a ontologia da obra de arte a partir da crítica à formação estética em

Transcrição

a ontologia da obra de arte a partir da crítica à formação estética em
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MARCOS PAULO FERNANDES
A ONTOLOGIA DA OBRA DE ARTE
A PARTIR DA CRÍTICA À FORMAÇÃO ESTÉTICA
EM HANS-GEORG GADAMER
UNIVERSIDADE CATÓLICA DOM BOSCO
CURSO DE FILOSOFIA
CAMPO GRANDE/MS
2008
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A ONTOLOGIA DA OBRA DE ARTE
A PARTIR DA CRÍTICA À FORMAÇÃO ESTÉTICA
EM HANS-GEORG GADAMER
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MARCOS PAULO FERNANDES
A ONTOLOGIA DA OBRA DE ARTE
A PARTIR DA CRÍTICA À FORMAÇÃO ESTÉTICA
EM HANS-GEORG GADAMER
Monografia apresentada como exigência
final para obtenção do título de Licenciado
em Filosofia, à Banca Examinadora da
Universidade Católica Dom Bosco, sob a
orientação do Prof. Dr. Márcio Luis Costa.
UNIVERSIDADE CATÓLICA DOM BOSCO
CURSO DE FILOSOFIA
CAMPO GRANDE/MS
2008
11
BANCA EXAMINADORA
________________________________________________
Orientador – Prof. Dr. Márcio Luis Costa
_________________________________________________
Examinador – Prof. Dr. José Manfrói
_________________________________________________
Examinador – Prof. Dr. Marcelo Alves Nunes
12
“Toda a forma autêntica de arte é, a seu
modo, um caminho de acesso à realidade
mais profunda do homem e do mundo.”
(Karol Wojtyla, 1920-2005)
“A intimidade com que nos afeta a obra
de arte é, à vez, de modo enigmático,
estremecimento e desmoronamento do
habitual. Não é somente ‘esse és tu’ que
se descobre em um horror alegre e
terrível. Também nos diz: ‘Tens de
mudar tua vida!’” (Hans-Georg Gadamer,
1900-2002)
13
A presente Monografia
dedico ao Criador, Deus,
e aos meus artífices, meus
pais, que me matizaram a
obra da minha existência
14
AGRADECIMENTOS
Quero agradecer primeiramente a Deus, que me acompanhou da forma
surpreendente que só Ele sabe fazer; obrigado pela arte do seu amor.
À minha família, que me motivou a realizar este trabalho.
À minha querida Diocese de Dourados, representada pela pessoa de Dom
Redovino Rizzardo, que, ao dar crédito a mim, fermentou o meu crescimento intelectual e
integral. Espero corresponder a tal confiança!
Ao meu orientador Prof. Dr. Frei Márcio, pela sua presteza e boa vontade em
encarar comigo o desafio desta monografia, apesar das distâncias. Ah! Muito obrigado pelos
livros – jamais esquecerei. De fato, um grande mestre.
Aos meus professores da Universidade Católica Dom Bosco, que verdadeiramente
fascinam pelo seu amor à sabedoria e à vida e que também vivem o que aprendi ser a
“sabedoria do amor”.
Ao Prof. Dr. Almir Ferreira da Silva Júnior, que me deu valiosas orientações e
luzes em momentos de escuridão.
Ao Prof. Naor Rocha que gentilmente fez preciosas correções por ocasião da
revisão textual.
Aos meus colegas de turma que andaram comigo na mesma empreitada; valeu a
companhia e apoio.
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FERNANDES, Marcos Paulo. A ontologia da obra de arte a partir da crítica à formação
estética em Hans-Georg Gadamer. Monografia como trabalho de conclusão de curso de
Filosofia. UCDB. Campo Grande – MS, 2008.
RESUMO
O presente trabalho, A ontologia da obra de arte a partir da crítica à formação estética em HansGeorg Gadamer, objetivou averiguar como se dá tal ontologia ao partir da crítica gadameriana feita à
formação estética. A problemática deste trabalho está em explicitar o alcance da formação estética,
desde seus pressupostos como suas conseqüências, para assim entrever com a ontologia da obra de
arte. Destarte, ao partir do problema impositivo do método das ciências da natureza ao das ciências do
espírito e busca da autocompreensão destas últimas pela volta à tradição humanística, o que se
consolida é a subjetivação e estetização dos conceitos humanísticos. Nesse sentido, o grande marco
divisor é o criticismo kantiano, o qual é fundamento da posterior primazia do gênio e da vivência
estética, cujo produto é a formação estética e sua consciência estética. No entanto, devido à
insuficiência desta formação no que se refere em fazer jus à verdade da experiência da obra de arte,
propõe-se sua ontologia, a fim de que a obra fale por si mesma. Dessa forma, o jogo da obra de arte se
apresenta como representação e sua temporalidade como festa, os quais devem caracterizar a
universalidade do ser estético, como também indicam o problema hermenêutico da compreensão.
Palavras-chave: Tradição humanística. Formação estética. Verdade. Ontologia da obra de arte.
16
LISTA DE FIGURAS
Figura 1: Hans-Georg Gadamer............................................................................................11
Figura 2: Jogo de xadrez........................................................................................................59
Figura 3: Um concerto............................................................................................................60
Figura 4: Peça teatral.............................................................................................................63
Figura 5: Festa do Coliseo......................................................................................................71
Figura 6: Quadro de Leonardo da Vinci: A Monalisa........................................................76
Figura 7: Estátua de Davi.......................................................................................................77
Figura 8: Portrait.....................................................................................................................80
Figura 9: Arquitetura japonesa.............................................................................................86
Figura 10: Arquitetura grega.................................................................................................86
Figura 11: O decorativo em uma igreja................................................................................87
Figura 12: Biblioteca...............................................................................................................90
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SUMÁRIO
INTRODUÇÃO.................................................................................................................... 9
1 A TRADIÇÃO HUMANÍSTICA E AS CIÊNCIAS DO ESPÍRITO ............................ 11
1.1 O PROBLEMA DO MÉTODO .................................................................................. 13
1.2 A TRADIÇÃO HUMANÍSTICA PARA AS CIÊNCIAS DO ESPÍRITO ................... 14
1.3 OS CONCEITOS BÁSICOS DO HUMANISMO ...................................................... 16
1.3.1 Formação e Sensus communis......................................................................... 16
1.3.2 Juízo (Iudicium)............................................................................................... 19
1.3.3 Gosto ................................................................................................................ 21
2 A CRÍTICA À FORMAÇÃO ESTÉTICA ..................................................................... 26
2.1 A SUBJETIVAÇÃO ESTÉTICA KANTIANA .......................................................... 26
2.1.1 Caracterização da estética kantiana ............................................................... 27
2.1.2 A relação entre gênio e gosto .......................................................................... 36
2.2 A ESTÉTICA DO GÊNIO E O CONCEITO DE VIVÊNCIA .................................... 38
2.2.1 O conceito de vivência..................................................................................... 40
2.3 ARTE VIVENCIAL E ALEGORIA........................................................................... 42
2.3.1 Símbolo e alegoria ........................................................................................... 43
2.4 A VERDADE DA ARTE ........................................................................................... 47
2.4.1 O problema da formação estética ................................................................... 48
2.4.2 Crítica à abstração da consciência estética .................................................... 51
3 A ONTOLOGIA DA OBRA DE ARTE ......................................................................... 58
3.1 O JOGO ..................................................................................................................... 58
3.1.1 Representação ................................................................................................. 61
3.1.2 Transformação em configuração e mediação total ........................................ 63
3.2 TEMPORALIDADE E FESTA .................................................................................. 70
3.3 CONSEQÜÊNCIAS ESTÉTICAS E HERMENÊUTICAS......................................... 74
3.3.1 O valor ontológico da imagem (Bild) .............................................................. 75
3.3.2 O fundamento ontológico do ocasional e decorativo ...................................... 80
3.3.3 A posição de limite da literatura..................................................................... 89
CONCLUSÃO.................................................................................................................... 96
REFERÊNCIAS............................................................................................................... 101
18
INTRODUÇÃO
O tema do presente trabalho monográfico é a ontologia da obra de arte a partir
da crítica à formação estética em Hans-Georg Gadamer.
Este tema surge diante da problemática da verdade da obra de arte em sua
confrontação com a postura reducionista da formação estética do século XIX.
As reflexões aqui expostas visam responder a seguinte questão: como, que na obra
de Gadamer, a crítica à formação estética termina por conduzir a uma necessária ontologia da
obra de arte?
O que justifica a pretensão deste trabalho é o vislumbramento de uma correta
abordagem filosófica do horizonte da experiência da obra de arte; experiência que por sua
força declarativa, interpela-nos. Tanto a moralidade quanto o conhecimento podem ter seu
lugar, então. Ao fazer uma releitura hermenêutica deste fenômeno, podemos acorrer a uma
experiência que possui sua verdade e, assim, deixar de lado os reducionismos equivocados
que desvirtuam-na, tal como o faz a consciência estética.
Quanto à relevância social, a sociedade muito se beneficiará com este trabalho,
quando ela passar a olhar a experiência artística como algo que faz parte de seu mundo e de
sua cultura, mesmo quando a própria obra já se constitui um mundo próprio. Não obstante,
facilmente se libertará de certos condicionamentos impostos por outrem, a certas consciências
alienadas que descartam a verdade em todo seu alcance.
Pessoalmente falando, o que este trabalho de pesquisa proporciona, além do
grande conhecimento histórico-conceitual, é um dar-se conta da riqueza de sentido que uma
obra de arte pode trazer a nós, a partir dela mesma, e como ela transforma-nos em nós
mesmos. A obra nos mostra quem somos e como devemos ser. Eis um aspecto moral
interessante.
A linha teórica que este trabalho seguirá, é a da compreensão hermenêutica,
justamente no contexto daquilo que Gadamer chama de hermenêutica filosófica; é o
questionamento pelo compreender e interpretar, sobre sua condição de possibilidade, não
restrito somente às ciências da natureza, mas também vislumbrada, a seu modo, nas ciências
do espírito – e, assim, à obra de arte. Desse modo, a linha metodológica que se tem é a
10
19
bibliográfica, de trabalho qualitativo, e, nesse sentido, a primeira base será a obra Verdade e
método, devido a sua sistematização perante está problemática, e, ainda, a pesquisa terá outras
referências que são importantes na medida em que ajuda-nos a desenvolver e a problematizar
a temática de pesquisa em Verdade e método.
Nesse sentido, o primeiro capítulo nos introduzirá na problemática estética a partir
da estetização e subjetivação dos conceitos humanísticos, tendo seu marco no criticismo
kantiano, pois estes foram acessados diante da procura da autocompreensão das ciências do
espírito perante a predominância e a utilização do mesmo método, o das ciências da natureza.
Já o segundo capítulo, tem por objetivo mostrar como se deu a formação estética
e, assim, a crítica gadameriana perante a insuficiência de sua consciência diante da verdade da
arte. A demonstração de como Kant foi fundamental para tal formação e como seus
sucessores desenvolveram sua estética, são questões que estão intrinsecamente ligadas à
consciência desta formação.
Assim, a crítica à formação estética, com sua consciência estética, indica a
pergunta pelo modo de ser da arte. Quer dizer, o ponto de vista da obra de arte se torna
decisivo para a reta compreensão da experiência da arte e não uma consciência alienada e
alienante. Tem-se, então, a tarefa de demonstrar a ontologia da obra de arte segundo
Gadamer, como também as conseqüências estéticas e hermenêuticas que advém desta. Eis a
problemática que o terceiro capítulo tratará.
Então, para àquele que quer mergulhar na reflexão gadameriana sobre a
experiência artística e descobrir a grandeza deste pensamento, sugiro que adentre estes mares
sem medo, pois aí se dá uma grande oportunidade de enriquecimento. Boa leitura!
20
1 A TRADIÇÃO HUMANÍSTICA E AS CIÊNCIAS DO ESPÍRITO
Hans-Georg Gadamer (1900-2002), filósofo alemão, nasceu em Marburg; foi
discípulo de Heidegger, professor em Leipzig, Frankfurt e Heidelberg.
Figura 1: Hans-Georg Gadamer.
Fonte: http://www.ymago.net/isarchive/institut/images/gadamer.jpg.
Acessado em: 21 de nov. de 2008.
Ele apresentou e aprofundou uma das teses mais marcantes da filosofia
contemporânea, a saber, aquilo que chamou de “hermenêutica filosófica”.1
El lugar que le corresponde a Hans-Georg Gadamer como uno de los
filósofos más importantes del siglo XX se deve a la ‘hermenéutica’
desarrollada por él, pero también al hecho de que su larga vida lo ha
convertido en uno de los testimonio más privilegiados del siglo XX. Nacido
en 1900, su concepción filosófica llegó a la madurez tan sólo en 1960, en su
obra principal Verdad y método, en la que fundamentó la hermenéutica
filosófica y que permitió que ésta se convirtiera en un tópico.2 (grifo no
original)
1
Para um maior aprofundamento biográfico do autor, veja a obra de GRONDIN, Jean. Hans-Georg Gadamer,
una biografia. 2000.
2
“O lugar que lhe corresponde a Hans-Georg Gadamer como um dos filósofos mais importantes do século XX
se deve à ‘hermenêutica’ desenvolvida por ele, mas também ao fato de que sua vida o tem convertido em um dos
testemunhos mais privilegiados do século XX. Nascido em 1900, sua concepção filosófica chegou à maturidade
tão somente em 1960, em sua obra principal Verdade e método, na que fundamentou a hermenêutica filosófica e
que permitiu que esta se convertesse em um tópico.” (tradução livre do autor) (GRONDIN, Jean. Hans-Georg
Gadamer, una biografia. 2000, p. 17)
12
21
É verdade que Gadamer escreveu, ao longo de sua vida, muitos outros textos de
grande importância, mas Verdade e método é, sem dúvida, a sua obra-prima e, aí, está a
centralidade do seu pensamento. Nesta obra, ele “[...] elabora o que chama de ‘hermenêutica
filosófica’, voltada a destacar o que se poderia chamar de o ‘acontecer’ da verdade e o
‘método’ que se deve seguir para desvelar esse acontecer.”3 É um trabalho árduo de
demonstração de um itinerário conceitual, voltado a responder a validade da experiência de
verdade com seus devidos meios e lugares. A hermenêutica é concebida como o autocompreender-se do intérprete, que se dá conta de sua pertença a uma história e a uma tradição
lingüística. 4 Referente à história da hermenêutica, também, “a filosofia hermenêutica de
Gadamer representa, obviamente, uma gigantesca re-orientação da hermenêutica, libertando-a
dos condicionalismos que ela impunha a si própria, no seu esforço aturado de garantir a
objetividade metódica.”5 É a reconquista de uma compreensão mais adequada ao tipo de
conhecimento, acionado pelas ciências do espírito, que foi emoldurado no quadro das ciências
da natureza, como veremos adiante.
Para tanto, Gadamer ao pensar a hermenêutica filosófica, viu a necessidade de se
levar em conta duas experiências que estavam aludidas dentro da compreensão da existência
humana, isto é, a compreensão da própria existência está implicada e traz implicações para os
modos de experiência, e entre estes modos está o modo de experimentar uma obra de arte:
Quando comecei a elaborar uma hermenêutica filosófica, sua própria préhistória exigia que se tomassem as ciências ‘da compreensão’ como ponto de
partida. Mas acrescia-se a elas um complemento que até o momento não foi
levado em conta. Refiro-me à experiência da arte. Isso porque ambas, a arte
e as ciências históricas, são modos de experiência que implicam diretamente
nossa própria compreensão da existência.6 (grifo nosso)
Com isso, estamos diante da experiência artística, a qual tem sua importância,
dentro do contexto hermenêutico gadameriano; é o problema da arte a partir da visão de sua
hermenêutica. E o presente trabalho tem, justamente, como objetivo explicitar a reflexão
sobre a arte que este autor tange à ontologia da arte e a crítica à formação estética realizadas
por ele. Como é possível falar de uma ontologia da arte, a partir da crítica à formação
estética? O que está envolto nesta problemática? Para entender mais profundamente esta
3
MORA, J. Ferrater. Dicionário de filosofia. 2001, p. 1170.
GONÇALVES, Adão Luciano Machado. A Hermenêutica-filosófica de Hans-Georg Gadamer. 2004, p.06.
5
BLEICHER, Josef. Hermenêutica contemporânea. 1980, p. 178. Uma breve história da hermenêutica
encontra-se também no livro feito a partir de uma entrevista entre Dutt Carsten e Gadamer, a saber: CARSTEN,
Dutt. En conversación com Hans-Georg Gadamer (Hermenêutica – Estética – Filosofia Práctica). 1998.
6
GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método II: Complementos e índice. 2004, p. 565.
4
13
22
problemática, deveremos vislumbrar o que está implicado para que a formação estética
pudesse subsistir.
Parece importante advertir que a pesquisa do presente trabalho terá, por base
primeira, a obra Verdade e método; as outras de que faremos referência são importantes à
medida que nos ajudam a desenvolver e a problematizar a temática de pesquisa que está de
forma sistêmica em Verdade e método.
1.1 O PROBLEMA DO MÉTODO
Como fora citado anteriormente, para a elaboração de uma hermenêutica
filosófica, houve a necessidade da tomada das ciências do espírito (ou da compreensão, ou
ciências históricas) 7, porque a hermenêutica, enquanto conjuntos de técnicas para a
interpretação de textos esteve, sempre, contida no seio destas ciências como sua história nos
diz. Gadamer partirá, então, em Verdade e método, de uma constatação: “a auto-reflexão
lógica das ciências do espírito, que acompanha o seu efetivo desenvolvimento no século XX,
está completamente dominada pelo modelo das ciências da natureza.”8 De fato, desde
Descartes, século XVII, no qual a problemática do método era decisivo para o conhecimento e
a ulterior aplicação metodológica matemática e física às ciências humanas, foi-se focalizando
a produção de conhecimento somente por estes métodos; ou seja, o método que as ciências do
espírito passaram a utilizar é o mesmo do das ciências da natureza, cuja gênese está na
modernidade. Esta constatação e primeira tentativa de resposta, reconhece Gadamer, fora feita
por Dilthey. Perguntar pela validade de um mesmo método para ciências distintas, cujos
“objetos” e lógicas são diferentes, não é de se pressupor que a verdade que se possui talvez
esteja mutilada ou deformada?
“Gadamer concorda, com Helmholtz, na idéia de que as ciências do espírito têm,
basicamente, muito mais a ver com o emprego de um tato, do que a adoção de quaisquer
7
É no seio das ciências históricas, pois, que o problema da hermenêutica ou interpretação tem seu bojo. Por
exemplo, no Organon de Aristóteles, “Santo Tomás [...] indica que o substantivo e o verbo (de que Aristóteles
trata nos capítulos 2 e 3 do tratado) são antes princípios de interpretação que interpretações.” (MORA, J.
Ferrater. Dicionário de filosofia. 2001, p. 1330)
8
GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I: Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 2007,
p. 37. É interessante, também, perceber que o termo “ciências do espírito” é consignado pelo tradutor da Lógica
de John S. Mill, que ao esboçar as possibilidades de aplicação da lógica indutiva às moral scienses traduz o
termo por ciências dos espírito. Vê-se que existe uma lógica própria das ciências do espírito, afirma Gadamer.
14
23
métodos.”9 O próprio Helmholtz (1821-1894) sabia, pois, que “[...] para o conhecimento
histórico, é necessário uma experiência totalmente diferente daquela que se usa na pesquisa
das leis da natureza.”10 Gadamer esclarece mais dizendo:
Mas o que representa o verdadeiro problema que as ciências filosóficas
colocam ao pensamento é que não se consegue compreender corretamente a
natureza das ciências do espírito, usando o padrão de conhecimento
progressivo da legalidade (Gesetzmässigkeit). A experiência do mundo
sócio-histórico não se eleva ao nível de ciência pelo processo indutivo das
ciências da natureza.11 (grifo no original)
Ora, uma coisa é uma previsão de fenômenos cujas leis os determinam ou mesmo
a procura destas leis por meio daquilo que pode ser observável, manipulável e constatável;
outra coisa é a singularidade e historicidade de um homem, de um povo, de um estado, no
qual vários elementos compõem esta singularidade irrepetível, única e complexa. O
conhecimento de ambos são distintos. Propõe, então, em Verdade e método, uma
fundamentação das ciências do espírito; quer desenvolver uma hermenêutica que faça jus ao
modo próprio de trabalhar das ciências do espírito quanto à sua essência. 12 Quer mostrar a
autocompreensão que estas ciências possuem por sua justificação epistemológica.
Sendo que esta problemática está relacionada à modernidade, principalmente ao
século XIX, Gadamer percebe, com o humanismo, uma via de acesso ao modo de ser das
ciências do espírito.
Vejamos.
1.2 A TRADIÇÃO HUMANÍSTICA PARA AS CIÊNCIAS DO ESPÍRITO
A ciência moderna está fundada no desenvolvimento da ciência da natureza, do
século XVII. Por conseguinte, cresceu-se o domínio da natureza e, desta forma, espera-se que
o mesmo domínio seja desdobrado à ciência do homem e da sociedade, ao “universo humanohistórico.”13 Gadamer, partindo da assertiva de que “[...] as ciências do espírito estão muito
9
GRONDIN, Jean. Introdução à hermenêutica filosófica. 1999, p. 182.
GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I: Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 2007,
p. 43.
11
Ibid., p. 38.
12
GONÇALVES, Adão Luciano Machado. A hermenêutica-filosófica de Hans-Georg Gadamer. 2004, p.09.
Segundo alguns autores, também, Gadamer não quer ficar somente atido ao problema do método das duas
ciências, mas também visa apresentar a sua hermenêutica.
13
GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método II: Complementos e índice. 2004, p. 49.
10
15
24
longe de se sentirem simplesmente inferiores às ciências da natureza” 14, mostra que há um
modo próprio de proceder dessas ciências, e que a via de acesso não se encontra no conceito
de ciência moderna, mas em algo anterior que corresponde à pretensão gadameriana.
Assim, é tese inicial de Gadamer que o caráter científico das ciências do
espírito se pode ‘antes compreender com base na tradição do conceito de
formação cultural, do que a partir da idéia da ciência moderna.’ Aqui
desvenda-se o significado do recurso à tradição humanística no início de
‘Verdade e Método’. Pois, no seio dessa tradição é que foram formulados os
conceitos capazes de fazer jus à pretensão cognitiva própria das ciências do
espírito. 15
Assim, Gadamer mostra, justifica e demonstra a necessidade destes conceitos. Por
meio deles a cientificidade das ciências humanas deve ser compreendida e investigada:
Esse conhecimento deve ser empregado também na questão pela verdade nas
ciências do espírito. Elas formam um elemento específico dentro do conjunto
das ciências, pelo fato de que mesmo os seus conhecimentos pressupostos ou
reais determinam imediatamente todas as coisas humanas, traduzindo-se na
formação e educação humanas.16
Quando se detectou o problema metodológico, na modernidade, que reduziu a
verdade a uma só dimensão – à dimensão científica da natureza somente – e esperou-se o
mesmo modo de se chegar a ela, no que concerne às ciências históricas, Gadamer propôs uma
volta à tradição humanística, porque
[...] nessa tradição foram formados conceitos cuja resistência contra as
exigências da ciência moderna viabiliza, em contrapartida, a possibilidade de
as ciências humanas justificarem sua pretensão teorético-cognitiva. Nas
palavras de Gadamer: ‘[...] é da sobrevivência do pensamento de formação
humanística que as ciências filosóficas do século XIX extraem sua vida
particular [...]’17
O que se pode constatar, então, é que a reivindicação contra a ciência moderna dá
suporte à reflexão gadameriana de uma possível autocompreensão das ciências do espírito e,
nesta sua volta, tenta mostrar a “não-corruptibilidade” que as ciências do espírito gozavam,
porque, também, são parte integrante do ser humano e elas têm uma forma própria de se
chegar à verdade. “El conocimiento humanístico, entonces, son verdades que nos
14
GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I: Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 2007,
p. 43.
15
GRONDIN, Jean. Introdução à hermenêutica filosófica. 1999, p. 183.
16
GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método II: Complementos e índice. 2004, p. 56.
17
SILVA JÚNIOR, Almir Ferreira da. Estética e hermenêutica: a arte como declaração de verdade em
Gadamer. 2005, p. 41.
16
25
(trans)formam al cultivarmos y educarnos, tarea que Gadamer, siguiendo a Hegel, entiende
como un ascenso a la generalidad [...].”18
Toda esta problemática teve influência no tocante à estética e, assim, à arte.
Contudo, estes conceitos, da tradição humanística, serão subjugados pela Aufklärung e
perderão suas propriedades conceituais e basilares e estes serão importantes para a
compreensão da formação estética, século XIX. Entretanto, agora, vamos nos entrever com os
conceitos basilares que compõem o humanismo, pois estes nos apontarão à estética moderna.
1.3 OS CONCEITOS BÁSICOS DO HUMANISMO
Como vemos, a reflexão gadameriana recorreu aos conceitos humanísticos,
entendamo-los, a seguir, como tais – os conceitos de formação, sensus communis, juízo e
gosto – e de forma breve, igualmente, seus confrontos com a Aufklärung. Lembrando que
estes conceitos advinham da Alemanha do século XVIII e que, neste mesmo período, seriam
subjetivados e estetizados.
1.3.1 Formação e Sensus communis
Perante a tradição humanística, Gadamer parte do conceito de formação (bildung,
formation, formatio). De início, este conceito compreende que o devir sugere o ser, ou seja, o
fato de a formação “designar mais o resultado desse processo de devir do que o próprio
processo corresponde a uma freqüente transferência do devir para o ser.”19 É uma
transferência que parte das mudanças que a existência humana perpassa, tendo em vista o que
permaneça – o ser. “En este modelo la formación (Bildung) es clave, pues ella no consiste en
que el aprendiz acumule contenidos sino que se forme a sí mismo.” 20 (grifo no original)
18
“O conhecimento humanístico, então, são verdades que nos (trans)formam ao cultivarmos e nos educar, tarefa
que Gadamer, seguindo a Hegel, entende como uma ascensão à generalidade [...]” (tradução livre do autor)
(LORCA, Oscar. Arte, juego y fiesta en Gadamer. 2005, p. 02)
19
GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I: Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 2007,
p. 46. Também, Gadamer mostra nas páginas 45 e 46 o conceito de formação (Bildung) a partir de uma análise
“histórico-filológica” em Verdade e método e mostra uma rica interpretação deste conceito.
20
“Neste modelo a formação (Bildung) é chave, pois ela não consiste em que o aprendiz acumule conteúdos
senão que se forme a si mesmo.” (tradução livre do autor) (LORCA, Oscar. Arte, juego y fiesta en Gadamer.
2005, p. 02)
17
26
Percebemos, então, que formação é um formar-se a si mesmo. O primeiro a reconhecer a
necessidade de formação não é outrem, mas a própria pessoa. Se assim ocorre, “na formação
adquirida nada desaparece, tudo é preservado. A formação é um conceito genuinamente
histórico e é, justamente, o caráter histórico da ‘conservação’ o que importa para a
compreensão das ciências do espírito.”21 O que ocorre é que, do devir ao ser, o que ao
conceito de formação lhe é caro, é o caráter histórico e sua conseqüente conservação. De fato,
este reconhecimento histórico levou Gadamer e ver em Hegel (1770-1831) aquele que
elaborou de maneira mais nítida o conceito de formação. Assim, podemos nos perguntar: em
que consiste este formar a si mesmo, em conservação pela história, em que o que não é
importante é a apreensão de conteúdos?
O homem se caracteriza pela ruptura com o imediato e o natural, vocação
que lhe é atribuída pelo aspecto espiritual e racional de sua natureza.
‘Segundo esse aspecto, ele não é por natureza o que deve ser’, razão pela
qual tem necessidade de formação. O que Hegel chama de natureza formal
da formação repousa na universalidade. [...] A essência universal da
formação humana é tornar-se um ser espiritual, no sentido universal. [...] ter
em vista um sentido universal, pelo qual paute sua particularidade com
medida e postura.22 (grifo nosso)
A formação é formação na qual o universal guia o estilo de ser, de viver, de
proceder, a forma de se verem as coisas, de interpretá-las – é a formação cultural, formação de
uma cultura. Contudo, este sentido tem como condicional um ignoramento de si, ou seja, “[...]
inibição da cobiça e, com isso, liberdade do objeto da cobiça e liberdade para sua
objetividade.”23 É um sacrifício do que é particular em favor do universal, sendo um estar
numa posição de abertura para pontos de vista mais universais. A universalidade que se busca
atingir não se restringe à dimensão de conteúdos, ou a um comportamento teórico em
oposição a um prático, mas abrange o conjunto da determinação essencial da racionalidade
humana.24
Portanto, o conceito de formação é um conceito de construção do ser humano para
patamares mais orientativos e universais. É histórico e, nesse sentido, comunitário – devido à
sua conservação e à sua universalidade. Sendo assim, a formação é o elemento, no qual as
21
GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I: Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 2007,
p. 47.
22
Ibid., p. 47-8.
23
Ibid., p. 48.
24
Ibid., p. 47.
18
27
ciências do espírito se movimentam. 25 Elas estão de acordo com a realidade histórica do ser
humano.
