Informativo 15 - Observações sobre

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Informativo 15 - Observações sobre
INFORMATIVO PNCSA Nº 15
Observações sobre Afrorreligiosidade em Cuba: exercício etnográfico
Nas prateleiras de livrarias e sebos, nas bancas de livros em praças e lugares menos
despercebidos, nesse ano 2015, não estão em exposição os livros de Alejo Carpentier EcuéYamba-O nem El reino de este mundo, famosos por fazer conhecer o universo religioso.
Algumas obras clássicas de Fernando Ortiz1 são oferecidas pelos livreros da Plaza de Armas
como Los Negros Curros, en edição da década de noventa. Los Negros brujos, outro livro do
autor, editado em 1917, é obra rara. Nesses autores, a presença africana na cultura cubana e,
em especial no campo religioso, é refletida como resultado de sinteses e ajustes mutuos.
Entretanto, uma literatura sobre afrorreligiosidade está escancarada nesses lugares,
destacando-se em comparação com os livros dos etnologos, aqueles considerados como
estudos e informações sobre as religiões afrocubanas escritos por seus práticantes2.
A etnologa e antropologa Lydia Cabrera (1899-1991) tem nas prateleiras a nova edição
do livro “El Monte”3 originalmente publicado em 1954. Alejo Carpentier conheceu a autora
um dia do ano 1927 quando ele estava em companhia de Fernando Ortiz e ambos a
encontraram em companhia da escritora Teresa de la Parra4 que se haviam dado cita em um
1 Fernando Ortiz (1881-1969), advogado, historiador e antropologo cubano. Foi aluno de Cesare Lombroso e Enrique Ferrer. Na breve biografia apresentada pela Fundación
Fernando Ortiz le-se: “Las concepciones del positivismo criminológico ejercen una gran influencia en sus obras tempranas, bajo estas concepciones en 1906 escribe el
libro Los negros brujos (Apuntes para un estudio de etnología criminal) con carta-prologado de Cesare Lombroso. Con este título Fernando Ortiz inicia su célebre serie el
Hampa-afrocubana, que incluye además los libros Los negros esclavos (1916) y Los negros curros (1986, edición póstuma). Fernando Ortiz es el precursor de los estudios
sobre la cultura de origen africana en Cuba. En 1940 en su obra fundacional el Contrapunteo cubano del tabaco y el azúcar introduce el concepto transculturación,
considerado por Bronislaw Maniloswski como uno de sus mayores aporte a la antropología cultural”.
http://www.fundacionfernandoortiz.org/index.php?option=com_content&view=article&id=59&Itemid=18. Acesso em 07 de outubro de 2015.
2
No primeiro listamos além de Lydia Cabrera, Lázara Menédez. Estudos Afro-cubanos: Seleccíon de Lecturas. Tomo 3. Facultad de Artes y Letras – Universidad de La
Habana. La Habana, 1990. No segundo gênero anotamos alguns livros adquiridos nesses diversos lugares: Jesús Fuentes Guerra. La regla de Palo Monte: um acercamiento a
la bantuidad cubana. La Habana. Ediciones Unión. 2014; Awo fa´Lokun Fatumbi. Dafá: El concepto de advinación de Ifá y de interpretar Odù. S/d. 2009 Rogelio Martínez Furé.
Eshu: Oriki a mí mesmo y otras descargas. Instituto Cubano del Libro. Editorial de Letras Cubanas. 2007; Oluwo Ewe. Tratado de Òsányìn. S/d, S/d.; Aldo Durades Román.
