a ontologia da obra de arte a partir da crítica à formação estética em
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8 MARCOS PAULO FERNANDES A ONTOLOGIA DA OBRA DE ARTE A PARTIR DA CRÍTICA À FORMAÇÃO ESTÉTICA EM HANS-GEORG GADAMER UNIVERSIDADE CATÓLICA DOM BOSCO CURSO DE FILOSOFIA CAMPO GRANDE/MS 2008 9 A ONTOLOGIA DA OBRA DE ARTE A PARTIR DA CRÍTICA À FORMAÇÃO ESTÉTICA EM HANS-GEORG GADAMER 10 MARCOS PAULO FERNANDES A ONTOLOGIA DA OBRA DE ARTE A PARTIR DA CRÍTICA À FORMAÇÃO ESTÉTICA EM HANS-GEORG GADAMER Monografia apresentada como exigência final para obtenção do título de Licenciado em Filosofia, à Banca Examinadora da Universidade Católica Dom Bosco, sob a orientação do Prof. Dr. Márcio Luis Costa. UNIVERSIDADE CATÓLICA DOM BOSCO CURSO DE FILOSOFIA CAMPO GRANDE/MS 2008 11 BANCA EXAMINADORA ________________________________________________ Orientador – Prof. Dr. Márcio Luis Costa _________________________________________________ Examinador – Prof. Dr. José Manfrói _________________________________________________ Examinador – Prof. Dr. Marcelo Alves Nunes 12 “Toda a forma autêntica de arte é, a seu modo, um caminho de acesso à realidade mais profunda do homem e do mundo.” (Karol Wojtyla, 1920-2005) “A intimidade com que nos afeta a obra de arte é, à vez, de modo enigmático, estremecimento e desmoronamento do habitual. Não é somente ‘esse és tu’ que se descobre em um horror alegre e terrível. Também nos diz: ‘Tens de mudar tua vida!’” (Hans-Georg Gadamer, 1900-2002) 13 A presente Monografia dedico ao Criador, Deus, e aos meus artífices, meus pais, que me matizaram a obra da minha existência 14 AGRADECIMENTOS Quero agradecer primeiramente a Deus, que me acompanhou da forma surpreendente que só Ele sabe fazer; obrigado pela arte do seu amor. À minha família, que me motivou a realizar este trabalho. À minha querida Diocese de Dourados, representada pela pessoa de Dom Redovino Rizzardo, que, ao dar crédito a mim, fermentou o meu crescimento intelectual e integral. Espero corresponder a tal confiança! Ao meu orientador Prof. Dr. Frei Márcio, pela sua presteza e boa vontade em encarar comigo o desafio desta monografia, apesar das distâncias. Ah! Muito obrigado pelos livros – jamais esquecerei. De fato, um grande mestre. Aos meus professores da Universidade Católica Dom Bosco, que verdadeiramente fascinam pelo seu amor à sabedoria e à vida e que também vivem o que aprendi ser a “sabedoria do amor”. Ao Prof. Dr. Almir Ferreira da Silva Júnior, que me deu valiosas orientações e luzes em momentos de escuridão. Ao Prof. Naor Rocha que gentilmente fez preciosas correções por ocasião da revisão textual. Aos meus colegas de turma que andaram comigo na mesma empreitada; valeu a companhia e apoio. 15 FERNANDES, Marcos Paulo. A ontologia da obra de arte a partir da crítica à formação estética em Hans-Georg Gadamer. Monografia como trabalho de conclusão de curso de Filosofia. UCDB. Campo Grande – MS, 2008. RESUMO O presente trabalho, A ontologia da obra de arte a partir da crítica à formação estética em HansGeorg Gadamer, objetivou averiguar como se dá tal ontologia ao partir da crítica gadameriana feita à formação estética. A problemática deste trabalho está em explicitar o alcance da formação estética, desde seus pressupostos como suas conseqüências, para assim entrever com a ontologia da obra de arte. Destarte, ao partir do problema impositivo do método das ciências da natureza ao das ciências do espírito e busca da autocompreensão destas últimas pela volta à tradição humanística, o que se consolida é a subjetivação e estetização dos conceitos humanísticos. Nesse sentido, o grande marco divisor é o criticismo kantiano, o qual é fundamento da posterior primazia do gênio e da vivência estética, cujo produto é a formação estética e sua consciência estética. No entanto, devido à insuficiência desta formação no que se refere em fazer jus à verdade da experiência da obra de arte, propõe-se sua ontologia, a fim de que a obra fale por si mesma. Dessa forma, o jogo da obra de arte se apresenta como representação e sua temporalidade como festa, os quais devem caracterizar a universalidade do ser estético, como também indicam o problema hermenêutico da compreensão. Palavras-chave: Tradição humanística. Formação estética. Verdade. Ontologia da obra de arte. 16 LISTA DE FIGURAS Figura 1: Hans-Georg Gadamer............................................................................................11 Figura 2: Jogo de xadrez........................................................................................................59 Figura 3: Um concerto............................................................................................................60 Figura 4: Peça teatral.............................................................................................................63 Figura 5: Festa do Coliseo......................................................................................................71 Figura 6: Quadro de Leonardo da Vinci: A Monalisa........................................................76 Figura 7: Estátua de Davi.......................................................................................................77 Figura 8: Portrait.....................................................................................................................80 Figura 9: Arquitetura japonesa.............................................................................................86 Figura 10: Arquitetura grega.................................................................................................86 Figura 11: O decorativo em uma igreja................................................................................87 Figura 12: Biblioteca...............................................................................................................90 17 SUMÁRIO INTRODUÇÃO.................................................................................................................... 9 1 A TRADIÇÃO HUMANÍSTICA E AS CIÊNCIAS DO ESPÍRITO ............................ 11 1.1 O PROBLEMA DO MÉTODO .................................................................................. 13 1.2 A TRADIÇÃO HUMANÍSTICA PARA AS CIÊNCIAS DO ESPÍRITO ................... 14 1.3 OS CONCEITOS BÁSICOS DO HUMANISMO ...................................................... 16 1.3.1 Formação e Sensus communis......................................................................... 16 1.3.2 Juízo (Iudicium)............................................................................................... 19 1.3.3 Gosto ................................................................................................................ 21 2 A CRÍTICA À FORMAÇÃO ESTÉTICA ..................................................................... 26 2.1 A SUBJETIVAÇÃO ESTÉTICA KANTIANA .......................................................... 26 2.1.1 Caracterização da estética kantiana ............................................................... 27 2.1.2 A relação entre gênio e gosto .......................................................................... 36 2.2 A ESTÉTICA DO GÊNIO E O CONCEITO DE VIVÊNCIA .................................... 38 2.2.1 O conceito de vivência..................................................................................... 40 2.3 ARTE VIVENCIAL E ALEGORIA........................................................................... 42 2.3.1 Símbolo e alegoria ........................................................................................... 43 2.4 A VERDADE DA ARTE ........................................................................................... 47 2.4.1 O problema da formação estética ................................................................... 48 2.4.2 Crítica à abstração da consciência estética .................................................... 51 3 A ONTOLOGIA DA OBRA DE ARTE ......................................................................... 58 3.1 O JOGO ..................................................................................................................... 58 3.1.1 Representação ................................................................................................. 61 3.1.2 Transformação em configuração e mediação total ........................................ 63 3.2 TEMPORALIDADE E FESTA .................................................................................. 70 3.3 CONSEQÜÊNCIAS ESTÉTICAS E HERMENÊUTICAS......................................... 74 3.3.1 O valor ontológico da imagem (Bild) .............................................................. 75 3.3.2 O fundamento ontológico do ocasional e decorativo ...................................... 80 3.3.3 A posição de limite da literatura..................................................................... 89 CONCLUSÃO.................................................................................................................... 96 REFERÊNCIAS............................................................................................................... 101 18 INTRODUÇÃO O tema do presente trabalho monográfico é a ontologia da obra de arte a partir da crítica à formação estética em Hans-Georg Gadamer. Este tema surge diante da problemática da verdade da obra de arte em sua confrontação com a postura reducionista da formação estética do século XIX. As reflexões aqui expostas visam responder a seguinte questão: como, que na obra de Gadamer, a crítica à formação estética termina por conduzir a uma necessária ontologia da obra de arte? O que justifica a pretensão deste trabalho é o vislumbramento de uma correta abordagem filosófica do horizonte da experiência da obra de arte; experiência que por sua força declarativa, interpela-nos. Tanto a moralidade quanto o conhecimento podem ter seu lugar, então. Ao fazer uma releitura hermenêutica deste fenômeno, podemos acorrer a uma experiência que possui sua verdade e, assim, deixar de lado os reducionismos equivocados que desvirtuam-na, tal como o faz a consciência estética. Quanto à relevância social, a sociedade muito se beneficiará com este trabalho, quando ela passar a olhar a experiência artística como algo que faz parte de seu mundo e de sua cultura, mesmo quando a própria obra já se constitui um mundo próprio. Não obstante, facilmente se libertará de certos condicionamentos impostos por outrem, a certas consciências alienadas que descartam a verdade em todo seu alcance. Pessoalmente falando, o que este trabalho de pesquisa proporciona, além do grande conhecimento histórico-conceitual, é um dar-se conta da riqueza de sentido que uma obra de arte pode trazer a nós, a partir dela mesma, e como ela transforma-nos em nós mesmos. A obra nos mostra quem somos e como devemos ser. Eis um aspecto moral interessante. A linha teórica que este trabalho seguirá, é a da compreensão hermenêutica, justamente no contexto daquilo que Gadamer chama de hermenêutica filosófica; é o questionamento pelo compreender e interpretar, sobre sua condição de possibilidade, não restrito somente às ciências da natureza, mas também vislumbrada, a seu modo, nas ciências do espírito – e, assim, à obra de arte. Desse modo, a linha metodológica que se tem é a 10 19 bibliográfica, de trabalho qualitativo, e, nesse sentido, a primeira base será a obra Verdade e método, devido a sua sistematização perante está problemática, e, ainda, a pesquisa terá outras referências que são importantes na medida em que ajuda-nos a desenvolver e a problematizar a temática de pesquisa em Verdade e método. Nesse sentido, o primeiro capítulo nos introduzirá na problemática estética a partir da estetização e subjetivação dos conceitos humanísticos, tendo seu marco no criticismo kantiano, pois estes foram acessados diante da procura da autocompreensão das ciências do espírito perante a predominância e a utilização do mesmo método, o das ciências da natureza. Já o segundo capítulo, tem por objetivo mostrar como se deu a formação estética e, assim, a crítica gadameriana perante a insuficiência de sua consciência diante da verdade da arte. A demonstração de como Kant foi fundamental para tal formação e como seus sucessores desenvolveram sua estética, são questões que estão intrinsecamente ligadas à consciência desta formação. Assim, a crítica à formação estética, com sua consciência estética, indica a pergunta pelo modo de ser da arte. Quer dizer, o ponto de vista da obra de arte se torna decisivo para a reta compreensão da experiência da arte e não uma consciência alienada e alienante. Tem-se, então, a tarefa de demonstrar a ontologia da obra de arte segundo Gadamer, como também as conseqüências estéticas e hermenêuticas que advém desta. Eis a problemática que o terceiro capítulo tratará. Então, para àquele que quer mergulhar na reflexão gadameriana sobre a experiência artística e descobrir a grandeza deste pensamento, sugiro que adentre estes mares sem medo, pois aí se dá uma grande oportunidade de enriquecimento. Boa leitura! 20 1 A TRADIÇÃO HUMANÍSTICA E AS CIÊNCIAS DO ESPÍRITO Hans-Georg Gadamer (1900-2002), filósofo alemão, nasceu em Marburg; foi discípulo de Heidegger, professor em Leipzig, Frankfurt e Heidelberg. Figura 1: Hans-Georg Gadamer. Fonte: http://www.ymago.net/isarchive/institut/images/gadamer.jpg. Acessado em: 21 de nov. de 2008. Ele apresentou e aprofundou uma das teses mais marcantes da filosofia contemporânea, a saber, aquilo que chamou de “hermenêutica filosófica”.1 El lugar que le corresponde a Hans-Georg Gadamer como uno de los filósofos más importantes del siglo XX se deve a la ‘hermenéutica’ desarrollada por él, pero también al hecho de que su larga vida lo ha convertido en uno de los testimonio más privilegiados del siglo XX. Nacido en 1900, su concepción filosófica llegó a la madurez tan sólo en 1960, en su obra principal Verdad y método, en la que fundamentó la hermenéutica filosófica y que permitió que ésta se convirtiera en un tópico.2 (grifo no original) 1 Para um maior aprofundamento biográfico do autor, veja a obra de GRONDIN, Jean. Hans-Georg Gadamer, una biografia. 2000. 2 “O lugar que lhe corresponde a Hans-Georg Gadamer como um dos filósofos mais importantes do século XX se deve à ‘hermenêutica’ desenvolvida por ele, mas também ao fato de que sua vida o tem convertido em um dos testemunhos mais privilegiados do século XX. Nascido em 1900, sua concepção filosófica chegou à maturidade tão somente em 1960, em sua obra principal Verdade e método, na que fundamentou a hermenêutica filosófica e que permitiu que esta se convertesse em um tópico.” (tradução livre do autor) (GRONDIN, Jean. Hans-Georg Gadamer, una biografia. 2000, p. 17) 12 21 É verdade que Gadamer escreveu, ao longo de sua vida, muitos outros textos de grande importância, mas Verdade e método é, sem dúvida, a sua obra-prima e, aí, está a centralidade do seu pensamento. Nesta obra, ele “[...] elabora o que chama de ‘hermenêutica filosófica’, voltada a destacar o que se poderia chamar de o ‘acontecer’ da verdade e o ‘método’ que se deve seguir para desvelar esse acontecer.”3 É um trabalho árduo de demonstração de um itinerário conceitual, voltado a responder a validade da experiência de verdade com seus devidos meios e lugares. A hermenêutica é concebida como o autocompreender-se do intérprete, que se dá conta de sua pertença a uma história e a uma tradição lingüística. 4 Referente à história da hermenêutica, também, “a filosofia hermenêutica de Gadamer representa, obviamente, uma gigantesca re-orientação da hermenêutica, libertando-a dos condicionalismos que ela impunha a si própria, no seu esforço aturado de garantir a objetividade metódica.”5 É a reconquista de uma compreensão mais adequada ao tipo de conhecimento, acionado pelas ciências do espírito, que foi emoldurado no quadro das ciências da natureza, como veremos adiante. Para tanto, Gadamer ao pensar a hermenêutica filosófica, viu a necessidade de se levar em conta duas experiências que estavam aludidas dentro da compreensão da existência humana, isto é, a compreensão da própria existência está implicada e traz implicações para os modos de experiência, e entre estes modos está o modo de experimentar uma obra de arte: Quando comecei a elaborar uma hermenêutica filosófica, sua própria préhistória exigia que se tomassem as ciências ‘da compreensão’ como ponto de partida. Mas acrescia-se a elas um complemento que até o momento não foi levado em conta. Refiro-me à experiência da arte. Isso porque ambas, a arte e as ciências históricas, são modos de experiência que implicam diretamente nossa própria compreensão da existência.6 (grifo nosso) Com isso, estamos diante da experiência artística, a qual tem sua importância, dentro do contexto hermenêutico gadameriano; é o problema da arte a partir da visão de sua hermenêutica. E o presente trabalho tem, justamente, como objetivo explicitar a reflexão sobre a arte que este autor tange à ontologia da arte e a crítica à formação estética realizadas por ele. Como é possível falar de uma ontologia da arte, a partir da crítica à formação estética? O que está envolto nesta problemática? Para entender mais profundamente esta 3 MORA, J. Ferrater. Dicionário de filosofia. 2001, p. 1170. GONÇALVES, Adão Luciano Machado. A Hermenêutica-filosófica de Hans-Georg Gadamer. 2004, p.06. 5 BLEICHER, Josef. Hermenêutica contemporânea. 1980, p. 178. Uma breve história da hermenêutica encontra-se também no livro feito a partir de uma entrevista entre Dutt Carsten e Gadamer, a saber: CARSTEN, Dutt. En conversación com Hans-Georg Gadamer (Hermenêutica – Estética – Filosofia Práctica). 1998. 6 GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método II: Complementos e índice. 2004, p. 565. 4 13 22 problemática, deveremos vislumbrar o que está implicado para que a formação estética pudesse subsistir. Parece importante advertir que a pesquisa do presente trabalho terá, por base primeira, a obra Verdade e método; as outras de que faremos referência são importantes à medida que nos ajudam a desenvolver e a problematizar a temática de pesquisa que está de forma sistêmica em Verdade e método. 1.1 O PROBLEMA DO MÉTODO Como fora citado anteriormente, para a elaboração de uma hermenêutica filosófica, houve a necessidade da tomada das ciências do espírito (ou da compreensão, ou ciências históricas) 7, porque a hermenêutica, enquanto conjuntos de técnicas para a interpretação de textos esteve, sempre, contida no seio destas ciências como sua história nos diz. Gadamer partirá, então, em Verdade e método, de uma constatação: “a auto-reflexão lógica das ciências do espírito, que acompanha o seu efetivo desenvolvimento no século XX, está completamente dominada pelo modelo das ciências da natureza.”8 De fato, desde Descartes, século XVII, no qual a problemática do método era decisivo para o conhecimento e a ulterior aplicação metodológica matemática e física às ciências humanas, foi-se focalizando a produção de conhecimento somente por estes métodos; ou seja, o método que as ciências do espírito passaram a utilizar é o mesmo do das ciências da natureza, cuja gênese está na modernidade. Esta constatação e primeira tentativa de resposta, reconhece Gadamer, fora feita por Dilthey. Perguntar pela validade de um mesmo método para ciências distintas, cujos “objetos” e lógicas são diferentes, não é de se pressupor que a verdade que se possui talvez esteja mutilada ou deformada? “Gadamer concorda, com Helmholtz, na idéia de que as ciências do espírito têm, basicamente, muito mais a ver com o emprego de um tato, do que a adoção de quaisquer 7 É no seio das ciências históricas, pois, que o problema da hermenêutica ou interpretação tem seu bojo. Por exemplo, no Organon de Aristóteles, “Santo Tomás [...] indica que o substantivo e o verbo (de que Aristóteles trata nos capítulos 2 e 3 do tratado) são antes princípios de interpretação que interpretações.” (MORA, J. Ferrater. Dicionário de filosofia. 2001, p. 1330) 8 GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I: Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 2007, p. 37. É interessante, também, perceber que o termo “ciências do espírito” é consignado pelo tradutor da Lógica de John S. Mill, que ao esboçar as possibilidades de aplicação da lógica indutiva às moral scienses traduz o termo por ciências dos espírito. Vê-se que existe uma lógica própria das ciências do espírito, afirma Gadamer. 14 23 métodos.”9 O próprio Helmholtz (1821-1894) sabia, pois, que “[...] para o conhecimento histórico, é necessário uma experiência totalmente diferente daquela que se usa na pesquisa das leis da natureza.”10 Gadamer esclarece mais dizendo: Mas o que representa o verdadeiro problema que as ciências filosóficas colocam ao pensamento é que não se consegue compreender corretamente a natureza das ciências do espírito, usando o padrão de conhecimento progressivo da legalidade (Gesetzmässigkeit). A experiência do mundo sócio-histórico não se eleva ao nível de ciência pelo processo indutivo das ciências da natureza.11 (grifo no original) Ora, uma coisa é uma previsão de fenômenos cujas leis os determinam ou mesmo a procura destas leis por meio daquilo que pode ser observável, manipulável e constatável; outra coisa é a singularidade e historicidade de um homem, de um povo, de um estado, no qual vários elementos compõem esta singularidade irrepetível, única e complexa. O conhecimento de ambos são distintos. Propõe, então, em Verdade e método, uma fundamentação das ciências do espírito; quer desenvolver uma hermenêutica que faça jus ao modo próprio de trabalhar das ciências do espírito quanto à sua essência. 12 Quer mostrar a autocompreensão que estas ciências possuem por sua justificação epistemológica. Sendo que esta problemática está relacionada à modernidade, principalmente ao século XIX, Gadamer percebe, com o humanismo, uma via de acesso ao modo de ser das ciências do espírito. Vejamos. 1.2 A TRADIÇÃO HUMANÍSTICA PARA AS CIÊNCIAS DO ESPÍRITO A ciência moderna está fundada no desenvolvimento da ciência da natureza, do século XVII. Por conseguinte, cresceu-se o domínio da natureza e, desta forma, espera-se que o mesmo domínio seja desdobrado à ciência do homem e da sociedade, ao “universo humanohistórico.”13 Gadamer, partindo da assertiva de que “[...] as ciências do espírito estão muito 9 GRONDIN, Jean. Introdução à hermenêutica filosófica. 1999, p. 182. GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I: Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 2007, p. 43. 11 Ibid., p. 38. 12 GONÇALVES, Adão Luciano Machado. A hermenêutica-filosófica de Hans-Georg Gadamer. 2004, p.09. Segundo alguns autores, também, Gadamer não quer ficar somente atido ao problema do método das duas ciências, mas também visa apresentar a sua hermenêutica. 13 GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método II: Complementos e índice. 2004, p. 49. 10 15 24 longe de se sentirem simplesmente inferiores às ciências da natureza” 14, mostra que há um modo próprio de proceder dessas ciências, e que a via de acesso não se encontra no conceito de ciência moderna, mas em algo anterior que corresponde à pretensão gadameriana. Assim, é tese inicial de Gadamer que o caráter científico das ciências do espírito se pode ‘antes compreender com base na tradição do conceito de formação cultural, do que a partir da idéia da ciência moderna.’ Aqui desvenda-se o significado do recurso à tradição humanística no início de ‘Verdade e Método’. Pois, no seio dessa tradição é que foram formulados os conceitos capazes de fazer jus à pretensão cognitiva própria das ciências do espírito. 15 Assim, Gadamer mostra, justifica e demonstra a necessidade destes conceitos. Por meio deles a cientificidade das ciências humanas deve ser compreendida e investigada: Esse conhecimento deve ser empregado também na questão pela verdade nas ciências do espírito. Elas formam um elemento específico dentro do conjunto das ciências, pelo fato de que mesmo os seus conhecimentos pressupostos ou reais determinam imediatamente todas as coisas humanas, traduzindo-se na formação e educação humanas.16 Quando se detectou o problema metodológico, na modernidade, que reduziu a verdade a uma só dimensão – à dimensão científica da natureza somente – e esperou-se o mesmo modo de se chegar a ela, no que concerne às ciências históricas, Gadamer propôs uma volta à tradição humanística, porque [...] nessa tradição foram formados conceitos cuja resistência contra as exigências da ciência moderna viabiliza, em contrapartida, a possibilidade de as ciências humanas justificarem sua pretensão teorético-cognitiva. Nas palavras de Gadamer: ‘[...] é da sobrevivência do pensamento de formação humanística que as ciências filosóficas do século XIX extraem sua vida particular [...]’17 O que se pode constatar, então, é que a reivindicação contra a ciência moderna dá suporte à reflexão gadameriana de uma possível autocompreensão das ciências do espírito e, nesta sua volta, tenta mostrar a “não-corruptibilidade” que as ciências do espírito gozavam, porque, também, são parte integrante do ser humano e elas têm uma forma própria de se chegar à verdade. “El conocimiento humanístico, entonces, son verdades que nos 14 GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I: Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 2007, p. 43. 15 GRONDIN, Jean. Introdução à hermenêutica filosófica. 1999, p. 183. 16 GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método II: Complementos e índice. 2004, p. 56. 17 SILVA JÚNIOR, Almir Ferreira da. Estética e hermenêutica: a arte como declaração de verdade em Gadamer. 2005, p. 41. 16 25 (trans)formam al cultivarmos y educarnos, tarea que Gadamer, siguiendo a Hegel, entiende como un ascenso a la generalidad [...].”18 Toda esta problemática teve influência no tocante à estética e, assim, à arte. Contudo, estes conceitos, da tradição humanística, serão subjugados pela Aufklärung e perderão suas propriedades conceituais e basilares e estes serão importantes para a compreensão da formação estética, século XIX. Entretanto, agora, vamos nos entrever com os conceitos basilares que compõem o humanismo, pois estes nos apontarão à estética moderna. 1.3 OS CONCEITOS BÁSICOS DO HUMANISMO Como vemos, a reflexão gadameriana recorreu aos conceitos humanísticos, entendamo-los, a seguir, como tais – os conceitos de formação, sensus communis, juízo e gosto – e de forma breve, igualmente, seus confrontos com a Aufklärung. Lembrando que estes conceitos advinham da Alemanha do século XVIII e que, neste mesmo período, seriam subjetivados e estetizados. 1.3.1 Formação e Sensus communis Perante a tradição humanística, Gadamer parte do conceito de formação (bildung, formation, formatio). De início, este conceito compreende que o devir sugere o ser, ou seja, o fato de a formação “designar mais o resultado desse processo de devir do que o próprio processo corresponde a uma freqüente transferência do devir para o ser.”19 É uma transferência que parte das mudanças que a existência humana perpassa, tendo em vista o que permaneça – o ser. “En este modelo la formación (Bildung) es clave, pues ella no consiste en que el aprendiz acumule contenidos sino que se forme a sí mismo.” 20 (grifo no original) 18 “O conhecimento humanístico, então, são verdades que nos (trans)formam ao cultivarmos e nos educar, tarefa que Gadamer, seguindo a Hegel, entende como uma ascensão à generalidade [...]” (tradução livre do autor) (LORCA, Oscar. Arte, juego y fiesta en Gadamer. 2005, p. 02) 19 GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I: Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 2007, p. 46. Também, Gadamer mostra nas páginas 45 e 46 o conceito de formação (Bildung) a partir de uma análise “histórico-filológica” em Verdade e método e mostra uma rica interpretação deste conceito. 20 “Neste modelo a formação (Bildung) é chave, pois ela não consiste em que o aprendiz acumule conteúdos senão que se forme a si mesmo.” (tradução livre do autor) (LORCA, Oscar. Arte, juego y fiesta en Gadamer. 2005, p. 02) 17 26 Percebemos, então, que formação é um formar-se a si mesmo. O primeiro a reconhecer a necessidade de formação não é outrem, mas a própria pessoa. Se assim ocorre, “na formação adquirida nada desaparece, tudo é preservado. A formação é um conceito genuinamente histórico e é, justamente, o caráter histórico da ‘conservação’ o que importa para a compreensão das ciências do espírito.”21 O que ocorre é que, do devir ao ser, o que ao conceito de formação lhe é caro, é o caráter histórico e sua conseqüente conservação. De fato, este reconhecimento histórico levou Gadamer e ver em Hegel (1770-1831) aquele que elaborou de maneira mais nítida o conceito de formação. Assim, podemos nos perguntar: em que consiste este formar a si mesmo, em conservação pela história, em que o que não é importante é a apreensão de conteúdos? O homem se caracteriza pela ruptura com o imediato e o natural, vocação que lhe é atribuída pelo aspecto espiritual e racional de sua natureza. ‘Segundo esse aspecto, ele não é por natureza o que deve ser’, razão pela qual tem necessidade de formação. O que Hegel chama de natureza formal da formação repousa na universalidade. [...] A essência universal da formação humana é tornar-se um ser espiritual, no sentido universal. [...] ter em vista um sentido universal, pelo qual paute sua particularidade com medida e postura.22 (grifo nosso) A formação é formação na qual o universal guia o estilo de ser, de viver, de proceder, a forma de se verem as coisas, de interpretá-las – é a formação cultural, formação de uma cultura. Contudo, este sentido tem como condicional um ignoramento de si, ou seja, “[...] inibição da cobiça e, com isso, liberdade do objeto da cobiça e liberdade para sua objetividade.”23 É um sacrifício do que é particular em favor do universal, sendo um estar numa posição de abertura para pontos de vista mais universais. A universalidade que se busca atingir não se restringe à dimensão de conteúdos, ou a um comportamento teórico em oposição a um prático, mas abrange o conjunto da determinação essencial da racionalidade humana.24 Portanto, o conceito de formação é um conceito de construção do ser humano para patamares mais orientativos e universais. É histórico e, nesse sentido, comunitário – devido à sua conservação e à sua universalidade. Sendo assim, a formação é o elemento, no qual as 21 GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I: Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 2007, p. 47. 