Papoulas no Inverno_Antonio Marlon Matos Rios

Transcrição

Papoulas no Inverno_Antonio Marlon Matos Rios
PAPOULAS NO INVERNO
“O amor é um grande laço, / um passo pr’uma armadilha”
(Djavan)
Sentado, com o pescoço recaído sobre os joelhos, ele observava a labuta das
formigas que se encontravam próximas. Elas, que eram sempre são tão milimetricamente
perfeitas em sua marcha lenta e certa como o próprio tempo, destoavam do homem envolto
em nuvens espessas de pensamentos e tristezas. Sentia-se só, mais isso já não mais o
incomodava. Estava suficientemente embriagado de si mesmo e de todo aquele mundo
insano que ele, em sua mais perfeita teimosia, cismava em mergulhar em reflexos de
pensamentos ora disformes pela própria angústia que sentia, ora precisos como um bisturi a
rasgar a carne da própria vida. Sentia-se só porque já não contava com ninguém além de si
mesmo. Todos eram por demais alheios para entendê-lo profundamente como ele queria.
Tudo a sua volta era sensibilidade pura e isso cada vez mais o afastava das coisas que se
encontravam ao redor de si. Viravam veredas de uma mata densa que o fazia perder-se.
Como uma flor em botão, uma lágrima aponta no solo ressequido de seu rosto.
Nela encontrava-se o metal forjado de seus mais recônditos sonhos e desesperos: sempre
um tapa que não fora dado, um beijo que não for alcançado ou um grito, como o de uma
ave de rapina, porque achava as aves de rapina tão belas e livres... tão donas de si... tão
absortas em seu próprio vôo. Talvez devesse gritar agora que tudo já havia sido carregado
pelas mãos das estações... agora que J. não passava de um nome em sua memória preso a
ferro quente, como seu avô fazia quando, ainda menino, ia visitá-lo no pequeno sítio e o
vira fazer com um boi que acabara de comprar. “Rêeeeee boi!” Vem a voz do velho, fio de
Ariadne enovelando um homem tão cheio de ventos e tempestades. Talvez devesse gritar
agora que a sua infância trazia muitas rugas na face e que ele era a própria imperfeição
diante da vida.
Lembrou-se vagamente do quadro “O Grito” de Munch, vira-o certa vez num
álbum sobre arte contemporânea que seu professor levara para sala há muito. Via aquelas
cores fortes misturadas com um tom negro e sombrio bailando em seus olhos e aquelas
figuras negras que mais lembravam a morte. Pensou que poderia ser aquela figura
fantasmagórica com as mãos sobre a própria face a gritar na tela um silêncio estrondoso,
um silêncio inaudível mas capaz de estilhaçar almas como a sua.
“Você me lembra uma papoula” ouviu certa vez de J.. Ria-se agora de um riso
que era misto de vazio e esperança, como se do ventre da solidão se parisse uma centelha
de luz. Lembrava-se que J. gostava de, de quando em vez, brincar com seu excesso de
erudição fazendo comentários como esse, citações soltas e, segundo o próprio J., poéticas .
Rira muito desse comentário porque ele não via algo muito palpável em J. que justificasse
tal frase, e disse, como uma bailarina diz com o corpo que aquela música é possível de ser
dançada das mais diferentes formas: “ Talvez seja porque papoula lembre ópio. Você gosta
tanto de ervas assim. Talvez nós sejamos papoulas, você pela substância e eu pelo seu
efeito, pelas alucinações tão intensas, mas ao contrário de você, não preciso de algo para
desencadear meu urro perante a vida. A vida já é por demais alucinógena pra mim.”
Houve um silêncio repentino por perceberem que seus diálogos iam levá-los
por caminhos tortuosos e pedregosos. J., após longa pausa, irrompe falando como se
pudesse preenche as fissuras de silêncio emaranhadas naquele quarto: “Somos papoulas
pela própria sonoridade da palavra e pela soberania que ela traz. Já percebeu como
pronunciar papoula enche a boca? Pois a pronuncio, pronunciando-a tenho a sensação de
que minha boca enche-se de você e de mim. E nos engulo sem mastigar, assim como as
hóstias que tomava quando criança e os mais velhos diziam que era pecado quebrá-las com