Chega-se à conclusão de que o ideal de formação da tradição humanística dá
alicerce à autocompreensão das ciências do espírito – devido ao seu caráter histórico e de
preservação como é característico nas ciências do espírito. A “nova ciência” do século XVII,
em contrapartida, exigia para si exclusividade e questiona se, neste conceito de formação,
haveria uma fonte própria de verdade.26 Gadamer demonstra que até em sua base, mesmo que
os adeptos da ciência não concordassem, o conceito de formação está implícito.27 Este
conceito acena, então, aos conceitos de sensus communis, juízo e gosto, os quais foram
subjetivados e estetizados, mas que lhe cabiam a função de conhecimento, dentro do quadro
de formação cultural.
Assim, ao questionar a tradição humanística com a seguinte pergunta: “[...] que
forma de conhecimento das ciências do espírito se poderá aprender dela?” 28 Gadamer recorre
à Giambattista Vico (1668-1744), defensor do humanismo e que, por isso, “[...] se refere ao
sensus communis, o senso comum, e ao ideal humanista da eloquentia, momentos que já
existiam no antigo conceito do sábio.”29 Este conceito está ligado ao verossímil e do correto
do que se fala e ao bem falá-lo. Para Vico, é a universalidade concreta de uma comunidade
que, a partir do verossímil, forma o sensus communis; e não a partir da razão e do verdadeiro,
que tem por busca a formação da pesquisa crítica de sua época, empreendida pelas novas
ciências.
“O sensus communis é um sentido para a justiça e o bem comum, que vive em
todos os homens, e mais, um sentido que é adquirido através da vida em comum e
determinado pelas ordenações e fins desta.”30 (grifo nosso) É um conceito da comunidade
que busca um mesmo sentido: justiça, bem comum e sentido político. É o direito do
verossímil, ou seja, daquilo que, provavelmente, é verdadeiro. De fato, o que é importante,
aqui, são as circunstâncias. O verdadeiro e o correto, assim, estão baseados no que é plausível.
25
GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I: Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 2007,
p. 51.
26
Ibid., p. 55. Este questionamento acerca da formação humanística é devido ao método próprio das ciências da
natureza que exigiam às demais o mesmo caráter rigoroso.
27
Ibid., p. 55.
28
Ibid., p. 56.
29
Ibid., p. 56.
30
Ibid., p. 59.
19
28
Paralelamente, Gadamer mostra que o Conde de Shaftesbury (1671-1713) via os
humanistas compreenderem por sensus communis o sentido para o bem comum e, também,
amor à comunidade ou à sociedade, afeição natural, humanidade, cortesia.31 Percebe-se uma
correspondência para com o social e o político, principalmente quando olhamos a antigüidade
romana, na qual o sensus communis estava ancorado “[...] no valor e no sentido de suas
próprias tradições da vida civil e social.” 32 Conceito muito prático e do simples cotidiano.
Com a Aufklärung, todavia, este conceito ficou despolitizado, perdeu seu caráter
crítico e ficou reduzido a apenas uma faculdade teórica, devido a sua estetização, o que
veremos no próximo capítulo. É a marca do racionalismo na modernidade.
Em vez de um senso que, inerente a todos os homens, baseia-se na
universalidade concreta, institui a comunidade e, enquanto qualidade geral
do cidadão, constitui uma decisiva importância para a vida, assimilou-se um
conceito de “sensus communis” desprovido de sua especificidade crítica e
totalmente despolitizado. 33 (grifo no original)
Diante deste esvaziamento e intelectualização que o Aufklärung produziu, neste
conceito, vejamos, inclusive, outro conceito que está em íntima ligação com o sensus
communis, o juízo.
1.3.2 Juízo (Iudicium)34
O juízo (iudicium) é um conceito, também, de fundamental importância para o
humanismo; está incluído entre as capacidades superiores do espírito. A respeito do iudicium,
Gadamer diz:
A ‘sã compreensão humana’, chamada também de ‘compreensão comum’, é,
de fato, caracterizada decisivamente pelo juízo. O que distingue um tolo de
uma pessoa inteligente é que aquele não possui nenhum juízo, isto é, ele não
consegue subsumir corretamente e, por isso, não é capaz de aplicar
corretamente o que aprendeu e sabe.35 (grifo nosso)
31
GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I: Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 2007,
p. 62.
32
Ibid., p. 59-60.
33
SILVA JÚNIOR, Almir Ferreira da. Estética e hermenêutica: a arte como declaração de verdade em
Gadamer. 2005, p. 42.
34
É interessante relacionar que o conceito de juízo é refletido de maneira anterior, mais adiante em Verdade e
método; justamente no que se refere àquilo que chama, Gadamer, de pré-juízo ou preconceito ou pré-conceito.
35
GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I: Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 2007,
p. 69.
20
29
“Isto é, a compreensão comum é caracterizada decisivamente pelo juízo, iudicium
– inerente a todo ser humano –, a partir do qual podemos aplicar corretamente o que
aprendemos e sabemos.”36 É a capacidade de saber integrar o particular no universal, aplicar
o que aprendemos e sabemos, corretamente, ou, como exemplifica Gadamer, é a atividade de
reconhecimento de uma regra; e podemos dizer, é algo aplicado caso a caso, o julgamento que
mostra “[...] si algo individual adhiere o no a un todo, si es adecuado con todo lo demás o no
lo es, para lo cual había que tener un cierto sentido, pues no se puede hacer es demostrarlo.”37
É interessante perceber que o fato da “não-demonstração” que acompanha o iudicium, está
ligado ao caráter de um “tato”, ou, nas palavras dos filósofos moralistas ingleses, está em
concordância ao caráter do sentiment.
Em suma, é uma faculdade de subsunção do particular no universal, mas que não
é demonstrável e, sim, tateável. “Por isso, o juízo se encontra sempre em uma situação de
perplexidade fundamental devido à falta de um princípio que poderia guiar sua aplicação.”38
Diante do que foi tratado, até agora, não está o sensus communis estreitamente
ligado ao conceito de juízo? Por qual razão? A razão desta ligação, no humanismo, destes dois
conceitos, está no padrão de juízo que se estabelece, “[...] pois abrange sempre o conjunto de
juízos e padrões de juízo que o determinam quanto ao conteúdo”39. Com isso, é um conceito
de conhecimento não-formal, mas de um conteúdo são. Na base do iudicium, vemos a sua
estreita ligação para com o sensus communis. Desta maneira, é interessante que, quando
temos uma regra para fazê-la concreta, precisamos desta capacidade, iudicium, para a
aplicação. Tê-la significa, inclusive, poder contribuir na comunidade mais eficazmente na
procura, na demonstração, daquilo que é verossímil. Como também, transpô-la, na concretude
da vida, de forma mais criativa, na particularidade de um caso. Daí que este conceito possui
um caráter comunitário devido à sua vinculação ao sensus communis e, em contrapartida, este
parte do ponto de um conjunto de juízos ou padrões de juízo que o determinam quanto ao
conteúdo.
Complementando, “quem possui um juízo são não está apto, como tal, a julgar o
particular a partir de pontos de vista universais, mas sabe o que é que realmente importa, isto
36
SILVA JÚNIOR, Almir Ferreira da. Estética e hermenêutica: a arte como declaração de verdade em
Gadamer. 2005, p. 43.
37
“[...] se algo individual adere ou não a um todo, se é adequado com todo o demais ou não o é, para o qual
havia que ter um certo sentido, pois não se pode fazer é demonstrá-lo.” (tradução livre do autor) (LORCA,
Oscar. Arte, juego y fiesta en Gadamer. 2005, p. 03)
38
GADAMER, Hans-Georg. Verdade método I: Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 2007, p.
69.
39
Ibid., p. 71.
21
30
é, vê as coisas com base em pontos de vista corretos, justos e sadios.”40 Esta correspondência
entre o sensus communis e o juízo está dada pelo sentido do primeiro e a justa, correta e sadia
subsunção são conseqüentes.
Contudo, na Aufklärung alemã, este conceito de juízo foi rebaixado às
capacidades inferiores do conhecimento, o que conferiu um significado especial à estética.
Citado por Gadamer, Baumgarten (1714-1762), ensina-nos: “[...] o juízo reconhece o
sensorial-individual, a coisa singular e, na coisa singular, ele julga sua perfeição ou
imperfeição.”41Julga-se a coisa, imanentemente, olhando a concordância interna e não a
aplicação de um universal. Eis o que Baumgarten denomina de iudicium sensitivum como
gustus sensível, o que Kant mais tarde corresponderá a isso o julgamento estético ou juízo
estético. Assim, esta estetização também valerá para o próximo conceito, o de gosto.
Entretanto, eles serão tratados mais à fundo, no próximo capítulo. Por hora, reflitamos sobre
este último conceito que Gadamer tratou no quadro dos conceitos humanísticos.
1.3.3 Gosto
Gadamer, ao tratar deste conceito, fala que “originariamente o conceito do gosto
possui um cunho mais moral do que estético”42 (grifo no original), visto que este conceito
padeceu também uma estetização. Para um melhor entendimento, vejamos a estreita
vinculação do conceito de gosto com a moda, sobre a qual Gadamer discorre:
O conceito da moda já diz literalmente que trata de um ‘como’ (modus)
passível de modificação no âmbito de um todo permanente do
comportamento social. [...] De fato, para ela, a universalidade empírica, o
respeito pelos outros, a comparação, até mesmo o colocar-se num ponto de
vista comum, tudo isso lhe é constitutivo. Por isso, a moda cria uma
dependência social, da qual fica difícil subtrair-nos. 43 (grifo no original)
Da mesma forma que a moda, o gosto é algo constituído pela atuação de todos,
normatizando o chamado bom gosto e, evidentemente, é suscetível de mudança na dimensão
comportamental social permanente. Ora o que se possui, em questão de gosto, são gostos,
apesar de todos quererem ter bom gosto, lembra Gadamer. Aí se encontra a sua dependência
social, visto que, conseqüentemente, todos querem sentir-se vinculados à moda, mas não
40
GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método I: Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 2007,
p. 71.
41
Ibid., p. 70.
42
Ibid., p. 74.
43
Ibid., p. 77.
22
31
submetidos. Assim podemos inferir que gosto pode ser definido como uma capacidade de
discernimento espiritual, ou seja, o gosto “[...] se ocupa dessa coletividade, mas não se
submete a ela.”44 Neste sentido, é uma capacidade em que o estilo de cada um não fica
perdido, dentro dos padrões da moda, mas, é claro, que a aderimos à medida que o gosto
próprio tenha correlação com o “modo de ser do todo”.
Esta “capacidade de discernimento espiritual”, como vemos, é algo aplicado tanto
ao coletivo quanto ao indivíduo, há uma interação entre ambos, mostrando que o que é
característico é o adequar, que está referido ao um proceder.
Balthasar Gracian (1601-1658), lembrado por Gadamer, trata da história deste
conceito. Ele “[...] parte do princípio de que o gosto sensível, o mais animalesco e o mais
íntimo de nossos sentidos, já contém o gérmen da distinção que se realiza no julgamento
espiritual das coisas.”45 Não estaria, aqui, a justificativa de redução posterior do gosto como
aplicado somente ao sensível? E entrementes, além disso, diz que o gosto é
[...] o ponto de partida para a formação ideal da sociedade. Seu ideal do
homem culto (do discreto) consiste em que o hombre em su punto adquire a
correta liberdade de distância com relação a todas as coisas da vida e da
sociedade, o que lhe permite saber distinguir e escolher consciente e
ponderadamente. 46 (grifo no original)
O gosto é apresentado a esta formação ideal pelo dito bom gosto, o qual denomina
a “boa sociedade”. Em suma, a partir do instinto sensorial há o vislumbramento do julgar as
coisas, espiritualmente, no entremeio à “liberdade espiritual”. Existe aí um distanciamento da
escolha e do julgar frente às urgências da vida. Nisso, a formação deve ser tanto para o
espírito quanto para gosto.
Não obstante, se este conceito humanístico era visto dentro de parâmetros
formativos, é porque sob ele se pensa numa forma de conhecimento. Conhecimento que parte,
justamente, desta capacidade de diferenciação, de discernimento espiritual, de distanciação,
como já fora dito, mas que, também, se realiza no julgamento espiritual das coisas. “Desta
forma, tanto o gosto quanto o juízo são julgamentos do individual com vistas a um todo, a ver
se ele se ajusta a todos os outros, se ‘combina’.” 47 Entretanto, este saber não se dá por razões
44
GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I: Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 2007,
p. 77.
45
Ibid., p. 74.
46
Ibid., p. 75.
47
Ibid., p. 78.
23
32
prévias, é algo como um sentido. “Quando em questões de gosto algo é negativo, a pessoa não
consegue dizer o por quê (sic!), mas o experimenta com a maior segurança.”48
Como podemos observar, o gosto além de individual está, até certo ponto,
determinado pelo todo que o constitui. Ele caminha entre a capacidade individual e
combinação do individual ao todo, na forma de discernimento espiritual – sendo isso uma
forma de conhecimento –, além de sua concretude e desenrolar que dão sua característica
social e moral. “Dessa maneira, o gosto não se restringe, de forma alguma, ao belo na
natureza e na arte, julgando-o de acordo com a sua qualidade decorativa, mas abrange todo o
campo dos costumes e da decência.”49 Mas o que ocorre, no século XVIII, é a estetização e
subjetivação deste conceito que foi aplicado a julgar os objetos do sentimento:
Em contrapartida, o tomando-se o gosto como cânone para julgarem-se os
objetos do sentimento, no século XVIII, esse conceito torna-se faculdade do
sentimento, à qual foi atribuída a atividade própria da estética. Refere-se, a
partir de então, a uma faculdade de julgar o que é universalmente
comunicável, embora de forma não conceitual. O gosto limita-se ao
julgamento estético do belo. 50
Portanto, a Aufklärung foi responsável por descartar a validade que os conceitos
humanísticos tinham para o conhecimento, para a moral, para vida pública, pois apregoava
que o método que produz a verdade era o das ciências da natureza, tendo seu cume, para
Gadamer, com o criticismo kantiano. O conhecimento e a moral estariam determinados e
delimitados ao campo da razão pura e da razão prática, respectivamente, e conhecer estaria
somente validado aos moldes dos métodos das ciências da natureza. Para ser válido, então, o
conhecimento das ciências do espírito, elas deveriam entrar nestes moldes. Daí a subjetivação
e estetização dos conceitos humanísticos, que é fruto da “não-molduração” completa a estes
métodos.
Junto a la fundamentación de las ciencias experimentales realizada (sic!) a
través de la crítica kantiana y a su glorificación metodológica aledaña a ésta,
surge la exigencia de que las humanidades deban regirse por los mismos
métodos rigurosos que posibilitaron el éxito de las ciencias naturales. Desde
entonces habrá que buscar análisis metódicos para las ciencias humanas; la
formación, el sensus communis, la capacidad del juicio o el gusto a partir de
Kant ya no son cosas del conocimiento sino que pertenecen al campo
estético.51
48
GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I: Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 2007,
p. 76.
49
Ibid., p. 78.
50
SILVA JÚNIOR, Almir Ferreira da. Estética e hermenêutica: a arte como declaração de verdade em
Gadamer. 2005, p. 44.
51
“Junto à fundamentação das ciências experimentais realizada através da crítica kantiana e a sua glorificação
metodológica limitada a esta, surge a exigência de que as humanidades devam reger-se pelos mesmos métodos
rigorosos que possibilitaram o êxito das ciências naturais. Desde então terá que buscar que buscar análises
24
33
Por conseguinte, temos que reparar que o feito de Gadamer, a questionabilidade
do método e, também, a volta à tradição humanística, mostrou esta alienação e a retomada da
validade do modo de proceder das ciências do espírito. Percebemos, ainda, que existem
experiências de verdade que precisam ser retomadas, a arte e a história, pois estas foram
muito chagadas com a alienação que o Aufklärung desencadeou. E neste capítulo, A tradição
humanística e as ciências do espírito, podemos constatar um reducionismo, a tradição
humanística estetizada e subjetivada e, mais adiante, a estética – a arte – desvirtuada do seu
caráter de verdade e alienada.
En consecuencia, Gadamer tratará precisamente de recobrar esas
experiencias de la verdad y de señalar su justiticación filosófica – lo que que
no es sino un forma de filosofar –, experiencias olvidadas como la retórica,
la filosofía práctica, la hermenéutica jurídica y teológica, y, quizás la más
importante de todas, la del arte [...]”52
Parece importante afirmar, então, que o que Gadamer fez foi uma prestação de
contas, ao tratar da dimensão da arte e histórica, em Verdade e método: “[...] não era uma
tarefa para a práxis metodológica da arte e da ciência histórica, nem tampouco se referia, em
primeira mão, à consciência de método dessas ciências. Referia-se, exclusivamente, e em
primeiro lugar, à idéia filosófica da prestação de contas, da explicação.”53 É justamente nesta
explicação da experiência da arte que nós nos deteremos. É de grande importância ter em
vista que Gadamer desenvolve, posteriormente, sua hermenêutica, tendo como plano de fundo
esta problemática do método. Mas que a arte e a história terão sua parcela de contribuição.
Para Grondin, “[...] poder-se-ia dizer que, de parte do objeto, o caminho para a estética
expressa, para ‘Verdade e Método’, um desvio. Apesar de todas as concepções positivas da
arte, a parte introdutória de ‘Método e Método’ oferece mais uma anti-estética do que uma
estética.”54 (grifo no original) Entretanto, deter-nos-emos no que concerne a esta prestação de
contas na arte, na qual se desenvolverá nossa problemática de maneira mais específica, após a
exposição já feita do entorno conceitual humanístico. Vejamos agora como está configurada a
formação estética moderna centrada em Kant, ressaltando que estes conceitos que foram
estudados, até então, estão estreitamente relacionados e que, agora, é o momento de
metódicas para as ciências humanas; a formação, o sensus communis, a capacidade do juízo ou o gosto a partir
de Kant já não são coisas do conhecimento senão que pertencem ao campo estético.” (tradução livre do autor)
(LORCA, Oscar. Arte, juego y fiesta en Gadamer. 2005, p. 03)
52
“Em conseqüência, Gadamer tratará precisamente de recobrar essas experiências da verdade e assinalar sua
justificação filosófica – o que não é senão uma forma de filosofar –, experiências esquecidas como a retórica, a
filosofia prática, a hermenêutica jurídica e teológica, e, talvez a mais importante de todas, a da arte [...]”
(tradução livre do autor) (LORCA, Oscar. Arte, juego y fiesta en Gadamer. 2005, p. 01)
53
GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método II: Complementos e índice. 2004, p. 565.
54
GRONDIN, Jean. Introdução à hermenêutica filosófica. 1999, p. 185.
25
34
demonstrar esta mesma subjetivação e estetização pormenorizada. Todavia veremos,
igualmente, a crítica gadameriana à formação estética desencadeada e o que ela vislumbra – a
ontologia da obra de arte.
35
2 A CRÍTICA À FORMAÇÃO ESTÉTICA
A reflexão do capítulo anterior, A tradição humanística e as ciências do espírito,
mostraram-nos a estetização e subjetivação dos conceitos humanísticos. Já neste capítulo, A
crítica à formação estética, temos o intuito de apresentar e refletir sobre o itinerário
percorrido por Gadamer desde o acerto de contas com a estética kantiana e como esta foi
decisiva para a formação estética ocorrente no século XIX; também, ao mesmo tempo, refletir
sobre os pontos críticos desta temática e como se dá a proposta ontológica gadameriana. Por
hora, vamos ter em mente uma caracterização da estética kantiana, sob a perspectiva de sua
subjetivação.
2.1 A SUBJETIVAÇÃO ESTÉTICA KANTIANA
Como vimos, a idéia epistemológica de que as ciências do espírito deveriam
submeter-se ao rigor metodológico das ciências da natureza para gozarem de um
conhecimento que fosse seguro, isto no período da Aufklärung, reduziu os conceitos de
formação, sensus communis, juízo e gosto à dimensão subjetiva e estética. E, para Gadamer,
Kant (1724-1804), com seu criticismo, devido à sua contemporaneidade a esta situação e
adesão a tal modo de proceder, é um divisor de águas na história das ciências do espírito com
sua obra a Crítica do juízo ou Crítica da faculdade do juízo.
Se considerarmos o papel que a crítica do juízo de Kant desempenha no
âmbito da história das ciências do espírito, teremos de dizer que sua
fundamentação transcendental e filosófica da estética teve conseqüências
para ambos os lados e serviu como divisor de águas de uma época.
Representa a ruptura de uma tradição, mas também o preâmbulo de um novo
desenvolvimento. 55
Assim, a ruptura e seu desenvolvimento estético estão de acordo com aquilo que
foi tratado – os conceitos humanísticos e as ciências do espírito – no capítulo anterior. O que
trataremos a seguir é uma breve caracterização da estética kantiana – e necessariamente
aprofundaremos esta subjetivação e estetização dos conceitos tratados acima – em
contraponto com o pensamento gadameriano.
55
GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I: Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 2007,
p. 81.
27
36
2.1.1 Caracterização da estética kantiana
A estética, de fato, é a mais jovem das disciplinas filosóficas, como ensina
Gadamer. Contudo, foi somente no século XVIII, com o racionalismo da Aufklärung, que
“[...] se estabelició el derecho autónomo del conocimiento sensorial y con él la relativa
independencia del juicio del gusto con respecto ao entendimiento y sus conceptos.”56 Mas esta
autonomia deu-se ao custo da estetização e da subjetivação dos conceitos humanísticos de
sensus communis, juízo e gosto, principalmente com a estética kantiana. Estética esta que fora
postulada na Crítica da faculdade do juízo.
Sendo assim, a terceira Crítica confere uma esfera de autonomia à estética, para
além das outras duas Críticas kantianas, a Crítica da razão pura e Crítica da razão prática.
Esta terceira obra “é crítica da crítica, isto é, indaga a respeito dos direitos de um tal
comportamento crítico sobre questões de gosto.”57 É a busca pelo a priori kantiano, que está
acima dos princípios empíricos e não uma crítica a um gosto por parte de outros.
Na Crítica do juízo, inicialmente, Kant se detém em três capacidades do ser
humano: a cognitiva, o sentimento de prazer e de desprazer e a apetição. Estas possuem leis a
priori que as regulam: à primeira, o entendimento e à terceira, a razão – correspondentes às
duas primeiras críticas; também ao sentimento de prazer ou de desprazer, o juízo, que é a
capacidade de pensar o particular contido no universal58, como já fora dito. Assim A crítica da
faculdade do juízo é uma resposta de ligação às outras duas críticas – ou seja, a Crítica da
razão pura trata da natureza e do conhecimento e a Crítica da razão prática, da moral e da
liberdade – por situar o juízo como ponte entre o entendimento e a razão. A natureza, pois,
não pode encontrar-se, irremediavelmente, afastada da forma como o homem exerce sua
liberdade, enquanto natureza deve despertar certas idéias e sentimentos de qualidade superior.
Esta capacidade, o juízo, pode ocorrer em duas maneiras diferentes: o juízo
determinante e o juízo reflexionante.
No caso deste universal (a regra, o principio, a lei) ser dado, a faculdade do
juízo, que nele subsume o particular, é ‘determinante’ (o mesmo acontece se
ela, enquanto faculdade de juízo transcendental, indica ‘a priori’ as
56
“[...] se estabeleceu o direito autônomo do conhecimento sensorial e com ele a relativa independência do juízo
de gosto com respeito ao entendimento e seus conceitos.” (tradução livre do autor) (GADAMER, Hans-Georg.
La verdad de la obra de arte. 2002, p. 04)
57
GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I: Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 2007,
p. 83.
58
PASCAL, Georges. O pensamento de Kant. 1990, p. 157.
28
37
condições de acordo com as quais apenas naquele universal é possível
subsumir). Porém se só o particular for dado, para o qual ela deve encontrar
o universal, então a faculdade do juízo é simplesmente ‘reflexiva’.59
Vemos, então, dois movimentos, o do universal ao particular e vice-versa. Desse
modo, o juízo determinante é a capacidade de aplicação de uma lei universal a um caso
particular – e este fora desenvolvido por Kant na Crítica da razão pura. Quase que
inversamente é o juízo reflexionante, na atividade de reflexão, que a partir de um caso
particular busca o universal. Dessa forma, na Crítica da faculdade do juízo, o sujeito é
pensado como sujeito reflexionante, em que o juízo reflexionante busca uma unidade diante
dos casos particulares empíricos.
Faz-se necessário um princípio regulador que busque esta unidade perante os
casos, as leis particulares, e que apenas a faculdade deste juízo pode dar a si mesma para a
realização de sua atividade. Pois é com a idéia de finalidade, ou seja, conformidade a fins, é
que estamos tratando; somente, assim, é que se pode compreender um sistema formado, em
nível ideal e não conceitual, por estas leis naturais particulares. Este conceito é a priori
regulador e não constitutivo, que se apresenta sob duas formas: “[...] pelo juízo estético, nós
constatamos a concordância entre um objeto da natureza e as nossas próprias faculdades,
constatação esta acompanhada de prazer [...]; pelo juízo teleológico, reencontramos uma
harmonia na própria natureza.”60 Por conseguinte, o juízo estético é algo restrito ao sujeito e o
juízo teleológico é pertinente à objetividade, mas com certa preeminência no sujeito.
Quanto ao juízo estético, Kant define a estética como “aquilo que na
representação de um objecto é meramente subjectivo, isto é (sic!) aquilo que constitui a sua
relação com o sujeito e não com o objecto é a natureza estética dessa representação.”61 Assim,
vemos que a qualidade de um juízo, que é estético, é algo voltado somente ao sujeito – no que
concerne às suas faculdades cognoscitivas – e sem relação alguma para com o objeto. Daí que
a pretensão de verdade – o que imputa juntamente o conhecimento – num juízo estético fica
extinta, já que a relação com a objetividade é descartada. Entende-se o estético como “uma
forma específica de julgamento”, visto que o juízo ficou restrito ao sensorial-individual. De
59
KANT, Immanuel. Crítica da faculdade do juízo. 1997, p. 34.
PASCAL, Georges. O pensamento de Kant. 1990, p. 159.
61
KANT, Immanuel. Crítica da faculdade do juízo. 1997, p. 43. Vale lembrar que o que é estética na Crítica
do juízo não significa a mesma coisa para a Crítica da razão pura, como fala o Prof. Dr. Almir Ferreira da Silva
Júnior: “Na Crítica da razão pura, sob a expressão ‘estética transcendental’, Kant aborda a estética como
conhecimento das condições a priori da receptividade cognitiva humana, analisando a esfera da sensibilidade
enquanto condição de possibilidade do conhecimento, a partir das condições fundamentais – intuições puras – de
espaço e tempo. [...] em sua Crítica da faculdade de julgar, Kant faz uso da palavra ‘estética’ referindo-a, agora,
a uma forma específica de julgamento.” (grifo do autor) (SILVA JÚNIOR, Almir Ferreira da. Estética e
hermenêutica: a arte como declaração de verdade em Gadamer. 2005, p. 48-9)
60
29
38
fato, para Kant, a significação do juízo estético é inerente à crítica do gosto. Ora, do ponto de
vista da qualidade, “‘gosto’ é a faculdade de julgamento de um objecto ou de um modo de
representação mediante um comprazimento ou descomprazimento (‘independente de todo
interesse’). O objecto de um tal comprazimento chama-se ‘belo’.”62 Em suma, nessa
“faculdade de juízo reflexiva, a conformidade a fins é inteiramente subjetiva, e o juízo que daí
resulta denomina-se juízo de gosto, ou estético.”63
O juízo de gosto estético julga, desinteressadamente, então, pelo comprazimento
ou descomprazimento um objeto, ou seja, pelo agrado ou desagrado. É um princípio
subjetivo, no qual o belo não possui uma esfera de conhecimento, pois o sujeito julga
“imanentemente” e sem interesses, pois o interesse é de ordem racional. Nas palavras de
Gadamer, “não se reconhece nada dos objetos que são julgados como belos; apenas se afirma
que a eles corresponde a priori um sentimento de prazer no sujeito.”64 Desse modo, o juízo de
gosto a priori corresponde com nossas capacidades cognoscitivas em adequação com a
representação do objeto; a esta adequação se produz o prazer, o agrado, chamado belo,
possibilitando o livre jogo da imaginação e do entendimento, no sujeito. O juízo é a expressão
do sentimento de prazer. Daí podermos dizer que algo seja belo ou não. “Esta justificación
trascendental del juicio de gusto vale tanto para lo bello em la naturaleza como para lo bello
em el arte”65. Em contrapartida, “lo que experimentamos ante lo bello en la naturaleza y en el
arte es una animación del conjunto de nuestras fuerzas espirituales y su libre juego.”66
Entrementes, juízo de gosto funda comunidade, pois ela é universalmente
comunicável aos outros. Sendo assim, o gosto é o verdadeiro sensus communis. Aqui,
deparamo-nos com a moralidade, não no sentido moral-político, como fora descrito acima,
mas por ser uma capacidade que se realiza, em todos os seres humanos. Conseguintemente, a
universalidade do juízo de gosto está em ser gosto reflexivo e não mais uma cognitio
sensitiva, devido ao princípio subjetivo a priori do juízo estético ou de gosto do sujeito
reflexivo.