22 Ibid., p. 47-8. 23 Ibid., p. 48. 24 Ibid., p. 47. 18 27 ciências do espírito se movimentam. 25 Elas estão de acordo com a realidade histórica do ser humano. Chega-se à conclusão de que o ideal de formação da tradição humanística dá alicerce à autocompreensão das ciências do espírito – devido ao seu caráter histórico e de preservação como é característico nas ciências do espírito. A “nova ciência” do século XVII, em contrapartida, exigia para si exclusividade e questiona se, neste conceito de formação, haveria uma fonte própria de verdade.26 Gadamer demonstra que até em sua base, mesmo que os adeptos da ciência não concordassem, o conceito de formação está implícito.27 Este conceito acena, então, aos conceitos de sensus communis, juízo e gosto, os quais foram subjetivados e estetizados, mas que lhe cabiam a função de conhecimento, dentro do quadro de formação cultural. Assim, ao questionar a tradição humanística com a seguinte pergunta: “[...] que forma de conhecimento das ciências do espírito se poderá aprender dela?” 28 Gadamer recorre à Giambattista Vico (1668-1744), defensor do humanismo e que, por isso, “[...] se refere ao sensus communis, o senso comum, e ao ideal humanista da eloquentia, momentos que já existiam no antigo conceito do sábio.”29 Este conceito está ligado ao verossímil e do correto do que se fala e ao bem falá-lo. Para Vico, é a universalidade concreta de uma comunidade que, a partir do verossímil, forma o sensus communis; e não a partir da razão e do verdadeiro, que tem por busca a formação da pesquisa crítica de sua época, empreendida pelas novas ciências. “O sensus communis é um sentido para a justiça e o bem comum, que vive em todos os homens, e mais, um sentido que é adquirido através da vida em comum e determinado pelas ordenações e fins desta.”30 (grifo nosso) É um conceito da comunidade que busca um mesmo sentido: justiça, bem comum e sentido político. É o direito do verossímil, ou seja, daquilo que, provavelmente, é verdadeiro. De fato, o que é importante, aqui, são as circunstâncias. O verdadeiro e o correto, assim, estão baseados no que é plausível. 25 GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I: Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 2007, p. 51. 26 Ibid., p. 55. Este questionamento acerca da formação humanística é devido ao método próprio das ciências da natureza que exigiam às demais o mesmo caráter rigoroso. 27 Ibid., p. 55. 28 Ibid., p. 56. 29 Ibid., p. 56. 30 Ibid., p. 59. 19 28 Paralelamente, Gadamer mostra que o Conde de Shaftesbury (1671-1713) via os humanistas compreenderem por sensus communis o sentido para o bem comum e, também, amor à comunidade ou à sociedade, afeição natural, humanidade, cortesia.31 Percebe-se uma correspondência para com o social e o político, principalmente quando olhamos a antigüidade romana, na qual o sensus communis estava ancorado “[...] no valor e no sentido de suas próprias tradições da vida civil e social.” 32 Conceito muito prático e do simples cotidiano. Com a Aufklärung, todavia, este conceito ficou despolitizado, perdeu seu caráter crítico e ficou reduzido a apenas uma faculdade teórica, devido a sua estetização, o que veremos no próximo capítulo. É a marca do racionalismo na modernidade. Em vez de um senso que, inerente a todos os homens, baseia-se na universalidade concreta, institui a comunidade e, enquanto qualidade geral do cidadão, constitui uma decisiva importância para a vida, assimilou-se um conceito de “sensus communis” desprovido de sua especificidade crítica e totalmente despolitizado. 33 (grifo no original) Diante deste esvaziamento e intelectualização que o Aufklärung produziu, neste conceito, vejamos, inclusive, outro conceito que está em íntima ligação com o sensus communis, o juízo. 1.3.2 Juízo (Iudicium)34 O juízo (iudicium) é um conceito, também, de fundamental importância para o humanismo; está incluído entre as capacidades superiores do espírito. A respeito do iudicium, Gadamer diz: A ‘sã compreensão humana’, chamada também de ‘compreensão comum’, é, de fato, caracterizada decisivamente pelo juízo. O que distingue um tolo de uma pessoa inteligente é que aquele não possui nenhum juízo, isto é, ele não consegue subsumir corretamente e, por isso, não é capaz de aplicar corretamente o que aprendeu e sabe.35 (grifo nosso) 31 GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I: Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 2007, p. 62. 32 Ibid., p. 59-60. 33 SILVA JÚNIOR, Almir Ferreira da. Estética e hermenêutica: a arte como declaração de verdade em Gadamer. 2005, p. 42. 34 É interessante relacionar que o conceito de juízo é refletido de maneira anterior, mais adiante em Verdade e método; justamente no que se refere àquilo que chama, Gadamer, de pré-juízo ou preconceito ou pré-conceito. 35 GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I: Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 2007, p. 69. 20 29 “Isto é, a compreensão comum é caracterizada decisivamente pelo juízo, iudicium – inerente a todo ser humano –, a partir do qual podemos aplicar corretamente o que aprendemos e sabemos.”36 É a capacidade de saber integrar o particular no universal, aplicar o que aprendemos e sabemos, corretamente, ou, como exemplifica Gadamer, é a atividade de reconhecimento de uma regra; e podemos dizer, é algo aplicado caso a caso, o julgamento que mostra “[...] si algo individual adhiere o no a un todo, si es adecuado con todo lo demás o no lo es, para lo cual había que tener un cierto sentido, pues no se puede hacer es demostrarlo.”37 É interessante perceber que o fato da “não-demonstração” que acompanha o iudicium, está ligado ao caráter de um “tato”, ou, nas palavras dos filósofos moralistas ingleses, está em concordância ao caráter do sentiment. Em suma, é uma faculdade de subsunção do particular no universal, mas que não é demonstrável e, sim, tateável. “Por isso, o juízo se encontra sempre em uma situação de perplexidade fundamental devido à falta de um princípio que poderia guiar sua aplicação.”38 Diante do que foi tratado, até agora, não está o sensus communis estreitamente ligado ao conceito de juízo? Por qual razão? A razão desta ligação, no humanismo, destes dois conceitos, está no padrão de juízo que se estabelece, “[...] pois abrange sempre o conjunto de juízos e padrões de juízo que o determinam quanto ao conteúdo”39. Com isso, é um conceito de conhecimento não-formal, mas de um conteúdo são. Na base do iudicium, vemos a sua estreita ligação para com o sensus communis. Desta maneira, é interessante que, quando temos uma regra para fazê-la concreta, precisamos desta capacidade, iudicium, para a aplicação. Tê-la significa, inclusive, poder contribuir na comunidade mais eficazmente na procura, na demonstração, daquilo que é verossímil. Como também, transpô-la, na concretude da vida, de forma mais criativa, na particularidade de um caso. Daí que este conceito possui um caráter comunitário devido à sua vinculação ao sensus communis e, em contrapartida, este parte do ponto de um conjunto de juízos ou padrões de juízo que o determinam quanto ao conteúdo. Complementando, “quem possui um juízo são não está apto, como tal, a julgar o particular a partir de pontos de vista universais, mas sabe o que é que realmente importa, isto 36 SILVA JÚNIOR, Almir Ferreira da. Estética e hermenêutica: a arte como declaração de verdade em Gadamer. 2005, p. 43. 37 “[...] se algo individual adere ou não a um todo, se é adequado com todo o demais ou não o é, para o qual havia que ter um certo sentido, pois não se pode fazer é demonstrá-lo.” (tradução livre do autor) (LORCA, Oscar. Arte, juego y fiesta en Gadamer. 2005, p. 03) 38 GADAMER, Hans-Georg. Verdade método I: Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 2007, p. 69. 39 Ibid., p. 71. 21 30 é, vê as coisas com base em pontos de vista corretos, justos e sadios.”40 Esta correspondência entre o sensus communis e o juízo está dada pelo sentido do primeiro e a justa, correta e sadia subsunção são conseqüentes. Contudo, na Aufklärung alemã, este conceito de juízo foi rebaixado às capacidades inferiores do conhecimento, o que conferiu um significado especial à estética. Citado por Gadamer, Baumgarten (1714-1762), ensina-nos: “[...] o juízo reconhece o sensorial-individual, a coisa singular e, na coisa singular, ele julga sua perfeição ou imperfeição.”41Julga-se a coisa, imanentemente, olhando a concordância interna e não a aplicação de um universal. Eis o que Baumgarten denomina de iudicium sensitivum como gustus sensível, o que Kant mais tarde corresponderá a isso o julgamento estético ou juízo estético. Assim, esta estetização também valerá para o próximo conceito, o de gosto. Entretanto, eles serão tratados mais à fundo, no próximo capítulo. Por hora, reflitamos sobre este último conceito que Gadamer tratou no quadro dos conceitos humanísticos. 1.3.3 Gosto Gadamer, ao tratar deste conceito, fala que “originariamente o conceito do gosto possui um cunho mais moral do que estético”42 (grifo no original), visto que este conceito padeceu também uma estetização. Para um melhor entendimento, vejamos a estreita vinculação do conceito de gosto com a moda, sobre a qual Gadamer discorre: O conceito da moda já diz literalmente que trata de um ‘como’ (modus) passível de modificação no âmbito de um todo permanente do comportamento social. [...] De fato, para ela, a universalidade empírica, o respeito pelos outros, a comparação, até mesmo o colocar-se num ponto de vista comum, tudo isso lhe é constitutivo. Por isso, a moda cria uma dependência social, da qual fica difícil subtrair-nos. 43 (grifo no original) Da mesma forma que a moda, o gosto é algo constituído pela atuação de todos, normatizando o chamado bom gosto e, evidentemente, é suscetível de mudança na dimensão comportamental social permanente. Ora o que se possui, em questão de gosto, são gostos, apesar de todos quererem ter bom gosto, lembra Gadamer. Aí se encontra a sua dependência social, visto que, conseqüentemente, todos querem sentir-se vinculados à moda, mas não 40 GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método I: Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 2007, p. 71. 41 Ibid., p. 70. 42 Ibid., p. 74. 43 Ibid., p. 77. 22 31 submetidos. Assim podemos inferir que gosto pode ser definido como uma capacidade de discernimento espiritual, ou seja, o gosto “[...] se ocupa dessa coletividade, mas não se submete a ela.”44 Neste sentido, é uma capacidade em que o estilo de cada um não fica perdido, dentro dos padrões da moda, mas, é claro, que a aderimos à medida que o gosto próprio tenha correlação com o “modo de ser do todo”. Esta “capacidade de discernimento espiritual”, como vemos, é algo aplicado tanto ao coletivo quanto ao indivíduo, há uma interação entre ambos, mostrando que o que é característico é o adequar, que está referido ao um proceder. Balthasar Gracian (1601-1658), lembrado por Gadamer, trata da história deste conceito. Ele “[...] parte do princípio de que o gosto sensível, o mais animalesco e o mais íntimo de nossos sentidos, já contém o gérmen da distinção que se realiza no julgamento espiritual das coisas.”45 Não estaria, aqui, a justificativa de redução posterior do gosto como aplicado somente ao sensível? E entrementes, além disso, diz que o gosto é [...] o ponto de partida para a formação ideal da sociedade. Seu ideal do homem culto (do discreto) consiste em que o hombre em su punto adquire a correta liberdade de distância com relação a todas as coisas da vida e da sociedade, o que lhe permite saber distinguir e escolher consciente e ponderadamente. 46 (grifo no original) O gosto é apresentado a esta formação ideal pelo dito bom gosto, o qual denomina a “boa sociedade”. Em suma, a partir do instinto sensorial há o vislumbramento do julgar as coisas, espiritualmente, no entremeio à “liberdade espiritual”. Existe aí um distanciamento da escolha e do julgar frente às urgências da vida. Nisso, a formação deve ser tanto para o espírito quanto para gosto. Não obstante, se este conceito humanístico era visto dentro de parâmetros formativos, é porque sob ele se pensa numa forma de conhecimento. Conhecimento que parte, justamente, desta capacidade de diferenciação, de discernimento espiritual, de distanciação, como já fora dito, mas que, também, se realiza no julgamento espiritual das coisas. “Desta forma, tanto o gosto quanto o juízo são julgamentos do individual com vistas a um todo, a ver se ele se ajusta a todos os outros, se ‘combina’.” 47 Entretanto, este saber não se dá por razões 44 GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I: Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 2007, p. 77. 45 Ibid., p. 74. 46 Ibid., p. 75. 47 Ibid., p. 78. 23 32 prévias, é algo como um sentido. “Quando em questões de gosto algo é negativo, a pessoa não consegue dizer o por quê (sic!), mas o experimenta com a maior segurança.”48 Como podemos observar, o gosto além de individual está, até certo ponto, determinado pelo todo que o constitui. Ele caminha entre a capacidade individual e combinação do individual ao todo, na forma de discernimento espiritual – sendo isso uma forma de conhecimento –, além de sua concretude e desenrolar que dão sua característica social e moral. “Dessa maneira, o gosto não se restringe, de forma alguma, ao belo na natureza e na arte, julgando-o de acordo com a sua qualidade decorativa, mas abrange todo o campo dos costumes e da decência.”49 Mas o que ocorre, no século XVIII, é a estetização e subjetivação deste conceito que foi aplicado a julgar os objetos do sentimento: Em contrapartida, o tomando-se o gosto como cânone para julgarem-se os objetos do sentimento, no século XVIII, esse conceito torna-se faculdade do sentimento, à qual foi atribuída a atividade própria da estética. Refere-se, a partir de então, a uma faculdade de julgar o que é universalmente comunicável, embora de forma não conceitual. O gosto limita-se ao julgamento estético do belo. 50 Portanto, a Aufklärung foi responsável por descartar a validade que os conceitos humanísticos tinham para o conhecimento, para a moral, para vida pública, pois apregoava que o método que produz a verdade era o das ciências da natureza, tendo seu cume, para Gadamer, com o criticismo kantiano. O conhecimento e a moral estariam determinados e delimitados ao campo da razão pura e da razão prática, respectivamente, e conhecer estaria somente validado aos moldes dos métodos das ciências da natureza. Para ser válido, então, o conhecimento das ciências do espírito, elas deveriam entrar nestes moldes. Daí a subjetivação e estetização dos conceitos humanísticos, que é fruto da “não-molduração” completa a estes métodos. Junto a la fundamentación de las ciencias experimentales realizada (sic!) a través de la crítica kantiana y a su glorificación metodológica aledaña a ésta, surge la exigencia de que las humanidades deban regirse por los mismos métodos rigurosos que posibilitaron el éxito de las ciencias naturales. Desde entonces habrá que buscar análisis metódicos para las ciencias humanas; la formación, el sensus communis, la capacidad del juicio o el gusto a partir de Kant ya no son cosas del conocimiento sino que pertenecen al campo estético.51 48 GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I: Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 2007, p. 76. 49 Ibid., p. 78. 50 SILVA JÚNIOR, Almir Ferreira da. Estética e hermenêutica: a arte como declaração de verdade em Gadamer. 2005, p. 44. 51 “Junto à fundamentação das ciências experimentais realizada através da crítica kantiana e a sua glorificação metodológica limitada a esta, surge a exigência de que as humanidades devam reger-se pelos mesmos métodos rigorosos que possibilitaram o êxito das ciências naturais. Desde então terá que buscar que buscar análises 24 33 Por conseguinte, temos que reparar que o feito de Gadamer, a questionabilidade do método e, também, a volta à tradição humanística, mostrou esta alienação e a retomada da validade do modo de proceder das ciências do espírito. Percebemos, ainda, que existem experiências de verdade que precisam ser retomadas, a arte e a história, pois estas foram muito chagadas com a alienação que o Aufklärung desencadeou. E neste capítulo, A tradição humanística e as ciências do espírito, podemos constatar um reducionismo, a tradição humanística estetizada e subjetivada e, mais adiante, a estética – a arte – desvirtuada do seu caráter de verdade e alienada. En consecuencia, Gadamer tratará precisamente de recobrar esas experiencias de la verdad y de señalar su justiticación filosófica – lo que que no es sino un forma de filosofar –, experiencias olvidadas como la retórica, la filosofía práctica, la hermenéutica jurídica y teológica, y, quizás la más importante de todas, la del arte [...]”52 Parece importante afirmar, então, que o que Gadamer fez foi uma prestação de contas, ao tratar da dimensão da arte e histórica, em Verdade e método: “[...] não era uma tarefa para a práxis metodológica da arte e da ciência histórica, nem tampouco se referia, em primeira mão, à consciência de método dessas ciências. Referia-se, exclusivamente, e em primeiro lugar, à idéia filosófica da prestação de contas, da explicação.”53 É justamente nesta explicação da experiência da arte que nós nos deteremos. É de grande importância ter em vista que Gadamer desenvolve, posteriormente, sua hermenêutica, tendo como plano de fundo esta problemática do método. Mas que a arte e a história terão sua parcela de contribuição. Para Grondin, “[...] poder-se-ia dizer que, de parte do objeto, o caminho para a estética expressa, para ‘Verdade e Método’, um desvio. Apesar de todas as concepções positivas da arte, a parte introdutória de ‘Método e Método’ oferece mais uma anti-estética do que uma estética.”54 (grifo no original) Entretanto, deter-nos-emos no que concerne a esta prestação de contas na arte, na qual se desenvolverá nossa problemática de maneira mais específica, após a exposição já feita do entorno conceitual humanístico. Vejamos agora como está configurada a formação estética moderna centrada em Kant, ressaltando que estes conceitos que foram estudados, até então, estão estreitamente relacionados e que, agora, é o momento de metódicas para as ciências humanas; a formação, o sensus communis, a capacidade do juízo ou o gosto a partir de Kant já não são coisas do conhecimento senão que pertencem ao campo estético.” (tradução livre do autor) (LORCA, Oscar. Arte, juego y fiesta en Gadamer. 2005, p. 03) 52 “Em conseqüência, Gadamer tratará precisamente de recobrar essas experiências da verdade e assinalar sua justificação filosófica – o que não é senão uma forma de filosofar –, experiências esquecidas como a retórica, a filosofia prática, a hermenêutica jurídica e teológica, e, talvez a mais importante de todas, a da arte [...]” (tradução livre do autor) (LORCA, Oscar. Arte, juego y fiesta en Gadamer. 2005, p. 01) 53 GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método II: Complementos e índice. 2004, p. 565. 54 GRONDIN, Jean. Introdução à hermenêutica filosófica. 1999, p. 185. 25 34 demonstrar esta mesma subjetivação e estetização pormenorizada. Todavia veremos, igualmente, a crítica gadameriana à formação estética desencadeada e o que ela vislumbra – a ontologia da obra de arte. 35 2 A CRÍTICA À FORMAÇÃO ESTÉTICA A reflexão do capítulo anterior, A tradição humanística e as ciências do espírito, mostraram-nos a estetização e subjetivação dos conceitos humanísticos. Já neste capítulo, A crítica à formação estética, temos o intuito de apresentar e refletir sobre o itinerário percorrido por Gadamer desde o acerto de contas com a estética kantiana e como esta foi decisiva para a formação estética ocorrente no século XIX; também, ao mesmo tempo, refletir sobre os pontos críticos desta temática e como se dá a proposta ontológica gadameriana. Por hora, vamos ter em mente uma caracterização da estética kantiana, sob a perspectiva de sua subjetivação. 2.1 A SUBJETIVAÇÃO ESTÉTICA KANTIANA Como vimos, a idéia epistemológica de que as ciências do espírito deveriam submeter-se ao rigor metodológico das ciências da natureza para gozarem de um conhecimento que fosse seguro, isto no período da Aufklärung, reduziu os conceitos de formação, sensus communis, juízo e gosto à dimensão subjetiva e estética. E, para Gadamer, Kant (1724-1804), com seu criticismo, devido à sua contemporaneidade a esta situação e adesão a tal modo de proceder, é um divisor de águas na história das ciências do espírito com sua obra a Crítica do juízo ou Crítica da faculdade do juízo. Se considerarmos o papel que a crítica do juízo de Kant desempenha no âmbito da história das ciências do espírito, teremos de dizer que sua fundamentação transcendental e filosófica da estética teve conseqüências para ambos os lados e serviu como divisor de águas de uma época. Representa a ruptura de uma tradição, mas também o preâmbulo de um novo desenvolvimento. 55 Assim, a ruptura e seu desenvolvimento estético estão de acordo com aquilo que foi tratado – os conceitos humanísticos e as ciências do espírito – no capítulo anterior. O que trataremos a seguir é uma breve caracterização da estética kantiana – e necessariamente aprofundaremos esta subjetivação e estetização dos conceitos tratados acima – em contraponto com o pensamento gadameriano. 55 GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I: Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 2007, p. 81. 27 36 2.1.1 Caracterização da estética kantiana A estética, de fato, é a mais jovem das disciplinas filosóficas, como ensina Gadamer. Contudo, foi somente no século XVIII, com o racionalismo da Aufklärung, que “[...] se estabelició el derecho autónomo del conocimiento sensorial y con él la relativa independencia del juicio del gusto con respecto ao entendimiento y sus conceptos.”56 Mas esta autonomia deu-se ao custo da estetização e da subjetivação dos conceitos humanísticos de sensus communis, juízo e gosto, principalmente com a estética kantiana. Estética esta que fora postulada na Crítica da faculdade do juízo. Sendo assim, a terceira Crítica confere uma esfera de autonomia à estética, para além das outras duas Críticas kantianas, a Crítica da razão pura e Crítica da razão prática. Esta terceira obra “é crítica da crítica, isto é, indaga a respeito dos direitos de um tal comportamento crítico sobre questões de gosto.”57 É a busca pelo a priori kantiano, que está acima dos princípios empíricos e não uma crítica a um gosto por parte de outros. Na Crítica do juízo, inicialmente, Kant se detém em três capacidades do ser humano: a cognitiva, o sentimento de prazer e de desprazer e a apetição. Estas possuem leis a priori que as regulam: à primeira, o entendimento e à terceira, a razão – correspondentes às duas primeiras críticas; também ao sentimento de prazer ou de desprazer, o juízo, que é a capacidade de pensar o particular contido no universal58, como já fora dito. Assim A crítica da faculdade do juízo é uma resposta de ligação às outras duas críticas – ou seja, a Crítica da razão pura trata da natureza e do conhecimento e a Crítica da razão prática, da moral e da liberdade – por situar o juízo como ponte entre o entendimento e a razão. A natureza, pois, não pode encontrar-se, irremediavelmente, afastada da forma como o homem exerce sua liberdade, enquanto natureza deve despertar certas idéias e sentimentos de qualidade superior. Esta capacidade, o juízo, pode ocorrer em duas maneiras diferentes: o juízo determinante e o juízo reflexionante. No caso deste universal (a regra, o principio, a lei) ser dado, a faculdade do juízo, que nele subsume o particular, é ‘determinante’ (o mesmo acontece se ela, enquanto faculdade de juízo transcendental, indica ‘a priori’ as 56 “[...] se estabeleceu o direito autônomo do conhecimento sensorial e com ele a relativa independência do juízo de gosto com respeito ao entendimento e seus conceitos.” (tradução livre do autor) (GADAMER, Hans-Georg. La verdad de la obra de arte. 2002, p. 04) 57 GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I: Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 2007, p. 83. 58 PASCAL, Georges. O pensamento de Kant. 1990, p. 157. 28 37 condições de acordo com as quais apenas naquele universal é possível subsumir). Porém se só o particular for dado, para o qual ela deve encontrar o universal, então a faculdade do juízo é simplesmente ‘reflexiva’.59 Vemos, então, dois movimentos, o do universal ao particular e vice-versa. Desse modo, o juízo determinante é a capacidade de aplicação de uma lei universal a um caso particular – e este fora desenvolvido por Kant na Crítica da razão pura. Quase que inversamente é o juízo reflexionante, na atividade de reflexão, que a partir de um caso particular busca o universal. Dessa forma, na Crítica da faculdade do juízo, o sujeito é pensado como sujeito reflexionante, em que o juízo reflexionante busca uma unidade diante dos casos particulares empíricos. Faz-se necessário um princípio regulador que busque esta unidade perante os casos, as leis particulares, e que apenas a faculdade deste juízo pode dar a si mesma para a realização de sua atividade. Pois é com a idéia de finalidade, ou seja, conformidade a fins, é que estamos tratando; somente, assim, é que se pode compreender um sistema formado, em nível ideal e não conceitual, por estas leis naturais particulares. Este conceito é a priori regulador e não constitutivo, que se apresenta sob duas formas: “[...] pelo juízo estético, nós constatamos a concordância entre um objeto da natureza e as nossas próprias faculdades, constatação esta acompanhada de prazer [...]; pelo juízo teleológico, reencontramos uma harmonia na própria natureza.”60 Por conseguinte, o juízo estético é algo restrito ao sujeito e o juízo teleológico é pertinente à objetividade, mas com certa preeminência no sujeito. Quanto ao juízo estético, Kant define a estética como “aquilo que na representação de um objecto é meramente subjectivo, isto é (sic!) aquilo que constitui a sua relação com o sujeito e não com o objecto é a natureza estética dessa representação.”61 Assim, vemos que a qualidade de um juízo, que é estético, é algo voltado somente ao sujeito – no que concerne às suas faculdades cognoscitivas – e sem relação alguma para com o objeto. Daí que a pretensão de verdade – o que imputa juntamente o conhecimento – num juízo estético fica extinta, já que a relação com a objetividade é descartada. Entende-se o estético como “uma forma específica de julgamento”, visto que o juízo ficou restrito ao sensorial-individual. De 59 KANT, Immanuel. Crítica da faculdade do juízo. 1997, p. 34. PASCAL, Georges. O pensamento de Kant. 1990, p. 159. 61 KANT, Immanuel. Crítica da faculdade do juízo. 1997, p. 43. Vale lembrar que o que é estética na Crítica do juízo não significa a mesma coisa para a Crítica da razão pura, como fala o Prof. Dr. Almir Ferreira da Silva Júnior: “Na Crítica da razão pura, sob a expressão ‘estética transcendental’, Kant aborda a estética como conhecimento das condições a priori da receptividade cognitiva humana, analisando a esfera da sensibilidade enquanto condição de possibilidade do conhecimento, a partir das condições fundamentais – intuições puras – de espaço e tempo. [...] em sua Crítica da faculdade de julgar, Kant faz uso da palavra ‘estética’ referindo-a, agora, a uma forma específica de julgamento.” (grifo do autor) (SILVA JÚNIOR, Almir Ferreira da. Estética e hermenêutica: a arte como declaração de verdade em Gadamer. 2005, p. 48-9) 60 29 38 fato, para Kant, a significação do juízo estético é inerente à crítica do gosto. Ora, do ponto de vista da qualidade, “‘gosto’ é a faculdade de julgamento de um objecto ou de um modo de representação mediante um comprazimento ou descomprazimento (‘independente de todo interesse’). O objecto de um tal comprazimento chama-se ‘belo’.”62 Em suma, nessa “faculdade de juízo reflexiva, a conformidade a fins é inteiramente subjetiva, e o juízo que daí resulta denomina-se juízo de gosto, ou estético.”63 O juízo de gosto estético julga, desinteressadamente, então, pelo comprazimento ou descomprazimento um objeto, ou seja, pelo agrado ou desagrado. É um princípio subjetivo, no qual o belo não possui uma esfera de conhecimento, pois o sujeito julga “imanentemente” e sem interesses, pois o interesse é de ordem racional. Nas palavras de Gadamer, “não se reconhece nada dos objetos que são julgados como belos; apenas se afirma que a eles corresponde a priori um sentimento de prazer no sujeito.”64 Desse modo, o juízo de gosto a priori corresponde com nossas capacidades cognoscitivas em adequação com a representação do objeto; a esta adequação se produz o prazer, o agrado, chamado belo, possibilitando o livre jogo da imaginação e do entendimento, no sujeito. O juízo é a expressão do sentimento de prazer. Daí podermos dizer que algo seja belo ou não. “Esta justificación trascendental del juicio de gusto vale tanto para lo bello em la naturaleza como para lo bello em el arte”65. Em contrapartida, “lo que experimentamos ante lo bello en la naturaleza y en el arte es una animación del conjunto de nuestras fuerzas espirituales y su libre juego.”66 Entrementes, juízo de gosto funda comunidade, pois ela é universalmente comunicável aos outros. Sendo assim, o gosto é o verdadeiro sensus communis. Aqui, deparamo-nos com a moralidade, não no sentido moral-político, como fora descrito acima, mas por ser uma capacidade que se realiza, em todos os seres humanos. Conseguintemente, a universalidade do juízo de gosto está em ser gosto reflexivo e não mais uma cognitio sensitiva, devido ao princípio subjetivo a priori do juízo estético ou de gosto do sujeito reflexivo. 62 KANT, Immanuel. Crítica da faculdade do juízo. 1997, p. 57. O belo aqui está para o entendimento e o sublime, como o trata posteriormente, está para a razão. 63 SILVA JÚNIOR, Almir Ferreira da. Estética e hermenêutica: a arte como declaração de verdade em Gadamer. 2005, p. 50. 64 GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I: Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 2007, p. 84. 65 “Esta justificação transcendental do juízo de gosto vale tanto para o belo na natureza como para o belo na arte.” (tradução livre do autor) (GADAMER, Hans-Georg. Estética y hermenéutica. 