saber o que fazer com os casulos,
deitámos fogo ao compartimento secreto e voltámos a fechar a porta de
ligação com o gabinete do Gonçalo. O corpo deste ficou onde o tínhamos
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encontrado. Parecia estar ainda na mesma posição, assim como o guarda que
apanhámos à saída das escadas, e foi aí também que os deixámos ficar.
A nossa pequena excursão não demorou, no total, mais de vinte e cinco
minutos.
Levámos as raparigas para a casa da costa do castelo, onde as que estavam
fora dos casulos começaram lentamente a despertar. Todas, incluindo a
Catarina, pareciam estar apenas sob o efeito de um anestésico, preparatório
talvez da sua inserção num casulo, e não apresentaram quaisquer problemas
ao acordar – além da grande „pedra‟ que normalmente se tem em casos
destes.
As outras foram transportadas para o Vega no dia seguinte e soubemos,
depois, que conseguiram abrir os casulos por mero acaso. Segundo parece, os
casulos de transporte têm uma duração de vida de apenas quarenta e oito
horas, tempo após o qual a mistura se torna ácida e consome tudo, inclusive
a ocupante – a forma mais simples que os monstros abjectos responsáveis
pela sua invenção encontraram para eliminar provas abandonadas por
qualquer razão. Do mesmo modo, conforme tiveram ocasião de descobrir
através de um dos casulos vazios que trouxemos connosco, qualquer
tentativa de os forçar resulta na morte imediata da ocupante pelo mesmo
modo pouco agradável, a menos que algo seja feito para o impedir. Foi esse
algo que descobriram por acaso. A cor do monitor já estava de um pouco
saudável laranja escuro, e eles estavam a ficar sem ideias, quando se
lembraram de os enfiar dentro de um casulo dos grandes e de o encher com a
mistura normalmente utilizada; aí, mal a pressão exterior igualou a interior,
as películas dos casulos de transporte dissolveram-se sem causar quaisquer
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danos às suas ocupantes, e eles puderam depois extraí-las seguindo o
procedimento normal.
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EPÌLOGO
O Gonçalo foi aparentemente morto durante um assalto ao clube, segundo
constou dos meios de comunicação nos dias seguintes. A história dizia que
os assaltantes entraram pela cozinha, depois de matarem o porteiro, um bom
homem de família cujo segundo emprego nocturno era para pagar os
estudos dos filhos, e o secretário do Dr. Gonçalo Vilarinho de Castro, não
sem antes o submeterem a torturas que o teriam deixado deformado. O
assalto foi aparentemente bem sucedido e os criminosos levaram consigo
todo o dinheiro que havia no cofre do clube, correspondente aos ganhos de
uma semana, que o dito secretário se teria esquecido de depositar.
Isto a acreditar na extensa cobertura dada por quase todos os jornais, de
papel e televisivos, ao assunto, como exemplo da falta de segurança nas
nossas cidades.
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O funeral foi muito concorrido. Estiveram presentes uma série de
individualidades e homens de negócios, entre eles o comendador, para
prestar homenagem aquele que foi descrito como tendo sido um pilar da
comunidade. A Mima lá estava, chorosa como convém, tendo os repórteres
convenientemente afastados à sua passagem de viúva inconsolável, apoiada
no braço do Martim que fazia as vezes de guarda-costas.
Tentei entrar em contacto com ele, para lhe explicar como as coisas se tinham
efectivamente passado e o que o padrasto tinha tentado fazer à irmã, mas
não me quis ouvir. Disse que tudo não passavam de mentiras, inventadas
pela Catarina e por mim para denegrir a imagem de um homem bom, por
isso deixei-o em paz. Há verdades a que um tipo tem necessariamente de
chegar sozinho.
A Mima deixou, pura e simplesmente, de falar connosco. Dir-se-ia que a
Catarina e eu deixámos de existir. Embora isso a mim não me faça diferença
nenhuma, e até o prefira para não ter de me chatear, a miúda ainda se sente
abandonada. Eu não quis dizer-lhe que a mãe sabia dos planos do Gonçalo –
até porque não sei bem até que ponto os teria percebido – por receio que
também ela pensasse que estava a tentar denegrir a imagem da mãe para a
manter ao meu lado. A Catarina esperava, de certo modo, que as relações
com a mãe melhorassem uma vez que ela saísse de casa e não dependesse
dela, até porque, apesar de tudo, creio que teria gostado de se manter em
contacto com ela; por isso, este silêncio e falta de resposta da Mima às suas
tentativas de aproximação tem-lhe sido bastante penoso. Talvez dentro de
algum tempo possa tentar explicar-lhe o que me pareceu que a mãe sabia dos
planos do padrasto, mas, para já, creio que tenho de a deixar lidar com o
assunto a sós.
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„A Gata Perfumada‟ voltou a abrir as portas dois dias depois do funeral do
Gonçalo, e os negócios vão tão bem como antes, ou talvez melhor até, dada a
publicidade gratuita que recebeu em todos os canais, com a cobertura do
„assalto‟ e do funeral da vítima principal. As pessoas parecem ter uma
necessidade mórbida de se aproximar e ver de perto, ou até tocar, locais de
crimes violentos ou de acidentes espalhafatosos.
O Comendador. Bom, o comendador parece nem sequer ter dado pelo
episódio. Mal se apanhou na rua, depois de ter escapado pela saída de
emergência do compartimento debaixo do clube, deve ter chamado a polícia
que, correspondendo ao pedido de ajuda de tão grande personagem, se
apressou a chegar em grande força ao local do „crime‟. Por um bambúrrio,
estávamos precisamente a sair do parque de estacionamento quando
passaram por nós duas carrinhas e três carros patrulha, com as luzes todas a
piscar e as sirenes a abrir caminho.
Depois voltou a submergir, regressando aos seus afazeres de eminência
parda e deixando as luzes da ribalta para os tansos que, tal como as traças,
parecem não poder passar sem elas.
Os do Vega pediram-nos que o deixássemos em paz. Que lhes parecia que o
comendador tem contactos a muito alto nível dentro da IVE e de quem
ultimamente está por trás dela, e que precisavam dele para lhes chegar. Pelo
que passaram a vigiá-lo noite e dia, seguindo-lhe os passos e ouvindo-lhe os
telefonemas.
Vontade de o expor não me falta, por tudo o que a Janna passou e por aquilo
que poderia ter acontecido à Catarina, mas não tenho provas absolutamente
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nenhumas e, tendo em conta as nossas diferentes posições na hierarquia
social, consigo ver onde isso iria acabar.
Não me sinto hoje, tal como não me senti na altura, capaz de fazer justiça
pelas minhas próprias mãos. Um tipo não se torna advogado sem uma
crença muito forte na necessidade de um bom funcionamento do sistema
judicial – embora hoje acredite, também, que este, às vezes, precise de um
empurrão ou até de uma ajudinha anónima... Por isso aceitei, e pedi ao
Leonel que aceitasse, o que nos pediram.
No fim, mesmo que não seja eu, alguém há-de acabar por apanhar o
comendador, e isso basta-me.
A Catarina saiu daquele colégio parvo em que a Mima a tinha metido e
passou para uma escola secundária, onde parece estar a dar-se muito bem.
Continua a viver comigo em Cascais e, também aí, está tudo a correr muito
bem.
A Janna está grávida (gémeos!) e devemos ser pais dentro de três meses.
Sinto-me como novo.
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