A TICA DE PLATO (427 a C
Transcrição
A TICA DE PLATO (427 a C
O PROTÁGORAS DE PLATÃO A melhor forma de ser fiel à ética de Platão, sem exceder as dimensões de um capítulo curto, é procedermos à leitura de uma dos seus diálogos mais importantes: Protágoras (1). Este diálogo relata um encontro entre o sofista Protágoras e Sócrates, ocorrido em 434/433, ou possivelmente um pouco antes, teria Sócrates 35 anos de idade e Platão ainda não era nascido. A conversa entre Protágoras e Sócrates, ocorrida em casa de Cálias, na presença de um conjunto de jovens intelectuais, pertencentes à nobreza de Atenas, ansiosos por aprenderem com o famoso Protágoras, um sofista natural de Abdera que era considerado um dos maiores mestres da época, ocupa o centro do diálogo. A fama de Protágoras como professor itinerante era tanta que os discípulos se dispunham a pagar elevadas quantias para o ouvirem por onde quer que ele passasse. O diálogo é preenchido, quase só, com as sucessivas intervenções de Protágoras e de Sócrates que rivalizam em pequenas discussões em torno de duas teses principais: a possibilidade de a virtude (aretê) ser ensinada e a relação entre as várias partes da aretê e a tese socrática que as reduz a uma única realidade, o conhecimento. Protágoras defende que não só a virtude pode ser ensinada como ele é um mestre na arte de a ensinar. Sócrates não se dá por convencido da justeza desta tese. Protágoras considera que não existe apenas uma virtude mas várias virtudes que se relacionam entre si como as várias partes do corpo. Sócrates defende que só existe uma virtude, o conhecimento e que a existência de muitas outras qualidades não passa de uma variedade de expressões do conhecimento. Procurando distanciar-se do ensino dos sofistas, Sócrates começa por perguntar ao jovem Hipócrates, que se dirige a sua casa, ainda madrugada, para anunciar a chegada à cidade de Protágoras, o que é um sofista e qual o proveito que da sua companhia advém. O início do diálogo é, assim, dominado por essas questões a que o jovem não consegue dar respostas convincentes. É, então, que Sócrates pergunta a Hipócrates: Protágoras é sofista, mas ser sofista é ser mestre de que ofício? Hipócrates reconhece que ser sofista é ser mestre em habilitar os discípulos a falar, mas a falar sobre o quê? Aqui, Sócrates opõe a sua dialéctica à retórica dos sofistas, reconhecendo embora que estes são exímios na arte do discurso público, a qual era muito apreciada na democracia ateniense do século V. Essa arte da persuasão tinha em Sócrates menos aceitação que nos jovens aristocratas de Atenas que se acotovelavam em casa de Cálias para ouvirem o grande Protágoras. Enquanto se encaminham para casa de Cálias, Hipócrates vai tomando consciência de que o ensino dos sofistas é bem diferente do ensino dos médicos, dos escultores ou dos músicos que ministram o seu ofício àqueles que querem aprender a exercer uma profissão. O ensino de Protágoras destina-se, não a ensinar o exercício de uma ofício, mas sim a completar a educação apropriada aos leigos e aos homens livres, para que fiquem capacitados a exercer a cidadania e a gerirem bem os seus negócios particulares. A retórica que os sofistas tão bem ensinavam era, por essa altura, uma arte apreciada por todos os cidadãos de Atenas que aspiravam a participar na vida política. Sócrates não era mestre dessa arte e gostava bem mais de fazer perguntas ou argumentações curtas do que longos discursos. O pouco entusiasmo de Sócrates pela arte dos sofistas fica bem evidenciado na sua afirmação de que Protágoras era um retalhista ou comerciante que vende ciência a quem a puder comprar. Com esta afirmação, Sócrates critica a ausência de preocupação sobre os reais benefícios e vantagens que um tal ensino poderá trazer àqueles que o adquirem. Aqui, 1 Sócrates introduz a pergunta capital da ética