2006, p. 63) 66 “O que experimentamos ante o belo na natureza e na arte é uma animação do conjunto de nossas forças espirituais e seu livre jogo.” (tradução livre do autor) (GADAMER, Hans-Georg. La verdad de la obra de arte. 2002, p. 04-05) 30 39 Como vimos acima, os conceitos de que tratamos no primeiro capítulo perderam sua conceituação humanística e foram transformados pela estética kantiana. Nesta mesma tradição, os conceitos de iudicium e sensus communis tinham uma forte proximidade, como vimos, devido ao fato daquele primeiro determinar os conjuntos e os padrões de juízo que dão o conteúdo a este segundo. Todavia, a estética kantiana, quando determinou o gosto sendo uma forma de juízo, ou seja, relativo ao subjetivo, e não uma forma de discernimento espiritual que tem, também, sua característica social; este juízo de gosto foi tido como o verdadeiro sensus communis, ou seja, o ligame foi feito pelo juízo a determinar o gosto como sensus communis, num outro sentido, estético e subjetivo. Por conseguinte, tem-se a universalidade de forma subjetiva deste mesmo juízo. Logo, Gadamer nos mostra que “o que Kant de sua parte legitimou e queria legitimar através de sua crítica do juízo estético era a universalidade subjetiva do gosto estético, na qual já não há conhecimento do objeto [...]”67 Entretanto, na teoria kantiana, o caráter transcendental do juízo estético não apenas impôs uma delimitação ao conhecimento conceitual, como também o restringiu em sua função perante os fenômenos do belo e da arte. A partir desta visão panorâmica da autonomia da estética kantiana, para a compreensão da arte, Gadamer dispensou uma atenção muito especial para a beleza livre e beleza dependente. Mas poderíamos nos perguntar: por que Gadamer tal atenção? Uma das respostas está em sua intenção em compreender o grande alcance que teve Kant e como ele está presente na estética posterior a ele. 2.1.1.1 Beleza livre e dependente De início, a diferenciação entre beleza livre (pulchritudo vaga) e beleza aderente ou dependente (pulchritudo adhaerens), em Kant, é que “a primeira não pressupõe nenhum conceito do que o objecto deva ser; a segunda pressupõe um tal conceito e a perfeição do objecto segundo o mesmo.”68 O que temos é um critério de diferenciação, o conceito. No entanto, em que o sentido o conceito compromete tanto na estética de Kant? O que está por detrás desta é outra distinção, a do “gosto puro” e “intelectualizado”. 67 GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I: Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 2007, p. 82. 68 KANT, Immanuel. Crítica da faculdade do juízo. 1997, p. 71. 31 40 Correspondentemente, gosto puro é aquele puro juízo de gosto, sem nenhum pressuposto ou conceito – o que remete a qualquer fim – e, ainda, sem que haja interferência de pontos de vista intelectuais ou morais. Ademais, “a determinação do conteúdo do gosto é, pois, eliminada do campo de sua função transcendental. Kant só mostra interesse onde existe um princípio próprio do juízo estético, e por isso só lhe importa o puro juízo de gosto.”69 (grifo no original) É o caso da beleza natural livre e – no terreno da arte – o ornamento. Ao contrário da beleza dependente, a qual tem a “aderência” de um conceito, em relação a um determinado fim. São exemplos, de Kant, o homem, o animal, o edifício. A beleza aderente é definida como uma classe beleza inferior, porque seu sentido não é puramente estético. Esta dependência para com os fins traz em si a idéia de perfeição que está ligada ao conceito das coisas. A perfeição, pois, está associada ao conceito que temos das coisas. Avessamente, o gosto puro é destituído de perfeição devido a sua liberdade a fins e, conseqüentemente, são belos “por si mesmos” (“für sich”). Como vemos, o “gosto puro” corresponde à beleza livre e, opostamente, o “intelectualizado”, à beleza aderente. Para Gadamer, a distinção entre ambas é uma maneira de estabelecer a pureza do juízo de gosto, é prescrever o caráter de sua autonomia diante do conhecimento e da moral. Entretanto, o mesmo afirma que toda vez que o gosto puro, a beleza livre, sendo belo por si mesmo, “‘aciona’ esse conceito – e por isso não ocorre só no campo da poesia, mas em toda a arte representativa – a situação parece a mesma dos exemplos, apresentados por Kant para a beleza ‘dependente’.”70 A idéia de que não se deve ter conceito, já não é uma forma de conceituar? E o alcance de tal objetivo não mostra uma busca por perfeição? Portanto, está-se sob um determinado conceito em ambos os casos. Na argumentação gadameriana, ao tratar da beleza livre, o conceito de juízo puro parece sucumbir, quando exemplos seus, os tapetes de arabesco e a música, sem tema e sem texto, encontram-se sob um determinado conceito, como também, conseqüentemente, “todo o reino da poesia, das artes plásticas e da arquitetura, assim como todas as coisas da natureza, que não vemos como tais somente por sua beleza, como as flores ornamentais” 71. “Para Gadamer esto no puede tener sino el ropaje de una fatalidad, en el sentido de que con ello se 69 GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I: Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 2007, p. 85. 70 Ibid., p. 86. 71 Ibid., p 87. 32 41 escinde el juicio estético de toda referencia al ser y al conocer, obligando a la estética a definirse en contraposición al conocimiento y a la moral.” 72 Há, então, que se superar o juízo de gosto puro. Nesse sentido, Gadamer explica que a compreensão em concordância com a imaginação não deve ser sensível e esquemática quando tratamos do conhecer – isto é, subjetivismo –, mas sim o jogo de algo que estimula a compreensão do sujeito: [...] pode-se e deve-se superar o ponto de vista daquele juízo de gosto puro, dizendo que a beleza não está em questão onde se tenta, através da imaginação, tornar sensível e esquemático um certo conceito de compreensão, mas tão-somente onde a imaginação está em livre concordância com a compreensão, ou seja, onde pode ser produtiva. Esse formar produtivo da força da imaginação, no entanto, não alcança sua maior riqueza onde é simplesmente livre, como no revolutear dos arabescos, mas onde vive em um espaço de jogo que instaura o empenho compreensivo por unidade, não como barreira mas (sic!) prelineando estímulos para seu jogo.73 Em suma, a intenção kantiana é a de que a partir do ponto de vista do juízo puro é que se dá o reconhecimento da arte, pois visa dar autonomia ao juízo de gosto puro frente ao conhecimento e à moralidade. No entanto, o próprio juízo de gosto puro se supera, por pregar certa isenção conceitual. O que não foi possível, conforme demonstramos. Eis a intenção gadameriana ao dispensar sua atenção sobre este assunto. 2.1.1.2 O ideal de beleza Entretanto, diante do que já dissemos acerca do juízo gosto estético, Gadamer dispensa, também, seu olhar para o ideal de beleza, no § 17 da Crítica da Faculdade do Juízo. Mas por quê? O ideal de beleza radica-se na distinção entre idéia normal e idéia racional ou ideal de beleza. O primeiro, pois, “[...] encontra-se em todas as espécies da natureza [...]. Essa idéia normal é, portanto, uma contemplação individual da imaginação, como a ‘imagem da espécie que paira entre todos os indivíduos singulares’” 74, ou seja, o que é normal a uma 72 “Para Gadamer isto não pode ter senão a roupagem de uma fatalidade, no sentido de que com ele se separa o juízo estético de toda referência ao ser e ao conhecer, obrigando à estética se definir em contraposição ao conhecimento e à moral.” (tradução livre do autor) (LORCA, Oscar. Arte, juego y fiesta en Gadamer. 2005, p. 04) 73 GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I: Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 2007, p. 88. 74 Ibid., p. 89. 33 42 espécie. Contudo, a representação dessa idéia normal não agrada pela beleza, senão pela exatidão, o que significa que não se contradizem as condições sob as quais tal objeto pode ser belo. Já o segundo, ao se citar Kant, um ideal de beleza “só existe com relação à figura humana: na ‘expressão do ético’, ‘sem a qual o objeto não agradaria de forma universal’.”75 (grifo no original) A conseqüência mais importante dessa teoria é que, para uma obra de arte poder agradar, precisa-se que ela seja mais que agradável ao gosto, pois o ideal de beleza não é mero juízo de gosto, diz Kant. É além. Ora, para Kant só existe um ideal de beleza para a figura humana. Se é ideal, é porque estamos falando em teleologia, isto é, a um fim a ser alcançado. Sendo assim, como pode Kant, antes, falar em beleza sem a fixação de conceitos, sem fins, e, agora, mostrar um ideal de beleza à figura humana na expressão do ético? Não pode haver nenhum outro conteúdo dessa representação a não ser aquilo que se expressa na figura e na manifestação do representado. Falando kantianamente: o prazer intelectualizado e interessado nesse ideal representado da beleza não se separa do prazer estético, mas torna-se um com ele. 76 Entrementes, o ideal de beleza está na expressão do ético, na relação com a figura humana; isto significa que, se olharmos o conceito de juízo estético, fundado num sentimento subjetivo, o que determina a universalidade do belo, o ideal de beleza a ser produzido, terá a forma de uma apresentação individual. A essência de toda a arte, então, reside em confrontar o homem consigo mesmo, falando hegelianamente. Mas não só a figura humana pode expressar idéias éticas na representação artística, também pode outros objetos da natureza. Claro que Kant, reconhece Gadamer, tem razão de dizer que a expressão do ético é apenas emprestada, diferente do homem, pois este expressa essas idéias no próprio ser. É, a partir do ideal de beleza, então, que se torna possível falar em essência da arte. A arte torna-se um fenômeno autônomo e sua tarefa “[...] não é a representação do ideal de natureza, mas o encontro do homem consigo mesmo, na natureza e no mundo humano-histórico.”77 Portanto, a demonstração kantiana de que o belo agrada sem conceituação, não impede que o interesse pela beleza nos atinja significativamente. 75 GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I: Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 2007, p. 88-9. 76 Ibid., p. 90. 77 Ibid., p. 91. 34 43 2.1.1.3 O problema do interesse pelo belo na natureza e na arte Gadamer vai dizer que o que, realmente, movimenta a problemática da estética kantiana é a interessante importância do belo. Como assim? Não o belo, empiricamente, mas o a priori, é o que explica o interesse que suscita o belo, segundo Kant. Interesse que constatamos acima. Mas o que dizer deste interesse do belo a priori, em face da noção fundamental da falta de interesse pelo prazer estético? Tal fato acabará gerando uma nova questão, ao transladar do ponto de vista do gosto para o ponto de vista do gênio, o que veremos mais adiante. Para isso, o belo, na problemática kantiana, é distinto para a natureza e para a arte e é, justamente, a comparação do belo natural com o belo artificial o que promoverá o desenvolvimento dos problemas. O que se vê, agora, é Kant questionando o interesse pelo belo! Entretanto, diante do interesse pelo belo, ele dá a primazia ao belo na natureza e não na arte. Quando vimos o ideal de beleza, vimos que a arte possui certa vantagem frente ao belo natural – ela é uma expressão lingüística ética mais imediata. Entretanto, para Kant, não é a arte que faz com que se ultrapasse o interesse e se questione o belo. “Ao contrário, acentua inicialmente (no parágrafo 42) a vantagem do belo natural frente ao belo artístico.” (grifo no original) 78 O que se quer dizer é que o belo, na natureza, é expressão do juízo estético puro. A beleza natural não possui uma vantagem somente para o juízo estético puro, a de tornar claro que o belo repousa na finalidade da coisa representada para nossa capacidade de compreensão como tal. Isso se torna muito claro no belo natural, porque não possui nenhum significado de conteúdo que mostre o juízo de gosto em sua pureza não intelectualizada.79 Dessa forma, o belo na natureza, sendo uma vantagem para o juízo estético e, primeiramente, expressão sua, sem significado em seu conteúdo, repousa, em nível subjetivo, na representação da coisa nas capacidades intelectuais – na compreensão. Mas o interesse pelo belo, na natureza, é “moral por parentesco”, desperta em nós um interesse moral imediato, com a condição de se predispor ao bem ético. “O achar belas as formas da natureza nos leva a pensar que ‘a natureza produziu aquela beleza’ [...] Que a natureza seja bela, é coisa que desperta interesse para quem ‘já tenha anterior fundamentado seu interesse pelo bem ético’.”80 O que podemos perceber é que a primazia do belo, na natureza, dada por Kant, 78 GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I: Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 2007, p. 92. 79 Ibid., p. 92. 80 Ibid., p. 93. 35 44 leva-o à mesma constatação, a eticidade. Contudo, o ético para as duas formas de beleza é distinto, no sentido de que uma é imediata e a outra mediata. O que isso significa? O que justifica para Kant a vantagem do belo natural perante o belo da arte é que, na natureza, não se encontra “fins em si”, mas ela sinaliza que o homem é o fim último, o objetivo final da criação. À medida que percebe a coincidência não intencional da natureza com o nosso prazer, independente de qualquer interesse, junto com uma maravilhosa conveniência (Zweckmässigkeit) da natureza para conosco, esse interesse aponta-nos como o fim último da criação, a nossa ‘determinação moral’. 81 (grifo no original) Um outro ponto que podemos refletir é que Kant transfere toda a sua estética “nas costas” do sujeito. O fato de ética estar em ambas belezas, vinculadas ao homem, mostra que o homem – o sujeito – é a condição de possibilidade para a estética e, também, os fins das belezas é o homem – subjetivação. O que nos faz ver o belo centrado unicamente no sujeito! Kant mostra que a natureza conquista uma linguagem que conduz a nós mesmos. Diferentemente da arte, que está aí para nos interpelar, não conseguindo o encontro do homem consigo mesmo, numa realidade intencional, mas a partir de sua existência determinada, moralmente. Contrariamente, os objetos naturais não estão aí para nos interpelar; conseguem “tornar consciente nossa determinação moral”. 82 Já o belo, na arte, é mais expressivo e determinado. Gadamer reconhece que esta elucidação kantiana está correta, mas coloca o fenômeno da arte sob um padrão inadequado a ela. Fazendo um raciocínio inverso, “a vantagem do belo [natural] sobre o belo artístico é apenas o reverso da carência do belo natural quanto a uma certa força de expressão.”83 Isso significa que, quando falamos de belo, na arte, o que nos cativa é a força de sua expressividade; é, de certa forma, um conteúdo diferente do que sabemos que vem a nós e nos interpela. Não se oferece livre e indeterminadamente, mas seus significados bem determinados são os que chegam a nós.84 “Não medimos o sentido de suas pretensões, segundo um padrão já conhecido; antes, esse padrão, o ‘conceito’, será ‘ampliado esteticamente’ de uma forma ilimitada.” 85 81 GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I: Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 2007, p. 93. 82 Ibid., p. 93-4. 83 Ibid., p. 94. 84 Ibid., p. 94. 85 Ibid., p. 94. 36 45 Ademais, para Kant, a arte como “bela representação de uma coisa” é mais do que isso, isto é, é a representação de idéias estéticas – é algo que ultrapassa todo o conceito, porque “se o conceito de uma coisa fosse apresentado visando unicamente seu aspecto de beleza, isso não passaria de uma questão de representação ‘acadêmica’ e preencheria apenas a condição imprescindível de toda beleza.”86 Apesar de um ultrapassamento no que se refere à representação das idéias estéticas87, ou seja, o conceito kantiano de arte, esta teoria do interesse pelo belo na natureza e na arte nos remetem ao conceito de gênio, o qual terá sua função muito coerente, dentro das linhas-mestras do pensamento kantiano, para a fundamentação da arte. 2.1.2 A relação entre gênio e gosto Para a fundamentação da arte, então, Kant aponta para o conceito de gênio. Conceito este que está entre ser essa força da natureza e, ao mesmo tempo, essa capacidade para a representação das idéias estéticas. Kant vê, entretanto, no conceito de gênio algo decisivo na formulação do juízo estético, ou seja, […] o jogo leve das formas do ânimo, a ampliação do sentimento vital que nasce da concordância entre forma de imaginação e entendimento e que convida ao repouso ante o belo. O gênio é um modo de manifestação desse espírito vivificador. Pois face à rígida regularidade da maestria escolar, o gênio mostra o livre impulso da invenção e, com isso, uma originalidade criadora de modelos.88 De fato, o que o gênio produz são as idéias estéticas, oriundas da sua capacidade inventiva. O gênio entra em jogo, quando se chega à criação de alguma coisa, ou seja, tem-se 86 GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I: Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 2007, p. 95. 87 “Não se pode negar que a teoria das idéias estéticas, cuja representação permitiria ao artista ampliar infinitamente o conceito dado e reavivar o livre jogo das forças de ânimo, carrega um traço incômodo para o leitor hordieno. Parece que essas idéias poderiam ser adicionadas ao conceito que já as guia, como os atributos de um divindade à sua figura. A primazia tradicional do conceito racional sobre a representação estética inefável é tão forte que até mesmo em Kant surge a falsa aparência de que o conceito precederia a idéia estética, sendo que não é o entendimento mas a imaginação que detém o controle no jogo das capacidades. O teórico da arte encontrará, no mais testemunhos suficientes das dificuldades que Kant encontrou para manter sua idéia básica da impossibilidade de se conceber o belo, que assegura ao mesmo tempo sua vinculabilidade, sem afirmar involuntariamente a primazia do conceito. As linhas-mestras de seu raciocínio encontram-se, porém, livres de tais lacunas [...]” (GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I: Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 2007, p. 95) 88 GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I: Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 2007, p. 96. 37 46 uma invenção (inventio), tributada a uma inspiração e não a um trabalho metodológico. Assim o conceito de gênio é caracterizado, e este caracteriza o artístico. “El arte bello es el arte del genio. Admirar algo como una obra de arte significa ver en nella el producto de un hacer creativo que no es la aplicación académicamente correcta de las regras.”89 O gênio comunica o jogo livre das forças do conhecimento. Nesse sentido, a comunicabilidade de um estado de ânimo, do prazer, vai ao encontro do prazer estético do gosto, que é uma capacidade de julgamento, o gosto reflexivo.90 Diante disso, o que é decisivo, aqui, é que Gadamer vê no conceito de gênio uma íntima relação com o gosto: “[...] no fundo, o gosto encontra-se na mesma base que o gênio. A arte do gênio reside em tornar comunicável o jogo livre das forças do conhecimento”91, que se encontra tanto no belo natural quanto no belo artístico. Diferentemente de Kant, que conserva a primazia ao gosto, por este determinar o ponto de vista dominante de beleza no gênio, onde suas obras de belas artes são expressão sua. Quando se fala, pois, de beleza, remete-se ao gosto. No pensamento kantiano, o gênio está restrito somente à beleza artística, às belas artes, o que Gadamer diz ser correto, a partir do ponto de vista transcendental; no entanto o significado do conceito de gosto é universal, pois se encontra tanto no belo natural quanto no artístico. “Mas, no âmbito da crítica do juízo estético, nada se fala a respeito de que o ponto de vista do gênio acabe deslocando o do gosto.”92 Sendo o gênio um favorito da natureza, nas palavras de Kant, as belas artes devem ser vistas como natureza, e esta lhe impõe suas regras. O que se tem é a primazia da natureza. Há uma equiparação entre os produtos da beleza artística com a beleza natural. Assim sendo, Kant prepara o terreno para sua teleologia – o juízo teleológico – o qual está ligado à natureza. Portanto, “as belas artes são artes do gênio”, o que implica que “o belo na natureza ou na arte possui um e mesmo princípio apriorístico, que reside totalmente na subjetividade.”93 (grifo nosso) A Crítica da faculdade do juízo, com o juízo estético ou de gosto, não tem a pretensão de ser uma filosofia da arte, mas, sim, determinar o princípio a priori do gosto. Contudo, os sucessores de Kant fugiram de sua 89 “A arte bela é a arte do gênio. Admirar algo como uma obra de arte significa ver nela o produto de um fazer criativo que não e a aplicação academicamente correta das regras.” (tradução livre do autor) (GADAMER, HansGeorg. Estética y hermenéutica. 2006, p. 66). 90 GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I: Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 2007, p. 96. 91 Ibid., p. 96. 92 Ibid., p. 98. 93 Ibid., p. 98. 38 47 intenção transcendental e deslocaram os conceitos de gosto e gênio, dando a preeminência para o gênio. Vejamos. 2.2 A ESTÉTICA DO GÊNIO E O CONCEITO DE VIVÊNCIA O que fundamentou o juízo estético a priori da subjetividade, em Kant, ganhou uma significação nova, nos seus sucessores. De fato, o que Kant “legitimou e queria legitimar através de sua crítica do juízo estético era a universalidade subjetiva do gosto estético, na qual já não há conhecimento do objeto e, no âmbito das ‘belas artes’, a superioridade do gênio sobre toda estética regulativa.”94 A razão pela qual os sucessores kantianos deslocaram os conceitos de gosto e o conceito de gênio está dada numa maior abrangência conceitual do gênio. Tendo como ponto de vista a arte, ligar o conceito de gênio à natureza, torna-o mais abarcante, com um prejuízo da valorização do conceito de gosto. “Seu ponto de vista – do gosto – torna-se, conseqüentemente, secundário diante da obra de arte.”95 As belas artes, enquanto artes do gênio, impõem-se como princípio transcendental, na estética pós-kantiana de Schiller (1864-1937), por exemplo, em todo o ímpeto de seu temperamento moralpedagógico que aplicou na idéia de “educação estética”, o que significou sua assimilação da Crítica da faculdade do juízo. No entanto, as possibilidades dessa mudança de valor não são ausentes em Kant, pois ele deixa brechas que possibilitaram a esta mudança: Kant disse certa vez que com relação à possibilidade da beleza artística ‘deve-se ter cuidado também com o julgamento desse tipo de objeto’, e conseqüentemente com o gênio que já ali, e noutro lugar diz com muita naturalidade que sem o gênio não são possíveis nem as belas artes e nem um gosto correto, um gosto próprio que as julgue. 96 (grifo nosso) Também, na idéia de consumação do gosto, que se refere ao caráter normativo do gosto, há inclusa a possibilidade de sua formação e de seu aperfeiçoamento e, nesse sentido, o que se viu, posteriormente, foi uma forma determinada e imutável do gosto, não sendo aplicável ao belo natural.97 Portanto, de certa forma, Kant assinala a superação do ponto de 94 GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I: Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 2007, p. 82. 95 SILVA JÚNIOR, Almir Ferreira da. Estética e hermenêutica: a arte como declaração de verdade em Gadamer. 2005, p. 56. 96 GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I: Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 2007, p. 99-100. 97 Ibid., p. 100. 39 48 vista do gosto. Entretanto, Gadamer pontua que, diante dessa determinação e imutabilidade, as pretensões do bom gosto exumaria o relativismo do gosto, não abranger-se-iam todas as obras produzidas com qualidade, ou seja, que tenham sido realizadas com gênio. Entretanto, o gosto consumado, não sendo aplicável ao belo natural, por não ter critérios de maior ou menor beleza frente à natureza, implica, igualmente, não se poder dizer qual obra é mais ou menos bela. Mas a obra de arte é fruto do gênio, o qual está ligado absolutamente à natureza. Daí que o gosto se torna problemático tanto para o belo natural quanto para o belo artístico. O gosto consumado, pois, vai contra sua própria natureza de gosto. “Se há algo que é um testemunho de todas as coisas humanas e da relatividade de todos os valores humanos, esse algo é o gosto.”98 Mas sendo o conceito de gosto insatisfatório na fundamentação pós-kantiana, para o belo artístico, o que vemos é que o conceito de gênio se desenvolve, substitutivamente, ou seja, “parece possível subordinar o conceito de gosto à fundamentação transcendental da arte e entender por gosto o sentido seguro para o que é genial da arte.”99 As belas artes do gênio tornam-se o princípio transcendental de toda a estética, ou seja, só é possível estética como filosofia da arte. O ponto de vista da arte, com isso, transformou-se naquilo que abrange toda a produção “inconscientemente genial”, até mesmo a natureza, que passa ser compreendida como “produto do espírito”. Destarte, o conceito de gosto e de belo na natureza são desvalorizados e a moralidade do belo natural ficou restringida, o que se tem somente é o encontro do homem consigo nas artes. Conseqüentemente, “não há mais nenhum momento independente no todo sistemático da estética.”100 E, por conseguinte, a teoria kantiana da “elevação do sentimento vital” no prazer estético, promoveu o desenvolvimento do conceito de gênio para um conceito de vida abrangente, ou seja, o conceito de vivência como genuína realidade da consciência. Desta forma, vejamos a reflexão de Gadamer acerca deste conceito de vivência, a fim de que possamos compreender o alcance deste problemático desenvolvimento. 98 GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I: Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 2007, p. 101. 99 Ibid., p. 102. 100 Ibid., p. 103. 40 49 2.2.1 O conceito de vivência Gadamer, depois de uma delongada análise histórica da palavra vivência em “Sobre a história da palavra vivência”, mostra que o conceito de vivência tanto para Dilthey, quanto para Husserl, é um conceito que assume uma função epistemológica. 101 Em Dilthey, a vida é produtividade, cujas objetivações se revelam em imagens de sentido a serem abarcadas, compreendidas, a partir da própria vivacidade espiritual. No mesmo sentido, em Hurssel, o conceito de vivência é entendido na sua relação intencional. Ora, “a unidade de sentido chamada ‘vivência’ é também aqui uma unidade teleológica. Só há evidências na medida em que se vivencia ou se tem em mente alguma coisa nelas.”102 No entanto, assinalemos as principais atribuições que Gadamer acentuou, neste conceito. De início, o conteúdo da vida consciente, que nós adquirimos numa vivência, torna-se algo uno e não fragmentário. “No conceito de vivência, o que vale como uma vivência não é mais algo que flui e se esvai na torrente da vida da consciência, mas é visto como unidade e com isso ganha uma nova maneira de ser uno.”103 De fato, conquistamos mentalmente um conteúdo semântico de uma experiência na recordação, cujo conteúdo tem caráter de algo permanente, o que justifica sua intencionalidade e teleologia. Contudo, Gadamer acentua que o vivenciado é alguém que vivencia a si mesmo. Tal fato ajuda-o a constituir o significado da vivência justamente na unicidade e na exclusividade de sentido que se vai adquirindo com as vivências. “O que denominamos enfaticamente de vivência significa pois (sic!) algo inesquecível e insubstituível, basicamente inesgotável para a determinação compreensiva de seu significado.”104 Quanto à referência interna para com a vida, Gadamer, mostra que “a unidade da vivência determinada pelo seu conteúdo intencional encontra-se, antes, numa relação direta 101 “Dilthey desenvolveu o conceito de “Erbenis” como instrumento fundamental da compreensão histórica e, em geral, da compreensão inter-humana. Ele a caracterizou do seguinte modo: ‘A ‘Erbenis’ é antes de mais nada a unidade estrutural entre as formas de atitude e conteúdos. Minha atitude de observação junto com sua relação com o objeto é uma ‘Erbenis’, assim como meu sentimento de alguma coisa ou meu querer alguma coisa. A ‘Erbenis é sempre consciente de si mesma’’ (Grundlegung der Geisteswissenschoften). Da mesma forma, Husserl considerou a “Erbenis” como um fato de consciência; logo, como um entre os demais conteúdos do cogito. As “Erbenisses” de consciência são consideradas em toda a plenitude com que se apresentam em sua conexão concreta – a corrente da consciência – e na qual se unificam tendo em vista a sua própria existência.” (grifo no original) (SILVA JÚNIOR, Almir Ferreira da. Estética e hermenêutica: a arte como declaração de verdade em Gadamer. 2005, p. 42) 102 GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I: Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 2007, p. 112. 103 Ibid., p. 112. 104 Ibid., p. 113. 41 50 com o todo, com a totalidade da vida.”105 Para melhor demonstrar isso, partamos da seguinte ilustração. Gadamer fala que a vivência tem algo de aventura, sendo diferente do episódio. Os episódios são “casos singulares enfileirados”, ou seja, não possuem nexo e, por isso, nem significado duradouro. Ao contrário, a aventura apesar de interromper e ter um caráter de exceção da vida costumeira cotidiana, do curso costumeiro das coisas, relaciona-se “positiva e significativamente” com nexo que interrompe. Há um ligame entre a aventura e o costumeiro, um enriquecimento e um amadurecimento que são trazidos para o segundo. Ainda, “a aventura permite que se sinta a vida no todo, na extensão e na sua força.”106 Como podemos ver, o conceito de vivência não traz um momento fechado em si, mas uma ligação com toda a vida. Cada vivência traz consigo toda a vida, ao mesmo tempo em que está fora da mesma continuidade da vida. O enriquecimento que uma vivência traz para o todo é algo semelhante à aventura; do mesmo modo como a continuidade da vida está referida numa vivência. Em suma, a vivência traz consigo uma unicidade e permanência de significado, na qual está inferido o todo da vida, que não é válido somente na fugacidade do presente da vida consciente. Nesse sentido, Gadamer identifica uma relação de afinidade entre a estrutura da vivência e o modo de ser daquilo que desvela o estético. A experiência estética representa a forma de ser da própria vivência. Vejamos: Parece, inclusive, que a determinação da obra de arte é tornar-se uma vivência estética, ou seja, arrancar de um golpe aquele que a vive dos nexos de sua vida por força da obra de arte, sem deixar de referi-lo ao todo de sua existência. Na vivência da arte se faz presente uma riqueza de significados que não pertence somente a este conteúdo específico ou a esse objeto, mas que representa, antes, o todo do sentido da vida. 107 A arte torna-se um exemplo desta vivência estética, a qual vislumbra a própria vivência como um todo. Daí que podemos inferir que o que resulta é a vivência estética, a qual caracteriza a verdadeira a arte. Contudo, Gadamer mostrará os limites desta arte vivencial, porque sua cunhagem em relação ao desenvolvimento do conceito de gênio foi feito em outro sentido. O grande propósito da experiência da arte não deve ser compreendida como vivência humana. 