62
KANT, Immanuel. Crítica da faculdade do juízo. 1997, p. 57. O belo aqui está para o entendimento e o
sublime, como o trata posteriormente, está para a razão.
63
SILVA JÚNIOR, Almir Ferreira da. Estética e hermenêutica: a arte como declaração de verdade em
Gadamer. 2005, p. 50.
64
GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I: Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 2007,
p. 84.
65
“Esta justificação transcendental do juízo de gosto vale tanto para o belo na natureza como para o belo na
arte.” (tradução livre do autor) (GADAMER, Hans-Georg. Estética y hermenéutica. 2006, p. 63)
66
“O que experimentamos ante o belo na natureza e na arte é uma animação do conjunto de nossas forças
espirituais e seu livre jogo.” (tradução livre do autor) (GADAMER, Hans-Georg. La verdad de la obra de arte.
2002, p. 04-05)
30
39
Como vimos acima, os conceitos de que tratamos no primeiro capítulo perderam
sua conceituação humanística e foram transformados pela estética kantiana. Nesta mesma
tradição, os conceitos de iudicium e sensus communis tinham uma forte proximidade, como
vimos, devido ao fato daquele primeiro determinar os conjuntos e os padrões de juízo que dão
o conteúdo a este segundo. Todavia, a estética kantiana, quando determinou o gosto sendo
uma forma de juízo, ou seja, relativo ao subjetivo, e não uma forma de discernimento
espiritual que tem, também, sua característica social; este juízo de gosto foi tido como o
verdadeiro sensus communis, ou seja, o ligame foi feito pelo juízo a determinar o gosto como
sensus communis, num outro sentido, estético e subjetivo. Por conseguinte, tem-se a
universalidade de forma subjetiva deste mesmo juízo.
Logo, Gadamer nos mostra que “o que Kant de sua parte legitimou e queria
legitimar através de sua crítica do juízo estético era a universalidade subjetiva do gosto
estético, na qual já não há conhecimento do objeto [...]”67 Entretanto, na teoria kantiana, o
caráter transcendental do juízo estético não apenas impôs uma delimitação ao conhecimento
conceitual, como também o restringiu em sua função perante os fenômenos do belo e da arte.
A partir desta visão panorâmica da autonomia da estética kantiana, para a compreensão da
arte, Gadamer dispensou uma atenção muito especial para a beleza livre e beleza dependente.
Mas poderíamos nos perguntar: por que Gadamer tal atenção? Uma das respostas está em sua
intenção em compreender o grande alcance que teve Kant e como ele está presente na estética
posterior a ele.
2.1.1.1 Beleza livre e dependente
De início, a diferenciação entre beleza livre (pulchritudo vaga) e beleza aderente
ou dependente (pulchritudo adhaerens), em Kant, é que “a primeira não pressupõe nenhum
conceito do que o objecto deva ser; a segunda pressupõe um tal conceito e a perfeição do
objecto segundo o mesmo.”68 O que temos é um critério de diferenciação, o conceito. No
entanto, em que o sentido o conceito compromete tanto na estética de Kant? O que está por
detrás desta é outra distinção, a do “gosto puro” e “intelectualizado”.
67
GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I: Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 2007,
p. 82.
68
KANT, Immanuel. Crítica da faculdade do juízo. 1997, p. 71.
31
40
Correspondentemente, gosto puro é aquele puro juízo de gosto, sem nenhum
pressuposto ou conceito – o que remete a qualquer fim – e, ainda, sem que haja interferência
de pontos de vista intelectuais ou morais. Ademais, “a determinação do conteúdo do gosto é,
pois, eliminada do campo de sua função transcendental. Kant só mostra interesse onde existe
um princípio próprio do juízo estético, e por isso só lhe importa o puro juízo de gosto.”69
(grifo no original) É o caso da beleza natural livre e – no terreno da arte – o ornamento. Ao
contrário da beleza dependente, a qual tem a “aderência” de um conceito, em relação a um
determinado fim. São exemplos, de Kant, o homem, o animal, o edifício. A beleza aderente é
definida como uma classe beleza inferior, porque seu sentido não é puramente estético. Esta
dependência para com os fins traz em si a idéia de perfeição que está ligada ao conceito das
coisas. A perfeição, pois, está associada ao conceito que temos das coisas. Avessamente, o
gosto puro é destituído de perfeição devido a sua liberdade a fins e, conseqüentemente, são
belos “por si mesmos” (“für sich”).
Como vemos, o “gosto puro” corresponde à beleza livre e, opostamente, o
“intelectualizado”, à beleza aderente. Para Gadamer, a distinção entre ambas é uma maneira
de estabelecer a pureza do juízo de gosto, é prescrever o caráter de sua autonomia diante do
conhecimento e da moral. Entretanto, o mesmo afirma que toda vez que o gosto puro, a beleza
livre, sendo belo por si mesmo, “‘aciona’ esse conceito – e por isso não ocorre só no campo
da poesia, mas em toda a arte representativa – a situação parece a mesma dos exemplos,
apresentados por Kant para a beleza ‘dependente’.”70 A idéia de que não se deve ter conceito,
já não é uma forma de conceituar? E o alcance de tal objetivo não mostra uma busca por
perfeição? Portanto, está-se sob um determinado conceito em ambos os casos.
Na argumentação gadameriana, ao tratar da beleza livre, o conceito de juízo puro
parece sucumbir, quando exemplos seus, os tapetes de arabesco e a música, sem tema e sem
texto, encontram-se sob um determinado conceito, como também, conseqüentemente, “todo o
reino da poesia, das artes plásticas e da arquitetura, assim como todas as coisas da natureza,
que não vemos como tais somente por sua beleza, como as flores ornamentais” 71. “Para
Gadamer esto no puede tener sino el ropaje de una fatalidad, en el sentido de que con ello se
69
GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I: Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 2007,
p. 85.
70
Ibid., p. 86.
71
Ibid., p 87.
32
41
escinde el juicio estético de toda referencia al ser y al conocer, obligando a la estética a
definirse en contraposición al conocimiento y a la moral.” 72
Há, então, que se superar o juízo de gosto puro. Nesse sentido, Gadamer explica
que a compreensão em concordância com a imaginação não deve ser sensível e esquemática
quando tratamos do conhecer – isto é, subjetivismo –, mas sim o jogo de algo que estimula a
compreensão do sujeito:
[...] pode-se e deve-se superar o ponto de vista daquele juízo de gosto puro,
dizendo que a beleza não está em questão onde se tenta, através da
imaginação, tornar sensível e esquemático um certo conceito de
compreensão, mas tão-somente onde a imaginação está em livre
concordância com a compreensão, ou seja, onde pode ser produtiva. Esse
formar produtivo da força da imaginação, no entanto, não alcança sua maior
riqueza onde é simplesmente livre, como no revolutear dos arabescos, mas
onde vive em um espaço de jogo que instaura o empenho compreensivo por
unidade, não como barreira mas (sic!) prelineando estímulos para seu jogo.73
Em suma, a intenção kantiana é a de que a partir do ponto de vista do juízo puro é
que se dá o reconhecimento da arte, pois visa dar autonomia ao juízo de gosto puro frente ao
conhecimento e à moralidade. No entanto, o próprio juízo de gosto puro se supera, por pregar
certa isenção conceitual. O que não foi possível, conforme demonstramos. Eis a intenção
gadameriana ao dispensar sua atenção sobre este assunto.
2.1.1.2 O ideal de beleza
Entretanto, diante do que já dissemos acerca do juízo gosto estético, Gadamer
dispensa, também, seu olhar para o ideal de beleza, no § 17 da Crítica da Faculdade do Juízo.
Mas por quê?
O ideal de beleza radica-se na distinção entre idéia normal e idéia racional ou
ideal de beleza. O primeiro, pois, “[...] encontra-se em todas as espécies da natureza [...]. Essa
idéia normal é, portanto, uma contemplação individual da imaginação, como a ‘imagem da
espécie que paira entre todos os indivíduos singulares’” 74, ou seja, o que é normal a uma
72
“Para Gadamer isto não pode ter senão a roupagem de uma fatalidade, no sentido de que com ele se separa o
juízo estético de toda referência ao ser e ao conhecer, obrigando à estética se definir em contraposição ao
conhecimento e à moral.” (tradução livre do autor) (LORCA, Oscar. Arte, juego y fiesta en Gadamer. 2005, p.
04)
73
GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I: Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 2007,
p. 88.
74
Ibid., p. 89.
33
42
espécie. Contudo, a representação dessa idéia normal não agrada pela beleza, senão pela
exatidão, o que significa que não se contradizem as condições sob as quais tal objeto pode ser
belo. Já o segundo, ao se citar Kant, um ideal de beleza “só existe com relação à figura
humana: na ‘expressão do ético’, ‘sem a qual o objeto não agradaria de forma universal’.”75
(grifo no original)
A conseqüência mais importante dessa teoria é que, para uma obra de arte poder
agradar, precisa-se que ela seja mais que agradável ao gosto, pois o ideal de beleza não é mero
juízo de gosto, diz Kant. É além. Ora, para Kant só existe um ideal de beleza para a figura
humana. Se é ideal, é porque estamos falando em teleologia, isto é, a um fim a ser alcançado.
Sendo assim, como pode Kant, antes, falar em beleza sem a fixação de conceitos, sem fins, e,
agora, mostrar um ideal de beleza à figura humana na expressão do ético?
Não pode haver nenhum outro conteúdo dessa representação a não ser aquilo
que se expressa na figura e na manifestação do representado. Falando
kantianamente: o prazer intelectualizado e interessado nesse ideal
representado da beleza não se separa do prazer estético, mas torna-se um
com ele. 76
Entrementes, o ideal de beleza está na expressão do ético, na relação com a figura
humana; isto significa que, se olharmos o conceito de juízo estético, fundado num sentimento
subjetivo, o que determina a universalidade do belo, o ideal de beleza a ser produzido, terá a
forma de uma apresentação individual.
A essência de toda a arte, então, reside em confrontar o homem consigo mesmo,
falando hegelianamente. Mas não só a figura humana pode expressar idéias éticas na
representação artística, também pode outros objetos da natureza. Claro que Kant, reconhece
Gadamer, tem razão de dizer que a expressão do ético é apenas emprestada, diferente do
homem, pois este expressa essas idéias no próprio ser. É, a partir do ideal de beleza, então,
que se torna possível falar em essência da arte. A arte torna-se um fenômeno autônomo e sua
tarefa “[...] não é a representação do ideal de natureza, mas o encontro do homem consigo
mesmo, na natureza e no mundo humano-histórico.”77
Portanto, a demonstração kantiana de que o belo agrada sem conceituação, não
impede que o interesse pela beleza nos atinja significativamente.
75
GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I: Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 2007,
p. 88-9.
76
Ibid., p. 90.
77
Ibid., p. 91.
34
43
2.1.1.3 O problema do interesse pelo belo na natureza e na arte
Gadamer vai dizer que o que, realmente, movimenta a problemática da estética
kantiana é a interessante importância do belo. Como assim? Não o belo, empiricamente, mas
o a priori, é o que explica o interesse que suscita o belo, segundo Kant. Interesse que
constatamos acima. Mas o que dizer deste interesse do belo a priori, em face da noção
fundamental da falta de interesse pelo prazer estético? Tal fato acabará gerando uma nova
questão, ao transladar do ponto de vista do gosto para o ponto de vista do gênio, o que
veremos mais adiante. Para isso, o belo, na problemática kantiana, é distinto para a natureza e
para a arte e é, justamente, a comparação do belo natural com o belo artificial o que
promoverá o desenvolvimento dos problemas.
O que se vê, agora, é Kant questionando o interesse pelo belo!
Entretanto, diante do interesse pelo belo, ele dá a primazia ao belo na natureza e
não na arte. Quando vimos o ideal de beleza, vimos que a arte possui certa vantagem frente ao
belo natural – ela é uma expressão lingüística ética mais imediata. Entretanto, para Kant, não
é a arte que faz com que se ultrapasse o interesse e se questione o belo. “Ao contrário, acentua
inicialmente (no parágrafo 42) a vantagem do belo natural frente ao belo artístico.” (grifo no
original) 78 O que se quer dizer é que o belo, na natureza, é expressão do juízo estético puro.
A beleza natural não possui uma vantagem somente para o juízo estético
puro, a de tornar claro que o belo repousa na finalidade da coisa representada
para nossa capacidade de compreensão como tal. Isso se torna muito claro no
belo natural, porque não possui nenhum significado de conteúdo que mostre
o juízo de gosto em sua pureza não intelectualizada.79
Dessa forma, o belo na natureza, sendo uma vantagem para o juízo estético e,
primeiramente, expressão sua, sem significado em seu conteúdo, repousa, em nível subjetivo,
na representação da coisa nas capacidades intelectuais – na compreensão. Mas o interesse
pelo belo, na natureza, é “moral por parentesco”, desperta em nós um interesse moral
imediato, com a condição de se predispor ao bem ético. “O achar belas as formas da natureza
nos leva a pensar que ‘a natureza produziu aquela beleza’ [...] Que a natureza seja bela, é
coisa que desperta interesse para quem ‘já tenha anterior fundamentado seu interesse pelo
bem ético’.”80 O que podemos perceber é que a primazia do belo, na natureza, dada por Kant,
78
GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I: Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 2007,
p. 92.
79
Ibid., p. 92.
80
Ibid., p. 93.
35
44
leva-o à mesma constatação, a eticidade. Contudo, o ético para as duas formas de beleza é
distinto, no sentido de que uma é imediata e a outra mediata. O que isso significa? O que
justifica para Kant a vantagem do belo natural perante o belo da arte é que, na natureza, não
se encontra “fins em si”, mas ela sinaliza que o homem é o fim último, o objetivo final da
criação.
À medida que percebe a coincidência não intencional da natureza com o
nosso prazer, independente de qualquer interesse, junto com uma
maravilhosa conveniência (Zweckmässigkeit) da natureza para conosco, esse
interesse aponta-nos como o fim último da criação, a nossa ‘determinação
moral’. 81 (grifo no original)
Um outro ponto que podemos refletir é que Kant transfere toda a sua estética “nas
costas” do sujeito. O fato de ética estar em ambas belezas, vinculadas ao homem, mostra que
o homem – o sujeito – é a condição de possibilidade para a estética e, também, os fins das
belezas é o homem – subjetivação. O que nos faz ver o belo centrado unicamente no sujeito!
Kant mostra que a natureza conquista uma linguagem que conduz a nós mesmos.
Diferentemente da arte, que está aí para nos interpelar, não conseguindo o encontro do
homem consigo mesmo, numa realidade intencional, mas a partir de sua existência
determinada, moralmente. Contrariamente, os objetos naturais não estão aí para nos
interpelar; conseguem “tornar consciente nossa determinação moral”. 82 Já o belo, na arte, é
mais expressivo e determinado.
Gadamer reconhece que esta elucidação kantiana está correta, mas coloca o
fenômeno da arte sob um padrão inadequado a ela. Fazendo um raciocínio inverso, “a
vantagem do belo [natural] sobre o belo artístico é apenas o reverso da carência do belo
natural quanto a uma certa força de expressão.”83 Isso significa que, quando falamos de belo,
na arte, o que nos cativa é a força de sua expressividade; é, de certa forma, um conteúdo
diferente do que sabemos que vem a nós e nos interpela. Não se oferece livre e
indeterminadamente, mas seus significados bem determinados são os que chegam a nós.84
“Não medimos o sentido de suas pretensões, segundo um padrão já conhecido; antes, esse
padrão, o ‘conceito’, será ‘ampliado esteticamente’ de uma forma ilimitada.” 85
81
GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I: Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 2007,
p. 93.
82
Ibid., p. 93-4.
83
Ibid., p. 94.
84
Ibid., p. 94.
85
Ibid., p. 94.
36
45
Ademais, para Kant, a arte como “bela representação de uma coisa” é mais do que
isso, isto é, é a representação de idéias estéticas – é algo que ultrapassa todo o conceito,
porque “se o conceito de uma coisa fosse apresentado visando unicamente seu aspecto de
beleza, isso não passaria de uma questão de representação ‘acadêmica’ e preencheria apenas a
condição imprescindível de toda beleza.”86 Apesar de um ultrapassamento no que se refere à
representação das idéias estéticas87, ou seja, o conceito kantiano de arte, esta teoria do
interesse pelo belo na natureza e na arte nos remetem ao conceito de gênio, o qual terá sua
função muito coerente, dentro das linhas-mestras do pensamento kantiano, para a
fundamentação da arte.
2.1.2 A relação entre gênio e gosto
Para a fundamentação da arte, então, Kant aponta para o conceito de gênio.
Conceito este que está entre ser essa força da natureza e, ao mesmo tempo, essa capacidade
para a representação das idéias estéticas.
Kant vê, entretanto, no conceito de gênio algo decisivo na formulação do juízo
estético, ou seja,
[…] o jogo leve das formas do ânimo, a ampliação do sentimento vital que
nasce da concordância entre forma de imaginação e entendimento e que
convida ao repouso ante o belo. O gênio é um modo de manifestação desse
espírito vivificador. Pois face à rígida regularidade da maestria escolar, o
gênio mostra o livre impulso da invenção e, com isso, uma originalidade
criadora de modelos.88
De fato, o que o gênio produz são as idéias estéticas, oriundas da sua capacidade
inventiva. O gênio entra em jogo, quando se chega à criação de alguma coisa, ou seja, tem-se
86
GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I: Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 2007,
p. 95.
87
“Não se pode negar que a teoria das idéias estéticas, cuja representação permitiria ao artista ampliar
infinitamente o conceito dado e reavivar o livre jogo das forças de ânimo, carrega um traço incômodo para o
leitor hordieno. Parece que essas idéias poderiam ser adicionadas ao conceito que já as guia, como os atributos
de um divindade à sua figura. A primazia tradicional do conceito racional sobre a representação estética inefável
é tão forte que até mesmo em Kant surge a falsa aparência de que o conceito precederia a idéia estética, sendo
que não é o entendimento mas a imaginação que detém o controle no jogo das capacidades. O teórico da arte
encontrará, no mais testemunhos suficientes das dificuldades que Kant encontrou para manter sua idéia básica da
impossibilidade de se conceber o belo, que assegura ao mesmo tempo sua vinculabilidade, sem afirmar
involuntariamente a primazia do conceito. As linhas-mestras de seu raciocínio encontram-se, porém, livres de
tais lacunas [...]” (GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I: Traços fundamentais de uma hermenêutica
filosófica. 2007, p. 95)
88
GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I: Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 2007,
p. 96.
37
46
uma invenção (inventio), tributada a uma inspiração e não a um trabalho metodológico. Assim
o conceito de gênio é caracterizado, e este caracteriza o artístico. “El arte bello es el arte del
genio. Admirar algo como una obra de arte significa ver en nella el producto de un hacer
creativo que no es la aplicación académicamente correcta de las regras.”89 O gênio comunica
o jogo livre das forças do conhecimento. Nesse sentido, a comunicabilidade de um estado de
ânimo, do prazer, vai ao encontro do prazer estético do gosto, que é uma capacidade de
julgamento, o gosto reflexivo.90
Diante disso, o que é decisivo, aqui, é que Gadamer vê no conceito de gênio uma
íntima relação com o gosto: “[...] no fundo, o gosto encontra-se na mesma base que o gênio. A
arte do gênio reside em tornar comunicável o jogo livre das forças do conhecimento”91, que se
encontra tanto no belo natural quanto no belo artístico. Diferentemente de Kant, que conserva
a primazia ao gosto, por este determinar o ponto de vista dominante de beleza no gênio, onde
suas obras de belas artes são expressão sua. Quando se fala, pois, de beleza, remete-se ao
gosto.
No pensamento kantiano, o gênio está restrito somente à beleza artística, às belas
artes, o que Gadamer diz ser correto, a partir do ponto de vista transcendental; no entanto o
significado do conceito de gosto é universal, pois se encontra tanto no belo natural quanto no
artístico.
“Mas, no âmbito da crítica do juízo estético, nada se fala a respeito de que o ponto
de vista do gênio acabe deslocando o do gosto.”92 Sendo o gênio um favorito da natureza, nas
palavras de Kant, as belas artes devem ser vistas como natureza, e esta lhe impõe suas regras.
O que se tem é a primazia da natureza. Há uma equiparação entre os produtos da beleza
artística com a beleza natural. Assim sendo, Kant prepara o terreno para sua teleologia – o
juízo teleológico – o qual está ligado à natureza. Portanto, “as belas artes são artes do gênio”,
o que implica que “o belo na natureza ou na arte possui um e mesmo princípio apriorístico,
que reside totalmente na subjetividade.”93 (grifo nosso) A Crítica da faculdade do juízo, com
o juízo estético ou de gosto, não tem a pretensão de ser uma filosofia da arte, mas, sim,
determinar o princípio a priori do gosto. Contudo, os sucessores de Kant fugiram de sua
89
“A arte bela é a arte do gênio. Admirar algo como uma obra de arte significa ver nela o produto de um fazer
criativo que não e a aplicação academicamente correta das regras.” (tradução livre do autor) (GADAMER, HansGeorg. Estética y hermenéutica. 2006, p. 66).
90
GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I: Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 2007,
p. 96.
91
Ibid., p. 96.
92
Ibid., p. 98.
93
Ibid., p. 98.
38
47
intenção transcendental e deslocaram os conceitos de gosto e gênio, dando a preeminência
para o gênio. Vejamos.
2.2 A ESTÉTICA DO GÊNIO E O CONCEITO DE VIVÊNCIA
O que fundamentou o juízo estético a priori da subjetividade, em Kant, ganhou
uma significação nova, nos seus sucessores. De fato, o que Kant “legitimou e queria legitimar
através de sua crítica do juízo estético era a universalidade subjetiva do gosto estético, na qual
já não há conhecimento do objeto e, no âmbito das ‘belas artes’, a superioridade do gênio
sobre toda estética regulativa.”94 A razão pela qual os sucessores kantianos deslocaram os
conceitos de gosto e o conceito de gênio está dada numa maior abrangência conceitual do
gênio. Tendo como ponto de vista a arte, ligar o conceito de gênio à natureza, torna-o mais
abarcante, com um prejuízo da valorização do conceito de gosto. “Seu ponto de vista – do
gosto – torna-se, conseqüentemente, secundário diante da obra de arte.”95 As belas artes,
enquanto artes do gênio, impõem-se como princípio transcendental, na estética pós-kantiana
de Schiller (1864-1937), por exemplo, em todo o ímpeto de seu temperamento moralpedagógico que aplicou na idéia de “educação estética”, o que significou sua assimilação da
Crítica da faculdade do juízo.
No entanto, as possibilidades dessa mudança de valor não são ausentes em Kant,
pois ele deixa brechas que possibilitaram a esta mudança:
Kant disse certa vez que com relação à possibilidade da beleza artística
‘deve-se ter cuidado também com o julgamento desse tipo de objeto’, e
conseqüentemente com o gênio que já ali, e noutro lugar diz com muita
naturalidade que sem o gênio não são possíveis nem as belas artes e nem um
gosto correto, um gosto próprio que as julgue. 96 (grifo nosso)
Também, na idéia de consumação do gosto, que se refere ao caráter normativo do
gosto, há inclusa a possibilidade de sua formação e de seu aperfeiçoamento e, nesse sentido, o
que se viu, posteriormente, foi uma forma determinada e imutável do gosto, não sendo
aplicável ao belo natural.97 Portanto, de certa forma, Kant assinala a superação do ponto de
94
GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I: Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 2007,
p. 82.
95
SILVA JÚNIOR, Almir Ferreira da. Estética e hermenêutica: a arte como declaração de verdade em
Gadamer. 2005, p. 56.
96
GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I: Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 2007,
p. 99-100.
97
Ibid., p. 100.
39
48
vista do gosto. Entretanto, Gadamer pontua que, diante dessa determinação e imutabilidade,
as pretensões do bom gosto exumaria o relativismo do gosto, não abranger-se-iam todas as
obras produzidas com qualidade, ou seja, que tenham sido realizadas com gênio. Entretanto, o
gosto consumado, não sendo aplicável ao belo natural, por não ter critérios de maior ou menor
beleza frente à natureza, implica, igualmente, não se poder dizer qual obra é mais ou menos
bela. Mas a obra de arte é fruto do gênio, o qual está ligado absolutamente à natureza. Daí que
o gosto se torna problemático tanto para o belo natural quanto para o belo artístico. O gosto
consumado, pois, vai contra sua própria natureza de gosto. “Se há algo que é um testemunho
de todas as coisas humanas e da relatividade de todos os valores humanos, esse algo é o
gosto.”98
Mas sendo o conceito de gosto insatisfatório na fundamentação pós-kantiana, para
o belo artístico, o que vemos é que o conceito de gênio se desenvolve, substitutivamente, ou
seja, “parece possível subordinar o conceito de gosto à fundamentação transcendental da arte
e entender por gosto o sentido seguro para o que é genial da arte.”99 As belas artes do gênio
tornam-se o princípio transcendental de toda a estética, ou seja, só é possível estética como
filosofia da arte. O ponto de vista da arte, com isso, transformou-se naquilo que abrange toda
a produção “inconscientemente genial”, até mesmo a natureza, que passa ser compreendida
como “produto do espírito”.
Destarte, o conceito de gosto e de belo na natureza são desvalorizados e a
moralidade do belo natural ficou restringida, o que se tem somente é o encontro do homem
consigo nas artes. Conseqüentemente, “não há mais nenhum momento independente no todo
sistemático da estética.”100 E, por conseguinte, a teoria kantiana da “elevação do sentimento
vital” no prazer estético, promoveu o desenvolvimento do conceito de gênio para um conceito
de vida abrangente, ou seja, o conceito de vivência como genuína realidade da consciência.
Desta forma, vejamos a reflexão de Gadamer acerca deste conceito de vivência, a fim de que
possamos compreender o alcance deste problemático desenvolvimento.
98
GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I: Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 2007,
p. 101.
99
Ibid., p. 102.
100
Ibid., p. 103.
40
49
2.2.1 O conceito de vivência
Gadamer, depois de uma delongada análise histórica da palavra vivência em
“Sobre a história da palavra vivência”, mostra que o conceito de vivência tanto para Dilthey,
quanto para Husserl, é um conceito que assume uma função epistemológica. 101 Em Dilthey, a
vida é produtividade, cujas objetivações se revelam em imagens de sentido a serem abarcadas,
compreendidas, a partir da própria vivacidade espiritual. No mesmo sentido, em Hurssel, o
conceito de vivência é entendido na sua relação intencional. Ora, “a unidade de sentido
chamada ‘vivência’ é também aqui uma unidade teleológica. Só há evidências na medida em
que se vivencia ou se tem em mente alguma coisa nelas.”102 No entanto, assinalemos as
principais atribuições que Gadamer acentuou, neste conceito.
De início, o conteúdo da vida consciente, que nós adquirimos numa vivência,
torna-se algo uno e não fragmentário. “No conceito de vivência, o que vale como uma
vivência não é mais algo que flui e se esvai na torrente da vida da consciência, mas é visto
como unidade e com isso ganha uma nova maneira de ser uno.”103 De fato, conquistamos
mentalmente um conteúdo semântico de uma experiência na recordação, cujo conteúdo tem
caráter de algo permanente, o que justifica sua intencionalidade e teleologia. Contudo,
Gadamer acentua que o vivenciado é alguém que vivencia a si mesmo. Tal fato ajuda-o a
constituir o significado da vivência justamente na unicidade e na exclusividade de sentido que
se vai adquirindo com as vivências. “O que denominamos enfaticamente de vivência significa
pois (sic!) algo inesquecível e insubstituível, basicamente inesgotável para a determinação
compreensiva de seu significado.”104
Quanto à referência interna para com a vida, Gadamer, mostra que “a unidade da
vivência determinada pelo seu conteúdo intencional encontra-se, antes, numa relação direta
101
“Dilthey desenvolveu o conceito de “Erbenis” como instrumento fundamental da compreensão histórica e,
em geral, da compreensão inter-humana. Ele a caracterizou do seguinte modo: ‘A ‘Erbenis’ é antes de mais nada
a unidade estrutural entre as formas de atitude e conteúdos. Minha atitude de observação junto com sua relação
com o objeto é uma ‘Erbenis’, assim como meu sentimento de alguma coisa ou meu querer alguma coisa. A
‘Erbenis é sempre consciente de si mesma’’ (Grundlegung der Geisteswissenschoften). Da mesma forma,
Husserl considerou a “Erbenis” como um fato de consciência; logo, como um entre os demais conteúdos do
cogito. As “Erbenisses” de consciência são consideradas em toda a plenitude com que se apresentam em sua
conexão concreta – a corrente da consciência – e na qual se unificam tendo em vista a sua própria existência.”
(grifo no original) (SILVA JÚNIOR, Almir Ferreira da. Estética e hermenêutica: a arte como declaração de
verdade em Gadamer. 2005, p. 42)
102
GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I: Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 2007,
p. 112.
103
Ibid., p. 112.
104
Ibid., p. 113.
