O relógio da cigana Não passava um taxi vazio. Eu havia acenado

Transcrição

O relógio da cigana Não passava um taxi vazio. Eu havia acenado
REDAÇÃO VENCEDORA CATEGORIA CONTO
LAIRA LAÍSE ALMEIDA SANTOS
EEEFM Almirante Barroso, 1º ano MAV 1 (vespertino)
Goiabeiras, Vitória-ES
Professora: Lis Motta
O relógio da cigana
Não passava um taxi vazio. Eu havia acenado para quatro veículos até então e
todos eles, ocupados, piscavam o farol e passavam direto por mim. Já estava ficando
frustrada, então simplesmente desisti do taxi e comecei a andar em direção ao ponto de
ônibus mais próximo, aquele em frente ao Palácio Anchieta. Eu estava prestes a
atravessar a rua quando uma cigana maluca me abordou e, empurrando um relógio para
mim, começou a gritar:
- Jovem que corre! Corra, corra, corra pelo tempo! Veja! Hora e minuto é ano, ano,
ano! Apertar botão e viajar, para ir, ir e voltar, horas e minutos são anos!
Então saiu correndo, deixando o relógio prata brilhando em minha mão. Os números
digitais apontavam que já estava tarde: 19h26min. O sinal novamente abriu e eu
atravessei, mas não tive a chance de chegar ao outro lado da avenida, a última coisa que
eu vi foi uma moto, vermelha e muito bonita, vindo em minha direção e pronto, lá estava
eu, caída no chão, atropelada.
O relógio ficou em minha mão. Eu o apertei como se, de algum modo, ele pudesse
me salvar. Um vento furioso passou a minha volta e eu me sentir sumir.
Abrir os olhos e me deparei com um cavalo bufando em meu rosto. Gritei de susto e
me empurrei para longe do animal. Senti lama em meus dedos, sim, lama. O asfalto havia
desaparecido. Olhei em volta, arquejando; os postes com fiação elétrica, as lojas, a faixa
de pedestre, a moto que me atropelara... Tudo havia sumido e achei estranho também
não sentir dor alguma. Parecia que eu estava em um planeta alienígena. Mas então havia,
lá no fundo do cenário, o Palácio Anchieta, ele estava o mesmo e, de algum modo, muito
diferente.
- Oh, Deus! A senhorita está bem? – Um homem desceu do cavalo e me ajudou a
levantar da lama, então arregalou os olhos e virou o rosto. – Senhorita! Não deverias
estar vestida deste modo. – Ele exclamou repreendendo-me e parecendo meio
envergonhado.
- Como? – Olhei para o meu vestido, ele era branco e não era curto, na altura do
joelho, com alcinhas, ele era fofo e estava na moda.
Então olhei para o que ele, o homem, vestia e fiquei boquiaberta: ele parecia um
daqueles personagens das novelas de época da TV, com uma espécie de terno
ultrapassado, um relógio de bolso dourado e um chapéu preto na cabeça.
O relógio digital esquentou em minha mão e emitiu um brilho prata enquanto se
mantinha congelado nos dígitos 19h26min. Então como se a voz da cigana soasse em
minha mente eu me lembrei: “... hora e minuto é ano.”. Eu estava em 1926? Oh, Cristo!
- Eu tenho uma noiva, vou me casar amanhã, não sei se é adequado ficar perto da
senhorita vestida assim. – Ele continuava a falar, agitado, olhando para os lados.
Eu olhei desesperada para o relógio e comecei a apertar o único botão que havia no
objeto, dei um suspiro quase aliviado quando a hora começou a acelerar. 19h27min,
19h30min, 19h42min...
- Desculpa, - pedi constrangida – já estou indo para casa. – Era o que eu
fervorosamente esperava. – O senhor poderia, ham... Falar-me sobre a sua noiva? – A
última coisa que eu desejava era que ele fosse embora e me deixasse sozinha em uma
rua escura do século passado.
Ele pareceu meio desconfiado, mas então meio que deu de ombros, imaginei se eu
parecia tão diferente para ele quanto ele era para mim.
- Minha Nietta... – ele sorriu pensativo – “como um lírio entre os espinhos, assim é
minha amada entre as mulheres.”.
Eu podia jurar que ele citava algo. Espiei o relógio, 19h57min.
- Bem, isso é lindo. – Murmurei em apreciação.
Ele deve ter me visto olhando para relógio, porque o olhou e perguntou:
- O que é isso? – curiosidade estampada em sua feição.
Eu sabia que não adiantava esconder, então respondi:
- É um relógio.
Ele pareceu meio incrédulo, mas também surpreso. Bem, não era para menos, o
relógio ainda estava emitindo um fraco brilho prateado, o que chamou a atenção do
homem, além do fato, claro, do meu relógio ter, no lugar dos ponteiros, números grandes
em LED.
- Bem diferente, senhorita... – Apreciou o homem.
- Diferente e perigoso. – Pensei em voz alta. Um relógio não devia transportar
pessoas através do tempo.
Ele fez uma cara como se pensasse que eu era louca, então ignorou o que eu disse
e continuou:
- Ah, bem, eu também tenho um. – E me mostrou um relógio de bolso que carregava
preso à roupa. Era muito, muito bonito mesmo e totalmente diferente do meu, enorme,
dourado e inofensivo.
Estava tentando arranjar um assunto para que ele continuasse a falar, o relógio
acelerava, mas ainda marcava 20h05min. Então ele me surpreendeu perguntando:
- Qual é a sua graça?
- Hã? – Perguntei em confusão. Então me lembrei de uma das novelas que minha
mãe adorava assistir e entendi a pergunta. – Ah! Laira Laíse, mas pode me chamar só de
Laira ou só de Laíse.
- Eu prefiro te chamar de Laira Laíse, se me permite.
Eu ri e simplesmente dei de ombros.
- E você, como se chama? – Perguntei.
- Lindenberg, Carlos Lindenberg. – Ele tirou o seu bonito chapéu e se inclinou em
minha direção.
- Espera, Carlos Lindenberg? O da avenida? O ex-governador? Uau!
- Avenida? Governador? Do que a senhorita está falando? Desculpe-me, mas
parece que estás delirando!
O relógio voltou a aquecer a palma da minha mão, a ponto de quase queimá-la. Os
dígitos luminosos acabavam de indicar 20h14min.
- Ah, nada não! – Exclamei com pressa – O senhor terá um futuro brilhante e
grandioso, senhor Lindenberg! Adeus!
E sorrindo, segurei o relógio fortemente. Senti o vento a minha volta, então aquela
sensação de estar desaparecendo de repente voltou. O brilho do relógio me envolveu
numa névoa e então lá estava eu, caída no asfalto, com um monte de pessoas a minha
volta e toda dolorida.
A sensação de atropelamento era horrível, mas era um alívio reconhecer novamente
o contexto em que eu estava.
Os navios atracados no porto, o trânsito caótico ocasionado pelo meu triste acidente,
os flashes de câmeras, pessoas falando ao celular... A doce tecnologia do século XXI
estava de volta. Eu estava de volta e, apesar de machucada, senti-me salva pelo relógio
da cigana, que ainda estava em minhas mãos.