105 GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I: Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 2007, p. 115. 106 Ibid., p. 116. 107 Ibid., p. 116-7. 42 51 2.3 ARTE VIVENCIAL E ALEGORIA Gadamer ao tratar da arte vivencial, assinala que ela mesma possui uma ambigüidade de significado. Arte vivencial tanto pode significar, em princípio, que a arte se origina da vivência e dela é expressão, como também para aquela arte que se destina à vivência estética, num sentido derivado.108 Entretanto, este conceito de arte vivencial fora formulado “a partir da experiência do limite imposto a sua pretensão”109: As dimensões do conceito de arte vivencial somente se tornam conscientes quando deixa de ser auto-evidente que uma obra de arte represente uma transposição de vivências e quando já não é auto-evidente que essa transposição se deve à vivência de uma inspiração genial que, com a segurança de um sonâmbulo, cria a obra de arte que, por sua vez, converterse-á numa vivência para aquele que a recebe. 110 O problema de uma vivência estética está na limitação tanto àqueles que transpõem uma obra quanto para o que cria, o gênio, pois o gênio é o único a criar uma obra de arte e somente, assim, será uma ulterior vivência para quem a vivencia. Mas será que somente o gênio e a vivência estética são o padrão para explicar o fenômeno da obra de arte? Esta mesma obra só é experienciada por uma vivência estética? Assim, não ficaria reduzido o fenômeno da arte? Quando se olha para os limites da arte vivencial e se lança o olhar a além, para outros padrões, como desde a Antiguidade até o barroco, o que se vê são outros padrões de valores totalmente diferentes da vivencialidade, como constata o próprio Gadamer.111 Assim, os conceitos de gênio e vivencialidade não são adequados, por serem pregados como único padrão. Neste caso, Gadamer exemplifica ao lembrar de outros padrões: “Não é a autenticidade da vivência ou a intensidade de sua expressão mas (sic!) a disposição artística de formas e maneiras fixas de dizer que faz com que a obra de arte seja uma obra de arte.”112 E isso vale para todos os gêneros da arte, mas principalmente àquelas em que na linguagem tem sua legitimação. 108 GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I: Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 2007, p. 117. 109 Ibid., p. 117. 110 Ibid., p. 117. 111 “De certo que tudo isso poderá transformar-se numa “vivência” para nós. Essa autocompreensão estética está sempre disponível. Mas não podemos nos deixar enganar sobre o fato de que a própria obra de arte que se torna para nós uma vivência não foi destinada para esse tipo de concepção.” (GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I: Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 2007, p. 118) 112 GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I: Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 2007, p. 118. 43 52 Destarte, Gadamer aponta que a poesia e a retórica no século XVIII encontravamse lado a lado, mas posteriormente houve uma desvalorização da retórica, devido à égide da aplicação da produção inconsciente do gênio. Neste sentido, os exemplos implicados nesta situação foram os conceitos de símbolo e alegoria, que foram antagonizados. A oposição artística entre símbolo 113 e alegoria é resultante do desenvolvimento filosófico dos últimos dois séculos. Mas como se chegou a tal antagonismo? O que a poesia e a retórica têm a ver com este problema? Diante disso, explicitemos a problemática. 2.3.1 Símbolo e alegoria Por primeiro, os conceitos de símbolo e alegoria possuem algo em comum, em ambos algo está para outra coisa. Na alegoria temos um conceito voltado para a esfera racional, do logos, já o conceito de símbolo se volta para uma esfera diversa. A alegoria pertence originariamente à esfera do discurso, do logos, sendo pois uma figura retórica ou hermenêutica. Em lugar daquilo que se quer realmente dizer coloca-se algo diferente, algo mais à mão, mas de maneira que, apesar disso, esse deixa e faz entender aquele outro. O símbolo, ao contrário, não se restringe à esfera do logos, pois não é o seu significado que o liga a outro significado, mas, ao contrário, é seu ser próprio e manifesto que tem ‘significado’. Na medida em que se exibe, reconhecemos nele algo diferente.114 (grifo no original e meu) No domínio do símbolo, seu significado está em sua presença e sua função de representação está fundada no fato de apresentar-se. Diferentemente a alegoria, “lo que habla es la referencia a um significado que tiene que conocerse previamente.”115 Mesmo que estes conceitos sejam distintos, eles possuem sua proximidade tanto na função de representação de uma coisa por meio de outra quanto no âmbito da aplicação religiosa. 113 ¿Que quieres dicer símbolo? Es, en principio, una palabra técnica de la lengua griega y significa ‘tablilla de recuerdo’. El anfitrión le regalaba a su huésped la llamada tessera hospitalis; rompía uan tablilla en dos, conservando una mitad para sí y regalándole la otra al huésped, puedan reconocerse mutuamente juntando los dos pedazos. Una especie de pasporte en la época antigua; tal es el sentido técnico originario de símbolo. Algo con lo cual se reconce a un antiguo conocido.” (grifo no original) (GADAMER, Hans- Georg. La actualidad de lo bello. 1991 , p. 40) 114 GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I: Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 2007, p. 119-20. 115 “O que fala é a referência a um significado que tem que se conhecer previamente.” (tradução livre do autor) (GADAMER, Hans-Georg. La actualidad de lo bello. 1991, p. 40) 44 53 De fato, a alegoria surge da “necessidade teológica de eliminar o que é chocante na tradição religiosa [...], e reconhecer por trás disso verdades válidas.”116 Essa necessidade é a que valida a alegoria ao uso retórico, justamente porque se vê a necessidade de recorrer à rodeios e a convenientes enunciados indiretos. Ainda, o símbolo se aproxima da alegoria em virtude da reinterpretação cristã do neoplatonismo. Assim como o símbolo possui uma função de elevação da alma na contemplação das coisas divinas e o discurso alegórico nos conduz a um significado “mais elevado”. “[...] Em função da inadequação do ser supra-sensível de Deus para nosso espírito acostumado ao sensível”117, Pseudo-Dionísio fundamenta a necessidade de se proceder simbolicamente. O pano de fundo dos dois conceitos se sintetiza no evento de que o não é possível conhecer o divino a não ser através do sensível. Positivamente, é só por meio do sensível que o divino pode ser conhecido. Contudo, a dimensão metafísica do símbolo o faz distanciar-se totalmente do uso retórico da alegoria, porque a partir do sensível se pode ser conduzido ao divino devido ao sensível ser “emanação e reflexo do verdadeiro”118. Nesse sentido, o símbolo se aproxima da estética. Gadamer diz que o simbólico, lembrando-se de Solger (1780-1832), designa uma “[...] ‘existência em que, de alguma forma, a idéia é reconhecida’, trata-se portanto da unidade íntima do ideal e do fenômeno, característica da obra de arte. O alegórico, ao contrário, só deixa surgir essa unidade significativa indicando um outro, fora de si.” 119 Do mesmo modo, o conceito de alegoria foi ampliado significativamente, ou seja, passou a designar também correspondentes representações imagéticas de conceitos abstratos da arte. Aqui não se pressupõe um parentesco metafísico original, mas “apenas um atribuir instituído por convenção e fixação dogmática, o que permite aplicar representações imagéticas a coisas destituídas de imagens.”120 Assim, no final do século XVIII, o que encontramos é uma oposição entre símbolo e simbólico. De um lado, a alegoria e, por outro, o símbolo, que detém, então, um significado interno e essencial, enquanto a alegoria tem significações exteriores e artificiais. Assim, “o símbolo é a coincidência do sensível e do não-sensível; a alegoria é uma referência significativa do sensível ao não-sensível.”121 (grifo nosso) 116 GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I: Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 2007, p. 120. 117 Ibid., p. 120. 118 Ibid., p. 121. 119 Ibid., p. 121. 120 Ibid., p. 122. 121 Ibid., p. 122. 45 54 Estes significados opostos, de símbolo e de alegoria, sendo influenciados pelo conceito de gênio e da subjetivação da “expressão”, são convertidos numa oposição de valores. Como ocorre esta influência? “Como ocorre na oposição entre arte e não arte, o símbolo, enquanto é inesgotável devido à sua determinação, aparece em oposição excludente frente ao que se encontra uma referência de significado mais precisa e que se esgota nela, como é o caso da alegoria.”122 Em Kant, na Crítica da faculdade do juízo, parágrafo 59, há a contrastação da representação simbólica com a esquemática. A representação simbólica é um conceito indireto, e não imediato – como o é o esquematismo transcendental –, por meio do qual a expressão contém apenas um símbolo para a reflexão. E mais, descobre que a linguagem trabalha de maneira simbólica, e, por fim, aplica o conceito de analogia principalmente para descrever a relação do belo com o bem ético, pois o “o belo é o símbolo do eticamente bom”. 123 O que Schiller neste sentido o sucedeu. Mas cabe, ainda, aqui fazer a pergunta gadameriana: “como é que o conceito de símbolo assim entendido acabou se convertendo no conceito oposto ao de alegoria” 124? É na correspondência entre Schiller e Goethe (1749-1832) que se começa a delinear uma nova cunhagem no conceito de símbolo. Enquanto Goethe dá importância à experiência, a uma experiência simbólica125 que é uma experiência da realidade e não tanto uma experiência estética, que o ajuda a escapar do empirismo – e até aí Schiller concorda –, Schiller faz objeções idealistas contra esta concepção de simbolismo da realidade e assim desloca o significado do símbolo em direção ao estético. Para Goethe, a oposição postulada pela teoria da arte, no que concerne entre símbolo e alegoria, “[...] não passa de uma orientação geral rumo ao significativo que ele [o símbolo] procura em todos os fenômenos.”126 No entanto, é decisivo, em Goethe, que o conceito de símbolo pressupõe “[...] que é a própria idéia que dá existência nisso.”127 O que vemos aí é uma redução do alcance 122 GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I: Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 2007, p. 122. 123 Ibid., p. 123. 124 Ibid., p. 123. 125 “Na conhecida carta de 17.08.97, Goethe descreve o estado de ânimo a que o levaram as impressões que tivera de Frankfurt, e ele diz que os objetos que evocam um tal efeito ‘são na verdade simbólicos, isto é, como eu quase não preciso dizê-lo, são casos eminente, que numa variedade característica se apresentam como representantes de muitos outros e englobam em si uma certa totalidade...” (GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I: Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 2007, p. 124) 126 GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I: Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 2007, p. 125. 127 Ibid., p. 126. 46 55 destes dois conceitos. A alegoria acaba se submetendo à orientação do símbolo, e este acaba relegando a si universalidade perante à arte. Correspondentemente, na “religião artística” grega, esse tipo de linguagem tinha certa familiaridade com a estética filosófica. É o que Schelling desenvolve em sua filosofia da arte a partir da mitologia. Assim, ao afirmar que a mitologia deveria ser entendida simbolicamente, e não alegoricamente, Schelling (1775-1854) prepara o conceito de símbolo para que este ocupe a posição central no âmbito da filosofia da arte. Por conseguinte, o conceito de símbolo só pôde ser elevado a um conceito básico da estética, e com sua devida amplidão universal, porque se encontra implícita a unidade interna de símbolo e simbolizado128, ou seja, para a pretensão de universalidade se teve que vencer certas resistências, a saber: imagem e sentido, forma e essência, e expressão e conteúdo. Nesse sentido, a solução dada por Gadamer que pode ser resumida nesta assertiva: “a forma religiosa do símbolo corresponde exatamente à determinação original do symbolon, a saber, ser a divisão do uno e a reunificação da dualidade.”129 Vemos, então, que o símbolo assume uma função impar para a estética. Entrementes, a depreciação da alegoria se dá a essa contraposta valência de ambos os conceitos. Autores como Solger, Friedrich Schlegel (1772-1829), Hegel e Creuzer (17711858), citados por Gadamer, são expressão da importância que a alegoria desempenhou em seus usos de linguagem. Todavia, a formação humanística do século XIX não manteve este uso de linguagem. De fato, a alegoria repousou sobre fortes tradições e seu significado esteve sempre determinado e declarado, o que se opõe à compreensão intelectiva por meio do conceito.130 Com isso, a alegoria repousa na tradição reconciliada do cristianismo com a Antiguidade até a arte barroca. E a ruptura com esta tradição, gerou um rompimento com a alegoria. “Isso porque no momento em que a essência da arte libertou-se de toda vinculação dogmática, podendo ser definida através da produção inconsciente do gênio, a alegoria tornou-se esteticamente problemática.”131 Por isso, a teoria da arte de Goethe teve influência em rotular o simbólico como conceito artístico positivo e o alegórico como conceito artístico negativo. Na obra de Goethe aquilo que não se encaixava no padrão da vivencialidade, que 128 GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I: Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 2007, p. 126. 129 Ibid., p. 126. 130 Ibid., p. 128. 131 Ibid., p. 128. 47 56 fora estabelecido por ele mesmo, acabava sendo deixado de lado como alegoricamente “sobrecarregado”.132 Isso acaba, finalmente, tendo influência também no desenvolvimento do campo da estética filosófica, que mesmo adotando o conceito de símbolo no sentido universal goethiano, acaba pensando inteiramente a partir do ponto de vista da oposição entre realidade e arte, isto é, com base no “ponto de vista da arte” e da religião estética cultural do século XIX.133 Assim, Gadamer chega a uma conclusão muito clara e objetiva: a contraposição entre o conceito de símbolo e de alegoria perde seu caráter vinculativo quando se reconhece sua ligação com a estética do gênio e a estética da vivência, pois o fundamento teórico desta foi a “liberdade da atividade simbolizadora do ânimo”. De fato, será que essa atividade simbolizadora não está sendo limitada ainda hoje pela sobrevivência de uma tradição míticoalegórica – pergunta Gadamer?134 O que está implícito nesta interrogação e, se se reconhece isso, são a relativização do antagonismo entre símbolo e alegoria, a problematicidade da consciência estética e o conseqüente conceito de arte. 2.4 A VERDADE DA ARTE Diante da reflexão feita até então, podemos destacar que a validade de conhecimento e moralidade que gozavam os conceitos humanísticos da Aufklärung foi perdida em razão da subjetivação e estetização dos conceitos de formação, sensus communis, gosto e juízo. Nesse sentido, segundo Gadamer, Kant foi o principal responsável por tal ação, foi o divisor de águas. Também, mostramos o longo alcance da estética kantiana até a estética do gênio e da vivência estética, pois era necessário compreendermos a conseqüente importância que teve para a estética, principalmente no que se refere à arte. Assim, veremos que a idéia de formação estética tem seu alicerce em Kant, com o conceito de gênio, e a seqüente e limitada vivência estética, onde o principal idealizador foi Schiller com o seu imperativo Comporta-te esteticamente! Contudo, os conceitos de gênio e arte vivencial – a vivência estética – possuem seus limites. Os conceitos de símbolo e alegoria, como vimos, foram contrapostos justamente pela estética do gênio e a arte vivencial, ou seja, a vivência 132 GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I: Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 2007, p. 128-9. 133 Ibid., p. 129. 134 Ibid., p. 129-30. 48 57 estética. Mas pelo que já pudemos constatar, tal fundamentação em que contrapõe estes conceitos é um equívoco. Portanto, vejamos em que consiste a formação estética, quais seus fundamentos, seu conteúdo e seus problemas. 2.4.1 O problema da formação estética Aquilo que entendemos por estético em Kant se difere do sentido que a consciência estética traz consigo. Em Kant o estético está vinculado à “teoria do espaço e do tempo de uma ‘estética transcendental’, entendendo a teoria do belo e do sublime na natureza e na arte como uma crítica do juízo.”135 Contudo, o ponto de virada do estético está em Schiller, o qual ao formular o imperativo Comporta-te esteticamente! transforma o pensamento transcendental do gosto em uma exigência moral, converte-o de uma pressuposição metodológica em uma pressuposição de conteúdo. Este buscou apoio em Kant, no que concerne a uma transição do prazer dos sentidos ao sentimento ético na significação do gosto. Mas, diante de tal imperativo, Schiller também se apóia em Fichte (1762-1714) com sua teoria dos instintos, “[...] segundo a qual o instinto lúdico deve operar a harmonia entre o instinto da forma e o instinto da matéria” 136, sendo esta a base para sua compreensão antropológica do livre jogo da capacidade de conhecimento. Com isso, a meta da educação estética é o cultivo desse instinto lúdico. Isso teve conseqüências de longo alcance, pois a arte será a arte da bela aparência e esta se oporá à realidade prática – e que passará a ser entendida a partir desta oposição. Sendo assim, Gadamer contrapontua: [...] surge agora a oposição entre aparência e realidade. Tradicionalmente, a ‘arte’, que abrange também toda transformação consciente da natureza para o uso humano, se determina pelo exercício de uma atividade complementar e enriquecedora no âmbito dos espaços dados e liberados pela natureza.137 Por conseguinte, rompe-se o círculo contenedor formado pela natureza. A arte se torna “[...] um ponto de vista próprio e alicerça uma pretensão de predomínio próprio e autônomo.”138 Passa-se a valer as leis da beleza e as fronteiras da realidades são suplantadas. 135 GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I: Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 2007, p. 131. 136 Ibid., p. 131. 137 Ibid., p. 132. 138 Ibid., p. 132. 49 58 O que se tem é o “reino ideal”, que deve ser defendido contra as diversas formas de limitação, mesmo se isso implicar a tutela moral do Estado e da sociedade. Contudo, uma educação estética pela arte acaba se tornando uma educação para a arte. Em vez de uma verdadeira liberdade ética e política, na qual a arte tem seu papel preparativo, aparece a formação de um “estado estético”, ou seja, uma sociedade cultural que se interessa pela arte. E, com isso, o dualismo kantiano entre o mundo dos sentidos e o mundo ético metamorfoseia em uma nova oposição: “a reconciliação entre ideal e a vida através da arte não passa de uma reconciliação particular. O belo e a arte emprestam à realidade somente um brilho efêmero e transfigurado. A liberdade do ânimo, à qual ambos elevam, só é liberdade num estado estético e não na realidade.” 139 O produto de uma formação estética é a chamada consciência estética. Esta surge com o “ponto de vista da arte”, a qual esta fundamentada primeiramente por Schiller. Só se comporta esteticamente quando se tem a consciência formada do que é comportar-se esteticamente. Não parece que, neste contexto, busca-se mais consciência, mas o que se produz é uma superficialidade e uma consciência desenraizada, irreal e alienada? A idéia de formação estética de Schiller reside em “[...] não mais vigorar nenhum padrão de conteúdo e em dissolver o vínculo que a une a obra de arte com o seu mundo.”140 Na qualidade de consciência estética, a filiação da obra de arte com o seu mundo já não tem valor, pois a consciência estética é o centro que o vivencia e é o critério pelo qual se mede tudo que possui valência como arte. Portanto, aquilo que se chama obra de arte e o que se vivencia esteticamente é produto de abstração. Sobre isso Gadamer explica: Na medida em que se abstrai de tudo em que uma obra se enraíza, como seu contexto de vida originário, isto é, de toda função religiosa ou profana em que se encontrava e em que possuía seu significado, então se tornará visível a ‘pura obra de arte’. Nesse sentido, a abstração da consciência estética produz algo que é, para si mesmo, positivo. Permite ver e existir por si mesmo aquilo que é a pura obra de arte. Chamo seu produto de ‘distinção estética’.141 (grifo nosso) A abstração que a consciência estética, distinção estética, pratica é uma seleção em relação à qualidade estética como tal, diferentemente do gosto – como fora tratado acima no capítulo primeiro –, que é determinado e cheio de conteúdo, o qual, assim, rejeita e seleciona. Também, a consciência estética se realiza na autoconsciência da vivência estética, 139 GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I: Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 2007, p. 132. 140 Ibid., p. 135. 141 Ibid., p. 135. 50 59 como afirma Gadamer. “A obra verdadeira é aquilo a que sempre se volta a vivência estética, e aquilo de que ela abstrai são os momentos não estéticos que lhes são inerentes: objetivo, função e significado de conteúdo."142 Como vemos, a consciência estética é definida pela capacidade de distinguir a intenção estética de tudo aquilo que não é estético. Abstrai-se de todas aquelas condições de acesso a que obra se torna apresentável a nós. Daí que a soberania conseqüente da consciência estética é poder realizar por toda parte uma distinção e ver tudo esteticamente, e isso lhe dá o caráter da simultaneidade da consciência estética – o simultâneo é qualidade estética presente em todas as coisas não estéticas. Assim, a forma de reflexão estética que se movimenta não é somente a forma do presente, mas também o que chamamos de consciência histórica, algo que está existindo pela história sem deixar de ser o que é. Isso significa que a consciência estética se converte em algo histórico. Outra característica que vale assinalar é que “a ‘consciência estética, que atua como consciência estética, produz para si mesma uma existência exterior própria.” 143 Gadamer cita que o que comprova esta produtividade são os lugares próprios para uma apreciação segundo esta consciência, como a biblioteca universal no âmbito da literatura, o museu ou teatro permanente, a sala de concertos, etc. “É assim que, através da ‘distinção estética’, a obra perde o seu lugar e o mundo a que pertence por se tornar parte integrante da consciência estética. Em contrapartida, o artista perde o seu lugar no mundo. Isso constata-se no descrédito daquilo que chamamos arte por encomenda.” 144 Para exemplificar, tomemos o caso do arquiteto que é dependente de uma encomenda ou de uma ocasião. Entrementes, nessa situação, o artista se torna uma figura ambígua, ou seja, o artista, sendo tão “livre como um pássaro ou peixe”, vê-se numa sociedade culta que espera da arte mais do que lhe corresponde, pois é vista como consciência estética, sob o critério da arte, onde esta mesma sociedade despojou-se de suas tradições religiosas.145 Ao artista é cabido ser um redentor do mundo! Deve gerar a redenção de um mundo que se perdeu. Com isso, há a busca de uma nova saga que seja capaz de unir a todos, congregar o público e criar uma comunidade. Contudo, esta pretensão já se encontra maculada por si só. Cada artista “[...] acaba encontrando sua própria comunidade, a particularidade da formação de uma tal comunidade só testemunha a desagregação que vem ocorrendo. É 142 GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I: Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 2007, p. 135. 143 Ibid., p. 137. 144 Ibid., p. 138. 145 Ibid., p. 138. 51 60 somente a configuração universal da formação estética que une a todos.”146 Assim, este processo de formação, formação estética, acaba sendo problemático quando sua pretensão à universalidade já se encontra desagregado por si mesmo e que, também, o estético fica reduzido ao sujeito perdendo seu valor cognitivo. Nesse sentido, aprofundemos a crítica gadameriana a tal consciência estética. 2.4.2 Crítica à abstração da consciência estética Como vimos, a abstração – distinção estética – que eleva ao “estético puro”, está claramente incapaz por si mesma de alcançar sua pretensão de universalidade. Nesse caso, Gadamer busca mostrar as conseqüências da subjetividade como principio da consciência estética, o qual desloca, assim, o estético a um domínio sempre desprovido de valor cognitivo. O fato de iniciar esta busca com Richard Hamann (1879-1961), evidencia que este caminha no mesmo rumo da suspensão da abstração da consciência estética, apesar de reportar-se a Kant para a construção de sua estética sistemática.147 Com o fracasso de Hamann no que concerne ao ponto de vista da arte, a qual esta é coincidida com o conceito de virtuosidade, Gadamer começa a esquadrinhar o problema basilar da estética a partir de Hamann. “O conceito básico da estética donde parte Hamann é o da ‘significabilidade própria da percepção’.”148 Segundo Gadamer, a significabilidade própria é significativa por si mesma, auto-significativa; sendo assim, busca-se cortar algo de vinculativo, que poderia determinar o seu significado. Então, este conceito pode constituir-se basilar para a estética? “Pode-se, afinal, utilizar o conceito de ‘significabilidade própria’ para uma percepção em geral? Não 146 GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I: Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 2007, p. 139. 147 “Na medida em que elabora regularmente o momento estético onde quer que o encontre, ganham legitimação estética também as formas especiais vinculadas a um fim, como a arte monumental ou a arte do cartaz. Mas, também aqui, Hamann mantém sua tarefa da distinção estética, pois nela distingue o estético das referências extra-estéticas nas quais se encontra, como no caso em que podemos dizer que alguém se comporta esteticamente mesmo fora da experiência da arte. Desse modo, restabeleçamos todo o alcance do problema da estética e recuperamos o questionamento transcendental que fora abandonado pelo ponto de partida da arte e pela separação que fazia entre a bela aparência e a rude realidade. [...] A consciência estética possui uma soberania ilimitada sobre tudo. Mas a tentativa de Hamann fracassa no ponto inverso, isto é, no conceito de arte. Ela afasta esse conceito tão conseqüentemente do âmbito do estético que acaba fazendo com que o conceito de arte coincida com o de virtuosidade. Aqui distinção estética é levada ao extremo. Ela abstrai até a arte.” (GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I: Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 2007, p. 139-40) 148 GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I: Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 2007, p. 140. 52 61 devemos conceder também ao conceito da ‘vivência’ estética o que creditamos à percepção, ou seja, que percebe o verdadeiro, que continua referida ao conhecimento?” 149 Para ajudar-nos recorramos a Aristóteles que trata da aisthesis, quer dizer, estética, mas com o sentido grego do termo, ou seja, tudo aquilo que toca o sentir, o sensível: [...] toda aisthesis se dirige a um universal, mesmo que cada sentido tenha seu campo específico e que o que está dado nele de imediato, enquanto tal, não é universal. Mas a percepção específica de um dado dos sentidos é, como tal, uma abstração. [...] No entanto, o ver ‘estético’ se caracteriza evidentemente pelo fato de não referir apressadamente o olhar a um universal, ao significado conhecido, a um fim planejado ou algo parecido, detendo-se antes nesse olhar como estético. Mas nem por isso deixamos de estabelecer esse tipo de referência nesse olhar [...]150 Do que foi proporcionado aos sentidos, nossa percepção não é nunca um simples reflexo, ou seja, uma percepção pura, “pois continuaria sendo sempre um apreender enquanto... Todo apreender enquanto... articula o que está ali, abstraindo de... vendo na perspectiva de... vendo em conjunto com...”151 (grifo no original) Ao contrário, a percepção estabelece uma referência a algo, mesmo sendo percepção estética. Não resta dúvida, ainda, de que o que se vê aí, por causa da abstração, pode apartar elementos que estão aí; ou o ver pode pôr o que não está aí; ou ainda a tendência da invariabilidade atuante no próprio olhar, faz ver de forma mais igual possível as coisas. De fato, essa crítica à teoria da percepção pura recebeu uma formulação fundamental de Heidegger. O olhar que se detém e o perceber não são simplesmente um ver o puro aspecto, mas continuam sendo, eles próprios, um apreender como... Só quando reconhecemos o que está representado é que podemos ler. No caso da música absoluta, embora ela seja uma “[...] uma espécie de matemática sonora, onde não há conteúdos semânticos objetivos para se perceber, o entender mantém uma referência para com o que é significativo. É a indeterminação dessa referência que representa a relação específica de significação de uma música.”152 Como vemos, a percepção abarca sempre o significado. De fato, quando se procura a unidade da figura estética somente em sua forma e em oposição ao conteúdo seu, isso não passa de um formalismo ao avesso, conforme Gadamer. Na obra de arte o conteúdo está sempre vinculado à unidade de forma e significado que deve abarcar. À guisa de 149 GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I: Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 2007, p. 140. 