clássica: qual é o telos, a finalidade? Para os sofistas, a finalidade da retórica era apenas a de promover o sucesso político de quem a adquiria, não se interrogando sobre a natureza dos bens a que esse sucesso conduzia. Ora, essa ausência de preocupação era inaceitável para Sócrates e para Platão. Instado a responder que benefício obterá Hipócrates caso venha a frequentar a companhia do sofista, Protágoras dá uma resposta vaga: tornar-se-á melhor logo no primeiro dia e melhor ainda no dia seguinte e melhor em cada dia que passar com ele. Sócrates responde: nada de extraordinário, pois progredir é afinal o resultado esperado de qualquer aprendizagem. O que interessa saber é qual é a matéria em que Hipócrates se tornará melhor e se aperfeiçoará. Vale a pena ouvir a resposta de Protágoras: "perguntas muito bem, Sócrates, e a mim satisfaz-me responder àqueles que me sabem interrogar. Na verdade, ao procurar-me, Hipócrates não experimentará os problemas que o perturbariam frequentando a companhia de outro sofista. Com efeito, os outros assoberbam os jovens. Quando os vêem fugir às especializações, empurram-nos novamente para elas, contra vontade, e ensinam-lhe cálculo, astronomia, geometria e música - e, ao mesmo tempo, lançou um olhar a Hipias. - Ao contrário, quem vem ter comigo não aprende senão as matérias que pretender. O meu ensino destina-se à boa gestão dos assuntos particulares - de modo a administrar com competência a própria casa - e dos assuntos da cidade - de modo a fazê-lo o melhor possível quer por acções quer por palavras" (2). Perante a resposta de Protágoras, Sócrates arrisca uma interpretação: a matéria em que o sofista é mestre é a arte de gerir a cidade, a política (techne), e o seu objectivo é transformar homens livres em bons cidadãos. De seguida, a discussão orienta-se para o seguinte tema: podem ou não os sofistas realizar a tarefa educativa a que se propõem? Os ideais democráticos da Atenas do século V identificavam a aretê com a arte de gerir a cidade, mas Sócrates achava isso muito insuficiente. A identificação da virtude com as artes do governo da cidade facilitaria a ideia de que a virtude "podia resultar não apenas da acção da natureza ou do acaso, mas ser uma conquista do treino e da aprendizagem. Embora os autores anteriores não tivessem negado o esforço que pressupunha atingir o mérito nem a possibilidade de o aperfeiçoar, a sua obtenção estava, à partida, condicionada por dois factores: a hereditariedade e o auxílio divino. Estes, contudo, perderam a sua predominância numa sociedade onde os antigos valores começavam a ser substituídos, onde a cidadania já não era apanágio apenas da aristocracia e onde os avanços das teorias racionalistas esmoreciam a crença no poder dos deuses. A aretê passara a conquistar-se pela participação cívica. Na cidade de Péricles, ser um homem bom equivale a ser um bom cidadão. Neste contexto, os métodos tradicionais de educação, exercidos pela família e pela escola, manifestavam-se insuficientes face às novas necessidades da sociedade. É essa lacuna que os sofistas pretendem preencher: a preparação do cidadão para as funções que a polis lhe solicita. Sócrates, contudo, vê com reservas que seja possível uma tal tarefa e, embora salvaguardando que em momento algum põe em dúvida a veracidade das palavras de Protágoras, entende ser justo dar uma explicação sobre as razões pelas quais não acredita que a aretê possa ser ensinada ou transmitida aos homens por outros homens" (3). Essas explicações são as seguintes: "ora, bem vejo que, quando nos reunimos na Assembleia, sempre que for preciso que a cidade realize algo na área da construção civil são convocados os arquitectos, para se pronunciarem sobre o assunto...Pelo contrário, sempre que for preciso resolver algo na área da administração da cidade, sobre essa matéria levanta-se e dá