"A GASTRONOMIA, VALE O PASSEIO ? Entre os dias 27 e 28 de
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"A GASTRONOMIA, VALE O PASSEIO ? Entre os dias 27 e 28 de
"A GASTRONOMIA, VALE O PASSEIO ? Ana Paula Senn ‐ [email protected] Mestranda em C. Históricas, Espec. Hist. e Culturas da Alimentação IEHCA‐ Universidade François‐Rabelais ‐ Tours ‐ França Entre os dias 27 e 28 de novembro de 2009, o Instituto Europeu de História e Cultura da Alimentação, sediado na cidade de Tours, na França, promoveu o V Encontro François-Rabelais. O evento faz parte do Forum Alimentação e Cultura, um quadro maior de acontecimentos que se desenvolve ao longo de todo o ano em Tours, e que tem como objetivo principal estimular o diálogo entre universitários, intelectuais e a comunidade sobre a questão cultural e patrimonial da alimentação. O Encontro François-Rabelais acontece desde 2005 sempre entre os meses de novembro e dezembro e na sua quinta edição trouxe para o debate o tema “A gastronomia vale o passeio?“, quer dizer, a gastronomia enquanto produto cultural regional pode se tornar o fator que motiva e estimula a atividade turística? Inseridas nesse questionamento global, muitas outras discussões foram levantadas e debatidas em mesas redondas e ateliês dos quais participaram pesquisadores, jornalistas, profissionais e educadores cujos trabalhos e projetos estão, de uma maneira ou outra, ligados ao turismo e à gastronomia. Nesses dois dias de evento, opiniões convergiram e divergiram no intuito de estabeler um elo entre a gastronomia e o turismo, elementos intimamente arraigados à identidade cultural da sociedade francesa. A fim de firmar o diálogo entre esses dois aspectos, não ha ponto de partida mais coerente do que situá-los no tempo e no espaço por meio de uma abordagem histórica que nos permite compreender a condição atual. Em linhas gerais, esse foi o tema da primeira mesa redonda intitulada: “Turismo e gastronomia: a história de dois prazeres“. Primeiramente, a historiadora Julia Csergo, da Universidade Lumière – Lyon III desenhou a trajetória histórica desses dois fatores mostrando que é entre 1890 e 1900 que se estabelece uma ligação “fundamental e indissociável” entre eles. Essa relação acontece graças ao desenvolvimento na área de transportes e à institucionalização dos monumentos históricos, que se tornam referências para o deslocamento turístico. Concomitantemente, há também o aumento da produção agrícola regional, o surgimento do termo “gastronomia” e o “comer bem” se torna uma preocupação real. Ela discorreu sobre o surgimento dos guias gastronômicos e evidenciou aquele em que Grimaud de la Reynière substitui os monumentos de cada região por especialidades gastronômicas locais desenvolvendo o primeiro guia “gourmand” em 1802. Em seguida, a historiadora Catherine Bertho-Lavenir, da Universidade Sorbonne, enfocou o processo através do qual produtos de uma determinada região foram transformados em pratos típicos ao longo do século XX. Segundo ela, esse processo se deu de maneira artificial: os pratos típicos foram criados para e pelo desenvolvimento do turismo. André Rauch, historiador da Universidade Marc Bloch em Strasbourg, ressaltou em sua fala que embora as transformações tenham iniciado ao longo do século XIX, sobretudo na sua segunda metade, ainda não se pode dizer que a noção sobre gastronomia regional esteja clara nessa época. O historiador falou ainda sobre passagens relevantes quanto ao mais importante guia gastronômico do mundo: o Guia Michelin, que apareceu em 1900 e cuja venda iniciou-se em 1908. À partir de 1923, os restaurantes passaram a ter suas proprias rubricas e a classificação por meio de estrelas começou em 1966. O economista do turismo e da cultura Claude Origet apresentou uma posição otimista sobre a situação atual. Segundo ele, a gastronomia é o aspecto mais importante dentro do turismo francês uma vez que o pais possui uma especialidade gastronômica diferente a cada 70 quilômetros. Ela é capaz de oferecer um itinerário de viagem no mínimo “sensual” e, embora luxuoso, acessível a todos. Acrescentou ainda que o turismo gastronômico é praticado pour dois grupos diferentes de clientela: para a clientela assídua, a gastronomia é o fator que suscita a viagem; enquanto que a clientela oportunista, já estando em viagem, inicia-se também na gastronomia. Durante o debate, um conceito desenvolvido pelos participantes foi o de que a aliança entre turismo e gastronomia representa um elo entre a modernidade e a tradição e é inevitável, pressupondo-se que está inserida dentro de um contexto de mundialização e cosmopolitismo. A segunda mesa redonda do evento trouxe como título “A influência