41
50
com o todo, com a totalidade da vida.”105 Para melhor demonstrar isso, partamos da seguinte
ilustração. Gadamer fala que a vivência tem algo de aventura, sendo diferente do episódio. Os
episódios são “casos singulares enfileirados”, ou seja, não possuem nexo e, por isso, nem
significado duradouro. Ao contrário, a aventura apesar de interromper e ter um caráter de
exceção da vida costumeira cotidiana, do curso costumeiro das coisas, relaciona-se “positiva e
significativamente” com nexo que interrompe. Há um ligame entre a aventura e o costumeiro,
um enriquecimento e um amadurecimento que são trazidos para o segundo. Ainda, “a
aventura permite que se sinta a vida no todo, na extensão e na sua força.”106 Como podemos
ver, o conceito de vivência não traz um momento fechado em si, mas uma ligação com toda a
vida. Cada vivência traz consigo toda a vida, ao mesmo tempo em que está fora da mesma
continuidade da vida. O enriquecimento que uma vivência traz para o todo é algo semelhante
à aventura; do mesmo modo como a continuidade da vida está referida numa vivência. Em
suma, a vivência traz consigo uma unicidade e permanência de significado, na qual está
inferido o todo da vida, que não é válido somente na fugacidade do presente da vida
consciente.
Nesse sentido, Gadamer identifica uma relação de afinidade entre a estrutura da
vivência e o modo de ser daquilo que desvela o estético. A experiência estética representa a
forma de ser da própria vivência. Vejamos:
Parece, inclusive, que a determinação da obra de arte é tornar-se uma
vivência estética, ou seja, arrancar de um golpe aquele que a vive dos nexos
de sua vida por força da obra de arte, sem deixar de referi-lo ao todo de sua
existência. Na vivência da arte se faz presente uma riqueza de significados
que não pertence somente a este conteúdo específico ou a esse objeto, mas
que representa, antes, o todo do sentido da vida. 107
A arte torna-se um exemplo desta vivência estética, a qual vislumbra a própria
vivência como um todo. Daí que podemos inferir que o que resulta é a vivência estética, a
qual caracteriza a verdadeira a arte.
Contudo, Gadamer mostrará os limites desta arte vivencial, porque sua cunhagem
em relação ao desenvolvimento do conceito de gênio foi feito em outro sentido. O grande
propósito da experiência da arte não deve ser compreendida como vivência humana.
105
GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I: Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 2007,
p. 115.
106
Ibid., p. 116.
107
Ibid., p. 116-7.
42
51
2.3 ARTE VIVENCIAL E ALEGORIA
Gadamer ao tratar da arte vivencial, assinala que ela mesma possui uma
ambigüidade de significado. Arte vivencial tanto pode significar, em princípio, que a arte se
origina da vivência e dela é expressão, como também para aquela arte que se destina à
vivência estética, num sentido derivado.108 Entretanto, este conceito de arte vivencial fora
formulado “a partir da experiência do limite imposto a sua pretensão”109:
As dimensões do conceito de arte vivencial somente se tornam conscientes
quando deixa de ser auto-evidente que uma obra de arte represente uma
transposição de vivências e quando já não é auto-evidente que essa
transposição se deve à vivência de uma inspiração genial que, com a
segurança de um sonâmbulo, cria a obra de arte que, por sua vez, converterse-á numa vivência para aquele que a recebe. 110
O problema de uma vivência estética está na limitação tanto àqueles que
transpõem uma obra quanto para o que cria, o gênio, pois o gênio é o único a criar uma obra
de arte e somente, assim, será uma ulterior vivência para quem a vivencia. Mas será que
somente o gênio e a vivência estética são o padrão para explicar o fenômeno da obra de arte?
Esta mesma obra só é experienciada por uma vivência estética? Assim, não ficaria reduzido o
fenômeno da arte?
Quando se olha para os limites da arte vivencial e se lança o olhar a além, para
outros padrões, como desde a Antiguidade até o barroco, o que se vê são outros padrões de
valores totalmente diferentes da vivencialidade, como constata o próprio Gadamer.111 Assim,
os conceitos de gênio e vivencialidade não são adequados, por serem pregados como único
padrão. Neste caso, Gadamer exemplifica ao lembrar de outros padrões: “Não é a
autenticidade da vivência ou a intensidade de sua expressão mas (sic!) a disposição artística
de formas e maneiras fixas de dizer que faz com que a obra de arte seja uma obra de arte.”112
E isso vale para todos os gêneros da arte, mas principalmente àquelas em que na linguagem
tem sua legitimação.
108
GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I: Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 2007,
p. 117.
109
Ibid., p. 117.
110
Ibid., p. 117.
111
“De certo que tudo isso poderá transformar-se numa “vivência” para nós. Essa autocompreensão estética está
sempre disponível. Mas não podemos nos deixar enganar sobre o fato de que a própria obra de arte que se torna
para nós uma vivência não foi destinada para esse tipo de concepção.” (GADAMER, Hans-Georg. Verdade e
método I: Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 2007, p. 118)
112
GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I: Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 2007,
p. 118.
43
52
Destarte, Gadamer aponta que a poesia e a retórica no século XVIII encontravamse lado a lado, mas posteriormente houve uma desvalorização da retórica, devido à égide da
aplicação da produção inconsciente do gênio. Neste sentido, os exemplos implicados nesta
situação foram os conceitos de símbolo e alegoria, que foram antagonizados.
A oposição artística entre símbolo 113 e alegoria é resultante do desenvolvimento
filosófico dos últimos dois séculos. Mas como se chegou a tal antagonismo? O que a poesia e
a retórica têm a ver com este problema? Diante disso, explicitemos a problemática.
2.3.1 Símbolo e alegoria
Por primeiro, os conceitos de símbolo e alegoria possuem algo em comum, em
ambos algo está para outra coisa. Na alegoria temos um conceito voltado para a esfera
racional, do logos, já o conceito de símbolo se volta para uma esfera diversa.
A alegoria pertence originariamente à esfera do discurso, do logos, sendo
pois uma figura retórica ou hermenêutica. Em lugar daquilo que se quer
realmente dizer coloca-se algo diferente, algo mais à mão, mas de maneira
que, apesar disso, esse deixa e faz entender aquele outro. O símbolo, ao
contrário, não se restringe à esfera do logos, pois não é o seu significado que
o liga a outro significado, mas, ao contrário, é seu ser próprio e manifesto
que tem ‘significado’. Na medida em que se exibe, reconhecemos nele algo
diferente.114 (grifo no original e meu)
No domínio do símbolo, seu significado está em sua presença e sua função de
representação está fundada no fato de apresentar-se. Diferentemente a alegoria, “lo que habla
es la referencia a um significado que tiene que conocerse previamente.”115 Mesmo que estes
conceitos sejam distintos, eles possuem sua proximidade tanto na função de representação de
uma coisa por meio de outra quanto no âmbito da aplicação religiosa.
113
¿Que quieres dicer símbolo? Es, en principio, una palabra técnica de la lengua griega y significa ‘tablilla de
recuerdo’. El anfitrión le regalaba a su huésped la llamada tessera hospitalis; rompía uan tablilla en dos,
conservando una mitad para sí y regalándole la otra al huésped, puedan reconocerse mutuamente juntando los
dos pedazos. Una especie de pasporte en la época antigua; tal es el sentido técnico originario de símbolo. Algo
con lo cual se reconce a un antiguo conocido.” (grifo no original) (GADAMER, Hans- Georg. La actualidad de
lo bello. 1991 , p. 40)
114
GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I: Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 2007,
p. 119-20.
115
“O que fala é a referência a um significado que tem que se conhecer previamente.” (tradução livre do autor)
(GADAMER, Hans-Georg. La actualidad de lo bello. 1991, p. 40)
44
53
De fato, a alegoria surge da “necessidade teológica de eliminar o que é chocante
na tradição religiosa [...], e reconhecer por trás disso verdades válidas.”116 Essa necessidade é
a que valida a alegoria ao uso retórico, justamente porque se vê a necessidade de recorrer à
rodeios e a convenientes enunciados indiretos. Ainda, o símbolo se aproxima da alegoria em
virtude da reinterpretação cristã do neoplatonismo. Assim como o símbolo possui uma função
de elevação da alma na contemplação das coisas divinas e o discurso alegórico nos conduz a
um significado “mais elevado”. “[...] Em função da inadequação do ser supra-sensível de
Deus para nosso espírito acostumado ao sensível”117, Pseudo-Dionísio fundamenta a
necessidade de se proceder simbolicamente. O pano de fundo dos dois conceitos se sintetiza
no evento de que o não é possível conhecer o divino a não ser através do sensível.
Positivamente, é só por meio do sensível que o divino pode ser conhecido. Contudo, a
dimensão metafísica do símbolo o faz distanciar-se totalmente do uso retórico da alegoria,
porque a partir do sensível se pode ser conduzido ao divino devido ao sensível ser “emanação
e reflexo do verdadeiro”118.
Nesse sentido, o símbolo se aproxima da estética. Gadamer diz que o simbólico,
lembrando-se de Solger (1780-1832), designa uma “[...] ‘existência em que, de alguma forma,
a idéia é reconhecida’, trata-se portanto da unidade íntima do ideal e do fenômeno,
característica da obra de arte. O alegórico, ao contrário, só deixa surgir essa unidade
significativa indicando um outro, fora de si.” 119 Do mesmo modo, o conceito de alegoria foi
ampliado significativamente, ou seja, passou a designar também correspondentes
representações imagéticas de conceitos abstratos da arte. Aqui não se pressupõe um
parentesco metafísico original, mas “apenas um atribuir instituído por convenção e fixação
dogmática, o que permite aplicar representações imagéticas a coisas destituídas de
imagens.”120 Assim, no final do século XVIII, o que encontramos é uma oposição entre
símbolo e simbólico. De um lado, a alegoria e, por outro, o símbolo, que detém, então, um
significado interno e essencial, enquanto a alegoria tem significações exteriores e artificiais.
Assim, “o símbolo é a coincidência do sensível e do não-sensível; a alegoria é uma referência
significativa do sensível ao não-sensível.”121 (grifo nosso)
116
GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I: Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 2007,
p. 120.
117
Ibid., p. 120.
118
Ibid., p. 121.
119
Ibid., p. 121.
120
Ibid., p. 122.
121
Ibid., p. 122.
45
54
Estes significados opostos, de símbolo e de alegoria, sendo influenciados pelo
conceito de gênio e da subjetivação da “expressão”, são convertidos numa oposição de
valores. Como ocorre esta influência? “Como ocorre na oposição entre arte e não arte, o
símbolo, enquanto é inesgotável devido à sua determinação, aparece em oposição excludente
frente ao que se encontra uma referência de significado mais precisa e que se esgota nela,
como é o caso da alegoria.”122
Em Kant, na Crítica da faculdade do juízo, parágrafo 59, há a contrastação da
representação simbólica com a esquemática. A representação simbólica é um conceito
indireto, e não imediato – como o é o esquematismo transcendental –, por meio do qual a
expressão contém apenas um símbolo para a reflexão. E mais, descobre que a linguagem
trabalha de maneira simbólica, e, por fim, aplica o conceito de analogia principalmente para
descrever a relação do belo com o bem ético, pois o “o belo é o símbolo do eticamente
bom”. 123 O que Schiller neste sentido o sucedeu.
Mas cabe, ainda, aqui fazer a pergunta gadameriana: “como é que o conceito de
símbolo assim entendido acabou se convertendo no conceito oposto ao de alegoria” 124?
É na correspondência entre Schiller e Goethe (1749-1832) que se começa a
delinear uma nova cunhagem no conceito de símbolo. Enquanto Goethe dá importância à
experiência, a uma experiência simbólica125 que é uma experiência da realidade e não tanto
uma experiência estética, que o ajuda a escapar do empirismo – e até aí Schiller concorda –,
Schiller faz objeções idealistas contra esta concepção de simbolismo da realidade e assim
desloca o significado do símbolo em direção ao estético. Para Goethe, a oposição postulada
pela teoria da arte, no que concerne entre símbolo e alegoria, “[...] não passa de uma
orientação geral rumo ao significativo que ele [o símbolo] procura em todos os
fenômenos.”126 No entanto, é decisivo, em Goethe, que o conceito de símbolo pressupõe “[...]
que é a própria idéia que dá existência nisso.”127 O que vemos aí é uma redução do alcance
122
GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I: Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 2007,
p. 122.
123
Ibid., p. 123.
124
Ibid., p. 123.
125
“Na conhecida carta de 17.08.97, Goethe descreve o estado de ânimo a que o levaram as impressões que
tivera de Frankfurt, e ele diz que os objetos que evocam um tal efeito ‘são na verdade simbólicos, isto é, como eu
quase não preciso dizê-lo, são casos eminente, que numa variedade característica se apresentam como
representantes de muitos outros e englobam em si uma certa totalidade...” (GADAMER, Hans-Georg. Verdade e
método I: Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 2007, p. 124)
126
GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I: Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 2007,
p. 125.
127
Ibid., p. 126.
46
55
destes dois conceitos. A alegoria acaba se submetendo à orientação do símbolo, e este acaba
relegando a si universalidade perante à arte.
Correspondentemente, na “religião artística” grega, esse tipo de linguagem tinha
certa familiaridade com a estética filosófica. É o que Schelling desenvolve em sua filosofia da
arte a partir da mitologia. Assim, ao afirmar que a mitologia deveria ser entendida
simbolicamente, e não alegoricamente, Schelling (1775-1854) prepara o conceito de símbolo
para que este ocupe a posição central no âmbito da filosofia da arte. Por conseguinte, o
conceito de símbolo só pôde ser elevado a um conceito básico da estética, e com sua devida
amplidão universal, porque se encontra implícita a unidade interna de símbolo e
simbolizado128, ou seja, para a pretensão de universalidade se teve que vencer certas
resistências, a saber: imagem e sentido, forma e essência, e expressão e conteúdo. Nesse
sentido, a solução dada por Gadamer que pode ser resumida nesta assertiva: “a forma religiosa
do símbolo corresponde exatamente à determinação original do symbolon, a saber, ser a
divisão do uno e a reunificação da dualidade.”129
Vemos, então, que o símbolo assume uma função impar para a estética.
Entrementes, a depreciação da alegoria se dá a essa contraposta valência de ambos os
conceitos. Autores como Solger, Friedrich Schlegel (1772-1829), Hegel e Creuzer (17711858), citados por Gadamer, são expressão da importância que a alegoria desempenhou em
seus usos de linguagem. Todavia, a formação humanística do século XIX não manteve este
uso de linguagem. De fato, a alegoria repousou sobre fortes tradições e seu significado esteve
sempre determinado e declarado, o que se opõe à compreensão intelectiva por meio do
conceito.130 Com isso, a alegoria repousa na tradição reconciliada do cristianismo com a
Antiguidade até a arte barroca. E a ruptura com esta tradição, gerou um rompimento com a
alegoria. “Isso porque no momento em que a essência da arte libertou-se de toda vinculação
dogmática, podendo ser definida através da produção inconsciente do gênio, a alegoria
tornou-se esteticamente problemática.”131 Por isso, a teoria da arte de Goethe teve influência
em rotular o simbólico como conceito artístico positivo e o alegórico como conceito artístico
negativo. Na obra de Goethe aquilo que não se encaixava no padrão da vivencialidade, que
128
GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I: Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 2007,
p. 126.
129
Ibid., p. 126.
130
Ibid., p. 128.
131
Ibid., p. 128.
47
56
fora estabelecido por ele mesmo, acabava sendo deixado de lado como alegoricamente
“sobrecarregado”.132
Isso acaba, finalmente, tendo influência também no desenvolvimento do campo da
estética filosófica, que mesmo adotando o conceito de símbolo no sentido universal
goethiano, acaba pensando inteiramente a partir do ponto de vista da oposição entre realidade
e arte, isto é, com base no “ponto de vista da arte” e da religião estética cultural do século
XIX.133 Assim, Gadamer chega a uma conclusão muito clara e objetiva: a contraposição entre
o conceito de símbolo e de alegoria perde seu caráter vinculativo quando se reconhece sua
ligação com a estética do gênio e a estética da vivência, pois o fundamento teórico desta foi a
“liberdade da atividade simbolizadora do ânimo”. De fato, será que essa atividade
simbolizadora não está sendo limitada ainda hoje pela sobrevivência de uma tradição míticoalegórica – pergunta Gadamer?134 O que está implícito nesta interrogação e, se se reconhece
isso, são a relativização do antagonismo entre símbolo e alegoria, a problematicidade da
consciência estética e o conseqüente conceito de arte.
2.4 A VERDADE DA ARTE
Diante da reflexão feita até então, podemos destacar que a validade de
conhecimento e moralidade que gozavam os conceitos humanísticos da Aufklärung foi
perdida em razão da subjetivação e estetização dos conceitos de formação, sensus communis,
gosto e juízo. Nesse sentido, segundo Gadamer, Kant foi o principal responsável por tal ação,
foi o divisor de águas. Também, mostramos o longo alcance da estética kantiana até a estética
do gênio e da vivência estética, pois era necessário compreendermos a conseqüente
importância que teve para a estética, principalmente no que se refere à arte. Assim, veremos
que a idéia de formação estética tem seu alicerce em Kant, com o conceito de gênio, e a
seqüente e limitada vivência estética, onde o principal idealizador foi Schiller com o seu
imperativo Comporta-te esteticamente! Contudo, os conceitos de gênio e arte vivencial – a
vivência estética – possuem seus limites. Os conceitos de símbolo e alegoria, como vimos,
foram contrapostos justamente pela estética do gênio e a arte vivencial, ou seja, a vivência
132
GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I: Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 2007,
p. 128-9.
133
Ibid., p. 129.
134
Ibid., p. 129-30.
48
57
estética. Mas pelo que já pudemos constatar, tal fundamentação em que contrapõe estes
conceitos é um equívoco. Portanto, vejamos em que consiste a formação estética, quais seus
fundamentos, seu conteúdo e seus problemas.
2.4.1 O problema da formação estética
Aquilo que entendemos por estético em Kant se difere do sentido que a
consciência estética traz consigo. Em Kant o estético está vinculado à “teoria do espaço e do
tempo de uma ‘estética transcendental’, entendendo a teoria do belo e do sublime na natureza
e na arte como uma crítica do juízo.”135 Contudo, o ponto de virada do estético está em
Schiller, o qual ao formular o imperativo Comporta-te esteticamente! transforma o
pensamento transcendental do gosto em uma exigência moral, converte-o de uma
pressuposição metodológica em uma pressuposição de conteúdo. Este buscou apoio em Kant,
no que concerne a uma transição do prazer dos sentidos ao sentimento ético na significação do
gosto. Mas, diante de tal imperativo, Schiller também se apóia em Fichte (1762-1714) com
sua teoria dos instintos, “[...] segundo a qual o instinto lúdico deve operar a harmonia entre o
instinto da forma e o instinto da matéria” 136, sendo esta a base para sua compreensão
antropológica do livre jogo da capacidade de conhecimento. Com isso, a meta da educação
estética é o cultivo desse instinto lúdico.
Isso teve conseqüências de longo alcance, pois a arte será a arte da bela aparência
e esta se oporá à realidade prática – e que passará a ser entendida a partir desta oposição.
Sendo assim, Gadamer contrapontua:
[...] surge agora a oposição entre aparência e realidade. Tradicionalmente, a
‘arte’, que abrange também toda transformação consciente da natureza para
o uso humano, se determina pelo exercício de uma atividade complementar e
enriquecedora no âmbito dos espaços dados e liberados pela natureza.137
Por conseguinte, rompe-se o círculo contenedor formado pela natureza. A arte se
torna “[...] um ponto de vista próprio e alicerça uma pretensão de predomínio próprio e
autônomo.”138 Passa-se a valer as leis da beleza e as fronteiras da realidades são suplantadas.
135
GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I: Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 2007,
p. 131.
136
Ibid., p. 131.
137
Ibid., p. 132.
138
Ibid., p. 132.
49
58
O que se tem é o “reino ideal”, que deve ser defendido contra as diversas formas de limitação,
mesmo se isso implicar a tutela moral do Estado e da sociedade.
Contudo, uma educação estética pela arte acaba se tornando uma educação para a
arte. Em vez de uma verdadeira liberdade ética e política, na qual a arte tem seu papel
preparativo, aparece a formação de um “estado estético”, ou seja, uma sociedade cultural que
se interessa pela arte. E, com isso, o dualismo kantiano entre o mundo dos sentidos e o mundo
ético metamorfoseia em uma nova oposição: “a reconciliação entre ideal e a vida através da
arte não passa de uma reconciliação particular. O belo e a arte emprestam à realidade somente
um brilho efêmero e transfigurado. A liberdade do ânimo, à qual ambos elevam, só é
liberdade num estado estético e não na realidade.” 139
O produto de uma formação estética é a chamada consciência estética. Esta surge
com o “ponto de vista da arte”, a qual esta fundamentada primeiramente por Schiller. Só se
comporta esteticamente quando se tem a consciência formada do que é comportar-se
esteticamente. Não parece que, neste contexto, busca-se mais consciência, mas o que se
produz é uma superficialidade e uma consciência desenraizada, irreal e alienada?
A idéia de formação estética de Schiller reside em “[...] não mais vigorar nenhum
padrão de conteúdo e em dissolver o vínculo que a une a obra de arte com o seu mundo.”140
Na qualidade de consciência estética, a filiação da obra de arte com o seu mundo já não tem
valor, pois a consciência estética é o centro que o vivencia e é o critério pelo qual se mede
tudo que possui valência como arte. Portanto, aquilo que se chama obra de arte e o que se
vivencia esteticamente é produto de abstração. Sobre isso Gadamer explica:
Na medida em que se abstrai de tudo em que uma obra se enraíza, como seu
contexto de vida originário, isto é, de toda função religiosa ou profana em
que se encontrava e em que possuía seu significado, então se tornará visível
a ‘pura obra de arte’. Nesse sentido, a abstração da consciência estética
produz algo que é, para si mesmo, positivo. Permite ver e existir por si
mesmo aquilo que é a pura obra de arte. Chamo seu produto de ‘distinção
estética’.141 (grifo nosso)
A abstração que a consciência estética, distinção estética, pratica é uma seleção
em relação à qualidade estética como tal, diferentemente do gosto – como fora tratado acima
no capítulo primeiro –, que é determinado e cheio de conteúdo, o qual, assim, rejeita e
seleciona. Também, a consciência estética se realiza na autoconsciência da vivência estética,
139
GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I: Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 2007,
p. 132.
140
Ibid., p. 135.
141
Ibid., p. 135.
50
59
como afirma Gadamer. “A obra verdadeira é aquilo a que sempre se volta a vivência estética,
e aquilo de que ela abstrai são os momentos não estéticos que lhes são inerentes: objetivo,
função e significado de conteúdo."142 Como vemos, a consciência estética é definida pela
capacidade de distinguir a intenção estética de tudo aquilo que não é estético. Abstrai-se de
todas aquelas condições de acesso a que obra se torna apresentável a nós. Daí que a soberania
conseqüente da consciência estética é poder realizar por toda parte uma distinção e ver tudo
esteticamente, e isso lhe dá o caráter da simultaneidade da consciência estética – o simultâneo
é qualidade estética presente em todas as coisas não estéticas. Assim, a forma de reflexão
estética que se movimenta não é somente a forma do presente, mas também o que chamamos
de consciência histórica, algo que está existindo pela história sem deixar de ser o que é. Isso
significa que a consciência estética se converte em algo histórico.
Outra característica que vale assinalar é que “a ‘consciência estética, que atua
como consciência estética, produz para si mesma uma existência exterior própria.” 143
Gadamer cita que o que comprova esta produtividade são os lugares próprios para uma
apreciação segundo esta consciência, como a biblioteca universal no âmbito da literatura, o
museu ou teatro permanente, a sala de concertos, etc. “É assim que, através da ‘distinção
estética’, a obra perde o seu lugar e o mundo a que pertence por se tornar parte integrante da
consciência estética. Em contrapartida, o artista perde o seu lugar no mundo. Isso constata-se
no descrédito daquilo que chamamos arte por encomenda.” 144
Para exemplificar, tomemos o caso do arquiteto que é dependente de uma
encomenda ou de uma ocasião. Entrementes, nessa situação, o artista se torna uma figura
ambígua, ou seja, o artista, sendo tão “livre como um pássaro ou peixe”, vê-se numa
sociedade culta que espera da arte mais do que lhe corresponde, pois é vista como consciência
estética, sob o critério da arte, onde esta mesma sociedade despojou-se de suas tradições
religiosas.145 Ao artista é cabido ser um redentor do mundo! Deve gerar a redenção de um
mundo que se perdeu. Com isso, há a busca de uma nova saga que seja capaz de unir a todos,
congregar o público e criar uma comunidade. Contudo, esta pretensão já se encontra maculada
por si só. Cada artista “[...] acaba encontrando sua própria comunidade, a particularidade da
formação de uma tal comunidade só testemunha a desagregação que vem ocorrendo. É
142
GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I: Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 2007,
p. 135.
143
Ibid., p. 137.
144
Ibid., p. 138.
145
Ibid., p. 138.
51
60
somente a configuração universal da formação estética que une a todos.”146 Assim, este
processo de formação, formação estética, acaba sendo problemático quando sua pretensão à
universalidade já se encontra desagregado por si mesmo e que, também, o estético fica
reduzido ao sujeito perdendo seu valor cognitivo.
Nesse sentido, aprofundemos a crítica gadameriana a tal consciência estética.
2.4.2 Crítica à abstração da consciência estética
Como vimos, a abstração – distinção estética – que eleva ao “estético puro”, está
claramente incapaz por si mesma de alcançar sua pretensão de universalidade. Nesse caso,
Gadamer busca mostrar as conseqüências da subjetividade como principio da consciência
estética, o qual desloca, assim, o estético a um domínio sempre desprovido de valor cognitivo.
O fato de iniciar esta busca com Richard Hamann (1879-1961), evidencia que este caminha
no mesmo rumo da suspensão da abstração da consciência estética, apesar de reportar-se a
Kant para a construção de sua estética sistemática.147 Com o fracasso de Hamann no que
concerne ao ponto de vista da arte, a qual esta é coincidida com o conceito de virtuosidade,
Gadamer começa a esquadrinhar o problema basilar da estética a partir de Hamann. “O
conceito básico da estética donde parte Hamann é o da ‘significabilidade própria da
percepção’.”148 Segundo Gadamer, a significabilidade própria é significativa por si mesma,
auto-significativa; sendo assim, busca-se cortar algo de vinculativo, que poderia determinar o
seu significado. Então, este conceito pode constituir-se basilar para a estética? “Pode-se,
afinal, utilizar o conceito de ‘significabilidade própria’ para uma percepção em geral? Não
146
GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I: Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 2007,
p. 139.
147
“Na medida em que elabora regularmente o momento estético onde quer que o encontre, ganham legitimação
estética também as formas especiais vinculadas a um fim, como a arte monumental ou a arte do cartaz. Mas,
também aqui, Hamann mantém sua tarefa da distinção estética, pois nela distingue o estético das referências
extra-estéticas nas quais se encontra, como no caso em que podemos dizer que alguém se comporta
esteticamente mesmo fora da experiência da arte. Desse modo, restabeleçamos todo o alcance do problema da
estética e recuperamos o questionamento transcendental que fora abandonado pelo ponto de partida da arte e pela
separação que fazia entre a bela aparência e a rude realidade. [...] A consciência estética possui uma soberania
ilimitada sobre tudo. Mas a tentativa de Hamann fracassa no ponto inverso, isto é, no conceito de arte. Ela afasta
esse conceito tão conseqüentemente do âmbito do estético que acaba fazendo com que o conceito de arte
coincida com o de virtuosidade. Aqui distinção estética é levada ao extremo. Ela abstrai até a arte.”
(GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I: Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 2007, p.
139-40)
148
GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I: Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 2007,
p. 140.
52
61
devemos conceder também ao conceito da ‘vivência’ estética o que creditamos à percepção,
ou seja, que percebe o verdadeiro, que continua referida ao conhecimento?” 149
Para ajudar-nos recorramos a Aristóteles que trata da aisthesis, quer dizer,
estética, mas com o sentido grego do termo, ou seja, tudo aquilo que toca o sentir, o sensível:
[...] toda aisthesis se dirige a um universal, mesmo que cada sentido tenha
seu campo específico e que o que está dado nele de imediato, enquanto tal,
não é universal. Mas a percepção específica de um dado dos sentidos é,
como tal, uma abstração. [...] No entanto, o ver ‘estético’ se caracteriza
evidentemente pelo fato de não referir apressadamente o olhar a um
universal, ao significado conhecido, a um fim planejado ou algo parecido,
detendo-se antes nesse olhar como estético. Mas nem por isso deixamos de
estabelecer esse tipo de referência nesse olhar [...]150
Do que foi proporcionado aos sentidos, nossa percepção não é nunca um simples
reflexo, ou seja, uma percepção pura, “pois continuaria sendo sempre um apreender
enquanto... Todo apreender enquanto... articula o que está ali, abstraindo de... vendo na
perspectiva de... vendo em conjunto com...”151 (grifo no original) Ao contrário, a percepção
estabelece uma referência a algo, mesmo sendo percepção estética. Não resta dúvida, ainda,
de que o que se vê aí, por causa da abstração, pode apartar elementos que estão aí; ou o ver
pode pôr o que não está aí; ou ainda a tendência da invariabilidade atuante no próprio olhar,
faz ver de forma mais igual possível as coisas.