opinião, indiferentemente, carpinteiro, ferreiro ou curtidor, mercador ou marinheiro, rico ou pobre, nobre ou plebeu, e ninguém lhes põe as objecções dos casos anteriores: que nunca aprendeu ou que nunca ninguém lhe ensinou nada sobre a matéria em que 2 tenciona dar opinião. É óbvio que não crêem que essa arte possa ser ensinada. Bem, e não é assim apenas com os interesses públicos da cidade; também na vida particular, os mais sábios e mais nobres dos nossos cidadãos não têm possibilidades de transmitir a outros essa virtude que possuem. Até Péricles, o pai destes jovens aqui presentes, os educou perfeitamente nas matérias que dizem respeito aos professores, mas naquelas em que ele próprio é sábio, nem os ensinou, nem os confiou a outro. De modo que lá andam eles por aí, vagueando, à rédea solta, à espera de, por obra do acaso, encontrarem sozinhos a virtude" (4). Não deixa de ser interessante fazermos aqui um paralelismo entre duas concepções actuais opostas sobre a educação moral e cívica: a concepção que defende o seu ensino através da criação de uma disciplina própria e a concepção que defende que as virtudes não se ensinam, captam-se e descobrem-se através da prática e do contacto com bons exemplos. A primeira concepção, cara aos sofistas, tem vindo a assumir, actualmente, a forma de uma disciplina ou área de educação cívica ou educação para a cidadania. A segunda concepção, cara a Sócrates e a Platão, faz depender a educação do carácter dos alunos do ambiente educativo escolar, não acreditando na possibilidade de o fazer com o recurso a uma disciplina ou a uma área disciplinar. Protágoras procura defender a sua dama, recorrendo ao mito de Prometeu, para tentar provar que, ao contrário do que Sócrates pensa, os pais não descuidam o ensino da virtude: "Protágoras recorre a uma longa descrição do panorama educativo para provar que o comportamento da família, da escola e da cidade mostra que, desde o início, a vida do homem está marcada por um exaustivo treino no sentido da aprendizagem do mérito. A tal ponto que, concluirá mais tarde, até o mais injusto dos homens, desde que educado numa comunidade que conhece as leis, será um especialista em matéria de justiça se confrontado com alguém que nunca tenha conhecido qualquer tipo de restrição. Essa iniciação à aretê é levada a cabo, primeiro, pela família, logo que a criança está apta a entender e mais por obediência do que por compreensão; e é continuada depois na escola, ultrapassadas as fases iniciais da aprendizagem, pelo exemplo recolhido na obra dos poetas. Finalmente, concluída a instrução escolar, é a vez de a cidade orientar o comportamento dos seus cidadãos pela recorrência ao poder das leis" (5). Contudo, Protágoras reconhece que as dúvidas de Sócrates têm razão de ser: afinal, em muitos casos, apesar de educados em boas escolas e por bons professores, as pessoas não aprendem a virtude. No final, ambos concordam, em parte, um com outro e Sócrates diz-se convencido, pois afinal parece que é possível através de cuidados humanos tornar bons os homens bons. Mas, tornar bons os homens maus, já parece bem mais difícil! Resolvida aquela dificuldade, Sócrates conduz a discussão para o problema da aretê entendida como uma única entidade com vários nomes, como defende Sócrates, ou como um conjunto de várias qualidades distintas que se relacionam entre si, como propõe Protágoras. No fundo, Sócrates e Protágoras protagonizam duas concepções diferentes acerca da natureza da virtude. A virtude como conhecimento ou a virtude como um conjunto de qualidades distintas. No primeiro caso, a virtude é conhecimento. É isso que leva Sócrates a afirmar que o mal é sempre produto da ignorância. A discussão continua, mas centrada na seguinte questão colocada por Sócrates: "sabedoria, sensatez, coragem, justiça e piedade são cinco nomes para uma única