Política do medo versus política lacaniana
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Política do medo versus política lacaniana
Latusa digital – N° 10 – ano 1 – outubro de 2004 Política do medo versus política lacaniana Mirta Zbrun* Há três sentidos possíveis para entender a política lacaniana1. Em primeiro lugar, o sentido da política em geral. Sobre ela temos as opiniões de Lacan, suas construções, seus argumentos, seus matemas. Em segundo lugar, o sentido da política em psicanálise: Lacan preconiza o respeito aos colegas, especialmente à Sociedade Psicanalítica Internacional (IPA), criada por Freud; o respeito aos alunos, aos pacientes, ao público, à disciplina da psicanálise, à Academia, à universidade. Em terceiro lugar, temos a política do tratamento, desenvolvida por Lacan em “A direção do tratamento e os princípios de seu poder” em seus três aspectos: tática, estratégia e política. Lacan situa, nesse escrito, a interpretação no nível da tática clínica; já a direção do tratamento e a transferência, no nível da estratégia. Fala da política como um dos grandes argumentos quanto às finalidades últimas do tratamento, de sua eficácia terapêutica e da psicanálise aplicada. A política do tratamento designaria tanto os objetivos da formação dos analistas, como os da conclusão do tratamento. Nosso tema aqui é a política da psicanálise versus a política do medo. O propósito é pensar a política lacaniana, aquela que desenvolvemos na arte de curar o sofrimento e a dor de quem nos procura. Desse modo estaremos pensando a política da psicanálise para o tratamento do medo. O que é o medo? É um afeto. Como todo afeto, ele engana. É um sentimento e, como tal, sente-e-mente. O medo é um sentimento que engana o sujeito. * Analista praticante – AP. Membro da Escola Brasileira de Psicanálise (EBP) e da Associação Mundial de Psicanálise (AMP). 1 MILLER, J.-A. Política lacaniana. Buenos Aires: Ediciones Diva, 2002, pp. 9-14. 1 Já a angústia é um afeto que faz exceção ao para-todo lacaniano que funda a regra universal, como diz Lacan no seu Seminário, livro 20: Mais ainda, ao elaborar as fórmulas quânticas da sexuação.2 Ao fazer uso do quantificador universal para-todo, Lacan enuncia a proposição: “para-todo x existe a função fálica”. Essa proposição universal funda a possibilidade de uma existência que faça exceção. Esse fato permite a Lacan usar um quantificador existencial e propor o enunciado da exceção: “existe ao menos um x que diz não à função fálica”. A angústia é essa exceção ao universal dos afetos por ser um sentimento que não engana. Na teorização freudiana encontramos pelo menos três formas de angústia: a angústia automática, a angústia real e o sinal de angústia. As três concepções foram introduzidas por Freud em 1926, ao reformular sua teoria da angústia em “Inibição, sintoma e angústia” (Hemmug, Symptom und Angst). A primeira forma é a angústia automática (automatische Angst) que, segundo Freud, aparece quando o sujeito experimenta excitações de origem interna ou externa que é incapaz de dominar. É um tipo de reação, um fenômeno automático, uma resposta espontânea frente às excitações traumáticas, sejam elas externas ou internas. Corresponde à antiga idéia de Freud de que a angústia era uma tensão libidinal acumulada e não descarregada. A angústia automática, embora seja concebida por Freud na mesma época que o sinal de angústia, a ele se opõe. O sinal de angústia (Angstsinal) produz de maneira mais leve a reação da angústia vivida primitivamente numa situação traumática e aciona os mecanismos defensivos, diferenciando-se da angústia automática. Freud faz dele a idéia central da segunda teoria sobre a angústia. Na primeira teoria ela era um resultado, uma manifestação subjetiva de uma energia não controlada. O sinal de angústia evidencia uma nova função da angústia: um motivo de defesa do eu. 2 Lacan, J. O Seminário, livro 20: Mais ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1975 2 A angústia real (Realangst), na concepção de Freud em 19263, é a angústia diante de um perigo real, e se opõe à angústia frente à pulsão. Para os pósfreudianos a palavra alemã Angst não podia ser traduzida diretamente por angústia, porque em seu uso mais corrente significa medo. Exemplo disso é a frase do pequeno Hans relatada por Freud em seu histórico clínico: ich habe Angst vor... “eu tenho medo de...”