150 Ibid., p. 141. 151 Ibid., p. 141. 152 Ibid., p. 142-3. 53 62 ilustração, o motivo, expressão usual dos pintores, é sempre imaterial sob o ponto de vista ontológico, mas isso não quer dizer que seja destituído de conteúdo. “Antes, algo torna-se um motivo por possuir uma unidade convincente e porque o artista deve impor essa unidade como unidade de um sentido, assim como aquele que a recebe deve entendê-la como unidade.”153 Assim, que para fazer jus à arte, a estética deve ultrapassar a si mesma e renunciar à pureza do estético. Mas o conceito de gênio é adequado para essa tarefa? No século XVIII, temos o culto ao gênio e, no século XIX, a sacralização do artístico, característica da sociedade burguesa desta época. O que Gadamer evidencia é que o conceito do gênio é concebido pelo ponto de vista do observador, ou seja, este conceito é convincente não para quem cria, mas para quem julga. Pelo conceito de gênio está o ponto de vista de quem contempla. “No es al que crea, sino a la faculdad que juzga a la que este concepto le resulta convincente. Lo que al que contempla le parece un milagro, queda reflejado en lo milagroso de una criación realizada por medio de una inspiración genial.” 154 Já a compreensão que um criador tem de si mesmo é muito mais sóbria. “Él ve también posibilidades de hacer y de uma competencia, cuestiones de técnica, allí donde el contemplador que interpreta busca un secreto y un significado profundo.”155 E diante de uma estética do gênio, como ela se explicaria diante do fabricado artesanalmente, o que possui assim sua utilidade? Outro ponto, é que o conceito de gênio é concebido como a idéia de uma “inconsciência sonâmbula” pela qual ele cria. Ato criativo do gênio é a resposta ao desaparecimento moderno da criação divina, sendo posto em seu lugar a genialidade criativa. “Con la desaparición de este horizonte [da criação] una tal fundamentación de la estética tenía que llevar a una subjetivación radical al continuar desarrollándose la doctrina de la ausencia de reglas en el genio.”156 Mas o que dizer de um Leonardo da Vinci, no qual o artesanato, a invenção mecânica e a genialidade artística estavam indiferenciados e unos? E mais, o que dizer de um produto artesanal ou uma obra mal feita de uma genialidade que fundamenta o 153 GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I: Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 2007, p. 143. 154 “Não é ao que cria, senão à faculdade que a julga a que este conceito lhe resulta convincente. O que ao que contempla lhe parece um milagre, fica refletido no milagroso de uma criação realizada por meio de uma inspiração genial.” (tradução livre do autor) (GADAMER, Hans-Georg. Estética y hermenéutica. 2006, p. 68) 155 “Ele vê também possibilidades de fazer e de uma competência, questões de técnica, ali donde o contemplador que interpreta busca um secreto e um significado profundo.” (tradução livre do autor) (GADAMER, HansGeorg. Estética y hermenéutica. 2006, p. 68) 156 “Com o desaparecimento deste horizonte [da criação] uma tal fundamentação da estética tinha que levar a uma subjetivação radical ao continuar desenvolvendo-se a doutrina da ausência de regras no gênio.” (tradução livre do autor) (GADAMER, Hans-Georg. La verdad de la obra de arte. 2002, p. 05) 54 63 que seja a obra de arte? E o desfrute que tem, por sua vez, na estética do gênio? Cabe lembrar que para o desfrute de uma obra de arte do gênio, dever-se-ia ter como que um apreciador congenial, ou seja, as obras que eram feitas pelo gênio deveriam ser apreciadas ou vistas sob a ótica de um contemplador genial. Isso é visto claramente na arte dos modernos, onde sacralizaram tudo o que envolvia à obra de arte e aos artistas. Contudo, o que se vê aqui é uma redução tanto do que cria como do que desfruta diante dos parâmetros do conceito do gênio, já que ele não justifica o que seja uma obra de arte, o artista e o que desfruta. “Como deve ser pensada agora, sem o conceito de gênio, a essência do desfrute da arte e a diferença entre o que é feito artesanalmente e o que é criado artisticamente? Como se deve pensar também a consumação de uma obra de arte, o seu estar pronta?” 157 Quando se fala em obras cuja finalidade é alcançada, é porque foram alcançadas as finalidades que determinavam sua produção. Mas também existem obras cuja produção não remeterá ao uso. “Nesse caso, será que o ser da obra de arte se apresenta apenas como uma interrupção de um processo de configuração que, virtualmente aponta para além de si? Será que, em si mesmo, não poderá, de alguma forma, consumar-se?”158 Conforme Gadamer, Paul Valéry (1871-1945) viu desta forma: “a interrupção de um processo de configuração não pode conter nada de vinculante. Daí resulta pois que tem de ser deixado ao receptor o que venha a fazer, de sua parte, daquilo que tem diante de si.” 159 O que se tem é uma nova produção diante do encontro com a obra. Paul Valéry para escapar da produção inconsciente do gênio, acabou se deixando levar por ele. Desse modo transferiu ao leitor e ao intérprete o “poder pleno da criação absoluta”, que ele mesmo não quer exercer. Nem a genialidade da compreensão nem a genialidade da criação oferecem informação alguma. Mas se partirmos do conceito de vivência estética, ao invés do conceito de gênio, chegamos a outro problema. A vivência estética é absoluta descontinuidade, isto é, “[...] decomposição da unidade do objeto estético na multiplicidade das vivências. [...] [Como também conduz] à absoluta pontualidade, que suspende tanto a unidade da obra de arte como a identidade do artista consigo mesmo e a identidade de quem a compreende ou a desfruta.”160 A obra de arte é um ponto “nodal” no qual se encontra o objeto estético nas inúmeras 157 GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I: Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 2007, p. 145. 158 Ibid., p. 146. 159 Ibid., p. 146. 160 Ibid., p. 147. 55 64 vivências estéticas e é o único local onde se encontra o objeto estético. Mas a vivência estética é de tal forma que o objeto estético não chega a ser dado em sua real totalidade, devido à abstração, e daí, conseguintemente, provoca a perda de identidade descrita acima. Sendo assim, será que tudo isso que fora pensado não conduz a uma tarefa? Se o problema da arte vem, desde a estética kantiana, deslocada de sua pretensão de verdade, não faz-se necessário que a obra de arte diga por si mesma o que quer dizer? O vínculo que a une à realidade não está, assim, implicado? Ao citar Kierkegaard (1813-1855), Gadamer mostra que o fenômeno da arte coloca uma tarefa à existência, a saber: “[...] em face da atualidade arrebatadora de cada impressão estética, alcançar a continuidade da autocompreensão, que é a única capaz de sustentar a existência humana (Dasein).”161 Para Gadamer, então, ontologicamente a existência estética está situada dentro da continuidade hermenêutica da existência humana. Diante de certos limites da autocompreensão histórica da existência (Dasein) perante o fenômeno estético, a fenomenologia hermenêutica possui a tarefa de “em face de tal descontinuidade do ser estético e da experiência estética, preservar a continuidade hermenêutica que perfaz o nosso ser.”162 Com isso, conseqüente e substancialmente, quer mostrar a partir de suas reflexões feitas o seguinte: O panteão da arte não é uma atualidade atemporal que se revela à consciência estética pura, mas a obra de um espírito histórico que se reúne e se congrega historicamente, também a experiência estética é uma forma de autocompreender-se. Mas toda autocompreensão se realiza ao compreender algo distinto e inclui a unidade e a mesmidade desse outro. Uma vez que encontramos no mundo a obra de arte e em cada obra de arte individual um mundo, esta não continua sendo um universo estranho onde, por encantamento, estamos à mercê do tempo e do momento. Nela, ao contrário, aprendemos a nos compreender, e isso significa que na continuidade da nossa existência suspendemos a descontinuidade e a pontualidade da vivencia. Por isso, com relação ao belo e à arte, importa ganhar um horizonte que não busque imediatez, mas que corresponda à realidade histórica do homem. O apelo à imediatez, à genialidade do momento, ao significado da ‘vivência’, não consegue resistir à pretensão da existência humana à continuidade e à unidade própria da autocompreensão. A experiência de arte não deve ser relegada à falta de comprometimento da consciência estética.163 Dentro de uma continuidade histórica, a experiência estética é uma forma de autocompreender-se, ou seja, nela há uma continuidade de compreensão para com o nosso mundo, a partir do mundo que se nos apresenta. O gênio e vivencia estética não conseguem 161 GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I: Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 2007, p. 148. 162 Ibid., p. 148. 163 Ibid., p. 148-9. 56 65 dar conta da continuidade própria da autocompreensão, porque o fruto de ambos, a consciência estética, não é comprometida ao mundo que vivemos e nem ao mundo que a própria obra de arte é. O ente e o ser que tem o ocultamento e o desocultamento – isso em termos heideggerianos – se vêem no que a obra de arte ajuda a entender. É sempre um desocultar a verdade, daí a sua oposição ao ocultamento. Nesse âmbito, encontramos a moralidade e o conhecimento que nos advém quando travamos um “encontro” com o mundo que é uma obra. Com isso, Gadamer mostra uma pergunta que podemos considerá-la central no desenrolar das reflexões feitas até aqui, a ver: E será que a tarefa da estética não está justamente em fundamentar que a experiência da arte é uma forma de conhecimento sui generis, certamente distinta daquela do conhecimento sensível que oferece à ciência os últimos dados, a partir dos quais ela constrói o conhecimento da natureza, também diferente de todo conhecimento racional da ética e de todo o conhecimento conceitual, mas mesmo assim sempre conhecimento, ou seja, mediação da verdade?164 (grifo no original) A dificuldade de se reconhecer isso em Kant é tributada pelo conhecimento advindo do conceito de conhecimento da ciência e do conceito de realidade da ciência da natureza. No ver de Gadamer, Hegel mostra a experiência da arte reconciliada com a consciência histórica, no que a estética se torna uma história das cosmovisões, ou seja, uma “história de verdade”, tal qual se retrata no “espelho da arte”. E isso valida a pretensão gadameriana de justificação de conhecimento da verdade na experiência da arte. O conceito de cosmovisão surge pela primeira vez em Hegel, na sua Fenomenologia do Espírito, “[...] para caracterizar a complementação postulatória da experiência ética fundamental em uma ordem moral do mundo, proposta por Kant e Fichte, só irá encontrar sua cunhagem genuína na estética.”165 Onde o exemplo-guia, nesse sentido, é a história da arte, o qual não possui uma meta de progresso diante da sua multiplicidade. De fato, é no conjunto das ciências do espírito que, diante da variabilidade das experiências, podemos reconhecer a verdade e o que se entende por verdade. “Não poderemos fazer justiça ao problema da arte partindo do ponto de vista da consciência estética, mas apenas partindo desse horizonte mais amplo.” 166 A experiência estética deve ser apreendida como experiência, pois “[...] todo o encontro com a linguagem da arte é um encontro com um acontecimento inacabado, sendo ela mesma uma parte desse acontecimento. É isso que deve 164 GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I: Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 2007, p. 149-50. 165 Ibid., p. 150. 166 Ibid., p. 151. 57 66 erigir contra a consciência estética e sua neutralização da questão da verdade.”167 (grifo no original) A pergunta pela verdade da arte é uma pergunta de longo alcance, pois ela prepara o caminho para a autocompreensão das ciências do espírito. Assim, a experiência da arte se torna um fenômeno hermenêutico que não se enquadra nos moldes do método científico. A compreensão pertence a próprio encontro com a obra de arte. Contudo, este encontro só poderá ser aclarado pelo entendimento do modo de ser da obra de arte. Daí, surge a necessidade de aclaramento sobre o modo de ser que mostrará o que esta experiência pode, verdadeiramente, dizer. O que vemos, então, é que a formação estética do século XIX é uma formação para a estética, que leva à consciência estética, sendo seu produto a distinção estética. Dentro dessa perspectiva, temos o conceito de gênio kantiano que nos seus sucessores teve a primazia ante ao juízo de gosto e foi interligado a uma vivência estética. Com isso, Kant foi de fundamental importância para a futura compreensão da estética, e, também, da obra de arte. Diante do reconhecimento da sobrevivência da alegoria diante do imperativo do símbolo, torna-se duvidável a vivência estética e gênio, e igualmente o seu produto, a consciência estética. Assim, a reflexão gadameriana nos levou a um limite de pretensão de universalidade desta mesma consciência, como também crítica a abstração por ela realizada, a qual mutila a pretensão de verdade de uma obra, retira-a de seu mundo e de sua história. Portanto, faz-se necessário compreender o que a obra de arte quer falar, é necessário indagarmos pelo seu modo de ser. Já que ela faz parte da continuidade da autocompreensão humana perante uma obra. Então, teremos que olhar a obra de arte a partir do ponto de vista onto-hermenêutico. Assim, entramos naquilo que Gadamer se refere a Ontologia da obra de arte. O que será tratado neste próximo capítulo. 167 GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I: Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 2007, p. 151. 67 3 A ONTOLOGIA DA OBRA DE ARTE Seguindo o itinerário em Verdade e método, na sua primeira parte, observamos que o proceder de Gadamer em uma crítica à consciência estética, se dá ao mesmo tempo em que questiona o processo de auto-evidência das ciências humanas e põe-nos em face da verdade da arte. O que se desenvolverá, então, neste capítulo, A ontologia da obra de arte, é uma reflexão que submete a experiência da obra de arte à tarefa crítica da hermenêutica filosófica. Sendo assim, uma análise hermenêutica sobre o fenômeno da arte implica necessariamente em sua análise ontológica, ou seja, qual o modo de ser da obra de arte? É possível falar em um caráter de universalidade? 3.1 O JOGO Para analisar esta questão acerca do modo de ser da obra de arte, Gadamer parte do conceito de jogo, conceito este que desempenhou um importante papel na estética. Contudo, ele liberta este conceito do significado subjetivo que Kant e Schiller emprestaram a este conceito e que domina toda a nova estética e antropologia. Ao contrário, o jogo refere-se ao modo de ser da própria obra de arte, já que a consciência estética não se refere ao estado das coisas. Assim sendo, o conceito lúdico de jogo possui uma referência para o que é sério, não somente porque nisso encontra sua finalidade, mas pelo fato de que no jogar encontra-se uma seriedade própria, “até mesmo sagrada”.168 “E, não obstante, no comportamento lúdico não desaparecem simplesmente todas as referências à finalidade que determinam a existência (Dasein) atuante e cuidadosa, mas, de uma forma muito peculiar, permanecem em suspenso.”169 (grifo no original) “A estrutura ordenadora do jogo faz com que o jogador se abandone a si mesmo, dispensando-o da tarefa da iniciativa que perfaz o verdadeiro esforço 168 GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I: Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 2007, p. 154. 169 Ibid., p. 154. 59 68 da existência.”170 É a seriedade do jogo que determina que um jogo seja jogo e o que joga sabe que o jogo é regido pela seriedade dos fins que o compõem. Figura 2: Jogo de xadrez. Fonte: http://www.clubedexadrez.com.br/portal/umuarama/xadrez5.jpg. Acessado em: 25 de nov. de 2008. Mesmo que o jogador diga que joga por divertimento, o jogo é regido por suas regras, ele possui uma seriedade própria, seriedade aos fins a serem alcançados que faz com que o seja jogo. Assim, podemos inferir a correspondência que há no jogo para com a obra de arte – o jogo da obra de arte. O jogo tem uma natureza própria, independente da consciência daqueles que a jogam. E, como vimos, a experiência estética de uma obra de arte, por ser experiência, é algo que nos transforma porque passamos pelo perigo – ex perior171 – de algo próprio. Por isso, saímos diferentes de quando entramos numa peça teatral. Ainda, nas inúmeras aplicações que o jogo retém – no dizer de Gadamer: jogo das cores, jogo das luzes, jogo da peça da máquina no rolamento, etc. –, está implícito um movimento que “vaivém” que não se fixa em nenhum alvo onde possa terminar. Isso determina que o sujeito faz parte do jogo, não sendo ele quem determina o jogo, mas o jogo que o determina. É, pois, o jogo que se realiza no seu movimento – dando-lhe o caráter autônomo? – e a realização do seu movimento é o próprio jogo. O movimento do jogo como tal também é desprovido de substrato. É o jogo que é jogado ou que se desenrola como jogo; não há um sujeito fixo que esteja jogando ali. O jogo é realização do movimento como tal. Assim falamos, por exemplo, do jogo das cores e com isso não nos referimos ao jogo de uma única cor com outra mas estamos aludindo ao processo ou à 170 GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I: Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 2007, p. 158. 171 Termo latino, ex perior, donde advém o termo experiência, que significa atravessar o perigo. 60 69 visão unitários onde se mostra a multiplicidade variável de cores. 172 (grifo nosso) É na forma medial que o sentido mais originário de um jogo se manifesta. A isso se refere aquele dizer: tal jogo está acontecendo. E não o sujeito que deva se comportar como jogador para que o jogo seja jogado. De fato, percebemos, em princípio, o “primado do jogo face à consciência do jogador”173. Pensemos num concerto, ele só existe porque é na sua forma medial que se realiza, ou seja, porque está sendo tocado algo, que faz que este seja um concerto. Não sendo qualquer sujeito que determine que o concerto seja um concerto. Figura 3: Um concerto. Fonte: http://www.flickr.com/photos/giuliolaforenza/234829986/. Acessado em: 25 de nov. de 2008. Outra característica que Gadamer explicita é a de que o próprio jogo acaba se tornando um próprio risco para o jogador, sendo que este risco é o que exerce atração sobre o jogador, ou seja, o atrativo está neste mesmo risco. Isso apontará para outro traço comum de como a natureza do jogo no comportamento lúdico se reflete: “Todo jogar é um ser-jogado. O atrativo do jogo, a fascinação que exerce, reside justamente no fato de que o jogo se assenhora do jogador. [...] É o jogo que mantém o jogador a caminho, que o enreda no jogo e que o mantém nele.”174 (grifo no original) A expressão desta característica, de que todo jogar é um ser jogado, dá-se pela razão de que os jogos possuem espírito próprio e especial, isto é, os próprios jogos possuem cada um seu espírito próprio. Portanto, o jogo é um movimento auto-regulado, no qual o jogador se submete a estas regulamentações. O jogador, quando joga um jogo, atravessa um perigo intrínseco de enfrentar as regras do jogo – e isso vai ao encontro de ex perior. Fazer 172 GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I: Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 2007, p. 156-7. 173 Ibid., p. 158. 174 Ibid., 2007, p. 160. 61 70 uma experiência é lançar-se num jogo que é jogado conforme suas regras e não segundo as regras do jogador. O movimento do vaivém que um determinado jogo produz confirma este fato: o jogo joga conosco. Assim, “o que constitui a essência do jogo são as regras e disposições que prescrevem o preenchimento do espaço lúdico.”175 (grifo nosso) No caso do ser humano, o jogo só é jogado porque o homem escolhe, ele quer jogar, ele joga algo porque pode escolhê-lo. Também, “o fato de que todo jogo seja jogar alguma coisa passa a valer por primeiro onde o vaivém ordenado do movimento do jogo é determinado como um comportamento e se distingue de condutas de natureza diferente”176 (grifo no original), ou seja, o homem pode escolher jogar algo e quando o faz, o jogo coloca uma tarefa àquele que joga e o seu comportamento é transformado nestas tarefas que o jogo determina, “[...] porque o verdadeiro fim do jogo não é a solução dessas tarefas, mas a ordenação e configuração do próprio movimento do jogo.”177 Nesse sentido, o êxito de uma tarefa de um jogo representa-a, pois o cumprimento da tarefa não remete à nenhuma correlação de fim, mas representa a própria tarefa, o próprio acontecer do seu movimento. Portanto, o modo de ser do conceito de jogo é auto-representação, o qual é um aspecto ontológico universal de sua natureza, segundo Gadamer. Então, o que se pode perceber até aqui, é que o conceito de jogo sem a seriedade a fins deixa de ser jogo, e o movimento que lhe é inerente, o vaivém, dá ao jogo da obra de arte o caráter de mediação, com o qual temos o primado do jogo ao invés do jogador. Mas no jogo humano, o jogo, como obra de arte, aponta-nos para a aquilo que chamamos de representação, o que é o modo de ser do jogo. Nesse intuito, vejamos o que Gadamer quer nos mostrar. 3.1.1 Representação O conceito de representação tem sua origem na representação própria do direito canônico e público. “En ellos, representación no quiere decir que algo esté ahí en lugar de otra cosa, de un modo impropio e indirecto, como si de un sustituto o de un sucedáneo se tratase. Antes bien, lo representado está ello mismo ahí y tal como puede estar ahí en absoluto.”178 175 GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I: Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 2007, p. 160. 176 Ibid., p. 161. 177 Ibid., p. 161. 178 “Neles, representação não quer dizer que algo esteja aí em lugar de outra coisa, de um impróprio e indireto, como se de um substituto ou de um sucedâneo se tratasse. Antes bem, o representado está ele mesmo aí e tal 62 71 Assim, na autorepresentação ou representação de um jogo humano o representado está aí por inteiro. Na medida em que minha representação está para o jogo – e sendo esta minha tarefa –, o jogo se representa e desta forma me identifico com o jogo. [...] a auto-representação do jogo humano repousa em um comportamento vinculado aos fins aparentes do jogo, mas seu ‘sentido’ não reside realmente na conquista desses fins. Ao contrário, o entregar-se à tarefa do jogo é, na verdade, um modo de identificar-se com o jogo. A auto-representação do jogo faz com que o jogador alcance sua própria auto-representação jogando algo, isto é, representando-o. É só porque jogar já é sempre um representar que o jogo humano pode encontrar na representação a tarefa do jogo. 179 (grifo nosso) Por mais que o jogo tenha o caráter fechado, ele deixa cair uma parede. O jogo já não é um mero auto-representar-se, mas representar para... De acordo com a própria possibilidade todo representar é um representar para alguém, isso alude àqueles que participam como espectadores. “[...] Por mais fechado em si mesmo que seja o mundo representado no espetáculo cúltico ou profano, está como que aberto para o lado do espectador. É só neste que ganha seu inteiro significado.”180 E pelo âmbito do espectador Gadamer acrescenta: “[...] é aquele que não participa do jogo mas assiste quem faz a experiência mais autêntica e que percebe a ‘intenção’ do jogo. Nele o jogo (a representação) eleva-se à sua idealidade própria.”181 Por fim, quando um jogo se transforma em espetáculo, por exemplo, numa peça teatral, o que acontece é uma mudança total. O espectador é colocado no lugar do jogador, ou seja, o ator. Já não é o artista para quem e em quem se joga (representa) o jogo (espetáculo). Mas inversamente, também o jogador poderá absorver o todo em que ele, representando, desempenha o seu papel. “No fundo, aqui se anula a distinção entre jogador e [...] espectador. A exigência de se visar o jogo mesmo, no seu conteúdo de sentido, é igual para ambos.” 182 O que se tem é um acontecimento, o próprio jogo, aliás, o próprio jogo da obra de arte, no qual seu conteúdo de sentido anula as distinções de papel e todos visam o sentido. como pode está aí em absoluto.” (tradução livre do autor) (GADAMAER, Hans-Georg. La actualidad de lo bello. 1991, p. 43) 179 GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I: Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 2007, p. 162. 180 Ibid., p. 164. 181 Ibid., p. 164. 182 Ibid., p. 164. 63 72 Figura 4: Peça teatral. Fonte: http://www.passeiweb.com/saiba_mais/arte_cultura/teatro/teatro_shakespeare. Acessado em: 25 de nov. de 2008. Em suma, não existem sujeitos que se comportam ludicamente, mas algo que interpela, que faz com que entremos num mundo alheio, no qual fazemos experiência e assim saímos transformados. Com isso, podemos fazer uma primeira crítica ao subjetivismo estético até agora estudado. Quando olhamos do ponto de vista da obra de arte e perguntamos pelo seu modo de ser, o que nos aparece é que o que determina o sentido na arte não é a consciência de um sujeito, mas a própria obra. Prova disso está na transformação que ocorre conosco quando entramos em contato com o sentido do jogo da obra de arte. Mas Gadamer vai mais além. Diante de uma obra de arte, ou seja, a representação que se tem diante de um espetáculo, a mudança é tal que ocorre o que chama de transformação em configuração. Expliquemo-la. 3.1.2 Transformação em configuração e mediação total A consumação da mudança total que vimos ocorrer com o jogo humano, torna-se, então, transformação em configuração. “É somente através dessa mudança que o jogo alcança sua idealidade, de modo que poderá ser pensado e compreendido enquanto tal.” 183 Por princípio, o jogo, como tal, é repetível e duradouro. Tem o caráter de obra, do ergon.184 E é nesse sentido que ele chama de configuração. Já no que se refere à transformação, isso 183 GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I: Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 2007, p. 165. 184 É importante mostrar que Gadamer propõe que se mude o termo obra para conformação (Gebild): “Sí, precisamente para subrayar que una conformación llega a desarrolar sua propria forma como partiendo de dentro y está ahí, como ella misma y solo como ella misma. E no por ejemplo como una construcción para la que hubiera un plano de construcción.” (CARSTEN, Dutt. En conversación con Hans-Georg Gadamer (Hermenéutica-Estética-Filosofía Práctica). 1998, p. 84) 64 73 significa que, frente a todos os elementos de um espetáculo, o jogador, o espectador e até mesmo o autor, o jogo “possui uma autonomia absoluta” 185, tanto é que estão vinculados à obra. Para a determinação do ser da arte isso é de fundamental importância. Transformação aqui não é o mesmo que modificação. Transformação é algo distinto: Modificação sempre sugere que aquilo que se modifica permanece e continua sendo o mesmo. Mesmo que se modifique totalmente, modifica-se algo nele. [...] A transformação, ao contrário, significa que algo se torna uma outra coisa, de uma só vez e como um todo, de maneira que essa outra coisa em que se transformou passa a constituir seu verdadeiro ser, em face do qual seu ser anterior é nulo. Assim a transformação em configuração significa que aquilo que era antes não é mais. Mas também que o que agora é, que se representa no jogo da arte, é o verdadeiro que subsiste.186 (grifo nosso) No jogo (espetáculo), a identidade daquele que joga (artista que representa) não continua existindo para ninguém. A subjetividade não é o ponto de partida, mas sim o próprio jogo, o que é jogado por aqueles que o jogam. Se se descrevesse a partir do jogador, o que se teria não é uma transformação – que o transformaria todo –, mas sim um disfarce, que revela uma continuidade para consigo mesmo e não para os outros. No entanto, o que se pode perguntar unicamente é qual “a intenção do que está aí” 187, pois a transformação que ocorreu devido à mudança total no espetáculo faz subsistir o verdadeiro. O que existe não são os jogadores, mas o que é jogado por eles, constituindo-se, assim, um mundo alheio, diferente da realidade cotidiana, ou seja, o que existe não é mais “o mundo onde vivemos, que é o nosso próprio mundo.”188 O mundo que a transformação em configuração traz é um outro mundo, fechado em si, o qual o jogo joga. Um mundo carregado de sentido e isso nos remete à configuração – a um mundo próprio. [...] na medida em que é configuração, encontrou sua medida em si mesmo e não se mede com nada que esteja fora de si mesmo [– repousa sobre si mesmo]. [...] Não admite mais nenhuma comparação com a realidade como se esta fosse o padrão secreto de toda semelhança figurativa. [...] porque por ela está falando uma verdade superior. [...] Isso só pode ocorrer [...] quando alguém sabe perceber o sentido do jogo que se desenrola diante dele. A alegria ante o espetáculo que se oferece é em ambos os casos a alegria do conhecimento. [...] A transformação é na verdade transformação no verdadeiro. [...] é a salvação e o retorno ao verdadeiro ser. Na representação do jogo surge o que é. Nela será sacado e trazido à luz aquilo que, noutras ocasiões, sempre se encobre e se retrai.189 (grifo nosso) 185 GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I: Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 2007, p. 165. 186 Ibid., p. 166. 187 Ibid., p. 167. 188 Ibid., p. 167. 189 Ibid., p. 167. 