Llanto Brujo: Dilú Dizanga Nkisi Nawao Nkandia Bilongero. Iniciacíon y despedida de um Ngangulero. Tallares Gráficos de Impressos Iztama. Cancún. México. 2004; Víctor
Betancout Omolòfaoró Estrada. El Babalawo: Médico Tradicional (Yorubás y Santeria Afrocubana). S/d. S/d.; Oluwo Ewe. Tratado de Òsányìn. S/d, S/d.;. Adrián de Souza
Hernández. Ifá: Santa Palabra. Concepto ético sobre el caráter y la ancianidad. La Habana. Ediciones Unión. 2010. Neste processo de expressiva afrorreligiosidade, destaca-se
a diversidade de literatura disponível aos interessados em estudar as religiões afrocubanas, sejam por meio de material xerocopiado, livros e apostilas à disposição nas
pequenas tiendas de artigos religiosos, livrarias ou nos sebos e bancas de livros usados. Os preços, pouco acessíveis para o publico cubano, variavam de 8 até 30 CUC Moeda de Conversão Cubana (com valor aproximado de 0,90 de dólar ou 1 euro ¢), e favorece, desse modo, o processo de aprendizagem pela vivencia diária com o sagrado e
suas manifestações.
3
El Monte de Lydia Cabrera foi editado em 1954 e a autora fez dedicatória a Fernando Ortiz, seu cunhado. As seguintes edições ocorreram em 1981, 1989, 1993, 1996
(reeimpressão), 2006, 2009 e 2014.
4
Teresa de la Parra (1889-1936), escritora venezolana, autora do livro “Memórias de Mama Blanca”, amiga de Lydia Cabrera e quem a inspirou para escrever
Cuentos Negros que se transformou no seu primeiro livro. Origininalmente, os contos foram publicados em Cahiers du Sud, Revue de Paris e Les nouvelles Litteraires. Logo
foram traduzidos e publicados pela editora Gallimard com o títulos Les contes négres de Cuba (1936. A primeira edição espanhola é de 1940.
toque de tambor. Em data proxima do lançamento do livro de Cabrera, Alejo Carpentier
escreve a notícia sobre a publicação do livro El Monte5 em um jornal em Venezuela e fez
auspicios sobre a carreira da antropologa, a novidade do seu trabalho dizendo: «Yo no
podía sospechar que aquel día, acaso, había nacido la vocación de la joven cubana, por el
estudio de los ritos de la magia afrocubana».
A antropóloga cubana revela as memórias que guardava da negra Teresa M., hija de
esclava mina e emancipada ao nacer, quem foi costurera de muitas familias opulentas de La
Havana, “conhecida do famoso Cabildo Changó Terddun e das casas de Santo”. Raimudo
Cabrera, um advogado já famoso e pai de Lydia Cabrera foi procurado por Teresa M. , pois ela
“havia sido legalmente desposeída de sus derechos”6 e buscava por reconhecimento dos
mesmos. O conhecimento do mundo dos negros recebe a autora no ámbito da casa familiar.
En 1958, a etnóloga publicou um livro com o título La sociedad secreta Abacuá narrada por
viejos adeptos impresso, novamente em 1990, em Miami.
O fato a destacar é a existencia de diversas publicações escritas por estudiosos e
praticantes da religião. Tato Quiñones, historiador, jornalista e religiosos escreve sobre os
Abakuá em 1994 o livro Ecorie Abakupa: cuatro ensayos sobre Los Ñañigos Cubanos (50
páginas) e mais recentemente um trabalho de maior folego com o título Asere Nuncue Itá.
Ecobio Enyene Abacuá. Algunos documentos y apuntes para una historia de las hermandades
abacuá de la ciudad de La Habana (2015).
Essa atual e aberta identificação das religiões afrobrasileiras é notavel, vivida como
fato total nas famílias, nos bairros e conetada com decisões e atos cotidianos. Um relato sobre
a migração de uma médica cubana começa pela consulta aos Orixas que não recomendaram
esse plano. Ele finalizou por uma experiencia trágica, atribuida à desobediencia. La Havana e
Matanzas são cidades que também se tornaram mais conhecidas durante os nove dias de
aproximação de pesquisa, sobretudo pelas falas com ou sobre as madrinhas, padrinhos,
filhos, também com os babalaos, os abacuás, sem deixar de mencionar os vendedores de
artigos religiosos.