De fato, essa crítica à teoria da percepção pura recebeu uma formulação
fundamental de Heidegger. O olhar que se detém e o perceber não são simplesmente um ver o
puro aspecto, mas continuam sendo, eles próprios, um apreender como... Só quando
reconhecemos o que está representado é que podemos ler. No caso da música absoluta,
embora ela seja uma “[...] uma espécie de matemática sonora, onde não há conteúdos
semânticos objetivos para se perceber, o entender mantém uma referência para com o que é
significativo. É a indeterminação dessa referência que representa a relação específica de
significação de uma música.”152
Como vemos, a percepção abarca sempre o significado. De fato, quando se
procura a unidade da figura estética somente em sua forma e em oposição ao conteúdo seu,
isso não passa de um formalismo ao avesso, conforme Gadamer. Na obra de arte o conteúdo
está sempre vinculado à unidade de forma e significado que deve abarcar. À guisa de
149
GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I: Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 2007,
p. 140.
150
Ibid., p. 141.
151
Ibid., p. 141.
152
Ibid., p. 142-3.
53
62
ilustração, o motivo, expressão usual dos pintores, é sempre imaterial sob o ponto de vista
ontológico, mas isso não quer dizer que seja destituído de conteúdo. “Antes, algo torna-se um
motivo por possuir uma unidade convincente e porque o artista deve impor essa unidade como
unidade de um sentido, assim como aquele que a recebe deve entendê-la como unidade.”153
Assim, que para fazer jus à arte, a estética deve ultrapassar a si mesma e renunciar
à pureza do estético. Mas o conceito de gênio é adequado para essa tarefa?
No século XVIII, temos o culto ao gênio e, no século XIX, a sacralização do
artístico, característica da sociedade burguesa desta época. O que Gadamer evidencia é que o
conceito do gênio é concebido pelo ponto de vista do observador, ou seja, este conceito é
convincente não para quem cria, mas para quem julga. Pelo conceito de gênio está o ponto de
vista de quem contempla. “No es al que crea, sino a la faculdad que juzga a la que este
concepto le resulta convincente. Lo que al que contempla le parece un milagro, queda
reflejado en lo milagroso de una criación realizada por medio de una inspiración genial.” 154 Já
a compreensão que um criador tem de si mesmo é muito mais sóbria. “Él ve también
posibilidades de hacer y de uma competencia, cuestiones de técnica, allí donde el
contemplador que interpreta busca un secreto y un significado profundo.”155 E diante de uma
estética do gênio, como ela se explicaria diante do fabricado artesanalmente, o que possui
assim sua utilidade?
Outro ponto, é que o conceito de gênio é concebido como a idéia de uma
“inconsciência sonâmbula” pela qual ele cria. Ato criativo do gênio é a resposta ao
desaparecimento moderno da criação divina, sendo posto em seu lugar a genialidade criativa.
“Con la desaparición de este horizonte [da criação] una tal fundamentación de la estética tenía
que llevar a una subjetivación radical al continuar desarrollándose la doctrina de la ausencia
de reglas en el genio.”156 Mas o que dizer de um Leonardo da Vinci, no qual o artesanato, a
invenção mecânica e a genialidade artística estavam indiferenciados e unos? E mais, o que
dizer de um produto artesanal ou uma obra mal feita de uma genialidade que fundamenta o
153
GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I: Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 2007,
p. 143.
154
“Não é ao que cria, senão à faculdade que a julga a que este conceito lhe resulta convincente. O que ao que
contempla lhe parece um milagre, fica refletido no milagroso de uma criação realizada por meio de uma
inspiração genial.” (tradução livre do autor) (GADAMER, Hans-Georg. Estética y hermenéutica. 2006, p. 68)
155
“Ele vê também possibilidades de fazer e de uma competência, questões de técnica, ali donde o contemplador
que interpreta busca um secreto e um significado profundo.” (tradução livre do autor) (GADAMER, HansGeorg. Estética y hermenéutica. 2006, p. 68)
156
“Com o desaparecimento deste horizonte [da criação] uma tal fundamentação da estética tinha que levar a
uma subjetivação radical ao continuar desenvolvendo-se a doutrina da ausência de regras no gênio.” (tradução
livre do autor) (GADAMER, Hans-Georg. La verdad de la obra de arte. 2002, p. 05)
54
63
que seja a obra de arte? E o desfrute que tem, por sua vez, na estética do gênio? Cabe lembrar
que para o desfrute de uma obra de arte do gênio, dever-se-ia ter como que um apreciador
congenial, ou seja, as obras que eram feitas pelo gênio deveriam ser apreciadas ou vistas sob a
ótica de um contemplador genial. Isso é visto claramente na arte dos modernos, onde
sacralizaram tudo o que envolvia à obra de arte e aos artistas. Contudo, o que se vê aqui é uma
redução tanto do que cria como do que desfruta diante dos parâmetros do conceito do gênio,
já que ele não justifica o que seja uma obra de arte, o artista e o que desfruta.
“Como deve ser pensada agora, sem o conceito de gênio, a essência do desfrute da
arte e a diferença entre o que é feito artesanalmente e o que é criado artisticamente? Como se
deve pensar também a consumação de uma obra de arte, o seu estar pronta?” 157 Quando se
fala em obras cuja finalidade é alcançada, é porque foram alcançadas as finalidades que
determinavam sua produção. Mas também existem obras cuja produção não remeterá ao uso.
“Nesse caso, será que o ser da obra de arte se apresenta apenas como uma interrupção de um
processo de configuração que, virtualmente aponta para além de si? Será que, em si mesmo,
não poderá, de alguma forma, consumar-se?”158
Conforme Gadamer, Paul Valéry (1871-1945) viu desta forma: “a interrupção de
um processo de configuração não pode conter nada de vinculante. Daí resulta pois que tem de
ser deixado ao receptor o que venha a fazer, de sua parte, daquilo que tem diante de si.” 159 O
que se tem é uma nova produção diante do encontro com a obra. Paul Valéry para escapar da
produção inconsciente do gênio, acabou se deixando levar por ele. Desse modo transferiu ao
leitor e ao intérprete o “poder pleno da criação absoluta”, que ele mesmo não quer exercer.
Nem a genialidade da compreensão nem a genialidade da criação oferecem informação
alguma.
Mas se partirmos do conceito de vivência estética, ao invés do conceito de gênio,
chegamos a outro problema. A vivência estética é absoluta descontinuidade, isto é, “[...]
decomposição da unidade do objeto estético na multiplicidade das vivências. [...] [Como
também conduz] à absoluta pontualidade, que suspende tanto a unidade da obra de arte como
a identidade do artista consigo mesmo e a identidade de quem a compreende ou a desfruta.”160
A obra de arte é um ponto “nodal” no qual se encontra o objeto estético nas inúmeras
157
GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I: Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 2007,
p. 145.
158
Ibid., p. 146.
159
Ibid., p. 146.
160
Ibid., p. 147.
55
64
vivências estéticas e é o único local onde se encontra o objeto estético. Mas a vivência estética
é de tal forma que o objeto estético não chega a ser dado em sua real totalidade, devido à
abstração, e daí, conseguintemente, provoca a perda de identidade descrita acima.
Sendo assim, será que tudo isso que fora pensado não conduz a uma tarefa? Se o
problema da arte vem, desde a estética kantiana, deslocada de sua pretensão de verdade, não
faz-se necessário que a obra de arte diga por si mesma o que quer dizer? O vínculo que a une
à realidade não está, assim, implicado?
Ao citar Kierkegaard (1813-1855), Gadamer mostra que o fenômeno da arte
coloca uma tarefa à existência, a saber: “[...] em face da atualidade arrebatadora de cada
impressão estética, alcançar a continuidade da autocompreensão, que é a única capaz de
sustentar a existência humana (Dasein).”161 Para Gadamer, então, ontologicamente a
existência estética está situada dentro da continuidade hermenêutica da existência humana.
Diante de certos limites da autocompreensão histórica da existência (Dasein) perante o
fenômeno estético, a fenomenologia hermenêutica possui a tarefa de “em face de tal
descontinuidade do ser estético e da experiência estética, preservar a continuidade
hermenêutica que perfaz o nosso ser.”162 Com isso, conseqüente e substancialmente, quer
mostrar a partir de suas reflexões feitas o seguinte:
O panteão da arte não é uma atualidade atemporal que se revela à
consciência estética pura, mas a obra de um espírito histórico que se reúne e
se congrega historicamente, também a experiência estética é uma forma de
autocompreender-se. Mas toda autocompreensão se realiza ao compreender
algo distinto e inclui a unidade e a mesmidade desse outro. Uma vez que
encontramos no mundo a obra de arte e em cada obra de arte individual um
mundo, esta não continua sendo um universo estranho onde, por
encantamento, estamos à mercê do tempo e do momento. Nela, ao contrário,
aprendemos a nos compreender, e isso significa que na continuidade da
nossa existência suspendemos a descontinuidade e a pontualidade da
vivencia. Por isso, com relação ao belo e à arte, importa ganhar um horizonte
que não busque imediatez, mas que corresponda à realidade histórica do
homem. O apelo à imediatez, à genialidade do momento, ao significado da
‘vivência’, não consegue resistir à pretensão da existência humana à
continuidade e à unidade própria da autocompreensão. A experiência de arte
não deve ser relegada à falta de comprometimento da consciência estética.163
Dentro de uma continuidade histórica, a experiência estética é uma forma de
autocompreender-se, ou seja, nela há uma continuidade de compreensão para com o nosso
mundo, a partir do mundo que se nos apresenta. O gênio e vivencia estética não conseguem
161
GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I: Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 2007,
p. 148.
162
Ibid., p. 148.
163
Ibid., p. 148-9.
56
65
dar conta da continuidade própria da autocompreensão, porque o fruto de ambos, a
consciência estética, não é comprometida ao mundo que vivemos e nem ao mundo que a
própria obra de arte é. O ente e o ser que tem o ocultamento e o desocultamento – isso em
termos heideggerianos – se vêem no que a obra de arte ajuda a entender. É sempre um
desocultar a verdade, daí a sua oposição ao ocultamento. Nesse âmbito, encontramos a
moralidade e o conhecimento que nos advém quando travamos um “encontro” com o mundo
que é uma obra. Com isso, Gadamer mostra uma pergunta que podemos considerá-la central
no desenrolar das reflexões feitas até aqui, a ver:
E será que a tarefa da estética não está justamente em fundamentar que a
experiência da arte é uma forma de conhecimento sui generis, certamente
distinta daquela do conhecimento sensível que oferece à ciência os últimos
dados, a partir dos quais ela constrói o conhecimento da natureza, também
diferente de todo conhecimento racional da ética e de todo o conhecimento
conceitual, mas mesmo assim sempre conhecimento, ou seja, mediação da
verdade?164 (grifo no original)
A dificuldade de se reconhecer isso em Kant é tributada pelo conhecimento
advindo do conceito de conhecimento da ciência e do conceito de realidade da ciência da
natureza. No ver de Gadamer, Hegel mostra a experiência da arte reconciliada com a
consciência histórica, no que a estética se torna uma história das cosmovisões, ou seja, uma
“história de verdade”, tal qual se retrata no “espelho da arte”. E isso valida a pretensão
gadameriana de justificação de conhecimento da verdade na experiência da arte. O conceito
de cosmovisão surge pela primeira vez em Hegel, na sua Fenomenologia do Espírito, “[...]
para caracterizar a complementação postulatória da experiência ética fundamental em uma
ordem moral do mundo, proposta por Kant e Fichte, só irá encontrar sua cunhagem genuína
na estética.”165 Onde o exemplo-guia, nesse sentido, é a história da arte, o qual não possui
uma meta de progresso diante da sua multiplicidade.
De fato, é no conjunto das ciências do espírito que, diante da variabilidade das
experiências, podemos reconhecer a verdade e o que se entende por verdade. “Não poderemos
fazer justiça ao problema da arte partindo do ponto de vista da consciência estética, mas
apenas partindo desse horizonte mais amplo.” 166 A experiência estética deve ser apreendida
como experiência, pois “[...] todo o encontro com a linguagem da arte é um encontro com um
acontecimento inacabado, sendo ela mesma uma parte desse acontecimento. É isso que deve
164
GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I: Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 2007,
p. 149-50.
165
Ibid., p. 150.
166
Ibid., p. 151.
57
66
erigir contra a consciência estética e sua neutralização da questão da verdade.”167 (grifo no
original)
A pergunta pela verdade da arte é uma pergunta de longo alcance, pois ela prepara
o caminho para a autocompreensão das ciências do espírito. Assim, a experiência da arte se
torna um fenômeno hermenêutico que não se enquadra nos moldes do método científico. A
compreensão pertence a próprio encontro com a obra de arte. Contudo, este encontro só
poderá ser aclarado pelo entendimento do modo de ser da obra de arte. Daí, surge a
necessidade de aclaramento sobre o modo de ser que mostrará o que esta experiência pode,
verdadeiramente, dizer.
O que vemos, então, é que a formação estética do século XIX é uma formação
para a estética, que leva à consciência estética, sendo seu produto a distinção estética. Dentro
dessa perspectiva, temos o conceito de gênio kantiano que nos seus sucessores teve a primazia
ante ao juízo de gosto e foi interligado a uma vivência estética. Com isso, Kant foi de
fundamental importância para a futura compreensão da estética, e, também, da obra de arte.
Diante do reconhecimento da sobrevivência da alegoria diante do imperativo do símbolo,
torna-se duvidável a vivência estética e gênio, e igualmente o seu produto, a consciência
estética. Assim, a reflexão gadameriana nos levou a um limite de pretensão de universalidade
desta mesma consciência, como também crítica a abstração por ela realizada, a qual mutila a
pretensão de verdade de uma obra, retira-a de seu mundo e de sua história. Portanto, faz-se
necessário compreender o que a obra de arte quer falar, é necessário indagarmos pelo seu
modo de ser. Já que ela faz parte da continuidade da autocompreensão humana perante uma
obra. Então, teremos que olhar a obra de arte a partir do ponto de vista onto-hermenêutico.
Assim, entramos naquilo que Gadamer se refere a Ontologia da obra de arte. O que será
tratado neste próximo capítulo.
167
GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I: Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 2007,
p. 151.
67
3 A ONTOLOGIA DA OBRA DE ARTE
Seguindo o itinerário em Verdade e método, na sua primeira parte, observamos
que o proceder de Gadamer em uma crítica à consciência estética, se dá ao mesmo tempo em
que questiona o processo de auto-evidência das ciências humanas e põe-nos em face da
verdade da arte. O que se desenvolverá, então, neste capítulo, A ontologia da obra de arte, é
uma reflexão que submete a experiência da obra de arte à tarefa crítica da hermenêutica
filosófica. Sendo assim, uma análise hermenêutica sobre o fenômeno da arte implica
necessariamente em sua análise ontológica, ou seja, qual o modo de ser da obra de arte? É
possível falar em um caráter de universalidade?
3.1 O JOGO
Para analisar esta questão acerca do modo de ser da obra de arte, Gadamer parte
do conceito de jogo, conceito este que desempenhou um importante papel na estética.
Contudo, ele liberta este conceito do significado subjetivo que Kant e Schiller emprestaram a
este conceito e que domina toda a nova estética e antropologia. Ao contrário, o jogo refere-se
ao modo de ser da própria obra de arte, já que a consciência estética não se refere ao estado
das coisas.
Assim sendo, o conceito lúdico de jogo possui uma referência para o que é sério,
não somente porque nisso encontra sua finalidade, mas pelo fato de que no jogar encontra-se
uma seriedade própria, “até mesmo sagrada”.168 “E, não obstante, no comportamento lúdico
não desaparecem simplesmente todas as referências à finalidade que determinam a existência
(Dasein) atuante e cuidadosa, mas, de uma forma muito peculiar, permanecem em
suspenso.”169 (grifo no original) “A estrutura ordenadora do jogo faz com que o jogador se
abandone a si mesmo, dispensando-o da tarefa da iniciativa que perfaz o verdadeiro esforço
168
GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I: Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 2007,
p. 154.
169
Ibid., p. 154.
59
68
da existência.”170 É a seriedade do jogo que determina que um jogo seja jogo e o que joga
sabe que o jogo é regido pela seriedade dos fins que o compõem.
Figura 2: Jogo de xadrez.
Fonte: http://www.clubedexadrez.com.br/portal/umuarama/xadrez5.jpg.
Acessado em: 25 de nov. de 2008.
Mesmo que o jogador diga que joga por divertimento, o jogo é regido por suas
regras, ele possui uma seriedade própria, seriedade aos fins a serem alcançados que faz com
que o seja jogo.
Assim, podemos inferir a correspondência que há no jogo para com a obra de arte
– o jogo da obra de arte. O jogo tem uma natureza própria, independente da consciência
daqueles que a jogam. E, como vimos, a experiência estética de uma obra de arte, por ser
experiência, é algo que nos transforma porque passamos pelo perigo – ex perior171 – de algo
próprio. Por isso, saímos diferentes de quando entramos numa peça teatral.
Ainda, nas inúmeras aplicações que o jogo retém – no dizer de Gadamer: jogo das
cores, jogo das luzes, jogo da peça da máquina no rolamento, etc. –, está implícito um
movimento que “vaivém” que não se fixa em nenhum alvo onde possa terminar. Isso
determina que o sujeito faz parte do jogo, não sendo ele quem determina o jogo, mas o jogo
que o determina. É, pois, o jogo que se realiza no seu movimento – dando-lhe o caráter
autônomo? – e a realização do seu movimento é o próprio jogo.
O movimento do jogo como tal também é desprovido de substrato. É o jogo
que é jogado ou que se desenrola como jogo; não há um sujeito fixo que
esteja jogando ali. O jogo é realização do movimento como tal. Assim
falamos, por exemplo, do jogo das cores e com isso não nos referimos ao
jogo de uma única cor com outra mas estamos aludindo ao processo ou à
170
GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I: Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 2007,
p. 158.
171
Termo latino, ex perior, donde advém o termo experiência, que significa atravessar o perigo.
60
69
visão unitários onde se mostra a multiplicidade variável de cores. 172 (grifo
nosso)
É na forma medial que o sentido mais originário de um jogo se manifesta. A isso
se refere aquele dizer: tal jogo está acontecendo. E não o sujeito que deva se comportar como
jogador para que o jogo seja jogado. De fato, percebemos, em princípio, o “primado do jogo
face à consciência do jogador”173. Pensemos num concerto, ele só existe porque é na sua
forma medial que se realiza, ou seja, porque está sendo tocado algo, que faz que este seja um
concerto. Não sendo qualquer sujeito que determine que o concerto seja um concerto.
Figura 3: Um concerto.
Fonte: http://www.flickr.com/photos/giuliolaforenza/234829986/.
Acessado em: 25 de nov. de 2008.
Outra característica que Gadamer explicita é a de que o próprio jogo acaba se
tornando um próprio risco para o jogador, sendo que este risco é o que exerce atração sobre o
jogador, ou seja, o atrativo está neste mesmo risco. Isso apontará para outro traço comum de
como a natureza do jogo no comportamento lúdico se reflete: “Todo jogar é um ser-jogado. O
atrativo do jogo, a fascinação que exerce, reside justamente no fato de que o jogo se assenhora
do jogador. [...] É o jogo que mantém o jogador a caminho, que o enreda no jogo e que o
mantém nele.”174 (grifo no original)
A expressão desta característica, de que todo jogar é um ser jogado, dá-se pela
razão de que os jogos possuem espírito próprio e especial, isto é, os próprios jogos possuem
cada um seu espírito próprio. Portanto, o jogo é um movimento auto-regulado, no qual o
jogador se submete a estas regulamentações. O jogador, quando joga um jogo, atravessa um
perigo intrínseco de enfrentar as regras do jogo – e isso vai ao encontro de ex perior. Fazer
172
GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I: Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 2007,
p. 156-7.
173
Ibid., p. 158.
174
Ibid., 2007, p. 160.
61
70
uma experiência é lançar-se num jogo que é jogado conforme suas regras e não segundo as
regras do jogador. O movimento do vaivém que um determinado jogo produz confirma este
fato: o jogo joga conosco. Assim, “o que constitui a essência do jogo são as regras e
disposições que prescrevem o preenchimento do espaço lúdico.”175 (grifo nosso)
No caso do ser humano, o jogo só é jogado porque o homem escolhe, ele quer
jogar, ele joga algo porque pode escolhê-lo. Também, “o fato de que todo jogo seja jogar
alguma coisa passa a valer por primeiro onde o vaivém ordenado do movimento do jogo é
determinado como um comportamento e se distingue de condutas de natureza diferente”176
(grifo no original), ou seja, o homem pode escolher jogar algo e quando o faz, o jogo coloca
uma tarefa àquele que joga e o seu comportamento é transformado nestas tarefas que o jogo
determina, “[...] porque o verdadeiro fim do jogo não é a solução dessas tarefas, mas a
ordenação e configuração do próprio movimento do jogo.”177 Nesse sentido, o êxito de uma
tarefa de um jogo representa-a, pois o cumprimento da tarefa não remete à nenhuma
correlação de fim, mas representa a própria tarefa, o próprio acontecer do seu movimento.
Portanto, o modo de ser do conceito de jogo é auto-representação, o qual é um aspecto
ontológico universal de sua natureza, segundo Gadamer.
Então, o que se pode perceber até aqui, é que o conceito de jogo sem a seriedade a
fins deixa de ser jogo, e o movimento que lhe é inerente, o vaivém, dá ao jogo da obra de arte
o caráter de mediação, com o qual temos o primado do jogo ao invés do jogador. Mas no jogo
humano, o jogo, como obra de arte, aponta-nos para a aquilo que chamamos de representação,
o que é o modo de ser do jogo. Nesse intuito, vejamos o que Gadamer quer nos mostrar.
3.1.1 Representação
O conceito de representação tem sua origem na representação própria do direito
canônico e público. “En ellos, representación no quiere decir que algo esté ahí en lugar de otra
cosa, de un modo impropio e indirecto, como si de un sustituto o de un sucedáneo se tratase.
Antes bien, lo representado está ello mismo ahí y tal como puede estar ahí en absoluto.”178
175
GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I: Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 2007,
p. 160.
176
Ibid., p. 161.
177
Ibid., p. 161.
178
“Neles, representação não quer dizer que algo esteja aí em lugar de outra coisa, de um impróprio e indireto,
como se de um substituto ou de um sucedâneo se tratasse. Antes bem, o representado está ele mesmo aí e tal
62
71
Assim, na autorepresentação ou representação de um jogo humano o representado está aí por
inteiro. Na medida em que minha representação está para o jogo – e sendo esta minha tarefa –,
o jogo se representa e desta forma me identifico com o jogo.
[...] a auto-representação do jogo humano repousa em um comportamento
vinculado aos fins aparentes do jogo, mas seu ‘sentido’ não reside realmente
na conquista desses fins. Ao contrário, o entregar-se à tarefa do jogo é, na
verdade, um modo de identificar-se com o jogo. A auto-representação do
jogo faz com que o jogador alcance sua própria auto-representação jogando
algo, isto é, representando-o. É só porque jogar já é sempre um representar
que o jogo humano pode encontrar na representação a tarefa do jogo. 179
(grifo nosso)
Por mais que o jogo tenha o caráter fechado, ele deixa cair uma parede. O jogo já
não é um mero auto-representar-se, mas representar para... De acordo com a própria
possibilidade todo representar é um representar para alguém, isso alude àqueles que
participam como espectadores. “[...] Por mais fechado em si mesmo que seja o mundo
representado no espetáculo cúltico ou profano, está como que aberto para o lado do
espectador. É só neste que ganha seu inteiro significado.”180 E pelo âmbito do espectador
Gadamer acrescenta: “[...] é aquele que não participa do jogo mas assiste quem faz a
experiência mais autêntica e que percebe a ‘intenção’ do jogo. Nele o jogo (a representação)
eleva-se à sua idealidade própria.”181
Por fim, quando um jogo se transforma em espetáculo, por exemplo, numa peça
teatral, o que acontece é uma mudança total. O espectador é colocado no lugar do jogador, ou
seja, o ator. Já não é o artista para quem e em quem se joga (representa) o jogo (espetáculo).
Mas inversamente, também o jogador poderá absorver o todo em que ele, representando,
desempenha o seu papel. “No fundo, aqui se anula a distinção entre jogador e [...] espectador.
A exigência de se visar o jogo mesmo, no seu conteúdo de sentido, é igual para ambos.” 182 O
que se tem é um acontecimento, o próprio jogo, aliás, o próprio jogo da obra de arte, no qual
seu conteúdo de sentido anula as distinções de papel e todos visam o sentido.
como pode está aí em absoluto.” (tradução livre do autor) (GADAMAER, Hans-Georg. La actualidad de lo
bello. 1991, p. 43)
179
GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I: Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 2007,
p. 162.
180
Ibid., p. 164.
181
Ibid., p. 164.
182
Ibid., p. 164.
63
72
Figura 4: Peça teatral.
Fonte: http://www.passeiweb.com/saiba_mais/arte_cultura/teatro/teatro_shakespeare.
Acessado em: 25 de nov. de 2008.
Em suma, não existem sujeitos que se comportam ludicamente, mas algo que
interpela, que faz com que entremos num mundo alheio, no qual fazemos experiência e assim
saímos transformados. Com isso, podemos fazer uma primeira crítica ao subjetivismo estético
até agora estudado. Quando olhamos do ponto de vista da obra de arte e perguntamos pelo seu
modo de ser, o que nos aparece é que o que determina o sentido na arte não é a consciência de
um sujeito, mas a própria obra. Prova disso está na transformação que ocorre conosco quando
entramos em contato com o sentido do jogo da obra de arte.
Mas Gadamer vai mais além. Diante de uma obra de arte, ou seja, a representação
que se tem diante de um espetáculo, a mudança é tal que ocorre o que chama de
transformação em configuração. Expliquemo-la.
3.1.2 Transformação em configuração e mediação total
A consumação da mudança total que vimos ocorrer com o jogo humano, torna-se,
então, transformação em configuração. “É somente através dessa mudança que o jogo alcança
sua idealidade, de modo que poderá ser pensado e compreendido enquanto tal.” 183 Por
princípio, o jogo, como tal, é repetível e duradouro. Tem o caráter de obra, do ergon.184 E é
nesse sentido que ele chama de configuração. Já no que se refere à transformação, isso
183
GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I: Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 2007,
p. 165.
184
É importante mostrar que Gadamer propõe que se mude o termo obra para conformação (Gebild): “Sí,
precisamente para subrayar que una conformación llega a desarrolar sua propria forma como partiendo de dentro
y está ahí, como ella misma y solo como ella misma. E no por ejemplo como una construcción para la que
hubiera un plano de construcción.” (CARSTEN, Dutt. En conversación con Hans-Georg Gadamer
(Hermenéutica-Estética-Filosofía Práctica). 1998, p. 84)
64
73
significa que, frente a todos os elementos de um espetáculo, o jogador, o espectador e até
mesmo o autor, o jogo “possui uma autonomia absoluta” 185, tanto é que estão vinculados à
obra. Para a determinação do ser da arte isso é de fundamental importância. Transformação
aqui não é o mesmo que modificação. Transformação é algo distinto:
Modificação sempre sugere que aquilo que se modifica permanece e
continua sendo o mesmo. Mesmo que se modifique totalmente, modifica-se
algo nele. [...] A transformação, ao contrário, significa que algo se torna
uma outra coisa, de uma só vez e como um todo, de maneira que essa outra
coisa em que se transformou passa a constituir seu verdadeiro ser, em face
do qual seu ser anterior é nulo. Assim a transformação em configuração
significa que aquilo que era antes não é mais. Mas também que o que agora
é, que se representa no jogo da arte, é o verdadeiro que subsiste.186 (grifo
nosso)
No jogo (espetáculo), a identidade daquele que joga (artista que representa) não
continua existindo para ninguém. A subjetividade não é o ponto de partida, mas sim o próprio
jogo, o que é jogado por aqueles que o jogam. Se se descrevesse a partir do jogador, o que se
teria não é uma transformação – que o transformaria todo –, mas sim um disfarce, que revela
uma continuidade para consigo mesmo e não para os outros. No entanto, o que se pode
perguntar unicamente é qual “a intenção do que está aí” 187, pois a transformação que ocorreu
devido à mudança total no espetáculo faz subsistir o verdadeiro.
O que existe não são os jogadores, mas o que é jogado por eles, constituindo-se,
assim, um mundo alheio, diferente da realidade cotidiana, ou seja, o que existe não é mais “o
mundo onde vivemos, que é o nosso próprio mundo.”188 O mundo que a transformação em
configuração traz é um outro mundo, fechado em si, o qual o jogo joga. Um mundo carregado
de sentido e isso nos remete à configuração – a um mundo próprio.
[...] na medida em que é configuração, encontrou sua medida em si mesmo e
não se mede com nada que esteja fora de si mesmo [– repousa sobre si
mesmo]. [...] Não admite mais nenhuma comparação com a realidade como
se esta fosse o padrão secreto de toda semelhança figurativa. [...] porque por
ela está falando uma verdade superior. [...] Isso só pode ocorrer [...] quando
alguém sabe perceber o sentido do jogo que se desenrola diante dele. A
alegria ante o espetáculo que se oferece é em ambos os casos a alegria do
conhecimento. [...] A transformação é na verdade transformação no
verdadeiro. [...] é a salvação e o retorno ao verdadeiro ser. Na representação
do jogo surge o que é. Nela será sacado e trazido à luz aquilo que, noutras
ocasiões, sempre se encobre e se retrai.189 (grifo nosso)
185
GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I: Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 2007,
p. 165.