65 74 Diante de um espetáculo em que tanto o que representa (artista) quanto o espectador que assiste, o que se tem é um acontecimento190, tem-se uma transformação em configuração. Isso significa que a obra é transformação por possuir uma autonomia absoluta frente ao ator, ao espectador e ao autor. Tal é sua autonomia que ela faz subsistir o verdadeiro e transforma àqueles que jogam e assistem em outro ser devido à verdade de sua representação - o ser que se chega é justamente o retorno ao verdadeiro ser. Entramos em contato com todo o ser, diferentemente de outras vezes onde o vemos como que com máscaras. Ainda, a obra, também, é configuração no sentido de repetível e duradouro, justamente pelo fato de ser ergon. Ora, se é repetível e duradoura, é porque esta é um mundo próprio que se encontra uma verdade superior, ou seja, aí está o sentido do jogo. Mas é possível enxergar o jogo da arte na vida? Tanto na tragédia ou comédia da vida ou do palco, ao citar Platão, Gadamer vê que ele mesmo em certas ocasiões não soube distinguir uma e outra. Isso ocorre quando o que se desenrola aponta para o sentido do jogo. Quando se percebe, de fato, o sentido do jogo, estas distinções são suplantadas; pois o que está falando é uma “verdade superior”, acima de qualquer comparação. É o conhecimento que está sendo oferecido. Mas que conhecimento é este que fala Gadamer? O jogo, por ser transformação em configuração, é a transformação no verdadeiro, é volta ao verdadeiro ser. Por conseguinte, na representação do jogo surge o que é, o que será sacado e trazido à luz aquilo que está sempre encoberto e que se retrai. “Quem sabe perceber a comédia e tragédia da vida sabe também se subtrair à sugestão das finalidades que dissimulam o jogo que é jogado conosco.”191 Explicitemos. Num horizonte de futuro de possibilidades desejadas, temidas e, portanto, ainda não decididas, encontra-se a realidade. É justamente essa indefinição do futuro que gera em nós um excesso de expectativas e que faz com que a realidade fique aquém delas. Todavia, pode ocorrer um caso especial “onde um nexo de sentido se fecha e se realiza no real, de modo que os encaminhamentos de sentido sessam (sic!) de terminar no vazio, então uma tal 190 Para Gadamer, a obra de arte está para o idealismo (Hegel), no que se refere que a obra transmite, carrega, um significado; mas também, ela é um acontecimento, dizendo com Heidegger que “en este doble movimiento consiste la resistência de la obra frente a la altiva pretensión de pura integración de sentido.” (CARSTEN, Dutt. En conversación con Hans-Georg Gadamer (Hermenéutica-Estética-Filosofía Práctica). 1998, p. 83) De fato, é isso o que faz com que uma obra nos golpeie, produza em nós uma mudança brusca e total. Assim, fica totalmente inapropriado o conceito de objeto estético, pois quando uma obra de arte chega até nós não existe uma obejto, que buscamos o sentido conceitual, mas o que temos é este acontecimento. O que a compreensão experimenta “[...] en el ser-ahí de la obra la profundidad de su sentido.” (CARSTEN, Dutt. En conversación con Hans-Georg Gadamer (Hermenéutica-Estética-Filosofía Práctica). 1998, p. 83) 191 GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I: Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 2007, p. 167-8. 66 75 realidade passa a ser como um espetáculo.”192 Dessa forma, consegue-se ver o conjunto da realidade. Passa-se a ver um círculo fechado de sentido, no qual tudo se realiza, o que possibilita falar em uma comédia ou tragédia da vida. Portanto, há uma identificação no que concerne à obra de arte, ao jogo da arte, e à vida. O ser de todo jogo é sempre resgate, realização pura, energeia, que traz seu telos em si mesmo. O mundo da obra de arte, no qual um jogo se manifesta plenamente na unidade de seu decurso, é, de fato, um mundo totalmente transformado. Nele toda e qualquer pessoa reconhece que ‘assim são as coisas!’193 (grifo nosso) Portanto, o conceito de transformação caracteriza o modo de ser superior e independente da configuração, pois a realidade será caracterizada como algo nãotransformado e a arte como subsunção dessa realidade na verdade. 194 Isso significa que a transformação mostra um mundo de significado. Daí que o que era não-transformado acaba sendo “invadido” pela transformação em um mundo cheio de sentido, de verdade – a arte. A subsunção da realidade na verdade da transformação da obra de arte permite fazer uma representação transformada de uma realidade em si mesma não-transformada. Nesse sentido, Gadamer mostra que o conceito de mimesis tem algo em comum com esta realidade subsumida na verdade, que é a arte, já que aquele era a base para todas as artes na antiga teoria da arte. Ele era a representação do divino por meio da dança. Vejamos, então, o que Gadamer quer nos dizer com o conceito de mimesis. A antiga teoria da arte, na qual o conceito de mimesis (da imitação) era a base de todas as artes, só consegue descrever o jogo da arte se não perder de vista o sentido cognitivo que se encontra nesta mesma imitação. A descrição que a mimesis dá ao jogo está justamente relacionada ao fato de poder explicar a representação no jogo, e no jogo da arte. Para Gadamer o sentido do conhecimento da mimesis é o reconhecimento. Quem imita algo torna presente o que conhece e como o conhece. Isso o leva a Aristóteles, que mostra a relação da mimesis com as crianças. Lo que sea la alegría por el reconocimiento puede observarse en la alegría por el disfraz, especialmente en los niños. Y es que nada puede ofender tanto a un niño como que no se le tome por aquello de lo que se há disfrazado. Lo que debe reconocer-se en la imitación, por lo tanto, no es, para nada al niño 192 GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I: Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 2007, p. 168. 193 Ibid., p. 168. 194 Ibid., p. 168. 67 76 que se ha disfrazado, sino, antes bien, a aquel que está representado. Tal es el gran afán de todo comportamiento y representación mímica.195 A compreensão que Gadamer dá sobre o reconhecimento não está no fato de que reconhecemos o que conhecíamos, mas “a alegria do reconhecimento reside, antes, no fato de identificarmos mais do que somente o que é conhecido”196 (grifo no original), isto é, o essencial. “Forma parte del re-conocer el que se mire en lo visto lo permanente, lo essencial, lo que ya no está empañado por las circunstancias contingentes del haber-visto-una-vez ni del haber-vuelto-a-ver.”197 (grifo no original e meu) E, ainda, em outro texto diz: “En el reconocimiento ocurre siempre que se conoce más propiamente de lo que fue posible en el momentáneo desconcierto del primer encuentro. El re-conocer capta la permanencia en lo fugitivo.”198 (grifo no original) Direcionada à arte, Gadamer assevera que “o que propriamente experimentamos numa obra de arte e para onde dirigimos nosso interesse é, antes, como ela é verdadeira, isto é, em que medida conhecemos e reconhecemos algo e a nós próprios nela.” 199 O que ele quer dizer é que no reconhecimento, o que conhecemos se desvincula-se de toda casualidade e variabilidade das circunstâncias que condicionam este mesmo conhecimento, que surge como que por meio de iluminação, de imediato, e se apreende a sua essência.200 “Cuando Aristóteles describe cómo el espectador reconoce: ‘ése es él’, no se refiere a que detrás del disfraz se reconozca a aquel que lleva el disfraz, sino al revés, que por el disfraz se reconoce aquello que debe representar.”201 Em suma, o que Gadamer quer dizer é que 195 “O que seja a alegria pelo reconhecimento pode se observar na alegria pelo disfarce, especialmente nos meninos. E é que nada pode ofender tanto a um menino como que não se o tome por aquele do que se há disfarçado. O que deve se reconhecer na imitação, pelo tanto, não é, para nada ao menino que se está disfarçado, senão, antes bem, àquele que está representado. Tal é o grande afã de todo comportamento e representação mímica.” (tradução livre do autor) (GADAMER, Hans-Georg. Estética y hermenéutica. 2006, p. 87) 196 GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I: Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 2007, p. 169. 197 “Forma parte do re-conhecer o que se olhe no visto o permanente, o essencial, o que já não está denegrido pelas circunstâncias contingentes do haver-visto-uma-vez nem do haver-voltado-a-ver.” (tradução livre do autor) (GADAMER, Hans-Georg. Estética y hermenéutica. 2006, p. 88-9) 198 “No re-conhecimento ocorre sempre que se conhece mais propriamente do que foi possível no momentâneo descoberto do primeiro encontro. O re-conhecer capata a permanência do fugitivo.” (tradução livre do autor) (GADAMER, Hans-Georg. La actualidad de lo bello. 1991, p. 54) 199 GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I: Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 2007, p. 169. 200 “Pero en el re-conocimiento hay todavía algo más. [...] también, em cierto sentido, se reconoce uno a sí mismo. Todo re-conocimiento es experiencia de un crecimiento de familiaridad; y todas nuestras experiencias del mundo son, en última instancia, formas con las cuales construimos nuestra familiaridad con ese mundo.” (GADAMER, Hans-Georg. Estética y hermenéutica. 2006, p. 88-9) 201 “Quando Aristóteles descreve como o espectador reconhece: ‘esse e ele’, não se refere a que detrás do disfarce se reconheça àquele que leva ao disfarce, senão ao revés, que pelo disfarce se reconhece aquele que deve representar.” (GADAMER, Hans-Georg. Estética y hermenéutica. 2006, p. 126) 68 77 A relação mímica originária que examinamos inclui não somente o fato de que o representado está aí, mas também que tenho chegado no aí (ins Da) de modo mais autêntico. A imitação e a representação não são apenas uma repetição que copia, mas conhecimento da essência. Como não são mera repetição (Wiederholung), mas extração (Hervorholung), nelas está coreferido também o espectador. Contêm em si uma referência essencial para cada pessoa, para a qual se faz a representação.202 (grifo no original) É somente na execução que se encontra a obra ela mesma. Neste sentido, podemos exemplificar com a ação cúltica, a poesia, o teatro, a música e o momento literário. Contudo, mais a diante trataremos em Conseqüências estéticas e hermenêuticas o alcance da ontologia hermenêutica em obras que parecem estar em desacordo com a proposta gadameriana, onde a consciência estética parece ser justificada e validada. Mas, nestes a execução mostra a obra de arte como representação, e não como consciência estética, que a abstração reduz o verdadeiro ser da obra. O espetáculo só acontece onde a representação acontece! Para ser música deve soar. E mais, “o representar um espetáculo não quer ser entendido como a satisfação de uma necessidade lúdica, mas como um entrar na própria poesia da existência.” 203 Nesse sentido, o conhecimento que apreendemos numa obra de arte é um conhecimento do reconhecimento do essencial, do ser. Na representação, tem-se referência especial para cada obra que é representada, mas também faz referência especial para o espectador que assiste à obra. Portanto, a tese que Gadamer deixa bem explícita é que “[...] o ser da obra da arte não pode ser determinado como objeto de uma consciência estética, porque, por seu lado o comportamento estético é mais do que sabe de si mesmo. É uma parte do processo ontológico da representação e pertence essencialmente ao jogo como jogo.”204 (grifo no original) A consciência estética atua pela distinção estética com relação à sua representação. Por exemplo, para uma obra literária perguntar-se-ia: Qual a fábula que lhe serve de origem? Qual a concepção que está na base da execução de um espetáculo? Qual o desempenho do ator? Estas distinções são relativas à sua execução. Quando se é expectador, é indiferente se a cena é trágica ou cômica ao se desenrolar no palco ou na vida. O que vemos é o conteúdo da experiência do que está aí. Com isso, Gadamer contrapõe à consciência estética uma não-distinção estética. O que se visa é aquilo que é formulado pelo poeta, representado pelo ator, reconhecido pelo espectador e “que contém o significado da representação, de tal 202 GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I: Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 2007, p. 170. 203 Ibid., p. 173. 204 Ibid., p. 172. 69 78 modo que a formulação poética ou o desempenho da representação não ganham nenhuma distinção.”205 Há uma unidade da verdade na formulação e execução de uma obra. “O que chamamos de configuração só é assim na medida em que se representa como um todo com sentido. Não é algo que seja em si, que além do mais se encontra numa mediação acidental, mas alcança o seu ser verdadeiro na mediação.”206 Aqui cabem duas idéias. A primeira, é que existem muitas possibilidades de ser de uma obra e isto lhe é próprio. Aqueles que a interpretam, interpretam conforme o todo de sentido que encontraram nela. A segunda, a mediação de uma configuração é mediação total, quer dizer, que quem mediatiza suspende a si mesmo enquanto serve de mediador. Como havíamos dito, é na forma medial que o sentido mais originário de um jogo se manifesta – pois se diz que o jogo está acontecendo. Assim, mediatiza-se algo maior que não se desvincula da própria vida, mas que se encontra aí um todo de sentido. Nessa segunda idéia chegamos àquilo que propunha este subtítulo, ou seja, a mediação é total. A não distinção entre a obra e a experiência é a verdadeira experiência da obra, isso implica que se experiencie a própria obra sem se abstrair de suas relações com a vida, pois a própria obra está nessas relações. Em suma, vejamos o que Gadamer quer nos dizer: Partimos do fato de que a obra de arte é jogo, isto é, que seu verdadeiro ser não é separável de sua representação e que na representação surge a unidade e identidade de uma configuração. A dependência que esta tem de representar-se faz parte de sua essência. Isso significa que, por mais mudança e desfiguração que a representação venha sofrer, continua sendo a mesma. O que perfaz a vinculabilidade de toda e qualquer representação é justamente o fato de conter ela mesma a referência para com a configuração e de se subordinar ao padrão de correção que se deriva daí. Isso pode ser confirmado até mesmo no caso extremo e privativo de uma representação absolutamente deformadora. Torna-se consciente como deformação, na medida em que a representação é julgada e pensada como representação da própria configuração. A representação tem, de forma inextinguível e inseparável, o caráter da repetição do mesmo. É claro que, aqui, repetição não significa que algo venha a se repetir em sentido próprio, isto é, seja reconduzido a um original. Ao contrário, toda repetição é tão original quanto a própria obra.207 Como vemos, a repetição também faz parte da representação, constituindo-se original a cada vez que é representada. Mas o que dizer das obras históricas em que o passado e o presente se encontram? Não estaria validado o caráter da consciência estética ou histórica? 205 GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I: Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 2007, p. 173. 206 Ibid., p. 174. 207 Ibid., p. 179-80. 70 79 Não se converteria num objeto de ambas? Assim sendo, faz-se necessário que reflitamos sobre a temporalidade de uma obra de arte. 3.2 TEMPORALIDADE E FESTA A temporalidade que Gadamer trata, deve-se ao fato de que as obras históricas, enquanto mantém suas funções, são contemporâneas a todo e qualquer presente. Nesse sentido, elas, também, estão ligadas à sua função originária, o que dá validade a si mesma e provindo de si mesma o modo como o faz. Compreende-se, também, que elas se representam tão diversamente na mudança dos tempos e das circunstâncias. 208 Os conseqüentes aspectos cambiantes todos lhe pertencem, tornam-se todos eles simultâneos. É aí que advém a necessidade de uma interpretação temporal da obra de arte. Gadamer mostra que, no geral, essa presença do ser estético, sua simultaneidade perante ao aspecto cambiante do tempo e das circunstâncias, ele a chama de a-temporalidade, ou seja, sua presença é simultânea nos “tempos” em que está – é a-temporal. E sua tarefa está em pensar essa a-temporalidade com a temporalidade, às quais pertencem essencialmente a uma obra de arte. Diante disso, de algum modo essa tarefa atinge o caráter temporal da festa: A repetição é constitutiva das festas, pelo menos nas festas periódicas. É o que chamamos de retorno da festa. No entanto, a festa que retorna não é uma outra nem a mera reminiscência do algo festejado na sua origem. O caráter originariamente sacral de todas as festas exclui, evidentemente, essas distinções que conhecemos da nossa experiência do tempo como presente, recordação e expectativa. A experiência temporal da festa é, antes, a celebração que é um presente sui generis.209 (grifo no original) Não é fácil compreender o caráter temporal da celebração, entendendo o tempo como sucessão, o que parecerá uma temporalidade histórica. Mas, ainda sim, sob esse aspecto, apesar das mudanças de cada vez em que ocorre a festa, ela continua sendo ela mesma, mesmo sendo algo diverso. Assim, o fato de uma festa ser celebrada se deve à sua origem, o que significa que está “de acordo com sua própria essência original que ela seja sempre diferente (ainda que seja celebrada ‘exatamente do mesmo modo’). [...] Só possui o 208 GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I: Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 2007, p. 176. 209 Ibid., p. 180. 71 80 seu ser no devir e no retornar.”210 O próprio da festa é uma espécie de retorno, ou seja, “todo ello representa, en realidad, la primacía de lo que llega a su tiempo, de lo que tiene su tiempo y no está sujeto a un cómputo abstracto o un empleo de tiempo.”211 Figura 5: Festa do Coliseo. Fonte: http://www.flickr.com/photos/guidoz/186300522/. Acessado em: 25 de nov. de 2008. Dessa forma, a existência de uma festa se dá na medida em que é celebrada 212. Celebra-se uma festa porque ela está aí, chegou o seu dia. 213 Da mesma forma se dá com o espetáculo teatral, o qual não é representado pelo espectador, mas o seu ser é determinado por sua assistência, ou seja, no assistir. Mas, para Gadamer, assistir é participar, no sentido de que “quem assistiu alguma coisa conhece em conjunto como foi realmente. [...] O ato de ser 210 GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I: Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 2007,, p. 180-1. 211 “Todo ele representa, em realidade, a primazia do que chega a seu tempo, do que tem seu tempo e não está sujeito a um cômputo abstrato ou em um emprego de tempo.” (tradução livre do autor) (GADAMER, HansGeorg. La actualidad de lo bello. 1991, p. 49) 212 É interessante perceber em La actualidad de lo bello as formas de celebrar descritas por Gadamer: “La celebración tiene unos modos de representación determinados. Existen formas fijas, que se llaman usos, usos antiguos; y todos son viejos, esto es, han llegado a ser costumbres fijas y ordenadas. Y hay una forma de discurso que corresponde a la fiesta y a la celebración que la acompaña. Se habla de un discurso solemne, pero, aún más que el discurso solemne, lo propio de la solemnidad de la fiesta es el silencio. Hablamos de un «silencio solemne».” (GADAMER, Hans-Georg. La actualidad de lo bello. 1991, p. 48) 213 GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I: Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 2007, p. 181. “Tal vez podríamos comenzar por esta primera observación: se dice que ‘las fiestas se celebran; un día de fiesta es un día de celebración’. Pero, ¿qué significa eso? ¿Qué quieres dicer ‘celebrar una fiesta’? ¿Tiene ‘celebrar’ tan sólo un significado negativo, ‘no trabajar’? Y, si es así, ¿por qué? La respusta habrá de ser: porque evidentemente, el trabajo nos separa y divide. Con toda la cooperación que siempre ha exigido la caza colectiva y la división social del trabajo, nos aislamos cuando nos orientamos a los fines de nuestra actividad. Por el contrario, la fiesta y la celebración se definen claramente porque, en ellas, no sólo no hay aislamiento, sino que todo está congregado. [...] Y, así, de un fiesta decimos que se la celebra.” (GADAMER, Hans-Georg. La actualidad de lo bello. 1991, p. 47-8) 72 81 espectador é, pois, uma forma de participação verdadeira.” 214 A isso, lembra-se o conceito grego da theoria. Sabe-se que Theoros significa o participante de uma delegação de festa. [...] no sentido genuíno da palavra, theoros significa o espectador que, por sua assistência, participa do ato festivo e através disso adquire sua caracterização jurídico-sacral, p. ex., sua imunidade. [...] Mas em princípio não deve ser pensada como um comportamento da subjetividade, como uma autodeterminação do sujeito, mas a partir daquilo que o sujeito está olhando. A theoria é verdadeira participação, não é atividade; é um sofrer (pathos), isto é, um ser atraído e dominado pela visão (Anblick).215 (grifo no original e meu) Estar entregue à visão, então, é constitutivo da natureza do espectador, que implica estar totalmente esquecido de si. A isso se apresenta uma dedicação total a uma causa, podendo, assim, o espectador contribuir positivamente. Contudo, “[...] aquilo que é representado ao espectador como o jogo da arte não se esgota na mera enlevação do momento, mas comporta uma pretensão de duração e a duração de uma pretensão (Anspruchi).”216 (grifo no original) Diferentemente da curiosidade, a pretensão é algo duradouro. O que Gadamer quer deixar bem claro é que “o caráter da ‘simultaneidade’ convém ao ser da obra de arte. Ele constitui a essência do assistir.”217 Não sendo a simultaneidade da consciência estética, que significa o “[...] ser-ao-mesmo-tempo e a igualvalidade (Gleich-Gültigkeit) de diversos objetos estéticos da vivência numa consciência. Ao contrário, aqui ‘simultaneidade’ significa que algo individual alcança plena atualidade na sua representação, mesmo que sua origem seja muito remota.”218 (grifo no original) A simultaneidade proposta por Gadamer, no que se refere a arte, é uma tarefa à consciência e não um estar dado na consciência, ou seja, a tarefa consiste em ater de tal forma a coisa em questão para que ela se torna simultânea; assim, toda e qualquer mediação é subsumida numa atualidade total.219 214 GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I: Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 2007, p. 181. 215 Ibid., p. 181-2. 216 Ibid., p. 184. “Não é por acaso que na reflexão teológica suscitada por Kierkegaard, a que chamamos de ‘teologia dialética’, esse conceito possibilitou uma explicação teológica do que Kierkegaard compreendia com o conceito de simultaneidade.” Sua justificação, a da pretensão, (ou presunção de tal) é seu primeiro elemento. Podendo ser válida a qualquer tempo, persistindo à qualquer um e implica o fato de não ser uma exigência fixa. Mas se ganha validade, a pretensão, ganha forma de exigência. (GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I: Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 2007, p. 184) 217 Ibid., p. 185. 218 Ibid., p. 185. 219 Ibid., p. 185. 73 82 Analogamente, ao remeter-se a Kierkegaard, Gadamer apresenta o sentido teológico para a simultaneidade que este primeiro deu. O simultâneo, em Kierkegaard, na ação cúltica, [...] não quer dizer ser-ao-mesmo-tempo, mas apresenta uma tarefa proposta aos crentes de mediar totalmente entre si aquilo que não é ao-mesmo-tempo, a presença e a salvação de Cristo, de modo que apesar de tudo essas possam ser experimentadas e levadas a sério como algo presente (em vez do distanciamento de outrora). [...] Aqui o assistir é a genuína participação no próprio acontecimento salvífico.220 Nesse sentido, isso também vale para a experiência da arte. Essa mediação deve ser pensada como total. Não é nem o criador, ator ou mesmo o espectador os que legitimam o ser da obra de arte, mas sim o que está sendo representado. 221 Há um núcleo de sentido tão concentradamente independente que não motiva ninguém sair donde se está para outro futuro ou realidade. Nesse intuito, remete-se ao receptor uma verdadeira distinção estética, apontada por Gadamer no sentido de ser uma “[...] distância necessária para ver, que possibilita uma participação verdadeira e global naquilo que se apresenta diante do espectador.”222 Com isso, o auto-esquecimento extático do espectador corresponde a sua continuidade para consigo mesmo. Naquilo que se perde o espectador, é justamente aquilo que lhe exigirá a continuidade de sentido. É a verdade do seu próprio mundo, religioso ou ético em que vive, que está sendo representada diante dele e, por isso, se reconhece. Assim como a parusia, o absoluto presente, caracterizou o modo de ser estético e uma obra de arte continua sendo a mesma toda vez que ocorra um tal presente, assim também o momento absoluto em que se encontra o espectador é tanto auto-esquecimento como mediação consigo mesmo. Aquilo que o arranca de tudo é o mesmo que lhe devolve o todo do seu ser.223 (grifo nosso) Portanto, na essência do espetáculo estético está o espectador. E isso fica evidenciado pelo exemplo do trágico, o qual Gadamer se serve para tornar visível tudo o que fora dito até aqui referente à ontologia da obra de arte. Entretanto, a livre invenção de um gênio não tem a primazia se constatarmos que o espectador faz parte da essência do espetáculo – do jogo da obra de arte –, ela é um dos aspectos da mediação. Não se inventa uma “fábula” livremente; ao contrário, até os dias de hoje, há alguma coisa do antigo 220 GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I: Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 2007, p. 185. 221 Ibid., p. 186. 222 Ibid., p. 186. 223 Ibid., p. 186. 74 83 fundamento da teoria da mimesis224. “A invenção do poeta é representação de uma verdade comum que vincula também o poeta.”225 A justificativa para tal afirmação, está no artista que se dirige à espíritos preparados para tal representação, mesmo que seja algo novo, diferente; com isso, escolhe o que promete causar efeito, como também ele mesmo, o poeta, se encontra em meio às mesmas tradições do público a que se dirige e ao qual congrega. “Nesse sentido, como indivíduo, como consciência pensante, ele não precisa saber expressamente o que faz e o que expressa sua obra. [...] [Não lhe é um mundo estranho, mas] seu próprio mundo, ao qual é remetido de modo mais autêntico ao se reconhecer mais profundamente nele.”226 Para um melhor vislumbramento do que fora refletido até então, vejamos um balanço de Gadamer: O que significa o ser estético? Com o conceito de jogo e da transformação em configuração, que caracteriza o jogo da arte, procuramos mostrar algo de universal, ou seja, que justamente a representação e correspondentemente a execução da obra literária e da música é algo essencial e nunca acidental. Em ambas realiza-se apenas o que as próprias obras de arte já são: a existência daquilo que é representado através delas. Na reprodução a temporalidade específica do ser estético – só ganha seu ser ao ser apresentado – ganha existência como um fenômeno independente e distinto.227 (grifo nosso) Diante de tudo isso, Gadamer pergunta-se se, de fato, há uma validade universal que determine, daí, o caráter ontológico do ser estético. Para tal, recorrer-se-á aos casos da imagem, do ocasional e do decorativo, e da literatura, os quais serão muito importantes para determinar sua aplicabilidade quanto à valência ontológica da obra de arte frente à consciência estética. 3.3 CONSEQÜÊNCIAS ESTÉTICAS E HERMENÊUTICAS Em Conseqüências estéticas e hermenêuticas, há a busca pela universalidade do ser estético, que deve ser caracterizado, em resumo, pelos conceitos de jogo e festa, onde o que é determinante é o modo de ser da obra de arte, a representação. Os casos expostos acima mostram sua problemática perante a ontologia da obra de arte proposta por Gadamer e a 224 “El uso original de esta palabra está tomado del movimiento de los astros. Las estrellas representan la pureza de las leyes y proporciones matemáticas que constituyen el orden del cielo.” (GADAMER, Hans-Georg. La actualidad de lo bello. 1991, p. 44) 225 GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I: Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 2007, p. 192. 226 Ibid., p. 192-3. 227 Ibid., p. 193. 75 84 consciência estética da formação estética. Qual será a resolução dada pelo nosso autor? Nesse sentido, comecemos com o que as artes plásticas têm a nos dizer. 3.3.1 O valor ontológico da imagem (Bild) Gadamer mostra que o problema das artes plásticas parece ser o fato de que elas validam a distinção estética, brasão da consciência estética, pois a ela parece ser tão inequívoca que não admite representação nem mediação, ainda mais, parece nem ser possível falar em variação representativa. O que varia estaria relacionado ao sujeito. À primeira vista parece que, nas artes plásticas, a obra possui uma identidade tão inequívoca, que não admite nenhuma variabilidade representativa. O que varia não parece pertencer ao aspecto da própria obra, e nesse sentido possuiria um caráter subjetivo. [...] Cada uma das obras das artes plásticas pode ser experienciada ‘diretamente’, isto é, não necessita de outra mediação. E como existem reproduções de quadros, estes certamente já não pertencem à obra de arte ela mesma. E quando há pré-requisitos subjetivos que condicionam o acesso à obra, teremos naturalmente que abstrair deles se quisermos experienciá-la. Assim, parece que a distinção estética possui sua inteira legitimidade. 228 Nesse sentido, o quadro, entendido como o quadro de parede contemporâneo, onde não há lugar determinado a se fixar e representa-se a si mesmo inteiramente, podendo ser justaposto arbitrariamente numa galeria moderna, vem ao encontro da exigência de abstração da consciência estética, como também da teoria da inspiração do gênio. “Então parece que o quadro vem dar razão à imediaticidade da consciência estética.” 229 Há nisso uma pretensão de universalidade da consciência estética, onde o quadro (Bild) é a principal testemunha, que surge, ao mesmo tempo, de acervos reunidos em museu nessa linha. O que acontece, então, é que toda obra de arte transforma-se em quadro, pois as suas ligações vitais e a “especificidade de suas condições de acesso” são desconsideradas. 230 No entanto, somente a partir do momento em que não temos mais lugar para quadros, voltamos a saber que os quadros não são só quadros, mas que requerem um lugar. 231 228 GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I: Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 2007, p. 194. 229 Ibid., p. 194. 230 Ibid., p. 194. 231 Ibid., p. 196. 