Ípsilon - Público, 22 Fevereiro 2013

Transcrição

Ípsilon - Público, 22 Fevereiro 2013
ID: 46297015
22-02-2013 | Ípsilon
Tiragem: 40595
Pág: 19
País: Portugal
Cores: Cor
Period.: Semanal
Área: 20,82 x 30,07 cm²
Âmbito: Informação Geral
Corte: 1 de 1
SARA RAFAEL
Raspando A
o silêncio
com Filipe
Felizardo
Num mundo de
pressas, Filipe
Felizardo procura
com a sua guitarra
a lentidão mais bela
e mais inútil — a da
arte. Concerto terçafeira no Teatro Maria
Matos, em Lisboa.
Pedro Rios
velha ideia da Terra oca. A
existência de universos paralelos. Um sítio do Universo onde não há universo.
A visão do mundo de uma
avestruz. Todas estas coisas passam pela cabeça de Filipe
Felizardo, artista visual e guitarrista
em ascensão na paisagem experimental portuguesa. Com elas, reivindica uma “lentidão” em ruptura
profunda com o mundo apressado
e da utilidade.
“Ao perceber como o mundo funciona, podes avariar um bocadinho
as coisas”, diz-nos Filipe, um “gajo
extremamente apaixonado” que se
apresenta na próxima terça-feira no
Teatro Maria Matos, em Lisboa, com
Margarida Garcia (contrabaixo eléctrico) e Riccardo Dillon Wanke (sintetizador). Curiosa forma de enciclopedismo, a deste artista de 27
anos com uma paixão por física
quântica e outras matérias habitualmente esotéricas para quem se
formou em cinema. “São leituras
que vêm de ter estado a trabalhar
seis anos da meia-noite às oito da
manhã. Felizmente, o ordenado
dava-me para comprar um livro de
cada vez que acabava de ler outro.”
E assim sendo...: “Falaste em enciclopedismo, pode ser um bocado
isso. É uma paixão enciclopédica,
sempre em busca de referências que
interessam, seja para o trabalho de
artes visuais, seja para uma metafísica do dia-a-dia. A Terra ser oca, as
coisas estarem num abismo, seja
social ou metafísico… isso não me
dá soluções, não me oferece conceitos completamente delineados, mas
ajuda-me a ilustrar poeticamente as
coisas que faço”, explica.
Há nisto um elogio do inútil, do
bom velho conhecimento, mas, mais
importante, uma reivindicação de
um tempo para criar. “A nossa vida
é pequenina, mas é maravilhosa
porque podemos enriquecê-la com
a coisa mais estapafúrdia possível”,
afirma Filipe.
Desenho, fotografia e instalação
à parte, é com a guitarra, que aprendeu a tocar em miúdo, que Filipe
procura o seu ritmo — lento. “Essa
lentidão obtém-se no tempo musical, no tempo contemplativo, que
são os maiores pequenos prazeres
que consegues na tal vida pequenina.”
Rumo ao esqueleto
Nos últimos anos, tornou-se habitual vê-lo em formações, regulares ou
ad-hoc, ou sozinho. A discografia a
solo começou com Övöo e lII=207.8°,
bII=−56.3° (as coordenadas do ponto
do Universo onde pode haver um
grande vazio), álbuns feitos de camadas e camadas de guitarra, orquestradas por via de loops e pedais
de efeitos. Com Guitar Soli for The
Moa and the Frog (2012), mudou o
rumo: ei-lo a fazer blues lentos, espectrais, na linha do John Fahey
eléctrico e de Loren Connors.
“Há dois anos, pensava que o que
fazia era minimalismo, mas na verdade eram discos maximalistas,
uma coisa maciça de acumulação e
acumulação. Ouves um disco dos
mais recentes do John Fahey e ele
faz o fingerpicking e os blues com o
esqueleto da canção e tu ouves o
estritamente necessário para que
aquilo seja a coisa mais bonita, dolorosa e exímia tecnicamente”, conta.
Fahey levou-o por ali, mas também foi conduzido por outros pensadores do som. “Li coisas do Dylan
Carlson [guitarrista dos Earth] a dizer que o drone pode estar numa
nota quando a deixas soar e ficas a
ouvir os harmónicos a pairarem”,
diz. “Ouves o Keith Richards a tocar
depressa — ele não toca muito depressa, o que é fixe — e o facto de
estares a curtir uma nota no meio
de um grupo de dez faz-te mentalmente separá-la de tudo o resto.
Mesmo que a música continue a decorrer, tu estás a ouvi-la sozinha no
espaço, estás a ouvi-la sozinha no
silêncio”. A lentidão é também fruto de uma contingência: “Como não
sou um guitarrista exímio, é assim
que consigo saborear as notas e descobrir qual é o pathos que há numa
progressão de notas.”
Felizardo segue esta linha em dois
novos discos a serem editados nas
próximas semanas (Volume II, na
Wasser Bassin, e Volume III — Sede e
Morte, na 8mm). “Sinto-me bastante produtivo. Mudei de vida. Trabalhava à noite — era vigilante num
parque de estacionamento — e consegui tornar-me professor de guitarra. Por isso, agora ando sempre com
uma guitarra atrás de mim. Estou a
praticar mais e a saborear o facto de
começar a conhecer melhor o instrumento”, explica.
Em Volume II — Sede e Morte (um
LP de um só lado com edição agendada para Março), fez versões livres
de Oh well, de Peter Green, Canção
de embalar, de José Afonso, e Poor
boy long way from home, de Fahey,
esta última dedicada a cinco guitarristas portugueses: Manuel Mota,
Pedro Gomes, Luís Lopes, Norberto
Lobo e Bruno Silva. “Vê-los e ouvilos nos últimos anos aqui em Lisboa
é uma educação, caraças! São cinco
guitarristas, cada um com a sua cena, com a sua linguagem, com as
suas idiossincrasias.”
Felizardo sabe que integra uma
linhagem de guitarristas, de Fahey
a Manuel Mota, para quem o silêncio
e o tempo entre duas notas são tão
ou mais importantes do que é dito.
Foi para aí que que apontou na hora
de preparar o concerto de terçafeira no Maria Matos. “Ao [compositor japonês] Toru Takemitsu não
interessava o silêncio, nem o som
tocado; era mais o intervalo entre o
som não tocado e o som tocado, o
raspar da palheta nas cordas, porque é a quebra do silêncio para a
música per se. Disse-lhes [a Margarida Garcia e Riccardo Dillon
Wanke]: ‘bora lá dilatar esse instante no tempo, com muita intensidade
poética e muita intensidade física,
do som… explorar esse grande raspar do silêncio para a música.”

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