dos fatores regionais na gastronomia”. Dentre os participantes destacaram-se JeanPierre Poulain, sociólogo da Universidade Toulouse Le Mirail e Marc Meneau, chef de cozinha do restaurante L’Espérance em Saint-Père-sous-Vézelay, na região de Bourgogne. Poulain falou sobre o atual fenômeno de neutralização do gosto e de como a valorização e manutenção da cultura de produtos regionais caminha no sentido contrário a esse processo. Exemplificou essa situação através do trabalho que realiza o Movimento Slow Food com os “produtos sentinelas”. De acordo com o sociólogo, a reabilitação de um produto regional permite que o comensal se abra para novas experiências, tornando-se novamente sujeito do seu próprio gosto. Além disso, desse modo tem-se consciência da dimensão econômica e simbólica do produto tanto no nível individual como no coletivo. Meneau afirmou que o prazer de comer é sensual e muito simples e, dessa forma, não pode ser intelectualizado. No caso das cozinhas regionais, esse prazer está ligado, sobretudo ao ato de comer “sinais”, isto é, o consumo de determinado produto local representa um convite à prática de costumes locais e dentro de situações intrínsecas a esse espaço. Quer dizer, não se consome apenas o produto, mas também todo o ritual e cenário que o envolvem. Ainda seguindo o raciocínio da simplicidade do prazer pelo gosto, Meneau fez criticas à cozinha molecular de Ferran Adrià. De acordo com o chef francês, a tecnologia permite a evolução da cozinha e o chef catalão é, sem duvida, um dos grandes responsaveis por esse avanço. No entanto, trata-se de uma cozinha regida pela lógica da performance, da extravagância e da ruptura, cujo sucesso é resultado de um trabalho de marketing. Além disso, é uma refeição em que são consumidos experimentos e não produtos, possiblitando prazer ao espírito, mas não permitindo a ligação entre o que se come e o espaço. Esse processo desencadeou uma reação por parte dos cozinheiros franceses no sentido de “retornar ao produto” através da cozinha regional. De acordo com Meneau, uma “batalha que está sendo vencida”. Durante a tarde do primeiro dia de evento e precedendo a terceira mesa redonda, os espectadores se dividiram, conforme tema de preferência, entre oito ateliês que trouxeram diferentes linhas de discussão. Entre elas cita-se “O gosto como teatro de experiências”, “Os restaurantes franceses no exterior: embaixadores da arte de viver à francesa?”, “Existe um turismo das artes da mesa?” e “Turismo gourmand e transmissão dos saberes em alimentação”. A terceira e última mesa redonda do dia desenvolveu-se em torno da questão “Construir um produto turístico centrado na gastronomia?” que foi exemplificada pela apresentação da Rota dos Queijos de Auvergne. Trata-se de um programa turístico centrado na produção dos cinco queijos com Denominação de Origem Protegida (AOP) da região de Auvergne: Salers, Bleu d’Auvergne, Cantal, Saint Nectaire e Fourme d’Ambert. A rota permite conhecer as várias etapas do processo de fabricação dos queijos e possibilita uma vivência com o produto resultando na fidelização do consumidor. A venda do produto “sur place”, isto é, na ocasião da realização da rota, agrega-lhe valor e aumenta a probabilidade de que ele seja adquirido posteriormente. Atualmente, a rota contabiliza 60 mil visitantes ao ano. O segundo dia de evento iniciou com uma mesa redonda cujo título convidava a uma discussão no mínimo prazerosa. “Paisagens para beber e comer” denominava a quarta sessão de debates da qual participou Gilbert Dalla Rosa, presidente do Slow Food no departamento de Pyrenées-Atlantique no Sudoeste da França, relatando o caso do queijo de Estive (http://www.slowfood.fr/bulletin/fromagesbearn.pdf), produzido na região e um dos produtos “sentinela” do Slow Food. A passagem da produção artesanal do queijo para um modo intensivo e mais simples era uma realidade e ocasionava a perda da paisagem de altitude característica da região com o desaparecimento progressivo da sua vegetação e das cabanas de produção. Apesar disso, no intuito de conservar a tradição da paisagem, esta vinha estampada sobre a embalagem do produto ressaltando a idéia de que “o que eu coloco no meu prato é produto dessa paisagem”. Entendendo que os produtores de queijo são co-produtores de uma paisagem, o Slow Food decidiu se engajar na proteção e defesa do produto e do seu “savoir-faire”, mas também da paisagem que ele produz. Ou seja, considera-se que é preciso compreender e respeitar o ecossistema que dá origem ao produto de “terroir”. Sandrine Scheffer, geógrafa, colocou que a paisagem está diretamente ligada à atratividade de um destino turístico através da veiculação