qualidade ou cada um desses nomes corresponde a uma entidade com propriedades particulares e uma função individual, não sendo nenhuma delas idêntica à outra? Dizias tu, então, que não são nomes de uma única coisa mas que cada um desses nomes designa uma entidade particular e que todas elas são partes da virtude; não do mesmo modo que as partes do ouro são iguais umas às outras e iguais ao todo, mas antes como 3 as partes do rosto não são iguais umas às outras nem ao todo, pois tem cada uma delas uma função particular"(6). Protágoras, na sua resposta, aproxima-se da tese de Sócrates, afirmando que a sabedoria, a sensatez, a justiça e a piedade são qualidades relativamente próximas, mas que a coragem é completamente diferente das restantes, pois é possível haver homens injustos tremendamente corajosos. Sócrates não se dá por satisfeito e procura demonstrar que a coragem, ao contrário do que pensava o sofista, é, também, uma forma de sabedoria. Assim, de argumentação em argumentação, "Sócrates conduz o sofista à conclusão de que o que leva o homem a agir bem ou a agir mal é saber ponderar os resultados que advirão das suas acções - saber esse a que chama arte do comedimento e que, forçosamente, se fundamenta também no conhecimento; assim, aquele que erra, erra por ignorância" (7). Desta forma, Sócrates demonstra que a cobardia depende da ignorância e a coragem da sabedoria. Chegados a este ponto, Sócrates e Protágoras parecem reconciliados: o primeiro admite, embora com algumas reservas, que a virtude pode ser ensinada e o segundo que se age bem por sabedoria. Mas esse entendimento é provisório, já que Protágoras continua reticente em identificar a virtude com o conhecimento, embora diga que é capaz de a ensinar. Por outro lado, Sócrates, continua a duvidar da viabilidade do seu ensino, embora insista que a virtude é conhecimento. Sócrates, ciente desta contradição, pretende retomar a discussão, mas Protágoras adia a discussão para uma outra vez com o pretexto de ter um outro assunto a resolver, dando por finda a conversa. Platão retomará a discussão dessa questão num outro diálogo, o Ménon. O carácter inconclusivo do diálogo Protágoras, pode suscitar várias interpretações. A mais razoável é a que nos dá Ana da Piedade Elias Pinheiro, a tradutora da edição do Protágoras que serviu de base a esta exposição: "quanto ao Protágoras, a intenção de Platão pode bem ter sido traçar um retrato irónico destas discussões inconclusivas que anos antes agitaram Atenas e do exacerbado entusiasmo que suscitaram junto das camadas mais novas da sua população. É que àqueles jovens que, em casa de Cálias, ouviam atentos a conversa entre Sócrates e Protágoras, esperava um futuro desastroso (facto que Platão e o seu público bem conheciam), suficiente para demonstrar que, afinal, nada aprenderam da lição. Assim diz J. Walsh (1984: 106), esta geração de Atenienses gastara energia a mais a ouvir Sofistas a debater problemas como a possibilidade de a aretê poder ser ensinada e energia a menos a transformarem-se em homens de virtude" (8). A filosofia de Platão é profundamente devedora do método socrático. Em que consiste esse método? Desde logo, o método inclui dois aspectos distintos: a confissão da ignorância e um argumento, seguido de perguntas e respostas, que procuram aproximar-se da verdade. A este respeito, Sócrates costumava contar a seguinte história: um dos seus amigos, numa visita ao oráculo de Delfos, perguntou quem era o homem mais sábio. A divindade respondeu-lhe que era Sócrates. Quando o amigo de Sócrates lhe contou a resposta da divindade, o filósofo ficou perplexo, pois sabia que não era um homem sábio. Então, decidiu desafiar a divindade e passou a procurar homens mais sábios do que ele. Durante essa permanente busca, Sócrates percebeu que a maior parte daqueles que se julgam sábios, nem sequer se apercebem da sua ignorância. Pelo contrário, Sócrates sabia que não sabia nada e, por isso, estava em melhores condições para procurar o conhecimento, partindo da máxima antiga "conhece-te a ti mesmo". Então, o método socrático é um método de autoconhecmento. Na verdade, só Deus tudo sabe e, perante ele, todos os homens são ignorantes. Aqueles que reconhecem a sua ignorância são, por isso mesmo, aqueles que estão mais perto da sabedoria. Estava, dessa forma, encontrada a explicação para a resposta dada pelo oráculo de Delfos à pergunta "quem é o homem mais sábio?". 