186
Ibid., p. 166.
187
Ibid., p. 167.
188
Ibid., p. 167.
189
Ibid., p. 167.
65
74
Diante de um espetáculo em que tanto o que representa (artista) quanto o
espectador que assiste, o que se tem é um acontecimento190, tem-se uma transformação em
configuração. Isso significa que a obra é transformação por possuir uma autonomia absoluta
frente ao ator, ao espectador e ao autor. Tal é sua autonomia que ela faz subsistir o verdadeiro
e transforma àqueles que jogam e assistem em outro ser devido à verdade de sua
representação - o ser que se chega é justamente o retorno ao verdadeiro ser. Entramos em
contato com todo o ser, diferentemente de outras vezes onde o vemos como que com
máscaras. Ainda, a obra, também, é configuração no sentido de repetível e duradouro,
justamente pelo fato de ser ergon. Ora, se é repetível e duradoura, é porque esta é um mundo
próprio que se encontra uma verdade superior, ou seja, aí está o sentido do jogo. Mas é
possível enxergar o jogo da arte na vida?
Tanto na tragédia ou comédia da vida ou do palco, ao citar Platão, Gadamer vê
que ele mesmo em certas ocasiões não soube distinguir uma e outra. Isso ocorre quando o que
se desenrola aponta para o sentido do jogo. Quando se percebe, de fato, o sentido do jogo,
estas distinções são suplantadas; pois o que está falando é uma “verdade superior”, acima de
qualquer comparação. É o conhecimento que está sendo oferecido. Mas que conhecimento é
este que fala Gadamer? O jogo, por ser transformação em configuração, é a transformação no
verdadeiro, é volta ao verdadeiro ser. Por conseguinte, na representação do jogo surge o que é,
o que será sacado e trazido à luz aquilo que está sempre encoberto e que se retrai. “Quem sabe
perceber a comédia e tragédia da vida sabe também se subtrair à sugestão das finalidades que
dissimulam o jogo que é jogado conosco.”191 Explicitemos.
Num horizonte de futuro de possibilidades desejadas, temidas e, portanto, ainda
não decididas, encontra-se a realidade. É justamente essa indefinição do futuro que gera em
nós um excesso de expectativas e que faz com que a realidade fique aquém delas. Todavia,
pode ocorrer um caso especial “onde um nexo de sentido se fecha e se realiza no real, de
modo que os encaminhamentos de sentido sessam (sic!) de terminar no vazio, então uma tal
190
Para Gadamer, a obra de arte está para o idealismo (Hegel), no que se refere que a obra transmite, carrega, um
significado; mas também, ela é um acontecimento, dizendo com Heidegger que “en este doble movimiento
consiste la resistência de la obra frente a la altiva pretensión de pura integración de sentido.” (CARSTEN, Dutt.
En conversación con Hans-Georg Gadamer (Hermenéutica-Estética-Filosofía Práctica). 1998, p. 83) De fato,
é isso o que faz com que uma obra nos golpeie, produza em nós uma mudança brusca e total. Assim, fica
totalmente inapropriado o conceito de objeto estético, pois quando uma obra de arte chega até nós não existe
uma obejto, que buscamos o sentido conceitual, mas o que temos é este acontecimento. O que a compreensão
experimenta “[...] en el ser-ahí de la obra la profundidad de su sentido.” (CARSTEN, Dutt. En conversación con
Hans-Georg Gadamer (Hermenéutica-Estética-Filosofía Práctica). 1998, p. 83)
191
GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I: Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 2007,
p. 167-8.
66
75
realidade passa a ser como um espetáculo.”192 Dessa forma, consegue-se ver o conjunto da
realidade. Passa-se a ver um círculo fechado de sentido, no qual tudo se realiza, o que
possibilita falar em uma comédia ou tragédia da vida. Portanto, há uma identificação no que
concerne à obra de arte, ao jogo da arte, e à vida.
O ser de todo jogo é sempre resgate, realização pura, energeia, que traz seu
telos em si mesmo. O mundo da obra de arte, no qual um jogo se manifesta
plenamente na unidade de seu decurso, é, de fato, um mundo totalmente
transformado. Nele toda e qualquer pessoa reconhece que ‘assim são as
coisas!’193 (grifo nosso)
Portanto, o conceito de transformação caracteriza o modo de ser superior e
independente da configuração, pois a realidade será caracterizada como algo nãotransformado e a arte como subsunção dessa realidade na verdade. 194 Isso significa que a
transformação mostra um mundo de significado. Daí que o que era não-transformado acaba
sendo “invadido” pela transformação em um mundo cheio de sentido, de verdade – a arte. A
subsunção da realidade na verdade da transformação da obra de arte permite fazer uma
representação transformada de uma realidade em si mesma não-transformada.
Nesse sentido, Gadamer mostra que o conceito de mimesis tem algo em comum
com esta realidade subsumida na verdade, que é a arte, já que aquele era a base para todas as
artes na antiga teoria da arte. Ele era a representação do divino por meio da dança. Vejamos,
então, o que Gadamer quer nos dizer com o conceito de mimesis.
A antiga teoria da arte, na qual o conceito de mimesis (da imitação) era a base de
todas as artes, só consegue descrever o jogo da arte se não perder de vista o sentido cognitivo
que se encontra nesta mesma imitação. A descrição que a mimesis dá ao jogo está justamente
relacionada ao fato de poder explicar a representação no jogo, e no jogo da arte.
Para Gadamer o sentido do conhecimento da mimesis é o reconhecimento. Quem
imita algo torna presente o que conhece e como o conhece. Isso o leva a Aristóteles, que
mostra a relação da mimesis com as crianças.
Lo que sea la alegría por el reconocimiento puede observarse en la alegría
por el disfraz, especialmente en los niños. Y es que nada puede ofender tanto
a un niño como que no se le tome por aquello de lo que se há disfrazado. Lo
que debe reconocer-se en la imitación, por lo tanto, no es, para nada al niño
192
GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I: Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 2007,
p. 168.
193
Ibid., p. 168.
194
Ibid., p. 168.
67
76
que se ha disfrazado, sino, antes bien, a aquel que está representado. Tal es
el gran afán de todo comportamiento y representación mímica.195
A compreensão que Gadamer dá sobre o reconhecimento não está no fato de que
reconhecemos o que conhecíamos, mas “a alegria do reconhecimento reside, antes, no fato de
identificarmos mais do que somente o que é conhecido”196 (grifo no original), isto é, o
essencial. “Forma parte del re-conocer el que se mire en lo visto lo permanente, lo essencial,
lo que ya no está empañado por las circunstancias contingentes del haber-visto-una-vez ni del
haber-vuelto-a-ver.”197 (grifo no original e meu) E, ainda, em outro texto diz: “En el reconocimiento ocurre siempre que se conoce más propiamente de lo que fue posible en el
momentáneo desconcierto del primer encuentro. El re-conocer capta la permanencia en lo
fugitivo.”198 (grifo no original)
Direcionada à arte, Gadamer assevera que “o que propriamente experimentamos
numa obra de arte e para onde dirigimos nosso interesse é, antes, como ela é verdadeira, isto
é, em que medida conhecemos e reconhecemos algo e a nós próprios nela.” 199 O que ele quer
dizer é que no reconhecimento, o que conhecemos se desvincula-se de toda casualidade e
variabilidade das circunstâncias que condicionam este mesmo conhecimento, que surge como
que por meio de iluminação, de imediato, e se apreende a sua essência.200 “Cuando Aristóteles
describe cómo el espectador reconoce: ‘ése es él’, no se refiere a que detrás del disfraz se
reconozca a aquel que lleva el disfraz, sino al revés, que por el disfraz se reconoce aquello que
debe representar.”201 Em suma, o que Gadamer quer dizer é que
195
“O que seja a alegria pelo reconhecimento pode se observar na alegria pelo disfarce, especialmente nos
meninos. E é que nada pode ofender tanto a um menino como que não se o tome por aquele do que se há
disfarçado. O que deve se reconhecer na imitação, pelo tanto, não é, para nada ao menino que se está disfarçado,
senão, antes bem, àquele que está representado. Tal é o grande afã de todo comportamento e representação
mímica.” (tradução livre do autor) (GADAMER, Hans-Georg. Estética y hermenéutica. 2006, p. 87)
196
GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I: Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 2007,
p. 169.
197
“Forma parte do re-conhecer o que se olhe no visto o permanente, o essencial, o que já não está denegrido
pelas circunstâncias contingentes do haver-visto-uma-vez nem do haver-voltado-a-ver.” (tradução livre do autor)
(GADAMER, Hans-Georg. Estética y hermenéutica. 2006, p. 88-9)
198
“No re-conhecimento ocorre sempre que se conhece mais propriamente do que foi possível no momentâneo
descoberto do primeiro encontro. O re-conhecer capata a permanência do fugitivo.” (tradução livre do autor)
(GADAMER, Hans-Georg. La actualidad de lo bello. 1991, p. 54)
199
GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I: Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 2007,
p. 169.
200
“Pero en el re-conocimiento hay todavía algo más. [...] también, em cierto sentido, se reconoce uno a sí
mismo. Todo re-conocimiento es experiencia de un crecimiento de familiaridad; y todas nuestras experiencias
del mundo son, en última instancia, formas con las cuales construimos nuestra familiaridad con ese mundo.”
(GADAMER, Hans-Georg. Estética y hermenéutica. 2006, p. 88-9)
201
“Quando Aristóteles descreve como o espectador reconhece: ‘esse e ele’, não se refere a que detrás do
disfarce se reconheça àquele que leva ao disfarce, senão ao revés, que pelo disfarce se reconhece aquele que
deve representar.” (GADAMER, Hans-Georg. Estética y hermenéutica. 2006, p. 126)
68
77
A relação mímica originária que examinamos inclui não somente o fato de
que o representado está aí, mas também que tenho chegado no aí (ins Da) de
modo mais autêntico. A imitação e a representação não são apenas uma
repetição que copia, mas conhecimento da essência. Como não são mera
repetição (Wiederholung), mas extração (Hervorholung), nelas está coreferido também o espectador. Contêm em si uma referência essencial para
cada pessoa, para a qual se faz a representação.202 (grifo no original)
É somente na execução que se encontra a obra ela mesma. Neste sentido, podemos
exemplificar com a ação cúltica, a poesia, o teatro, a música e o momento literário. Contudo,
mais a diante trataremos em Conseqüências estéticas e hermenêuticas o alcance da ontologia
hermenêutica em obras que parecem estar em desacordo com a proposta gadameriana, onde a
consciência estética parece ser justificada e validada. Mas, nestes a execução mostra a obra de
arte como representação, e não como consciência estética, que a abstração reduz o verdadeiro
ser da obra. O espetáculo só acontece onde a representação acontece! Para ser música deve
soar. E mais, “o representar um espetáculo não quer ser entendido como a satisfação de uma
necessidade lúdica, mas como um entrar na própria poesia da existência.” 203
Nesse sentido, o conhecimento que apreendemos numa obra de arte é um
conhecimento do reconhecimento do essencial, do ser. Na representação, tem-se referência
especial para cada obra que é representada, mas também faz referência especial para o
espectador que assiste à obra.
Portanto, a tese que Gadamer deixa bem explícita é que “[...] o ser da obra da arte
não pode ser determinado como objeto de uma consciência estética, porque, por seu lado o
comportamento estético é mais do que sabe de si mesmo. É uma parte do processo ontológico
da representação e pertence essencialmente ao jogo como jogo.”204 (grifo no original)
A consciência estética atua pela distinção estética com relação à sua
representação. Por exemplo, para uma obra literária perguntar-se-ia: Qual a fábula que lhe
serve de origem? Qual a concepção que está na base da execução de um espetáculo? Qual o
desempenho do ator? Estas distinções são relativas à sua execução. Quando se é expectador, é
indiferente se a cena é trágica ou cômica ao se desenrolar no palco ou na vida. O que vemos é
o conteúdo da experiência do que está aí. Com isso, Gadamer contrapõe à consciência estética
uma não-distinção estética. O que se visa é aquilo que é formulado pelo poeta, representado
pelo ator, reconhecido pelo espectador e “que contém o significado da representação, de tal
202
GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I: Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 2007,
p. 170.
203
Ibid., p. 173.
204
Ibid., p. 172.
69
78
modo que a formulação poética ou o desempenho da representação não ganham nenhuma
distinção.”205 Há uma unidade da verdade na formulação e execução de uma obra. “O que
chamamos de configuração só é assim na medida em que se representa como um todo com
sentido. Não é algo que seja em si, que além do mais se encontra numa mediação acidental,
mas alcança o seu ser verdadeiro na mediação.”206
Aqui cabem duas idéias. A primeira, é que existem muitas possibilidades de ser de
uma obra e isto lhe é próprio. Aqueles que a interpretam, interpretam conforme o todo de
sentido que encontraram nela. A segunda, a mediação de uma configuração é mediação total,
quer dizer, que quem mediatiza suspende a si mesmo enquanto serve de mediador. Como
havíamos dito, é na forma medial que o sentido mais originário de um jogo se manifesta –
pois se diz que o jogo está acontecendo. Assim, mediatiza-se algo maior que não se
desvincula da própria vida, mas que se encontra aí um todo de sentido. Nessa segunda idéia
chegamos àquilo que propunha este subtítulo, ou seja, a mediação é total. A não distinção
entre a obra e a experiência é a verdadeira experiência da obra, isso implica que se
experiencie a própria obra sem se abstrair de suas relações com a vida, pois a própria obra
está nessas relações.
Em suma, vejamos o que Gadamer quer nos dizer:
Partimos do fato de que a obra de arte é jogo, isto é, que seu verdadeiro ser
não é separável de sua representação e que na representação surge a unidade
e identidade de uma configuração. A dependência que esta tem de
representar-se faz parte de sua essência. Isso significa que, por mais
mudança e desfiguração que a representação venha sofrer, continua sendo a
mesma. O que perfaz a vinculabilidade de toda e qualquer representação é
justamente o fato de conter ela mesma a referência para com a configuração
e de se subordinar ao padrão de correção que se deriva daí. Isso pode ser
confirmado até mesmo no caso extremo e privativo de uma representação
absolutamente deformadora. Torna-se consciente como deformação, na
medida em que a representação é julgada e pensada como representação da
própria configuração. A representação tem, de forma inextinguível e
inseparável, o caráter da repetição do mesmo. É claro que, aqui, repetição
não significa que algo venha a se repetir em sentido próprio, isto é, seja
reconduzido a um original. Ao contrário, toda repetição é tão original quanto
a própria obra.207
Como vemos, a repetição também faz parte da representação, constituindo-se
original a cada vez que é representada. Mas o que dizer das obras históricas em que o passado
e o presente se encontram? Não estaria validado o caráter da consciência estética ou histórica?
205
GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I: Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 2007,
p. 173.
206
Ibid., p. 174.
207
Ibid., p. 179-80.
70
79
Não se converteria num objeto de ambas? Assim sendo, faz-se necessário que reflitamos
sobre a temporalidade de uma obra de arte.
3.2 TEMPORALIDADE E FESTA
A temporalidade que Gadamer trata, deve-se ao fato de que as obras históricas,
enquanto mantém suas funções, são contemporâneas a todo e qualquer presente. Nesse
sentido, elas, também, estão ligadas à sua função originária, o que dá validade a si mesma e
provindo de si mesma o modo como o faz. Compreende-se, também, que elas se representam
tão diversamente na mudança dos tempos e das circunstâncias. 208 Os conseqüentes aspectos
cambiantes todos lhe pertencem, tornam-se todos eles simultâneos. É aí que advém a
necessidade de uma interpretação temporal da obra de arte.
Gadamer mostra que, no geral, essa presença do ser estético, sua simultaneidade
perante ao aspecto cambiante do tempo e das circunstâncias, ele a chama de a-temporalidade,
ou seja, sua presença é simultânea nos “tempos” em que está – é a-temporal. E sua tarefa está
em pensar essa a-temporalidade com a temporalidade, às quais pertencem essencialmente a
uma obra de arte.
Diante disso, de algum modo essa tarefa atinge o caráter temporal da festa:
A repetição é constitutiva das festas, pelo menos nas festas periódicas. É o
que chamamos de retorno da festa. No entanto, a festa que retorna não é uma
outra nem a mera reminiscência do algo festejado na sua origem. O caráter
originariamente sacral de todas as festas exclui, evidentemente, essas
distinções que conhecemos da nossa experiência do tempo como presente,
recordação e expectativa. A experiência temporal da festa é, antes, a
celebração que é um presente sui generis.209 (grifo no original)
Não é fácil compreender o caráter temporal da celebração, entendendo o tempo
como sucessão, o que parecerá uma temporalidade histórica. Mas, ainda sim, sob esse
aspecto, apesar das mudanças de cada vez em que ocorre a festa, ela continua sendo ela
mesma, mesmo sendo algo diverso. Assim, o fato de uma festa ser celebrada se deve à sua
origem, o que significa que está “de acordo com sua própria essência original que ela seja
sempre diferente (ainda que seja celebrada ‘exatamente do mesmo modo’). [...] Só possui o
208
GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I: Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 2007,
p. 176.
209
Ibid., p. 180.
71
80
seu ser no devir e no retornar.”210 O próprio da festa é uma espécie de retorno, ou seja, “todo
ello representa, en realidad, la primacía de lo que llega a su tiempo, de lo que tiene su tiempo
y no está sujeto a un cómputo abstracto o un empleo de tiempo.”211
Figura 5: Festa do Coliseo.
Fonte: http://www.flickr.com/photos/guidoz/186300522/.
Acessado em: 25 de nov. de 2008.
Dessa forma, a existência de uma festa se dá na medida em que é celebrada 212.
Celebra-se uma festa porque ela está aí, chegou o seu dia. 213 Da mesma forma se dá com o
espetáculo teatral, o qual não é representado pelo espectador, mas o seu ser é determinado por
sua assistência, ou seja, no assistir. Mas, para Gadamer, assistir é participar, no sentido de que
“quem assistiu alguma coisa conhece em conjunto como foi realmente. [...] O ato de ser
210
GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I: Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 2007,,
p. 180-1.
211
“Todo ele representa, em realidade, a primazia do que chega a seu tempo, do que tem seu tempo e não está
sujeito a um cômputo abstrato ou em um emprego de tempo.” (tradução livre do autor) (GADAMER, HansGeorg. La actualidad de lo bello. 1991, p. 49)
212
É interessante perceber em La actualidad de lo bello as formas de celebrar descritas por Gadamer: “La
celebración tiene unos modos de representación determinados. Existen formas fijas, que se llaman usos, usos
antiguos; y todos son viejos, esto es, han llegado a ser costumbres fijas y ordenadas. Y hay una forma de
discurso que corresponde a la fiesta y a la celebración que la acompaña. Se habla de un discurso solemne, pero,
aún más que el discurso solemne, lo propio de la solemnidad de la fiesta es el silencio. Hablamos de un «silencio
solemne».” (GADAMER, Hans-Georg. La actualidad de lo bello. 1991, p. 48)
213
GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I: Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 2007,
p. 181. “Tal vez podríamos comenzar por esta primera observación: se dice que ‘las fiestas se celebran; un día de
fiesta es un día de celebración’. Pero, ¿qué significa eso? ¿Qué quieres dicer ‘celebrar una fiesta’? ¿Tiene
‘celebrar’ tan sólo un significado negativo, ‘no trabajar’? Y, si es así, ¿por qué? La respusta habrá de ser: porque
evidentemente, el trabajo nos separa y divide. Con toda la cooperación que siempre ha exigido la caza colectiva
y la división social del trabajo, nos aislamos cuando nos orientamos a los fines de nuestra actividad. Por el
contrario, la fiesta y la celebración se definen claramente porque, en ellas, no sólo no hay aislamiento, sino que
todo está congregado. [...] Y, así, de un fiesta decimos que se la celebra.” (GADAMER, Hans-Georg. La
actualidad de lo bello. 1991, p. 47-8)
72
81
espectador é, pois, uma forma de participação verdadeira.” 214 A isso, lembra-se o conceito
grego da theoria.
Sabe-se que Theoros significa o participante de uma delegação de festa. [...]
no sentido genuíno da palavra, theoros significa o espectador que, por sua
assistência, participa do ato festivo e através disso adquire sua caracterização
jurídico-sacral, p. ex., sua imunidade. [...] Mas em princípio não deve ser
pensada como um comportamento da subjetividade, como uma
autodeterminação do sujeito, mas a partir daquilo que o sujeito está olhando.
A theoria é verdadeira participação, não é atividade; é um sofrer (pathos),
isto é, um ser atraído e dominado pela visão (Anblick).215 (grifo no original e
meu)
Estar entregue à visão, então, é constitutivo da natureza do espectador, que
implica estar totalmente esquecido de si. A isso se apresenta uma dedicação total a uma causa,
podendo, assim, o espectador contribuir positivamente. Contudo, “[...] aquilo que é
representado ao espectador como o jogo da arte não se esgota na mera enlevação do
momento, mas comporta uma pretensão de duração e a duração de uma pretensão
(Anspruchi).”216 (grifo no original) Diferentemente da curiosidade, a pretensão é algo
duradouro.
O que Gadamer quer deixar bem claro é que “o caráter da ‘simultaneidade’
convém ao ser da obra de arte. Ele constitui a essência do assistir.”217 Não sendo a
simultaneidade da consciência estética, que significa o “[...] ser-ao-mesmo-tempo e a igualvalidade (Gleich-Gültigkeit) de diversos objetos estéticos da vivência numa consciência. Ao
contrário, aqui ‘simultaneidade’ significa que algo individual alcança plena atualidade na sua
representação, mesmo que sua origem seja muito remota.”218 (grifo no original) A
simultaneidade proposta por Gadamer, no que se refere a arte, é uma tarefa à consciência e
não um estar dado na consciência, ou seja, a tarefa consiste em ater de tal forma a coisa em
questão para que ela se torna simultânea; assim, toda e qualquer mediação é subsumida numa
atualidade total.219
214
GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I: Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 2007,
p. 181.
215
Ibid., p. 181-2.
216
Ibid., p. 184. “Não é por acaso que na reflexão teológica suscitada por Kierkegaard, a que chamamos de
‘teologia dialética’, esse conceito possibilitou uma explicação teológica do que Kierkegaard compreendia com o
conceito de simultaneidade.” Sua justificação, a da pretensão, (ou presunção de tal) é seu primeiro elemento.
Podendo ser válida a qualquer tempo, persistindo à qualquer um e implica o fato de não ser uma exigência fixa.
Mas se ganha validade, a pretensão, ganha forma de exigência. (GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método
I: Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 2007, p. 184)
217
Ibid., p. 185.
218
Ibid., p. 185.
219
Ibid., p. 185.
73
82
Analogamente, ao remeter-se a Kierkegaard, Gadamer apresenta o sentido
teológico para a simultaneidade que este primeiro deu. O simultâneo, em Kierkegaard, na
ação cúltica,
[...] não quer dizer ser-ao-mesmo-tempo, mas apresenta uma tarefa proposta
aos crentes de mediar totalmente entre si aquilo que não é ao-mesmo-tempo,
a presença e a salvação de Cristo, de modo que apesar de tudo essas possam
ser experimentadas e levadas a sério como algo presente (em vez do
distanciamento de outrora). [...] Aqui o assistir é a genuína participação no
próprio acontecimento salvífico.220
Nesse sentido, isso também vale para a experiência da arte. Essa mediação deve
ser pensada como total. Não é nem o criador, ator ou mesmo o espectador os que legitimam o
ser da obra de arte, mas sim o que está sendo representado. 221 Há um núcleo de sentido tão
concentradamente independente que não motiva ninguém sair donde se está para outro futuro
ou realidade. Nesse intuito, remete-se ao receptor uma verdadeira distinção estética, apontada
por Gadamer no sentido de ser uma “[...] distância necessária para ver, que possibilita uma
participação verdadeira e global naquilo que se apresenta diante do espectador.”222 Com isso,
o auto-esquecimento extático do espectador corresponde a sua continuidade para consigo
mesmo. Naquilo que se perde o espectador, é justamente aquilo que lhe exigirá a continuidade
de sentido. É a verdade do seu próprio mundo, religioso ou ético em que vive, que está sendo
representada diante dele e, por isso, se reconhece.
Assim como a parusia, o absoluto presente, caracterizou o modo de ser
estético e uma obra de arte continua sendo a mesma toda vez que ocorra um
tal presente, assim também o momento absoluto em que se encontra o
espectador é tanto auto-esquecimento como mediação consigo mesmo.
Aquilo que o arranca de tudo é o mesmo que lhe devolve o todo do seu
ser.223 (grifo nosso)
Portanto, na essência do espetáculo estético está o espectador. E isso fica
evidenciado pelo exemplo do trágico, o qual Gadamer se serve para tornar visível tudo o que
fora dito até aqui referente à ontologia da obra de arte. Entretanto, a livre invenção de um
gênio não tem a primazia se constatarmos que o espectador faz parte da essência do
espetáculo – do jogo da obra de arte –, ela é um dos aspectos da mediação. Não se inventa
uma “fábula” livremente; ao contrário, até os dias de hoje, há alguma coisa do antigo
220
GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I: Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 2007,
p. 185.
221
Ibid., p. 186.
222
Ibid., p. 186.
223
Ibid., p. 186.
74
83
fundamento da teoria da mimesis224. “A invenção do poeta é representação de uma verdade
comum que vincula também o poeta.”225 A justificativa para tal afirmação, está no artista que
se dirige à espíritos preparados para tal representação, mesmo que seja algo novo, diferente;
com isso, escolhe o que promete causar efeito, como também ele mesmo, o poeta, se encontra
em meio às mesmas tradições do público a que se dirige e ao qual congrega. “Nesse sentido,
como indivíduo, como consciência pensante, ele não precisa saber expressamente o que faz e
o que expressa sua obra. [...] [Não lhe é um mundo estranho, mas] seu próprio mundo, ao qual
é remetido de modo mais autêntico ao se reconhecer mais profundamente nele.”226
Para um melhor vislumbramento do que fora refletido até então, vejamos um
balanço de Gadamer:
O que significa o ser estético? Com o conceito de jogo e da transformação
em configuração, que caracteriza o jogo da arte, procuramos mostrar algo de
universal, ou seja, que justamente a representação e correspondentemente a
execução da obra literária e da música é algo essencial e nunca acidental. Em
ambas realiza-se apenas o que as próprias obras de arte já são: a existência
daquilo que é representado através delas. Na reprodução a temporalidade
específica do ser estético – só ganha seu ser ao ser apresentado – ganha
existência como um fenômeno independente e distinto.227 (grifo nosso)
Diante de tudo isso, Gadamer pergunta-se se, de fato, há uma validade universal
que determine, daí, o caráter ontológico do ser estético. Para tal, recorrer-se-á aos casos da
imagem, do ocasional e do decorativo, e da literatura, os quais serão muito importantes para
determinar sua aplicabilidade quanto à valência ontológica da obra de arte frente à
consciência estética.
3.3 CONSEQÜÊNCIAS ESTÉTICAS E HERMENÊUTICAS
Em Conseqüências estéticas e hermenêuticas, há a busca pela universalidade do
ser estético, que deve ser caracterizado, em resumo, pelos conceitos de jogo e festa, onde o
que é determinante é o modo de ser da obra de arte, a representação. Os casos expostos acima
mostram sua problemática perante a ontologia da obra de arte proposta por Gadamer e a
224
“El uso original de esta palabra está tomado del movimiento de los astros. Las estrellas representan la pureza
de las leyes y proporciones matemáticas que constituyen el orden del cielo.” (GADAMER, Hans-Georg. La
actualidad de lo bello. 1991, p. 44)
225
GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I: Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 2007,
p. 192.
226
Ibid., p. 192-3.
227
Ibid., p. 193.
75
84
consciência estética da formação estética. Qual será a resolução dada pelo nosso autor? Nesse
sentido, comecemos com o que as artes plásticas têm a nos dizer.
3.3.1 O valor ontológico da imagem (Bild)
Gadamer mostra que o problema das artes plásticas parece ser o fato de que elas
validam a distinção estética, brasão da consciência estética, pois a ela parece ser tão
inequívoca que não admite representação nem mediação, ainda mais, parece nem ser possível
falar em variação representativa. O que varia estaria relacionado ao sujeito.