76 85 Figura 6: Quadro de Leonardo da Vinci: A Monalisa. Fonte: http://www.paneladepressao.blogger.com.br/monalisa.jpg. Acessado em: 26 de Nov, de 2008. Diante disso, deve-se perguntar pelo modo de ser do quadro, que se faz premente perante à imediatez da consciência estética, que deixa no sujeito a primazia e desliga a obra de suas relações com a vida e dos seus modos de acessá-la. Quando Gadamer pergunta pelo modo de ser do quadro, ele o faz para saber se a estrutura ontológica do estético, vista pelo jogo, pode ser aplicada ao ser do quadro. Assim, ele procura algo que é comum a toda diversidade dos modos de apresentação do quadro 232. É uma abstração, sim, admite, mas não no sentido da consciência estética, na qual tudo o que deixa subordinar-se à técnica de imagem da atualidade, torna-se quadro.233 Nela, na abstração da consciência estética, não se encontra verdade histórica alguma, diversamente do que a história da arte instrui, onde o quadro possui uma história diferenciada, pois mesmo que sua soberania esteja no Renascimento, Gadamer acredita que o característico do “teórico” do quadro são as determinações conceituais clássicas do belo. “Aristóteles já sabia que na constituição do belo é tal que dele nada se pode tirar e nem acrescentar nele, sem com isso destruí-lo [...].”234 Com isso, o sentido da abstração que Gadamer quer indicar, é um conceito de quadro num sentido universal que não se limita a uma determinada fase da história do quadro. 232 Variabilidade representativa e diversidade de modos de representação são expressões distintas, pois a primeira refere-se às muitas maneiras de representar uma mesma obra de arte, já o segundo se refere às muitas artes plásticas que são diferentes umas das outras por possuírem diferentes formas de representação. E é este segundo caso que Gadamer busca esmiuçar, para assim mostrar sua correspondência com a estrutura do ser estético. 233 GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I: Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 2007, p. 195. 234 Ibid., p. 195. 77 86 Assim sendo, a miniatura otônica ou o ícone bizantino são quadros, apesar de os princípios serem diferentes, e, também, a escultura está contada entre as artes plásticas, a partir do conceito estético de quadro. Conceito este que deve estar integrado com o decorativo que foi desacreditado pela estética da vivência. Figura 7: Estátua de Davi. Estátua de Davi. Fonte: http://www.polentona.com/David_Michelangelo.jpg. Acessado em: 25 de nov. de 2008. Destarte, o que se tem em vista, ante a análise do conceito de quadro, são duas questões: “Por um lado, perguntamos em que sentido se distingue o quadro (Bild) da cópia (Abbild) (a problemática do quadro original [Urbild]), depois, como se dá a referência do quadro com seu mundo.”235 (grifo no original) Para responder à primeira pergunta, Gadamer diz que o conceito de representação tem imbricação com o conceito de quadro, que está referido ao seu original. Daí que “o mundo que aparece no jogo da representação não é uma cópia ao lado do mundo real, mas é esse mundo mesmo na excelência de seu ser.” 236 Uma coisa é uma cópia onde o seu original mantém seu ser-para-si, outra coisa é a representação onde sua duplicação permanece indistinta, ou seja, a cópia e o original são distinguidos após ao ato de copiar, já na representação há a manifestação do representado, que completa a presença do representado. Assim, é no conceito de mimesis que é expressada esta manifestação, e não na cópia. Também, por um lado temos o quadro original que rejeita ser reproduzido e o copiado que 235 GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I: Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 2007, p. 197. 236 Ibid., p. 197. 78 87 parece ter um ser independente e tem menos valia. Assim, a problemática ontológica do quadro se nos apresenta. Como encontrar tal resolução? Ao quadro e à sua reprodução lhes cabem a cópia ou a reprodução? Ou, ainda, a cópia tem algum sentido ontológico na representação? Vejamos o que Gadamer diz: É da essência da cópia não ter outra tarefa a não ser procurar igualar-se à imagem original. A medida de sua adequação é que na cópia se reconheça o original. Isso significa que sua determinação é a de suspender o seu próprio ser-para-si e colocar-se a serviço da total mediação do copiado. 237 Nesse intuito, vejamos a imagem do espelho. Para Gadamer, a reprodução ideal seria a imagem do espelho, pois nela aparece “[...] o próprio ente em imagem, de forma que eu tenho a ele mesmo na imagem do espelho.” 238 Mas ainda sim, é diferente a cópia. Ela quer ser vista na perspectiva àquilo que se refere. Nisso há um anulamento, ou seja, ela anula a si mesma, no sentido de que funciona como um meio. E como tal perde sua função – isto é, remeter ao copiado devido à sua semelhança com ele, mesmo quando provado –, quando alcança o seu fim. 239 Daí que ela, a cópia, “[...] tem uma existência independente, mas para se anular assim. Essa auto-anulação da cópia é um momento intencional no ser da própria obra.”240 Entretanto, na imagem original, que não é determinada pela sua auto-anulação, ou seja, não é um meio para um fim, a referência é colocada em si própria, “[...] na medida em que o que importa realmente é como nele se representa o representado. Isso significa [...] [que] a representação continua essencialmente vinculada ao representado, sendo inclusive parte dele.”241 A imagem, então, possui o modo de ser da representação. Ela é representação de algo, do representado. Dessa maneira, o espelho é justificado porque reflete a imagem e não a cópia: “é a imagem daquilo que se representa no espelho e inseparável de sua presença. [...] frente à imagem a intenção se volta para a unidade originária e a não-distinção entre representação e representado.”242 Essa não-distinção é um traço essencial de toda a experiência da imagem. 237 GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I: Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 2007, p. 198. 238 Ibid., p. 198. 239 “Havendo alteração da intenção, p. ex., quando se quer comparar uma cópia com o quadro original, julgandoa quanto à sua semelhança, distinguindo-a assim do original, nesse caso ela coloca em primeiro plano sua própria aparência como qualquer outro meio ou ferramenta que não é utilizado, mas posto à prova.” (GADAMER, HansGeorg. Verdade e método I: Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 2007, p. 199) 240 GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I: Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 2007, p. 199. 241 Ibid., p. 199. 242 Ibid., p. 199. 79 88 Assim sendo, vemos a inseparabilidade ontológica do quadro com relação ao representado, é não distinção entre representação e representado. Esta distinção, quando é feita, mostra a “distinção estética” da consciência estética. Ao contrário, “[...] o quadro torna válido seu próprio ser para deixar que o reproduzido viva.”243 Já, frente a uma cópia, o quadro é uma imagem devido ao seu ser como representação. Desse modo, a relação da imagem com o original é totalmente diferente da que vale para a cópia. “Por outro lado, o fato de a imagem possuir uma realidade própria significa para o original que ela ganha representação na representação.”244, isto é, a realidade representada numa imagem ganha representação porque é representada. A própria realidade na imagem é representação de si mesma. A imagem, também, pode ser representada de outras maneiras. Mas quando assim o faz, toda representação desse gênero é um processo ontológico e se experimenta um crescimento do ser, ou seja, é determinado ontologicamente como emanação do original, o conteúdo próprio da imagem. 245 Portanto, o que Gadamer quer deixar claro é que a realidade ontológica da imagem está fundamentada na relação ontológica entre original e cópia. E o que lhe parece melhor caracterizar o modo de ser da imagem é a representatio (Repräsentation), pois, assim, a imagem adquire “[...] uma independência que estende seu efeito sobre o original. Pois, em sentido estrito, é só através da imagem que o original se torna arquétipo (Ur-Bild), ou seja, é somente a partir da imagem que o representado ganha plasticidade.” 246 A imagem ganha sua própria realidade porque um soberano, herói ou estadista mostram seu ser e depois são representados. O que vem por primeiro é o representar-se e depois ser representado247. O que também é notório para a imagem religiosa. 243 GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I: Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 2007, p. 200. 244 Ibid., p. 201. 245 Ibid., p. 201. “Pertence à essência da emanação aquilo que emana ser um excesso supérfluo. Aquilo de onde a emanação flui não se torna menor por isso. O desenvolvimento desse pensamento através da filosofia platônica, que rompe o domínio da ontologia grega da substância, fundamenta o status ontológico positivo da imagem, pois quando o uno original não se torna menor por causa da multiplicidade que emana dele, isso significa que o ser ganha um incremento.” (grifo do autor) Gadamer ainda mostra que o padres da patrística grega se valeram desses raciocínios neoplatônicos no que se refere à hostilidade às imagens do Antigo Testamento. (GADAMER, HansGeorg. Verdade e método I: Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 2007, p. 201) 246 Ibid., p. 202. 247 Para se aprofundar na reflexão gadameriana sobre a imagem no âmbito religioso veja GADAMER, HansGeorg. Verdade e método I: Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 2007, p. 203-5. 80 89 3.3.2 O fundamento ontológico do ocasional e decorativo Na perspectiva da sua ontologia, Gadamer mostra que se se parte do fato de que uma obra de arte não pode ser compreendida do ponto de vista da consciência estética, muitos fenômenos que não tinham importância e tinham uma posição marginal para a estética moderna, perdem seu caráter problemático e adentram para o centro de um questionamento estético. Ele se refere ao portrait248, a dedicatória na poesia e ainda à alusão feita na comédia contemporânea. Estes conceitos estéticos são formados pela consciência estética e o que eles têm em comum é o caráter da ocasionalidade. Ocasionalidade, no sentido da lógica moderna, “[...] quer dizer que o significado continua se determinando, quanto ao conteúdo, a partir da ocasião em que ele é pensado, de maneira que contém mais do que conteria sem essa ocasião.”249 O problema, na ótica da consciência estética, está no fato de que o portrait, por exemplo, contenha uma referência para com a pessoa que é representada na representação. Já que para a consciência estética o que é decisivo é o “estético puro”, livre de toda a referência. No entanto, o que é decisivo, para Gadamer, é que a ocasionalidade faz parte da pretensão da própria obra de arte e que não lhe é imposta por seu intérprete. Figura 8: Portrait. Fonte: http://www.flickr.com/photos/book-keeper/2226380399/. Acessado em: 25 de nov. de 2008. 248 Portrait é um termo francês que significa retrato. GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I: Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 2007, p. 206. 249 81 90 Quando se fala na diferença entre o portrait e o modelo, isso serve de acesso ao que significa ocasionalidade para Gadamer. Quando um pintor faz um portrait, o que se apresenta como modelo de um gênero ou tipo é a individualidade do representado, mesmo que o pintor perceba ou não, admita ou não, também. Modelo pode ser arquétipo ou algo que torne visível uma outra que não seja visível. Mas, se o modelo para o pintor não é pensado enquanto ele próprio250, isso se torna problemático na perspectiva da consciência estética. Todavia, “[...] o representado no portrait é tão ele mesmo que não atua disfarçado, mesmo com as luxuosas vestes que está usando chamam a atenção para si.”251 (grifo no original) Assim, “no sentido referido aqui, ocasionalidade significa inequivocamente a pretensão de sentido da própria obra, em diferença a tudo que pode ser observado nela e concluído dela, contrariamente à pretensão da obra.”252 (grifo nosso) Como vemos, Gadamer desloca o que era problema e objeto descartado para a consciência estética e aponta para a validade do portrait para dentro da discussão estética. O portrait, então, permanece sendo ocasional, pois ele próprio não diz quem representa, mas apenas que é um determinado original – indivíduo – (e não um tipo). Há algo de implícito, algo não explícito, mas em princípio explicitável, que faz parte de seu significado. Isso vai ao encontro do quadro, pois essa ocasionalidade pertence ao conteúdo central do seu significado.253 No quadro haverá então alguma coisa implícita, que é justamente sua ocasionalidade. Mas o que não é explícito não está ausente; está de uma forma inteiramente unívoca. [...] O que dissemos de modo geral acima sobre a valência ontológica do quadro inclui também esse momento ocasional. Assim, o momento da ocasionalidade que se mostra nos fenômenos citados apresenta-se como um caso especial de uma relação geral que convém ao ser da obra de arte: a ‘ocasião’ de seu vir à representação faz com que sua significação experimente um aumento de determinação.254 (grifo nosso) 250 “Isso fica claro na diferença com relação ao modelo que o pintor venha a usar, por exemplo, para um quadro de gênero ou para uma composição figurativa. No portrait o que se represnta é a individualidade do retratado. Se num quadro, ao contrário, o modelo atua como individualidade, por exemplo, por tratar-se de um tipo interessante com quem se deparou o pintor, isso passa a ser uma objeção contra o quadro, pois no quadro já não se vê mais o que o pintor quer representar mas um material não transformado. É assim que destrói o sentido de um quadro figurativo, quando, por exemplo, nele se reconhece um modelo conhecido do pintor. Pois um modelo é um esquema que tende a desaparecer. A referência ao arquétipo que serviu ao pintor deve desaparecer no quadro.” (GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I: Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 2007, p. 206) 251 GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I: Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 2007, p. 207. 252 Ibid., p. 207. 253 Ibid., p. 208. 254 Ibid., p. 208-9. 82 91 Da mesma forma que no quadro (imagem) vemos um aumento de ser pela emanação, parece que a ocasião possibilita um aumento de significado que vai além de sua pretensão de significado. E podemos, portanto, dizer que algo que era tão transparente significativamente, acaba fugindo da sua pretensão, ou seja, ela se determina de maneira de maneira nova em cada ocasião. Devemos reconhecer que isso ocorre mais nitidamente nas artes reprodutivas, sobretudo na representação teatral e na música, que possuem uma ocasião para se determinarem. No teatro, exemplificando, “sua natureza é ser tão ‘ocasional’ que a ocasião da execução traz à tona e deixa transparecer o que está nela.” 255 Há outro algo sendo aludido ao mesmo tempo da encenação da obra teatral. O mesmo vale para as artes estatuárias.256 Ademais, mesmo em artes especificamente ocasionais, como a caricatura na luta política ou o portrait, que tomaram uma ocasião bem determinada por alvo, estes [...] são formulações da ocasionalidade geral que permitem à obra de arte determinar-se de maneira nova de ocasião em ocasião. Mesmo a determinação única pela qual se realiza, nesse sentido preciso, um momento ocasional na obra de arte ganha no ser da obra de arte uma participação na universalidade, que a torna capaz de uma nova realização – de maneira que a singularidade de sua referência ocasional torna-se implícita, mas a referência que se tornou implícita na própria obra permanece presente e atuante. Nesse sentido, também o portrait torna-se independente da singularidade de sua referência ao original e, mesmo assim, contém-no em si mesmo precisamente enquanto o supera.257 (grifo no original e meu) A valência ontológica da imagem, assim, pode ser testemunhada tanto no portrait como nas obras figurativas – os monumentos religiosos ou profanos. No caso do portrait, ele é o aguçamento de uma estrutura essencial e universal da imagem258, é um caso especial da valência ontológica que se tinha atribuído à imagem. A partir de tudo o que fora dito, 255 GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I: Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 2007, p. 209. 256 “Também aí não se pode dizer que a obra é ‘em si’ e que apenas o efeito é cada vez diferente; é a própria obra de arte que se apresenta diferentemente, segundo as condições vão se modificando. O observador dos nossos dias não vê apenas diferente, ele também vê outra coisa. Basta pensarmos no fato de que a representação do mármore brando da Antigüidade domina o nosso gosto e o nosso comportamento conservador desde os dias da Renascença, ou no reflexo de sensibilidade classista que a espiritualidade purista das catedrais góticas representa o Norte romântico.” (GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I: Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 2007, p. 210) 257 GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I: Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 2007, p. 210. 258 “Cada imagem é um crescimento do ser e está essencialmente determinada como representatio, como vir-àrepresentação. No caso especial do portrait, esse re-presentação ganha um sentido pessoal, na medida que, aqui, uma individualidade é representada representativamente. Pois isso significa que o representado se representa a si mesmo em seu portrait e representa-se com o seu retrato. A imagem não é mais simples imagem ou cópia, mas pertence à atualidade ou à memória presente do representado. (grifo do autor) (GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I: Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 2007, p. 211) 83 92 justifica-se “caracterizar o modo de ser da arte, no seu todo, através do conceito de representação, o qual abarca tanto o jogo como imagem, tanto comunhão como representação.”259 (grifo do autor) Assim, a arte é entendida como processo ontológico, onde a abstração da distinção estética perde seu lugar, pois é um processo de representação de algo que está aí260. Para Gadamer, ainda sim, é importante saber sobre a essência da imagem, mesmo quando já foi possível perceber que ela contribuiu para a ontologia. Nesse sentido, ele vê a imagem entre a sua representação entre o sinal e a símbolo. Explicitemos. 3.3.2.1 Imagem: entre símbolo e sinal Para Gadamer a essência da imagem se encontra a meio caminho entre dois extremos: “Esses extremos da representação são o puro referir – a essência do sinal – e o puro fazer as vezes (sic!) de outro (Wertretten) – a essência do símbolo.”261 (grifo no original) De fato, no tocante ao sinal, a representação da imagem possui uma referência àquilo que nela é representado. Mas esta mesma imagem não é um sinal, sua função não é referir de si para outra coisa. Ela, igualmente, atrai a atenção sobre si. De todos os sinais, o que tem maior realidade própria é o objeto da recordação. A recordação não permite demorar-se nela, mas para o passado à qual acena. Daí que uma imagem não é sinal. “A imagem, ao contrário, realiza sua referência ao representado apenas através do seu próprio conteúdo”262, e não da recordação. Ao mesmo tempo em que faz referência a outra coisa, ela permite que se nos demoremos nela. Nisso perfaz a valência ontológica que Gadamer acentuou, pelo fato de na representação não estar separado o representado, mas ela participa de seu ser.263 Nesse sentido, assinala-se a esta participação a aproximação da imagem e do símbolo. 259 GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I: Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 2007, p. 214. 260 O fato de uma obra de arte não ser um objeto e sim uma coisa, pois a coisa se sustenta por si mesma, já o objeto não, acena ao seu mundo. “La obra de arte abre su propio mundo. Algo es objeto sólo cuando ya no cabe en la articulación de su mundo, porque el mundo ao que pertenece se ha descompuesto. En este sentido, una obra de arte es un objeto cuando es comercializada, pues entonces está privada de su mundo y lugar de pertenencia.” (GADAMER, Hans-Georg. La verdad de la obra de arte. 2002, p. 06) 261 GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I: Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 2007, p. 215. 262 Ibid., p. 216. 263 Ibid., p. 216. 84 93 No símbolo, a função representativa não é uma mera referência a algo que não se encontra presente, a algo não-presente, mas, no fundo, o símbolo deixa aparecer como presente algo que está sempre presente. Ele é mais que um sinal. “Não somente implica uma pertença comum, mas demonstra-a e torna-a visível.”264 No âmbito religioso isso se mostra com maior razão, lembra Gadamer. E “desse modo, um símbolo não serve apenas como referência mas representa enquanto faz as vezes de outro (vertritt). [...] É só porque o símbolo representa assim a presença daquilo que ele simboliza faz as vezes que a honra devida àquilo que ele será prestada a ele mesmo.”265 (grifo no original) Enquanto faz “vezes de outro” na representação, o símbolo faz referência a algo que estava presente. Como vemos, há uma proximidade entre a imagem e a representação do símbolo. No entanto, os símbolos não são imagem por duas razões: os símbolos não precisam ser imagens e, ao fazer as vezes de outro pela sua presença e mostrar-se, eles não dizem nada do simbolizado por si mesmos. “Precisamos conhecê-los, como precisamos conhecer um sinal, se quisermos seguir sua referência. Nesse sentido, eles não significam nenhum crescimento de ser para o representado.”266 Do ponto de vista do conteúdo, não acrescentam, os símbolos, nada. A imagem, ao contrário, representa por meio de si mesma, por meio do “incremento de significado que proporciona”, ou seja, na sua representação, ela dá um incremento, um aumento, de significado como no ocasional. O que é um modo mais autêntico de o representado estar presente “e justamente essa posição intermediária que lhe convém e elevao a um status ontológico que é inteiramente seu.”267 (grifo no original) O sinal e o símbolo abarcam, ainda, a instituição, no sentido de que “os sinais artificiais, tanto como os símbolos, não recebem seu sentido funcional como a imagem o recebe de seu próprio conteúdo, mas devem ser adotado como sinal ou como símbolo”, isto é, é a instituição que determina o sentido funcional do que é o sinal e do que é o símbolo e não pelo seu conteúdo próprio. Assim, a adoção do sinal se realiza por meio da convenção, por uma conjugação prévia de sinal e sinalizado, e o símbolo remonta a sua instituição, uma investidura que lhe deu o significado, pois em si não tem significado. 268 À valência ontológica, então, é decisivo o caráter da instituição, pois a imagem não é instituição. Uma obra de arte só recebe a função memorial, que é determinada pela 264 GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I: Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 2007, p. 217. 265 Ibid., p. 217-8. 266 Ibid., p. 218. 267 Ibid., p. 218. 268 Ibid., p. 219. 85 94 instituição, porque, antes, “ela já é uma configuração com função significativa própria, como representação que possui ou não imagem. A instituição e a consagração de um monumento [...] só realiza uma função que estava implicada no próprio conteúdo da obra.”269 Assim, uma obra de arte não é determinada pela instituição. Destarte, determinados monumentos de devoção, de veneração, de piedade, são instituídos ou erigidos como monumentos porque de si mesmas prescrevem e ajudam a formar esse nexo funcional; ainda, que deslocadas, pleiteiam por si mesmas o seu lugar, por exemplo, obras que são incluídas num acervo moderno, não perdem seus vestígios de sua determinação original, justamente porque seu ser é representação. 3.3.2.2 A arquitetura e o decorativo Por conseguinte, no mesmo sentido do portrait, Gadamer acena para uma outra realidade, a da arquitetura, pois, do mesmo modo que o portrait, a arquitetura é posta dentro da reflexão estética quando se vê a caducidade da consciência estética. Quando pensamos no significado exemplar dessas formas especiais, compreendemos que formas artísticas que do ponto de vista da arte vivencial representam casos-limite podem ocupar um ponto eminentemente central: ou seja, todas aquelas cujo conteúdo próprio aponta para além de si mesmas, para o todo de uma conjuntura determinada por elas e para elas. A mais distinta e a mais extraordinária forma de arte que podemos colocar sob esse critério é a arquitetura.270 (grifo no original e meu) De início, uma obra arquitetônica expede para além de si de dois modos: “é determinada pelo fim a que deve servir, quanto pelo lugar que tem de ocupar no todo de uma conjuntura espacial.”271 Uma obra acertada, chamada de “feliz solução”, leva em conta estes dois elementos. Com isso, em função dessa dupla adaptação, a construção representa um verdadeiro crescimento do ser, ou seja, é uma obra de arte.272 269 GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I: Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 2007, p. 219. 270 Ibid., p. 220. 271 Ibid., p. 220. 272 Ibid., p. 220. 86 95 Figura 9: Arquitetura japonesa. Fonte: http://www.meusestudos.com/system/fotos/vista-do-castelo-de-osaka-arquitetura-japonesa.jpg. Acessado em: 25 de nov. de 2008. Um edifício só será uma obra de arte se ele representa a solução de uma tarefa arquitetônica. É obra de arte quando representa uma solução artística à tarefa arquitetônica imposta por sua finalidade e os nexos de vida a que a obra pertence originariamente que conserva mesmo quando estes nexos já estão muito distantes de sua destinação original; assim sendo, existe algo nele que alude ao original. 273 A distinção estética, ao contrário, sendo uma pura abstração, jamais considerará a arquitetura, “a mais estatuária de todas as artes”, uma obra de arte, pois a destinação prática que integrada ao contexto da vida não pode se separar dela, sem perder algo de sua própria realidade. Figura 10: Arquitetura grega. Fonte: http://www.saberweb.com.br/grecia/arquitetura_da_grecia_antiga/images/arquitetura-da-greciaantig.jpg . Acessado em: 25 de nov. de 2008. 273 GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I: Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 2007, p. 220-1. 87 96 A sobrevivência de grandes monumentos arquitetônicos do passado mostra uma integração entre o antes e o agora, pois: As obras arquitetônicas não permanecem irreversíveis, à margem da torrente histórica da vida, mas esta arrasta-as consigo. [...] Mesmo onde a representação não ocorre primeiramente em virtude da reprodução (da qual todo mundo sabe que ela pertence a seu próprio presente), a obra de arte propicia uma mediação entre passado e presente.274 (grifo nosso) Cada obra de arte possui um mundo, o fato de a arquitetura nos ensinar isso, mostra que perante a mudança desse mundo, ela sempre se mostrará pertencente a um mundo seu original. Assim, do mesmo modo, pela arquitetura responde-se analogamente ao quadro de como este pertence ao seu mundo. De fato, percebe-se ainda mais a correspondência da obra de arte em geral para com o seu mundo. Gadamer apresenta outra característica da arquitetura. Ela “[...] é uma conformadora de espaço por excelência.” 275 Da mesma forma que o espaço abarca todos os entes que estão em si, a arquitetura abrange todas as demais formas de representação: todas as artes plásticas, toda ornamentação; somente ela proporciona o lugar para a representação da poesia, da música, da mímica e da dança, 276 e até mesmo a escultura que adorna o contexto da vida. “Ao abarcar o conjunto de todas as artes, instaura em toda parte o domínio de seu próprio horizonte. E este é o da decoração.”277 Figura 11: O decorativo em uma igreja. Fonte: http://www.historianet.com.br/imagens/barroco1.jpg. Acessado: 25 de nov. de 2008. 274 GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I: Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 2007, p. 221. 275 Ibid., p. 221. 276 Ibid., p. 222. 277 Ibid., p. 222. 88 97 A arquitetura inclui uma mediação bipolar, isto é, tanto opera a conformação do espaço quanto a sua liberação. Isso significa que ela tanto media o “arranjamento” do espaço de algo – e aqui se abarca a decoração –, como é mediadora para que se possa ser possível de encontrar-se ali. Podemos ver isso claramente no caso de um espetáculo musical, onde se precisa de certa disposição das coisas no lugar, sua decoração, para que uma peça seja executada, como também a arquitetura deve possibilitar uma boa acústica para a execução. Nesse sentido, a decoração faz parte da arquitetura, pois a primeira faz parte do caráter único da segunda. Também, podemos vislumbrar este caráter único da decoração numa obra de arte da seguinte forma: uma mesma melodia, notas que se sucedem de forma harmoniosa e afinada, podem receber muitos arranjos musicais pelo acréscimo de outras notas e acordes, sempre relativos à melodia. Este arranjo musica no espaço da física do som e certamente exigirá um adequado arranjo de músicos e instrumentos no espaço da física do espetáculo a fim de, no seu conjunto, a melodia seja ainda mais melodiosa, harmoniosa e afinada. De certo modo, o arranjo musical adorna a melodia. Voltando à arquitetura, ela Não somente abarca todos os pontos de vista decorativos da conformação do espaço até a ornamentação, como é também, por sua essência, decorativa. E a essência da decoração consiste em proporcionar essa dupla mediação, a de atrair sobre si a atenção do observador, satisfazer seu gosto e ao mesmo tempo afastá-lo remetendo-o ao conjunto mais amplo do contexto vital a que ela acompanha.278 (grifo nosso) O adorno se submete a um modo de vida e, também, não pretende ser um fim em si, quer ser um adorno – quer criar ambiência. Pensemos nos adornos que estão nas construções dos grandes sutões árabes. É um meio que se submete àquilo que deve adornar. Também, olhando para o ornamento, utilizado pelo arquiteto, conserva em si algo da duplicidade decorativa, ou seja, deve ser observado, mas sem demora, pois atrai e o satisfaz, remetendo a algo mais amplo, ao seu contexto vital que acompanha. Assim, ele, o ornamento, tem o efeito de mero acompanhamento, sendo um efeito vivaz até certo ponto.279 Não pode ser morto! Tudo isso vai de encontro com a consciência estética, a qual diz que a verdadeira obra de arte, abstraída de todo espaço e tempo, representa uma vivência estética e que arte só 278 GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I: Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 2007, p. 222. 