4 A confissão de Sócrates da sua ignorância tinha um duplo significado: primeiro, procurava dizer que não possuía uma verdade que pudesse ser transmitida aos outros homens. Sócrates não era um homem de sistemas e insistia em que aqueles que julgam possuir um sistema, mais não fazem do que enganar quem acredita neles. A razão para Sócrates pensar que não tinha qualquer sistema para ensinar era simples: na verdade, não existem tais sistemas. A verdade não pode ser transmitida, precisa de ser descoberta e encontrada na mente de cada um; em segundo lugar, Sócrates considerava que, embora não fosse possível transmitir a verdade, era possível e desejável dizer aos homens que eles deviam procurar encontrar a verdade. Quanto mais consciente nós estivermos da nossa ignorância, mais abertos estamos a procurar a verdade. Após esta etapa, estava aberto o caminho para a segunda fase do método: a discussão. Os encontros casuais ocorridos nas ruas e praças da cidade permitiam aos amantes da verdade o estabelecimento de uma conversa, em que cada um procurava descobrir o verdadeiro significado dos conceitos de virtude, sabedoria, conhecimento, inteligência, temperança, coragem, justiça e piedade. Geralmente, as primeiras tentativas para definir os conceitos geravam controvérsia entre os participantes na discussão. À medida que eram colocadas mais questões e que se apresentavam exemplos concretos para ilustrar os argumentos, Sócrates ia pondo a nu a falta de consistência das definições. Mas, nem Sócrates, nem os seus amigos, conseguiam chegar a definições absolutamente satisfatórias. Contudo, a procura de definições razoáveis tinha um duplo significado: primeiro, os interlocutores reexaminavam as suas próprias ideias, questionavam os seus dogmas e eram levados a abandonar as suas crenças e opiniões inconsistentes; em segundo lugar, os interlocutores eram levados a substituir as ideias e opiniões inadequadas por novas ideias, opiniões e conceitos mais claros e mais próximos da verdade. No final, embora todos ficassem a compreender que não é possível atingir uma verdade final, é possível uma aproximação à verdade. A ética socrática integra três características essenciais: a virtude tem uma existência objectiva, a virtude é conhecimento e a virtude é o conhecimento do bem. Ao mesmo tempo, a ética socrática apresenta cinco paradoxos: a virtude não é ensinável, a virtude é útil, ninguém faz o mal voluntariamente, é preferível sofrer o mal do que praticar o mal e a virtude é um só. Os sofistas não concordavam com a objectividade da virtude. Para eles, a virtude era aquilo que cada indivíduo desejava que fosse. Sócrates, pelo contrário, considerava que a virtude tinha um significado objectivo. A moralidade tem de ser descoberta e é por isso que a tarefa do filósofo e do educador é descobrir a essência, a forma das virtudes particulares. Os sofistas também não concordavam em identificar a virtude com o conhecimento. Sócrates considerava que, sem conhecimento, não era possível a realização da vida boa. O bem moral existe como referência ao conhecimento e, por isso, o conhecimento é a virtude e a virtude é o conhecimento do que é bom para o Homem. O "conhece-te a ti mesmo", gravado no templo dedicado ao oráculo de Delfos, é a primeira espécie