. Não era possível então fazer a oposição entre medo e angústia, e considerar o medo como produzido por um objeto e a angústia como sem objeto. Para sair desse impasse, Lacan pensa a angústia com relação à articulação do que é para-todo, e do que surge como exceção. A angústia é então uma exceção na ordem dos sentimentos; é um sentimento que tem um objeto e, como tal, não engana. Segundo Jacques-Alain Miller em Le neveu de Lacan, o seminário sobre a angústia de 1962 é o que leva Lacan a propor a pluralização do Nome-do-Pai. Num seminário realizado em Buenos Aires no inicio da década de 90 e publicado posteriormente com o título “O seminário inexistente”, Miller desenvolve a questão da pluralização dos Nomes-do-Pai em Lacan. Propõe a tese de que Lacan teria operado em 1964, a substituição do Nome-do-Pai pelos quatro conceitos fundamentais da psicanálise.4 Lacan inicia a única aula do seu seminário anterior, de 1963, conhecido como o “seminário inexistente” que, se realizado, levaria o título de “Os Nomes-doPai”, falando sobre a angústia. A tese de Miller é que teria havido uma substituição do Nome-do-Pai por conceitos. Ou seja, os quatro conceitos definidos e desenvolvidos em 1964: inconsciente, pulsão, transferência e 5 repetição5 – seriam uma substituição do Nome-do-Pai. Essa substituição 3 FREUD, S. “Inibição, sintoma e angústia”. Em: Obras completas. Biblioteca Nueva Madrid, 1968. 4 LACAN, J. O Seminário, livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1979. 5 Idem, ibidem. 3 permitirá a Lacan elaborar o que chamou de sua “excomunhão” da Sociedade Psicanalítica Internacional (IPA), que ocorrera em dezembro de 1963. Nesse mesmo movimento de substituição do nome pelos conceitos, há também uma pluralização dos nomes. Essa reviravolta em seu ensino, essa mudança de perspectiva que se opera em 1964 é fruto do tratamento que Lacan dá à angústia, e determina a política lacaniana para a prática clínica. Assim, se no primeiro momento do seu ensino a referência ao Pai era pensada com relação às estruturas clínicas, ao sintoma e ao tratamento da angústia de castração, em seu último ensino Lacan pluraliza os Nomes-do-Pai, igualando-o à função do sintoma. O pai como sintoma terá incidências na transferência, porque sintoma e transferência são categorias que relacionam os registros do real e do simbólico. Por outro lado, esses registros comportam a presença de um vazio, a inclusão do real no simbólico, e do simbólico no real. Segundo Miller6, o simbólico incluído no real é a mentira (o que engana), e o real incluído no simbólico é a angústia (o que não engana). O tema da angústia, que Lacan trata no seu Seminário 107, surge como uma exceção entre os afetos. Por isso, J.-A. Miller pode dizer: “[...] a teoria da angústia, de Freud a Lacan, se inscreve na lógica da norma, da exceção. Tratase da aplicação do regime edipiano à teoria dos afetos. [...] Ele vê na angústia uma questão crucial – é o seu termo – para desmentir a concepção que faria do sujeito uma função da inteligência, correlativa ao inteligível”.8 Como tratar o medo hoje? Qual a política da psicanálise para o tratamento do medo? Sabe-se que o discurso da ciência moderna foraclui o sujeito e que a matemática, ao nomear com uma cifra o real, deixa o sujeito fora de tal 6 MILLER, J. -A. La experiencia de lo real en la cura psicoanalítica. Buenos Aires: Paidós, 2003. 7 LACAN, J. Le Séminaire: livre 10: L´angoisse.(1962-63). Paris: Seuil, 2004. 8 MILLER, J. -A. Le neveu de Lacan. Paris: Éditions Verdier, 2003, p.268. 4 nomeação. O que fazer com esse “humano” que fica fora dessa matematização do real da ciência? O que fazer diante do discurso médico-higienista que foraclui o sujeito? O que fazer diante do discurso capitalista que globaliza, massifica e dilui as diferenças, diante do discurso educativo-cognitivista que tende a igualar as posições subjetivas apagando as diferenças? A política da psicanálise é a do tratamento da pulsão de morte, porque o medo não é outra coisa senão a presença do “mal-estar na civilização” descrito por Freud9. A política lacaniana, ao pensar as questões atuais, leva em conta a presença da pulsão de morte e de suas formas mais aterrorizantes. Estuda os meios mais adequados para tratar dessa pulsão. Revê os conceitos psicanalíticos essenciais ao tratamento, em especial os conceitos de sintoma e transferência que, atualizados a partir do último ensino de Lacan, servem mais eficazmente ao tratamento dos novos sintomas. Essa atualização os tornará mais aptos para nossa época atual, na qual se constata a inexistência do Outro e a queda dos semblantes do pai. Época em que os sujeitos chegam aos nossos consultórios e aos serviços públicos de atendimento com indicadores poucos claros a respeito de sua estrutura. O instrumento com o qual conta o analista de orientação lacaniana para enfrentar essa nova clínica é, sem dúvida, a política do sintoma, ou o tratamento pelo sintoma. O sintoma, como mola da transferência, torna possível resgatar o sujeito além dos quadros ou tipos clínicos nos quais uma política do medo os classifica. A prática clínica que decorre da política lacaniana é uma resposta à política do medo, ao medo da época. Uma prática que, sendo o avesso do discurso do mestre, é também uma casuística, uma elaboração e uma verificação constante de seus resultados. 9 FREUD, S. El malestar en la cultura. Obras completas. Biblioteca Nueva Visión. Madrid, 1968. 5
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