Reestabelecida a relação Estado – religião, pelas ruas de La Havana e Matanzas,
cidades visitadas, a vestimenta dos afrorreligiosos se destacam de longe. Vestidos
completamente de branco e usando colares multicoloridos no pescoço e uma pequena
pulseira com a cor do seu Orixá no punho, andam de modo elegante pelas ruas e ao avistarem
alguma pessoa com semelhante ícone representativo, cumprimentam-se de modo cortez e
respeitador próprio de sua condição iniciática. Neste sentido, Reginaldo Silva ao usar a pulseira
alusiva ao Obatalá, dentro de um metrobus foi cumprimentado por um jovem iniciado em
Eleguá. Em outra situação, nos deparamos com a limitação em fazer o registro fotográfico de
alguns recém iniciados, no entanto, nos permitiram tirar fotos da casa e sobretudo dos
assentamentos sempre e tão presentes nos lares dos afrorreligiosos que conversamos.
Fizemos observações e registros fotográficos quase sistemáticos sobre as ofrendas, as
marcas nas portas das casas, nas igrejas, nas árvores e nas esquinas. De imediato, refletimos
sobre o Brasil. No pais, o artigo 23, do Estatuto da Igualdade Racial, sancionado em 2010,
reafirma o direito de livre culto garantido na Constituição: “É inviolavel a liberdade de
consciencia e de crença, sendo assegurado o livre exercicio dos cultos religiosos e garantida,
5
Alejo Carpentier. «El Monte». «Letra y Solfa». El Nacional, Venezuela, abril, 1954. Essa frase é reproduzida no prefacio de El Monte de Lydia Cabrera escrito por
Raimundo Respall Fina “Abrindo Monte”, 1990. p. 5
6 Lydia Cabrera. El Monte. La Habana. Editorial Letras Cubanas, 2009. P. 34-36.
na forma de lei a paroteção dos locais de culto e suas liturgias” e a lei 12.644 declara
oficialmente o Dia Nacional da Umbanda, essa religião e o Candomblé, as religiões mais
populares de matriz africana. Todavia, ocorre uma serie de repressões e limitações para a
existência dos terreiros na maioria das cidades, com eventos de intolerancia e racismo.
Religiosos e Casas, Templos em La Havana e Matanzas
Nos tempos mais tensos da revolução, depois de 1959, um conjunto de situações
localizadas no âmbito do Estado cubano provocam, desde uma vertente, processos de
invisibilização das religioes afrocubanas, embora elas tivessem um máximo de expressividade
política e social. Na outra vertente, a qual nos interessa surgiam diversos estimulos da vivência
religiosa, sobretudo a afrorreligiosidade clandestina. Durante muito tempo informa-se a
repressão contra os praticantes de cultos diversos aos deuses do panteão afro, isto fez com
que os cubanos desenvolvessem estratégias de culto e com elas surgissem novas
configurações dos espaços religiosos.
Na comunidade de La Marina, alguns dos afrorreligiosos distinguiram os diferentes
espaços de Culto: Casa Religiosa, Cabildo, Casas Líderes e Templos religiosos. Segundo sua
explicação nas Casas Religiosas “se praticam frequentemente as atividades religiosas
fundamentadas na regra Yorubá”. Quanto ao Cabildo, dizem os participantes na Oficina: “São
casas onde nascem os fundamentos das raízes religiosas” e citam como exemplo Olokún,
Arará, Iyesá, Santa Teresita e Nilo Niyé. Neste caso específico, afirmam que há mais casas
dessa natureza e reconhecem estas como as mais antigas e de maior prestigio religioso neste
bairro de Matanzas. Aliado ao modo social de vida diária, as Casas Líderes, são aquelas que
convocam um grupo de pessoas para trabalhar em um mesmo objetivo, tais como a casa da
Milagro, do Kimbo, da Taimí, da Berta e do Fedor. Por fim, explicaram que possuem os
Templos religiosos, “aqueles onde se praticam uma mesma religião seja ela secreta – Abakuá
ou não Uriabòn”.
Outra característica ressaltada nas observações são as casas de venda de artigos
religiosos. Nas visitadas pelos pesquisadores, elas também oferecem serviços religiosos nos
pequenos cômodos adaptados para este fim. Em La Havana, visitamos a casa Ashe Ishowo,
localizada entre a calle Infanta e La Zanja atendida por Manuelito e seu sogro. O primeiro tem
22 anos e recebeu Santo com 15 anos. Suas Madrinas (Mãe de Santo) são sua avó e sua tia.