À primeira vista parece que, nas artes plásticas, a obra possui uma identidade
tão inequívoca, que não admite nenhuma variabilidade representativa. O que
varia não parece pertencer ao aspecto da própria obra, e nesse sentido
possuiria um caráter subjetivo. [...] Cada uma das obras das artes plásticas
pode ser experienciada ‘diretamente’, isto é, não necessita de outra
mediação. E como existem reproduções de quadros, estes certamente já não
pertencem à obra de arte ela mesma. E quando há pré-requisitos subjetivos
que condicionam o acesso à obra, teremos naturalmente que abstrair deles se
quisermos experienciá-la. Assim, parece que a distinção estética possui sua
inteira legitimidade. 228
Nesse sentido, o quadro, entendido como o quadro de parede contemporâneo,
onde não há lugar determinado a se fixar e representa-se a si mesmo inteiramente, podendo
ser justaposto arbitrariamente numa galeria moderna, vem ao encontro da exigência de
abstração da consciência estética, como também da teoria da inspiração do gênio. “Então
parece que o quadro vem dar razão à imediaticidade da consciência estética.” 229 Há nisso uma
pretensão de universalidade da consciência estética, onde o quadro (Bild) é a principal
testemunha, que surge, ao mesmo tempo, de acervos reunidos em museu nessa linha. O que
acontece, então, é que toda obra de arte transforma-se em quadro, pois as suas ligações vitais
e a “especificidade de suas condições de acesso” são desconsideradas. 230 No entanto, somente
a partir do momento em que não temos mais lugar para quadros, voltamos a saber que os
quadros não são só quadros, mas que requerem um lugar. 231
228
GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I: Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 2007,
p. 194.
229
Ibid., p. 194.
230
Ibid., p. 194.
231
Ibid., p. 196.
76
85
Figura 6: Quadro de Leonardo da Vinci: A Monalisa.
Fonte: http://www.paneladepressao.blogger.com.br/monalisa.jpg.
Acessado em: 26 de Nov, de 2008.
Diante disso, deve-se perguntar pelo modo de ser do quadro, que se faz premente
perante à imediatez da consciência estética, que deixa no sujeito a primazia e desliga a obra de
suas relações com a vida e dos seus modos de acessá-la.
Quando Gadamer pergunta pelo modo de ser do quadro, ele o faz para saber se a
estrutura ontológica do estético, vista pelo jogo, pode ser aplicada ao ser do quadro. Assim,
ele procura algo que é comum a toda diversidade dos modos de apresentação do quadro 232. É
uma abstração, sim, admite, mas não no sentido da consciência estética, na qual tudo o que
deixa subordinar-se à técnica de imagem da atualidade, torna-se quadro.233 Nela, na abstração
da consciência estética, não se encontra verdade histórica alguma, diversamente do que a
história da arte instrui, onde o quadro possui uma história diferenciada, pois mesmo que sua
soberania esteja no Renascimento, Gadamer acredita que o característico do “teórico” do
quadro são as determinações conceituais clássicas do belo. “Aristóteles já sabia que na
constituição do belo é tal que dele nada se pode tirar e nem acrescentar nele, sem com isso
destruí-lo [...].”234
Com isso, o sentido da abstração que Gadamer quer indicar, é um conceito de
quadro num sentido universal que não se limita a uma determinada fase da história do quadro.
232
Variabilidade representativa e diversidade de modos de representação são expressões distintas, pois a
primeira refere-se às muitas maneiras de representar uma mesma obra de arte, já o segundo se refere às muitas
artes plásticas que são diferentes umas das outras por possuírem diferentes formas de representação. E é este
segundo caso que Gadamer busca esmiuçar, para assim mostrar sua correspondência com a estrutura do ser
estético.
233
GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I: Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 2007,
p. 195.
234
Ibid., p. 195.
77
86
Assim sendo, a miniatura otônica ou o ícone bizantino são quadros, apesar de os princípios
serem diferentes, e, também, a escultura está contada entre as artes plásticas, a partir do
conceito estético de quadro. Conceito este que deve estar integrado com o decorativo que foi
desacreditado pela estética da vivência.
Figura 7: Estátua de Davi.
Estátua de Davi. Fonte: http://www.polentona.com/David_Michelangelo.jpg.
Acessado em: 25 de nov. de 2008.
Destarte, o que se tem em vista, ante a análise do conceito de quadro, são duas
questões: “Por um lado, perguntamos em que sentido se distingue o quadro (Bild) da cópia
(Abbild) (a problemática do quadro original [Urbild]), depois, como se dá a referência do
quadro com seu mundo.”235 (grifo no original)
Para responder à primeira pergunta, Gadamer diz que o conceito de representação
tem imbricação com o conceito de quadro, que está referido ao seu original. Daí que “o
mundo que aparece no jogo da representação não é uma cópia ao lado do mundo real, mas é
esse mundo mesmo na excelência de seu ser.” 236 Uma coisa é uma cópia onde o seu original
mantém seu ser-para-si, outra coisa é a representação onde sua duplicação permanece
indistinta, ou seja, a cópia e o original são distinguidos após ao ato de copiar, já na
representação há a manifestação do representado, que completa a presença do representado.
Assim, é no conceito de mimesis que é expressada esta manifestação, e não na cópia.
Também, por um lado temos o quadro original que rejeita ser reproduzido e o copiado que
235
GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I: Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 2007,
p. 197.
236
Ibid., p. 197.
78
87
parece ter um ser independente e tem menos valia. Assim, a problemática ontológica do
quadro se nos apresenta. Como encontrar tal resolução? Ao quadro e à sua reprodução lhes
cabem a cópia ou a reprodução? Ou, ainda, a cópia tem algum sentido ontológico na
representação? Vejamos o que Gadamer diz:
É da essência da cópia não ter outra tarefa a não ser procurar igualar-se à
imagem original. A medida de sua adequação é que na cópia se reconheça o
original. Isso significa que sua determinação é a de suspender o seu próprio
ser-para-si e colocar-se a serviço da total mediação do copiado. 237
Nesse intuito, vejamos a imagem do espelho. Para Gadamer, a reprodução ideal
seria a imagem do espelho, pois nela aparece “[...] o próprio ente em imagem, de forma que
eu tenho a ele mesmo na imagem do espelho.” 238 Mas ainda sim, é diferente a cópia. Ela quer
ser vista na perspectiva àquilo que se refere. Nisso há um anulamento, ou seja, ela anula a si
mesma, no sentido de que funciona como um meio. E como tal perde sua função – isto é,
remeter ao copiado devido à sua semelhança com ele, mesmo quando provado –, quando
alcança o seu fim. 239 Daí que ela, a cópia, “[...] tem uma existência independente, mas para se
anular assim. Essa auto-anulação da cópia é um momento intencional no ser da própria
obra.”240
Entretanto, na imagem original, que não é determinada pela sua auto-anulação, ou
seja, não é um meio para um fim, a referência é colocada em si própria, “[...] na medida em
que o que importa realmente é como nele se representa o representado. Isso significa [...]
[que] a representação continua essencialmente vinculada ao representado, sendo inclusive
parte dele.”241 A imagem, então, possui o modo de ser da representação. Ela é representação
de algo, do representado. Dessa maneira, o espelho é justificado porque reflete a imagem e
não a cópia: “é a imagem daquilo que se representa no espelho e inseparável de sua presença.
[...] frente à imagem a intenção se volta para a unidade originária e a não-distinção entre
representação e representado.”242 Essa não-distinção é um traço essencial de toda a
experiência da imagem.
237
GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I: Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 2007,
p. 198.
238
Ibid., p. 198.
239
“Havendo alteração da intenção, p. ex., quando se quer comparar uma cópia com o quadro original, julgandoa quanto à sua semelhança, distinguindo-a assim do original, nesse caso ela coloca em primeiro plano sua própria
aparência como qualquer outro meio ou ferramenta que não é utilizado, mas posto à prova.” (GADAMER, HansGeorg. Verdade e método I: Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 2007, p. 199)
240
GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I: Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 2007,
p. 199.
241
Ibid., p. 199.
242
Ibid., p. 199.
79
88
Assim sendo, vemos a inseparabilidade ontológica do quadro com relação ao
representado, é não distinção entre representação e representado. Esta distinção, quando é
feita, mostra a “distinção estética” da consciência estética. Ao contrário, “[...] o quadro torna
válido seu próprio ser para deixar que o reproduzido viva.”243
Já, frente a uma cópia, o quadro é uma imagem devido ao seu ser como
representação. Desse modo, a relação da imagem com o original é totalmente diferente da que
vale para a cópia. “Por outro lado, o fato de a imagem possuir uma realidade própria significa
para o original que ela ganha representação na representação.”244, isto é, a realidade
representada numa imagem ganha representação porque é representada. A própria realidade
na imagem é representação de si mesma. A imagem, também, pode ser representada de outras
maneiras. Mas quando assim o faz, toda representação desse gênero é um processo ontológico
e se experimenta um crescimento do ser, ou seja, é determinado ontologicamente como
emanação do original, o conteúdo próprio da imagem. 245
Portanto, o que Gadamer quer deixar claro é que a realidade ontológica da
imagem está fundamentada na relação ontológica entre original e cópia. E o que lhe parece
melhor caracterizar o modo de ser da imagem é a representatio (Repräsentation), pois, assim,
a imagem adquire “[...] uma independência que estende seu efeito sobre o original. Pois, em
sentido estrito, é só através da imagem que o original se torna arquétipo (Ur-Bild), ou seja, é
somente a partir da imagem que o representado ganha plasticidade.” 246 A imagem ganha sua
própria realidade porque um soberano, herói ou estadista mostram seu ser e depois são
representados. O que vem por primeiro é o representar-se e depois ser representado247. O que
também é notório para a imagem religiosa.
243
GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I: Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 2007,
p. 200.
244
Ibid., p. 201.
245
Ibid., p. 201. “Pertence à essência da emanação aquilo que emana ser um excesso supérfluo. Aquilo de onde a
emanação flui não se torna menor por isso. O desenvolvimento desse pensamento através da filosofia platônica,
que rompe o domínio da ontologia grega da substância, fundamenta o status ontológico positivo da imagem, pois
quando o uno original não se torna menor por causa da multiplicidade que emana dele, isso significa que o ser
ganha um incremento.” (grifo do autor) Gadamer ainda mostra que o padres da patrística grega se valeram desses
raciocínios neoplatônicos no que se refere à hostilidade às imagens do Antigo Testamento. (GADAMER, HansGeorg. Verdade e método I: Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 2007, p. 201)
246
Ibid., p. 202.
247
Para se aprofundar na reflexão gadameriana sobre a imagem no âmbito religioso veja GADAMER, HansGeorg. Verdade e método I: Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 2007, p. 203-5.
80
89
3.3.2 O fundamento ontológico do ocasional e decorativo
Na perspectiva da sua ontologia, Gadamer mostra que se se parte do fato de que
uma obra de arte não pode ser compreendida do ponto de vista da consciência estética, muitos
fenômenos que não tinham importância e tinham uma posição marginal para a estética
moderna, perdem seu caráter problemático e adentram para o centro de um questionamento
estético. Ele se refere ao portrait248, a dedicatória na poesia e ainda à alusão feita na comédia
contemporânea. Estes conceitos estéticos são formados pela consciência estética e o que eles
têm em comum é o caráter da ocasionalidade. Ocasionalidade, no sentido da lógica moderna,
“[...] quer dizer que o significado continua se determinando, quanto ao conteúdo, a partir da
ocasião em que ele é pensado, de maneira que contém mais do que conteria sem essa
ocasião.”249 O problema, na ótica da consciência estética, está no fato de que o portrait, por
exemplo, contenha uma referência para com a pessoa que é representada na representação. Já
que para a consciência estética o que é decisivo é o “estético puro”, livre de toda a referência.
No entanto, o que é decisivo, para Gadamer, é que a ocasionalidade faz parte da pretensão da
própria obra de arte e que não lhe é imposta por seu intérprete.
Figura 8: Portrait.
Fonte: http://www.flickr.com/photos/book-keeper/2226380399/.
Acessado em: 25 de nov. de 2008.
248
Portrait é um termo francês que significa retrato.
GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I: Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 2007,
p. 206.
249
81
90
Quando se fala na diferença entre o portrait e o modelo, isso serve de acesso ao
que significa ocasionalidade para Gadamer. Quando um pintor faz um portrait, o que se
apresenta como modelo de um gênero ou tipo é a individualidade do representado, mesmo que
o pintor perceba ou não, admita ou não, também. Modelo pode ser arquétipo ou algo que torne
visível uma outra que não seja visível. Mas, se o modelo para o pintor não é pensado
enquanto ele próprio250, isso se torna problemático na perspectiva da consciência estética.
Todavia, “[...] o representado no portrait é tão ele mesmo que não atua disfarçado, mesmo
com as luxuosas vestes que está usando chamam a atenção para si.”251 (grifo no original)
Assim, “no sentido referido aqui, ocasionalidade significa inequivocamente a pretensão de
sentido da própria obra, em diferença a tudo que pode ser observado nela e concluído dela,
contrariamente à pretensão da obra.”252 (grifo nosso)
Como vemos, Gadamer desloca o que era problema e objeto descartado para a
consciência estética e aponta para a validade do portrait para dentro da discussão estética. O
portrait, então, permanece sendo ocasional, pois ele próprio não diz quem representa, mas
apenas que é um determinado original – indivíduo – (e não um tipo). Há algo de implícito,
algo não explícito, mas em princípio explicitável, que faz parte de seu significado. Isso vai ao
encontro do quadro, pois essa ocasionalidade pertence ao conteúdo central do seu
significado.253
No quadro haverá então alguma coisa implícita, que é justamente sua
ocasionalidade. Mas o que não é explícito não está ausente; está de uma
forma inteiramente unívoca. [...] O que dissemos de modo geral acima sobre
a valência ontológica do quadro inclui também esse momento ocasional.
Assim, o momento da ocasionalidade que se mostra nos fenômenos citados
apresenta-se como um caso especial de uma relação geral que convém ao ser
da obra de arte: a ‘ocasião’ de seu vir à representação faz com que sua
significação experimente um aumento de determinação.254 (grifo nosso)
250
“Isso fica claro na diferença com relação ao modelo que o pintor venha a usar, por exemplo, para um quadro
de gênero ou para uma composição figurativa. No portrait o que se represnta é a individualidade do retratado. Se
num quadro, ao contrário, o modelo atua como individualidade, por exemplo, por tratar-se de um tipo
interessante com quem se deparou o pintor, isso passa a ser uma objeção contra o quadro, pois no quadro já não
se vê mais o que o pintor quer representar mas um material não transformado. É assim que destrói o sentido de
um quadro figurativo, quando, por exemplo, nele se reconhece um modelo conhecido do pintor. Pois um modelo
é um esquema que tende a desaparecer. A referência ao arquétipo que serviu ao pintor deve desaparecer no
quadro.” (GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I: Traços fundamentais de uma hermenêutica
filosófica. 2007, p. 206)
251
GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I: Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 2007,
p. 207.
252
Ibid., p. 207.
253
Ibid., p. 208.
254
Ibid., p. 208-9.
82
91
Da mesma forma que no quadro (imagem) vemos um aumento de ser pela
emanação, parece que a ocasião possibilita um aumento de significado que vai além de sua
pretensão de significado. E podemos, portanto, dizer que algo que era tão transparente
significativamente, acaba fugindo da sua pretensão, ou seja, ela se determina de maneira de
maneira nova em cada ocasião.
Devemos reconhecer que isso ocorre mais nitidamente nas artes reprodutivas,
sobretudo na representação teatral e na música, que possuem uma ocasião para se
determinarem. No teatro, exemplificando, “sua natureza é ser tão ‘ocasional’ que a ocasião da
execução traz à tona e deixa transparecer o que está nela.” 255 Há outro algo sendo aludido ao
mesmo tempo da encenação da obra teatral. O mesmo vale para as artes estatuárias.256
Ademais, mesmo em artes especificamente ocasionais, como a caricatura na luta
política ou o portrait, que tomaram uma ocasião bem determinada por alvo, estes
[...] são formulações da ocasionalidade geral que permitem à obra de arte
determinar-se de maneira nova de ocasião em ocasião. Mesmo a
determinação única pela qual se realiza, nesse sentido preciso, um momento
ocasional na obra de arte ganha no ser da obra de arte uma participação na
universalidade, que a torna capaz de uma nova realização – de maneira que a
singularidade de sua referência ocasional torna-se implícita, mas a referência
que se tornou implícita na própria obra permanece presente e atuante. Nesse
sentido, também o portrait torna-se independente da singularidade de sua
referência ao original e, mesmo assim, contém-no em si mesmo
precisamente enquanto o supera.257 (grifo no original e meu)
A valência ontológica da imagem, assim, pode ser testemunhada tanto no portrait
como nas obras figurativas – os monumentos religiosos ou profanos. No caso do portrait, ele
é o aguçamento de uma estrutura essencial e universal da imagem258, é um caso especial da
valência ontológica que se tinha atribuído à imagem. A partir de tudo o que fora dito,
255
GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I: Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 2007,
p. 209.
256
“Também aí não se pode dizer que a obra é ‘em si’ e que apenas o efeito é cada vez diferente; é a própria obra
de arte que se apresenta diferentemente, segundo as condições vão se modificando. O observador dos nossos dias
não vê apenas diferente, ele também vê outra coisa. Basta pensarmos no fato de que a representação do mármore
brando da Antigüidade domina o nosso gosto e o nosso comportamento conservador desde os dias da
Renascença, ou no reflexo de sensibilidade classista que a espiritualidade purista das catedrais góticas representa
o Norte romântico.” (GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I: Traços fundamentais de uma
hermenêutica filosófica. 2007, p. 210)
257
GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I: Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 2007,
p. 210.
258
“Cada imagem é um crescimento do ser e está essencialmente determinada como representatio, como vir-àrepresentação. No caso especial do portrait, esse re-presentação ganha um sentido pessoal, na medida que, aqui,
uma individualidade é representada representativamente. Pois isso significa que o representado se representa a si
mesmo em seu portrait e representa-se com o seu retrato. A imagem não é mais simples imagem ou cópia, mas
pertence à atualidade ou à memória presente do representado. (grifo do autor) (GADAMER, Hans-Georg.
Verdade e método I: Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 2007, p. 211)
83
92
justifica-se “caracterizar o modo de ser da arte, no seu todo, através do conceito de
representação, o qual abarca tanto o jogo como imagem, tanto comunhão como
representação.”259 (grifo do autor) Assim, a arte é entendida como processo ontológico, onde
a abstração da distinção estética perde seu lugar, pois é um processo de representação de algo
que está aí260.
Para Gadamer, ainda sim, é importante saber sobre a essência da imagem, mesmo
quando já foi possível perceber que ela contribuiu para a ontologia. Nesse sentido, ele vê a
imagem entre a sua representação entre o sinal e a símbolo. Explicitemos.
3.3.2.1 Imagem: entre símbolo e sinal
Para Gadamer a essência da imagem se encontra a meio caminho entre dois
extremos: “Esses extremos da representação são o puro referir – a essência do sinal – e o puro
fazer as vezes (sic!) de outro (Wertretten) – a essência do símbolo.”261 (grifo no original) De
fato, no tocante ao sinal, a representação da imagem possui uma referência àquilo que nela é
representado. Mas esta mesma imagem não é um sinal, sua função não é referir de si para
outra coisa. Ela, igualmente, atrai a atenção sobre si.
De todos os sinais, o que tem maior realidade própria é o objeto da recordação. A
recordação não permite demorar-se nela, mas para o passado à qual acena. Daí que uma
imagem não é sinal. “A imagem, ao contrário, realiza sua referência ao representado apenas
através do seu próprio conteúdo”262, e não da recordação. Ao mesmo tempo em que faz
referência a outra coisa, ela permite que se nos demoremos nela. Nisso perfaz a valência
ontológica que Gadamer acentuou, pelo fato de na representação não estar separado o
representado, mas ela participa de seu ser.263 Nesse sentido, assinala-se a esta participação a
aproximação da imagem e do símbolo.
259
GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I: Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 2007,
p. 214.
260
O fato de uma obra de arte não ser um objeto e sim uma coisa, pois a coisa se sustenta por si mesma, já o
objeto não, acena ao seu mundo. “La obra de arte abre su propio mundo. Algo es objeto sólo cuando ya no cabe
en la articulación de su mundo, porque el mundo ao que pertenece se ha descompuesto. En este sentido, una
obra de arte es un objeto cuando es comercializada, pues entonces está privada de su mundo y lugar de
pertenencia.” (GADAMER, Hans-Georg. La verdad de la obra de arte. 2002, p. 06)
261
GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I: Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 2007,
p. 215.
262
Ibid., p. 216.
263
Ibid., p. 216.
84
93
No símbolo, a função representativa não é uma mera referência a algo que não se
encontra presente, a algo não-presente, mas, no fundo, o símbolo deixa aparecer como
presente algo que está sempre presente. Ele é mais que um sinal. “Não somente implica uma
pertença comum, mas demonstra-a e torna-a visível.”264 No âmbito religioso isso se mostra
com maior razão, lembra Gadamer. E “desse modo, um símbolo não serve apenas como
referência mas representa enquanto faz as vezes de outro (vertritt). [...] É só porque o símbolo
representa assim a presença daquilo que ele simboliza faz as vezes que a honra devida àquilo
que ele será prestada a ele mesmo.”265 (grifo no original) Enquanto faz “vezes de outro” na
representação, o símbolo faz referência a algo que estava presente.
Como vemos, há uma proximidade entre a imagem e a representação do símbolo.
No entanto, os símbolos não são imagem por duas razões: os símbolos não precisam ser
imagens e, ao fazer as vezes de outro pela sua presença e mostrar-se, eles não dizem nada do
simbolizado por si mesmos. “Precisamos conhecê-los, como precisamos conhecer um sinal, se
quisermos seguir sua referência. Nesse sentido, eles não significam nenhum crescimento de
ser para o representado.”266 Do ponto de vista do conteúdo, não acrescentam, os símbolos,
nada. A imagem, ao contrário, representa por meio de si mesma, por meio do “incremento de
significado que proporciona”, ou seja, na sua representação, ela dá um incremento, um
aumento, de significado como no ocasional. O que é um modo mais autêntico de o
representado estar presente “e justamente essa posição intermediária que lhe convém e elevao a um status ontológico que é inteiramente seu.”267 (grifo no original)
O sinal e o símbolo abarcam, ainda, a instituição, no sentido de que “os sinais
artificiais, tanto como os símbolos, não recebem seu sentido funcional como a imagem o
recebe de seu próprio conteúdo, mas devem ser adotado como sinal ou como símbolo”, isto é,
é a instituição que determina o sentido funcional do que é o sinal e do que é o símbolo e não
pelo seu conteúdo próprio. Assim, a adoção do sinal se realiza por meio da convenção, por
uma conjugação prévia de sinal e sinalizado, e o símbolo remonta a sua instituição, uma
investidura que lhe deu o significado, pois em si não tem significado. 268
À valência ontológica, então, é decisivo o caráter da instituição, pois a imagem
não é instituição. Uma obra de arte só recebe a função memorial, que é determinada pela
264
GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I: Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 2007,
p. 217.
265
Ibid., p. 217-8.
266
Ibid., p. 218.
267
Ibid., p. 218.
268
Ibid., p. 219.
85
94
instituição, porque, antes, “ela já é uma configuração com função significativa própria, como
representação que possui ou não imagem. A instituição e a consagração de um monumento
[...] só realiza uma função que estava implicada no próprio conteúdo da obra.”269 Assim, uma
obra de arte não é determinada pela instituição. Destarte, determinados monumentos de
devoção, de veneração, de piedade, são instituídos ou erigidos como monumentos porque de
si mesmas prescrevem e ajudam a formar esse nexo funcional; ainda, que deslocadas,
pleiteiam por si mesmas o seu lugar, por exemplo, obras que são incluídas num acervo
moderno, não perdem seus vestígios de sua determinação original, justamente porque seu ser
é representação.
3.3.2.2 A arquitetura e o decorativo
Por conseguinte, no mesmo sentido do portrait, Gadamer acena para uma outra
realidade, a da arquitetura, pois, do mesmo modo que o portrait, a arquitetura é posta dentro
da reflexão estética quando se vê a caducidade da consciência estética.
Quando pensamos no significado exemplar dessas formas especiais,
compreendemos que formas artísticas que do ponto de vista da arte vivencial
representam casos-limite podem ocupar um ponto eminentemente central: ou
seja, todas aquelas cujo conteúdo próprio aponta para além de si mesmas,
para o todo de uma conjuntura determinada por elas e para elas. A mais
distinta e a mais extraordinária forma de arte que podemos colocar sob esse
critério é a arquitetura.270 (grifo no original e meu)
De início, uma obra arquitetônica expede para além de si de dois modos: “é
determinada pelo fim a que deve servir, quanto pelo lugar que tem de ocupar no todo de uma
conjuntura espacial.”271 Uma obra acertada, chamada de “feliz solução”, leva em conta estes
dois elementos. Com isso, em função dessa dupla adaptação, a construção representa um
verdadeiro crescimento do ser, ou seja, é uma obra de arte.272
269
GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I: Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 2007,
p. 219.
270
Ibid., p. 220.
271
Ibid., p. 220.
272
Ibid., p. 220.
86
95
Figura 9: Arquitetura japonesa.
Fonte: http://www.meusestudos.com/system/fotos/vista-do-castelo-de-osaka-arquitetura-japonesa.jpg.
Acessado em: 25 de nov. de 2008.
Um edifício só será uma obra de arte se ele representa a solução de uma tarefa
arquitetônica. É obra de arte quando representa uma solução artística à tarefa arquitetônica
imposta por sua finalidade e os nexos de vida a que a obra pertence originariamente que
conserva mesmo quando estes nexos já estão muito distantes de sua destinação original; assim
sendo, existe algo nele que alude ao original. 273 A distinção estética, ao contrário, sendo uma
pura abstração, jamais considerará a arquitetura, “a mais estatuária de todas as artes”, uma
obra de arte, pois a destinação prática que integrada ao contexto da vida não pode se separar
dela, sem perder algo de sua própria realidade.
Figura 10: Arquitetura grega.
Fonte: http://www.saberweb.com.br/grecia/arquitetura_da_grecia_antiga/images/arquitetura-da-greciaantig.jpg . Acessado em: 25 de nov. de 2008.
273
GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I: Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 2007,
p. 220-1.
87
96
A sobrevivência de grandes monumentos arquitetônicos do passado mostra uma
integração entre o antes e o agora, pois:
As obras arquitetônicas não permanecem irreversíveis, à margem da torrente
histórica da vida, mas esta arrasta-as consigo. [...] Mesmo onde a
representação não ocorre primeiramente em virtude da reprodução (da qual
todo mundo sabe que ela pertence a seu próprio presente), a obra de arte
propicia uma mediação entre passado e presente.274 (grifo nosso)
Cada obra de arte possui um mundo, o fato de a arquitetura nos ensinar isso,
mostra que perante a mudança desse mundo, ela sempre se mostrará pertencente a um mundo
seu original. Assim, do mesmo modo, pela arquitetura responde-se analogamente ao quadro
de como este pertence ao seu mundo. De fato, percebe-se ainda mais a correspondência da
obra de arte em geral para com o seu mundo.
Gadamer apresenta outra característica da arquitetura. Ela “[...] é uma
conformadora de espaço por excelência.” 275 Da mesma forma que o espaço abarca todos os
entes que estão em si, a arquitetura abrange todas as demais formas de representação: todas as
artes plásticas, toda ornamentação; somente ela proporciona o lugar para a representação da
poesia, da música, da mímica e da dança, 276 e até mesmo a escultura que adorna o contexto da
vida. “Ao abarcar o conjunto de todas as artes, instaura em toda parte o domínio de seu
próprio horizonte. E este é o da decoração.”277
Figura 11: O decorativo em uma igreja.
Fonte: http://www.historianet.com.br/imagens/barroco1.jpg.
Acessado: 25 de nov. de 2008.
274
GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I: Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 2007,
p. 221.
275
Ibid., p. 221.
276
Ibid., p. 222.
277
Ibid., p. 222.
88
97
A arquitetura inclui uma mediação bipolar, isto é, tanto opera a conformação do
espaço quanto a sua liberação. Isso significa que ela tanto media o “arranjamento” do espaço
de algo – e aqui se abarca a decoração –, como é mediadora para que se possa ser possível de
encontrar-se ali. Podemos ver isso claramente no caso de um espetáculo musical, onde se
precisa de certa disposição das coisas no lugar, sua decoração, para que uma peça seja
executada, como também a arquitetura deve possibilitar uma boa acústica para a execução.
Nesse sentido, a decoração faz parte da arquitetura, pois a primeira faz parte do caráter único
da segunda.
Também, podemos vislumbrar este caráter único da decoração numa obra de arte
da seguinte forma: uma mesma melodia, notas que se sucedem de forma harmoniosa e
afinada, podem receber muitos arranjos musicais pelo acréscimo de outras notas e acordes,
sempre relativos à melodia. Este arranjo musica no espaço da física do som e certamente
exigirá um adequado arranjo de músicos e instrumentos no espaço da física do espetáculo a
fim de, no seu conjunto, a melodia seja ainda mais melodiosa, harmoniosa e afinada. De certo
modo, o arranjo musical adorna a melodia.
Voltando à arquitetura, ela
Não somente abarca todos os pontos de vista decorativos da conformação do
espaço até a ornamentação, como é também, por sua essência, decorativa. E
a essência da decoração consiste em proporcionar essa dupla mediação, a de
atrair sobre si a atenção do observador, satisfazer seu gosto e ao mesmo
tempo afastá-lo remetendo-o ao conjunto mais amplo do contexto vital a que
ela acompanha.278 (grifo nosso)
O adorno se submete a um modo de vida e, também, não pretende ser um fim em
si, quer ser um adorno – quer criar ambiência. Pensemos nos adornos que estão nas
construções dos grandes sutões árabes. É um meio que se submete àquilo que deve adornar.