279 Ibid., p. 223. 89 98 é arte porque tem sua origem na inspiração genial. Com isso, o decorativo, segundo esta mesma consciência, não participa do caráter único da obra de arte. Contudo, Gadamer atenta que a saída desta oposição se encontra, ainda, no fundamento da estrutura ontológica da representação. “Tudo o que é adorno e adorna é determinado por sua referência ao que ele adorna, sobre o qual é aplicado, àquilo que é seu portador. [...] pertence ao modo de apresentar-se de seu portador.”280 Assim o adorno, ou o que adorna, é representativo no sentido do ornado, ele pertence à representação do que ornado ou ornamentado. Logo, pertence o modo de ser da obra de arte, que é representação. Em suma, Gadamer assevera que o termo representação “[...] é um momento estrutural, universal e ontológico, do estético, um processo ontológico. [...] A presença específica da obra de arte é o ser vindo à representação.”281 (grifo nosso) O que se confirma também com a imagem (Bild) e as artes estatuárias no seu todo, pois possuem o mesmo modo de ser. Mas o aspecto ontológico que se desenvolveu até aqui se estende ao modo de ser da literatura? Eis a pergunta que orienta Gadamer ao tratar da literatura. Assim, faz-se necessário ouvir o que a literatura tem a nos dizer. Sendo esta, inclusive, a última a ser tratada por Gadamer. 3.3.3 A posição de limite da literatura A literatura também parece, à primeira vista, que legitima a consciência estética pela autonomia do leitor, o que não reivindica valência ontológica alguma pela representação. “A leitura é um processo de pura interioridade. Nela aparece consumada a eliminação de toda ocasião e contingência [...]. A única condição sob a qual se encontra a literatura é a transmissão pela linguagem e seu desenrolar na leitura.”282 280 GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I: Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 2007, p. 224. 281 Ibid., p. 224. 282 Ibid., p. 225. 90 99 Figura 12: Biblioteca. Fonte: http://cdi.ump.pt/ump/images/stories/biblioteca.jpg. Acessado em: 25 de nov. de 2008. Entretanto, nos primórdios, a literatura não se refere à leitura, e sim à escrita. Antes à Homero o que se tinha era a oralidade da poesia épica. A escrita surge como auxílio aos rapsodos283, como um material de auxílio à recitação, e não como material de leitura. Mesmo assim, o fato de que há o triunfo da leitura à recitação não é algo totalmente novo. Percebe-se isso em Aristóteles, que se distanciou do teatro. Assim, temos uma “leitura” feita em alta voz. Mas esta não se difere em muito da leitura silenciosa, pois não existe uma nítida distinção entre ambas. Assim, [...] toda leitura compreensiva é sempre uma forma de reprodução e interpretação. A entonação, a articulação rítmica e afins pertencem também à leitura mais silenciosa. O significativo e sua compreensão estão tão estreitamente vinculados ao elemento corporal da linguagem que a compreensão sempre contém um falar interior.284 (grifo nosso) O que vemos é que a leitura pertence à obra de arte literária, tanto quanto a declaração ou execução, na qual estão implicados o significado desconhecido e a compreensão que busca entender o significado do texto. Portanto, há uma existência tão originária na literatura pela leitura, sua existência se dá a partir da sua origem e que a podemos perceber ao ler um romance, como também na contemplação do observador de uma imagem, um quadro. O conteúdo lido, igualmente, se torna representação.285 O conteúdo representa algo a nós. “É verdade que a literatura e sua recepção na leitura mostram um grau 283 Rapsodo é o nome dado a um artista popular ou cantor, que ia de cidade em cidade recitando poemas, principalmente epopéias. 284 GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I: Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 2007, p. 226. Para uma melhor compreensão deste enunciado, vale lembrar que Gadamer, na página 140, deste mesmo livro, diz que o que é significativo tem um significado desconhecido ou não manifesto. 285 Ibid., p. 226. 91 100 máximo de desvinculação e mobilidade. [...] Isso permite ver claramente que a “leitura” corresponde à unidade do texto.”286 Isso quer dizer que podemos ler em outro momento, mas mesmo assim ela não deixará de representar algo a nós quando a lermos. Também, “en ninguna parte como en el arte lingüístico se promueve tan claramente la colaboración del receptor. La lectura es por ello la forma más auténtica y representativa en la que se hace evidente la participación del receptor en el arte.”287 Portanto, o caráter específico da literatura artística só pode ser concebido a partir da ontologia da arte. Esses graus que costumeiramente chamados de reprodução, representam o modo de ser original de todas as artes transitórias e, assim, tornou-se exemplar para que se determinasse o modo de ser da arte em geral. 288 Por conseguinte, no conceito de literatura se está vinculado seu receptor: “a literatura é, antes, uma função da preservação e da transmissão espiritual e por isso introduz em cada presente sua história oculta.” 289 Nesse sentido, o conceito de literatura clássica 290 está implicado, como também a literatura universal, primeiramente cunhado por Goethe, que ocupa seu lugar na consciência de todos, pois pertence ao mundo. E o mundo original de que uma obra dessa literatura universal, sob o caráter normativo, encontra-se, mesmo sendo afastado e distante, continua falando, ainda que a outros mundos. Temos, portanto, o modo de ser histórico da literatura com que faz que ela pertença à literatura universal. 291 Com tudo o que foi dito até então sobre a literatura, encontramo-nos diante de um ponto central na reflexão gadameriana sobre esta. O conceito de literatura é muito mais amplo que o da obra de arte literária, devido à linguagem; em que ambas acedem à escrita, o que dá 286 GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I: Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 2007, p. 226. 287 “Em nenhuma parte como na arte lingüística se promove tão claramente a colaboração do receptor. A leitura é por ele a forma mais autêntica e representativa na que se faz evidente a participação do receptor na arte.” (tradução livre do autor) (CARSTEN, Dutt. En conversación con Hans-Georg Gadamer (HermenéuticaEstética-Filosofía Práctica). 1998, p. 78) 288 GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I: Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 2007, p. 226-7. 289 Ibid., p. 227. 290 É interessante saber que quando, mais adiante em Verdade e método, Gadamer apresenta os traços de sua hermenêutica filosófica, ele exemplifica-a com o conceito de clássico. Este, sendo um modo característico do ser histórico, a realização histórica da conservação que torna possível a existência de algo verdadeiro, compreendido por Gadamer da seguinte maneira: “é clássico aquilo que se mantém frente à crítica histórica, porque seu domínio histórico, o poder vinculante de sua validez que se transmite e conserva, precede toda reflexão histórica e se mantém nela.” (GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I: Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 2007, p. 381) 291 GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I: Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 2007, p. 228. 92 101 o sentido mais vasto da literatura.292 Então, o modo de ser da obra de arte pode ser aplicado para este sentido mais amplo de literatura? Em outras palavras, a valência ontológica está reservada somente à obra de arte, e assim as obras de arte literárias, ou a toda realidade literária? E quanto às obras científicas em relação às das ciências do espírito, há um limite preciso? Para a consciência estética isso é evidente na medida em que o que ela prima é pela qualidade de sua formulação e não do significado do conteúdo. Como Gadamer descarta esta consciência, ele mostra que o que há em comum entre uma obra poética e os demais textos literários é “[...] ela nos fala a partir do significado de seu conteúdo. Nossa compreensão não se volta especificamente para o resultado da forma que lhe convém como obra de arte, mas para o que nos diz.” 293 Nesse sentido, já não é fundamental tal diferenciação, mesmo com a certeza das diferenças lingüísticas, pois estas assim o são na “diversidade da pretensão de verdade de cada uma delas” 294, apesar da profunda comunhão de se darem na linguagem que expressa o seu significado. Em todo o caso, há uma confluência entre a arte e ciência vista pelo fenômeno da literatura. O modo de ser da literatura, pois, impõe uma tarefa específica para o transformar-se em compreensão, devido a algo de peculiar e incomparável. 295 Não há nada que possua um caráter espiritual tão puro quanto à escrita e nada depende tanto do espírito empreendedor como ela. Em seu deciframento e interpretação dá-se um verdadeiro milagre: a transformação de algo estranho e morto em um ser absolutamente familiar e coetâneo. [...] Quem sabe ler o que foi transmitido por escrito atesta e realiza a pura atualidade do passado.296 (grifo nosso) Sendo assim, a intenção de Gadamer é a de mostrar que por detrás do conteúdo de um texto está implicado alguém que compreende, uma compreensão. Da mesma forma que a obra nos mostra na sua ontologia que a representação tem como parte de si o espectador, o texto só vive por que alguém o compreende. Agreguemos, então, a conclusão gadameriana acerca da literatura: Por isso, a despeito de todas as fronteiras traçadas pela estética, o conceito mais amplo da literatura se aplica também ao nosso contexto. Assim como pudemos mostrar que o ser da obra de arte é um jogo que só se cumpre na sua recepção pelo espectador, pode-se dizer também dos textos em geral que 292 GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I: Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 2007, p. 228. 293 Ibid., p. 229. 294 Ibid., p. 229. 295 Ibid., p. 229. 296 Ibid., p. 230. 93 102 a reconversão de um traço morto em sentido vivo só se dá pelo ser compreendido. 297 Nisto está a posição limite da literatura, ela nos mostra as fronteiras da estética ante a compreensão hermenêutica. O que faz com uma letra morta que não tinha vida o tenha a partir do contato com alguém que a compreende? A compreensão faz parte do acontecer do semântico de todo texto, assim como à obra de arte? Não é a compreensão que está implicada? Assim, a interrogação de Gadamer é a seguinte: “[...] será que o compreender faz parte do acontecer semântico de um texto, como o fazer com que se torne audível faz parte da música?”298 Neste sentido, entra em campo a hermenêutica, disciplina clássica que se ocupa da arte de compreender textos. Da mesma forma que o que se percebeu com a crítica à consciência estética foi um deslocamento do problema da estética, assim também o problema hermenêutico deverá ser posto de forma que ele conta da compreensão da esfera da arte e de sua problemática, ou seja, não reduzirá à interpretação de textos. Inversamente falando, “a estética deve subordinar-se à hermenêutica. [...] A compreensão deve ser entendida como parte do acontecimento semântico, no qual se forma e se realiza o sentido de todo o enunciado, tanto os enunciados da arte quanto os de qualquer outra tradição.” 299 (grifo no original) Em Verdade e método chegamos à proposição de que a estética deve submeter-se à hermenêutica, isto significa que a compreensão onto-hermenêutica abarcada na sua ontologia da obra de arte, vislumbra a questão hermenêutica, pois a compreensão é também um momento constitutivo na experiência e verdade de uma obra de arte, ela está como condição de possibilidade para a experiência artísitca. Quanto ao desenvolvimento seqüente na obra, refere-se, Gadamer, à colocação da tarefa hermenêutica pelo fenômeno da arte, pois ela não sendo passado, supera a distância dos tempos por meio da presença de seu próprio 297 GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I: Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 2007, p. 230. 298 Ibid., p. 230. Em outro livro, feito a partir de uma entrevista de Dutt Carsten com Gadamer, nosso autor dirá: “Más bien afirmo que uma obra de arte, em virtud de su calidad configuradora, nos dice algo mediante lo cual se plantean preguntas o también se responden preguntas. Una obra de arte ‘dice algo a alguien’: esto no es un modo de hablar vacuo, sino una expresión que se introduce siempre, y no sin motivo, en la comunicación que produce entre nosotros el encontro con las obras de arte, y que designa con mucha exactitud la realidad de la experiencia del arte que queda ensombrecida bajo las abstracciones de la estética del sentimiento. Una obra de arte ‘dice algo a alguien’: en ello reside la perpejidad producida por lo dicho y la tarea de repensar lo dicho una y otra vez con el fin de hacerlo comprensible para uno mismo y para los demás. Por tanto quiero que quede claro: la experiencia del arte es un producto de la comprensión. En esa medida, la estética acaba de hecho en la hermenéutica. (CARSTEN, Dutt. En conversación con Hans-Georg Gadamer (Hermenéutica-EstéticaFilosofía Práctica). 1998, p. 78) 299 GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I: Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 2007, p. 231. 94 103 sentido. Isso porque a hermenêutica deve sua função central à consciência histórica no âmbito das ciências do espírito. Assim, entramos no problema histórico de uma obra de arte, que nos remete a um problema hermenêutico. Nesse sentido, os conceitos de reconstrução e integração, de, respectivamente, Schleiermacher e Hegel, são a resposta gadameriana a tal questionamento. Destarte, nossa reflexão se atém à ontologia da obra de arte e este desenvolvimento hermenêutico-histórico posterior não está dentro da nossa proposta de pesquisa. Com isso, sugerimos que seja feito um trabalho ulterior que abarque a verdade manifestada no fenômeno da história. À guisa de término deste capítulo, a Ontologia da obra de arte é resposta à consciência estética da formação estética do século XIX, cujos seus conceitos de gênio e de arte vivencial não eram capazes de dar conta do fenômeno da arte em sua verdade. Assim, podemos ver que o caráter lúdico do jogo, apresentou-nos o modo de ser do jogo da arte que é a representação, que abarca tanto aqueles que representam (os quais “fazem as vezes”) como também os que são espectadores. Conseguintemente, o espetáculo é a consumação daquilo que chamamos de transformação em configuração, o que significa que houve uma mudança total, chegou-se à arte, a um mundo próprio cheio de sentido e significado, que transforma a todos que estão em seu jogo. É transformação porque, no final das contas, o que se tem é o retorno ao verdadeiro ser, pois na representação surge o que é. É configuração, no sentido de que não é um objeto com que se depara, mas uma coisa, porque está-aí. E, por estar aí, configura-se um mundo com sua verdade e seu sentido. Nesse sentido, encontramos a mimesis. Com ela aprendemos que na representação reconhecemos não algo que havia sido conhecido antes, mas reconhecemos a essência do que é representado. Assim, podemos questionar, este retorno ao verdadeiro ser, em cada transformação em configuração de cada representação não se converte na verdadeira formação-educação, que cria civilização como crescimento do ser em cada ente, de forma especial no ente humano? Também, diante da mudança da representação no tempo e nas circunstâncias, pudemos refletir sobre a temporalidade da obra de arte. Em sua temporalidade podemos perceber algo de a-temporal, ou seja, algo que é simultâneo. Então, o que explicou-nos sua temporalidade foi o conceito de festa, em que se celebra algo porque chegou seu dia, está aí, devido à sua origem. À isso contém o assistir, pois quem assistiu algo verdadeiramente pôde conhecer em conjunto o que foi o que assistiu por causa da sua participação. Dessa maneira, temporalidade da festa vai ao encontro daquilo que é a temporalidade da obra de arte, pois 95 104 pela representação o representado se torna atual, mesmo se sua origem for muito remota e ocorram diferenças na hora de se representar uma mesma coisa. Diante disso, Gadamer, questiona-se se perante a representação não estamos diante da universalidade do ser estético. Dessa forma, ao confrontar o caráter ontológico do jogo da arte como representação com a imagem, o ocasional e o decorativo, e a literatura, Gadamer busca esta universalidade. Com a imagem – e com ela o conjunto da arte não dependente de reprodução –, percebeu-se que sua cópia tem a função remeter ao copiado, já a representação da imagem mostra que há um crescimento do ser na medida em que é representação do original. Conclui-se então que ela é um processo ontológico na qual o ser se torna visível e pleno de sentido. Com o ocasional e com o decorativo, fenômenos que entram para discussão estética quando a consciência estética se mostra insuficiente – destaquemos respectivamente o caso do portrait e da arquitetura com o ornamento –, concluímos que, primeiro, o ocasional propicia à obra de arte determinações novas em cada vez que é representada, as quais escapam da sua pretensão de sentido de uma obra; segundo, como isso se identifica com a imagem, e sendo o portrait um caso da valência ontológica da imagem, sua essência está entre o sinal e símbolo, isto é, representa por meio do incremento de significado que proporciona; terceiro, a arquitetura representa de tal forma que ela acena para o mundo de onde vem e arrasta a histórica consigo e o decorativo faz parte da representação do que é ornado. Já com a literatura, aprendemos que ela nos aponta para o problema hermenêutico da compreensão da obra de arte como um acontecimento semântico, no qual se forma e se realiza o sentido do seu enunciado. Portanto, a ontologia da obra de arte, significa que uma obra de arte não existe nunca no caráter subjetivo e absoluto da consciência estética. Ela é uma experiência da finitude humana, que traz consigo passar pelo perigo de um outro mundo, nisso reside o caráter cognitivo e moral. “La intimidad con que nos afecta la obra de arte es, a la vez de modo enigmático, estremecimiento y desmoronamiento de lo habitual. No es sólo el ‘ese eres tú’ que se descubre en un horror alegre y terrible. También nos dice: ‘¡Hás de cambiar tu vida!’”300 (grifo nosso) O entrar no jogo da obra de arte é pura interpelação, seu significado nos transforma e põe diante de nós mesmos, do nosso verdadeiro ser. 300 “A intimidade com que nos afeta a obra de arte é, à vez, de modo enigmático, estremecimento e desmoronamento do habitual. Não é somente o ‘esse és tu’ que se descobre em um horror alegre e terrível. Também nos diz: ‘Tens de mudar tua vida’” (tradução livre do autor) (GADAMER, Hans-Georg Gadamer. Estética y hermenéutica. 2006, p. 62) 105 CONCLUSÃO Para a conclusão deste trabalho monográfico, é importante saber qual a questão que serviu de pano de fundo para a qual este trabalho procurou responder. Como se dá a necessidade da ontologia da obra de arte a partir da crítica à formação estética, segundo a ótica gadameriana? O que está implicado neste questionamento? Para isso, objetivou-se averiguar como a formação estética é decisiva para que a ontologia da obra de arte seja dada; ainda, compreender como se chegou à formação estética e todo o seu alcance, apreender a necessidade de se assimilar em que consiste a ontologia da obra de arte em Gadamer. Percebe-se que o texto pôde responder a tais indagações e confirmou a nossa hipótese de que a ontologia da obra de arte é proposta para se explicar e entender a verdade de uma obra de arte, perante a insatisfatoriedade da formação estética Nesse sentido, a maior dificuldade desta pesquisa foi a dificuldade de compreensão diante da complexidade do pensamento deste autor. Quando Gadamer parte da problemática do método das ciências da natureza imposto às ciências do espírito, ele mostra que esta questão acaba estendendo-se à arte. A volta à tradição humanística, é um caminho de regresso à tradição, cujo caráter de cientificidade das ciências humanas deve ser compreendido e investigado, justamente pela sua resistência às exigências da vida moderna. Mas o que acabou se firmando foi a subjetivação e estetização dos conceitos humanísticos, tendo em Kant o marco divisor de águas. O juízo, o gosto e sensus communis perdem sua moralidade e sua função de conhecimento. O que se perde, portanto, é sua pretensão de verdade. Na Crítica da faculdade de juízo, Kant busca o a priori no que se refere às questões de gosto. O juízo passa a se restringir somente ao juízo estético. Dessa forma, o que se tem é o juízo de gosto ou estético, o qual é a adequação da representação do objeto às nossas capacidades cognoscitivas, produzindo o prazer, o agrado – chamado belo. Assim, o juízo de gosto funda comunidade, pelo fato de ele ser universalmente comunicável aos outros. O que faz com que o gosto seja o verdadeiro sensus communis. No entanto, a intenção gadameriana em dispensar sua atenção à beleza livre e dependente, o ideal de beleza e o problema do interesse pelo belo na natureza e na arte, está 97 106 em acertar as contas com Kant e indicar que a fundamentação da arte que está no conceito de gênio. A beleza livre e dependente, como foi visto, possuem ambos um certo conceito, o que desmascara o juízo de gosto puro. O ideal de beleza – o qual está radicado na expressão do ético e valida a arte – mostra que o belo que, segundo a demonstração kantiana, agrada sem conceituação, não impede o interesse pela beleza e que nos atinja significativamente. De tal modo, Kant ao reconhecer o interesse pelo belo diz sê-lo a priori e não empiricamente, cuja primazia está no belo na natureza e não na arte, porque além de o belo na natureza ser expressão do juízo estético puro, nele não se encontra “fins em si”, mas sinaliza que o homem é o fim último, o objetivo final da criação, diferentemente da arte, que só está aí para nos interpelar e sua pretensão moral é mediata. A vantagem do belo artístico, porém, é justamente a carência encontrada no belo natural, a expressão de um conteúdo bem determinado, apontou Gadamer. Assim, para Kant, a arte é a representação de idéias estéticas, ultrapassa todo o conceito e toda questão de representação acadêmica. Para fundamentar, então, a arte, o que vêm ao encontro é o conceito de gênio, que é uma força da natureza e representa as idéias estéticas. Kant dá a precedência ao conceito de gosto por este determinar o ponto de vista de beleza no gênio – entretanto, lembremo-nos de que Gadamer demonstra que há uma mútua relação entre o gosto e gênio –, mas seus sucessores deram preferência ao gênio, fugindo, assim, de sua intenção transcendental. A estética do gênio, então, assume as rédeas. O próprio Kant possibilitou tal transladação devido a certas “brechas” que ele mesmo deixou. Schiller representa muito bem esta nova situação com sua “educação estética”. A razão desta guinada está no ligame do gênio à natureza e, assim, a arte é fruto da criatividade genial e ela se torna o princípio transcendental de toda a estética. Também, o propósito kantiano de fundar o julgamento estético sobre o a priori subjetivo do sentimento da vida, permitiu ao neokantismo forjar o conceito de vivência tomando-o como fundamento gnosiológico de toda consciência objetiva. A concepção kantiana da “elevação do sentimento vital” no prazer estético permite o próprio desdobramento do conceito de gênio para um conceito de vida em seu caráter mais abrangente. De fato, Gadamer identificou que há certa correlação entre o conceito de vivência e o modo de ser do estético, no sentido de que a vivência enquanto unidade de sentido está referida no todo da vida. Mas o limite da vivência estética na sua pretensão que a separa de todo contexto do real, já que a obra de arte constitui um mundo para si. Mas sob seu olhar crítico, o propósito da experiência de arte não é ser compreendida como vivência humana; isto 98 107 não corresponde à sua destinação. A disposição artística de formas e maneiras fixas de dizer, faz com que uma obra de arte seja obra de arte. Nesse sentido, os conceitos de símbolo e alegoria foram antagonizados pelos conceitos de gênio e vivência estética, devido ao fundamento da “liberdade da atividade simbolizadora do ânimo”. Mas quando se reconhece que há a sobrevivência de uma tradição mítico-alegórica, percebemos que fica relativizada tal oposição e problematizada tanto a consciência estética quanto o conceito da arte. O imperativo Comporta-te esteticamente! de Schiller, constitutivo da formação estética, teve como produto a consciência estética, definida pela capacidade de distinguir a intenção estética de tudo aquilo que não é estético – a distinção estética. Tal formação estética pela arte acabou se tornando uma educação para a arte – entendida como aparência e esta se oporá à realidade prática. Entretanto, além do artista perder seu lugar no mundo e este se converter em um novo redentor, a pretensão de universalidade fracassa com a desagregação em comunidades promovida por ele. Ademais, Gadamer aplica à consciência estética a crítica desenvolvida à noção de percepção pura, retomada por Heidegger. Dessa forma, não se trata de reduzir os fenômenos a meras abstrações, mas de recuperar o conteúdo significativo da obra de arte. O conteúdo objetivo que permanece sempre vinculado à obra. Sendo assim, tanto o conceito de gênio como a vivência estética não podem fazer jus à verdade da arte; visto que, no primeiro o que se tem é o ponto de vista de quem está observado tanto o gênio que cria como sua obra criada e, no segundo, a uma absoluta descontinuidade e pontualidade. Nesse sentido, faz-se necessário perguntar pelo modo de ser da obra de arte – a ontologia da obra de arte –, pois isso significa que obra mostrar-se-á a partir dela mesma e não do ponto de vista do sujeito, do externo. Para isso, Gadamer parte do caráter lúdico do jogo, o qual apresentou-nos o modo de ser do jogo da arte, isto é, a representação. Representação que inclui tanto aqueles que representam, os quais “fazem as vezes”, como também os espectadores. Desse modo, o espetáculo é a consumação daquilo que chamamos de transformação em configuração, o que significa que houve uma mudança total naqueles que representam e nos que assistem, pois visam o conteúdo de sentido do jogo que se representa. É transformação porque a mudança que ocorreu foi total, tornou outra coisa, é o verdadeiro que subsiste. O que se tem é o retorno ao verdadeiro ser, pois na representação surge o que é. Já é configuração, no sentido de que é uma coisa com que se depara, porque está-aí. O que acontece é que se configura um mundo 99 108 com sua verdade e seu sentido. Num sentido cognitivo, temos a mimesis: na representação reconhecemos não algo que havia conhecido antes, porém reconhecemos a essência do que é representado. Gadamer, ao tratar da temporalidade, assim ele o faz em razão da mudança que ocorre com a representação mesma, no decorrer do tempo e das circunstâncias. Em sua temporalidade podemos perceber algo de a-temporal, ou seja, algo que é simultâneo. Destarte, vem ao encontro o conceito de festa. Celebra-se algo porque chegou seu dia, está aí, devido à sua origem. Implicitamente à festa tem-se o assistir, pois quem assistiu algo verdadeiramente pôde conhecer em conjunto o que assistiu, devido a sua participação. Igualmente, então, a temporalidade da festa se identifica com a temporalidade da obra de arte, pois o representado só se torna atual pela representação, mesmo quando sua origem for muito remota e ocorram diferenças na hora de se representar uma mesma coisa. A pretensão de Gadamer, diante disso tudo, é a de que a representação seja universal. Para isso, confronta o caráter ontológico do jogo da arte como representação com a imagem, o ocasional e o decorativo, e a literatura. Com a imagem – e com ela o conjunto da arte não dependente de reprodução –, percebeu-se que a cópia tem a função remeter ao copiado, como também a representação da imagem mostra que há um crescimento do ser na medida em que é representação do original. Conclui-se, então, que ela é um processo ontológico na qual o ser se torna visível e pleno de sentido por meio da imagem. Já o ocasional e o decorativo, fenômenos que entram para discussão estética quando a consciência estética se mostra insuficiente – destaquemos respectivamente o caso do portrait e da arquitetura e do ornamento –, concluímos que o ocasional favorece à obra de arte novas determinações toda vez que é representada, escapando da pretensão de sentido em que a obra tinha antes de ser representada. Nesse sentido, como isso se identifica com a imagem, e sendo o portrait um caso da valência ontológica da imagem, sua essência está entre o sinal e símbolo, isto é, representa por meio do incremento de significado que proporciona. A arquitetura, ainda, representa de tal forma, que ela acena para o mundo de onde vem e arrasta a histórica consigo, cujo decorativo faz parte do seu ser, lhe está vinculado. Com o caso-limite da literatura, o problema hermenêutico da compreensão da obra de arte se mostrou como um acontecimento semântico, no qual se forma e se realiza o sentido do seu enunciado. Concluímos que, da mesma forma que a crítica da consciência estética nos levou a um deslocamento do problema da estética, da mesma forma a hermenêutica deverá dar conta do problema da compreensão não somente à interpretação de 100 109 textos, mas à esfera da arte e de sua problemática. Logo, a estética deve-se submeter à hermenêutica. Portanto, a ontologia da obra de arte, significa que uma obra de arte não existe nunca no caráter subjetivo e absoluto, não é numa consciência estética que está a verdade da obra de arte. O entrar no jogo da obra de arte é pura interpelação que nos transforma e põe diante de nós mesmos. Nesse sentido, cabe-nos tanto o aspecto moral quanto a função de conhecimento. É um mundo que nos transforma, possibilitando o regresso à verdade do nosso próprio ser. 110 REFERÊNCIAS ARQUITETURA GREGA. Disponível em: http://www.saberweb.com.br/grecia/arquitetura_da_grecia_antiga/images/arquitetura-dagrecia-antig.jpg. Acessado em: 25 de nov. de 2008. ARQUITETURA JAPONESA. 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