Ele lidera com sua família e pares religiosos serviços de iniciação diversos. A “Tienda de
artículos religiosos Ashe Ishowo” é um lugar de referência para os afro religiosos de Matanzas.
Tienda Asche Ishowo com alguns dos artigos religiosos colocados a venda. No lado direito as imagens
dos Indios, frequentes nos altares.
Em La Marina, a casa de dona Wachiche (foto abaixo) oferece serviço religioso na
própria casa. Aqui os clientes chegam a todo momento. Durante os poucos instantes de
observação nessa casa, os clientes procuravam por ervas, favas e pós. Em ambos os casos, as
lojas são marcadas pela simplicidade e pela diversidade de produtos disponíveis aos
afrorreligiosos cubanos.
Casa Wachiche localizada em La Marina
Numa perspectiva vivencial, as expressões da religiosidade, independente da
denominação (Abaquá, Ifá, Santeria, Palo Monte, Regra de Ocha), o modo de apresentação
visual, dada exigência de uso da cor branca das vestimentas, é um destaque à parte, elas são
usadas tanto pelas mulheres como pelos homens recém iniciados. O destaque para as
mulheres e seus acessórios estéticos são somente “quebrados” pelas cores dos colares
alusivos aos Santos e Orixás dos devotos.
Na casa do senhor Deosdato organizador do grupo de rumba Los Muñequitos de Matanza observam-se
os objetos religiosos. Na rua de La Havana a casa mostra objetos de proteção .
As visitas diárias aguçavam o olhar para o sagrado e como se manifestava nos distintos
espaços. Desse modo, o caminhar por entre as calle e callejones - se constituíu em exercício
etnográfico buscando expressões de sacralidade espacial, seja por meio de avistamento de
oferenda ou seja por diferenciar os elementos que possuem significado de sacralidade do lugar
por meio de fibras de dendezeiro nas portas e janelas, seja por meio da presença de louças nas
estantes, de assentamento sempre apresentado na entrada da porta, ou ainda pela presença
de assentamento de Eleguá nos ambientes comerciais.
A expressividade do sagrado materializado nas oferendas e especializadas nas casas,
nas ceibas (Ceiba pentandra (L.) Gaertn.) que os afrorreligiosos denominam de Iroko Nome ressaltado no trabalho de cartografia social em Balcon Arrimao, La Lisa,
possibilita a articulação etnográfica de registros no centro de La Havana, onde igrejas,
linhas de trem, corredor de igreja e portas das casas, tornavam lugares “comuns” em
“sagrado”, não pela materialidade, mas pela simbologia e contato entre o profanosagrado, discutidos na acadêmia por diferentes campos do saber, seja na antropologia,
na sociologia, na psicologia e até mesmo na geografia.
As especificidades de culto e sociedades religiosas, dentro da sociedade cubana,
torna os bairros plurirreligiosos. As sociedades afrorreligiosas, geralmente com predomínio do
homem, como os Abacuás, ou ainda o templo Efí Condo, fundado em 05 de Julho de 1903, com
reuniões aos domingos, avistamos oito templos em reunião dia 20 de setembro. Por outro
lado, avistamos também uma organização feminina, o Templo Otura de “Hermanas
Universales Sociedad de Mujeres Iyaonifá Alba Marina Portal” que cultual o Ifá e possui
destaque dentro do legado yorubá cubano, seguindo os moldes da sociedade de cultuadores
de Ifá na Nigéria e em menor intensidade no Brasil.
Casas religiosas com dominio de Mulheres - bairro Simpson e La Marina, Matanzas.
No campo religioso converge de forma original, inovadora e de forma profundamente
criativa o senso prático de segmentos da sociedade cubana, suas identidades e territórios que
a Cartografia social consegue expor e fazer reconhecer.
Reginaldo Conceição da Silva (Pesquisador do PNCSA, Mestre em Cartografia Social e Política na
Amazônia), Rosa Acevedo Marin (Doutorado em História, Pesquisadora do PNCSA).
Texto elaborado a partir dos trabalhos de pesquisa realizados em setembro de 2015.