Também, olhando para o ornamento, utilizado pelo arquiteto, conserva em si algo da
duplicidade decorativa, ou seja, deve ser observado, mas sem demora, pois atrai e o satisfaz,
remetendo a algo mais amplo, ao seu contexto vital que acompanha. Assim, ele, o ornamento,
tem o efeito de mero acompanhamento, sendo um efeito vivaz até certo ponto.279 Não pode
ser morto!
Tudo isso vai de encontro com a consciência estética, a qual diz que a verdadeira
obra de arte, abstraída de todo espaço e tempo, representa uma vivência estética e que arte só
278
GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I: Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 2007,
p. 222.
279
Ibid., p. 223.
89
98
é arte porque tem sua origem na inspiração genial. Com isso, o decorativo, segundo esta
mesma consciência, não participa do caráter único da obra de arte. Contudo, Gadamer atenta
que a saída desta oposição se encontra, ainda, no fundamento da estrutura ontológica da
representação. “Tudo o que é adorno e adorna é determinado por sua referência ao que ele
adorna, sobre o qual é aplicado, àquilo que é seu portador. [...] pertence ao modo de
apresentar-se de seu portador.”280 Assim o adorno, ou o que adorna, é representativo no
sentido do ornado, ele pertence à representação do que ornado ou ornamentado. Logo,
pertence o modo de ser da obra de arte, que é representação.
Em suma, Gadamer assevera que o termo representação “[...] é um momento
estrutural, universal e ontológico, do estético, um processo ontológico. [...] A presença
específica da obra de arte é o ser vindo à representação.”281 (grifo nosso) O que se confirma
também com a imagem (Bild) e as artes estatuárias no seu todo, pois possuem o mesmo modo
de ser. Mas o aspecto ontológico que se desenvolveu até aqui se estende ao modo de ser da
literatura? Eis a pergunta que orienta Gadamer ao tratar da literatura. Assim, faz-se necessário
ouvir o que a literatura tem a nos dizer. Sendo esta, inclusive, a última a ser tratada por
Gadamer.
3.3.3 A posição de limite da literatura
A literatura também parece, à primeira vista, que legitima a consciência estética
pela autonomia do leitor, o que não reivindica valência ontológica alguma pela representação.
“A leitura é um processo de pura interioridade. Nela aparece consumada a eliminação de toda
ocasião e contingência [...]. A única condição sob a qual se encontra a literatura é a
transmissão pela linguagem e seu desenrolar na leitura.”282
280
GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I: Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 2007,
p. 224.
281
Ibid., p. 224.
282
Ibid., p. 225.
90
99
Figura 12: Biblioteca.
Fonte: http://cdi.ump.pt/ump/images/stories/biblioteca.jpg.
Acessado em: 25 de nov. de 2008.
Entretanto, nos primórdios, a literatura não se refere à leitura, e sim à escrita.
Antes à Homero o que se tinha era a oralidade da poesia épica. A escrita surge como auxílio
aos rapsodos283, como um material de auxílio à recitação, e não como material de leitura.
Mesmo assim, o fato de que há o triunfo da leitura à recitação não é algo totalmente novo.
Percebe-se isso em Aristóteles, que se distanciou do teatro. Assim, temos uma “leitura” feita
em alta voz. Mas esta não se difere em muito da leitura silenciosa, pois não existe uma nítida
distinção entre ambas. Assim,
[...] toda leitura compreensiva é sempre uma forma de reprodução e
interpretação. A entonação, a articulação rítmica e afins pertencem também
à leitura mais silenciosa. O significativo e sua compreensão estão tão
estreitamente vinculados ao elemento corporal da linguagem que a
compreensão sempre contém um falar interior.284 (grifo nosso)
O que vemos é que a leitura pertence à obra de arte literária, tanto quanto a
declaração ou execução, na qual estão implicados o significado desconhecido e a
compreensão que busca entender o significado do texto. Portanto, há uma existência tão
originária na literatura pela leitura, sua existência se dá a partir da sua origem e que a
podemos perceber ao ler um romance, como também na contemplação do observador de uma
imagem, um quadro. O conteúdo lido, igualmente, se torna representação.285 O conteúdo
representa algo a nós. “É verdade que a literatura e sua recepção na leitura mostram um grau
283
Rapsodo é o nome dado a um artista popular ou cantor, que ia de cidade em cidade recitando poemas,
principalmente epopéias.
284
GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I: Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 2007,
p. 226. Para uma melhor compreensão deste enunciado, vale lembrar que Gadamer, na página 140, deste mesmo
livro, diz que o que é significativo tem um significado desconhecido ou não manifesto.
285
Ibid., p. 226.
91
100
máximo de desvinculação e mobilidade. [...] Isso permite ver claramente que a “leitura”
corresponde à unidade do texto.”286 Isso quer dizer que podemos ler em outro momento, mas
mesmo assim ela não deixará de representar algo a nós quando a lermos.
Também, “en ninguna parte como en el arte lingüístico se promueve tan
claramente la colaboración del receptor. La lectura es por ello la forma más auténtica y
representativa en la que se hace evidente la participación del receptor en el arte.”287 Portanto,
o caráter específico da literatura artística só pode ser concebido a partir da ontologia da arte.
Esses graus que costumeiramente chamados de reprodução, representam o modo de ser
original de todas as artes transitórias e, assim, tornou-se exemplar para que se determinasse o
modo de ser da arte em geral. 288 Por conseguinte, no conceito de literatura se está vinculado
seu receptor: “a literatura é, antes, uma função da preservação e da transmissão espiritual e
por isso introduz em cada presente sua história oculta.” 289
Nesse sentido, o conceito de literatura clássica 290 está implicado, como também a
literatura universal, primeiramente cunhado por Goethe, que ocupa seu lugar na consciência
de todos, pois pertence ao mundo. E o mundo original de que uma obra dessa literatura
universal, sob o caráter normativo, encontra-se, mesmo sendo afastado e distante, continua
falando, ainda que a outros mundos. Temos, portanto, o modo de ser histórico da literatura
com que faz que ela pertença à literatura universal. 291
Com tudo o que foi dito até então sobre a literatura, encontramo-nos diante de um
ponto central na reflexão gadameriana sobre esta. O conceito de literatura é muito mais amplo
que o da obra de arte literária, devido à linguagem; em que ambas acedem à escrita, o que dá
286
GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I: Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 2007,
p. 226.
287
“Em nenhuma parte como na arte lingüística se promove tão claramente a colaboração do receptor. A leitura é
por ele a forma mais autêntica e representativa na que se faz evidente a participação do receptor na arte.”
(tradução livre do autor) (CARSTEN, Dutt. En conversación con Hans-Georg Gadamer (HermenéuticaEstética-Filosofía Práctica). 1998, p. 78)
288
GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I: Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 2007,
p. 226-7.
289
Ibid., p. 227.
290
É interessante saber que quando, mais adiante em Verdade e método, Gadamer apresenta os traços de sua
hermenêutica filosófica, ele exemplifica-a com o conceito de clássico. Este, sendo um modo característico do ser
histórico, a realização histórica da conservação que torna possível a existência de algo verdadeiro, compreendido
por Gadamer da seguinte maneira: “é clássico aquilo que se mantém frente à crítica histórica, porque seu
domínio histórico, o poder vinculante de sua validez que se transmite e conserva, precede toda reflexão histórica
e se mantém nela.” (GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I: Traços fundamentais de uma hermenêutica
filosófica. 2007, p. 381)
291
GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I: Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 2007,
p. 228.
92
101
o sentido mais vasto da literatura.292 Então, o modo de ser da obra de arte pode ser aplicado
para este sentido mais amplo de literatura? Em outras palavras, a valência ontológica está
reservada somente à obra de arte, e assim as obras de arte literárias, ou a toda realidade
literária? E quanto às obras científicas em relação às das ciências do espírito, há um limite
preciso?
Para a consciência estética isso é evidente na medida em que o que ela prima é
pela qualidade de sua formulação e não do significado do conteúdo. Como Gadamer descarta
esta consciência, ele mostra que o que há em comum entre uma obra poética e os demais
textos literários é “[...] ela nos fala a partir do significado de seu conteúdo. Nossa
compreensão não se volta especificamente para o resultado da forma que lhe convém como
obra de arte, mas para o que nos diz.” 293 Nesse sentido, já não é fundamental tal
diferenciação, mesmo com a certeza das diferenças lingüísticas, pois estas assim o são na
“diversidade da pretensão de verdade de cada uma delas” 294, apesar da profunda comunhão de
se darem na linguagem que expressa o seu significado.
Em todo o caso, há uma confluência entre a arte e ciência vista pelo fenômeno da
literatura. O modo de ser da literatura, pois, impõe uma tarefa específica para o transformar-se
em compreensão, devido a algo de peculiar e incomparável. 295
Não há nada que possua um caráter espiritual tão puro quanto à escrita e
nada depende tanto do espírito empreendedor como ela. Em seu
deciframento e interpretação dá-se um verdadeiro milagre: a transformação
de algo estranho e morto em um ser absolutamente familiar e coetâneo. [...]
Quem sabe ler o que foi transmitido por escrito atesta e realiza a pura
atualidade do passado.296 (grifo nosso)
Sendo assim, a intenção de Gadamer é a de mostrar que por detrás do conteúdo de
um texto está implicado alguém que compreende, uma compreensão. Da mesma forma que a
obra nos mostra na sua ontologia que a representação tem como parte de si o espectador, o
texto só vive por que alguém o compreende. Agreguemos, então, a conclusão gadameriana
acerca da literatura:
Por isso, a despeito de todas as fronteiras traçadas pela estética, o conceito
mais amplo da literatura se aplica também ao nosso contexto. Assim como
pudemos mostrar que o ser da obra de arte é um jogo que só se cumpre na
sua recepção pelo espectador, pode-se dizer também dos textos em geral que
292
GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I: Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 2007,
p. 228.
293
Ibid., p. 229.
294
Ibid., p. 229.
295
Ibid., p. 229.
296
Ibid., p. 230.
93
102
a reconversão de um traço morto em sentido vivo só se dá pelo ser
compreendido. 297
Nisto está a posição limite da literatura, ela nos mostra as fronteiras da estética
ante a compreensão hermenêutica. O que faz com uma letra morta que não tinha vida o tenha
a partir do contato com alguém que a compreende? A compreensão faz parte do acontecer do
semântico de todo texto, assim como à obra de arte? Não é a compreensão que está
implicada? Assim, a interrogação de Gadamer é a seguinte: “[...] será que o compreender faz
parte do acontecer semântico de um texto, como o fazer com que se torne audível faz parte da
música?”298
Neste sentido, entra em campo a hermenêutica, disciplina clássica que se ocupa da
arte de compreender textos. Da mesma forma que o que se percebeu com a crítica à
consciência estética foi um deslocamento do problema da estética, assim também o problema
hermenêutico deverá ser posto de forma que ele conta da compreensão da esfera da arte e de
sua problemática, ou seja, não reduzirá à interpretação de textos. Inversamente falando, “a
estética deve subordinar-se à hermenêutica. [...] A compreensão deve ser entendida como
parte do acontecimento semântico, no qual se forma e se realiza o sentido de todo o
enunciado, tanto os enunciados da arte quanto os de qualquer outra tradição.” 299 (grifo no
original)
Em Verdade e método chegamos à proposição de que a estética deve submeter-se
à hermenêutica, isto significa que a compreensão onto-hermenêutica abarcada na sua
ontologia da obra de arte, vislumbra a questão hermenêutica, pois a compreensão é também
um momento constitutivo na experiência e verdade de uma obra de arte, ela está como
condição de possibilidade para a experiência artísitca. Quanto ao desenvolvimento seqüente
na obra, refere-se, Gadamer, à colocação da tarefa hermenêutica pelo fenômeno da arte, pois
ela não sendo passado, supera a distância dos tempos por meio da presença de seu próprio
297
GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I: Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 2007,
p. 230.
298
Ibid., p. 230. Em outro livro, feito a partir de uma entrevista de Dutt Carsten com Gadamer, nosso autor dirá:
“Más bien afirmo que uma obra de arte, em virtud de su calidad configuradora, nos dice algo mediante lo cual se
plantean preguntas o también se responden preguntas. Una obra de arte ‘dice algo a alguien’: esto no es un modo
de hablar vacuo, sino una expresión que se introduce siempre, y no sin motivo, en la comunicación que produce
entre nosotros el encontro con las obras de arte, y que designa con mucha exactitud la realidad de la experiencia
del arte que queda ensombrecida bajo las abstracciones de la estética del sentimiento. Una obra de arte ‘dice algo
a alguien’: en ello reside la perpejidad producida por lo dicho y la tarea de repensar lo dicho una y otra vez con
el fin de hacerlo comprensible para uno mismo y para los demás. Por tanto quiero que quede claro: la
experiencia del arte es un producto de la comprensión. En esa medida, la estética acaba de hecho en la
hermenéutica. (CARSTEN, Dutt. En conversación con Hans-Georg Gadamer (Hermenéutica-EstéticaFilosofía Práctica). 1998, p. 78)
299
GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I: Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 2007,
p. 231.
94
103
sentido. Isso porque a hermenêutica deve sua função central à consciência histórica no âmbito
das ciências do espírito. Assim, entramos no problema histórico de uma obra de arte, que nos
remete a um problema hermenêutico. Nesse sentido, os conceitos de reconstrução e
integração, de, respectivamente, Schleiermacher e Hegel, são a resposta gadameriana a tal
questionamento. Destarte, nossa reflexão se atém à ontologia da obra de arte e este
desenvolvimento hermenêutico-histórico posterior não está dentro da nossa proposta de
pesquisa. Com isso, sugerimos que seja feito um trabalho ulterior que abarque a verdade
manifestada no fenômeno da história.
À guisa de término deste capítulo, a Ontologia da obra de arte é resposta à
consciência estética da formação estética do século XIX, cujos seus conceitos de gênio e de
arte vivencial não eram capazes de dar conta do fenômeno da arte em sua verdade. Assim,
podemos ver que o caráter lúdico do jogo, apresentou-nos o modo de ser do jogo da arte que é
a representação, que abarca tanto aqueles que representam (os quais “fazem as vezes”) como
também os que são espectadores. Conseguintemente, o espetáculo é a consumação daquilo
que chamamos de transformação em configuração, o que significa que houve uma mudança
total, chegou-se à arte, a um mundo próprio cheio de sentido e significado, que transforma a
todos que estão em seu jogo. É transformação porque, no final das contas, o que se tem é o
retorno ao verdadeiro ser, pois na representação surge o que é. É configuração, no sentido de
que não é um objeto com que se depara, mas uma coisa, porque está-aí. E, por estar aí,
configura-se um mundo com sua verdade e seu sentido. Nesse sentido, encontramos a
mimesis. Com ela aprendemos que na representação reconhecemos não algo que havia sido
conhecido antes, mas reconhecemos a essência do que é representado. Assim, podemos
questionar, este retorno ao verdadeiro ser, em cada transformação em configuração de cada
representação não se converte na verdadeira formação-educação, que cria civilização como
crescimento do ser em cada ente, de forma especial no ente humano?
Também, diante da mudança da representação no tempo e nas circunstâncias,
pudemos refletir sobre a temporalidade da obra de arte. Em sua temporalidade podemos
perceber algo de a-temporal, ou seja, algo que é simultâneo. Então, o que explicou-nos sua
temporalidade foi o conceito de festa, em que se celebra algo porque chegou seu dia, está aí,
devido à sua origem. À isso contém o assistir, pois quem assistiu algo verdadeiramente pôde
conhecer em conjunto o que foi o que assistiu por causa da sua participação. Dessa maneira,
temporalidade da festa vai ao encontro daquilo que é a temporalidade da obra de arte, pois
95
104
pela representação o representado se torna atual, mesmo se sua origem for muito remota e
ocorram diferenças na hora de se representar uma mesma coisa.
Diante disso, Gadamer, questiona-se se perante a representação não estamos
diante da universalidade do ser estético. Dessa forma, ao confrontar o caráter ontológico do
jogo da arte como representação com a imagem, o ocasional e o decorativo, e a literatura,
Gadamer busca esta universalidade. Com a imagem – e com ela o conjunto da arte não
dependente de reprodução –, percebeu-se que sua cópia tem a função remeter ao copiado, já a
representação da imagem mostra que há um crescimento do ser na medida em que é
representação do original. Conclui-se então que ela é um processo ontológico na qual o ser se
torna visível e pleno de sentido. Com o ocasional e com o decorativo, fenômenos que entram
para discussão estética quando a consciência estética se mostra insuficiente – destaquemos
respectivamente o caso do portrait e da arquitetura com o ornamento –, concluímos que,
primeiro, o ocasional propicia à obra de arte determinações novas em cada vez que é
representada, as quais escapam da sua pretensão de sentido de uma obra; segundo, como isso
se identifica com a imagem, e sendo o portrait um caso da valência ontológica da imagem,
sua essência está entre o sinal e símbolo, isto é, representa por meio do incremento de
significado que proporciona; terceiro, a arquitetura representa de tal forma que ela acena para
o mundo de onde vem e arrasta a histórica consigo e o decorativo faz parte da representação
do que é ornado. Já com a literatura, aprendemos que ela nos aponta para o problema
hermenêutico da compreensão da obra de arte como um acontecimento semântico, no qual se
forma e se realiza o sentido do seu enunciado.
Portanto, a ontologia da obra de arte, significa que uma obra de arte não existe
nunca no caráter subjetivo e absoluto da consciência estética. Ela é uma experiência da
finitude humana, que traz consigo passar pelo perigo de um outro mundo, nisso reside o
caráter cognitivo e moral. “La intimidad con que nos afecta la obra de arte es, a la vez de
modo enigmático, estremecimiento y desmoronamiento de lo habitual. No es sólo el ‘ese eres
tú’ que se descubre en un horror alegre y terrible. También nos dice: ‘¡Hás de cambiar tu
vida!’”300 (grifo nosso) O entrar no jogo da obra de arte é pura interpelação, seu significado
nos transforma e põe diante de nós mesmos, do nosso verdadeiro ser.
300
“A intimidade com que nos afeta a obra de arte é, à vez, de modo enigmático, estremecimento e
desmoronamento do habitual. Não é somente o ‘esse és tu’ que se descobre em um horror alegre e terrível.
Também nos diz: ‘Tens de mudar tua vida’” (tradução livre do autor) (GADAMER, Hans-Georg Gadamer.
Estética y hermenéutica. 2006, p. 62)
105
CONCLUSÃO
Para a conclusão deste trabalho monográfico, é importante saber qual a questão
que serviu de pano de fundo para a qual este trabalho procurou responder. Como se dá a
necessidade da ontologia da obra de arte a partir da crítica à formação estética, segundo a
ótica gadameriana? O que está implicado neste questionamento? Para isso, objetivou-se
averiguar como a formação estética é decisiva para que a ontologia da obra de arte seja dada;
ainda, compreender como se chegou à formação estética e todo o seu alcance, apreender a
necessidade de se assimilar em que consiste a ontologia da obra de arte em Gadamer.
Percebe-se que o texto pôde responder a tais indagações e confirmou a nossa
hipótese de que a ontologia da obra de arte é proposta para se explicar e entender a verdade de
uma obra de arte, perante a insatisfatoriedade da formação estética
Nesse sentido, a maior dificuldade desta pesquisa foi a dificuldade de
compreensão diante da complexidade do pensamento deste autor.
Quando Gadamer parte da problemática do método das ciências da natureza
imposto às ciências do espírito, ele mostra que esta questão acaba estendendo-se à arte. A
volta à tradição humanística, é um caminho de regresso à tradição, cujo caráter de
cientificidade das ciências humanas deve ser compreendido e investigado, justamente pela sua
resistência às exigências da vida moderna. Mas o que acabou se firmando foi a subjetivação e
estetização dos conceitos humanísticos, tendo em Kant o marco divisor de águas.
O juízo, o gosto e sensus communis perdem sua moralidade e sua função de
conhecimento. O que se perde, portanto, é sua pretensão de verdade. Na Crítica da faculdade
de juízo, Kant busca o a priori no que se refere às questões de gosto. O juízo passa a se
restringir somente ao juízo estético. Dessa forma, o que se tem é o juízo de gosto ou estético,
o qual é a adequação da representação do objeto às nossas capacidades cognoscitivas,
produzindo o prazer, o agrado – chamado belo. Assim, o juízo de gosto funda comunidade,
pelo fato de ele ser universalmente comunicável aos outros. O que faz com que o gosto seja o
verdadeiro sensus communis.
No entanto, a intenção gadameriana em dispensar sua atenção à beleza livre e
dependente, o ideal de beleza e o problema do interesse pelo belo na natureza e na arte, está
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em acertar as contas com Kant e indicar que a fundamentação da arte que está no conceito de
gênio. A beleza livre e dependente, como foi visto, possuem ambos um certo conceito, o que
desmascara o juízo de gosto puro. O ideal de beleza – o qual está radicado na expressão do
ético e valida a arte – mostra que o belo que, segundo a demonstração kantiana, agrada sem
conceituação, não impede o interesse pela beleza e que nos atinja significativamente. De tal
modo, Kant ao reconhecer o interesse pelo belo diz sê-lo a priori e não empiricamente, cuja
primazia está no belo na natureza e não na arte, porque além de o belo na natureza ser
expressão do juízo estético puro, nele não se encontra “fins em si”, mas sinaliza que o homem
é o fim último, o objetivo final da criação, diferentemente da arte, que só está aí para nos
interpelar e sua pretensão moral é mediata. A vantagem do belo artístico, porém, é justamente
a carência encontrada no belo natural, a expressão de um conteúdo bem determinado, apontou
Gadamer. Assim, para Kant, a arte é a representação de idéias estéticas, ultrapassa todo o
conceito e toda questão de representação acadêmica. Para fundamentar, então, a arte, o que
vêm ao encontro é o conceito de gênio, que é uma força da natureza e representa as idéias
estéticas. Kant dá a precedência ao conceito de gosto por este determinar o ponto de vista de
beleza no gênio – entretanto, lembremo-nos de que Gadamer demonstra que há uma mútua
relação entre o gosto e gênio –, mas seus sucessores deram preferência ao gênio, fugindo,
assim, de sua intenção transcendental.
A estética do gênio, então, assume as rédeas. O próprio Kant possibilitou tal
transladação devido a certas “brechas” que ele mesmo deixou. Schiller representa muito bem
esta nova situação com sua “educação estética”. A razão desta guinada está no ligame do
gênio à natureza e, assim, a arte é fruto da criatividade genial e ela se torna o princípio
transcendental de toda a estética. Também, o propósito kantiano de fundar o julgamento
estético sobre o a priori subjetivo do sentimento da vida, permitiu ao neokantismo forjar o
conceito de vivência tomando-o como fundamento gnosiológico de toda consciência objetiva.
A concepção kantiana da “elevação do sentimento vital” no prazer estético permite o próprio
desdobramento do conceito de gênio para um conceito de vida em seu caráter mais
abrangente.
De fato, Gadamer identificou que há certa correlação entre o conceito de vivência
e o modo de ser do estético, no sentido de que a vivência enquanto unidade de sentido está
referida no todo da vida. Mas o limite da vivência estética na sua pretensão que a separa de
todo contexto do real, já que a obra de arte constitui um mundo para si. Mas sob seu olhar
crítico, o propósito da experiência de arte não é ser compreendida como vivência humana; isto
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não corresponde à sua destinação. A disposição artística de formas e maneiras fixas de dizer,
faz com que uma obra de arte seja obra de arte.
Nesse sentido, os conceitos de símbolo e alegoria foram antagonizados pelos
conceitos de gênio e vivência estética, devido ao fundamento da “liberdade da atividade
simbolizadora do ânimo”. Mas quando se reconhece que há a sobrevivência de uma tradição
mítico-alegórica, percebemos que fica relativizada tal oposição e problematizada tanto a
consciência estética quanto o conceito da arte.
O imperativo Comporta-te esteticamente! de Schiller, constitutivo da formação
estética, teve como produto a consciência estética, definida pela capacidade de distinguir a
intenção estética de tudo aquilo que não é estético – a distinção estética. Tal formação estética
pela arte acabou se tornando uma educação para a arte – entendida como aparência e esta se
oporá à realidade prática. Entretanto, além do artista perder seu lugar no mundo e este se
converter em um novo redentor, a pretensão de universalidade fracassa com a desagregação
em comunidades promovida por ele.
Ademais, Gadamer aplica à consciência estética a crítica desenvolvida à noção de
percepção pura, retomada por Heidegger. Dessa forma, não se trata de reduzir os fenômenos a
meras abstrações, mas de recuperar o conteúdo significativo da obra de arte. O conteúdo
objetivo que permanece sempre vinculado à obra. Sendo assim, tanto o conceito de gênio
como a vivência estética não podem fazer jus à verdade da arte; visto que, no primeiro o que
se tem é o ponto de vista de quem está observado tanto o gênio que cria como sua obra criada
e, no segundo, a uma absoluta descontinuidade e pontualidade. Nesse sentido, faz-se
necessário perguntar pelo modo de ser da obra de arte – a ontologia da obra de arte –, pois
isso significa que obra mostrar-se-á a partir dela mesma e não do ponto de vista do sujeito, do
externo.
Para isso, Gadamer parte do caráter lúdico do jogo, o qual apresentou-nos o modo
de ser do jogo da arte, isto é, a representação. Representação que inclui tanto aqueles que
representam, os quais “fazem as vezes”, como também os espectadores. Desse modo, o
espetáculo é a consumação daquilo que chamamos de transformação em configuração, o que
significa que houve uma mudança total naqueles que representam e nos que assistem, pois
visam o conteúdo de sentido do jogo que se representa. É transformação porque a mudança
que ocorreu foi total, tornou outra coisa, é o verdadeiro que subsiste. O que se tem é o retorno
ao verdadeiro ser, pois na representação surge o que é. Já é configuração, no sentido de que é
uma coisa com que se depara, porque está-aí. O que acontece é que se configura um mundo
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com sua verdade e seu sentido. Num sentido cognitivo, temos a mimesis: na representação
reconhecemos não algo que havia conhecido antes, porém reconhecemos a essência do que é
representado.
Gadamer, ao tratar da temporalidade, assim ele o faz em razão da mudança que
ocorre com a representação mesma, no decorrer do tempo e das circunstâncias. Em sua
temporalidade podemos perceber algo de a-temporal, ou seja, algo que é simultâneo. Destarte,
vem ao encontro o conceito de festa. Celebra-se algo porque chegou seu dia, está aí, devido à
sua origem. Implicitamente à festa tem-se o assistir, pois quem assistiu algo verdadeiramente
pôde conhecer em conjunto o que assistiu, devido a sua participação. Igualmente, então, a
temporalidade da festa se identifica com a temporalidade da obra de arte, pois o representado
só se torna atual pela representação, mesmo quando sua origem for muito remota e ocorram
diferenças na hora de se representar uma mesma coisa.
A pretensão de Gadamer, diante disso tudo, é a de que a representação seja
universal. Para isso, confronta o caráter ontológico do jogo da arte como representação com a
imagem, o ocasional e o decorativo, e a literatura. Com a imagem – e com ela o conjunto da
arte não dependente de reprodução –, percebeu-se que a cópia tem a função remeter ao
copiado, como também a representação da imagem mostra que há um crescimento do ser na
medida em que é representação do original. Conclui-se, então, que ela é um processo
ontológico na qual o ser se torna visível e pleno de sentido por meio da imagem. Já o
ocasional e o decorativo, fenômenos que entram para discussão estética quando a consciência
estética se mostra insuficiente – destaquemos respectivamente o caso do portrait e da
arquitetura e do ornamento –, concluímos que o ocasional favorece à obra de arte novas
determinações toda vez que é representada, escapando da pretensão de sentido em que a obra
tinha antes de ser representada. Nesse sentido, como isso se identifica com a imagem, e sendo
o portrait um caso da valência ontológica da imagem, sua essência está entre o sinal e
símbolo, isto é, representa por meio do incremento de significado que proporciona. A
arquitetura, ainda, representa de tal forma, que ela acena para o mundo de onde vem e arrasta
a histórica consigo, cujo decorativo faz parte do seu ser, lhe está vinculado.
Com o caso-limite da literatura, o problema hermenêutico da compreensão da
obra de arte se mostrou como um acontecimento semântico, no qual se forma e se realiza o
sentido do seu enunciado. Concluímos que, da mesma forma que a crítica da consciência
estética nos levou a um deslocamento do problema da estética, da mesma forma a
hermenêutica deverá dar conta do problema da compreensão não somente à interpretação de
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textos, mas à esfera da arte e de sua problemática. Logo, a estética deve-se submeter à
hermenêutica.
Portanto, a ontologia da obra de arte, significa que uma obra de arte não existe
nunca no caráter subjetivo e absoluto, não é numa consciência estética que está a verdade da
obra de arte. O entrar no jogo da obra de arte é pura interpelação que nos transforma e põe
diante de nós mesmos. Nesse sentido, cabe-nos tanto o aspecto moral quanto a função de
conhecimento. É um mundo que nos transforma, possibilitando o regresso à verdade do nosso
próprio ser.
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