de imagens que são percebidas de uma maneira emocional, sensitiva e cognitiva. Além disso, ela torna-se um marcador da qualidade do produto e também do espaço que o produz transformando-se numa estratégia de marketing. Por exemplo, para se vender queijo camembert na França, são estampadas fotos ou desenhos de vacas na embalagem, mas para atingir o mesmo objetivo em Tóquio, coloca-se a imagem da Torre Eiffel. A paisagem permite situar o turista em uma lógica de unidade que alia a paisagem, o produto e os homens e, dessa forma, ele é convidado a consumir tudo isso. Ou seja, muito além do produto, a paisagem, a sensação que ela provoca e os hábitos locais fazem parte do imaginário do consumo. O produto, por sua vez, traça o caminho inverso e funciona como um mediador entre a paisagem e o turista que passa a apreciá-la e a respeitá-la. A mesa redonda seguinte centralizou seu debate na temática da contribuição da mídia para o desenvolvimento da gastronomia e do turismo. Sob o título “Itinerários gourmands e mídias” profissionais da área expuseram seus depoimentos e pontos de vista sobre essa relação. Para Eric Roux, apresentador de programas sobre culinária na televisão francesa, esta mídia é complicada porque se serve muito de estereótipos. Isso acontece porque, freqüentemente, os profissionais que realizam o programa não conhecem o tema o suficiente. Logo, para os espectadores que bem o conhecem, torna-se um programa embaraçante. Ele o ressaltou, ainda que se privilegiem cada vez mais as emissões feitas em estúdio devido ao seu custo ser inferior se comparado com programas em que jornalistas são enviados para espaços externos. Além disso, torna-se um desafio realizar emissões de qualidade em um momento em que “a televisão é preenchida com tudo e qualquer coisa”. Cathy Boirac relatou o seu testemunho como editora de uma revista espanhola destinada a profissionais da área de gastronomia, a Spain Gourmetour. Ela foi criada em 1986, em um contexto de não reconhecimento da cozinha espanhola, com o objetivo de combater estereótipos e mitos relativos a ela e de estimular o conhecimento por parte do leitor da grande variedade de ofertas de produtos dentro da culinária do país. Para isso, a revista procura inserir o alimento em um discurso histórico e cultural que é conveniente, uma vez que a Espanha foi a grande porta de entrada de produtos no continente europeu graças à época dos Conquistadores. Atualmente a revista é distribuida também na América Latina, Inglaterra e Alemanha, sendo que a sua inserção na França ainda é dificil. A mesa redonda que fechou o evento teve o enoturismo como tema central e procurou responder a seguinte questão: “Enoturismo: um trunfo para a Europa?”. Foi discutido o uso inadequado da palavra “enoturismo” que poderia ser substituída por “vinoturismo”, uma vez que o objetivo não é a transmissão de connhecimentos técnicos, mas uma vivência de intimidade e sociabilidade. Foi feita uma exposição sobre as principais rotas vinícolas existentes na França, sendo a mais antiga delas a rota dos «Grands Crus» datando de 1934 e que acontece ao Sul da região parisiense. Apos a discussão, concluiu-se que não apenas o enoturismo é um trunfo para a Europa, mas a recíproca também é verdadeira, pois estamos falando de uma tradição e de um “savoir-faire” relativos à viticultura que não são vistos em nenhuma outra região do globo. E o cidadão europeu é plenamente consciente disso. Na teoria, turismo e gastronomia andam lado a lado. No entanto, realizar a fusão de ambos na prática certamente não é tarefa fácil. Nesse sentido, acredito que esse encontro permitiu um diálogo mais intenso e profundo entre esses dois fortes segmentos da economia francesa já tão naturalmente ligados. Respostas foram encontradas e eu diria que a maneira mais sábia de fazê-lo foi constantemente explorada nesses dois dias de discussão: a da exemplificação. Nada mais coerente e justo que conhecer projetos e trabalhos bem sucedidos que buscam entrelaçar gastronomia e turismo entendendo seus desafios e facilidades, na tentativa otimista de responder positivamente à questão que intitulou o evento. A arte da mesa torna-se cada vez mais objeto de interesse mesmo para aqueles nunca iniciados na prática da culinária, e a atividade do turismo é considerada um dos grandes alvos desse crescente interesse. Nesse sentido, a criação de atividades turísticas centralizadas em temas gastronômicos, seja ele um produto, um ritual ou um estabelecimento, é uma tendência natural. E sua aplicabilidade é positiva em qualquer lugar, pois intrínseca à toda arte culinária local há uma riqueza de aprendizados sobre a sua paisagem, seu espaço e sua cultura.