os dentes. Somos por demais sagrados para quebrarmo-nos e me embriago de ti e de mim a
cada instante que te vejo... papoula. Papoula. Pa-pou-laaaa” – repetiu vagarosamente –.
Beijaram-se, fizeram amor mais uma vez...
Era inverno e de repente começava a chover uma chuva fina e gélida. Ele
amava J. e também sabia que J. o amava. Retornaram ao silêncio do quarto ouvindo o
tilintar da chuva lá fora. Uma chuva que tornava tudo ainda contido, represado, como se
ambos estivessem fechados em si mesmo a ruminar suas palavras, sua história, seu nada.
Percebeu que uma das formigas que se encontrava próxima ao seu pé carregava
uma folha por de mais pesada para seu tamanho, mas que na sua sede para armazenar
comida, na sua certeza instintiva de que era preciso suportar, ela teimosamente arrastava-a.
Seguiu com os olhos toda da a via crucis da formiga até perceber que outra se aproximou e
ajudou-a a carregar a folha o restante do percurso. “Carreguei sempre um peso em mim...”
pensara rapidamente.
O sol estava intenso e o dia de uma brancura sufocante, assim como era vórtice
de sensações que experimentava em seu labirinto de memórias. Vez por outra passava uma
brisa que o abraçava e dissipava um pouco o torpor que sentia. Sua cabeça pesava cada vez
mais e já nem sabia como lidar consigo.
“Posso colocar Djavan ?” perguntou em meio a chuva que pouco a pouco ia
morrendo.
“Of curse” Respondeu J. meio seco.
A música invadia o quarto tornando tudo mais leve e paradoxalmente mais
intenso. Eles olharam-se e ameaçaram um sorriso. “Adoro ver seu corpo assim nu” disse
quase que sussurrando. Sentou-se ao lado de J. . Abraçaram-se.
A brisa trazia consigo um cheiro distante, um cheiro que seu corpo já conhecia
numa certeza absoluta, numa certeza secular como se naquele cheiro viesse também seu
universo, sua existência... Ah! O vento e seus cheiros! O ar quente da tarde era perfumado
de um mistério escondido nas pétalas do tempo.
A porta do quarto em que se encontravam é arrancada fora, ouve-se um baque
ensurdecedor. Os braços enlaçados nos corpos são desfeitos quase que inconscientemente,
maquinalmente. Berros e gritos são semeados. “Não Pai!”.
Um tapa. J. cai.
“Desgraçados!”. Outro tapa. Mãos convulsivas rodopiam no ar movidas pela cólera,
movidas pela negação das coisas. Gestos e xingamentos são jogados para fora do corpo
com se cada um vomitasse a sombria e enevoada verdade que permanecia velada.
Lágrimas. A chuva retoma sua cantilena delicada. Naquele quarto, todo coração humano
estava animalizado e todo animal enjaulado foi posto pra fora, subiu à epiderme como
defesa, como forma primária de arranhar e ferir uns aos outros, como forma de
sobreviverem ao naufrágio que se cumpria a saliva e sangue. Ouve-se um tiro, mais um tiro.
J. era apenas um corpo inerte.
“O amor e a agonia cerraram fogo no espaço...” o som ao longe de tudo
desenhava agora outro lugar, parecia um sonho dentro de um sonho, parecia que uma
pitonisa estava falando pela voz de alguém... Aos pouco esse som, hera de cerca – viva que
toma o ambiente, vai embalando um cenário que lhe desdiz. Nele há um homem soturno
chorando convulsivamente com uma arma na mão e outro que, ajoelhado, mal consegue
acreditar no que vê. Tudo parece disforme, tudo parece irreal demais pra seus olhos, pra sua
alma.
Longinquamente lembra-se daquilo como se não tivesse sido consigo, como se
fosse as velhas histórias que seu avô contava e que pareciam vir de um lugar que não se
podia precisar nem onde, nem quando. Escreveu no chão: papoula. Numa grafia que
teimava em sair incerta e irregular como a decisão que havia tomado.
Levantou-se, subiu na velha mangueira, refúgio na época de sua meninice,
esmagando o caminho que as formigas percorriam, esmagando seu próprio caminho.
Enlaçou a corda ao pescoço e mergulhou no ar abraçando a luz quente do sol, abraçando
suas reminiscências, abraçando o infinito... e definhando enquanto papoula.

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