de sabedoria e o único caminho que leva à virtude. É, por isso, que, para Sócrates, uma vida não examinada, não questionada, não merece ser vivida. O paradoxo da virtude é que, embora seja conhecimento, não pode ser ensinada. A tese de Sócrates baseia-se na verificação empírica da ausência de professores de virtude. O caso dos filhos de Péricles, um homem virtuoso, que andavam à deriva, à procura de um caminho que não podia ser ensinado pelo seu pai, constitui um exemplo que confirma essa tese. O caso de Alcibíades, dilecto discípulo de Sócrates, que acabou fugindo de Atenas, acusado de traição, após anos de vida dissoluta, é outro exemplo que confirma a tese de Sócrates. 5 Embora a virtude não possa ser ensinada, é evidente a sua utilidade para a vida do Homem. A virtude não é útil como um instrumento para um fim, mas sim como um fim em si própria. Para Sócrates, era um absurdo conhecer o bem e fazer o mal. Decorre, então, que o mal é involuntário. O mal é o resultado da ignorância. Por último, vejamos a tese da unidade das virtudes. Sócrates defendia a unidade das virtudes porque cada uma se relaciona com a mesma raiz e essa raiz comum é o conhecimento. É impossível ter o conhecimento de uma virtude sem ter o conhecimento de todas as virtudes. O fim trágico de Sócrates, ocorrido quando Platão tinha 28 anos de idade, é relatado, de forma apaixonada, na Apologia. A condenação à morte de Sócrates põe fim à idade da inocência da democracia ateniense. Ao contrário do réu vulgar, Sócrates não se defende nem se justifica durante o julgamento. A defesa de Sócrates é um ataque certeiro à democracia ateniense, à falta de conhecimento dos seus dirigentes políticos e judiciais e à desordem moral da sociedade. O veredicto foi, como se esperava, culpado: 281 votos contra Sócrates e 220 a favor. De acordo com a tradição, foi dada a oportunidade a Sócrates de sugerir uma pena alternativa que ele considerasse mais justa. Sócrates sugere que, como recompensa para uma vida dedicada ao serviço da cidade, lhe deveria ser dada a possibilidade de ser mantido a expensas públicas, assim como a todos os outros que prestaram serviços distintos a Atenas. Repetida a votação, os jurados votaram por uma larga maioria a condenação a morte. Quando, na cadeia, esperava pelo cumprimento da sentença, os seus dilectos amigos e discípulos ofereceram a Sócrates a possibilidade de deixar a cidade. Sócrates recusou, afirmando que, ao ser cidadão de Atenas, tinha feito um contrato com o Estado que o obrigava a respeitar as leis da cidade. A recusa da fuga foi enfatizada, ainda, com estas palavras de Sócrates: "é melhor partir como inocente e vítima do mal, do que como agente do mal, uma vítima não das leis, mas dos homens". Na ética de Sócrates e de Platão, sobressai a importância do método socrático. E foi o carácter corrosivo e subversivo desse método que conduziu Sócrates à morte. As autoridades políticas de Atenas, no século IV a C., tal como as autoridades políticas do nosso tempo, não apreciavam nem apreciam o espírito de independência daqueles que, como Sócrates, agem como arreliadores moscardos, sempre prontos a incomodar os poderosos. Notas 1) Platão (1999). Protágoras. Tradução, Introdução e Notas de Ana da Piedade Elias Pinheiro. Lisboa: Relógio D`Água Editores 2) Idem, 318 d 3) op. cit, p. 14, Introdução de Ana da Piedade Elias Pinheiro 6 4) Idem, 319 b - c - d - e 5) Ibid, p. 17-18, Introdução de Ana da Piedade Elias Pinheiro 6) Ibid, 349 b - c 7) op. cit., p. 23, Introdução de Ana da Piedade Elias Pinheiro 8) op. cit., p. 24, Introdução de Ana Piedade Elias Pinheiro 7
Documentos relacionados
A República
demais virtudes. Sócrates recorre ao discurso escatológico através do mito de Er, onde fala da recompensa no pós morte: afinal, a vida “é um grande combate (megas agon), meu caro Glauco, é mais do ...
Leia mais